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limiares das redes escritos sobre arte e cultura contemporânea marcus bastos

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Marcus Bastos

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limiares das redes escritos sobre arte e cultura contemporânea

marcus bastos

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

B327 Bastos, Marcus. Limiares da rede: escritos sobre arte e cultura contemporânea. / Marcus Bastos. – São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2014. 144 p.; il. ISBN 978-85-64586-90-1

1. Sociologia da Cultura. 2. Arte. 3. Cultura. 4. Comunicação. 5. Arte Digital. 6. Cultura Digital. 7. Recursos Audiovisuais. 8. Cultura em Rede.

I. Título. II. Escritos sobre arte e cultura contemporânea. III. Cultura da reciclagem. IV. Manifesto antropófago [digitofagia remix]. VI. O veneno da lata. VII. Jogar ou não jogar: games em questão. VIII. Seis propostas para os próximos minutos. IX. Ex-crever? XII. Notas sobre economia, num mundo de geografias celulares. XIII. Bastos, Marcus Vinicius Fainer. XIV. Intermeios – Casa de Artes e Livros.

CDU 316.7 CDD 306

catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

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agradecimentos especiaisLucas Bambozzi, Rodrigo Minelli (in memorian) e Marcos Boffa, interlocutores fundamentais nos anos em que estes textos foram escritos

agradecimentosAluizer Malab, Aline Gambin, Aline X, André Brasil, André Mintz, Anette Wolfsberger, Bill Seaman, Bronac Ferran, Camila Duprat (in memorian), Claudio Bueno, Christine Mello, Dani Castro, Daniela Bousso, Dene Grigar, Denise Agassi, Dudu Tsuda, Eduardo de Jesus, Elaine Caramella, Fernão Ciampa, Fernando Velazquez, Franscisco Cesar Filho, Fred Paulino, Gabriel Menotti, Geane Alzamorra, Giseli Vasconcelos, Giselle Beiguelman, Gisela Domschke, Irene Machado, Jim Andrews, Jorge La Ferla, Jurandir Muller, Lea Van Steen, Lira Yuri, Lucas Mafra, Luis Duva, Lucia Santaella, Luiza Thesin, Mario Ramiro, Mateus Knelsen, Marta Schneider, Milena Szafir, Mirna Feitoza, Monica Costa, Monica Toledo, Nacho Durán, Natália Aly, Paloma Oliveira, Patricia Moran, Pedro Veneroso, Priscila Arantes, Rafael Marchetti, Rachel Rosalen, Raquel Kogan, Raquel Rennó, Rejane Cantoni, Renata Motta, Ricardo Rosas (in memorian), Rita Lima, Rodrigo Gontijo, Soraia Vilella, Sue Thomas, Wilma Motta e Winfried Nöth.

dedicado a Rodrigo Minelli (in memorian)

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índiceapresentação, por christine mellosamplers, redes e audiovisuala cultura da reciclagemmanifesto antropófago [digitofagia remix]o veneno da latajogar ou não jogar: games em questãoseis propostas para os próximos minutosex-crever?notas sobre economia, num mundo de geografias celularesobjetos, ainda?sincronias entre acontecimento e narrativa

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Para Marcus Bastos, pensar a questão das redes supõe uma reflexão sobre a arte e a cultura do nosso tempo. Diante de tal propósito, segue-se uma pergunta inevitável: a que modo de pensar as redes ele se refere?

Ao questionar as redes, ele não se refere a uma arte e cul-tura homogênea, consensual, conhecida, conquistada e con-trolada, mas sim a experiências de caráter aberto, provisório e descontínuo, a trocas intersubjetivas, a aspectos que inter-rel-acionam comunicação, práticas artísticas e produção de novas linguagens.

Faz parte de suas observações um desenho de mudanças gerado a partir da segunda metade da década de 2000 que ar-ticula ‒ pela internet, pelos dispositivos móveis e aplicativos ‒ a cultura das redes sociais. Se por um lado este tipo de cultura se caracteriza pelo maior acesso, seleção e processamento das in-formações em tempo real, por outro atualiza questões tão caras

apresentação

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em outros tempos, como multidão, nomadismo e transitoriedade.Como exemplo, no célebre conto O homem da multidão,

de Edgar Allan Poe, escrito nos anos 1840, o narrador experi-menta em um café em Londres, ao longo de um dia, o fenômeno da multidão. Pelos efeitos da luz, observa o rosto de cada pes-soa. Até que sai do café e segue um homem através da multidão. O anonimato na multidão, o nomadismo urbano e os trânsitos e deslocamentos se transformam, desse modo, em atributos do homem moderno. Como um emblema de uma sociedade em transformação, o conto fala sobre os novos regimes de per-cepção no século 19 decorrentes da experiência com a cidade.

Já nos anos 1980, sob o efeito midiático da Guerra do Golfo, Paul Virilio discorre, em As perspectivas do tempo real, sobre prob-lemas existenciais das sociedades contemporâneas decorrentes da instauração de diferentes regimes de percepção advindos das práticas coletivas de comunicação e telecomunicação.

Em seus escritos, ao abordar novos modos de produção de linguagem associados ao ciberespaço e a realidade virtual - tra-zidos com o tempo real da transmissão instantânea de aconteci-mentos históricos - referentes, em especial, às transmissões dos ataques aéreos da Guerra do Golfo pelos noticiários da televisão, Paul Virilio observa um momento da história em que nos encon-tramos diante de uma espécie de divisão do conhecimento do “ser no mundo”. De um lado, o nômade das origens, para quem predomina o “trajeto”, a trajetória do ser; de outro, o sedentário para quem prevalece o “sujeito” e o “objeto”, movimento em di-reção ao imóvel, ao inerte, que caracteriza o “civil” sedentário e urbano, em oposição aos deslocamentos do “guerreiro nômade”.

Para ele, a figura do “guerreiro nômade” se amplifica no final do século 20 diante das tecnologias de telepresença, ou da chamada “presença à distância”.

No entanto, diferentemente do que constatamos hoje, Virilio compara o “guerreiro nômade” – que atua no ciberespaço - ao estatuto da sedentariedade, em que “o controle do meio ambi-

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ente em tempo real prevalecerá sobre a organização do espaço real do território”. Segundo sua concepção, o sujeito desloca-se no ciberespaço, mas mantêm-se imobilizado no espaço geofísi-co e, em consequência, distancia-se do contato direto com a cidade.

Passadas mais de três décadas, observamos hoje um tipo de fenômeno produzido em tempo real capaz de transformar o paradoxo de sedentariedade associado por Virilio aos sujeitos no ciberespaço: a mobilidade existente entre espaços de diferentes naturezas, simultaneamente geofísicos (urbanos) e virtuais (co-municacionais), conectados em rede.

A mesma mobilidade motivou as reflexões conduzidas por Marcus Bastos no presente livro. Como um narrador em tempos de escritura digital, oferece-nos um conjunto articulado de textos sobre atributos da fugacidade, da impermanência e da efemeri-dade nos limiares do século 21.

Não é difícil reconhecer na cultura das redes definições am-plas de multidão e mobilidade relacionadas a experiências tran-sitórias e nômades partilhadas de modo comum por diversas pes-soas. Difícil, porém, é produzir relações em que haja consolidação da criação de espaços capazes de refletir seu pensamento.

Em Limiares das redes, Marcus Bastos enfrenta ardua-mente essas dificuldades. E as enfrenta com gestos muito es-peciais. Primeiro, fazendo parte assiduamente de experiências transitórias e nômades que integram tanto as cidades como as redes comunicacionais on-line. Nelas, ele ativa redes de recipro-cidade que conectam pessoas por meio de seus escritos – tanto em meios acadêmicos como não acadêmicos ‒, gerando, com isso, laços comunitários. Segundo, criando com seu livro um es-paço de reflexão que não fala sobre a rede, mas constrói seu texto em rede.

Trata-se, portanto, de escritos sobre arte e cultura contem-porânea que articulam simultaneamente pensamentos, redes e laços de afetos. Bastos observa, desse modo, a questão da rede

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como diferença e alteridade, nela encontrando uma sociedade em transformação e novos regimes de percepção.

Algumas outras considerações introdutórias podem ser acrescidas. Embora consolide uma reflexão, Marcus Bastos pref-ere evitar visões totalizantes, insistindo nos contrastes, ambigu-idades e análises provisórias. Escolhe, para tanto, temas como cultura sampler e reciclagem; indústria do software e hackers; cultura urbana alternativa, contracultura e contracomunicação; audiovisual, layers e portabilidade; literatura e games; live cine-ma e tempo real; assim como o conceito de híbrido aplicado às imprecisões das novas mídias, entre outros. Enfoca, com isso, a transgressão na cultura em rede, sendo este, inclusive, o título de um de seus textos.

Mais que tudo, alude aos novos processos de escrita pro-movidos pelas poéticas digitais, nas quais, para ele, “o código binário substitui a letra como elemento estruturante, revelando, com isso, um trânsito fluído entre signos.”

Bastos também articula determinadas noções – como “dig-itofagia remix” e “geografias celulares” – de caráter extremamente inventivo e singular. Desse modo, as concepções trazidas neste livro, que incluem textos produzidos entre 2004 e 2011, revelam não apenas a preocupação com o uso de conceitos não con-vencionais para falar de algo, mas também a necessidade de constituição de novos termos.

Numa época que reflete o aumento exponencial da multi-dão pela comunicação digital em rede, Marcus Bastos ativa pela escrita atos comunicativos relacionados a modos inusitados e sensorializados de desenhar o pensamento em rede.

Christine Mello, novembro de 2014

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Letter to Jenny (2005): remix para painel eletrônico, criado pelo autor para a exposição Calhau, curadoria de Facundo Guerra e Giselle Beiguelman

FIREWALL ME FROM WHAT I DOWNLOAD

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Os textos de Limiares das redes: escritos sobre arte e cultura contemporânea foram reunidos a partir de uma seleção de artigos inéditos ou de difícil acesso que sugeria ao menos três livros: um parecido com este volume (mas com quase trezentas páginas); um que precisaria de uma redação final costurando tex-tos curtos (a maioria publicados em catálogos de exposição ou na forma de perfis de artistas na revista do Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis arte.mov), com apontamentos para uma história crítica da arte brasileira criada a partir do embate com tecnologias emergentes; outro com traduções de artigos que permitem entender como foi a constituição da cultura em rede e seus desdobramentos.

No formato final, ficaram artigos representativos de três fo-cos de interesse, alinhados com tendências da cultura urbana recente: as práticas remix, os formatos que surgem na cultura digital (como a game art e o design de objetos com componentes

samplers, redes e audiovisual

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imateriais) e as poéticas do tempo real. Mas eles não constitutem eixos explícitos do livro. Organizados em ordem cronológica, os textos escolhidos pretendem registrar um período de produção que articula pesquisa acadêmica e atuação no circuito que fo-menta a produção na área, mais que oferecer uma versão equi–librada dos temas apresentados.

Ao revisar os textos, visando compor o volume final, fic-aram aqueles considerados mais significativos do período de 7 anos que o livro abrange. Não são necessariamente os melhores textos, ou as formulações melhor resolvidas. Quase como num CD que junta músicas gravadas em épocas diferentes, a seleção procurou compor uma seqüência que desse conta de apresen-tar uma amostra significativa e coerente do material (misturando textos de naturezas e estilos diferentes). A dificuldade de acesso também foi um critério, no caso dos artigos não inéditos.

Este critério levou à exclusão dos artigos Remix como poli-fonia e agenciamentos coletivos e Mundo em Tempo Real, entre outros. O primeiro foi publicado no livro Territórios Recombi-nantes, organizado por Camila Duprat, Daniela Castro e Renata Motta. Ele expande temas de Cultura da Reciclagem que ressur-gem em ex-Crever?. Como este último foi escrito quase no final da pesquisa que resultou no doutorado de mesmo título, ele foi mantido em detrimento do outro (mesmo que não seja tão pre-ciso quanto o artigo que foi excluído, nem tão completo como a tese resultante).

O segundo foi publicado na revista do CINUSP Machinima, organizada por Janaina Patrocínio e Patricia Moran. Ele funciona como um ponto de partida para a discussão que aparece em Sincronias entre Acontecimento e Narrativa e eventualities: de-signing real time (publicado no Computer Science Editorial, da editora alemã Springer). Foi mantido o texto intermediário, pois ele articula uma passagem entre dois triênios de pesquisa sobre mídias locativas durante a curadoria do Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis arte.mov e questões ligadas à emergência

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do tempo real como uma característica significativa das redes atuais, o que reforça a estrutura cronológica proposta.

Nesse processo, ficou de fora o texto inédito Memória do Futuro, escrito na época da morte de Julio Plaza (para a revista Trópico, que não o publicou). Este é um dos textos que faria mais sentido em um volume de crítica de arte digital. Outro inédito que acabou excluído da seleção final foi A transgressão na cultura em rede, ensaio escrito a partir do roteiro elaborada para o debate Há transgressões nos videoblogues? (realizado no CISME-SENAC, em 2008) e reformulado quase dez anos depois, no contexto de palestra sobre o tema feita no simpósio Híbrida (organizado por Paloma Oliveira na USP). Ao contrário de outro inédito, Objetos, ainda?, eles continuam na gaveta, como estímulo à escrita dos outros dois livros sugeridos durante a preparação de material para Limiares das redes.

Outra etapa de edição foi minimizar redundâncias. Em al-guns dos artigos originais aparecem trechos muito semelhantes, ou retomadas de ideias. Publicados em volumes separados, são trechos que permitem perceber como certos temas foram sendo tratados em diferentes momentos. No mesmo livro, ficariam re-petitivos. Isto levou a uma reescrita dos textos e à supressão das datas originais de publicação (que aparecia no arquivo de Word incluído no pedido para a FAPESP de auxílio à publicação).

Durante o processo, tornou-se impossível apontar todas as mudanças, mas sempre houve a preocupação de não descontex-tualizar a versão usada como base para finalizar este volume. Nos textos mais antigos, foram suprimidos alguns exemplos pontuais de sites que não estão mais disponíveis ou obras de artista que tiveram importância momentânea. Fora isso, foi feita uma revisão geral de texto, o que resultou em mudanças em praticamente todos os artigos. Em alguns casos, foram suprimidos trechos que faziam sentido apenas no contexto original de publicação ou que tornariam o livro repetitivo. Nem sempre foi possível suprimir trechos tão curtos quanto seria ideal, especialmente no artigo

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Notas sobre economia em um mundo de Geografias Celulares, em que foram excluídas digressões sobre negociação e espaço público (por enveredarem por discussões que, no escopo de um livro, demandariam um adensamento que não era coerente com a proposta de compilar os artigos mantendo a abordagem da época em que foram escritos).

Um livro como Limiares das Redes tem um caráter ine–vitável de mosaico, apesar do conjunto final ter adquirido coe–rência por tratar, sempre, dos desdobramentos provocados na cultura contemporânea pelas tecnologias de comunicação que foram surgindo no decorrer dos anos. A premissa que organiza o conjunto é de que, neste intervalo, o processo de digitalização da cultura e dos processos de linguagem completou um ciclo. Não faz mais sentido discutir as tensões entre as culturas analógica e digital, ou usar esta última palavra como um adjetivo que dis-tingue experiências feitas conforme os computadores foram se tornando mais centrais na arte e na cultura.

O subtítulo do livro, escritos sobre arte e cultura contem-porânea, procura expressar esta passagem. É um recurso que projeta no passado um olhar mais recente e, assim, sugere uma atualização aprés-coup de alguns dos temas. Pressupõe que o digital tornou-se tão presente na cultura contemporânea que não faz mais sentido discutir suas diferenças (ou diferanças, se fosse possível achar uma construção em português para o conceito de Derrida). Mas ele também muda o sentido da ordem cronológi-ca, mantida apesar da supressão das datas de publicação dos textos escolhidos. Gesto que permite voltar aos pontos-de-parti-das de certas questões que aparecem reconfiguradas nos textos finais. Arco entre um retorno que já se faz releitura pelo próprio gesto de seleção e reescrita, mesmo quando esta tenta ser dis-creta e pontual.

“E depois do começo, o que vier vai começar a ser o fim”.

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circ_lular (2004): plataforma web J criada pelo Preguiça Febril (Giselle Beiguelman, Marcus Bastos e Rafael Marchetti) para a exposição Sonarama, curadoria de Lucas Bambozzi.

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O carrinho do supermercado raspa no canto do refrigera-dor e as latas de Pepsi Twist chacoalham em loop sincronizado com o ritmo da música que escapa pelas frestas entre o fone e o ouvido propriamente dito. No apartamento, enquanto o telefone não toca. Enquanto os arquivos no Napster não completam o destino até o HD, um ritual comum a adeptos de todas as tribos e subtribos espalhadas pelas ruas da cidade: separar o lixo orgâni-co, não orgânico, plástico, metal, papel. A cena, familiar em sua trivialidade, vai além da mera descrição de um sábado qualquer antes do sushi com saquê, depois cinema, depois balada. O tex-to que aqui se inicia é uma tentativa de entender que relações são possíveis entre momentos cotidianos como o descrito e a formu-lação do conhecimento que circula nos diversos circuitos que o institucionalizam. É o retrato de um processo que envolve entu–siasmo, decepção, rigidez, preguiça (febril) e outros. Sentimentos

a cultura da reciclagem

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ocultos entre linhas que querem relacionar os vários estímulos que fazem o habitante das metrópoles contemporâneas pensar e agir assim ou assado. Para que serve, afinal, o conhecimento senão para amenizar o fato de que, segundo Kenneth Branagh, não existem adultos, apenas crianças com dívidas no banco.

A favor dessa relação estranha, um método esquisito que permite perceber como um dos grandes temas contemporâ-neos, o hibridismo das manifestações simbólicas, também pode ser aplicado ao estudo da fórmula de marketing preferida da in-dústria alimentícia, que inunda as prateleiras de supermercado com misturas pré-fabricadas de guaraná com laranja, suco de abacaxi com hortelã, doritos com bacon e outros primores de uma culinária tão artificial quanto a inteligência que os cientistas cognitivos buscam em suas pesquisas. A coincidência revela que há mais coisas entre o estado de uma época e as várias formas de transformá-la em livros, CDs e DVDs do que supõe a nossa vã — e às vezes pouco disposta a investigar o que acontece fora do mundo do pensamento reconhecido pelos pares — filosofia.

“E talvez seja uma história chata, mas você não precisa ou-vir, ela disse, porque ela sempre soube que ia ser daquele jeito”. Breat Easton Ellis, Os jogos da atração. Romance escrito quan-do os livros sobre Internet e mídias digitais faziam referências constantes ao Memex e à Arpanet em intensidade semelhante com que livros de história contam invasões, batalhas e guerras. Mas a história das mídias digitais não precisa ser um resgate das pesquisas financiadas pelos departamentos de defesa de países engajados no desenvolvimento de suas máquinas bélicas, as-sim como os livros de história nem sempre precisam ater-se às grandes narrativas, deixando de lado fatos cotidianos igualmente significativos. Outras arqueologias da cultura digital apontam várias manifestações de importância histórica equivalente e maior relevância cultural. Fora que alguns dos envolvidos na criacão da Internet costumam dizer que ela não foi feita para o exército, apenas com dinheiro do exército.

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A história da Internet também é a história de como parte da contracultura que se consolida dos anos 60 em diante substitui o drop out pelo plug in, ao investir suas energias na indústria dos computadores pessoais1. Neste processo, as práticas de recicla-gem, e outros elementos do ideário dessa contracultura, inser-em-se, aos poucos, em setores sociais cada vez mais amplos. O símbolo de uma sociedade preocupada em preservar suas re–servas naturais e reaproveitar os detritos sólidos não é o Memex, mas o sampler. Parece razoável aproximar a linguagem digital do universo em que este último se desenvolve, como será feito nas pequenas amostras de pensamento desenvolvidas abaixo, para que o leitor as combine da forma que achar mais interessante.

breve história do sampler

Neto do Fairlight CMI, desenvolvido pelos australianos Kim Rydie e Peter Vogel entre 1975 e 19792, e aperfeiçoado na dança anônima da música eletrônica, o sampler é um aparelho que grava e permite a manipulação de amostras sonoras. Com o sampler, compor torna-se (também na música pop) a arte de combinar sons e trechos de músicas. O procedimento remete às práticas da música eletroacústica, mas desenvolve-se com nome e atitude nos subúrbios das grandes cidades norte-americanas, como desdobramento do rap nova-iorquino e da música criada para as warehouse parties de Detroit.

1 O tema foi bem desenvolvido em O culto da informação (Roszak, 1988), de Theodor Roszak.

2 Mais informações no Synthmuseum.com, http://www.synthmuseum.com/fair/ (online em setembro de 2014).

a cultura da reciclagem

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Em 1948, a palavra sample servia apenas para designar amostras colhidas em exames médicos e pesquisas qualitativas. Sem saber que o termo ganharia outros sentidos, Pierre Schaef-fer descreve como música concreta suas experiências na Rádio ORTF. Em A experiência musical, ele explica como “toma partido composicionalmente dos materiais oriundos do dado sonoro ex-perimental /.../ não mais com relação a abstrações sonoras pre-concebidas, mas com relação a fragmentos sonoros existentes concretamente e considerados como objetos sonoros definidos e íntegros, mesmo quando e sobretudo se eles escapam das definições elementares do solfejo”.

O sampler pode ser associado às práticas de colagem e apropriação na história da arte e da literatura, como feito nos artigos On bricolage, de Anne-Marie Boisvert e Art history shake and bake”, de Sara Diamond3. Inserí-lo num contexto cultural mais amplo não esgota o tema, mas permite reconhecer práti-cas semelhantes usadas para produzir textos, imagens e vídeos. Os exemplos descritos nos artigos em questão mostram como o uso de amostras como forma de manipulação de linguagem em que há um novo tratamento de material previamente criado não se restringe à música. O computador facilita estes processo, na medida em que converte qualquer informação em seqüências binárias. Desta forma, mesmo em equipamentos domésticos, baratos e acessíveis, torna-se possível converter todo tipo de material em arquivos que podem ser armazenados, editados e distribuídos em formato digital. O scanner pode ser usado como um sampler de imagens e os processos OCR como samplers de textos. O bloco de notas funciona como um sampler de códi-go-fonte e as placas de captura de vídeo como sampler audiovi-sual. E assim por diante.

3 Os textos de Boisvert e Diamond foram publicados na Horizon Zero n. 8 , disponível online no endereço http://www.horizonzero.ca/textsite/remix.php?is=8&art=0&file=11&tlang=0 (online em setembro de 2014).

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a apropriação e o remix

No universo musical, o novo tratamento de uma música re-cebe o nome de remix. Em Models of autorship in new media, Lev Manovich afirma que, nos últimos anos, a prática do remix ganha espaço fora do universo musical, apesar de não ser ad-mitida abertamente4. Para Manovich, o remix resulta em um novo tipo de autoria, resultado do diálogo assíncrono entre criadores. Mesmo que, em áreas como as artes visuais e o cinema, o re-mix às vezes seja visto como violação de direitos autorais. E na literatura, para preservar os direitos do autor, quando se escreve sobre as idéias de outra pessoa, é de praxe usar marcas textuais como: ainda segundo Manovich, fora do universo musical o ter-mo mais próximo de remix é apropriação.

Ao contrário do que sugere o teórico russo, a apropriação e o remix são bastante diferentes. A prática do remix resume-se, na maioria das vezes, a um novo tratamento do material sonoro. Não acontecem mudanças na estrutura da composição, geral-mente reembalada de acordo com as tendências de sucesso do momento. Mas, em casos como as sete mixagens diferentes para Papua New Guinea, do Future Sound of London, fica claro como o responsável pelo remix pode adotar um estilo bastante pessoal. Além disso, uma série de artistas começa a explorar, com a popularização das mídias digitais, formas alternativas de remix. É o caso dos trabalhos do DJ Spooky, do disco concei-tual Network Voices5, do remix do DJ RABBI para A sociedade do espetáculo, de Guy Debord6, e dos trabalhos audiovisuais de

4 Disponível em http://www.manovich.com (online em setembro de 2014).

5 Networked voices foi editado pela alt-x (http://www.altx.com/audio/). Em 25 de setembro de 2014 o link só permitia ler a sinopse do projeto.

6 O remix de SOS é distribuído em DVD. O trailer está disponível em http://www.djrabbi.com/sospreview.htm (online em setembro de 2014).

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VJs como Alexis (e sua manipulação ao vivo de Cidade de Deus) ou duVa (que remixou Made in Brazil, de Letícia Parente, na pro-gramação do 14º VideoBrasil).

Na apropriação, ao contrário do remix, não há um novo tra–tamento de material, mas recontextualização de objetos dos mais diversos tipos. É o caso do Projeto Care. Nele, Nelson Leirner re-cupera o imaginário do consumo e da cultura urbana, interferindo em objetos anônimos, como cartões de natal e latas de refriger-ante. Ao fazê-lo, atribui-lhes uma assinatura, denunciando nos bastidores do mercado de arte um culto à personalidade semel-hante ao star system de Hollywood — mesmo que baseado em rituais diferentes. Além disso, práticas comuns no contexto do situacionismo, como o détournment ressurgem na Internet, com auxílio dos recursos de tratamento digital e distribuição possíveis.

Na literatura, a prática remonta ao cut-up de William Bur-roughs e a Punk poem (Edgard Braga), Em progresso” (Tadeu Jungle) e Clichetes (Philadelpho Menezes)7. Neles também ocorre a ressignificação de objetos cotidianos (o alfinete, a bandeira do Brasil, a embalagem de chicletes). Mas, como poesia é feita em livro e livro se multiplica, o que era objeto único tirado do contexto vira página reproduzida. Além disso, outra diferença entre a apro-priação literária e a apropriação nas artes visuais é que a primeira pode se restringir ao plano textual. Ainda que isso aproxime a prática das diversas formas de intertextualidade, é preciso deixar claro que só há apropriação quando existe um reaproveitamento físico dos materiais que compõem o texto de partida. Um exem-plo é o poema “Cummings: não-tradução” (Paulo Miranda), em que o texto do poeta americano é transposto para as páginas da revista Artéria 2 por métodos gráficos.

