lima - história, ficção, literatura - luiz costa lima

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LIMA - História, Ficção, Literatura - Luiz Costa Lima

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  • HISTRIA. FICO. LITERATURA

  • LUIZ COSTA LIMA

    Histria. Fico. Literatura 1" reimpresso

    -~-COMPANHIA DAS LETRAS

  • Copyright 2006 by Luiz Costa Lima

    Capa Angelo Venosa

    ndice temtico e onomstico Luciano Marchiori

    Preparao Guilherme Salgado Rocha

    Reviso Isabel Jorge Cury Carmen S. da Costa

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Lima, Luiz Costa Histria. Fico. Literatura I Luiz Costa Lima. - So Paulo :

    Companhia das Letras, 2006.

    Bibliografia ISBN 978-85-359-0857-2

    1. Literatura - Histria e critica 2. Literatura e histria 3. Historiografia 4. Teoria literria I. Ttulo.

    06-4147

    lndice para catlogo sistemtico: 1. Historiografia 907.2

    [2011]

    CDD-907.2

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA.

    Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002-So Paulo -SP Telefone: (n) 3707-3500 Fax: (n) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

  • Hohe Cultur verlangt, manche Dinge ruhigunerkliirt stehen zu lassen. [A alta cultura requer que algumas coisas permaneam tranqila-mente no esclarecidas.] Friedrich Nietzsche (1876) Nachgelassene Fragmente 1875-1879, Giorgio Colli e Mazzino Montinari (orgs.), DTV - Walter de Gruyter, Berlim-New York, 1988, 356

    [ ... ] Die Sprachschwierigkeit im Unterscheiden kann den Unters-chied der Sachen nicht aufheben. [ [ ... ] A dificuldade em diferenar verbalmente as coisas no deve suprimir a diferena entre elas.] Immanuel Kant (1788) ("ber den Gebrauch teleologischer Prinzipien in der Philosophie"), Kants Schriften zur Asthetik und Naturphilosophie, Manfred Frank e Vronique Zanetti (orgs.), Deutscher Klassiker Verlag, Frankfurt a.M., 1996

  • acompanha de nenhuma formulao terica. Justifica-se praticamente por livrar do esquecimento (lethe) aqueles cujos feitos nomeava. Mas isso no uma justificao terica. Ao contrrio, os discursos que, a seguir, se diferenciam do epos homrico, seja o historiogrfico, seja, sobretudo, o filosfico, trazem consigo essa pretenso. Enquanto a filosofia, especializando-se, desde seu princpio, em pensar o pensamento, estabelecia uma complexa rede conceitua!, com Herdoto e logo Tucdides, a escrita da histria contentava-se em separar-se de Homero e registrar o que ouvira e vira, ou apenas o que lhe fora contem-porneo. Sua diferena com a pica e os gneros poticos que se acrescentam por certo existe, embora seja muito pouco desenvolvida. Que segurana havia na altheia que a escrita da histria se empenhava em registrar? De qualquer modo, ao passo que os gneros poticos, sobretudo a tragdia, ho de esperar pela Potica aristotlica, o prprio hstor oferecia uma margem de justificao no s prtica. Contudo, conquanto minimamente enunciada, essa pequena margem ainda diminuiria, fosse porque a Potica no encontrou continuadores altura, fosse porque a historiografia romana pouco se interessou em desenvolver aquele mnimo que herdou dos gregos. Eis que nos deparamos com o centro de gravidade que estar presente em todo este livro: a carncia de uma reflexo comparativo-contrastiva entre a poesia e a histria.

    No parece exagero dizer que essa carncia ser um dos estigmas do Oci-dente. Haver momentos, como o que longamente se desenrola entre Roma e a volta renascentista de investimento nas letras antigas, em que a diferena, embora no de todo esquecida, submerge ante o prestgio da retrica. Outro, ao invs, a que corresponder a concepo moderna de histria, em que sua oposio ser ressaltada. o que estamos habituados a chamar de concepo positivista da escrita da histria, cuja prtica, conforme se infere do "Ancient history and the antiquarian" de Momigliano, tem um curso mais longo do que se costuma pensar. Contra ela, j se contrapunha, em 1903, o Thucydides muthistoricus, de Francis M. Cornford. Muito embora seu intento no tenha passado despercebido entre seus pares e seu livro continue a ser reeditado, foi neutralizado e j no representa ameaa ao establishment. Em data mais recente, uma nova reao contra a drstica separao entre as expresses historiogrfica e potica foi feita por Hayden White. Como no mais a referiremos depois e porque tambm j foi neutralizada pelos historiadores,1 cabe sumarizar seu argumento.

  • A disciplina historiogrfica encontra amplo reconhecimento e se insti-tucionaliza a partir do comeo do sculo XIX:

    Cadeiras de histria foram fundadas na Universidade de Berlim, em 1810, e na Sorbonne, em 1812. Logo depois se estabeleceram sociedades para a edio e publicao de documentos histricos. [ ... ] As subvenes governamentais a essas sociedades - inspiradas nas simpatias nacionalistas do tempo - vieram a seu devido tempo, na dcada de 1830. (White, H.: 1973, 136)

    A profissionalizao do historiador era ento determinada por uma concepo documentalista, em que um empirismo ingenuamente objetivo ocupava o lugar de qualquer teorizao conseqente:

    O "mtodo histrico" - como os historigrafos clssicos do sculo XIX entendiam a expresso - consistia numa disposio de ir aos arquivos sem quaisquer preconcepes, estudar os documentos l encontrados e em seguida escrever um relato (story) acerca dos acontecimentos atestados pelos documentos, de modo a fazer do prprio relato a explicao "do que tinha acontecido" no passado. A idia era deixar a explicao emergir naturalmente dos prprios documentos e depois exprimir seu significado em forma de relato. (Id., 141)

    Por isso, da "espcie de revoluo conceitua! que acompanhou a trans-formao em campos como os da fsica, da qumica e da biologi', se distinguia a "instruo no 'mtodo histrico', [que] consistia essencialmente na reco-mendao de usar as tcnicas filolgicas mais refinadas na crtica dos do-cumentos histricos, combinada com um conjunto de prescries acerca do que o historiador no devia tentar fazer com base nos documentos assim criticados" (ih., 136).

    Por mais que as afirmaes de White fossem contundentes, os historiadores no poderiam argi-las de falsas ou preconceituosas. O combate que lhe moveriam haveria de se travar contra o que o autor apresentasse como sua alternativa. Para maior clareza expositiva, comecemos pela recorrncia ao ensaio "The Historical Text as Literary Artifact", que j supunha montada a mquina de guerra do Metahistory. E a me dispara sua questo bsica: "Qual o estatuto epistemolgico da explicao histrica [ ... ] ", quando se lhe considera

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  • "puramente como um artefato verbal que intenta ser um modelo de estruturas e processos h muito passados e, por isso, no sujeitos a controles quer experimentais, quer observacionais" (White, H.: 1974, 81-2)? A pergunta anuncia o ferro da resposta:"[ ... ] Reluta-se, em geral, em considerar as narrativas histricas como o que so mais declaradamente: fices verbais, cujos contedos so to inventados como achados, e cujas formas tm mais em comum com seus correlatos na literatura do que nas cincias" (id., 82). O circuito que formam a questo e a resposta sintetiza o que expunha largamente na "In-troduo" do Metahistory. O ferro tem duas pontas: o relato historiogrfico uma .fico verbal e deve ser abordado como um artefato verbal. Mas o autor no sente a necessidade de se indagar sobre a fico, crendo bastante precisar seus procedimentos bsicos. Para tanto, baseando-se na Anatomy of Criticism ( 19 54), de Northrop Frye, White distingue quatro modos de formao do enredo (emplotment) historiogrfico: o romanesco (Romantic), o trgico, o cmico, o satrico (White, H.: 1973, 29). J a designao do primeiro apresenta o problema lingstico da peculiaridade do termo "romance", em ingls. Ao justificar sua derivao etimolgica, "romantic", White procura, simultaneamente, manter a oposio entre "romance" e "novel" e a divergncia semntica entre "romance" e "romantic". Mas sua comparao com a fonte declarada nos deixa cticos no s quanto adaptao que faz como ao propsito de sua abordagem. Lia-se no terico canadense: "No romance, a suspenso da lei natural e a individualizao dos feitos do heri reduzem amplamente a natureza ao mundo animal e vegetal" (Frye, N.: 19 54, 36). E sua distino quanto ao novel - "no sendo nem superior aos outros homens, nem a seu meio, reagimos ao sentido de sua humanidade comum e pedimos ao poeta os mesmos cnones de probabilidade que encon-tramos em nossa prpria experinci' -d lugar ao que chama de "modo baixo mimtico" (id., 34), da fico realista. Hayden White, de sua parte, reduz a bem marcada diferena a: "O Romance fundamentalmente um drama de auto-identificao simbolizado pela transcendncia do mundo da experincia pelo heri, por sua vitria sobre ele e sua liberao final dele" (White, H.: 1973, 8). Desaparece quase por completo a oposio "romance/novel'', assim se jus-tificando o uso indiscriminado pelo autor de "romance" e "romantic". Por que Hayden White sente a necessidade de abrandar a distino, a ponto de quase apag-la, seno porque o declarado procedimento bsico no se ajusta passa-gem da literatura2 para a escrita da histria? Para comprov-lo, basta recordar

  • que Frye dava como exemplo de "romance" Venus and Adonis, de Shakespeare, ao passo que o romanesco de White concretizado pela obra de Michelet ... A "adaptao" aproxima obras de fisionomia to diversa que difcil admitir que se fundem em algum procedimento bsico. Em sua defesa, porm, poder-se-ia alegar que White aceita as crticas endereadas classificao de Frye como reducionistas, argumentando que, apesar disso, a emprega porque "serve muito para a explicao das formas simples de elaborao de enredo encontradas em formas de arte 'restritas' como a historiografia" (ih., nota 6, 8). Mas a defesa apenas abre outra frente de acusao: a narrativa historiogrfica precisa ser reduzida a uma forma de arte restrita para que o empreendimento prossiga (por esse raciocnio, a narrativa literria, com sua evidente maior riqueza de recursos que a historiogrfica, tornar-se-ia, de sua parte, "restrita'', ao ser comparada com outra forma discursiva: a filosfica, por no poder competir com sua comple-xidade conceitua!, a cientfica etc. etc.). Para o propsito do autor, a diversidade fundamental das metas discursivas no precisa ser levada em conta. Assim, os enredos romanesco, trgico, cmico e satrico so tomados como prprios "percepo esttica" ( ib., 27), sem que ache necessrio justificar a prpria ligao com o esttico.