7 O poema de Edgard Braga foi publicado em Desbragada, organizado por Régis Bonvicino (Bonvicino, 1984); o de Tadeu Jungle, em Poesia Visual Brasileira: uma poesia na era pós-verso, de Omar Khouri (Khouri, 1996); o de Philadelpho Menezes, em Poética e Visualidade (Menezes, 1991).

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a digitalização

As mídias digitais acentuam esse jogo de reciclagens, pre-sentes de maneiras distintas na colagem, na apropriação e no re-mix. Isso fica claro pela quantidade de obras criadas no início do século XXI em que há novos tratamentos de material digitalizado, sejam livros, filmes, games ou sites.

A base dessa cultura é invisível para o usuário. É comum na programação — especialmente depois da popularização da programação orientada a objetos — a reutilização/atualização do código-fonte desenvolvido para um determinado aplicativo. Isso acontece tanto nas diversas versões de um mesmo programa quanto no reaproveitamento de código comum na criação de páginas de Internet em que é possível aproveitar parte de um programa e alterar seus parâmetros, para adequá-los às final-idades da nova página criada. A própria lógica da indústria da informática é um bom exemplo de reciclagem. Basta substituir o número depois do nome de cada programa pelo nome do diretor de programação acompanhado da palavra mix — star system reverso para quem for assinar o Windows (Plug-and-pray remix) e o Windows (Xtra Problemas Version).

Clichetes, de Philadelpho Menezes: a poesia visual como precursora dos processos copy/paste

a cultura da reciclagem

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Mas reciclar produtos culturais não é como reciclar lixo ou programas de computador. Na reciclagem de lixo, o produto re-sultante será utilizado novamente, com poucos e declarados pre-juízos em relação ao material não reciclado. Na reciclagem de produtos culturais, a relação entre matriz e recomposição nem sempre é explícita. Como o procedimento é amplo, podendo ser utilizado nos mais diversos contextos, serão consideradas per-tinentes à cultura da reciclagem apenas práticas criativas com postura crítica e/ou irônica ao material tratado, no universo de analogia entre apropriação, colagem, remix e as diferentes for-mas de copy/paste que aproxima práticas da arte experimental e equivalentes que surgem na cultura digital.

Um exemplo é o plagiarist.org8 e seu Plagiarist Manifesto. Entre vários projetos significativos, o coletivo criou o Recicla-dor Multi-Cultural, em que um programa seleciona imagens de câmeras web indicadas pelo usuário, para compor uma imagem aleatória. Seu algoritmo é o elemento central. Além do caráter modular, permutacional e instável da Internet, os trabalhos tem-atizam ainda o jogo econômico do capitalismo coorporativo e seus reflexos nas práticas de plágio e direitos autorais.

Mais próximo da apropriação, errata :: erratum (DJ Spooky)9 é uma metáfora do remix como arte de girar discos, homenagem cinética à técnica do scratch. Usando como material a série Ane-mic Cinema (Marcel Duchamp), o trabalho oferece uma versão digital dos discos originais, para que o usuário gire e combine a partir de uma interface que lembra uma mesa de som. O site pode ser acessado na galeria digital do Museu de Arte Contemporânea de São Francisco (EUA). Apesar das implicações institucionais passíveis de discussão no gesto, especialmente pelo fato de um

8 Disponível online em http://plagiarist.org no dia 25 de setembro de 2014.

9 Disponível online em http://www.moca.org/museum/digital_gallery/pmiller/opener.html no dia 25 de setembro de 2014.

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site não depender do espaço do museu para ser veiculado, a obra não foi objeto de polêmicas tão contundentes quanto as que envolveram Duchamp. Sinal de que a cultura contemporânea já absorveu práticas similares. Há boas discussões sobre esse paradoxo no artigo Contra o pluralismo, de Hal Foster (1996). O tema aparece, ainda que em outro contexto, quando Naomi Klein descreve, em Sem logo (2002), as diversas formas que a in-dústria da cultura encontra para neutralizar as manifestações que desafiam os discursos dominantes, as transformando em moda, tendência ou estratégia de marketing.

Outro aspecto dessa cultura de reciclagem é o trânsito con-stante de mídias e códigos entre sistemas. Ainda que a maior parte do fluxo atual ainda seja resultado de transmissão de dados por pessoas presas ao escritório pelos fios do computador de mesa, os dispositivos móveis ganham cada vez mais espaço.

Não importa a sensação de que “nos veículos de massa, esses tipos de apropriação são tão ubíquos que parecem não ter agentes”, nas palavras de Hal Foster. No entorno do universo inaugurado pelo sampler, as práticas de reutilização, apropriação e reciclagem de mídias invertem o lugar do anônimo. Nesse con-texto, reciclar é marca de uma sociedade em que o excesso e a velocidade interessam porque não são nossos.

referênciasBranagh, Kenneth. Para o resto de nossas vidas. Videoteca Caras, v. 11. São Paulo: Abril, 1992.Bonvicino, Régis (org). Edgar Braga: desbragada. São Paulo: Max Limonad, 1984. Burroughs, William. The future of the novel, in PACKER, Randall e Ken Jordan. Multimedia: From Wagner to Virtual Reality. New York: W.W Norton & Company, 2002

a cultura da reciclagem

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Ellis, Breat Easton. Os jogos da atração. São Paulo: Rocco, 1989.Foster, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.Khouri, Omar. Poesia visual brasileira: uma poesia na era pós-verso. São Paulo: PUC-SP, 1996 (tese de doutorado).Klein, Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo: Record, 2002.Manovich, Lev. Models of authorship in new media. In: http://www.manovitch.net .Menezes, Flô (Org.). Música eletroacústica: história e estéticas. São Paulo: Edusp, 1996.Menezes, Philadelpho. Poética e Visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas: Ed. da Unicamp, 1991.Roszak, Theodor. O culto da informação: o culto dos computadores e a verdadeira arte de pensar. São Paulo: Brasiliense, 1988.

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detalhe de No Plata dot Us, do Preguiça Febril: uma interface que remixa textos de forma algorítmica.

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Só a antropofagia nos linka. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única interface do mundo. Expressão emulada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

php or not php that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a Microsoft, mãe dos Nerds.

Só interessa o que não é meu. Lei do hacker. Lei do Geek.

manifesto antropófago [digitofagia remix]

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Estamos fatigados de todos os admins suspeitosos postos em drama. Turkle acabou com o enigma indivíduo o com outros sustos da psicologia humana.

O que atropelava a verdade era o corpo, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem desconectado. O Nettime digest informará.

Filhos da Sun, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente com toda a hipocrisia da saudade, pelos desplugados, pelos [arquivos] corrompidos, pelos turings. No planeta da rede mundial.

Foi porque nunca tivemos programas, nem coleções de códigos-fonte. E nunca soubemos o que era humano, pós-humano, fronteiriço e continental. Preguiçosos do mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica tecnológica.

Contra todos os importadores de programas licenciados. A existência palpável da vida. E a mentalidade genérica para Lev Manovich estudar.

Queremos a Revolução Informática. Maior que a Revolução Genética. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do clone. Sem nós a rede não teria sequer o seu pobre Manifesto Cyborgue.

A idade do outro anunciada pela América. A idade do outro. E todas as girls sintéticas.

Filiação. O contato com o Brasil Informático. Ou Villegaignon print terre. Haraway. O ciborgue híbrido. Hayles. Da revolução

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eletrônica ao Pós-humanismo, à revolução digital, à Revolução genética e ao coelho manipulado de Kac. Caminhamos.

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Vimos Christo encapar o Elevador Lacerda na Bahia. Ou uma árvore em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica de programação entre os nós.

Contra o Padre Vieira. Autor de nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: queime isso em CD mas em forma de dados. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o gene do açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a seqüência do DNA.

O avatar insiste em conceber o espírito sem corpo. O tecnomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as corporações da economia global. E as inquisições offline.

Só podemos atender ao mundo do Oracle.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A migração permanente do Código em interface.

Contra o disco rígido e as idéias fixas. Cadaverizadas. O stop do sistema dinâmico. O indíviduo vítima do vírus. Lib das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Bancos-de-dados. Bancos-de-dados. Bancos-de-dados. Bancos-de-dados. Bancos-de-dados. Bancos-de-dados.

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O instinto Informático.

Morte e vida dos backups. Da equação objeto parte do Programa ao axioma Programa parte do objeto. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o silício.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O index vestido de senador do Império Fingindo de Bush. Ou figurando nas óperas de Norton cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a interface móvel. A idade do outro.

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A magia e a vida. Tínhamos a relação e o envio de dados imateriais, do spam, das mensagens encriptadas. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de alguns scripts vagabundos.

Pesquisei num motor-de-busca o que era o Direito. Ele retornou sites sobre a garantia do exercício da possibilidade. Esse programa chamava-se Google. Sampleei.

Só não há loop onde há banda larga. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Sillicon Valley. O mundo sem dados. Não validado. Sem Gates. Sem Jobs.

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A fixação do progresso por meio de blogs e telefones celulares. Só a interface. E os codificadores de áudio.

Contra as sublimações antagônicas. Compartilhadas via Napster.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, Linus Trovald: — É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos sampleando, porque somos múltiplos e imprevisíveis como Ted Nelson.

Se Gates é a consciência do Universo Incriado, Trovald é a mãe dos viventes. Jobs é a mãe dos vegetais.

Não tivemos a customização. Mas tínhamos randomização. Tínhamos política que é a ciência da distribuição. E um sistema de compartilhamento social-planetário.

As migrações. A fuga das tecnologias obsoletas. Contra as escleroses urbanas. Contra as salas de bate-papo e o tédio especulativo.

De William Gibson e Ridley Scott. A transfiguração do Código em interface. Antropofagia.

O path família e a criação do mecanismo inteligente: Ignorância real das urls + fonte de digitalização + sentimento de alteridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo nomadismo para se chegar

manifesto antropófago [digitofagia remix]

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à idéia de Rede. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Anderseen.

O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Ted Nelson divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o programador coorporativo. O programador filho de Bill Gates, afilhado de Catarina de Seattle e genro de D. Antônio de Siliconia.

A alegria é a prova da Novell.

Nas lanhouses de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência virtual renovada.

Somos imateriais. As idéias tomam conta, conectam, queimam disquetes nas praças públicas. Suprimamos as idéias e outras paralisias. Pelos memes corrosivos. Acreditar nas buscas, acreditar nas bibliotecas de scripts e nos programas P2P.

Contra Gates, a mãe dos Gracos, e a Corte de George Bush II.

A alegria é a prova da Novell.

A luta entre o que se chamaria Hacker e a Máquina — ilustrada pela contradição permanente do homem e seu Avatar. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Samplear o inimigo sacro. Para transformá-lo em remix. A aventura cibernética. A finalidade conectada. Porém, só as puras elites

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conseguiram realizar a antropofagia virtual, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita os males identificados por Turkle, males humanos. O que se dá não é uma digitalização do instinto sexual. É a escala termométrica da interface antropofágica. De virtual, ela se torna eletiva e cria a conectividade. Afetiva, valida o login. Especulativa, gera a inteligência artificial. Desvia-se e transfere-se. Os dados corrompidos. A baixa antropofagia congestionada nos tráficos de comércio eletrônico — a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e analogizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Ratz cantando as onze mil senhas do sistema, na terra de Johnny Mnemonic — o patriarca Mark Ingalls da Microsoft.com.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de George W. Bush II: — Meu exército, invade essa nação estrangeira, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria do Programa Proprietário.

Contra a realidade virtual, vestida e opressora, cadastrada por Turkle — a realidade sem luvas, sem capacetes, sem caves e sem geografia do matriarcado de Pindorama.

[email protected] cybercaféAno 4 do Apagão que deixou São Paulo offline.

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Marginália 2, do Embolex: em palestra no Artists Research Meeting, organizado por Ana Carvalho e Cornelia Lund na PUC-SP, Fernão Ciampa apresentou sua visão sobre a mudança na linguagem dos VJs brasileiros depois dos episódios de restrições contratuais nos festivais patrocinados. Para ele, este momento marca a substituição dos sets com caráter mais crítico e temáticas polêmicas por experiências abstratas.

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Loaded, da banda inglesa Primal Scream, chega às lojas, em fevereiro de 1990, para celebrar a aproximação entre o rock alternativo e a música eletrônica. Seu rápido sucesso indica que a importância cultural do sampler, desde então, é equivalente à da guitarra, nos círculos mais antenados da cultura urbana. Mas a música tem outro sentido, revelado, ironicamente, antes mesmo que soem seus primeiros acordes. Basta lembrar o trecho do filme Wild Angels usado como epígrafe sonora da canção:

“Just what is it that you want to do? We wanna be freeWe wanna be free to do what we wanna doAnd we wanna get loadedAnd we wanna have a good timeThat’s what we’re gonna do

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No way baby let’s goWe’re gonna have a good timeWe’re gonna have a party”2

O tom hedonista da intervenção revela o paradoxo de uma geração que dá vazão aos seus desejos de liberdade por meio do consumo de drogas sintéticas, especialmente do Ecstasy, e investe as energias na organização de raves prolongadas, mesmo em fins-de-semana que não emendam com feriados. Os casos recentes de censura em festivais patrocinados por grandes corporações escancaram a armadilha embutida nessas formas de entretenimento que, apesar da aparência libertária, são produtos de consumo como quaisquer outros. Essa tensão entre os discursos que buscam contestar o estado das coisas e as formas com que elas circulam não é, necessariamente, negativa. Desde que exista a consciência de que a cultura alternativa também é parte da indústria do entretenimento — e que esta transforma tudo, de acordo com seus próprios interesses4.

2 “O que tanto vocês querem fazer? / Nós queremos ser livres / Nós queremos ser livres para fazer o que quisermos fazer / E nós queremos ficar chapados / E nós queremos nos divertir / É isso que nós vamos fazer / Sem chance, gata, vamos nessa / Nós vamos nos divertir / Nós vamos para a balada” (Traduzido pelo autor).

4 Em “Alt.everything – O poder dos newsgroups. O mercado jovem e o marketing do cool”, Naomi Klein explica como “à medida que a privatização ocupa todos os cantos da vida pública, mesmo aqueles intervalos de liberdade e ruelas de espaço sem patrocínio estão escapulindo. Todos os skatistas e patinadores indie têm contratos com marcas de tênis, jogadores de hóquei alimentam os comerciais de cerveja, projetos de desenvolvimento do centro da cidade são patrocinados pela Wells Farg e todos os festivais gratuitos foram banidos, substituídos pelo anual Tribal Gathering, um festival de música eletrônica que se proclama ‘uma defesa contra o maligno império da mediocridade do establishment e das boates, do comercialismo e do capitalismo corporativo

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Na edição de 14 de agosto de 2004 do Mais!, o filósofo canadense Joseph Heath desenvolve, em entrevista a Daniel Buarque, o argumento de que a contracultura é atualmente um novo nicho de mercado. Heath acredita que o entendimento da contracultura como forma de rebelião é baseada na teoria (do final dos anos 1950) de que o capitalismo exige conformismo, nem tanto dos trabalhadores, mas dos consumidores, para absorver o excesso de bens produzidos pela indústria massificada. Por isso, Heath conclui, a contracultura articula o pressuposto de que a melhor maneira de lutar contra o sistema é transformar as pessoas em consumidores não-conformados.

Observando o momento atual em que o mercado expande-se no maior número de direções possíveis, Heath defende que é preciso desafiar a idéia de que o capitalismo requer conformismo. Para ele, “uma das forças da economia de mercado é que ela é muito boa em satisfazer simultaneamente os gostos variados dos mais diferentes indivíduos”. Por isso, ele argumenta que, “ao se tornar um não-conformista, não se está realmente lutando contra o sistema, porque ele não requer esse tipo de conformismo”.

O uso dos diálogos de Wild Angels, filme típico dos anos 1960, no início de uma das músicas que se tornou referência obrigatória da geração que invadiu as pistas de dança na passagem dos 1980 para os 1990, mostra como a questão apontada por Heath extrapola o âmbito da cena eletrônica e o contexto contemporâneo. Trata-se de dilema recorrente da contracultura, que desde os anos 1970 oscila entre o drop out e o plugin, e a negociação mais ou menos inteligente com os interesses do mercado.

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rastejante de nossa contraculutra cósmica’ e no qual os organizadores regularmente confiscam a água engarrafada que não tenha sido adquirida nas instalações do festival, apesar do fato de a principal causa de morte nesses eventos ser a desidratação.” Cf. Klein, Naomi. Sem Logo. A tirania das marcas num planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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Em O culto da informação, Theodore Roszak mostra como “desde seus primórdios, o microcomputador estava cercado por uma aura de vulgaridade e radicalismo que contrastava agudamente com as pretensões de mandarim da alta tecnologia”. Isso acontecia “porque grande parte desta nova tecnologia em menor escala foi deixada para ser desenvolvida fora da cidadela, por jovens e impetuosos hackers — especialmente na Califórnia, onde os tipos socialmente divergentes tinham se reunido na faixa da península de São Francisco, que estava começando a ser chamada de Vale do Silício”5.

A título de registro do ambiente em que surge a cultura dos microcomputadores, vale lembrar que a Califórnia do final dos anos 1960 e inícios dos 1970 era o paraíso lisérgico da juventude mundial, sede de manifestações pioneiras da cultura contemporânea, como o festival Monterrey Pop. Além disso, como lembra ainda Roszak, a cultura hacker cresce em encontros em que o tom era deliberadamente caseiro: “uma rejeição autoconsciente do estilo formal das corporações. Os nomes expressavam muito do espírito daquela época. Uma empresa iniciante daquele período chamou-se Itty-Bitty Machine Company (uma IBM alternativa); outra era Kentucky Fried Computers”.

Esse ambiente em que “tipos barbudos, usando jeans, podiam reunir-se livremente para discutir as máquinas que estavam desenvolvendo em sótãos e garagens”, faz com que a indústria do software seja uma experiência alternativa em que todo um sistema econômico se desenvolve à margem dos escritórios e livros-de-ponto. No entanto, o crescimento no consumo de software resulta em fenômenos contraditórios como o da Microsoft... Corporation. Nesse contexto, em que a — inicialmente — alternativa indústria do software produz

5 Theodor Roszak. O computador e a contracultura, in: O culto da informação. São Paulo: Brasiliense, 1988.

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corporações tão gigantescas quanto a IBM, principal alvo de crítica da contracultura, justamente por exercer um monopólio sobre o mercado de computadores até meados dos anos 70, emergem debates como o do software livre e dos produtos de código aberto, tentativas de manter vivo o espírito hacker.

Essa ligação duradoura e tensa entre informática e contracultura aparece, entre outras, na observação, de Loss Pequeño Glazier, de que o “gopher foi um passo importante na reunião de protocolos que se tornaram a Web” e que sua tecnologia levava em conta que “a metáfora para a Net no momento era a de uma série de túneis subterrâneos, uma metáfora que carregava consigo a sugestão de uma contracultura como a dos anos 1960 ou de uma cultura da informação alternativa”6.

No Brasil, essa história é bastante diferente, e passa pelo exílio de seus principais músicos e intelectuais, durante a ditadura militar. Além disso, ela passa pela incompreensão de posturas como o uso da guitarra elétrica pelos tropicalistas e pelo não entendimento da atitude política intrínseca ao experimentalismo radical das vanguardas. Paulo Leminski é um bom exemplo dos desdobramentos da contracultura brasileira, pela capacidade — descrita por Antonio Risério em Leminski e as vanguardas7 — de aproximar o experimentalismo de linguagem do experimentalismo comportamental. Conforme Risério, a noção de vanguarda proposta por Chklósvski é a de “desvio de norma”. Para ele, esta “definição é válida tanto para vanguardas estéticas quanto para vanguardas extra-estéticas. Ambas podem ser encaradas em termos de comportamento desviante”.

6 Glazier, Loss Pequeño. Digital Poetics. The making of e-poetris. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2001.

7 Risério, Antonio. Leminski e as vanguardas. In: Bric a Brac. Brasília, nº IV, 1990, p.11-3. reproduzido em http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/kamiquase/ensaio5.htm.

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Segundo Risério, “a vanguarda estética é desvio em relação a um determinado mundo, o mundo artístico-intelectual, tal como o definiu Howard S. Becker. Já no caso de uma vanguarda extra-estética como a contracultural, o desvio sai da pista da obra, do pensamento, e vai se inscrever na vida e no corpo do indivíduo”. Por isso, continua, o “comportamento desviante assume, aqui, dimensão existencial. É o desvio do sujeito não em relação ao cânone estético, mas à norma social. Esta é a diferença, digamos, entre o desvio de James Joyce e o desvio de Timothy Leary”.

Risério conclui de que, com Leminski, “estes desvios se justapõem e mesmo se mesclam /.../ Não se trata de retornar aqui o velho clichê, repetido ad nausean pelos literatti, de que nele vida e obra são inseparáveis. Vida e obra são — e serão sempre — inseparáveis, qualquer que seja o caso. O que quero sublinhar é a constatação objetiva, sociológica, de que a trajetória leminiskiana se deixa flagrar na encruzilhada deste duplo desvio”.

A contracultura se instala sempre na encruzilhada entre o experimentalismo estético e o experimentalismo comportamental, pois sem a tensão entre ambos ela esgota-se, torna-se discurso panfletário ou formalismo inócuo. Em Censura é uma lata na boca, Lívio Tragtenberg8 toca num ponto nevrálgico dos

8 No artigo Censura é uma lata na boca (Folha de S. Paulo, 28 de abril de 2005) , Lívio Tragtenberg afirma que: “O recente episódio envolvendo certas recomendações contratuais que vetavam o uso de certos tipos de imagens pelos VJs num grande festival de música eletrônica em São Paulo expõe a situação real da atividade artística em nossos tempos. Finalmente, chegamos à música eletrônica de pista no mundo da Xuxa. Não pode ter imagem de drogas, violência, política, mas é para a rapaziada encher a cara... De uma forma geral, os criadores são reféns (uns mais felizes do que os outros) dos marqueteiros e de suas estratégias publicitárias. O Estado continua ausente da promoção cultural na sociedade, porque lhe falta projeto e estratégias. A lei de incentivo transformou o artista num “mal necessário” nos planos de marketing. E de que artista estamos falando? Que cada vez se aliena mais, num ambiente de pose e de escapismo.” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2804200520%2ehtm)

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desdobramentos tupiniquins da cena alternativa. Ele observa como “o recente episódio envolvendo certas ‘recomendações’ contratuais que vetavam o uso de certos tipos de imagens pelos VJs num grande festival de música eletrônica em São Paulo expõe a situação real da atividade artística em nossos tempos”.

Mas a constatação de Tragtenberg não pode ser entendida como uma justificativa para o abandono dos espaços que ele critica. Trata-se, antes, de um alerta para a ocupação consciente e negociada. Em Escrituras Políticas9, Barthes afirma que:

Todas as escrituras apresentam um caráter de fechamento que é estranho à linguagem falada. A escritura não é nenhum instrumento de comunicação, não é um caminho aberto por onde passaria uma só intenção de linguagem. Toda uma desordem se escoa através da fala, dando-lhe movimento devorado que mantém essa mesma desordem em estado de eterno adiamento. Inversamente, a escritura é uma linguagem endurecida que vive de si mesma e não tem em absoluto a missão de confiar à sua própria duração uma seqüência móvel de aproximações, mas, ao contrário, de impor, pela unidade e pela sombra de seu signos, a imagem de uma fala construída muito antes de ser inventada.

As tecnologias contemporâneas obrigam repensar essa tensão entre ordem e desordem. As mídias digitais permitem que a trama polifônica da linguagem seja tecida de maneira menos hierárquica. Mas, até que ponto essa maior flexibilidade implica em um novo tipo de política? Até que ponto o uso da tecnologia em processos de contracomunicação é capaz de fender por completo a caixa preta, e fazer com que a linguagem escorra para além dos limites que a própria tecnologia a impõe, com toda a carga ideológica aí implícita?

9 Barthes, Roland. Escrituras Políticas, in: O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 31.

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Arteroids, de Jim Andrews: o jogo propõe uma modificação de Asteroids, inserindo fragmentos de poesia sonora e visual numa interface em que uma nave poética “luta contra as forças do tédio e da banalidade”.

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Ao se firmar como uma das manifestações emergentes da indústria do entretenimento, os games revelam-se mais ricos do que o sucesso de Counter-strike e Playstation 3 faz supor. Antes de explicar porque, um pouco do contexto em que o estudo dos jogos experimentais desenvolvido a seguir está inserido. O comércio de jogos já é um negócio mais lucrativo que as bilheterias de cinema. Ele obriga hollywood a “estratégias para conquistar a ciberplatéia”, conforme notícia publicada na Folha de S. Paulo em 24 de Agosto de 2005. Nela, fica clara a tendência da indústria cinematográfica de fazer filmes inspirados em personagens de games de sucesso, para atrair os jogadores para as salas de exibição. Além disso, os games são frequentemente relacionados com o primeiro cinema e, às vezes, à televisão. Ou seja, no século XXI, os jogos são um entretenimento tão dominante na cena cultural quanto os formatos audiovisuais foram no século XX.

jogar ou não jogar: games em questão

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Segundo Bolter, o termo “jogo de computador cobre um espectro amplo de formatos, incluíndo jogos de ação violentos, jogos de estratégia, jogos em que se desempenha um papel, jogos narrativos, eróticos e francamente pornográficos, jogos de carta, quebras-cabeça, exercícios de habilidade, e softwares educativos”. Mas a aparente diversidade raramente implica em abandono da herança militar intrínseca. Bolter revela, ao fazer um histórico de como os jogos de computador incorporam elementos audiovisuais, essa dimensão bélica. Para ele, os “praticantes de jogos de ação são chamados à conduzir uma vigilância continua. Eles recebem a atribuição explícita ou implícita de agir como guardas de segurança, cujo objetivo simples é atirar em qualquer coisa que parecer ameaçadora. Como a ameaça final é que o inimigo destrua o equilíbrio do sistema e interrompa o jogo ao destruir o próprio jogador, este precisa escanear o campo visual e direcionar suas armas de maneira apropriada. Ideologicamente, o jogador é solicitado a defender ou reestabelecer o status quo”.