    Embora cada vez mais ctico, ainda se argumenta que aqueles emplotments encontraram sua primeira manifestao no epos homrico; que, historicamen-te, portanto, se articulavam a uma experincia que, depois, ser considerada de ordem esttica. Mas o uso de um argumento histrico para demonstrar a "fam-lia" a que o discurso historiogrfico pertence no um crculo vicioso? No seria menos embaraoso relacionar diretamente as formaes de enredo destacadas com a prpria experincia cotidiana? Pois no se negaria que o relato de uma experincia cotidiana pode se configurar de maneira romanesca (ou fabulosa), trgica, cmica ou satrica. Obviamente, contudo, esse caminho no serviria inteno de White. O que d razo a LaCapra quando acusa seu colega de oferecer "um anlogo estruturalista" do modelo cientificista da covering law (de C. G. Hempel), quintessncia da proposta positivista (LaCapra, D.: 1985, 35).

    A crtica de LaCapra, no entanto, no destaca o que h de valioso na reflexo de Hayden White: abstraindo-se a tentativa de estabelecer uma derivao entre as formas poticas e o relato historiogrfico, bastante positivo reconhecer que os emplotments supem modos pr-configuracionais abrangentes, i. e., que no se limitam a caracterizar este ou aquele modo de expresso - por isso mesmo

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  • sua primeira incidncia se d no cotidiano, e no em um discurso formalizado. O estorvo se introduziu quando White definiu as formaes de enredo como originariamente poticas, bem como ao tentar torn-las exaustivas. Em outras palavras, em considerar os modos pr-configuracionais como verbalmente exaurveis. Essa admisso leva-nos a acrescentar: no exato momento em que a linguistic turn encontrava, com o Metahistory, um de seus instantes capitais, ela descobria seu calcanhar-de-aquiles. Explicando-o: a narrativa, por certo, s se efetiva ao empregar um modo pr-configuracional, i. e., ao se concretizar em uma disposio verbal. Mas a impossibilidade de descobrir procedimentos expressivos efetivamente comuns - cf. acima a confuso entre "romance" e "romantic" - no prenuncia, na experincia humana, a existncia de um momento em que a palavra ainda no dispe de uma precisa discriminao discursiva, remetendo, pois, sua mera incidncia cotidiana?

    Ainda que no reduzamos a escrita da histria a um somatrio de fatos, ainda que o saibamos selecionados pelo ponto de vista que presidiu sua compreenso (Simmel), a narrativa-do-que-houve j apanha a experincia no meio do caminho. O hiato decisivo no se d entre o evento e seu registro, mas sim entre o que motivou o evento e sua formulao verbal. Da Koselleck propor-se "tematizar as condies das histrias possveis" (Koselleck, R.: 198 7, 98), tendo em conta, conjunturalmente, os pares formados por "poder morrer e poder matar", "amigo e inimigo", "dentro e fora", como formantes da espacialidade histrica, "conflito de geraes", "senhor e escravo". Essas condies pr-verbais impedem que a escrita da histria seja entendida como um ramo da herme-nutica.

    Muito embora o prprio Koselleck no tenha tido tempo seno de esboar sua concepo, avancemos a razo por que a consideramos em consonncia com o que tomamos como a contribuio de Hayden White: a afirmao dos modos pr-configuracionais. Na verso lvi-straussiana do estruturalismo, a dificuldade encontrada pelo derivacionismo de Hayden White era neutralizada pela re-corrncia ao modo de atuao fonolgico de um inconsciente "ciberntico". Mas a soluo apresentada pelo antroplogo no parece passvel de ser generalizada. Hayden White nem sequer a menciona ao tratar dos tropas geradores - a metfora, a ironia, a metonmia e a sindoque, as trs ltimas entendidas como espcies da primeira (White, H.: 1973, 34).Ao assim fazer, mantm-se no nvel da linguagem articulada, recaindo, por conseguinte, na advertncia de Koselleck

  • contra o imprio da hermenutica. Mas, supondo um leitor minucioso que, depois de haver lido o livro que aqui apenas se prefacia, retornasse a essa passagem, podemos imaginar que ele nos dirigisse esta pergunta: se se considera que a verdadeira contribuio de Hayden White no est em sua tese central, mas na noo de modos pr-configuracionais, e isso na medida em que alarga o cami-nho para U:ma teoria das histrias possveis, fundada em motivos pr-verbal-mente vivenciados, por qual razo isso no afeta a prpria poesia?! Por que no nos atrevemos a declarar, semelhana do que fez Koselleck com a escrita da his-tria, que, como texto verbal, tambm a poesia se enraza em um momento pr-verbal? Porque a poesia a atualizao do princpio do ficcional que, por sua con-dio de como se, no pretende ser a ltima palavra; o ficcional um princpio fundador cuja regra bsica duvidar de si mesmo ( cf. Seo B).

    Com a hipottica resposta ao hipottico leitor temos a oportunidade de levantar a questo das aporias que orientam o que chamamos de experincias antropolgicas fundamentais (cf. Seo A, cap. 2, # 4). Tais experincias se enrazam em aporias de base. Se prprio de uma aporia tomar sua afirmao inicial como indemonstrvel-ponto zero em que o zero no se esclarece-, seu risco est em converter sua ausncia de poros - a-poria - em blindagem que impede seu autoquestionamento. Ao menos para quem tem conhecimento pequeno sobre a religio, esse risco .iminente no discurso religioso, e consiste na tendncia em converter em dogmas suas afirmaes sobre o sensvel e o supra-sensvel. O contrrio do que sucede no discurso ficcional porque este no postula uma verdade, mas a pe entre parnteses. J a historiografia tem um trajeto peculiar: desde Herdoto e, sobretudo, Tucdides, a escrita da histria tem por aporia a verdade do que houve. Se se lhe retira essa prerrogativa, ela perde sua funo. Torna-se por isso particularmente difcil ao historiador no considerar prova aportica o que apenas resulta do uso de suas ferramentas ope-racionais. As tentativas de Cornford e Hayden White de aproxim-la do potico procuravam conjurar essa dificuldade; terminaram, contudo, por criar um desvio to grave quanto: converter a escrita da histria em uma modalidade de fico. A tentao de aceit-las maior porque, de imediato, concordamos com a validade da descrio que Hayden White apresenta da operao historio-grfica: como nela os eventos no podem ser explicados "como 'efeitos' de foras mecnicas': a sua explicao no estritamente cientfica. Torna-se ento imi-nente a alternativa:

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  • Outro modo de dar sentido a um conjunto de eventos que parece estranho, enigmtico ou misterioso em suas manifestaes imediatas consiste em codificar o conjunto em termos de categorias culturalmente estabelecidas, como conceitos metafsicos, crenas religiosas ou formas de relato. O efeito de tais codificaes familiarizar o no familiar; em geral, este o modo da historiografia, cujos "dados" so sempre imediatamente estranhos, para no dizer exticos, simplesmente em decorrncia de sua distncia quanto a ns no tempo e de sua origem em uma forma de vida diferente da nossa. (White, H.: 1974, 86)

    Ao relermos a passagem, porm, nos habilitamos a estabelecer uma distino entre a familiarizao resultante da adaptao ideolgica - a exemplo do que sucedeu com a Potica aristotlica ante as normas que deviam reger o teatro clssico francs - e a proveniente do prprio lugar espao-temporal em que se cumpre a anlise historiogrfica. A impermeabilidade da aporia histo-riogrfica contornvel no primeiro caso; no no segundo. Isso pois a escrita da histria responde, por um lado, a uma necessidade antropolgica bsica -conceber como fomos, o que fizemos para nos encontrarmos onde estamos, se no, que futuro imediato nos aguarda-e, por outro, no investigao do tem-po, se no a partir da aporia da verdade do que ocorreu. Para que fecunde a poro-sidade contra a corrente, o historiador, por certo, h de contar com a contri-buio dos outros cientistas sociais e com a reflexo filosfica. A contribuio do discurso literrio menos direta, pois o ficcional s gera uma "metfora do conhecimento" (H. Broch).

    Em suma, a carncia de teorizao suficiente acerca das escritas da histria e da literatura o centro de gravitao que explica a composio deste livro. Para tanto, disporemos basicamente de uma ferramenta: o operador chamado discurso ou formao discursiva. Na Seo A, a considerao de ensaio de mile Benveniste nos permitir ampliar sua caracterizao, comeada em livro anterior [O redemunho do horror. As margens do Ocidente (2003; 2' ed., 2011)]. Mas ela no ser suficiente para abordar o seu prprio ponto de partida. o que se deve agora formular.

    O originador do que entendemos por discurso ou formao discursiva foi o artigo de William James, "The Perception of Reality", publicado na revista Mind, em 1889, e logo acolhido, com acrscimos, em The Princples of Psychology ( 1891). James partia de uma indagao sobre o fenmeno da crena: "Sob quais

  • circunstncias pensamos ser as coisas reais?" (James, W.: 1889, 287). No basta que o objeto seja captado pelamente; dele se exige ter realidade. "A crena o [ ... ] estado mental ou funo de conhecer a realidade", que se peculiariza por ser "uma espcie de sentimento mais ligado s emoes do que outra coisa qualquer" ( id., 283). Provocadora do "sentido de realidade': a crena a condio para o consentimento que, de sua parte, provoca "a cessao da agitao terica" (id.). A inquietao terica concerne realidade do que se afirma ou suficincia do afirmado. A crena, portanto, postula a "absoluta realidade" de algo:" Qual-quer objeto que permanece no contraditado ipso facto acreditado e postulado como absoluta realidade" (ib., 289). Por decorrncia, o oposto da crena no a descrena, mas a dvida. O fato de estarmos sincronicamente submetidos crena e dvida significa que "em primeiro lugar, estamos propensos a pensar diferentemente acerca do mesmo; em segundo lugar, quando assim o fazemos, podemos escolher a qual modo de pensar aderiremos e qual descartaremos" (ib., 290). O que descartamos ser considerado fantasia, iluso. "Para a mente genuinamente filosfica [ ... ] ainda tem existncia, mas no a mesma existncia que as coisas reais" ( ib., 291). Um e outro formam sub universos que, por sua vez, se multiplicam. Dessa maneira, dentro do mundo que se cr ter uma realidade absoluta, "h o mundo do erro coletivo, os mundos da realidade abstrata, da realidade relativa ou prtica, das relaes ideais e o mundo sobrenatural" (ib., id.). Sem nos determos nos "subuniversos" que James descreve, limitemo-nos a assinalar que cada um considerado real de acordo com seu modo prprio, sem que, para o homem comum, haja o empenho de articul-los entre si. Disso resulta que "proposies referentes aos diversos mundos sejam constitudas a partir de diferentes pontos de vista': permanecendo a conscincia, mesmo a da maioria dos pensadores, nesse "estado mais ou menos catico" (ib., 293). O homem em geral, porm, no se sente imerso no caos de pontos de vista heterogneos. Ao contrrio, o sub universo que lhe "interessante e importante" considerado real, e os outros relegados posio de acessrios ou mesmo de irreais: "A realidade significa simplesmente a relao com nossa vida emocional e ativa" (ib., 295). Por conseguinte, "a fons et origo de toda a realidade, quer do ponto de vista absoluto ou prtico, [ ... ] subjetiva, somos ns mesmos" (ib., 296-7). (Acrescentemos: a validade da descrio independe de ser heterodirigida ou autocentrada a concepo socialmente vigente de sujeito.) No h nada de estranho, portanto, que os subuniversos no tenham o mesmo peso para todos.

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  • Para o homem comum, o real por excelncia se confunde com o que, para ele, "o vivo e permanente'', enquanto, para um pesquisador, "uma experincia rara [ ... ] provavelmente julgada mais real do que uma permanente, se for mais interessante e excitante" (ib., 301). Sua preferncia, contudo, s se impor quando se verificar que o fenmeno raro pertence e se integra "ao mundo da ex-perincia regularmente sensvel" ( ib., ib.): "Os objetos concebidos devem mostrar efeitos sensveis ou, do contrrio, sero desacreditados" (ib., ib.). Para o estabe-lecimento da crena no basta a sensao que desperta, seno que passe pelo teste de realidade, i. e., que se revele existente fora da mente de quem a registra. Da James concluir: "A prpria palavra 'real' , em suma, uma fmbria (fringe)" (ib., 320).

    Encontramos aqui o ponto decisivo do que extramos da reflexo jame-siana. Ser, do ponto de vista humano, a realidade uma fmbria significa que no a vivenciamos como um territrio contnuo, apenas reconhecido a partir de seu registro pelos rgos dos sentidos. Quando, portanto, nos dizemos que realidade o que se pe diante de ns e provoca reaes, empregamos uma tosca lgica a posteriori, pois convertemos em experincia passiva o que, na verdade, depende da participao ativa da subjetividade. Mais relevante que essa concluso (elementar) o fato de a fmbria privilegiada ser compartimentada e hetero-gnea, respondendo a interesses discordes entre si. A realidade ento consti-tuda de regras diferenciadas, que coma'ndam nossa relao com os "territrios" componentes dessa fringe.

    O artigo de William James foi fundamental para compreendermos: a) o papel decisivo da subjetividade no que os grupos humanos consideraro realidade absoluta, compreendendo-a, no entanto, como o que se afirma objetivamente, por si prprio; b) que a dita realidade absoluta "escuta" apenas uma parcela; c) que essa parcela (fringe) formada por vrios "territrios", discrepantes entre si e hierarquizados de acordo com os interesses do agente.

    Havendo sido capital para a compreenso da construo da realidade -expresso que s se generalizaria no sculo XX-, o artigo de James, contudo, apenas esboava a noo de fringe. Para sua ampliao, ser decisiva a reflexo, feita dcadas depois, por Alfred Schtz. Ela se cumpre pela concepo das "provncias finitas de significao'', condensada em "On Multiple Realities" (1954). Seu argumento ser desenvolvido pelo relacionamento entre o que forma a realidade cotidiana e a "contemplao terica, cientfica" (Schtz, A.:

  • 1954, 208). Para a "atitude natural", i. e., a assumida pelo homem em geral, "o mundo desde o comeo no o mundo privado do indivduo isolado, mas um mundo intersubjetivo, comum a todos ns, em que temos um interesse eminentemente prtico e no terico" (id., 208). Interessa-nos menos a discriminao das experincias essencialmente presentes, i. e., no acom-panhadas de uma atitude reflexiva, do que aquilo que dir das aes voltadas para o mundo. A seu propsito, Schtz distingue as maneiras como o agente experimenta a si prprio, i. e., de acordo com o modo como se tematiza:

    Vivendo o presente intenso em seus atos em processo, o eu se experimenta como o originador das aes em andamento e, assim, como um eu total e indiviso. [ ... J O eu agente, e s o eu agente, experimenta tudo isso modo presenti e, experi-mentando-se a si como autor do trabalho em feitura, pensa-se como uma unidade. [ ... ] Mas, se o eu, numa atitude reflexiva, volta aos atos realizados e os encara modo praeterito, essa unidade se estraalha. O eu que cumpriu os atos passados no mais o eu total e indiviso, mas sim um eu parcial, o executor desse ato particular que remete a um sistema de atos correlacionados a que ele pertence. (Id., 216)

    Dando um encaminhamento diverso ao modo de agir do indivduo, a fringe que James ainda via atualizando-se fora do sujeito, embora dependente de sua iniciativa, passa a incidir sobre ele prprio. Nosso modo de agir no s subtrai e destaca da realidade material o que importa para seus interesses seno que define o prprio modo como nos vemos: vemo-nos como unos diante do ato em operao e fragmentados diante do ato passado, sobre o qual refletimos. Essa mudana de viso de si prprio a fonte do que sucede na provncia da "realidade especfica da vida cotidian' (ib., 223) -provncia que ser apenas uma entre tantas, todas elas, contudo, marcadas pela mesma tematizao variada. "Falamos em provncias de significao, e no em subuniversos, porque a significao de nossas experincias, e no a estrutura ontolgica dos objetos, que constitui a realidade. Da chamarmos um certo conjunto de nossas experincias uma provncia finita de significao se todas elas apresentam um estilo cognitivo especfico[ ... ] (ib., 230, grifo meu). Tambm nos importam menos as diferen-ciaes propostas pelo autor entre as provncias finitas-"o mundo dos sonhos, das imagens (imageries) e fantasmas, especialmente o mundo da arte, o mundo da experincia religiosa, o mundo da contemplao cientfica, o mundo ldico

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  • da criana e o mundo do louco" (ih., 232 )-do que a observao de que cada um tem seu "estilo cognitivo': o seu modo especfico de tratar a linguagem, i. e., de submet-la a regras especficas de tratamento.

    De William James a Alfred Schtz, o que se entende por realidade teve seu processo de fragmentao acentuado - em vez de um self que seleciona uma fmbria da realidade, temos um eu que se v a si mesmo de maneira diferenciada, e uma realidade parcelada em provncias finitas, a que se conformam "estilos cognitivos" tambm distintos.