Em princípio, os games são mais uma das atividades de uma indústria do entretenimento condescendente com a criação de formatos apelativos, sem se preocupar com o resultado de expor o público a uma lógica em que vencer a todo custo é mais importante que competir (de que o sucesso do Big Brother é um bom exemplo). Não é bem assim. O universo dos games tem potencial para se tornar tão diversificado quando o do cinema, que tem um histórico de blockbusters violentos, mas também de películas de delicada inteligência. E, misturando ambos os registros, filmes como O poderoso chefão e Kill Bill, que retratam com eloqüência a violência humana, presente na cultura desde os relatos de guerra gregos, conforme descrito em Arte, dor e kátharsis. Ou: variações sobre a arte de pintar o grito1. Por isso,

1 Seligmann-Silva, Marcio. Arte, dor e kátharsis. Ou: variações sobre a arte de pintar o grito. In: O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

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Henry Jenkins afirma, em A arte emergente, que “o problema com a maior parte dos jogos contemporâneos não é que sejam violentos, mas sim que sejam banais, formulaicos e previsíveis”2.

Mas é possível observar de outros ângulos a experiência de jogar com auxílio de um programa de computador. Há uma série de exemplos de jogos que rompem expectativas e questionam os formatos estabelecidos. Esse universo, composto de trabalhos produzidos, na maioria dos casos, sem interesses comerciais, vai de games ativistas como Velvet-Strike3, desenvolvido pela Opensorcery4, a jogos criados a partir de livros infantis, como Veronica´s Suitcase5.

jogar ou não jogar: games em questão

2 Jenkins, Henry. A arte emergente. In: Mais! Folha de S Paulo, 14 jan. 2011.

3 Em Jogos de Paz, Giselle Beiguelman descreve Velvet-Stike como um jogo que “se apropria do violento game Counter-Strike para questionar a um só tempo a cultura belicosa” dos jogos de computador, “e a nada virtual invasão do Iraque”. No site do projeto, Velvet-Strike é descrito como uma coleção de sprays para serem usados como grafite nos muros, telhados, e no chão do shooter Counter-Strike. Velvet-Strike surgiu no início da guerra contra o terror forjada pelo então presidente dos EUA, George Bush. Mais informações estão disponíveis em http://www.opensorcery.net/velvet-strike/about.html, acessado em 10 de outubro de 2014.

4 Conforme post na nettime, a Opensorcery.net é um projeto de Anne-Marie Schleiner, de estratégias hacker para produção de arte em rede, desenvolvimento de jogos com software livre, modificação e hacking de games, cultura gamer, construção de avatares em jogos de gêneros, skins e patches feministas, e aliança de jogadoras de game. Alguns dos textos disponíveis no site incluem uma versão expandida de Does Lara Croft wear fake polygons?, reescrita para a revista Leonardo, e Parasitic Interventions: Game Patches and Hacker Art, um artigo que discute boa parte dos trabalhos reunidos na exposição online Cracking the Maze: Game Plug-ins and Patches as Hacker Artwert, cf. http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0008/msg00095.html, mensagem publicada em 15 de agosto de 2000 e acessada em 10 de outubro de 2010.

5 O jogo não está mais disponível online, mas há informações a seu respeito no arquivo nt2, no endereço acessado em 10 de outubro http://nt2.uqam.ca/en/repertoire/veronicas-suitcase.

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Estes exemplos, que propõe alternativas aos produtos melhor sucedidos no mercado, permitem que o foco do presente artigo sejam os games mais experimentais, ou que procuram expandir as possibilidades do formato, muitas vezes por meio de um questionamento metalingüístico da própria prática de jogar. São exemplos geralmente classificados como game art, termo para o qual não há uma definição muito clara — pelo menos até onde esta breve pesquisa pôde ser desenvolvida. Uma busca na Internet revela que o termo é mais comum em sites como Third Place Gallery (www.thirdplacegallery.org), que define game art como “todo tipo de obra inspirada pelo universo dos jogos eletrônicos”, e Select Parks (www.selectparks.net), que reúne games de artista, sem se preocupar com definições e incluindo trabalhos dos mais diferentes tipos. O termo é usado em artigos e entrevistas relacionados com a maioria dos trabalhos que serão analisados adiante, com uma exceção que será justificada oportunamente. A título de conclusão provisória, será feita uma breve tentativa de responder à pergunta sobre a pertinência ou não do uso do termo.

Jodi contraca as “interfáceis”

A dupla Jodi é conhecida por fazer trabalhos que desafiam os formatos web mais comuns. As colaborações entre Joan Heemskerk e Dirk Paesmans procuram encontrar formas de explorar a programação como linguagem, desafiando a lógica de analogias entre a área de trabalho do computador e o mundo físico, comuns nas interfaces gráficas que auxiliam o usuário em suas tarefas diante do monitor. A aparente não funcionalidade resultante dessa estratégia é refutada pelo grupo, em entrevista a Tilman Baumgartel publicada na comunidade digital Rhizome. Nessa entrevista, os artistas afirmam explorar formas do código

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binário gerar aplicativos capazes de outros tipos de acesso à linguagem digital, especialmente quando usam rotinas normalmente rotuladas como erros de programação. O Jodi aceita com prazer a contribuição binária dos erros de programação, que eles incorporam como forma de questionar a cultura da eficiência e da otimização típicas da indústria da informática.

A dupla Jodi começa a trabalhar com jogos por sentir-se cansada da superfície plana do desktop e perceber como os jogos permitem ao usuário uma experiência tridimensional sofisticada. Mas, sua aproximação com o universo dos games acontece de maneira bastante específica, na medida em que eles usam Wolfstein, Quake e outros como ponto-de-partida para desenvolver “abstrações do código existente, vestindo e despindo esse código dos gráficos que expressam o que está por trás do programado”6. São mods conceituais, em que se apropriam dos engines de jogos conhecidos para desconstruí-los, e desmascarar o universo competitivo em que estão inseridos. Nos jogos da Jodi não é possível ganhar, nem mesmo competir. Ouvir os sons originais dos jogos utilizados, num contexto de jogabilidade diferente, em que os controles não funcionam conforme esperado e os elementos visuais destoam do realismo 3-D típico, sugere um efeito irônico de estranhamento.

Os jogos do Jodi, segundo a própria dupla — ainda na entrevista publicada no Rhizome — busca uma “exploração formalista da redução, abrindo janelas para visualizar os códigos sob a superfície para compreender melhor o comportamento do jogador/usuário. Gráficos são importantes mas não deveriam se tornar repetitivos”7. Um exemplo é a versão em preto-e-branco do Quake. Nela, “subitamente surgiram retículas ao vivo, interferência

6 Baumgaurtel, Tilman. Interview with JODI, 2001. Disponível em http://rhizome.org/thread.rhiz?thread=1770&page=1

7 Idem, ibidem.

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dos padrões de movimento, que foi algo não calculado”. Segundo a Jodi, “isso acontece porque alguns gráficos com um pixel branco e um pixel preto estavam escorregando um em cima do outro, mas a forma como o efeito começa, e os tipos de padrão que ele produz são acidentais”. Mesmo assim, a dupla aproveita o resultado. Concentrando-se nesses desvios, começam “a desenhar os tamanhos do ambiente, em função deste detalhe, tentando disparar o ‘erro’ o maior número de vezes possível”, em processo que dura meses.

Os jogos do JODI remetem às experiências de arte e comunicação que exploram o ruído como material, assumindo que o pressuposto de que o ruído prejudica a comunicação é equivocado. Há toda uma vertente de pensadores que reconhecem a impossibilidade de processos de completa transparência. Para eles, a relação entre linguagem e pensamento é sempre mediada e, portanto, relativamente opaca. Deleuze, por exemplo, descreve o caráter imperativo da comunicação afirmando que a “relação entre o enunciado e o ato é interior, imanente, mas não existe identidade”. Portanto, essa relação “é, antes, de redundância”, os “jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é ‘necessário’ pensar, reter, esperar, etc.” Para ele, “a linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação mas — o que é bastante diferente — transmissão de palavras de ordem”8. O mesmo que Deleuze afirma sobre os jornais pode ser dito sobre as interfaces digitais. Em ambos, desconstruir os pressupostos estabelecidos implica abrir fendas na linguagem, questionar as palavras de ordem.

Michel Serres desenvolve o mesmo tema, quando critica a forma como o conceito de ruído aparece nas várias apropriações e releituras rígidas das teorias clássicas da comunicação, especialmente nos modelos formulados por teóricos vinculados

8 Cf. Deleuze, Gilles. Postulados da Lingüística. In: Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

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a modelos informacionais e/ou cibernéticos da comunicação. Em Writing poetry in the age of media, Marjorie Perloff, afirma que Serres estudou o significado e a função do ruído, questionando a compreensão do termo como “conjunto de fenômenos de interferência que tornam-se obstáculos à comunicação”. Perloff explica que, para Serres, a palavra “obstáculo” é enganadora, já que o filósofo francês sustenta que o ruído não é somente incidental, mas essencial para a comunicação — seja no nível da escrita (p. ex., “manchas nas formas gráficas, falhas no desenho, erros de digitação, e assim por diante”), da fala (“gagueira, pronúncias incorretas, sotaques, disfonias, e cacofonias”), ou dos meios técnicos de comunicação (“ruído de fundo, consgestionamento, estática, cortes, hiterias, várias interrupções”).

Serres lembra que, no âmbito da comunicação turva, ‘o cacógrafo e o epigrafista’ trocam de papel, lutando, como fazem, contra o ruído entendido como inimigo comum: ‘manter um diálogo é supor um terceiro homem e tentar excluí-lo’. Esse terceiro homem, diz Serres, é o demônio, a ‘prosopéia do ruído”. Demônio, porque, com exceção da matemática, ‘o reino da comunicação quase-perfeita,’ o ‘terceiro homem’ nunca é excluído com sucesso. De fato, para que o discurso ‘puro’ da matemática seja possível, é necessário estancar o domínio empírico; ‘é necessário fechar os olhos e ouvidos para a canção e a beleza das sereias’.

Ao defender que se abra os olhos para beleza incomum dos cantos de sereia, Michel Serres questiona o mito da comunicação transparente. Assim, defende a importância de transpor as barreiras aparentes dos signos imprevisíveis, para desvelar seus sentidos incomuns. Isto permite uma leitura mais rica dos jogos da da Jodi, exemplos de que na linguagem, o desvio é poético, é linguagem que se esforça em buscar o diferente.

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O jogo na literatura

Em Videogames como dispositivos literários, Jim Andrews defende que o componente básico dos jogos é o acontecimento de “eventos em uma estrutura/mundo (geralmente imaginária)” /.../ “gerada por meio de um mecanismo (jogar dados, por exemplo, ou mover)” /.../ em que os “eventos são interpretados e significativos dentro do mundo do jogo”. Segundo Andrews, cada “evento introduz uma mudança no mundo do jogo” e a resposta do jogador a essa mudança “constitui o próximo evento”, ou seja, ela prepara o contexto para a nova jogada. Para ele, o processo de leitura de um poema ou de um livro, a observação de um pintura ou a audição de uma peça musical, entre outras formas possíveis de fruição, “podem ser entendidas como processos em que eventos são gerados por algum mecanismo” que, posteriormente, é interpretado e torna-se significativo no contexto da obra de arte. Assim, o poeta canandense defende a existência de um paralelo entre o processo de fruição estética e a atividade de jogar. Ele afirma que, quando “acontece a leitura de um poema, algo diferente se dá no/do/com o texto, na medida em que a leitura, assim como duas partidas diferentes de um jogo, não se repete. A cada turno da leitura, haverá respostas diferentes da mesma pessoa”.

Essa proximidade entre jogo e fruição estética não pode ser entendida em termos absolutos, já que as duas experiências tem aspectos bastante diferentes que também precisam explorados, para aprofundar a relação entre ambos. Em todo o caso, vale anotar a percepção recorrente de que os formatos que surgem na cultura digital potencializam os mecanismos de leitura, na medida em que estimulam processos mais abertos de produção de sentido. A cultura digital está impregnada de formatos em que a produção de sentido resulta da combinação de fragmentos e da operacionalização de regras. E, o que é mais importante, nos aplicativos digitais, é o usuário quem estabelece as relações

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entre as partes e o desenrolar das regras. Por isso, a fruição dos mesmos depende de um leitor atuante.

Essa proximidade entre jogar e fruir é um dos motivos condutores de O lance secreto, poema intersigno criado por Philadelpho Menezes, em Interpoesia. O lance secreto mistura deliberadamente ficção e realidade, numa espécie de enciclopédia borgeana sobre a paixão de Marcel Duchamp pelo xadrez. Além disso, o texto é entrecortado de referências ao universo de Lewis Carrol, em Alice no País das Maravilhas. Essa mistura de ficção, realidade e intertextualidade busca confundir o usuário, propondo uma crítica irônica ao formato enciclopédico da maioria dos primeiros CD-ROMs. Nesse sentido, O lance secreto é uma espécie de xadrez estranho, em que o avanço do usuário não depende tanto de seus movimentos quanto do desejo de seguir em frente.

Um dos textos incluídos no CD-ROM de Menezes e Azevedo, explica como “no xadrez, após um certo número de jogadas ou um certo tempo de partida, um dos jogadores pode interromper a disputa, para que ela seja continuada no dia seguinte. Para isso, ele deve fazer um lance secreto, que deposita em um envelope para ser aberto no dia seguinte, criando suspense para o adversário” . O mesmo acontece neste poema digital, um aplicativo que pode ser interrompido em qualquer ponto da navegação, para retomada posterior. O lance de dados não é um game propriamente dito, mas dialoga com o universo dos jogos. E tematiza a relação entre arte e jogo, através da paixão de Marcel Duchamp pelo xadrez. O trabalho indica os desdobramentos que as mídias digitais sugerem para o campo da poesia experimental, na medida em que explora tanto a montagem entre signos, marca de sua poesia, quanto as possibilidade de navegação em ambientes digitais.

Segundo Murray, a “capacidade de movimento por paisagens virtuais pode ser prazerosa por si só, independente do conteúdo desses espaços”. Como exemplo, ela conta de

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um amigo, cujo filho é um ávido jogador de Nintendo. Ao jogar, ele sente-se “incomodado por ter que lutar o tempo todo, já que o combate é uma distração não bem-vinda do prazer de mover entre os espaços que se desdobram como labirintos de encantamento”. O lance secreto seria, nesse sentido, um jogo que explora um tipo de prazer não instrumental, pois concede ao jogador a oportunidade de fruir seus ambientes em parceria com e não contra, como na maioria dos jogos.

Outro trabalho que explora a relação entre jogo e literatura é Arteroids, de Jim Andrews. Sua versão literária para o shooter Arteroids é “uma batalha da poesia contra ela mesma e contra as forças do tédio”9. Inspirado no jogo Arteróides, o game literário de Jim Andrews é a luta de uma nave espacial solitária, representada pela palavra poesia, para destruir seus oponentes, também palavras que, quando atingidas, transformam-se em animações em que som e imagem vão lentamente preenchendo a tela. Assim como os jogos criados pela dupla de net artistas Jodi, Arteroids é um mod conceitual, com a diferença que ele não modifica o engine original de Asteroids, mas recria o jogo.

ConclusãoOs exemplos apresentados confirmam a hipótese de que

o universo dos jogos de computador é mais amplo do que os games mais conhecidos fariam supor. De fato, como Janet Murray sugere, há um componente lúdico na forma como acontece o relacionamento entre homem e máquina — em que pese o fato de que, assim como não é possível entender o paralelo entre

9 http://www.vispo.com

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fruição estética e jogo feito por Jim Andrews em termos absolutos, não é possível entender esse componente lúdico existente no relacionamente entre homem e máquina de maneira apressada. O fato de que, na cultura digital, predominam formatos em que é imprescindível o agenciamento, não implica em generalizar toda e qualquer ação que o usuário performatiza sobre um aplicativo digital, pressupondo que ela é de caráter lúdico.

São raros os games que exploram de maneira complexa essa ausência intrinseca, que é um dos ingredientes importantes da inclinação para o divertimento e para o fazer desinteressado. Em Puppet Motel, Laurie Anderson explora elementos comuns nos jogos de computador para constuir um aplicativo em que o único objetivo explícito é a continuidade da navegação, pela descoberta de suas regras pouco evidentes e muitas vezes ironicamente inúteis. Trata-se de um dos poucos trabalhos capazes de explorar a complexidade possível em ambientes tridimensionais controlados por regras sem adotar os formatos dos sims e shooters.

Por isso, uma das questões que merecem ser colocadas, no contexto desta breve pesquisa, é que, apesar do lugar dominante ocupado pelos jogos de computador, a cultura digital não pode ser entendida como uma cultura do jogo. Os trabalhos mais eloquentes que ela produziu não são os jogos. Outros aspectos, como a miniaturização, a customização e a ubiquidade, para ficar apenas com os mais evidentes, são igualmente importantes, senão mais contundentes em termos das mudanças que estimulam e da densidade com que foram problematizadas no universo da experimentação com mídias digitais.

Trabalhos como Puppet Motel — e os demais exemplos analisados no decorrer do presente artigo — revelam como o termo game art é redutor, já que insuficiente para explicar esses formatos que, ao extrapolar os padrões mais conhecidos, tornam a ecologia dos jogos mais divergente. Os games não são conservadores só no conteúdo, mas também no apego a

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fórmulas de design incapazes de revelar o que o código binário tem de mais contudente: a confirmação de que as linguagens não tem fronteiras ou hierarquia entre elas, por se tratarem de combinações lógicas entre elementos que habitam corpos temporários e mutantes. O uso de adjetivos definidores de gêneros ou suportes, como o clássico vídeoarte e os recentes net art e software art, mascara essa ausência de compartimentos. Dessa forma, fomenta o desejo de engavetar fenômenos plurais onde seria mais adequado reconhecer a diversidade.

Uma das principais características da cultura digital é a implosão de fronteiras entre as linguagens e os gêneros estabelecidos. Após o processo de convergência entre comunicação e artes que leva à cultura em rede, torna-se necessário inventar novas categorias para a crítica cultural, por meio do uso de terminologia condizente com o momento de dispersão que se instala, conforme as mídias digitais tornam-se cada vez mais distribuídas e maleáveis.

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referênciasAndrews, Jim (s/d). Videogames como dispositivos literários, in: Feitoza, Mirna; Santaella, Lucia. O mapa do jogo. A diversidade cultural dos games. São Paulo: Cengage Learning, 2009.Azevedo, Wilton e Philadelpho Menezes. Interpoesia. São Paulo: EPE (PUC-SP) / Universidade Presbiteriana Mackenzie, 1997-8.Bataille, Georges. Eroticism. Death and sensuality. San Francisco, City Lights, 1986 [1962].Baumgartel, Tilman (2001). Interview with Jodi. http://rhizome.org/thread. rhiz?thread=1770&page=1Beiguelman, Giselle. Jogos de Paz, in: Link-se. São Paulo: Peirópolis, 2005.Folha de S. Paulo. Hollywood tenta conquistar ciberplatéia. Caderno Informática. São Paulo, 24 de agosto de 2005. p. F-7.Jenkins, Henry. A arte emergente, in: Mais!. Folha de S. Paulo. São Paulo, 14 de janeiro de 2001.Kehl, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.Leão, Lúcia. O labirinto da hipermídia. Arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Iluminuras, 1999.Murray, Janet. Hamlet on the Hollodeck. The future of narrative in cybespace. Cambridge (MA): MIT Press, 1997.Perloff, Marjorie. Radical Artifice. Writing Poetry in the age of media. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1991.Russo, Martina. Agnes Hegëdus. Dèfragmentation de la memóire, in: Parachute, n. 119. Out. 2005. p. 199. Quebec: 2005.Turkle, Sherry. Life on the screen. Identity on the age of Internet. New York: Touchstone, 1997.Santaella, Lúcia. Cultura das Mídias. 2 ed. São Paulo: Experimento, 1996.Schneider, Ane-Marie. Opensorcery.net. mensagem enviada à lista de discussão <nettime> em 15 de agosto de 2000. http://amsterdam. nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0008/msg00095.html.Seligmann-Silva, Márcio. Arte, dor e kátharsis. Ou: variações sobre a arte de pintar o grito, in: O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

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Valetes em Slow Motion (1998), de Kiko Goifman: o CD-ROM explora formas de navegação a partir de imagens, em concepção que muda de forma contudente a maneira de pensar a linguagem digital

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O conceito de híbrido é recorrente, quando se escreve sobre cultura digital. O termo é usado tanto para falar da mistura de linguagens quanto dos cruzamentos entre corpo e tecnologia comuns nas mais diversas manifestações da cultura contemporânea. Ainda que se tratem de fenômenos muito diferentes um do outro, há no uso repetido do conceito de híbrido uma herança difusa, que pode sucumbir ao risco do esquecimento de que, antes de tudo, híbrido é mestiço, o que impede que se encontre no híbrido uma origem, uma essência anterior à mistura.

De forma paradoxal, essa origem mítica está presente metaforicamente no traço de ligação entre o marcador temporal e o conceito associado, em palavras compostas como pós-moderno, pós-humano e pós-biológico. Seu uso instala um paradoxo, na medida em que busca afirmar a diferença que o presente teria em relação a um passado que, no entanto, é

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o radical definidor do próprio termo criado. Nas palavras de Deleuze, “um conceito às vezes precisa de uma nova palavra para ser expresso, às vezes ele usa uma palavra cotidiana para lhe dar sentido singular”. Dizer de outra forma é construir um campo semântico em que se torna possível pensar coisas outras, por meio dessa linguagem da diferença.

Mas boa parte da bibliografia dedicada ao tema caminha em direção contrária. Dois exemplo são Writing Space, de Jay David Bolter e Hypertext 2.0, de George Landow, em que a não-linearidade da escrita hipertextual é discutida em sua convergência com a literatura de Sterne e Joyce, no primeiro, ou com o pensamento de Foucault e Barthes, no segundo. O paradoxo da linguagem digital reside justamente no fato de que, ao mesmo tempo que os recursos de programação disponível permitem formas inovadoras de organização de pensamento, o recurso a metáforas para facilitar o uso não especializado dos computadores oculta o funcionamento da máquina por meio de simulacros de manifestações culturais consolidadas, como fica claro quando se fala em páginas de Internet, clipes de vídeo online e outras expressões que partem de formatos existentes no mundo físico para descrever processos digitais.

Lev Manovich, Janet Murray e a linguagem digital

Em The language of New Media, Lev Manovich mapeia os principais recursos de linguagem das interfaces digitais. Um dos fios condutores do livro é a aproximação entre o cinema russo (especialmente Vertov e Eisenstein) e as mídias digitais. Ao fazê-lo, Manovich corre o risco de “olhar para o futuro pelo espelho retrovisor” — na explicação sintética em que McLuhan antecipa

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borgeanamente o paradoxo exposto acima. É evidente que livros com a complexidade do trabalho citado não podem ser reduzidos a resumos indicativos ou à discussão de aspectos isolados, mas a busca pelos antecedentes implícita na estratégia descrita leva a questionar até que ponto não é necessário desenvolver uma terminologia e um contexto de análise específico das manifestações estudadas, no momento em que elas acumulam uma cultura crítica e repertório suficientes para tanto?

Além disso, a aproximação direta entre cinema e mídias digitais desconsidera um contexto de evolução da linguagem audiovisual em que as formas de montagem da película convivem com os ritmos e texturas da fita de vídeo. As mídias eletrônicas são intermediárias entre as analógicas e as digitais. Essa constatação não é meramente cronológica. As mídias eletrônicas já permitem a inteferência numérica na imagem, algo impessável no universo da película. Nuances do tipo escapa aos recursos a analogias, que Murray considera sinal de momentos embrionários das linguagens. Isto esta expresso em armadilhas terminológicas como as apontadas a seguir:

“Os filmes narrativos foram originalmente chamados de photoplays e inicialmente concebidos como uma forma de arte meramente aditiva (fotografia mais teatro) criada quando se apontava uma câmera estática para uma cena representada teatralmente. Os photoplays foram substituídos por filmes quando os cineastas aprenderam, por exemplo, a criar suspense intercalando duas cenas filmadas separadamente (a criança queimando no prédio e o bombeiro vindo salvá-la) /.../ Cem anos após a chegada da câmera cinematográfica, temos a chegada do computador moderno, capaz de se conectar à internet global, de processar texto, imagem, som e imagem em movimento /.../ Seremos capazes de imaginar o futuro da narrativa eletrônica com mais facilidade que os contemporâneos de Gutenberg poderiam imaginar Guerra e Paz ou que os parisienses de 1895 poderiam imaginar High Noon? Uma das lições que podemos aprender com a história do cinema é que formulações

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aditivas como photoplay ou o baluarte contemporâneo multimídia são um sinal de que o meio está em um estágio inicial de desenvolvimento e ainda depende de formatos derivados de tecnologias anteriores ao invés de explorar seu próprio poder expressivo.