    Com o terceiro nome decisivo para o que procuramos, Erving Goffman, essa multiplicao fragmentada atinge os prprios estilos cognitivos. verdade que o antroplogo norte-americano s tematiza a rea do cotidiano. Se a provncia do cotidiano supe um estilo comum, ativo e no reflexivo, dentro dele, contudo, impem-se subestilos diferenciados. Ou seja, dentro do coti-diano, praticamente cada situao interacional impe a adoo de uma moldura (frame) que o grupo assume como a adequada. No uso meu corpo e no emprego a linguagem da mesma maneira em uma cerimnia civil ou em uma cerimnia religiosa, no me comporto na rua como me conduzo ao assistir a um jogo de futebol, nem lido com meus familiares como fao com uma roda de amigos, em um bar etc. etc. A provncia finita do cotidiano abriga uma pletora de subestilos. A cada um deles, Goffman chama de frame. Podemos dizer que a moldura (frame) formada por um conjunto de expectativas que se configura na presena de uma certa interao. Essas expectativas abrangem a conduta do agente e o que se aguarda de seu parceiro. Pelo frame, estabelece-se uma percepo seletiva.3

    Para nosso propsito, suficiente a breve apresentao das idias que destacamos dos trs autores. Agora podemos acrescentar: em comum, eles assinalam a falcia da distino drstica entre os atos verbais comuns e os atos reconhecidamente de representao. Costumamos crer que os primeiros se limitariam a transmitir informaes extradas do mundo, o que as afianaria ou daria base para que as recusssemos, ao passo que os atos de representao apontariam para um palco real ou suposto, sendo retricos e artificiais. Indire-tamente, Goffman nos ensina que a retrica nos acompanha em cada situao do cotidiano. Portanto, no ser por ela que poderemos definir uma situao dis-cursiva. Que uma formao discursiva seno o conjunto histrico das "provn-cias finitas de significao", contendo as molduras historicamente adequadas a

  • cada uma? Cada discurso, portanto, supe uma meta particularizada que preside um modo de interao. Acrescente-se ainda: as diferenas discursivas no formam blocos fechados, que impediriam o contato com outro discurso e bloqueariam sua passagem. Assim como os subestilos dos frames servem de alerta para os parceiros de que no se confundam quanto expectativa que preside cada um deles, os "estilos cognitivos", prprios a cada discurso, mostram sua diferenciao. Mas a propriedade dos frames no impede, terminantemente, sua transitividade, muitas vezes necessria. Dela d conta o que Goffman chama de key ou keying, entendendo-se a palavra no sentido musical de "clave". Assim como possvel transcrever uma pea musical noutra clave, assim tambm opera a keying. Nos termos do autor:

    Refiro-me aqui ao conjunto de convenes pelo qual uma certa atividade, j significativa em termos de alguma moldura fundamental (primary framework), transformada em algo ajustado (patterned) a essa atividade, mas visto pelos participantes como algo bem diferente. ( Goffman, E.: 197 4, 43-4)4

    Em sntese, a leitura combinada de W. James, A. Schtz e E. Goffman nos fez perceber a insuficincia da to valorizada "virada lingstica" (linguistic turn). Pela expresso se entende a reviravolta no estudo das humanidades, que deixa-ram de ter como guia a referncia na realidade para privilegiar a maneira como ela verbalmente trabalhada. Como o entendemos, o discurso compreende muito mais do que isso, supondo, afinal de contas, que a anlise da linguagem no se confunde com o exame das marcas verbais. A legtima abordagem do discurso no se efetiva por uma especializao da lingstica, mas por sua integrao no acervo das abordagens propriamente sociais.

    Aqui, tratamos da diferenciao entre os discursos da escrita da histria e da literatura. Na melhor das hipteses, esboamos a abordagem de um pequeno setor de um horizonte muito mais vasto.

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  • Referncias bibliogrficas

    GOFFMAN, E.: FrameAnalysis. An Essay on the Organization ofExperience (1974), Penguin Books, Harmondsworth, Middlesex, 1975.

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  • SEO A: A ESCRITA DA HISTRIA

  • 1. A historiografia nascente

    " ( ... ] As nascentes so insondveis" (Herdoto, Histrias, II, 28) " ( ... ] Das Begreifen des Menschen faBt nur die Mitte, nicht den Anfang, nicht das Ende" ("A compreenso humana apreende ape-nas o meio, no o comeo nem o fim") ( Gustav Droysen, Historik: 1882, 30) 1

    1. A ESCRITA DA HISTRIA DO PONTO DE VISTA DE UM ALIENGENA

    De um duplo ponto de vista, sou eu o aliengena. Desde logo porque no me interrogo sobre a histria como historiador ou, como nos casos clssicos de Hegel e Collingwood, por ser um filsofo. Importa-me a histria como es-tudioso da literatura. Mais precisamente, por me intrigar a falta de investimento terico suficiente na diferena entre fact and fiction ( cf. Finley, M. I.: 1985, 18). O problema talvez nem sequer tivesse maior impacto sobre mim se me mantivesse de acordo com a sinonmia entre literatura e fico. 2

    A investigao que ora se inicia parte do suposto de que a literatura tem fronteiras muito mais fluidas que a fico. Se, do ponto de vista de seus res-pectivos princpios de organizao, histria e fico so formaes discursivas

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  • diferenciadas, o problema se agua quando tratamos no de dois, mas de trs termos. Em suma, como terico da literatura que me ponho a questo da escrita da histria. Eis a primeira marca do estranho no ninho aqui presente.

    Ela se toma mais embaraosa quando sou obrigado a reconhecer a segunda marca: no sei grego, embora tenha escolhido tratar de historiadores gregos. Sempre considerei saudvel a regra de no tratar de autores que no pudesse ler no original. Sou levado a desrespeit-la porque a presena, na tradio ocidental, de Herdoto e Tucdides os toma indispensveis indagao que me propus. Prescindir deles porque no posso apreci-los em sua formulao original equivaleria a dar um tratamento sofstico s epgrafes escolhidas: poderia dispens-los porque as nascentes do Nilo so insondveis e temos de nos contentar com o que est entre o comeo e o fim. Mas Herdoto e Tucdides no so o princpio da escrita da histria; so apenas os primeiros historiadores de quem possumos os textos integrais. Tornam-se os primeiros com os quais comea a questo que nos perturba: por que no os considerar pertencentes mesma linhagem homrica? Bastaria saber que eles no queriam ser assim figurados, se a razo de sua recusa - falar no de acordo com a Musa, mas a partir das investigaes que reuniram ou do que viram - veio a ser cons-tantemente contestada? Por que ento no considerar o questionamento de um e outro como indcio de pertencerem ao mesmo campo? Mas qual campo, o da literatura ou o da fico? A soluo fcil jogaria fora a criana com a gua do banho.

    2. SINTOMAS DO PROBLEMA

    No livro que publicou pouco antes da morte, o emrito historiador ingls M. I. Finley acusava seus colegas de se recusarem a reconhecer que a oralidade dominante no sculo v a.C. criava o problema insolvel da ausncia de su-ficientes fontes confiveis: "Partimos da premissa errada de supor que os gregos e os romanos consideravam o estudo e a escrita da histria essencialmente como fazemos" (Finley, M. I.: 1985, 14). Com a extrema sinceridade dos que sentem a proximidade da morte, Finley considerava a impropriedade da concepo de histria que se elaborara desde finais do sculo xvn, com sua nfase no con-fronto das fontes e na verificao de sua autenticidade, a qual no era minorada

  • pelos achados arqueolgicos, pois estes, ainda que se acrescentem s fontes escritas, no fornecem "um esquema conceitua! teoricamente fundamentado" (id., 18).

    A justa advertncia nos fez pensar. No deveramos nos restringir queles que, de antemo, concordam com a observao de Finley? Mas se o fizssemos no retrataramos o estado atual dos estudos sobre a historiografia grega e, em conseqncia, no nos habilitaramos a levar adiante nossa questo parti-cularizada. Preferimos uma soluo intermediria: partir de abordagens con-formes ao padro mais comum e ento apontar para duas ( C. Meier e F. Hartog) excepcionais. Aquelas indicaro o tom dominante, de que estas divergiro, embora aqui no tratadas detalhadamente.

    Comecemos por trs abordagens recentes sobre a relao entre histo-riadores e poetas, como amostragem da reflexo sobre a questo, por espe-cialistas em histria antiga. So eles K. Dover, Simon Hornblower e J. L. Moles. Procurar-se- por eles esboar o horizonte da questo.

    O artigo do erudito ingls Kenneth J. Dover sintomtico dos conflitos interpretativos atuais. Referindo-se a uma tradio que se estende desde Dionsio de Halicarnasso, passa pelos comentadores medievais e se prolonga alm do Renascimento, Dover observa a diferena de tratamento conferido a historiadores e no-historiadores:

    [ ... ] Quando se trata de estudar um autor que no um historigrafo, os his-torigrafos so tratados como autoridades e seus enunciados como dados ri-gorosos (hard data); mas quando o crtico ou o erudito se volta para uma obra historiogrfica, trata-a como completa e evidente (self-contained and self-explanatory). (Dover, K. J.: 1983, 56)

    A relevncia da distino est em que os "dados rigorosos" concernem a questes gramaticais, lexicais e estilsticas, ao passo que a pergunta "que espcie de escritor era ele" (i. e., o historiador) no era considerada. O descaso pela especificidade da escrita da histria, agravado pela relevncia que a retrica alcanaria, sobretudo entre os romanos, a partir do sculo IV a.C., levaria Flvio Josefo, no sculo I d.C., a escrever: "Perderia meu tempo por uma ninharia se fingisse ensinar aos gregos aquilo que eles sabem melhor do que eu': pois seus prprios autores se acusam mutuamente por suas incorrees e

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  • mentiras, e todos, depois de Timeu, "a Herdoto. [ ... ] E no s, o prprio Tucdides acusado por alguns de haver escrito o que falso, embora parea ter-nos dado a histria mais exata dos assuntos de seu prprio tempo" (Josefa, F.: -, 1, 3, 774-5).

    Tal estado de coisas, com o conseqente menosprezo de a escrita his-toriogrfica conter o registro do que houve, se agravaria com a expanso e a con-solidao do cristianismo. Assim Nancy Struever acentua que a historiografia renascentista no seria compreendida sem se levar em conta o processo de cristianizao da retrica. Ao passo que, entre os contemporneos de Tucdides e, depois, em Roma, a retrica fora beneficiada pela descrena introduzida pelos sofistas quanto existncia de princpios primeiros e, portanto, pela fora que assumiam as tcnicas de persuaso, a cristianizao da retrica fora nociva aos historiadores fosse pela subsuno do lgos a princpios que se julgavam inquestionveis, fosse pela linguagem suntuosa:

    Ao passo que Grgias vira as tcnicas retricas como mediadoras de uma realidade dionisaca, a realidade preexistente suposta pelos dialticos uma realidade espiritual de necessidade absoluta, alm dos fenmenos e da histria. ( Struever, N .: 1970, 34)

    E, alm do marco renascentista, que mereceria um tratamento especfico, como esquecer a fora que a retrica cristianizada, i. e., subordinada teologia, conservar no barroco? Recorde-se de passagem a reflexo de seu mais famoso sistematizador. Para Emmanuele Tesauro, nenhuma diferena existia entre as obrigaes textuais a que esto sujeitos o poeta e o historiador: a ambos se im-punha atentar seriamente para a composio escrita de seus argumentos. Na passagem que traduzimos, Tesauro considera exclusivamente o "estilo hist-rico". Ele visto entre as "figuras argutas", consistentes na "significao en-genhosa" (Tesauro, E.: 1654, 121). Da resulta sua crtica aos romanos Salstio e Tcito. A Salstio, "que, ostentando a breve eloqncia em vez da eloqncia e mais falando com o esprito do que com a voz, mutila os ltimos ps do perodo" e a Tcito, porque seus perodos "vo tropeando, entorpecidos pelo mesmo morbo" (id., 153 ). Por isso mesmo no acidental que, fora do centro de irradia-o do cristianismo institucionalizado, um contemporneo de Tesauro, Hobbes,

  • desse um basta orgia retrica. Sem se opor frontalmente palavra em funo de adorno, escrevia:

    Em uma boa Histria, o Julgamento deve ser eminente; porque a qualidade (goodness) consiste no Mtodo, na Verdade e na Escolha das aes que sejam mais proveitosas em serem conhecidas. A Fantasia no tem lugar, mas to-s adornar o estilo. (Hobbes, T.: 1651, 1, 8, 51)

    No pensador poltico, a histria esboava a recuperao da aporia grega, i. e., a sua preocupao primeira com a verdade. Ela se generalizar a partir do sculo XIX. E que direo diversa poderia ser reconhecida naquele que se tem como o melhor conhecedor da histria antiga na atualidade, Arnaldo Momigliano? Na abertura de seu ensaio sobre o Metahistory (1973) de Hayden Whitedir:

    Devo comear por dizer que a razo bsica de meu desacordo com Hayden White [ ... ] antes acerca do futuro do que a propsito do passado. Temo as conseqncias de sua abordagem da historiografia porque eliminou a pesquisa da verdade como a tarefa principal do historiador. (Momigliano, A.: 1984, 49)'

    Ao nos referirmos passagem de Momigliano, podemos entender por que se nos imps o breve excurso. O texto de Kenneth J. Dover contrape o critrio esboado por Hobbes ao que sucederia contemporaneamente. A Dover muito da prtica atual parece um infeliz retorno indiferenciao dos antigos, dos escoliastas medievais, dos renascentistas e do barroco. Nos textos de muitos contemporneos, Dover verifica que "a conscincia do carter especial da historiografia fez-se de cera, empalicedeu e, sob certos aspectos, muito do que se tem escrito sobre Tucdides revive o esprito do que se escreveu sobre ele no mundo antigo" (Dover, K. J.: 1983, 56). O revival da indiferenciao resulta de os contemporneos terem passado a se preocupar com a construo da narrativa do historiador, deixando em segundo plano a pergunta: ''Aquilo que Tucdides aqui declara verdadeiro?" (id., ib. ). Voltaria, portanto, a se pr entre parnteses a questo da verdade, que s fora operacionalizada quando a escrita da histria deixou de ser uma disciplina auxiliar. certo que os antigos no s, em geral, ignoravam a especificidade da historiografia, seno que ressaltavam suas falhas

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  • e incorrees. Dover destaca a propsito a questo do discurso (speech) direto em Tucdides. Ao descrever seu prprio mtodo, admitia que os reproduzira "com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado" (I, 22). Sua prtica ento se tornou "matria de perptua controvrsia" (Dover, K. J.: 1983, 59 ), pelo menos "desde a metade do sculo passado" (id., ib. ), porquanto:

    A questo "est em que sua seleo de acontecimentos para a narrao e a seleo de ingredientes dentro de um acontecimento visando ao tratamento extensivo ou intensificao dramtica determinada por sua considerao de constantes ou padres" pode ser aplicada a uma obra de fico [ ... ]. (Id., 60)

    Mas seria esse motivo bastante para confundir a obra historiogrfica com a obra de fico? Assim sucede para os "estudantes de literatura antiga (que) ressaltam a 'compreenso de Tucdides como um todo', por meio das relaes internas - ecos, analogias, simetrias, assim como contradies - que podem ser descobertas em sua obra, e no a partir de suas relaes externas com os eventos" (ib., 59, grifo meu). A passagem significativa por definir a posio reativa do analista: destacar as "relaes internas" de um todo textual confundir a obra de Tucdides com Dafne e Clo ou com a Odissia (cf. ib., 60), em detrimento da abordagem historiogrfica, em que o todo textual vinculado s relaes externas, que remetem aos eventos e seu contexto. O critrio de seleo dos acontecimentos tambm se aplica a uma obra ficcional. Por isso, os dois critrios ho de ser cuidadosamente diferenciados: "Somente quando per-guntamos 'de fato, distorce ele e deturpa os acontecimentos para ajust-los?' reconhecemos a dimenso especial da historiografia" (id., ib.). Tucdides, portanto, at pode ser lido como autor de um texto self-contained and self-explanatory, mas ao preo de no se ver sua nota diferencial:

    perfeitamente possvel ler Tucdides como se ele tivesse escrito uma obra de fico criativa, ou os escritores hipocrticos como se o corpo humano fosse uma fantasia cientfica construda por um esprito desencarnado, mas s ao preo de supor que no sabemos que historigrafos e cientistas procuram fazer algo diferente do que fazem os poetas. (Ib., 61)

  • Supondo ter sido fiel leitura de Dover,4 torna-se vivel formular as questes que, explcita ou implicitamente, so destacadas:

    1. Enquanto defensiva, a interpretao de Dover afirma haver uma tradio saudvel, duramente conquistada, que hoje se mostra sob ameaa;

    2. Esse risco consiste em baralhar os critrios adequados de diferenciao do historiogrfico e do ficcional, reduzindo-os ao mesmo tipo de texto self-contained and self-explanatory,

    3. Dover estar correto se o tipo de leitura que ataca visar simplesmente homogeneidade do objeto "texto", a que de fato tendiam quer o modelo do new criticism, quer o de um desconstrucionismo estrito (Derrida e Paul de Man);

    4. Observe-se, contudo, que a preocupao com a linguagem do histo-riador, com suas estratgias expressivas, no tem como precondio neg-lo como autor de um discurso especfico e distinto do ficcional. Afirmar, como o faz Dover, que a ateno para o modo como o historiador seleciona o que relata s importa para verificar se distorce o que sucedeu chega a ser mais empobre-cedor que a posio que rejeita. O cuidado com a construo textual pressupe que j no se tome a linguagem como simples modo de referncia de contedos factuais. Preocupar-se com a construo do texto no supe considerar-se a verdade (altheia) uma falcia convencional; a procura de dar conta do que houve e por que assim foi o princpio diferenciador da escrita da histria. Ela a sua aporia.Analiticamente, porm, cabe mostrar os poros que nela se infiltram, assim como que altheia no se esgota no plano da factualidade;

    5. O uso rgido dos critrios de exterioridade e interioridade da construo textual prejudicial tanto ao objeto historiogrfico quanto ao ficcional.

    O pequeno ensaio de Kenneth J. Dover ter sido valioso se nos houver permitido atentar para o que h de justo na diferenciao que defende e de simplificador em seu argumento. O resultado pode nos parecer pobre, e de fato o . Vejamos se os ensaios a seguir referidos oferecem um horizonte mais amplo.