Mas ausência de origens não implica na inexistência completa de vetores que colocam as coisas em movimento (ou desviam sua rotas). O risco de olhar o futuro pelo espelho retrovisor não é maior do que o risco de ignorar onde leva uma estrada por desconhecer de onde parte sua rota. Nos melhores momentos, o livro de Manovich dá conta desta complexidade cultural das mídias digitais. Um exemplo surge quando ele discute a nova visualidade dos ambientes 3-D, em que o usuário controla do enquadramento. Ou quando discute novas formas de montagem possíveis em ambientes de múltiplas janelas. Nesses momentos, seu livro abre fendas para um debate estimulante sobre o que quer e o que pode a linguagem digital, e mostra que o diálogo com a tradição permitem entender deslocamentos, desvios, atalhos, becos-sem-saída e túneis escavadas para traçar as arqueologias descontínuas que revelam que também há “novo no velho” (como no poema de Augusto de Campos).

Montagem espacial ou recurso de interface?

Flora Petrinsularis, de Jean-Louis Boissier, é um dos primeiros CD-ROMs com seqüências não-lineares de vídeo. Baseado no universo de Jean-Jacques Rosseau, ele cria um aplicativo em que a navegação através do gesto do mouse sobre a tela coloca o usuário diante das mesmas situações, percepções e contradições presentes na escrita das Confissões — livro a que o filósofo francês se dedica em seus anos de auto-exílio.

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Em sua análise do trabalho, Manovich revela preocupações mais próximas do cinema que da cultura digital: “ao invés do tradicional frame isolado, Boissier usa duas imagens, posicionadas lado a lado, o que pode ser entendido como o exemplo mais simples de montagem espacial”. Ele considera que “essa justaposição, por si só, não resulta em montagem; fica sob responsabilidade do cineasta construir uma lógica que determina quais imagens vão aparecer em conjunto, quando vão aparecer e que tipo de relacionamento vão estabelecer entre elas”. Manovich não leva em conta que o uso de trechos de texto, assim como os recursos de interface de Flora Petrinsularis, permitem ao usuário uma leitura fragmentária, em que a navegação é mais importante que a montagem entre os elementos que o compõe.

Quando analisa My boyfriend came back from war, de Olga Liliana, o teórico russo afirma que o trabalho conduz o usuário por uma narrativa que começa com uma única tela, que se divide em mais e mais quadros a cada clique. O foco de atenção está nas diversas combinações de texto e imagem que o trabalho proporciona. Ele privilegia mais uma vez os recursos de montagem resultante das múltiplas janelas, ao invés da experiência dinâmica que o usuário desfruta, durante a navegação.

Em ambos os trechos, fica clara a opção metodológica de Manovich, desenvolvida a partir da hipótese de que “a cultura visual e a arte moderna oferecem várias idéias sobre como a narrativa espacial pode se desenvolver em um computador”. Preocupado com o universo impreciso da leitura Boissier, pelo contrário, privilegia situações em que “é o leitor que dispara a enunciação”, na medida em que “ele é ao mesmo tempo interlocutor e enunciador”.

Como o uso de janelas simultâneas (criando eventos sincronizados ou explorando os efeitos da sobreposição de seqüências audiovisuais) é um processo relativamente comum desde o surgimento dos sistemas de edição não-linear, talvez ele não seja o recurso mais pertinente para descrever as peculiaridades

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da linguagem digital. O conceito de montagem espacial pode ser usado para descrever as sobreposições presentes em trabalhos audiovisuais dos mais diversos tipos — por exemplo em vídeos como M is for Man, Music and Mozart, de Peter Greenaway e Parabolic People, de Sandra Kogut, filmes como Femme Fatale, de Brian de Palma, Corra, Lola Corra, de Tom Tykwer e programas de TV como A grande família e Os normais. Trata-se de recurso que tem uma importância reconhecida na cultura contemporânea e que, portanto, extrapola os limites da cultura digital.

Marc Lafia e a crítica da montagem espacial

Em In Search of a Poetics of Spatialization of the Moving Image, Marc Lafia discute as nuances do conceito de montagem espacial, ao analisar soluções de montagem em trabalhos de Isaac Julien, Fiona Tan e Eija-Lisa Ahtila. Nessas instalações, o espaço das telas distribuídas oferece ao usuário uma experiência de montagem mais complexa. Além disso, a relação entre as duas ou mais telas que compõem o trabalho cria uma sensação imersiva diferente daquela possível com cinema e vídeo, mesmo quando a tela se divide em várias janelas. A análise das possibilidades de montagem, nesse contexto em que a experiência contemplativa de estar diante de uma janela pela qual se vê o mundo é substituída pela experiência da participação em que o movimento do corpo é necessário para unir as diversas janelas, leva Lafia a concluir que a construção de imagem que as mídias digitais possibilitam não é tanto uma linguagem da reprodução, mas da produção. Ele chama atenção justamente para os aspectos da cultura digital que desestabilizam o controle autoral dos trabalhos, o que implica em compartilhar com o espectador mais aspectos da experiência criativa do que seria possível em outros contextos.

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O discurso de Lafia está em consonância com sua prática. Apesar de concentrar-se em projetos de cinema, fotografia e vídeo, sua experiência com a web é bastante pertinente para o tema em discussão. ambientmachines é um estúdio cinematográfico diferente, em que o usuário seleciona trechos de áudio e vídeo para montar seu próprio filme. Além disso, é possível manipular os controles disponíveis na interface do aplicativo, alterando parâmetros como tamanho, opacidade, velocidade e matiz das seqüências criadas. Nas palavras do próprio Lafia, “ao sobrepor vários clipes, o participante-criador pode experimentar não apenas com seqüências lineares, mas também com a possibilidade de criar imagens em movimento sincopadas”.

O site, que explora uma solução tecnológica cada vez mais comum indica uma das formas em que o audiovisual aparece na interface digital de maneira orgânica. Esse modelo, que pode até gerar um arquivo semelhante ao do vídeo, lida com a participação do usuário e com situações de edição em tempo real e, por isso, se constitui em uma forma de uso do vídeo possível apenas na internet. Nesse sentido, pode ser considerada como um bom exemplo das possibilidades semióticas que o cruzamento entre vídeo e linguagem digital oferece.

A interface é a mensagem

As mídias digitais recolocam o problema da materialidade das linguagens, ao se configurarem como suportes voláteis e distribuídos. Tanto em mídias on como offline, o conteúdo é contextual. A cada acesso, será reconstruído pelo conjunto de recursos à disposição do usuário, tamanho do monitor,

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capacidade de processamento do equipamento e, no caso da computação móvel, o entorno. Esse vínculo entre conteúdo e contexto, discutido por Lev Manovich em The Language of New Media, pode ser expresso de forma sintética n versão 2.0 do slogan mcluhaniano proposto por Giselle Beiguelman: no digital, “a interface é a mensagem”.

Dois bons exemplos são Puppet Motel, de Laurie Anderson, e Valetes em Slow Motion, de Kiko Goifman. São ambientes que desafiam a lógica enciclopédica comum nos CD-ROMs da época. Talvez por não manterem vínculos exclusivos com as mídias digitais, o trabalho de ambos os artistas explore aspectos de interface inusitados. Em Puppet e Valetes, a plástica das telas mostra que o bom uso do vídeo em interface digitais depende menos da resolução possível que da solução proposta. Ao integrar de maneira orgânica seqüências audiovisuais, ambientes virtuais, texto e fotografia, oferecem experiências de navegação intuitiva, sem recursos didáticos, e ao mesmo tempo capaz de tirar do usuário o controle completo da experiência, em jogo complexo de cliques ocultos e comandos de navegação automáticos. Essa dinâmica faz com ambos se renovem a cada interação.

Outro exemplo importante é Filmtext. Nele, Mark Amerika constrói um compêndio prático da narrativa digital. Além da interface, produção de mídias e programação sofisticadas, o site se organiza a partir de um discurso conceitual forte. A técnica de escrita dinâmica, que Amerika chama de cinéscripture, mistura animação, cultura game, action scripts, literatura, vídeo e música pop. A alternância entre seqüências planejadas e controle do usuário faz de cada fragmento uma surpresa e um estímulo. As seqüências de vídeo que foram acrescentadas à versão 2.0 tem uma qualidade plástica rara, o que lhes dá autonomia. Funcionam na interface ms poderiam ser exibidos. E podem ser montados com dois tipos de opacidade: uma que transforma a janela de vídeo num pop-up bem integrado ao resto do site; outra que funde o vídeo com a foto ao fundo.

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O usuário é a mensagem

Em Portrait One, Luc Couchersne pesquisa o universo do retrato. Buscando novas formas de registrar personagens, ele oferece ao usuário a possibilidade de conversar com uma mulher que só existe na tela. Uma série de vídeos são disparados a partir de um menu composto de perguntas. Nesse diálogo simulado, há referências explícitas a O retrato oval — conto de Edgar Allan Poe em que a busca do pintor pelo retrato perfeito rouba a vida de sua modelo — e ao universo borgeano. O uso do vídeo cria um efeito de estranhamento, ao deslocar o universo da fotografia como momento congelado no passado (Barthes), para a experiência de um presente infinito enquanto o diálogo dure. O trabalho de Couchersne explora de maneira inteligente as possibilidades de troca de figuras de enunciação em ambiente digitais, pois instala uma tensão entre agenciamento e participação: a sensação imersiva que envolve o usuário no universo da personagem depende de que ele seja capaz de continuar a conversa. Assim, ao construir um retrato digital que mistura características das linguagens foto e videográficas, estabelece um elo entre o futuro e o passado das imagens técnicas.

Mas o vídeo nas mídias digitais pode estar completamente desvinculado das preocupações plásticas que remontam ao surgimento da fotografia. Nesses momentos, aliás, é que as experiências com linguagem audiovisual em mídias digitais tornam-se mais contundentes, e sugerem procedimentos estéticos típicos da cultura digital. Um exemplo é o egoscópio, de Giselle Beiguelman: intervenção no espaço público através de painéis eletrônicos controlados pela Internet, oferece ao usuário a possibilidade de enviar conteúdo que será transmitido em meio aos anúncios e serviços que compõem a grade dos painéis eletrônicos usados para publicidade nas grandes cidades.

No egoscópio, ao invés dos regimes de agenciamento que provocam a imersão, a artista explora a construção de

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subjetividades distribuídas, como resultado da combinação de identidades múltiplas e práticas de autoria em rede. Ao contrário da tela passiva do cinema e do vídeo, que convidam o espectador à contemplação, o painel eletrônico depende de um contexto em que a atenção é dividida entre o pedinte no sinal, o motoqueiro em velocidade e o outdoor na fachada do prédio. O projeto abre caminhos para novas estratégias de produção de audiovisual no contexto da cultura digital e obriga uma revisão de conceitos ainda em processo. Uma dificuldade para o reconhecimento desse tipo de trabalho, que responde pelo que existe de mais pertinente para o problema aqui discutido, é o fato de que a documentação gerada a partir da intervenção não é capaz de retratar com toda a riqueza necessária o trabalho. Navegar é preciso, documentar é impreciso.

O profeta de imagens, em Enredando as Pessoas (1995), de Éder Santos.

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Signos: página da tese de doutorado do autor, que buscou relações em que texto e imagem tivessem papel equivalente na escrita

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Final Cut, 2h47 da madrugada. Barra de progresso em (roti-na que se repete) slow motion. Até que a frase recorrente ganha outro sentido. O que remete à psicanálise: falar novamente so-bre o mesmo assunto não é falar exatamente sobre o mesmo assunto. Writing video — escrevendo vídeo?!? —, diz o aviso de comando na tela. Mensagens de computador têm a reputação de serem incompreensíveis, absurdas, sem sentido. Em boa par-te dos casos, é isto mesmo. Mas o aviso Escrevendo vídeo é uma exceção. Em Digital Poetics, Loss Pequeno Glazier explica como o computador mudou a idéia de escrita1. Dizer que um software como o Final Cut escreve vídeo faz sentido, e aponta para esta nova concepção de escrita, em que o código binário substitui a letra como elemento estruturante.

ex-crever?

1 Glazier, Loss Pequeño. Digital Poetics. The making of E-poetries. Tucaloosa: The University of Alabama Press, 2002. p. 28.

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Para Glazier, “essa mudança está se tornando moeda cor-rente”. Ele toma como sintoma o livro Designing with JavaScript, que considera “um manual de como-fazer-textos-para-web bási-co”. No entanto, Glazier acredita que o texto, de autoria de David Siegel, expressa claramente “o desvio para a e-scrita”, quando afirma que ‘documentos estão se tornando aplicativos’ (vii)2. Se-gundo Glazier, é justamente esta a diferença do “e-texto”. Ele “não é fixo; não é apenas um arranjo de símbolos estáticos numa página fixa; ele faz algo. Ele pode interagir com o leitor. Ele pode mudar em tempo real ou conforme o programado”3.

O presente artigo reflete sobre questões ligadas ao universo da escrita em mídias digitais, a partir da experiência de dois sites (Web Paisagem0 e circ_lular, desenvolvidos com Giselle Beiguel-man e Rafael Marchetti)4. Um aspecto que une os dois proje-tos é a prática da reciclagem de mídias. O computador permite ao não-especialista editar fragmentos de texto, imagem, som e vídeo colhidos em fontes diversas, o que tem uma série de im-plicações culturais, jurídicas, políticas e econômicas, para citar apenas as áreas em que o impacto da digitalização tem sido dis-cutido com mais ênfase. A opção por trabalhar nesses projetos com uma escrita do resíduo resulta do entedimento de que a escrita contemporânea dá-se pelo uso combinado de fragmen-tos programáveis, como desenvolvido também por Bill Seaman (em seu livro Recombinant Poetics) e Mark Amerika (através do conceito de cinéscriture), entre outros.

2 Glazier, Loss Pequeño, cit., p. 28.

3 Ibidem.

4 O Webpaisagem 0 foi criado a convite do SESC Online, como parte do projeto Paisagem 0, curadoria de Ricardo Muniz. circ_lular foi desenvolvido para a exposição Sonarama, curadoria de Lucas Bambozzi.

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Trânsitos sampleados

O processo de reciclagem de mídias é uma forma de se relacionar criticamente com a velocidade da cultura contem-porânea. É também uma estratégia que insere em outro contexto as práticas polifônicas típicas da literatura, na medida em que lida com o fluxo de som e imagem. ‘Reciclar’ é um dos principais processos da cultura contemporânea, tanto na prática cotidiana de uma sociedade em que reaproveitar os dejetos sólidos se tor-nou fundamental, quanto nas conexões complexas que o trânsito cada vez mais intenso de linguagens por redes permite.

Na tese que desenvolve mais longamente os temas do pre-sente artigo, há uma descrição dos tipos possíveis de reciclagem de signos, assim como sua relação com mecanismos conhecidos de trânsito entre linguagens — descritos por diversos autores por termos como polifonia, intertextualidade, intersemiose e trans-discursividade, entre outros. A hipótese investigada é de que o processo de digitalização permite que imagem e som participem de diálogos entre signo tão fluídos quanto são atualmente os me-canismos de circulação dos discursos. Os tipos de mecanismo em questão são descritos, no plano dos estudos lingüísticos e filosóficos, por autores como Jacqueline Authier-Revuz5 e Michel Foucault6, entre outros.

Entre os estudos de linguagem levantados para a presente pesquisa, poucos estabelecem ligações sistemáticas entre es-ses fluxos heterogêneos de discurso e o trânsito de linguagens por redes complexas. Os trabalhos de Julio Plaza7 e Philadelpho

5 Authier-Revuz, Jacqueline. Heterogeneidades Discursivas, in: Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas: IEL, 1990. pp. 25-42.

6 Foucault, Michel. O que é um autor?. 3 ed. Lisboa: Vega, 1992.

7 Plaza, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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Menezes8 apontam questões nessa direção. Outro autor que se aproximou desse universo — que talvez possa ser descrito como um tipo de polifonia que escapa do verbal — foi Arlindo Machado, ao submeter os estudos da fotografia e do cinema ao crivo dos pensamentos bakthiniano e eisenteineano, em A ilusão especu-lar9 e no recente O filme-ensaio10.

Atualmente, este trânsito fluído entre signos torna-se mais perceptível. Não só o código binário escreve elementos sonoros, visuais e verbais sem diferenciá-los, como os aparelhos que sur-gem conforme a cultura de rede diversifica-se permite a troca de informações nos mais diversos formatos. O desenvolvimento tecnológico em curso tende a culminar em uma cultura em que ‘reciclar’ imagens e sons será parte de um processo tão com-plexo quanto atualmente é o processo de falar ou escrever so-bre falas e textos existentes. O número crescente de dispositivos tecnológicos parece tornar cada vez mais comum o diálogo en-tre seres possuidores de aparelhos de conversar por imagens (e sons), conforme descritos por Arlindo Machado em O vídeo e sua ling As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica11, numa provável referência ao personagem do profeta de imagens em Enredando as Pessoas, de Éder Santos.

8 Menezes, Philadelpho. Poética e Visualidade. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.

9 Machado, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1983.

10 Machado, Arlindo. O filme-ensaio, in: Anais do XXVI Intercom. Belo Horizonte: PUC-MG, 2003.

11 Machado, Arlindo. As imagens numéricas: da fotografia à síntese numérica, in: revista Imagens: a imagem sob o signo do novo. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

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A indiferenciação entre os registros sonoro, visual e verbal, possível na medida em que todos os elementos de um aplicativo digital resultam de combinações de ‘0’ e ‘1’, reitera o conceito de que quando as linguagens estão em fluxo, não há separação entre elas, o que torna todo corpo semiótico mestiço por default. Conforme Lúcia Santaella, “quando se trata de linguagens exis-tentes, manifestas, a constatação imediata é a de que todas as linguagens, uma vez corporificadas, são híbridas”12. Nas mídias digitais, essa corporeidade é sempre instável, tendo em vista a natureza líquida que permite que os produtos do código binário se ajustem facilmente aos mais diversos tipos de interface.

Neste contexto, o recurso ao termo ‘híbrido’ revela-se es-téril. A figura do “puro”, do não-misturado, é mítica (e, às vezes, transforma-se em fetiche). Todo fenômeno de linguagem é, de partida, mistura entre três registros em constante movimento. É necessário, portanto, refletir sobre que natureza de mistura está em questão, quando se discute a inexistência de fronteiras en-tre sonoro, visual e verbal ou, no contexto mais amplo em que o tema pode ser inserido, de dissolução de fronteiras culturais, econômicas, políticas, etc.

Em sistemas ecológicos complexos, a mistura surge nas conexões com o diferente que, em caso de confluência, resultam em mestiçagem. Segundo Michel Serres, o mestiço é aquele que surge na passagem. Na língua francesa, em que o filósofo es-creve, o termo ‘tiers’ serve tanto para mestiço como para terço, outro, estranho e misturado, o que é bastante importante para a discussão aqui desenvolvida: em que linguagem é movimento ternário; em que reciclar é incorporar o outro respeitosamente; em que o estranho é memória de um futuro desejável; em que o fluxo resulta do que foi misturado pelo caminho.

12 Santaella, Lucia. Todas as linguagens são híbridas, in: Matrizes da linguagem e pensamento. São Paulo: Iluminuras, 2001.

ex-crever?

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Em Filosofia Mestiça, Serres descreve esse personagem estranho que habita a contemporaneidade, quando adverte o leitor: “você não leva em conta a passagem, o sofrimento, a coragem do aprendizado, os tormentos do náufrago provável, a rachadura aberta no tórax pelo estiramento dos braços, das pernas e da língua, longo traço de esquecimento e de memória que marca o eixo longitudinal desses rios infernais, chamados amnésias por nossos ancestrais. Você o crê duplo, ambidestro, dicionário, e ei-lo triplo ou mestiço, habitando as duas margens e vagando pelo meio”13.

Reciclagens do Remix

Voltando ao universo do sampler propriamente dito, é pre-ciso recuperar a idéia de que o discurso jurídico é estático. Por cumprir um papel regulador rígido, ele não pode se reformular com a mesma velocidade que as tecnologias e linguagens. Por isso, o debate sobre direitos autorais, softwares de código aberto e outros relacionados com a cultura sampler ocupa sempre o lugar do embate entre quem produz e quem distribui linguagem, revelando a disparidade de interesses entre músicos e gravado-ras, cineastas e distribuidoras, escritores e editoras, e assim por diante. E não há solução para essa disputa. O mais razoável, nesse contexto, é lembrar que a ecologia está sempre em busca de um equilíbrio instável entre o que o sistema conecta. Ao invés

13 Serres, Michel. Filosofia mestiça: le tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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de assumir a disputa entre as partes, o objetivo da ecologia é o deslocamento que permite momentos provisórios, acordos de antemão fadados ao esfacelamento.

O site atualmente desativado Mediastrips publicou no au-ges deste debate uma boa síntese: “samplear a cultura pop não é um crime. Não é um ato de desobediência civil. Samplear a cultura pop (ou fazer mashups) é uma forma de expressão artísti-ca, política e pessoal”. O texto aponta o direito de uso legítimo (“Fair Use Rights”), princípio baseado na noção de que o público tem direito de usar livremente partes de materiais com copyright para fins de comentário e crítica. Segundo ele, “a alfabetização midiática (a capacidade de comunicar usando texto, áudio, vídeo e HTML)” tem como novo modelo de crítica os mashups — uma forma que deveria ser transmitida aos estudantes como uma for-ma de criticar o conteúdo hegemônico veiculado pelas grandes empresas de comunicação, ao invés de prendê-los por violação de leis de direito autoral.

Apesar de partir de um princípio semelhante, a proposta de reciclagem de mídias aqui descrita leva em conta o fato de que a linguagem sempre foi um movimento que entrelaça os mais diver-sos tipos de signos e que as culturas eletrônica e digital apenas acentuam esse processo, conforme descrito por Lúcia Santaella em As linguagens se misturam e se multiplicam: “desde a revo–lução industrial e, mais recentemente, a revolução eletrônica, se-guida da revolução informática e digital, o poder multiplicador e o efeito proliferativo das linguagens estão se ampliando enorme-mente”14. A compreensão semiótica desse relacionamento entre mídias torna mais complexa a análise de como podem acontecer suas possíveis formas de crítica, tendo em vista a transversali-dade dos mecanismos de circulação do poder nas linguagens14.

14 Santaella, Lucia. As linguagens se misturam e se multiplicam,in: Matrizes da linguagem e pensamento. São Paulo: Iluminuras, 2001.

ex-crever?

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Além disso, reciclar digitalmente as mídias é diferente de processos como o de colagem, montagem, apropriação, sam-pler e outros muitas vezes tratados como antecessores da digita-lização — abordagem adotada no artigo Cultura da Reciclagem. Essa constatação é um segundo motivo para ampliar o termo “cultura sampler” para “cultura da reciclagem”. Um aspecto im-portante desta cultura da reciclagem são os agenciamentos cole-tivos de linguagem que ela facilita, conforme discutido em Remix como polifonia e agenciamentos coletivos15.

Elipses no tempo e o acúmulo no espaço

O mixer é uma alternativa para as interfaces normalmente classificatórias comuns em mecanismos de busca como o Yahoo e o Google ou para o design baseado na primeira página de jornal dos principais portais na Internet, criados a partir de metáforas de formatos das culturas impressa e eletrônica que a precedem. Tra-ta-se de interface que sugere outra forma de lidar com a carac-terística da web que Loss Pequeño Glazier chama de “resistência à classificação”16.

A forma de representar para o usuário o resultado de uma pesquisa é mais importante que escolher entre uma busca mais profunda ou uma busca mais abrangente. Antes de retornar à

15 Bastos, Marcus. Remix como polifonia e agenciamentos coletivos, in: Castro, Daniela; Duprat, Camila; Motta, Renata. Territórios Recombinantes. São Paulo: Instituto Sergio Motta, 2007.

16 Glazier, Loss Pequeño, cit., p. 53.

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forma com que os mixers lidam com esse retorno do material cadastrado em um banco-de-dados, vale apontar como são as formas mais comuns, o que será feito por meio da análise de um site que propõe alternativas espaciais ao retorno não formatado e arbitrário dos mecanismos de busca estilo Google.

Trata-se do Spiral, interface alternativa para o rhizome.org, desenvolvida por Martin Wattenberg. De acordo com a data em que um texto é inserido no sistema, ele aparece posicionado em tal ou qual posição do desenho em que o usuário pode clicar para ler o texto que deseja. A representação em espiral revela — impensável? — a geografia do tempo, ao atribuir posições no espaço para uma seqüência cronológica. Ao formar um tipo de elipse que espalha pontos de uma seqüência em uma ordem diferente da linha do tempo, a espiral se aproxima de um tipo de representação menos previsível de uma lista complexa de dados.

Em Elipse, Derrida discute essa geometria móvel, em que os pontos de um plano estão distantes de dois pontos fixos de um plano cuja soma numérica é constante: ela permite levar a cronologia para além de sua suposta e enganosa seqüenciali-dade. Isso acontece quando “o círculo gira”. Na medida em que “o volume se enrola sobre si próprio”, a repetição acontece no universo sutil de sua própria diferença17. Ao representar na for-ma de espiral e não como lista o resultado de uma pesquisa na Internet, Wattenberg explora as fraturas que a liquidez do código digital pode abrir na representação linear de espaço e tempo.

Tendo em vista essa comparação entre lista e elipse, surge uma questão: não seria a interface em estilo mixer, assim como o formato Google, aquilo que Giselle Beiguelman descreve como uma ‘metáfora do sítio’, em que se estabelece uma relação de similaridade entre o mundo analógico e o mundo digital: ao invés dos índices, referências cruzadas e imagens ilustrativas comuns

17 Derrida, Jacques. Elipse, in: A escritura e a diferença. São Paulo: Instituto Sergio Motta, 1995.

ex-crever?

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na cultura impressa, a montagem de imagem e som como na cultura audiovisual. Relação de similaridade que impede a inves-tigação de novas possibilidades oferecidas pela digitalização, na medida em que — para resgatar a frase célebre de McLuhan — faz “olhar o futuro pelo espelho retrovisor”.

Sobre layers e o acúmulo no espaço

A diferença de tratamento possível para uma coleção de dados indexada no tempo e outra indexada no espaço revela os caminhos que permitem levar as interfaces dinâmicas para além da relação com os formatos analógicos. Um exemplo desse tipo de tratamento aparece em From marble to pixels, de Rafael Marchetti e Raquel Rennó18. O site explora a sobreposição de pequenos quadrados sobre um mapa como forma de represen-tar o processo de crescente complexidade nas redes de infor-mação contemporâneas. Nele, o relacionamento espacial entre os elementos revela novos links ao usuário. Ao invés da seqüên-cia temporal, o desenho topológico conduz a navegação.

Esse tipo de recurso, aliado ao uso de ferramentas que per-mitem a edição em tempo real do banco-de-dados disponível, pode ser encontrado no já citado Ambientmachines, de Marc Lafia. O site, que explora uma solução tecnológica cada vez mais comum, tem como ponto-fraco restringir ao espaço de uma jane-la renascentista a área de trabalho disponível para o usuário. Por isso, as possibilidades de recriar os elementos audiovisuais dis-

18 disponível em http://influenza.etc.br/frommarbletopixel

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poníveis fica restrita ao espaço restrito de um retângulo diminuto. Apesar disso, ele indica uma das formas em que o audiovisual aparece na interface digital sem necessariamente mimetizar a forma de montagem do cinema, aproximando-se de soluções sugeridas por alguns experimentos com vídeo em que há sobre-posição de janelas como forma de explorar técnicas de monta-gem paralela — ainda que aqui a sobreposição tenha um sentido diferente. Por isso, pode ser considerada como um bom exemplo das possibilidades que o cruzamento entre vídeo e linguagem digital oferece, o que parece ser um universo de pesquisa cada vez mais estimulante, tendo em vista os desenvolvimentos tec-nológicos na área de vídeo digital.

ex-crever?

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Mobile Crash, de Lucas Bambozzi: a obra comissionada para a exposição Geografias Celulares permite que o usuário controle o vídeo por meio de seus gestos

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O mundo contemporâneo caminha na direção de uma so-ciedade de geografias mais fluídas e intrincadas, em que a pre-sença não depende do deslocamento físico, mas da amplitude das redes que reconfiguram a trama de relações ao redor do globo. Esta nova configuração assume as formas mais diversas e contraditórias, já que afeta dinâmicas díspares, apesar de in-terdepentendes (economia, política, educação, cultura). Não por acaso, trata-se um cenário que já foi criticado de forma veemente por resultar em um novo tipo de Império e celebrado de maneira entusiasmada por consolidar formas de inteligência coletiva ca-pazes de estreitar diálogos e reduzir distâncias.

Em parte, as tecnologias que tem permitido tornar as distân-cias entre os lugares relativas estão realmente inseridas em uma engrenagem que tende à uniformidade e à homogeneidade, em alguns casos até mesmo ao monopólio. Por outro lado, elas são partes de uma configuração que permite acesso e responde por

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formas inéditas de inclusão, tanto em termos geopolíticos (quan-do se considera o papel que países como Brasil, China e Índia desempenham no cenário mundial) quanto em termos demográ–ficos (quando se considera o número de pessoas que passam a ter contato com uma gama maior de informações à medida que computadores e telefones celulares tornam-se aparelhos mais sofisticados e populares).

Apesar deste cenário ser descrito por termos como mobili-dade e portabilidade, não é o fluxo ou a miniaturização que o dis-tingue. Basta lembrar como as narrativas de deslocamento são marcantes durante o período das grandes navegações ou como a celebração dos objetos de pequenas dimensões torna-se im-portante no design, a partir da segunda metade do século XX. A característica distintiva do mundo atual é a disponibilidade de estruturas informacionais que, em redes cada vez mais complex-as, se configuram como células1. Mas as instituições existentes ainda adotam modelos de organização incompatíveis com a flui-dez possível nestes espaços que, tornam-se mais maleáveis em função de seus componentes imateriais. A economia corporativa e a cultura em rede são pólos de um processo que inclui também a truculência nas fronteiras e o marketing pervasivo.

Neste contexto de pequenos poderes a serviço de grandes marcas e idéias minúsculas, vale refletir sobre a forma como o tecido institucional afeta a produção cultural emergente na so-ciedade em rede. A economia e as políticas destas geografias celulares são compatíveis com os sonhos de menor hierarquia

1 Esse cenário de estruturas de rede sobrepostas ao mundo físico conformando-se em organismos compostos de unidades que em parte se comportam como células orgânicas, o que resulta num processo de ciborguização do planeta análogo ao que acontece com o corpo humano conforme aparelhos como celulares e computadores tornam-se cotidianos, foi descrito de maneira mais ampla em Mapa incompleto de algumas geografias celulares, artigo publicado no catálogo da exposição Geografias Celulares (Buenos Aires: Espacio Fundación Telefónica, 2009).

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e fronteiras menos rígidas nela implicados? Até que ponto a ho-mogeneidade necessária para garantir processos globais é com-patível com a diversidade pressuposta nesta utopia de uma cul-tura de fronteiras menos rígidas?

Em Sem Logo — A tirania das marcas em um planeta vendido, Naomi Klein descreve de forma eloqüente o surgimen-to, as tensões e dilemas deste cenário de empresas planetárias e idéias sem fronteiras, no que ela chama de “marcado mundo novo”. Para Klein,

“o crescimento astronômico da riqueza e da influência cultural das corporações multinacionais nos últimos 15 anos pode, sem sombra de dúvida, ter sua origem situ-ada em uma única e aparentemente inócua idéia desen-volvida por teóricos da administração em meados dos anos 1980: as corporações de sucesso devem produzir principalmente marcas, e não produtos”2.

No livro, ela reconstrói os movimentos que levam as corpo-rações a adquirir poder político equivalente ao de governos, como resultado da economia de marcas característica da sociedade atual (mapeando também o número crescente de movimentos anti-corporação, especialmente em práticas como o culture jam-ming e o resgate temporário das ruas, em eventos que misturam cultura, diversão e política de forma anárquica e festiva).

Outro aspecto deste cenário é a emergência de sistemas de rede que, num primeiro momento, fomentam utopias de par-ticipação e distribuição sem precedentes. No entanto, como ob-serva Ned Rossiter, a “tendência a descrever redes em termos de horizontalidade resulta no ocultamento do ‘político’, que con-siste de antagonismos fundadores da sociabilidade”. Por isso, Rossiter considera “técnica e socialmente incorreto assumir que arquiteturas e práticas hierárquicas e centralizadoras estão au-

2 Klein, Naomi. Sem logo. A tirania das marcas em um planeta vendido. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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sentes das culturas em rede”3. Por motivos diferentes, demon-strando a ingenuidade do pressuposto de que rotinas de pro-gramação, por serem algorítmicas, representam algo como um grau zero da linguagem, Alex Galloway, no texto Language Wants to be Overlooked: On Software and Ideology, também argumenta que a linguagem digital não é neutra, tampouco completamente descentralizada e sem hierarquia.

Levando em conta o crescimento do papel das corporações na sociedade contemporânea, cabe discutir qual o significado e os resultados desta expansão das marcas. A passagem do sécu-lo XX ao XXI assistiu à uma rotina em que todo ano lotam festivais de música com os mesmos patrocinadores, apesar dos beats mudarem conforme o gosto do verão. Talvez porque os festivais são melhores que os serviços primários prestados por seus pa-trocinadores? Ou porque as empresas se colocam na via dupla-mente problemática de não atender o consumidor pelos motivos que deveriam, e tentam compensar esta precariedade com uma atuação outra que, no entanto, nem sempre se coaduna com as nuances nela implicadas? Talvez porque, por outro lado, as cor-porações não sejam necessariamente monolíticas, mas sim es-paços que podem ser matizados pelo papel desempenhado por pessoas de índoles e predisposições diversas, que injetam tons e tons de cinza no mundo exageradamente colorido da cultura das marcas? De qualquer forma, que outro mundo é possível?

Não deixa de ser surpreendente que as críticas a este cenário sejam mais incisivas à constância das marcas sob o palco que à rapidez com que mudam tendências férteis antes mesmo que elas possam se consolidar. São dois lados de uma mesma moeda, geralmente percebidos com ânimos bastante diferentes: como se o patrocínio fosse sempre problemático e a

3 Rossiter, Ned. Organized Networks: Media Theory, Collective Labour, New Institutions. Roterdã / Amdsterdã: NAi/INC, 2006.

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velocidade da mudança fosse sempre sinal de vitalidade. Nem sempre é assim.

Um aspecto importante desta mudança de cenário em que a cultura, antes tida como bem comum, torna-se objeto dos pla-nos de atuação de marcas com estratégias de marketing cada vez mais agressivas, é uma inversão de valores que acontece sem parâmetros outros que não sejam os do sucesso comer-cial: os patrocinadores passam de substitutos de governos em processo de enxugamento de gastos, em função da rápida di-minuição das verbas de que dispunham, a protagonistas num ambiente em que a cultura torna-se mais diversificada e plural (e, em países periféricos, recebe incentivos antes mais escassos). Em contrapartida, ela perde seu caráter de fazer autônomo, fi-cando definitivamente atrelada ao circuito da comunicação, com as perdas e ganhos decorrentes deste deslocamento. É um pro-cesso cheio de meandros que não cabe destrinchar no âmbito desta discussão breve sobre a relação entre produção cultural e cultura corporativa.

Resumidamente, vale lembrar que o processo se insere em um cenário econômico de flexibilização das leis antitruste em países tradicionalmente moldados por acordos trabalhistas só-lidos. São mudanças que levam ao acirramento de animos em torno do conturbado encontro da OMC, em Seattle. Em 1999, a cultura corporativa já estava bastante consolidada e os gru-pos ativistas voltam a colocar em foco uma política de “ações” ao invés de políticas de imagem5. Ao mesmo tempo, acontece

5 Ver livros como, por exemplo, os de Hakim Bey (2001) e Ned Ludd (2004), que documentam ações contemporâneas de grupos ativistas, ou debatem ideais como as de Zona Autônoma Temporária, e servem como documentos dessa passagem dos discursos em favor de gênero e identidade — típicos do feminismo e do ativismo GLBT — para ações contra corporações, típicas do ativismo mais pulverizado e mutante que surge a partir dos anos 1990.

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uma rápida reconfiguração das cidades, conforme a crise dos mecanismos de administração dependentes do Estado perdura e leva à adoção de formas de gestão típicas da cultura empresarial.

Vale lembrar que, além de estar inserido neste movimento mundial de abandono de políticas que marcaram boa parte do período industrial, o Brasil é menos resistente à apropriação do espaço público pela iniciativa privada. Quem aponta esta carac-terística histórica do país é Luiz César Queiroz Ribeiro, no artigo No coração dos problemas. O texto discute como “os grandes centros urbanos do Brasil geram condições desfavoráveis à coesão social”, como conseqüência “de passivos resultantes de um modelo de urbanização organizado essencialmente pela combinação entre forças de mercado e um Estado historica-mente permissivo com todas as formas de apropriação privatis-tas das cidades”6.

Apesar destas transformações rápidas, nem todos os as-pectos da relação entre cultura e interesses econômicos pare-cem ter mudado tão radicalmente quanto às vezes se supõe, desde os tempos em que Michelangelo era o perseguido favorito da censura. O tema da censura nos festivais patrocinados já foi discutido em outro artigo deste livro, O veneno da lata. Em todo caso, e a despeito da fluidez de circuitos que se desenha desde os anos 1960, quando entram em cena as formas de cruzamento hoje predominantes entre arte e vida, entre pop e cult, ainda cabe perguntar de que maneira as relações entre produção cultural e cultura corporativa acontece no âmbito mais restrito da arte (es-pecialmente da arte experimental). Qual a cara da arte atual que se propõe um embate direto com os processos sociais e culturais mais contemporâneos? Qual sua capacidade de reverberar num

6 Ribeiro, Luiz César Queiroz. No coração dos problemas, in: Carta Capital, Especial Urbanismo. São Paulo: 2009.

7 Bastos, Marcus, op. cit.

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contexto mais amplo? Ou será que o preço de uma contundência maior é uma circulação mais restrita?

Conforme discutido em Mapeamento Incompleto de Al-gumas Geografias Celulares5, as cidades sempre tiveram certa maleabilidade. Seus usos, seus cotidianos, seu funcionamento, inscrevem-se de forma evanescente nos espaços que a com-põem. A forma de preservar os rastros dessa imaterialidade que a cultura sobrepõe ao mundo, até não muito tempo, dependia de uma materialidade com característica conhecidas (restrição do acesso, escassez de ferramentas de produção, dificuldades de preservação). A história das cidades é, assim, em parte a história das fricções entre os elementos imateriais da cultura, da tradição, de seus usos, e os ingredientes sólidos de que são construídas. É, também, a história dos mecanismos financeiros que tornam estes processos possíveis: do mecenato ao apoio do estado; deste ao patrocínio privado. Esta última etapa leva a resultados ainda não totalmente claros. Em Isto aqui é um negócio, Nelson Brissac baseia-se no redesenho do cenário cultural de São Paulo neste início de século para afirmar:

“Neste momento de internacionalização econômi-ca, com o surgimento de novos dispositivos de pro-dução e exibição da arte, a questão dos procedimentos e princípios das instituições ligadas à cultura torna-se essencial. As alterações decorrentes nas formas de vi-abilização financeira dos projetos culturais, nas relações das instituições com curadores e artistas, patrocinadores e administração pública são radicais. Uma nova conste-lação para a qual ainda não se tem parâmetros estabele-cidos, um período de transição em que parece não haver mais regras”8.

8 Brissac, Nelson. Isto aqui é um negócio. São Paulo: Arte/Cidade, 2002. Disponível online em http://www.pucsp.br/artecidade/novo/publicacoes/negocio.pdf, em 24 de Outubro de 2014.

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Na maioria das vezes, a rigidez das ruas e edifícios, e a du-ração dos hábitos, regulam a vida urbana de forma mais incisiva que os aparelhos institucionais criados com esta finalidade; ou acontecem desvios que redesenham a cidade lembrando todos da fragilidade de seus aparelhos de gestão (seja no protesto co-letivo na Paris de Maio de 68 ou no terror dissipado pelo PCC na São Paulo de Maio de 2006)7. Esta relação entre a cidade, suas instituições, e suas formas de uso, fica bastante clara em livros como Os últimos intelectuais8, em que Russel Jacoby mos-tra como o surgimento de universidades afastadas dos grandes centros dispara um processo de desaparecimento do intelectual público, ou Soft City9, em que Jonathan Raban mostra como a cidade é personalizada nas memórias de seus habitantes, que atribuem valores pessoais a esquinas, avenidas e parques (algo central também no trabalho das passagens, de Walter Benja-min10). Com as tecnologias informacionais contemporâneas, es-tas memórias podem ser compartilhadas em espaços coletivos. A cidade tem sua camada imaterial transformada em elemento da paisagem.

Em Tiempo Pasado: Cultura de la memoria y giro sub-jetivo. Una Discusion, Beatriz Sarlo pergunta “que relato da experiência está em condições de evadir a contradição entre a frieza do posto em discurso e a mobilidade do vivido?”10. As re-des contemporâneas, cada vez mais marcadas pelo compartilha-mento instantâneo de aspectos do vivido, parecem deslocar esta fronteira entre discurso e experiência, candidatando-se a ocupar

8 Jacoby, Russell. Os últimos intelectuais. São Paulo: Edusp, 1990.

9 Raban, Jonathan. Soft City. Londres: Picador, 1974.

11 Sarlo, Beatriz. Tiempo pasado: cultura de la memória y giro subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.

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este lugar que escapa da contradição entre a fixidez dos suportes e a mobilidade da vida. É um processo gradual, conforme fo-tografia, cinema, rádio, TV e vídeo conformam-se como próteses cada vez mais complexas dos sentidos humanos.

A externalização da memória através de dispositivos que permitem mediar o pensamento atinge outro patamar com o surgimento da cultura em rede. Esta sobrepõe ao pla-neta túneis transitórios e invisíveis que permitem um novo tipo de nomadismo, em que fluxo e deslocamento não precisam, necessariamente, coincidir. O movimento é das mentes. Eis o novo palco para o teatro caótico de pulsões que vibram nas in-terfaces entre corpo e mundo, hoje em dia mais porosas.

“Para que o espaço possa aspirar a ser um ente analíti-co independente, dentro do conjunto das ciências so-ciais, é indispensável que conceitos e instrumentos de análise apareçam dotados de condições de coerência e de operacionalidade /.../ Como ponto de partida, pro-pomos que o espaço seja definido como um conjun-to indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações /.../ A partir da noção de espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e siste-mas de ações, podemos reconhecer suas categorais analíticas internas. Entre elas, estão a paisagem, a con-figuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço produzido ou produtivo, as rugosidades e as formas conteúdo”.

Milton Santos tinha em mente espaços amplos quando es-creveu o trecho acima. Mas a geografia contemporânea também se ocupa de espaços mais restritos, quando discute o tema da “produção de espaços” conforme proposto por Henri Lefebvre no livro homônimo de 1974. Em “Geografia Experimental”, Trevor Paglen explica que “a produção de espaço é uma idea relativa-mente fácil, mesmo óbvia, mas com implicações profundas.

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“De forma resumida, a produção de espaço diz que os humanos criam o mundo a sua volta e são, em troca, criados por ele. Em outras palavras, a condição huma-na é caracterizada por um loop que se retroalimenta entre atividades humanas e seu entorno material. Nes-sa visão, o espaço não é um recipiente onde ocorrem as atividades humanas, mas é “produzido” por meio da atividade humana. Os espaço produzidos pelos homens, um após o outro, colocam restrições sobre as atividades subsequentes”.

As conseqüências deste entendimento do espaço como uma via de mão dupla entre os homens e seu entorno implica numa análise que precisa sempre levar em conta o que acon-tece nestes espaços. Para retomar o exemplo de Paglen, uma universidade não é apenas uma coleção de prédios (bibliotecas, laboratórios, salas de aula) mas um corpo que produz atividades (burocracia, conhecimento). O mesmo pode ser dito dos espaços dedicados à circulação da arte. Eles não são apenas construções com luminosidade ou amplitude, mas ambientes em que se mon-tam obras. Parece uma diferença pequena, mas é preciso levar em conta que a história da arte moderna e contemporânea é marcada por um questionamento continuidado do papel desem-penhando pelas instituições que atuam no cenário artístico, o que talvez torne os espaços da arte lugares com potencial explosivo equivalente ao de zonas de tensão mais evidentes.

É difícil generalizar atividades com aspectos tão diversos quanto a produção artística e a curadoria, mas talvez este em-bate com um contexto de expectativas geralmente deslocadas dos debates centrais sobre linguagem seja seu traço mais recor-rente, hoje em dia. Um exemplo são as particularidades com que é preciso lidar ao expor trabalhos realizados coletivamente ou tra-balhos que utilizam mídias portáteis. Os desafios são semelhan-tes, nos diversos lugares do mundo onde surgem trabalhos que

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lidam com essas perspectivas. As instituições resistem a aceitar as dinâmicas de autoria difusa e ausência de hierarquia, assim como reconhecer que a produção em grupo às vezes tem custos diferenciados. A instabilidade dos sistemas de rede, assim como as poéticas voltadas para aspectos da linguagem digital, muitas vezes desligados de vínculos evidentes com o objetual, dificulta a exibição prolongada de trabalhos com celulares e dispostivos GPS. São dois exemplos de como a defasagem entre processos que surgem fora do circuito mais convencional das artes resulta em dificuldades quando se busca incorporá-los à lógica das ex-posições.

Hoje, muito do que a cultura produz de mais desafiador acontece no âmbito das redes, nas intersecções que elas pro-duzem entre os espaços menos previsíveis da cultura e o espaço urbano e, portanto, longe de museus e de galerias. Apesar dessa dissolução marcante de fronteiras (evidente, ao menos, no plano simbólico), é impossível negar que, na América Latina, existe um desenho institucional bastante típico, claramente menos prepa-rado para a inovação do que em outros países cuja história é mais marcada pela pluralidade e pelo engajamento em práticas de inovação. Em parte, isso é legítimo, na medida em que é o resultado de um esforço para dar conta da pluralidade de mani-festações regionais, e conciliar a existência de universos culturais dos mais diversos tipos. Mas é preciso considerar que a sobre-posição dessa tradição a procedimentos inovadores é explosiva e, por isso, é preciso apostar também no ingrediente que com-põe a segunda parte da equação.

Descrever esse cenário não significa dizer que a crítica e a curadoria, na América Latina, sejam necessariamente conser-vadoras, mas que ela precisa lidar com um tecido institucional rígido, muitas vezes resistente aos desdobramentos atuais da cultura. Isso, aliás, não é apenas um problema do circuito das artes. Nesse sentido, um desafio urgente da região é deixar para trás o hábito de consumir as inovações produzidas fora (mesmo

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que isso aconteça pela prática louvável da Antropofagia). Num momento em que a possibilidade de reconfiguração geopolíti-ca surge como resultado de processos transnacionais cada vez mais consolidados (e com aspectos positivos e negativos bas-tante acentuados), quem não souber valorizar sua face mais de-sapegada de valores convencionais, rapidamente vai repetir o padrão dominante no continente de ficar a reboque na história.

Conforme também discutido em Mapeamento Incomple-to de Algumas Geografias Celulares30, a topologia das redes de telefonia celular define muitos aspectos desta geografia contem-porânea, por causa de seu funcionamento atomizado, assim como pela capacidade de se ligar à Internet, permitindo tanto a navegação com o usuário em deslocamento quanto o envio e recebimento de arquivos para a rede (as versões reduzidas de programas de bate-papo e redes sociais estão entre os melhores recursos disponíveis nos celulares 3G, assim como os aplicativos de realidade aumentada). Retomando o argumento desenvolvido no artigo publicado no catálogo da exposição Geografias Celu-lares, é curioso que a maioria das análises feitas sobre o tipo de rotinas que surgem conforme aparelhos portáteis com capaci-dade de conexão em rede tornam-se definidores do funciona-mento das sociedades contemporâneas não levam em conta esta atomização expressa de forma literal na palavra celular.

Vale a pena explorar um pouco esta metáfora que o próprio nome celular sugere, comparando o funcionamento destas redes ao comportamento das células propriamente ditas e sua relação com as estruturas relativamente mais rígidas em que estão inseri-das: os corpos que elas habitam, ao mesmo tempo que os man-tém vivos. Em alguns aspectos, há semelhanças. Um exemplo é a multiplicidade, que resulta em infinitos arranjos possíveis (seja pela transmissão de características hereditárias, seja pela morfo-logia porosa que participa de um organismo e simultaneamente define suas características). Em outros aspectos, há diferenças. Um exemplo é a configuração descontínua: as células formam

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grupos e comunicam-se em âmbito imediato; as redes celulares dissipam o sinal, permitindo uma comunicação difusa. Ao se val-er desta sobreposição parcialmente imprópria entre geografia e citologia como ponto-de-partida para discutir trabalhos de artis-tas que vem se destacando no circuito da produção com mídi-as portáteis com capacidade de conexão em rede, é possível deslocar o foco para algumas características de sua linguagem mais específicos que o deslocamento ou a miniaturização. Alguns deles: o desenvolvimento de interfaces e sistemas críticos, o uso imprevisto de aparelhos cotidianos, a sobreposição de espaços ou lugares, e a ênfase em formas de deslocamento (trânsito, fluxo, viagem, transmissão) como estratégia para subverter sua capacidade de localização intermitente. Entre as características definidoras deste contexto estão a tendência ao fragmento e ao transitório, o recurso a formas de agenciamento coletivo, o fluxo por sistemas distribuídos, a espacialização (no âmbito da inter-face e no âmbito da relação entre rede e espaço físico), e o recur-so à desmontagem como forma de acesso à tecnologia31.

Em parte esta ênfase no portátil e no móvel acontece porque o pensamento sobre as mídias digitais surgiu em meio a narrativas sobre sua imaterialidade (nada de células ou átomos; apenas bits e bytes, como enfatizou Nicholas Negroponte no capítulo inicial de Being Digital32). Basta lembrar a descrição do ciberespaço, por William Gibson, como uma topologia oceânica e hetérea, para a qual o corpo humano se transfere por meio de próteses geralmente incrustadas em seus órgãos. Ou remeter ao título de uma das exposições que deu o tom dos discursos sobre a arte criada com dispositivos tecnológicos a partir dos anos 80, Les Immateriaux, com curadoria do filósofo símbolo da pós-modernidade, Jean-François Lyotard. O conceito de imate-rialidade forneceu a primeira chave para explicar a sociedade em rede que vai estabelecendo suas bases a partir do final dos anos 1960, e consolida-se mais para o final do século XX. A ênfase es-teve, neste primeiro momento, nos efeitos e resultados das pos-

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sibilidades de digitalização dos formatos analógicos, da síntese algorítmica e da conectividade entre computadores. Foi só com o surgimento de teóricos como Lev Manovich e Alex Galloway que se consolidou uma tipo de análise interessada nas materi-alidades da linguagem digital ou nos protocolos de transmissão em rede (os mecanismos do hardware, as formas de composição dos softwares, a ideologia resultante da lógica dos programas, os impedimentos implícitos da arquitetura da Internet, etc).

Em paralelo a esta mudança de entendimento da rede, há uma mudança gradual de regimes de produção de conteúdos. Na cultura de massa, a difusão era centralizada e hierarquizada. Com o surgimento das redes, migra-se para um modelo menos centralizado, de hierarquia difusa. Mas, aos poucos, as redes vão tornando-se espaços mistos, em que a publicação de conteúdo assume feições intermediárias entre os formatos típicos do rádio, das revistas, da televisão, e outros nativos da cultura digital. As utopias de descentralização e participação comuns com o surg-imento das redes foram se transformando aos poucos em mod-elos de hegemonia dissipada. Fenômenos típicos da Web 2.0, como o YouTube e as redes sociais, escondem uma dinâmica de monopólio sob a aparência da diversidade. Os vídeos de grande sucesso no YouTube atingem audiências estratosféricas. Há es-colha individual, mas também imposição via meme, ou por meio de mecanismos de indexação que transformam a Internet numa democracia do consenso disperso.