    Foram eles publicados no mesmo ano de 1993. O primeiro, da autoria de J. L. Moles, empreende uma discusso mais cerrada sobre o relacionamento dos historiadores com Homero. No o destacamos por sua novidade, mas por indicar de maneira ainda mais palpvel a posio generalizada entre os historiadores e analistas da historiografia:

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  • Por um lado, ambos os escritores [Herdoto e Tucdides] se vem a si mesmos como herdeiros da tradio da narrativa pica, especialmente como expressa na comemorao de Homero de uma grande guerra, na Ilada.Ambos tambm se vem como desenvolvendo o projeto construdo no poema de Homero (um projeto que, em si mesmo, trazia uma certa preocupao "histric'), i. e., analisar a causao e processo da guerra e do conflito e em faz-lo pela inveno de discursos significativos e pela seleo e apresentao de acontecimentos concretos. Por outro lado, ambos os escritores tambm se vem como comprometidos em um projeto que se distingue do da tradio potica por sua tentativa de estabelecer a verdade factual e em distingui-la da "inverdade" ou "falsidade" textual. (Moles, J. L.: 1993, 91)

    Como os dois aspectos so comprovveis pela mera leitura das obras referidas, no precisamos neles nos deter. Tampouco novidade que, dis-cordantes entre si, Herdoto e Tucdides atacam em comum a base homrica. Longe de ser ocasional, a discrepncia sistemtica, e onde o primeiro fala dos antigos picos ser para desacredit-los (cf., por ex., VI, 52). O mesmo suceder em Tucdides, que se empenha de igual "em depreciar a matria homrica e a exatido histrica de Homero" (Moles, J. L.: 1983, 100). Isso no impede que "mesmo em Tucdides, a tcnica de contrastar as caractersticas de Pricles e Clon por meio de ecos verbais precisos se baseie e parea ter em mira evocar o contraste de Homero entre Aquiles e Tersites" (id., 103). Portanto, os movi-mentos de separao e conjuno ocorrem simultaneamente. Como ento coorden-los? Para Moles, a questo bastante simples:

    Ento a obra de Tucdides histria ou literatura, anlise desapaixonada ou incitao emotiva, impessoal ou altamente pessoalizada, objetiva ou subjetiva, imparcial ou preconceituosa (prejudiced), simples ou retrica, verdadeira ou inverdica? A resposta h de ser: tudo isso, embora Tucdides tenha uma clara preocupao com a verdade e, nisso, com diferentes espcies de verdade. (Ib., 114)

    H duas maneiras de discutir o comentrio. A primeira, se tem a vantagem de seguir literalmente o texto, mais pobre: no nos surpreendam os termos com que se estabelecem as dicotomias valorativas. Importa ao autor que, embora admitindo haver marcas literrias na obra do historiador, este se define por seu serious concern with truth. A verdade como a-poros, corpo sem quebras ou

  • fissuras, constitutiva da histria. Desde que a aporia seja aceita, tolervel ou at mesmo aconselhvel que nela se reencontre o trabalho em que Homero fora o primeiro mestre: o trabalho com a linguagem. A preocupao com a verdade como prpria da histria admite que se reserve sua companheira-adversria, a poesia, traos ou desqualificantes ou de tolerncia condescendente. Mas, ao faz-lo, o historiador no danificaria o seu prprio objeto? A inquietao contida na pergunta frutificar melhor se considerarmos a segunda maneira de abordar a passagem.

    Parte-se da separao e conjuno simultneas entre o fazer historiogrfico e o potico. De sua afirmao resulta, por um lado, a determinao aportica da escrita da histria: esta assevera que houve o que acolhe textualmente. Para que a aporia - i. e., escrita da histria= inscrio da verdade - no seja sim-plesmente arbitrria, ser preciso que se acompanhe de um predicado de-monstrvel. Moles o explicita, em Tucdides, pelo ideal de clareza. Explicando por que o historiador privilegiava o que sucedia no presente, i. e., o que ele prprio podia haver visto, o privilgio da autpsia, escreve:

    A "clareza" das coisas que sucederam precisamente o que no se pode descobrir na histria passada, mas sim o que Tucdides "descobrira'', embora com dificuldade, acerca da guerra do Peloponeso. A "clareza", portanto, equivale verdade - um sentido muito comum da palavra grega saphes. (Moles, J. L.: 1993, 107)

    A clareza depende do realce dos "feitos" (erga) e no s do arranjo das palavras:

    Quanto aos fatos da guerra, considerei meu dever relat-los, no como apurados atravs de algum informante casual nem como me parecia provvel, mas somente aps investigar cada detalhe com o maior rigor possvel, seja no caso dos eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informaes de terceiros. (Tucdides: r, 22)

    Mas, ainda que no se ressalte o obstculo imediatamente reconhecido por Tucdides - a apurao ser dificultada porque os vrios testemunhos oculares

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  • ofereciam relatos dependentes de sua prpria posio quanto a eles (r, 22 )-, seu objeto, a guerra do Peloponeso, o obrigava a transigir com a imposta autpsia: tantos foram os massacres e os desastres que " [ ... ] os relatos dos tempos anteriores, transmitidos por tradio oral, mas muito raramente confirmados pelos fatos, deixaram de ser incrveis" (Tucdides: r, 23). E Moles conclui: ''Aqui, a historiografia pesarosamente contempla sua prpria inabilidade em abran-ger a realidade" (Moles, J. L.: 1993, 113). Da a necessidade pelo historiador em no se contentar "com sua austera nfase no valor cognitivo de sua obra", em empregar no s o lgos, "no sentido de 'razo'': mas tambm as pathemata, "no sentido de 'emoes"' (id., 112). Assim se explicaria a ampla explorao do trgico na historiografia da Antigidade. 5 Tucdides esquiva-se de seu prprio privilgio da autpsia, por se permitir uma composio de cunho trgico, ou por recorrer ao que considera constante na natureza humana.

    Sem nos determos na questo da constncia, que, obviamente, remete ao plano de uma subjetividade no motivada pela prpria viso - auto-opsis -, anote-se apenas que a prpria prtica historiogrfica obrigada a lanar mo de recurso que reservara ao poets. Para Moles, isso seria bastante para justificar a proximidade quanto sombra homrica e dos poetas trgicos. Mas tal forosa proximidade no prejudica o no confessado limite da aporia do historigrafo? Embora estejamos em um estgio bastante preliminar, aprofundemos a obser-vao de Moles. A transigncia de Tucdides diante do que antes parecia incrvel nos relatos de tempos passados, sua necessidade ento de recorrer dimenso trgica implicavam o reconhecimento pelo historiador de sua inabilidade em abranger a realidade. Ora, Hornblower, em obra a ser depois considerada, notava que, diferena de Herdoto, Tucdides reduzia o exame dos feitos humanos (erga) ao poltica e militar, deles excluindo a referncia aos monumentos (Hornblower, S.: 1987, 31), pois estes no seriam suficientes para dizer do verdadeiro poder das cidades ( cf. Tucdides: r, 1 O). A reduo que cumpria visava a destacar apenas a prova certa. Que ento significa a "inabilidade" acentuada por Moles seno que a deciso de privilegiar as aes (polticas e militares), por sua alta determinao concreta e comprovvel, deixava escapar a realidade? Por a se abre uma trilha para a distino e a mtua necessidade das escritas da histria e dos gneros literrios: a seu modo, cada uma delas contm um dispositivo que as capacita a lidar com a realidade. Embora se advirta que no estamos assim insinuando que a "totalidade" no s possvel, mas que dever

  • ser a categoria privilegiada, a trilha proposta, ao admitir a no-coincidncia dos dois enfoques, parece fecunda. Mas ainda no o momento de avan-la.

    O texto de Simon Hornblower, "Narratology and Narrative Techniques in Thucydides", se singulariza dos anteriores porque, mais atento seu autor aos avanos da narratologia do texto literrio, procura test-los na historiografia antiga. Como temos feito, primeiramente acompanhamos suas teses para s ento formularmos o que exige desdobramento.