Além disso, há nuances que podem ser sintetizadas da se-guinte forma: a Internet começa como uma utopia de espaço coletivo, enquanto as redes de celulares dependem do consumo individual de aparelhos; a Internet surge colocando problemas e alternativas para a configuração de espaços públicos num mo-mento em que estes pareciam estar desaparecendo, enquanto as redes de celular emergem na iniciativa privada; a Internet é gestada por um consórcio sem líder que torna coletivos seus pa-drões de funcionamento (permite uma cultura do uso do código

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por todos, fomenta utopias ligadas ao software livre e o códi-go aberto), enquanto as redes celulares são baseadas em pro-gramas proprietários fechados e exclusividade de recursos atre-lados a aparelhos e operadoras.

O cenário inicial da Web (que teóricos do primeiro momen-to da Internet, como Theodore Nelson, já consideram uma for-ma conservadora de rede) vai permitir fenômenos como o KOP – Kingdom of Piracy e sistemas de compartilhamento como o Napster e seus sucessores. Em seu texto de apresentação, o projeto de Shu Lee Cheang é descrito da seguinte forma: “King-dom of Piracy <KOP> é um espaço online, aberto, para explorar o compartilhamento digital gratuito de conteúdo – frequente-mente condenado como pirataria – como a quintessência da arte em rede. Comissionado pelo Acer Digital Art Center [ADAC] em Taiwan, para o ArtFuture 2002, <KOP> foi projetado para incluir links, objetos, idéias, softwares, projetos comissionados de artis-tas, textos críticos e eventos transmitidos online em tempo real”. A iniciativa, baseada na perspectiva de transformar a internet num lugar de bens comuns, não foi adiante. A alegação oficial é que houveram mudanças na política do Centro por conta de mudanças na sua direção, o que acontece mais ou menos no momento que uma campanha anti-pirataria de grande escala é lançada na Coréia. O fato da Acer, uma marca de computadores, ser patrocinadora do projeto (mesmo que de forma indireta), per-mite questionar até que ponto não havia uma incompatibilidade inicial já instituída na medid a em que o <KOP> propõe formas abertamente contrárias aos modelos de proteção de patentes da indústria.

Algo semelhante acontece com o Napster, mas num inter-valo de tempo um pouco mais longo. O sistema de compartilha-mento de arquivos criado por Shawn Fanning, lançado em 1999, torna-se rapidamente um sucesso ao permitir que jovens, pri-meiro em universidades dos Estados Unidos, depois ao redor do mundo, tornem suas coleções de mp3 disponíveis para compar-

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tilhamento e troca. O sistema funciona pelo método peer-to-peer. Vários computadores comunicam-se por meio da interface Nap-ster, de forma a tornar acessível a seus parceiros no sistema, o conteúdo de pastas específicas de seu disco rígido. Desta forma, é possível copiar arquivos de uma máquina para outra com ve-locidade maior que a do download, e cardápio de opções infini-tamente mais variado. Em função de um processo do Metallica, o Napster chega próximo do colapso financeiro e encerra suas atividades em 2001. Posteriormente, retorna com um modelo de negócios fechado, já mais próximo da lógica da web 2.0 que pas-sa a predominar na Internet com o sucesso de plataformas como o YouTube e o MySpace, ou redes sociais como o Facebook.

Com a Web 2.0, download e compartilhamento são sub-stituídos por upload e conexão. Além dos já citados YouTube, MySpace e Facebook, fenômenos como a explosão dos blogs e plataformas como o Last.fm e o Twitter consolidam uma cultura em que o usuário fornece e acessa conteúdo. A hospedagem re-mota depende da confiança na durabilidade destas plataformas, e é premiada com a exposição resultante da lógica de celebri-dades instantâneas que passa a imperar numa rede em que o valor é medido pelo número de amigos pendurados ou de co-mentários disponíveis nos perfis das redes sociais.

Ao mesmo tempo em que este processo se consolida, as redes de telefonia celular surgem de forma a redesenhar de for-ma ambígua este cenário de crescente restrição. Ao contrário da Internet, gerida de forma coletiva e pública, as redes de telefonia celular são privadas, e voltadas para aparelhos de consumo indi-vidual. Desdobramentos recentes, como os esforços da Google em torno do Android, mudam um pouco as coisas (apesar da Google não ser exatamente um exemplo de modelo alternativo à gestão corporativa, ela tem uma cultura de distribuição de APIs que tem semelhanças com as práticas mais compartilhadas e difusas da rede). E, apesar do contexto privado, as redes sem-fio de aparelhos portáteis permitem um retorno ao real, na medida

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em que oferecem acesso em espaços abertos, em trânsito, em ambientes inusitados. Assim, acabam redesenhado os limites já bastante embaralhados entre espaços privados e públicos (às vezes de formas curiosas, ao construir ilhas isoladas em que um indivíduo com fone ligado ao celular desliga-se do tumulto em volta enquanto espera na fila do cinema, por exemplo).

Talvez seja mais preciso descrever estas experiências como espaços de mistura entre mundo e redes, que embaralham de formas curiosas os limites entre o avanço corporativo sobre a cultura, e seu avesso. Um exemplo curioso desta dinâmica é o uso de celulares por militantes que dedicam-se a facilitar a en-trada de imigrantes na Europa, de que talvez o exemplo mais notório seja o projeto Fadait31, realizado pelo Indymedia e pelo An Arkhitetur. Hoje em dia, os ativistas usam torpedos para ajustar suas rotas em tempo real, dificultando ações repressivas. Outro exemplo, são as Wikiplazas32, também realizadas pelo An Arkhi–tetur. A implementação mais recente do projeto aconteceu, entre 29 de maio e 07 de junho, na Praça da Bastilha, em Paris. Com vários ateliês abertos, palestras e projeções de vídeo, o objeti-vo foi experimentar formas de “navegar, pensar, habitar a cidade rede”. O protótipo feito para a cidade das luzes consistiu de uma infraestrutura combinando elementos arquitetônicos e sistemas digitais. Potencialmente, o acontecimento é capaz de estimular e discutir apropriações de tecnologias compartilhadas como forma de buscar usos particulares dos “fluxos eletrônicos que, sejam amigáveis ou hostis, transformaram a cidade contemporânea”.

Se as tecnologias de rede são hoje cotidianas, e as cor-porações tornaram-se protagonistas centrais em tantas áreas da vida contemporânea, a ponto de exercer poder político sem pre–cedentes sobre esferas amplas da sociedade, é normal que os objetos e marcas que elas criam tenham usos dos mais di-versos (inclusive, contrários aos seus interesses). De fato, isto sinaliza para um aspecto da cultura corporativa que precisa ser observado com atenção, à medida em que grandes empresas

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dividem com governos poderes e funções antes restritos à esfera estatal. Já que tanto governos como empresas tornaram-se in-stâncias com certa equiparidade em sua capacidade de interferir na vida coletiva, apesar de partirem de premissas bastante di-versas, ambos precisam lidar com instrumentos de regulamenta-ção também equivalentes. Se as empresas não são exatamente exemplares em seus modos de operar, tampouco os governos são sempre bons modelos. Talvez, então, o problema não seja exatamente o suposto seqüestro do espaço público pelas cor-porações, mas sim encontrar modelos que permitam fomentar práticas consistentes com o interesse comum, independente dos atores envolvidos.

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Random Gambiérre Machine, de Fred Paulino e Lucas Mafra: hardwares baratos produzem objetos com comportarmentos

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Em Non-Objects, Branko Lukic descreve uma série de projetos de design em que fixidez ou estabilidade não são mais como antigamente. Talvez o iPad seja o exemplo que melhor rep-resenta este tipo de aparelhos em que (apesar do conjunto ele-gante, econômico, sedutor) o funcionamento não resume-se ao que promete a forma leve, a portabilidade inerente e o conjunto em certo sentido anódino, que almeja um desaparecimento im-provável. Mas, se não é provável a ausência deste objeto, sendo ele visível, o conjunto mimético transmite um universo de imate-rialidade e trânsito informacional cuja experiência fruímos todos os dias, como testemunho de sua amplitude desproporcional em relação à forma. Seria possível dizer, tomando liberdades gas-tronômicas que podem soar fora de contexto, que provamos esta defasagem entre objeto e funcionamento como quem serve-se de um cardápio desconhecido.

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O que ganha um sentido curioso quando pensamos que, para acessar os recursos de um iPad, é preciso fazê-lo através de menus. Mas, mesmo que este esmaecimento desejado não seja da ordem dos acontecimentos prováveis, a disformidade típica nos dispositivos digitais os empresta uma mutabilidade que obri-ga repensar o estatuto das coisas, em sua suposta conformação rígida, constante. São artefatos de outra ordem: computadores e telefones celulares tem superfícies cuja solidez não combina com a complexidade crescente dos programas que executam. Dilema que opõe dimensão e desempenho, e às vezes resulta em precariedades ainda por serem resolvidas, como sabe muito bem a horda de usuários acostumados com o funcionamento inesperado de seus aparelhos.

Neste contexto, como já foi discutido de forma ampla na bibliografia especializada, mundo e linguagem confirmam seu entrelaçamento, o que desautoriza a tendência recorrente de estabelecer fronteiras entre ambos1. Interstícios onde tornam-se inegáveis os elos existentes entre os objetos propriamente ditos e as operações que os fazem funcionar desta ou daquela ma-neira. Uma discussão sobre aspectos deste processo (com re-corte pertinente aos estudos em design) pode ser encontrada em O mundo codificado, de Vilém Flusser. Ao opor “coisas” e “não-coisas”, Flusser demonstra como está em curso uma in-tersecção entre procedimentos que a cultura ocidental acostu-

1 Em O que Significa Estrutura Aristotélica da Linguagem?, Hayakama discute o entrelaçamento entre linguagem e corpo, afirmando que as “hipóteses estruturais implícitas numa língua se refletem necessariamente em reações do comportamento”, in: Campos, Haroldo de. Ideograma — Lógica, Poesia, Linguagem. 3 ed. São Paulo: Edusp, 1994. p. 230. Lucia Santaella reafirma este entrelaçamento entre linguagem e mundo, e entre as linguagens em si. Ela afirma que “só nos currículos escolares /.../ as linguagens estão separadas com nitidez”. In: Santaella, Lucia. Matrizes da Linguagem e Pensamento — Sonora, Visual, Verbal. São Paulo: Iluminuras, 2001. p. 27.

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mou-se a separar — como resultado de um modelo de pensa-mento cuja lógica torna-se obsoleta aos poucos. A ciência, nos séculos XX e XXI, comprovou diferentes processos baseados no movimento de partículas ínfimas, que desafiam a solidez das es-truturas macro, revelando sob sua dureza arranjos mínimos, po-rosos e dinâmicos2. Flusser resume da seguinte forma o universo de coisas, que ele considera obsoleto:

“Pouco tempo atrás, nosso universo era composto de coisas: casas e móveis, máquinas e veículos, trajes e roupas, livros e imagens, latas de conserva e cigarros. Também havia seres humanos em nosso ambiente, ain-da que a ciência já os tivesse, em grande parte, conver-tido em objetos: eles se tornaram, portanto, como as demais coisas, mensuráveis, calculáveis e passíveis de serem manipulados”.

Para Flusser a superação deste mundo matérico decorre do fato de que a não-coisa tem um estatuto mais radical do que o atrelamento entre softwares e hardwares faz, em princípio, supor. “As informações que hoje invadem nosso mundo e suplantam as coisas são de um tipo que nunca existiu antes: são informações imateriais (undingliche Informationen)”. O filósofo as considera de tal maneira impalpáveis “que qualquer tentativa de agarrá-las com a mão fracassa. Essas não-coisas são, no sentido preci-so da palavra, ‘inapreensíveis’. São apenas de-codificáveis”3. O exemplo do iPad demonstra esta volatilidade da não-coisa, que poderia ser descrita não como algo, mas como múltiplos tem-

2 Flusser, Vilém. A não-coisa [1], in: O mundo codificado. São Paulo: Cosacnaify, 2007. p. 54.

3 Idem, Ibidem. p. 54.

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porariamente configurados: dispositivo que ora pode ser usado como instrumento musical, ora como página de revista, ora como videogame. Sem que seja possível adivinhar à distância, com os olhos desplugados da tela, qual a função daquela forma que não muda mesmo que seus usos sejam distintos. Interface que as-sume outra função, sempre que tocado, o iPad é mais que um aparelho. Transita nessa ordem de acontecimentos em que a coi-sa propriamente dita opera instruções que modificam sua den-sidade. Este funcionamento produz uma espessura paradoxal, em que o mais fino e o mais abrangente compartilham o mesmo topos. Instala-se, assim, um espaço de amplitude maior do que a área a ele destinada faria supor. Mecanismo de compressão e simultaneidade que nos lembra como (há ao menos um século) as leis da física não descrevem mais o mundo de forma meca-nicista. Apenas se dois corpos não podem ocupar um mesmo espaço (idéia que a teoria da relatividade solapou), surpreende que dois ou mais usos do mesmo objeto ofereçam experiências que emprestam tangilibidade à descontinuidade deste espaço. Como se o gato de Schrödinger encarnasse sua corporeidade dúbia num par de seqüências de código capazes de performar o famoso paradoxo que contribuiu para desestabilizar os métodos da ciência modernista em favor de um entendimento mais fluído do mundo físico.

Descontada a dose inevitável de fetiche por um objeto de consumo genérico, reluzente, conciso (o que também é indisso-ciável e coloca o iPad, senão a lógica de produção e consumo contemporâneas, num espaço de adesão problemática), há as-pectos que o transformam num aparelho síntese de uma época em que o invisível tornou-se significativo (das partículas menor que minúsculas da nanotecnologia aos formatos de transmissão que movimentam impulsos luminosos, dando sentido às suas freqüências e oscilações). Por isso, mesmo que os elementos visíveis do iPad sejam compatíveis com ideias centrais no de-sign modernista, como economia de recursos e funcionalidade,

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é impossível pensar a seu respeito sem expandir o vocabulário sobre as particularidades deste projeto que, ainda que não sem precedentes, parece reorganizar o cenário atual de forma um pouco mais potente que outros antecessores ou equivalentes: o iPad articula, num mesmo equipamento, procedimentos de rede e codificação que foram amadurecendo nos últimos trinta anos. Nele, atingem um patamar diferenciado (tanto nos aspectos po–sitivos quanto negativos). Impossível pensar sobre este tipo de aparelho desconsiderando a multiplicidade que a sobreposição entre redes e mundo produz, colocando tudo em fluxo. Ou seja, fazendo com que os objetos tornem-se mais fluídos, em proces-so análogo ao da ciborguização dos corpos vestidos de equipa-mentos: ao invés de organismos crivados de comportamentos maquínicos, aqui temos máquinas investidas de maleabilidade que tende ao fisiológico.

Este imbricamento de estático e fluído implica repensar uma série de conceitos que estruturam o pensamento do de-sign contemporâneo, baseados em conceitos de fixidez e estab-ilidade incoerentes com os desdobramentos recentes da cultura. Um aparelho como o iPad pode ser lido no registro negativo da ars cartesiana. Em Imagens sem objeto, Olgária Mattos explica que a “ars, tal como aparece nas máquinas — no relógio, no autômato, nos engenhos —, realiza uma necessidade encadeada de onde toda supresa, toda espera frustrada, todo temor estão excluídos”4. Os dispositivos em rede hoje existentes são máqui-nas onde a supresa, a espera frustrada e o temor estão incluídos, sendo até mesmo pressupostos.

É esperado clicar em um link que já não está mais online, fazer uma ligação de celular que toca mas não completa e abrir

4 Mattos, Olgaria. Imagens sem Objeto, in: Novaes, Adauto. Rede Imaginária — Televisão e Democracia. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras / Secretaria Municipal de Cultura, 1991.

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um anexo recebido por e-mail que dispara um vírus capaz de rapidamente danificar um sistema. O inesperado tornou-se (de forma geralmente trivial) um elemento cotidiano. Por isso, autores como Tim Cresswell tem tratado dos tempos atuais a partir do conceito de turbulência5, e tornou-se comum especular sobre os riscos do tempo presente, conforme discutido no artigo homôni-mo de André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus.

Um aspecto nevrálgico desta irregularidade presente é uma convivência maior com o imperfeito. Ela tanto pode estimular um entendimento mais generoso de heterogeneidades e diferenças, quanto ampliar a cultura do medo descrita por Brasil, Mello e Jesus:

“Hoje, a mídia parece ser uma das principais fontes do discurso acerca do risco: ali, estamos sempre na iminên-cia de uma catástrofe ambiental, de uma Guerra nuclear, de um atentado terrorista, de contrair um vírus incurável, de perder o emprego, de ter a casa assaltada, de at-ravessar uma crise econômica... cada vez mais presente em nosso cotidiano, em sua extrema visibilidade midiáti-ca, a retórica do risco acaba por legitimar o controle. Di-ante do risco sempre próximo, reivindicamos mais e mais segurança, mais e mais polícia, mais e mais vigilância, mais e mais controle6.

(5) Cresswell, Tim. La política de la turbulencia, in: Beiguelman, Giselle e LaFerla, Jorge. Nomadismos Tecnológicos. Buenos Aires: Fundação Telefônica, 2011.

(6) Brasil, André; Jesus, Eduardo de; e Mello, Christine. Riscos do Tempo Presente, in: Cadernos do Videobrasil 1 — Performance. São Paulo, Associação Cultural Videobrasil, 2005. p. 96-100.

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Talvez, neste contexto, uma utopia possível no mundo atual seja de que a convivência com estas instabilidades re-sulte em formas de aceitar o inacabado, o precário, o instável, o temporário e o provisório (deixando de lado expectativas de perfeição, conclusão e essência). São sentimentos atualmente aceitáveis como experiência estética, mas menos plausíveis em contextos onde o funcionamento eficiente gerencia o andamento das atividade cotidianas. Dispositivos digitais, em sua precarie-dade, atuam justamente neste espaço do não-funcionamento, e deslocam aspectos das estéticas comtemporâneas para o cam-po da produção de artefatos de uso diário. Nem o dadaísta mais ousado poderia prever equi–pamentos que insistem em travar um pouco antes do trabalho quase concluído ser salvo e recusam-se a imprimir documentos importantes com o mesmo comando que ontem havia funcionado num momento desnecessário. Este comportamento idiossincrático das máquinas estabelece elos entre arte e design menos óbvios que o mero trânsito de proced-imentos de linguagem, além de atuar em campos complexos da relação entre os homens e os objetos que criam.

Segundo Elias Canetti, não “há nada que o homem mais tema que o contato com o desconhecido”7. Muito do que os homens fazem são inversões deste temor das coisas que ignora. Isto significa que os objetos criados pelo homem estão impreg-nados deste sentimento, que “a linguagem gestual para as coisas continha em si aquela vontade de conformá-las, muito antes de intentar fazê-lo”8. Por isso, continua Cannetti, o nascimento dos objetos resulta de metamorfoses da mão e do rosto, o que sig-nifica que eles contém desejos viscerais latentes, que desde os

7 Canetti, Elias. “A inversão do temor do contato”, in: Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

8 Idem.

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primórdios o homem transforma em elementos da cultura, sem desligá-los dos instintos de defesa e sobrevivência ali implícitos, e muitas vezes atrelados a gestos violentos. Não por acaso, fa-cas, lanças e escudos estão entre os primeiros objetos conheci-dos. Ataque e defesa, destruição do corpo alheio e proteção da própria prole, transformados em artefatos.

Em Carne e Pedra, Richard Sennet descreve outro as-pecto deste temor ao diferente, presente no medo de contato com corpos tido como impuros9, sentimento também descrito por Foucault, em História da Loucura10, quando relata o fun-cionamento da stultifera navis, embarcação encarregada de tirar os doentes das cidades no final da idade média. São textos que permitem inferir uma aproximação entre limpeza, eficiência e se-gurança que surgem em diferentes contextos e períodos.

Por isso, vale discutir quais as implicações destes desejos viscerais, e o que eles significam para teorias e práticas de design moldadas por procedimentos para garantir projetos com funcio-nalidade e limpeza visual. Qual a importância, neste contexto, de pensar o design instável, que se instala no avesso da funcionali-dade, que o surgimento das mídias digitais parece tornar menos excepcional? No título do filme Esse obscuro objeto do desejo Luis Buñuel sugere, de forma indireat, uma chave alternativa para discutir um destes conceitos centrais do design. Objeto, no uni-verso surreal do cineasta mexicano que desenvolveu sua carreira numa França vivendo o auge de Montparnasse, não se refere a qualquer tipo de coisa material que possa ser percebida pelos sentidos. Trata-se, antes, do objeto psicanalítico, especialmento do objeto sempre alheio descrito por Lacan. Por isso, no filme,

9 Sennet, Richard. O medo do contato — O gueto judeu na Viena re-nascentista, in: Carne e Pedra — O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.

10 Foucault, Michel. Stultifera navis, in: História da Loucurua. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.

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esse objeto é imaterial e (nas cenas enigmáticas de uma caixa que surpreende os personagens na tela sem que nunca fique claro ao público o que ela guarda) ausente. O mecanismo de ocultamento diegético, que constrói um elemento cenográfico paradoxalmente invisível, sugere um entendimento do conceito de objeto compatível com a cultura contemporânea, marcada por uma imaterialidade que sugere o ocaso progressivo de dispositi-vos estáveis em favor de interfaces de maleabilidade crescente.

Não por acaso, o sentido atribuído ao termo objeto na com-putação assumiu tamanha importância. Isto indica uma reinvenção radical do que a cultura humana entende como objeto. O con-ceito passa a ser associado a acontecimentos, a entidades desti-tuídas de presença imediata, a configurações que podem emergir de arranjos invisíveis. No livro Algoritmos, de José Augusto N. G. Manzano e Jayr Figueiredo de Oliveira, encontra-se a seguinte explicação para o conceito computacional de objetos: “Segundo Silva Filho, ‘a idea por trás das linguagens de programação ori-entadas a objetos /.../ é combinar em uma única entidade tanto os dados quanto as funções que operam sobre esses dados”11. Em Digital Interactive Installations, Frank Blum esclarece que os objetos de programação são rotinas que dispensam o enten-dimento completo de seu funcionamento, pois existem na forma de bibliotecas previamente programadas disponíveis para o uso: “como o objeto funciona, ou seja, como o processo ocorre de fato dentro de um objeto finalizado, torna-se secundário quando está claro para o programador que informação é recebida, e o que o objeto fará com aquela informação”12. Trata-se mais de estabelecer fluxos do que armar arquiteturas.

11 Manzano, José Augusto N. G. e Oliveira, Jayr Figueiredo. Algoritmos. 23 ed. São Paulo: Editora Érica, 2010. p. 270.

12 Blum, Frank. Digital Interactive Installations — Programming interactive installations using the software package Max/MSP/Jitter. Säarbrucken (Alemanha): VDM Verlag Dr. Müller, 2007. p. 21.

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No design, pelo contrário, o conceito de objeto manteve-se relativamente estável, referindo-se sempre a entidades da cultura material investidas de funções que permitem determinados usos. Uma faca é um objeto que tem a função de perfurar ou cortar, e que pode ser usado para cortar alimentos na cozinha, aparar pontas desgastadas de lápis, ou atacar inimigos. Uma cama é um objeto que tem a função de acolher o corpo, e que pode ser usada para dormir, esticar as pernas diante da TV, ou fazer sexo. Um telefone é um objeto que tem a função de transmitir e rece-ber sinais sonoros remotos, e que pode ser usado para matar saudades de pessoas distantes, armazenar recados de amigos em secretárias eletrônicas, ou vazar para grampos clandestinos conversas de políticos corruptos.

Mesmo objetos deste tipo não se restringem à suas car-acterísticas físicas. Em A Linguagem das Coisas, Deyan Sud-jic discute como as mudanças em curso no mundo dos objetos tornam seu entedimento sempre mais complexo. “Os objetos, muitos acreditam, são uma realidade indiscutível do dia a dia. Dieter Rams, que por duas décadas foi o diretor de design da Braun, a empresa alemã de aparelhos de consumo eletrônico, era um deles. Ele descrevia os barbeadores e liquidificadores da Braun como mordomos ingleses, discretamente invisíveis quan-do não são necessários. Tais coisas se tornaram mais que isso.” Sudjic retoma os argumentos de John Berger, em Modos de Ver, para demonstrar como os objetos também são mercadorias. Ele lembra que Berger “fez uma distinção entre objetos “de verdade” e o que via como manipulações do capitalismo que nos fazem querer consumí-los /.../ Seu livro foi uma tentativa de demolir a tradição convencional que envolve o conceito de connaisseur e estabelecer uma compreensão mais política do mundo visual”13.

13 Sudjic, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Instrínseca, 2010. p. 6-7

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Entretanto, o próprio Sudjic faz a ressalva de que, mesmo “antes do colapso do comunismo e da explosão das economias da China e da Índia, compreender os objetos era mais compli-cado do que isso. Não só a iconografia dos anúncios é organi-zada para fabricar desejo. Mesmo as coisas “reais”, que Berger considera dotadas de características autênticas /.../ são em si mesmas suscetíveis ao mesmo nível de análise que ele aplica aos retratos tardios de Frans Hals e a alegorias de Botticelli. São cal-culadamente planejadas para obter uma resposta emocional”14. No artigo “The Flexible Personality: For a New Cultural Critique”, Brian Holmes discute como, “para ser efetiva, a crítica cultural precisa mostrar os elos entre as articulações de poder mais amp-las e as estéticas mais-ou-menos triviais da vida cotidiana”. Desta perspectiva, é importante entender o que estas respostas emo-cionais provocam15.

É um outro aspecto que precisa ser considerado diante da série crescente de entidades da cultura material que desafiam o entedimento tradicional de objeto, e obrigam os designers a repensar tanto sua produção quanto o próprio estatuto que o pensamento em design lhes empresta. Assim como o iPad des–crito no início deste artigo, um computador, por exemplo, é um objeto cuja forma de eletrodoméstico desengonçado não sugere a amplitude de funções possíveis por sua capacidade de proces-sar algoritmos e, com isso, gerar textos, imagens, sons, armaze-nar dados, transmitir informações, entre outros. O mesmo vale para objetos portáteis, como os telefones celulares e o próprio iPad, que além de desafiar a estabilidade dos objetos, com suas interfaces mutantes e aplicativos que permitem novas funciona-

14 Idem, ibidem.

15 Holmes, Brian. The Flexible Personality: For a New Cultural Critique, in: Cox, Geoff; Krysa, Joasia; e Lewin, Anya. Economising Culture: On ‘The (Digital) Culture Industry’. London: Autonomedia, 2004.

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lidades, deslocam seu uso para espaços públicos e situações de fluxo — funcionado de formas até então impossíveis numa cultura que acostumou-se a associar a ideia de objeto à fixidez e à intimidade dos espaços fechados.

Estes nem são os exemplos mais radicais do processo de deslocamento atualmente em curso, e correspondem a um tipo de objeto já incorporados ao cotidiano. São artefatos que fazem parte da cultura em rede atualmente vigente, que redefini-ram uma série de pressupostos sobre prototipagem, fabricação e consumo. Conforme Holmes, “para as necessidades da crítica cultural contemporânea nós deveríamos reconhecer, no centro desta transformação, o papel do computador pessoal, montado com seus dispositivos de telecomunicação acompanhantes em lojas de alta tecnologia ao redor do mundo. Tecnicamente uma calculadora, baseada nos princípios mais rígidos de organização, o computador pessoal foi transformado por seu uso social em uma máquina de imagem e linguagem: o instrumento produtivo, o vetor de comunicação e receptor indispensável de bens ima-teriais e semióticos, ou mesmo serviços emocionais que agora constituem o setor líder da economia”12.

Este entendimento deslocado do conceito de objeto não é de todo surpreendente, neste período em que, conforme discuti-do acima, fala-se em “programação orientada a objetos” para de-screver uma técnica em que rotinas de programação complexas podem ser manipuladas para criar softwares, sem que seja preci-so escrever por completo todos os elementos de código que os constituem. Em Words Made Flesh, Florian Cramer demonstra como esta ideia de um objeto imaterial e algorítmico é comum há algum tempo na história da cultura, antecedendo em muito seu uso na informática17. Entender como estes objetos imateriais se comportam é uma forma de discutir de que maneira a área

17 Cramer, Florian. Words Made Flesh — Code, Culture, Imagination. Rotterdam: Piet Zwart Institute, 2005.

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de design pode reformular alguns de seus pressupostos bási-cos diante desde desdobramentos que são centrais no mundo contemporâneo. Entre os designers sensíveis ao problema estão a dupla holandesa Koert van Mensvoort e Luna Maurer e os ing-leses Antonhy Dunne e Fiona Raby.

Dunne, inclusive, tem dois livros publicados que permitem pensar diversos aspectos do design na contemporaneidade, com ênfase na sobreposição entre elementos materiais e com-ponentes informacionais. Em Design Noir — The Secret Life of Electronic Objects, Antonhy Dunne considera que como “resul-tado destas noções modificadas e limites deslocados, um elenco amplo de tecnologias, dispositivos e materiais forma desenvolvi-dos”. Dunne nem considera central para o problema do design a existência destes novos atores em seu universo, mas sim sua ca-pacidade de atuar nos espectros imateriais das ondas hertzianas.

São desdobramentos recentes do design, com foco no uso redes ubíquas e tecnologias audiovisuais como formas de inter-venção em ambientes de diferentes escalas (de salas com com-portamentos inteligentes à esfera pública). O resultado são obje-tos inúteis, inesperados, inusitados, com comportamentos, com luminosidade. Cabe ao designer contemporêano explorar suas possibilidades com desapego compatível com a fluidez instalada.

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ausências: composição audiovisual de Dudu Tsuda e Marcus Bastos, apresentada pelo telemusik na mostra Live Cinema

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Dois homens passam apressados diante do Conjunto Na-cional, fones-de-ouvido que parecem não impedir uma sintonia incompatível com os bulbos dentro da orelha1. Os fios brancos que balançam em volta do pescoço chamam menos atenção que a parada súbita diante de uma loja qualquer. Não porque o bran-co cintilante dos cabos de fone-de-ouvido já cause menos estra-

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1 Mark Shepard discute o uso do fone-de-ouvido como um escudo que separa seu usuário do entorno, especialmente em grandes cidades em que aparelhos portáteis para ouvir música funcionam como uma forma de evitar o contato com desconhecidos. Shepard também propõe formas de reverter este comportamento, através de ferramentas que estimulam a socialização pelo cultivo coletivo de sons, numa forma de reinventar com celulares e aplicativos gratuitos as práticas de jardinagem comunitária, que já foram bastante comuns, na cidade de Nova Iorque. Cf. Shepard, Mark. Tactical Sound Garden [TSG Toolkit], in: Bambozzi, Lucas; Bastos, Marcus; e Minelli, Rodrigo. Mediações, Tecnologia, Espaço Público — Panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad, 2010.

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nheza que desejado por Steve Jobs ao incluí-los no iPod2, mas pela coreografia que executam. Um deles pousa a mão sobre o ombro do outro. Evento minúsculo, que poderia desaparecer na ampla confusão paulistana, não fosse a ênfase nos gestos (deci-didos? desajeitados? tímidos? espalhafatosos?). Ainda mais que, mesmo sendo noite de lua cheia, é sem precedentes a concen-tração de acontecimentos3 fortuitos nos 300 e poucos metros que separam as ruas Augusta e Padre João Manuel.

Sem saber, quem andava nos arredores participava de Como se fosse a última vez..., narrativa4 em que voluntários ence-nam instruções ditadas por um roteiro sonoro ouvido em disposi-

2 Sobre a relação minuciosa de Steve Jobs com o design de seus produtos, conferir: Isaacson, Walter. Steve Jobs. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 e Kelley, David. The First Mouse, http://www.wired.com/magazine/2011/11/ff_stevejobs_sidebars/4/. Várias decisões de design da empresa que pareciam extravagantes mostraram-se, pelo contrário, formas atraentes de conciliar funcionalidade e estilo. Além dos fone-de-ouvidos brancos que, quando foram usados no primeiro iPod, eram uma exceção depois transformada em rotina, vale lembrar o formato compacto e as cores cítricas do iMac.

3 O conceito de acontecimento é importante para entender os tipos de audiovisual baseados em agenciamentos em tempo real aqui discutidos. No sentido usado neste artigo, o acontecimento é uma ação incomum, que desestabiliza a rotina. O conceito é discutido na edição da revista Communications dedicada ao tema, editada por Edgar Morin. O acontecimento, para Morin, tem um escopo amplo, relacionado com o funcionamento dos sistemas complexos, em que um acontecimento é um evento que reorganiza o sistema (seu estado inicial sendo sempre desestabilizador). Em certo sentido, há uma proximidade entre o conceito de acontecimento e a ideia foucaultiana de heterotopia, espaço de exceção que fulgura momentaneamente e rompe a tessitura dos fatos. A performance no espaço público com aparelhos de realidade aumentada explora esta instalação de lugares transitórios que surgem como camadas temporárias em um espaço dado, reconfigurando-o durante sua execução. Cf. Morin, Edgar. Le retour de l´événement, in http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/comm_0588-8018_1972_num_18_1_1254 e Foucault, Michel. Outros Espaços, in: Ditos e Escritos 3. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006.

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tivos portáteis guardados nos bolsos ou fixos no corpo de alguma outra forma. O mp3 distribuído para os inscritos na performance (uns também não sabem quem são os outros, e não podem ouvir o roteiro antes da hora marcada para o encontro) propõe gestos e atos que enredam o espaço público geralmente impessoal das grandes metrópoles em acidentes sutis, de sincronia imprevisível e cumplicidade discreta. O excesso de normalidade revela aspec-tos pouco percebidos, apesar de rotineiros, da situação propos-ta. Deslocando para outro contexto a afirmação de Deleuze, seria

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4 O conceito de narrativa também é bastante importante neste texto. Narrativa, conforme diferentes definições propostas por semioticistas que se dedicaram ao tema, é uma série de acontecimentos que se desdobra em um certo intervalo de tempo. Neste sentido, é possível dizer que há narrativa em um filme abstrato, por exemplo, na medida em que diferentes configurações visuais constroem uma trama visível, que comunica sua materialidade, sugere ritmos e vibra pulsões. Este entendimento da narrativa permite olhar de outra maneira para a história do cinema, recuperando procedimentos muitas vezes deixados em segundo plano nos estudos mais tradicionais sobre o tema, que colocam o surgimento da chamada narrativa clássica, de matriz grifftiana, como marco zero da linguagem cinematográfica. Claro que autores sofisticados como André Bazin e Ismail Xavier colocam o problema com as devidas nuances, mas o pensamento predominante do cinema parece construído como um pensamento sobre a ação no filme. Esta aproximação entre narrativa e ação privilegia certo tipo de cinema, que opta por contar histórias ao invés de, por exemplo, pesquisar durações ou texturas audiovisuais. Em Cinema II – A Imagem-Tempo, o filósofo francês Gilles Deleuze propõe formas de entender o cinema para além do problema da ação fílmica. A proposta deleuziana, baseada em imagens cuja latência revela tempos, cores, texturas, sonoridades, como alternativa à análise fílmica focada em como os filmes constroem suas histórias, é mais amplo que o próprio espectro de exemplos incluídos no livro faz supor. Deleuze tenha concentrou seus estudos em um tipo de cinema bastante marcado pela trama, em momentos que seus conceitos parecem melhor aderentes a experiências menos convencionais como a visual music e o cinema não-narrativo. Sobre o conceito de narrativa, ver Noth, Winfried. Handbook of Semiotics. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1995. Sobre os diferentes tipos de imagem que possíveis além do que Deleuze chama de imagem-ação, ver Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

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possível dizer que estão “entregues a algo intolerável: sua própria cotidianidade”5. Como num plano sem corte do cinema-direto, é radical a sincronia entre acontecimento e narrativa.

Remetendo a uma versão super realista da cena em que Cecilia salta para fora da tela, em A rosa púrpura do Cairo, a sub-tlemob6 rompe o limiar entre ficção e realidade, conforme seus participantes misturam-se aos transeuntes incautos (não aqueles aglomerados na multidão do conto de Allan Poe, mas quem circu-lava na região da Avenida Paulista em 27 de Novembro de 2010). Mais que semelhanças, as duas propostas tem diferenças signifi-cativas, que permitem discutir o que distingue o cinema de mani–

5 Cf. Deleuze, Gilles. Op. Cit. p. 55.

6 O conceito de subtlemob foi proposto pelo grupo inglês homônimo, para descrever performances baseadas em acontecimentos temporários no espaço urbano, em que grupos de participantes, inscritos previamente, encontram-se num horário determinado para encenar uma narrativa que transforma a cidade em cenário, numa espécie de cinema em tempo real no espaço público. É uma variação do flashmob, intervenção relâmpago geralmente articulada através de dispositivos em rede (listas de discussão, mensagens virais de SMS, etc). Ao contrário do flashmob, que é factual e breve, a subtlemob é narrativa e tem duração suficiente para instalar espaços ficcionais sobrepostos à realidade. A despeito das diferenças de procedimento, ambos propõe irrupções que descontinuam a ordem dos acontecimentos cotidianos, instalando espaços de heterotopia que redesenham o campo do possível. No artigo Crowd Control, publicado na revista Wired de janeiro de 2012, Bill Wasik (que, além de colaborador da revista foi o criador do primeiro FlashMob) discute a relação entre este tipo de manifestação relâmpago e a onda de protestos políticos, e também alguns tumultos involuntários, que assolaram o ano de 2011. Wasik mostra o papel das novas tecnologias em rede nestas articulações coletivas que surgem com rapidez estonteante e modificam-se em ato, por meio de troca de torpedos que aumentam sua difusão articulada e dificultam as tentativas de reprimi-la. Mas, no texto, ele evita um posição determinista, ao discutir diferentes aspectos diversos da psicologia das multidões que revelam padrões de comportamento coletivo típicos de grandes grupos independente de sua articulação através de tecnologias de rede.

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festações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e o audiovisual em mídias móveis. Uma distinção óbvia entre o filme e a subtlemob é o enredamento complexo proposto no segundo, através da sobreposição entre trilha sonora fictícia e mundo real. O efeito de coincidência entre narrativa e vida, num espaço que oscila entre a rotina e interferências inesperadas, rearticula ambas de forma recíproca, imprevisível, difusa, constante durante o tem-po em que a performance é executada, e imediata7.

7 O problema da mediação nestes formatos em que há sincronia entre acontecimento e narrativa é um tema bastante complexo, que poderia ser objeto de um segundo artigo sobre o universo das imagens-som em tempo real. Por um lado, obras como Como se fosse a última vez... ou Tempestade, de Luis Duva (duas obras analisadas neste artigo) acontecem no momento de sua fruição. Neste sentido, elas invocam um sentido de imediatismo, ao se construírem em ato. Há algo de teatral nesta configuração em que o improviso, a presença do corpo e a partilha de um ambiente são inerentes à obra. Por outro lado, são trabalhos que dependem de tecnologias de síntese e transmissão que perfuram este ambiente compartilhado, multiplicando seus espaços e tempos. Neste sentido, são obras que exploram as formas mais intricadas de mediação, produzindo lugares crivados de potências latentes. Sobrepõe-se assim, à configuração primeira, baseada em certa teatralidade do acontecimento em tempo real, algo que remete ao elemento mágico discutido por alguns autores que procuram entender o cinema num registro menos apegado ao formato da narrativa. O aleatório, o desmanche da corporeidade e o compartilhamento de tramas simultâneas são características marcantes. Mas a sobreposição entre imediato e inflação de mídia é aparente, apenas. O próprio processo de mediação é mais complexo e incorpóreo do que certos entendimentos correntes fazem supor. Basta pensar na trama complexa que permite ao ser humano falar. Ele articula um aparelho fonador visceral, que combina balbucios estruturados, por paradoxal que possa parecer. Quem fala, opera sempre esta sinergia entre ar pressionado corpo afora e articulação gravada na mente. Entender este mecanismo em que é impossível separar natureza e cultura, é um ponto-de-partida para entender o problema da mediação. As formas contemporâneas de comunicação são sempre desdobramentos deste modo de funcionamento corpo. Não há, portanto, tanta distância quanto parece entre o imediato e o super mediatizado. Impossível, no espaço desta nota (apesar da extensão barthesiana) dar conta de todos os aspectos da questão.

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O filme de Woody Allen, assim como outros que se empen-ham em desestabilizar a barreira imaginária entre os espaços fic-cional e de fruição, serão sempre jatos de luz acomodados entre as quatro arestas que emolduram a tela no fundo de uma sala de cinema. Como se fosse a última vez... materializa e amplia o tra-jeto da personagem vivida por Mia Farrow, que projeta-se mundo adentro. Mímese literal das fraturas entre filme e público criadas por Godard, possivelmente o cineasta que procurou mostrar com maior insistência que seus filmes eram construções a partir de realidades contraditórias, e não decalques de mundos estáveis ou fabulações especulares de imaginários imaculados.

É como se a tecnologia tornasse possível o desejo reiterado de fratura entre tela e público, inaugurando um cinema espraiado, que dissolve o regime de exibição na forma de uma janela para o mundo, em favor de uma ocupação direta do mundo8. O que não garante qualquer tipo de vantagem irreversível para os forma-tos que se beneficiam desta diferença entre projeção em sala de

8 Em Cinema x VRML, Lev Manovich demonstra como a maior diferença entre o cinema e os formatos audiovisuais digitais refere-se ao lugar do espectador diante da imagem. No cinema, o enquadramento é estabelecido pelo diretor do filme, que decide o que será visto e o que ficará extracampo. Em formatos como o VRML, o enquadramento é escolhido pelo interator, que navega por um ambiente que ele acessa conforme escolhe a direção que a câmera percorre. É possível argumentar que experiências como o já citado Como se fosse a última vez... ou Can You See Me Know?, do grupo inglês Blast Theory, desdobram esta passagem de um mundo ficcional forjado em um enquadramento que o público só pode fruir, para um mundo ficcional que modela enquadramentos possíveis conforme a escolha do interator. São experiências que exploram o próprio mundo como cenário, onde injetam narrativas ao inserir elementos virtuais em um espaço físico determinado. Há, assim, um engajamento direto do interator, que não é mais transferido em forma de avatar para um corpo que ele controla à distância, mas sim participa de uma experiência em que seu próprio corpo ativa acontecimentos. Em sentido contrário, o entorno afeta a narrativa, emprestando-lhe elementos causais e oferecendo circunstâncias imprevistas. O resultado é um espaço fluído entre rede e mundo, entre ficção e realidade, onde ambos se entrelaçam e se modificam.

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cinema e acontecimentos no espaço. Há tanto filmes capazes de extrapolar os limites impostos pela tela às experiências com ima-gem e som recortadas em seu quadrante fixo, quanto obras em mídias digitais presas ao roteiro de seus programas — e vice-ver-sa. E, se a exibição de filmes em salas escuras dá sinais de ob-solescência, é antes pelo ritmo vertiginoso que faz o mundo girar em círculos como quem segue adiante, que pelo esgotamento da experiência cinematográfica9.

A comparação entre o instante de Como se fosse a última vez... e a cena de A Rosa Púrpura do Cairo permite listar algu-mas características dos formatos audiovisuais que surgem com a popularização das tecnologias de realidade mixta10 ou realidade aumentada. A narrativa não acontece mais na tela, e sim em lu-gares específicos; o público não é mais espectador, mas partici–pante (ou co-autor); o roteiro nem sempre conta uma história, e geralmente propõe regras; nem sempre há atores, mas é comum o recurso a voluntários e o estímulo de acontecimentos espontâ-

9 O surgimento de novas tecnologias de difusão audiovisual (em serviços como o Netflix e vários semelhantes que transmitem filmes via Internet) resulta em uma diversificação dupla: tanto as salas de cinema ampliam seu escopo, exibindo jogos de futebol e shows de rock como forma de impedir uma evasão do público, quanto o fã de filmes passa a dispor de mais opções (cinema, TV, computador, tablets e celulares são os mais populares). Esta diversidade permite ampliar o escopo de produção audiovisual. Um exemplo é a quantidade de vídeos domésticos que atingem altos índices de exibição em plataformas como o YouTube. Outro, os circuitos voltados ao chamado Microcinema, em que produtores independentes exploram o potencial das câmeras portáteis e da ilha de edição digital para renovar com agilidade inédita o repertório audiovisual. Certamente o volume da produção implica numa aparente inconsistência, mas uma análise mais cuidadosa do acervo de festivais voltados para este tipo de produção confirma o alto nível dos trabalhos, assim como a possibilidade de concretizar modelos alternativos de distribuição, mais versáteis e baratos que a película.

10 O texto vai adotar realidade mixta como tradução de “mixed reality”, para ressaltar o aspecto de mixagem entre mundo e rede implícito no termo, que se perde na tradução literal.

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neos e temporários. Não há apenas uma coincidência entre acon-tecimento e narrativa, mas também a diluição da fronteira entre o lugar da narrativa e seu contexto11. Isso só é possível em função do uso cotidiano de dispositivos em rede que geram espaços informacionais cuja invisibilidade não os impede de remodelar de forma significativa arquitetura, geografia, fluxos sociais, etc. O re-sultado são espaços híbridos em que ficção e realidade mudam de sentido de formas nunca imaginadas. Há elementos comuns

11 O embaralhamento entre narrativa e contexto obriga repensar um par de conceitos que estrutura a linguagem do cinema: diegese / extra-diegese, e a articulação entre campo e contracampo como forma de modificar o ponto-de-vista na narrativa audiovisual. Imagens e sons embutidas em espaços redefinem de forma radical esta ideia de que há um locus onde a narrativa é visível e um espaço externo relacionado, logicamente inserido na história, mas inacessível através do olhar. Este embaralhamento entre diegese e extra-diegese, associada à rearticulação da relação entre campo e contracampo, acontece em ambientes virtuais, em instalações interativas e nas performances com realidade aumentada. O tema merece ser melhor explorado, na medida em que não surge apenas como decorrência da tridimensionalidade presente em experiências audiovisuais fora da tela, como já foi sugerido na bibliografia especializada. Também na esfera das artes tridimensionais, como a escultura, é possível pensar um espaço narrativo extracampo. Por exemplo, quando o personagem da escultura olha adiante, é possível supor que ele olha na direção de alguém ou de alguma coisa não incluída entre as formas recortadas pelo escultor. Nos espaços de realidade aumentada e nas instalações, os limites entre os elementos são mais dissolutos, o que dificulta estabelecer distinções claras entre seus campos, entre seu espaço de fruição e um exterior logicamente associado, mesmo que ausente do campo visual. Invisíveis, de Bruno Viana, explora justamente este embaralhamento, ao propor uma narrativa em que personagens virtuais surgem na tela do celular conforme o público caminha pelo Parque Municipal de Belo Horizonte, onde o trabalho foi implementado. Como Viana afirma, em entrevista sobre a obra, no documentário arte.mov 2007, os personagens de sua narrativa não são apenas fictícios, mas também virtuais. Esta percepção precisa do artista sugere uma gama de relacionamentos existentes no âmbito da realidade aumentada: fictício / virtual, “real” / virtual, fictício / atual, “real” / atual. É a articulação entre estes elementos, que nunca se dá de forma estável, que produz este embaralhamento entre narrativa (ou acontecimento) e contexto.

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ao universo dos games nestes formatos mais abertos, em que a participação faz parte do desenrolar da narrativa.

Se assim a humanidade caminha entre virtualidades, resta saber qual o rumo do cinema em tempos de cultura digital. A resposta não é simples. Não bastasse a miríade de rotas que as tecnologias audiovisuais sugerem (resoluções cada vez mais altas, 3-D, síntese numérica, edição em tempo real, consumo em trânsito em telas portáteis), certas reconfigurações da produção audiovisual colocam em dúvida o próprio conceito de cinema como uma noção suficiente para explicar as seqüências articula-das de imagem e som inventadas a reboque da multiplicidade de câmeras e dispositivos de edição surgidos nas últimas décadas.

O problema não é tanto a heterogeneidade de rumos sugeri-dos, mas a obtusidade das histórias do cinema melhor conheci-das. Conforme aponta Michel Punt, em The Jelly Babe On My Knee, “há alguma evidência de que o Cinematógrafo não emerge de uma obsessão com realismo e movimento como as histórias materialistas reivindicam”. Punt sugere que “a convergência de uma obsessão com outras dimensões e um desvio radical no rel-acionamento entre pessoas comuns e tecnologia convergiu para um número de máquinas e as reinterpretou, para satisfatoria-mente estabilizar idéias irreconciliáveis. Não reconhecer este fato contribuiu para uma história frouxa do cinema, que se tornou uma barreira ao nosso entendimento do cinema, agora e no futuro”12.

12 Traduzido pelo autor, a partir de: “there is some evidence that the Cinematographe did not emerge from an obsession with realism and movement the way that materialist histories demand, but that a convergence of an obsession with other dimensions and a radical shift in the relationship between ordinary people and technology converged on a number of machines and reinterpreted them to satisfactorily stabilize irreconcilable ideas. Not to acknowledge this has contributed to a flawed history of cinema that becomes an impediment to our understanding of the cinema now and in the future”. Cf. Punt, Michael. The jelly baby on my knee, in: Eves, Frans; van der Velden, Lucas; e van der Wenden, Jan Peter (Eds). The Art of Programming — Sonic Acts 2001 conference on digital art, music and education. Amsterdan: Pardiso / Sonic Acts Press, 2002.

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Este caráter ecsomático, que Punt atribui ao cinema, ressalta seu elemento mágico. Há algo de assombroso num mecanismo que faz corpos e coisas aparecerem diante do olhar e, além disso, mostra o invisível (o sonho de um personagem, os detalhes per-ceptíveis apenas em slow motion, etc). A relação entre cinema e magia proposta por Punt (retomando tema caro a Walter Benja-min) é uma chave para entender a história do audiovisual de uma perspectiva menos centrada no mecanismo de contar histórias. É uma forma de perceber o cinema como uma linguagem que modela experiências, pelo uso da luz. O filme como condutor de percepções advindas de mundos externos ao real13. Neste sen-tido, haveria uma proximidade entre o cinema e o paranormal, na medida em que um filme é uma forma de incrustar no imaginário de quem o assiste mundos inexistentes ou extraordinários14.

13 O cinema empresta materialidade a fenômenos que desafiam os limites da percepção, criando aquilo que Walter Benjamin chama de inconsciente ótico. Seu efeito mágico está relacionado a esta capacidade de corporificar elementos do imaginário humano, num formato que permite a sensação de transferência para lugares fantásticos, aterrorizantes, surpreendentes, etc. Este efeito imersivo esta intimamente ligado à experiência de preenchimento do campo visual (seja aproximando os olhos de um dispositivo de visão ou sentando-se diante de uma tela grande o suficiente para arrebatar o olhar). É um aspecto da linguagem audiovisual que não acontece com igual potência em experiências mais espacializadas, como as discutidas neste artigo. Por este motivo, neste tipo de experiência, há uma ênfase maior no som (nas obras que acontecem em espaço público), uma busca por tipos de imagens ou configurações arquitetônicas diferenciadas (nos ambientes virtuais e instalações) e um esforço para redesenhar o formato de palco italiano de forma a incluir o público (nas performances de cinema ao vivo).