    Hornblower comea por advertir que sua anlise no supe que o exame das tcnicas da apresentao histrica "necessariamente implica que a matria daquela apresentao seja verdadeira ou falsa" (Hornblower, S.: 1994, 133) -esclarecimento que seria ocioso sem o pressuposto corrente de que a anlise da construo textual exclusividade dos que se dedicam aos estudos literrios. O refinamento da narratologia lhe importa exatamente para verificar se seus resultados podem ser incorporados anlise historiogrfica. Assim, com base em Mieke Bal, procurar ver o rendimento, na Histria da guerra do Pelopdneso, da distino entre narrador e dois tipos de focalizador:

    O narrador a pessoa que narra. O focalizador a pessoa que ordena e interpreta os acontecimentos e experincias que esto sendo narradas. A focalizao secundria ou encaixada se d quando o primeiro focalizador ou intrprete cita ou refere uma focalizao ou interpretao de uma outra pessoa. (Id., 134)

    Como logo se verificar, na abordagem do autor a modalidade do narrador ser ociosa. Partamos de um exemplo simples. No Livro VII, 42, Tucdides discute a opo que se apresentava ao ateniense Demstenes, na guerra que Atenas travava contra Siracusa:

    Demstenes examinou a situao e achou que no deveria perder mais tempo, para no recair nas mesmas dificuldades de Ncias. Este, com efeito, inspirava medo quando chegou, mas como no atacou Siracusa imediatamente e con-sumiu o inverno em Catana, passou a ser desdenhado, e Glipos se antecipou a ele, vindo do Peloponeso com um exrcito. Os siracusanos no teriam sequer man-dado vir aquele exrcito se ele os houvesse atacado sem demora [ ... J. (Tucdides, VII,42)

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  • A reflexo referida, pergunta-se o autor, do prprio Tucdides ou de Demstenes? Resposta: "Tucdides o focalizador nico e primrio" (id., 135). Seguindo uma prtica comunssima entre seus pares, Tucdides realiza uma inferncia acerca do motivo que leva o comandante ateniense a agir como age; exercer o historiador uma inferred motivation no contraria a objetividade de seu relato. Tampouco a objetividade prejudicada quando a nomeao de um dado inseparvel de um certo torneio lingstico, no caso o do encerramento (closure) da frase. Tome-se o exemplo de III, 68 - "Assim pereceu Platia, noventa e trs anos depois de sua aliana com Atenas" ;6 a propsito do que dir o analista: ''A data aqui mais do que uma data: tem um efeito pattico" (ib., 138). Ou seja, no texto tucididiano a data, estando, por sua posio, integrada composio textual, mais do que um dado. A escrita da histria, portanto, leva em conta a estruturao da massa verbal. Como j havia comentado A. W. Gomme a propsito do mesmo Tucdides, os contrastes dramticos no historiador eram conscientes e no decorriam seno de que "escrevia com inteligncia" (Gomme, A. W.: 1954, 123). Mas, fora o fato de que Gomme o admitia de bom grado porque se conciliava com sua tese de que a escrita da histria e a poesia se submetem s mesmas exigncias, que novidade teria acentuar que o texto historiogrfico pode ter qualidade mesmo como escrita? Por certo, no nenhuma novidade, mas o raciocnio que a cerca embaraoso para o historiador e o cientista social que se mantenham fiis assepsia objetivista. Lembre-se a passagem de Franois Hartog a propsito de Fustel de Coulanges, modelo do historiador positivista. A sacralizao do texto, por Coulanges, do texto como matria, o levava a estabelecer a dicotomia entre o comentador e o escritor:

    Homem de cincia ou homem do comentrio, o historiador como leitor no pode nem deve ser um autor: a servio do texto, ele no escreve jamais seno os propsitos dos outros. [ ... ] Pois o comentrio no se escreve: o historiador escreve, mas no e sobretudo no deve ser um escritor.[ ... ] O sbio nunca tanto um escritor seno quando no o . (Hartog, F.: 1988, 155-6)

    A recorrncia a Hartog tem a vantagem de nos fazer ver que Hornblower, considerando a utilidade da narratologia em seu campo, no est simplesmente

  • "importando" tcnicas de outra rea, mas corroendo a normatizao usual da velha aporia da escrita da histria. Mas aonde chega com isso?

    Vrios casos so por ele reunidos para comprovar o rendimento do que chama "deslocamento narrativo" - expresso que equivale a desvio cro-nolgico. Seu efeito, porm, o "ganho de nfase" adquirido pelo relato, poder continuar a ser incmodo para o fantasma objetivista ou, ao contrrio, ra-pidamente saudado por aqueles que, como Gomme, desejam reconhecer como literrio todo o cuidado com a construo textual. No lugar dessas duas posies, o historiador britnico estar propondo uma terceira? Destaque-se sua afirmao geral:

    Sugiro que uma diferena entre a escrita histrica e a espcie ficcional est em que o ficcionista ou o poeta usualmente ganham impacto com tal deslocamento; o historiador que pode precisar perder ( who may need to lose) fatos embaraosos ao disp-los no lugar errado. (Hornblower, S.: 1984, 139)

    Tenhamo-la em mente no exame do exemplo que se segue. Aquilo que Tucdides procurava relatar se prendia ajuda que os atenienses haviam resolvido dar aos corcireus, ameaados pelos corntios. Para isso, lhes mandaram de incio dez naus, depois, quando j se travava a batalha, mais vinte. A deciso de ajuda pelos atenienses se fizera quando de uma segunda assemblia, pois a primeira decidira em sentido contrrio - "Os atenienses [ ... ] realizaram duas assemblias para debater o assunto; na primeira se inclinaram a favor dos corntios, mas na segunda mudaram de opinio" (Tucdides: r, 44). Ora, o envio do reforo no poderia ter sido feito sem o respaldo de uma terceira assemblia, pois " inconcebvel que alguma autoridade executiva, como a boule ou os strategoi (ou Pricles sozinho, como Plutarco aparentemente pensava), audaciosamente tomassem a deciso sem a autorizao da assemblia. Historicamente, acho a alternativa de todo inaceitvel. Em ambos os casos, h coisas que no nos so ditas" (id., 141-2). No h, contudo, registro em Tucdides da provvel terceira assemblia. Como se explicaria o estranho silncio?

    Tucdides enfrentava um problema de apresentao. Tendo levado os atenienses a Crcira, relutara em voltar a Atenas para descrever a assemblia em que a terceira deciso (i. e., o envio do reforo, L. C. L.) fora tomada. (Ib., 142-3)

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  • O que, para o comentador, no deixa de ser um problema. Considerar a primeira explicao suficiente seria contrariar sua explicao geral, i. e., equi-valeria a dizer que o historiador se comportava como ficcionista, que ganha com o deslocamento. Por isso obrigado a voltar questo: ao no referir a terceira assemblia, Tucdides astuciosamente deixa passar a impresso, "claramente enunciada em I, 44-5, de que o comportamento dos atenienses tinha sido bastante escrupuloso, i. e., de que tinham estado ansiosos em no romper com a paz dos trinta anos (estabelecida com os lacedemnios, L. C. L.). No estou agora preocupado com a questo de se os atenienses romperam a paz, mas com a beligerncia de sua psicologia: era provvel que suas aes levassem ao rompimento da paz? Isso, podemos dizer racionalmente, manipulao da narrativa para ajust-la a uma tese poltica" (ib., 143, grifo meu). O narrative displacement, o silncio sobre a assemblia que assegurara a disposio de favorecer os corcireus, resultava da deciso de Tucdides de no acentuar a disposio agressiva dos atenienses; em, portanto, no os considerar como os potenciais causadores da guerra que dilacerar o Peloponeso.

    No cabe por ora julgar se o raciocnio de Hornblower correto. To-mando-o tal como se apresenta, cabe-me apenas perguntar que resultado al-cana o exame dessas peculiaridades do relato tucididiano seno explicitar a presena de "procedimentos retricos produtores de uma interao emocional e intelectualmente satisfatria entre o narrador e o narratrio" (ib., 152), i. e., entre o historiador, em sua posio pr-ateniense, e o pblico que ouvia a leitura de seu texto? Para um positivista,7 a concluso ser execrvel. A introduo de novas tcnicas de anlise comprovaria uma falha grave naquele que fora considerado o verdadeiro pai da histria. Ao escapar da condio de mero comentador do texto historiogrfico, ao considerar o prprio historiador como escritor, o pesquisador contemporneo no s j no pode manter a crena literal na histria como aportica afirmao da verdade como forado a admitir a inevitvel parcialidade de quem escreve a histria. Isso significaria dizer que ele se inclina para o lado dos que a tomam como prxima, se no integrada linhagem dos poetas? Para que no se pense ser essa uma hiptese absurda, vejamos como se expressa um historiador que, em oposio aos positivistas duros, poderamos considerar como combinando o modelo positivista com uma viso aceita desde antes:

  • Nada na tradio da histria jnica sugeria a Herdoto que ele voltasse o resultado de suas investigaes para os retratos narrativos (narrative pictures) de acon-tecimentos que ele nunca presenciara [ ... ], para criar a iluso de que era o observador dos feitos que descrevia. Nossa freqentao dos livros e da citao dos discursos que eles contm entorpecem nossa apreciao dessa notvel inovao artstica. [ ... ]. As Histrias, de Herdoto, representam uma fuso de prosa e poesia, da pica homrica e de uma historiografia jnica completamente transformada. [ ... ] O que a raiva de Aquiles foi para Homero, a guerra prsica representou para Herdoto. [ ... ] A linha de desenvolvimento de Herdoto para Tucdides direta ( direct and straightforward). (Fornara, C. W.: 1983, 32)

    Embora esteja falando sobretudo de Herdoto, a frase final mostra que, para Fornara, a artistic innovation da historiografia se estende a Tucdides.

    Em suma, pela exposio que fizemos, como considerar a posio de Simon Hornblower? claro que ele no poderia ser includo nem entre os positivistas duros, nem entre os complacentes. S podemos ter a certeza de que no pertence nem a um nem ao outro agrupamento. A percepo dos "pro-cedimentos retricos" em Tucdides leva o historiador britnico a nele re-conhecer um escritor, i. e., algum que trabalha a construo de seu texto. Com isso, se afasta da assepsia freqente dos historiadores modernos. Nem por isso, entretanto, o torna identificvel com os que se contentam em caracterizar a historiografia antiga como uma "inovao artstica". Se isso no suficiente para consolidar uma terceira posio, no contexto presente, bastante para verificar ser a prpria relao entre escrita da histria, fico e literatura que h de ser repensada. A alternativa tradicionalmente moderna - o cuidado com a composio sinnimo de preocupao "artstica", ao passo que o historiador se concentra na reconstituio da verdade-torna-se no mnimo obsoleta. Mas onde se estabelecem as fronteiras entre as reas? Como at recentemente a prtica da teorizao, no caso da literatura e da historiografia, longe esteve de ser freqente, por mais primrio que seja o problema, seu encaminhamento no tranqilo.