14 As imagens de inscrição, termo criado por Philippe Dubois para descrever a fotografia e o cinema, podem ser lidas como formas contemporâneas de magia, algo reconhecido tanto por baluartes da indústria como George Lucas (que batiza sua empresa de Industrial Light & Magic) quanto por pesquisadores como Ziegfried Zielinski (que estrutura sua arqueologia das mídias a partir do resgate de formatos audiovisuais

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Esta abordagem outra da história do cinema não representa exatamente um surto de heterogeneidade. A produção audiovisual sempre foi mais versátil do que as histórias oficiais do cinema, ba-seadas no surgimento da chamada narrativa clássica. O primeiro cinema, a visual music e o cinema abstrato são apenas alguns exemplos de um tipo de imagem que remete antes às paisagens interiores da memória que aos acontecimentos do mundo, para retomar a contraposição proposta por Gilles Deleuze. O filósofo francês ressalta que “o cinema europeu defrontou-se muito cedo com um conjunto de fenômenos: amnésia, hipnose, alucinação, delírio, visões de moribundos e, sobretudo, pesadelo e sonho”. Para Deleuze, isso era “um meio de romper com os limites “amer-icanos” da imagem-ação, e também de atingir um mistério do tempo, de unir a imagem, o pensamento e a câmera no interior de uma mesma “subjetividade automática”, em oposição à con-cepção demasiado objetiva dos americanos”15. André Parente recupera este tema em Tudo Gira: “As imagens-sonho formam um vasto circuito (“o envelope extremo de todos os circuitos”, se-gundo Deleuze), em série de anamorfoses em que cada imagem em relação a imagem seguinte, que a atualiza, como na famosa imagem de O Cão Andaluz (1928), onde a imagem da lua, corta-da por uma nuvem, dá lugar a imagem de um olho, cortado por uma navalha”.

como a fantasmagoria e a camera obscura). Um estudo consistente sobre esta capacidade que as tecnologias audiovisuais tem de dar materialidade a acontecimentos invisíveis, inclusive na forma de limite de servir como testemunho de fenômenos paranormais, é a tese de doutorado de Mario Ramiro, O gabide fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil: a representação do invisível no território da arte em diálogo com a figuração de fantasmas, aparições luminosas e fenômenos paranormais. São Paulo: USP, 2008.

15 Cf. Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. pp. 71-2.

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Um bom ponto-de-partida para discutir a consistência do termo cinema, e sua capacidade de abranger os formatos audio-visuais mais recentes aqui discutidos, é o livro Expanded Cinema, de Gene Youngblood. Mesmo interessado em fenômenos dis-crepantes da cinematografia mais convencional, Youngblood não abandonou a palavra usada para descrever a linguagem inventa-da e reinventada por nomes como Meliés, Godard e Von Trier. A diversidade de cinemas existentes na história do cinema parecem encorajar o apego ao termo, mesmo que o próprio Youngblood considere que seu livro surge “no fim da era do cinema como o conhecemos, o começo de uma era de troca de imagens entre homem e homem”16.

Youngblood declara a transmissão do pouso na Lua um emblema deste momento em que os homens passam a ver out-ras imagens. Ele descreve com sagacidade o efeito de desreal-ização produzido pela lineatura espessa da imagem de TV em baixa resolução (basta imaginar que um aparelho da época tinha um número de linhas equivalente a menos de um quarto do ta-manho das telas de computador mais comuns às vésperas de 2012). A textura porosa, associada ao feito inédito, que muita gente pensava ter sido uma simulação, tornavam a transmissão incrível (tão sensacional quanto difícil de acreditar, para usar o sentido que Flusser propõe no artigo Coincidência Incrível17).

16 Traduzido pelo autor a partir de: “I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image-exchange between mand and man”, in: Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Toronto e Vancouver: Clark, Irwin & Company Limited, 1970. p. 49.

17 “A coincidência entre pensamento lógico e “realidade” é incrível. Não pode ser acreditada”. Cf. Flusser, Vilem. Coincidência Incrível, in: Da Religiosidade — A literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escritura, 2002. p. 32.

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O texto de Youngblood deixa entrever os efeitos desta com-binação entre imagem precária e realidade fantástica no imag-inário da época. Mesmo mentes esclarecidas e poderosas como a do teórico, ou visionários como Stewart Brand (criador do Whole Earth Catalog, uma das publicações símbolo da contracul-tura) demonstram mais fascínio que discernimento, quando falam sobre a missão da Apollo 11. Certamente, o pouso do homem na Lua produz efeito equivalente à descoberta de Copérnico. Ver o planeta como um ponto mínimo num espaço vasto faz pensar em quanto um corpo é insignificante diante de tamanha amplitude.

Ver o planeta como um ponto mínimo e perceber que as imagens em movimento tornam-se menos precisas no registro eletrônico mudam o mundo de forma definitiva, mas isso assunto é para um longo livro, em parte já escrito por Youngblood. Corte, então, para o cinema: os filmes já não eram tão épicos quanto a realidade; as imagens, no início de um processo de multiplicação que se revelaria vertiginoso, já não eram sempre nítidas ou am-plas como o cinemascope. O regime audiovisual torna-se, aos poucos, um regime de maior granularidade sintática, e também configura-se a partir de seus modos de transmissão.

Quem viu as primeiras imagens em movimento também sentiu um deslocamento cujo fascínio é difícil discernir18. Foi preciso mais de meio século para que os novos cinemas con-struíssem um repertório de filmes engajados em procedimentos capazes de reverter o amortecimento produzido por este truque de luz (para usar a expressão precisa usada por Wim Wenders no título do filme em que resgata os primórdios do cinema na Alemanha). E, ao mesmo tempo em que o cinema reverte este elemento que oscila entre o mágico e o demiúrgico, surgem no-

18 É este o sentido da mítica fuga de espectadores diante do trem que se agigantava na tela, naquela que é tida como a primeira exibição de cinema.

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vos deuses na tela19. O mundo que recebe a TV de salas ab-ertas é o mesmo em que, ainda segundo Youngblood, Michael Snow, “confronta diretamente a essência do cinema: os relacio-namentos entre ilusão e fato, espaço e tempo, sujeito e objeto”20.

19 O caráter mítico dos astronautas é evidente e, em certo sentido, a história da televisão pode ser contada como um esforço constante para repetir este efeito de deslumbre hiperbólico. Curiosamente, há uma simetria entre as histórias do cinema e da TV, neste âmbito da busca por efeitos capazes de manter o espectador em um estado mágico (em que pese o contexto muito mais dispersivo de fruição televisual). Em linhas gerais, é possível defender a existência de uma segunda fase na história do cinema, em que é bastante comum a reversão do caráter mítico da tela. São diversas estratégias, como filmar fora de estúdio, em situações precárias, tratando de temas mais típicos do jornalismo ou do romance naturalista. Em geral, estes novos cinemas também passam a desfazer, por meio da metalinguagem e dos raccords falsos, certa transparência típica da linguagem cinematográfica instituída na época. Eles exploram as quebras de continuidade como forma de manter o espectador alerta, ao contrário do cinema clássico que usava a continuidade como forma de manter o espectador enfeitiçado. No caso da história da TV, se é possível considerar que o momento atual corresponde a este ponto de reinvenção da TV em função do surgimento de novas tecnologias audiovisuais que deslocam seu lugar na ecologia dos signos. É significativo o surgimento de formatos como o Big Brother, em que o cotidiano, um estranho tipo de não-acontecimento que torna-se acontecimento pelo simples fato de estar em quadro, e a duração que explora a sincronia entre acontecimento e narrativa, parecem inverter a tentativa inicial da TV de mostrar momentos fantásticos e especiais. É preciso considerar, também, que a grade de programação de TV tem uma diversidade que dificulta tratá-la de forma homogênea. Mas, se é possível considerar a transmissão ao vivo de fatos que assumem súbita importância coletiva (um acidente, a visita do Papa) como ápice do mecanismo televisual, o surgimento de programas que exploram o cotidiano ao invés do extraordinário certamente reconfiguram este regime de exibição.

20 Traduzido pelo autor a partir de: “I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image-exchange between mand and man”, in: Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Toronto e Vancouver: Clark, Irwin & Company Limited, 1970. p. 49.

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Wavelenght, um de seus filmes mais conhecidos, tem uma única tomada de mais de quarenta minutos. Um amplo estúdio, pouco a pouco dissecado por um zoom sistemático. É um dos muitos filmes da época que igualam sua duração à duração dos acon-tecimentos filmados (numa espécie de etnografia reversa como a proposta por Andy Warhol em seus retratos filmados). É uma cinematografia mais interessada em revelar os procedimentos da câmera diante do mundo, que preservar a autenticidade do que é mostrado, transformando pessoas e coisas em personagens de ficções feitas de realidade. São filmes que ilustram a provocação feita por Godard, quando afirma que o documentário é um ficção sobre a vida dos outros.

Uma série de fatores conduzem a este contexto em que não se fará mais cinema como antigamente. A história dos novos cin-emas e da videoarte são melhor conhecidas, ao menos no âmbi-to dos estudiosos da linguagem audiovisual, que a convergência entre produção de imagem e transmissão. Em Art of the Elec-tronic Age, Frank Popper afirma que “a circulação instantânea de informação dissociada dos limites geográficos, resultante [da chegada de tecnologias sofisticadas de processamento de infor-mação], sobrepujou nossa percepção tradicional do mundo”21. É um processo que se articula pelo gradual abandono da tela como janela para o mundo. Os dois trabalhos analisados a seguir ilustram este processo. Não é uma cronologia exata, já que as instalações surgiram antes que os ambientes virtuais. Em todo caso, é significativa a forma como ambos fraturam a lógica de enquadramento. Por isso, sugerem um trajeto da história do au-

21 Traduzido a partir de: “The resulting instantaneous circulation of information without regard to geographical limitations has overthrown our traditional perceptions of the world”. Cf. Communication Art, in: Popper, Frank. Art of the Electronic Age. London: Thames and Hudson, 1993. p. 122.

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diovisual que vai do surgimento do enquadramento ao estilhaça-mento da tela, tendo como estágio intermediário a invenção das interfaces que permitem ao usuário mudar o enquadramento22.

Um bom exemplo é Desertesejo, de Gilbertto Prado. É um ambiente de realidade virtual que explora a tensão entre encontro e isolamento. Modelado em VRML, permite que seus usuários experimentem diferentes pontos-de-vista, conforme o avatar23 que escolhem. Navegar pelo ambiente implica em duas formas de escolha. É possível movimentar a câmera por meio de gestos do mouse, transformando o usuário em co-autor dos ângulos e travellings executados. É possível rastejar, voar ou caminhar pelos desertos inventados com precisão irônica. A riqueza das experiências possíveis tem menos relação com o realismo inver-ossímil que com o convite ao retiro compartilhado. Tanto em ter-mos de metodologia de desenvolvimento, quanto em termos de resultado, o projeto apóia-se em pesquisa de campo minuciosa. Mesmo que não se trate de um mapeamento estatístico ou de

22 The Engineering of Vision, de Lev Manovich, e os estudos de Erwin Panofisky sobre o surgimento da perspectiva podem ser entendidos como pesquisas que mostram a formação do tipo de representação em que a tela funciona como uma janela para o mundo. Por ser mais recente, o texto de Manovich trata as imagens térmicas, e os dispositivos de visão por infra-vermelho, como indícios de estratégias de visualização não mais baseadas na constituição de duplos do campo visual. Os exemplos apontados por Manovich são casos limites. Os ambientes virtuais e as instalações interativas também podem ser incluídas neste vetor de visualidades que rompem com a representação em perspectiva.

23 Apesar de bastante conchecido no contexto da cultura digital, vale lembrar que o conceito de avatar remete à personas virtuais que um usuário assume ao participar de mundos virtuais (seja em jogos de RPG, em narrativas multiusuário ou em experiências de realidade virtual). No caso de Desertesejo, o usuário pode escolher entre três avatares, que definem características o ponto-de-partida em que acontecerá a navegação pelo ambiente 3-D (rastejar, andar ou voar).

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um levantamento topológico exato, a situação de estar em um deserto informa a produção do espaço virtual proposto.

Há sempre elementos que remetem à etnografia, nestas ex-periências em que a extensão do tempo é elástica e modelável. Provavelmente porque os filmes etnográficos e o cinema-direto foram as primeiras experiências audiovisuais de sincronia entre acontecimento e narrativa. Mas, nos ambientes virtuais, a du-ração estendida assume outro sentido, na medida em que é um convite à exploração. A despeito da capacidade de reconstituir em detalhes os mundos que representam, os ambientes virtuais 3-D funcionam no reverso do contemplativo. Tampouco procuram um afastamento prudente entre câmera e mundo, como forma de preservar a autenticidade do registro. Pelo contrário, sugerem que apenas o mergulho no ambiente permite compreender seus aspectos com maior intensidade. É este entendimento mais sub-jetivo (no sentido que Deleuze opõe a imagem-memória do cin-ema europeu à imagem-ação do cinema norte-americano) que aparece em Desertesejo, para propor um terceiro incluído24.

A obra de Gilberto Prado atua no limiar entre o prolon-gamento da experiência e o gesto sobre o ambiente. Da mesma forma que os raccords falsos deslocam o espectador de um filme do seu lugar de conforto, a experiência do vazio subverte as von-tades de quem navega na Internet. Ao fazê-lo, Desertesejo indica um elemento central da experiência contemporânea: a estranha simetria que, ao mesmo tempo, aproxima e afasta as pessoas conforme suas vidas são transmitidas de forma intermitente. Am-

24 A figura, sugerida por Deleuze, de uma subjetividade automática produzida pela sobreposição entre imagem, pensamento e câmera interior, também foi analisada por Philipe Dubois sob a nomenclatura de sujet on, um sujeito em certo sentido externo à subjetividade que o produz, na medida em que resultante da articulação entre sujeito e máquina agenciadora (por exemplo, na relação entre homem e câmera, em que a câmera inclui elementos na imagem impossíveis do olhar capturar).

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bientes de rede são tidos como espaços de compartilhamento remoto, que aproximam distâncias e conectam diferenças. Mas nem sempre é assim. Como numa versão multiplicada da letra de Cazuza, Desertesejo propõe solidão a dez de dia.

Em palestra no Intermeios25, Christine Mello analisa o am-biente dos 5 céus compartilhados como melhor exemplo desta articulação entre estar junto e estar sozinho. Mello considera a possibilidade de ver, em tempo real, uma amostra do céu na ci-dade do usuário que navega pelo ambiente, colocada em con-junto com amostras do céu nas cidades dos demais usuários, uma metáfora exemplar das possibilidades de compartilhamento. Ao inserir Desertesejo no conjunto das obras de Gilberto Prado, a crítica e curadora mostra como o artista ocupa-se de formas de gerar comunidade (algo que ela identifica em seus trabalhos desde as experiências pioneiras de arte postal). Para Mello, Pra-do atua neste desvio em que não basta estar em rede, em que é preciso deixar-se contaminar pelos efeitos dissipadores que a rede sugere. Parece pouco, mas faz muita diferença, diante da vertigem de cliques desencontrados que tornaram-se a experiên-cia mais comum em espaços cuja vocação seria, supostamente, aproximar as pessoas.

Circuladô, de André Parente, reconfigura o sentido do cin-ema de várias maneiras. A obra explora a circularidade de mov-imentos que levam ao transe, dos sufis que giram sobre seu próprio corpo, a um corisco a beira da morte, passando por Thelonious Monk no palco, o Édipo de Pasolini, e uma pomba gira. São cenas de filmes e documentários tiradas de contexto, que em conjunto ganham novos sentidos, e também propõe um discurso mais amplo. A obra é construído em giros, como num Zootróprio. As imagens se repetem, aproximando o círculo do

25 VII Encontro arte e meios tecnológicos — Leituras críticas / Núcleo contemporâneo – Parte 4. 8 de dezembro de 2011.

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loop, provavelmente a figura de linguagem central da cultura digi-tal26. E a própria configuração do espaço é circular, posicionando o interator no centro, diante de um mecanismo que ele pode girar.

Em Tudo Gira, Parente lembra que “o zoetrópio foi dos pri-meiros dispositivos de imagens em movimento. foi inventado em 1834 por William Horner, o zoetrópio foi batizou «Daedalum» ou «roda do diabo»”. Ele afirma que o “zoetrópio é um tambor con-tendo ranhuras ou frestas que permitem o espectador visualizar um conjunto de imagens em seu interior. Essas imagens, formam uma animação. Na época que o zoetrópio foi inventado as ima-gens eram geralmente feitas a mão. Posteriormente o zoetrópio se tornou um instrumento dos animadores, que podem utiliza-lo para testar o processo de intervalo-ação”.

Se a magia da sala escura estimula o transe pelo fluxo de luz diante de seus olhos, Circuladô é um convite ao trânsito pelo contraste entre claro e escuro, reiterado a cada volta dos cor-pos em torno deles mesmos. Encontro às claras, este chama-

26 A cultura contemporânea tem sido definida por procedimento reiterativos, em diversos níveis. Na música eletrônica, por exemplo, o loop é usado como motivo estruturante. Depois de um esfacelamento da harmonia tradicional, com notas, escalas e acordes, a música volta-se para a materialidade do som e constrói suas unidades mínimas de significação usando estruturas circulares que serão moduladas e repetidas. Na música eletrônica de pista-de-dança, que se tornou mais popular que as vertentes experimentais, o loop é usado de forma quase abusiva, o que serve para ilustrar o argumento aqui resumido de que a repetição é uma meme dos dias atuais. Há exemplos equivalentes no cinema, sendo Quentin Tarantino e David Lynch talvez os diretores que melhor representam a prática de construir roteiros por meio de estruturas circulares que retornam de forma modulada durante o filme. Num nível menos visível, é possível lembrar que o loop (assim como as estruturas bifurcadas baseadas em decisão) é um dos mecanismo fundamentais das linguagens de programação. Um programa de computador é, em certo sentido, resultado de um pulso regular que coloca em funcionamento um conjunto de regras baseadas na repetição de processos e na decisão a respeito de seu uso.

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do à vertigem distancia, no melhor dos sentidos, a instalação de André Parente do cinema convencional. Conjunto de imagens potentes, a obra demanda uma atitude ativa do público. Como se, ao mostrar como os círculos levam ao êxtase, propusesse um formato em que a experiência do transe pudesse acontecer em interface, num gesto que emancipa quem participa do jogo proposto. É um mecanismo sofisticado, na medida em que atua no território sensível no limiar entre as representações de estados de fuga do real e o estímulo a potências que o cotidiano apaga.

Nas palavras do próprio artista (ainda no artigo Tudo Gira), “trata-se de misturar, em um único trabalho, dispositivo e con-ceito, loops mentais e loops físicos, imagens de giro e dispositivos circulares, imagem em movimento e movimento do espectador. Ou seja, fazer desse trabalho uma ponte que conecta os dispos-itivos pré-cinematográficos aos dispositivos pós-cinematográfi-cos tendo como conteúdo e como forma a questão do giro e do corpo da imagem”.

O transe tem um sentido emancipatório muitas vezes de-sprezado pela cultura ocidental. Mesmo que hoje em dia o racio-nalismo não seja mais tão central, ainda há grande resistência a reconhecer o papel que estados alterados de percepção podem desempenhar no engedramento de novas formas de entender o mundo. A obra de Parente coloca a questão de forma sus-cinta, mas consistente, ao oferecer um mecanismo através do qual o interator gira junto com as imagens da obra, e ao fazê-lo alteras seu giro. Não é apenas uma forma de interação, mas antes um convite ao compartilhamento de gestos e de imagens que produzem pensamento háptico. Se alguém já sonhou tocar a tela quando assistia um filme, essa é uma boa oportunidade. Diferente de muitos das obras de arte digital, que exploram a interação pela interação, Circuladô semantiza de forma rara sua interface, que não é apenas um dispositivo para manipular as im-agens da instalação, mas também uma chave para entender os sentidos que giram na obra.

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A interface de edição disponível em Circuladô esgarça os sentidos do circular, conforme gira um mecanismo para controlar as imagens da instalação. Ela remete a formas de edição que propõe elos entre o passado e o futuro do cinema27: retoma a fisicalidade da moviola e incorpora a atomização da linguagem digital. Não por acaso, o mecanismo lembra as pickups dos DJs, que marcaram de forma definitiva a cultura baseada em loops que o computador multiplicou. Ela sugere um vínculo entre o giro dos personagens na tela e o giro mental que sugere ao público, explorando a conexão entre o corpo e o espaço da obra por meio da interface tátil.

O cinema tem ingredientes que remetem a este espaço de sonho compartilhado, conforme discutido por Deleuze, em A Imagem-tempo. Deleuze considera que o “ato cinematográfico

27 Há outros exemplos de mecanismo do tipo na produção contemporânea, como é o caso de 5x4x3x, de Lea Van Steen e Raquel Kogan. Em artigo escrito para o catálogo da obra, há uma breve apresentação deste universo, que merece ser retomada aqui: “Arlindo Machado sempre defendeu o primeiro cinema como um repositório de possibilidades coerentes com os rumos do que ele denominou pós-cinema. Machado, assim como Siegfried Zielinski e Oliver Grau, discutiram diversos aspectos deste elo entre passado e futuro do cinema, que permite entender a história das imagens em movimento em um registro em que a invenção é mais importante que a narrativa, em que a forma de contar é tão importante quanto o que é dito. São autores que definem um campo de experimentação onde o relato por meio de imagens e sons acontece em sua forma plena, muitas vezes relacionado às diferentes possibilidades de diálogo com os aparelhos e espaços em seu entorno (no avesso da narrativa clássica, que confia na transparência da exibição). Meliés, Eija Liisa-Ahtila ou Milton Marques são bons exemplos desta prática de inventar formas de narrar que são tão importantes quanto a própria narrativa (para citar exemplos que abrangem um amplo intervalo de tempo, abrigando artistas/inventores que estabeleceram as bases para o tipo de pesquisa feito por Kogan e Van Steen e outros que propões desdobramentos recentes para as mesmas premissas)”. Cf. Bastos, Marcus. “multiplicações: rever(so d)a ilha”, in: Kogan, Raquel e Van Steen, Lea. 5X 4x 3x. São Paulo: Funarte, 2012.

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consistente em que o próprio dançarino entre em dança, como se entra no sonho”. Este mergulho no imaginário que o cinema proporciona acontece sempre num espaço de trânsito entre a contemplação e o arrebatamento. Em todo caso, é sempre um acontecimento mental, que opera enquanto o corpo repousa di-ante da tela. Nos formatos contemporâneos de audiovisual, este ato de convocação do público é mais direto e físico. Isto não garante maior empatia ou capacidade de deslocamento do es-pectador de seu mundo, mas certamente modifica a experiência, tornando-a mais vigorosa.

Em storm, de luis duVa, há um percurso inverso ao discuti-do até aqui: o público é convidado a entrar no palco, para assistir a apresentação de seu interior; a obra reconstrói a experiência do artista diante de tempestades, algo que lhe inspira profundo temor. É o oposto simétrico dos mecanismos de alargamento da tela como forma de aproximar o público dos sonhos ali narra-dos. Como se o pesadelo tivesse uma viscosidade que atrai pela ausência de luminosidade, ao invés de dispersá-la na direção da platéia. Quem já acordou de forma súbita à noite, entende a força centrífuga desmesurada que rege o pesadelo.

Mas a composição audiovisual de duVa não modula este aspecto terrível. Pelo contrário, ela explora o elemento sublime que existe no desconhecido28. storm é o relato de um percur-so em que imagens interiores e acontecimentos exteriores se fundem, mostrando os momentos de uma busca cujo sentido é equalizar os dois mundos. Por isso, o efeito estroboscópico fun-ciona como motor que alterna de forma estonteante entre o mais

28 Para uma discussão sobre o conceito de sublime como um temor diante do desconhecido e com as forças demesuradas da natureza, ver Burke, Edmund. A philosophical enquire into the origin of our ideas of the Sublime and the Beautiful. Oxford: Oxford University Press, 1990.

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claro e o mais escuro, justamente a tensão expressa pelo person-agem em sua peregrinação entre tempestade e floresta. O fluxo não acontece apenas no plano na luminosidade que oscila, mas também neste “enxugamento” expresso pela passagem da água conturbada à terra firme, do sonho ao acordar. Ao contrário da maioria das experiências em live cinema, duVa conta uma história consistente, e apresenta um imaginário rico. É um dos projetos melhor resolvidos no gênero cinema ao vivo, combinando exper-imentação de linguagem, reordenamento de possibilidades da estrutura fílmica e improviso, que resultam em uma composição audiovisual madura.

Diante de tamanha diversidade de exemplos, surpreenden-te que exista um elemento comum no trânsito direto entre tela e platéia. O tipo de imagens-sons gerados pela sincronia entre acontecimento e narrativa parece obliterar esta distância. De cer-ta forma, este é o sentido do chamado tempo real: a ausência de limites. A tela do cinema, mesmo nas durações prolongadas das tomadas sem corte, remete sempre a algo que já passou, a algo que está ausente. Só pelo rompimento da distância entre acon-tecimento e narrativa é possível instalar um presente compartil-hado. É esta busca pelo momento em que todos fazem rede em torno do mesmo imaginário que une as obras aqui analisadas. Elas permitem propor que o cinema do futuro, com seus desejos polifônicos e participativos, é tudo o que o cinema quis ser a partir da Nouvelle Vague e suas montagens desconexas. Mas, com suas tecnologias que não existiam quando a tela era uma superfície intocável e o diretor decidia o que ali seria exibido, o cinema do futuro não é nada que o cinema tivesse pensado an-tes. Paradoxo? Só se você achar que a arte se limita ao que sua época permite. Ou se você achar que a arte é incapaz de escapar do que sua época permite.

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capa Fernando Velázquez

Este livro foi impresso com recursos do projeto FAPESP 2014/07491-8.