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  • 3. DOS SINTOMAS A UMA PRIMEIRA SISTEMATIZAO

    Embora nossa questo apenas se esboce, j se abriu uma janela: o re-conhecimento de que, entre os primeiros historiadores gregos cuja obra co-nhecemos alm de fragmentos, a construo da narrativa continha um aspecto propriamente verbal. Isso estabelecido, tornam-se menos vagas as perguntas de como se identificam, a partir de que se distinguem. E a questo correlata: at que ponto o critrio diferenciador se sustenta? Os positivistas de antes e de agora tinham e tm pelo menos o mrito de, ao excluir a questo da linguagem, serem econmicos. Conforme seu critrio, o historiador concentra sua ateno na coleta de documentos, na pesquisa de arquivos, na descoberta de novas fontes.

    Hornblower mostra-se prudente em suspender o interdito. Mantendo sua cautela, trata-se agora de estimular as perguntas primrias. Para faz-lo, iremos nos acercar de uma abordagem especfica de Herdoto. Com ela, estaremos aprendendo a nos mover em areia movedia. As Histrias, pois, sero nosso ponto de partida.

    Referindo-se abertura mesma de Herdoto - Herodton Touron istores apdeksis ede ["Herdoto de Turioi expe suas investigaes [ ... ] "(1, 1)] - e ao que de imediato se segue, escrevia Franois Hartog: "Continuador e rival do aedo, memria e memorialista, o hstorpretende salvar do esquecimento os atos, as palavras, os monumentos dos homens" (Hartog, F.: 1982, 22). Continuador: "A sentena de abertura de Herdoto, com sua declarao de desejo de no deixar que os feitos dos homens se tornem 'sem fama', akle, lembra a frase homrica [ ... ] kla andron, os 'gloriosos feitos dos homens', na Ilada 9 .189" (Hornblower, S.: 1994, 66). Do mesmo modo, a resposta que Slon d a Cresa a propsito do homem mais feliz que j teria conhecido, estando o interrogante seguro de que a exibio de suas riquezas o candidata a um dos primeiros lugares - " [ ... ] Cresa, o homem a: penas incerteza. [ ... ] No poderei responder tua pergunta antes de ouvir que findaste bem a tua vida'' (1, 32) -, com facilidade encontraria paralelo em passagens dos dramaturgos. A proximidade com eles se tornaria inclusive suspeitosa ao lermos que o encontro do grego com o rei dos medas era cronologicamente impossvel, caso Herdoto, de antemo, no houvesse armado a defesa de no considerar verdicas todas as informaes que recolhera. De qualquer maneira mais abundantes que as proximidades so as manifestaes de rivalidade com os poetas:

  • [ ... ] No conheo a existncia de um rio Oceano; penso que Homero ou qualquer um dos poetas precedentes inventou esse nome e o introduziu em sua poesia. (II, 23)

    Foi assim, diziam-me os sacerdotes, que Helena chegou a Proteu. E me parece que Homero tambm conhecia essa histria, mas percebendo que ela no convinha to bem poesia quanto a verso por ele usada, a rejeitou, mostrando, porm, que a conhecia. (II, 116)

    No primeiro caso, Homero considerado responsvel por uma das hipteses, recusada por Herdoto, sobre as fontes do Nilo; no segundo, no registrou que a destruio de Tria se dera porque os helenos no acreditaram que Helena houvesse ficado entre os egpcios, os quais depois a devolveram a Menelau, acrescentando Herdoto no crer que o rei troiano no a houvesse entregue aAgammnon, pois no" possvel confiar em qualquer coisa dita pelos poetas" (n, 120). A proximidade com motivos e topai presentes na pica e na tragdia no embaraa a disposio herodotiana de optar por um relato confivel. Portanto, que ele, de sua parte, venha a sofrer as contestaes que o convertero de "pai da histri' em "pai da mentira" no afeta seu propsito de investigar o que houve, descartando-se do que considera as invencionices dos poetas:

    Seguirei em minha exposio o que dizem alguns dos persas, os que no querem fazer um relato dignificante de Ciro, mas dizer a verdade, sendo capazes de tambm fazerem conhecer trs outras verses a propsito de Ciro. (1, 95)

    A discordncia bem explicada por J. Harmatta: o propsito do hstor era apresentar o "seu conceito abrangente de mundo e a histria geral do oikou-mnon (mundo conhecido).[ ... ] Herdoto criou toda uma rede de conexes histricas entre os povos de uma definida rea geogrfica, pela qual se concretizou a impresso de um processo histrico unificado" (Harmatta, J.: 1990, 121-2), sem, por isso, se impedir de reconhecer que "grande parte das interpretaes histricas que tentam salvar a historicidade da descrio de Herdoto vai alm dos limites da probabilidade" (id., 128). "Seus relatos da expedio de Dario contra os citas no refletem a realidade histrica", desde logo porque "o erro de Herdoto ou de seu informante grego" esteve em confundir a travessia do exrcito de Dario pelo Volga, quando teria sido apenas pelo Dnieper" (ib., 129).8

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  • O erro, mesmo supondo estarem corretos os que o afirmam, no invalida o propsito de Herdoto. Mostra apenas que a) a altheia buscada pelo historiador h de estar sempre submetida a novas provas; b) o princpio que confunde verdade e fato demasiado estreito para ser ainda endossado. Isso nos levar, em momento posterior, a nos perguntarmos pela aporia da verdade; em como devemos nos conduzir frente a ela.

    A distino entre o poeta e o historiador encaminha para o tratamento seguinte. Ele ter uma dupla e prvia justificativa: 1. leva em conta o prprio reparo de Harmatta: a viso geral do "mundo conhecido" por Herdoto no corresponde pretenso de verdade que o guiara porque erros de informao assim no o permitem; 2. razo mais importante: trata-se de verificar uma das conseqncias de sua oposio aos poetas. Herdoto tomara Homero e He-sodo no s como os criadores da genealogia dos deuses helenos como tambm os que lhes deram a sua prpria figura (cf. II, 53). Isso por si j no indicaria que ele haveria de assumir uma posio menos condescendente quanto ao divino? Para John Gould, tal diversidade de postura no testemunharia sua prpria irreligiosidade seno que era condizente com o prprio carter da religio grega:

    [ ... ] As expresses de hesitao e incerteza por Herdoto em questes da ao divina na experincia humana no so mais do que a expresso de um reco-nhecimento implcito universal (e, entre os gregos antigos, universalmente aceito) das limitaes do conhecimento humano nessas matrias. [ ... ] As declaraes de Herdoto da mesma necessria incerteza no se baseiam em um "princpio historiogrfico" especfico, mas na natureza da religio grega. ( Gould, J.: 1994, 94)

    Outro analista, porm, extrair concluso diversa. Em ensaio um pouco anterior, Charles W. Fornara se prope a caracterizar Herdoto como "a theological historian" - "algum que acredita que Deus uma fora imanente, que guia os acontecimentos de acordo com sua vontade" (Fornara, C. W.: 1990, 27). Apia-se para isso em sua interpretao de sonhos e orculos, a partir da qual tenta determinar a prpria posio que Herdoto assumiria, no interior dos debates do rico sculo v a. C. ateniense. Considerem-se algumas das passagens em que Fornara se baseia.

    O primeiro exemplo aparece no princpio do Livro 1 ( 1, 19ss). Ao longo da

  • luta dos ldios contra os milsios, o exrcito daqueles "estava incendiando as searas" quando um vento forte "atingiu o templo deAtena chamado de Assesos, queimando-o totalmente". Logo depois, Aliates, o rei ldio, adoece. Como sua doena se prolonga, manda consultar o orculo de Delfos; a Ptia recusa-se a lhe responder, "at que fosse restaurado o templo de Atena em Assesos". Embora o fim da guerra dependa de um ardil dos milsios, o decisivo para a questo de Fornara est na destruio do templo, na vingana da deusa ofendida, na doena que acomete o rei e na resposta da Ptia. Ao contrrio de outros casos, em que as sacerdotisas dos orculos so acusadas de haver se deixado subornar, Herdoto confirma a veracidade do relato: "Eu mesmo sei que as coisas se passaram assim, pois ouvi o relato dos prprios dlfios" (1, 20). E Fornara comenta: "Sem que fosse exigido, Herdoto insinuou sua prpria opinio de que os eventos humanos no esto imunes interferncia de um poder superior" (Fornara, C. W.: 1990, 32).

    O exemplo seguinte ocorre logo depois. Creso, filho de Aliates, sonha que seu filho favorito" seria atingido por uma ponta de ferro" (1, 34).Ao contrrio das prerrogativas dos personagens nobres, sobretudo de um prncipe, nega-se, por isso, a envi-lo em misses guerreiras ou sequer caa. O filho protesta e, escutando a explicao do pai, contesta que no justo impedi-lo de ir caa do javali porque suas presas no so pontas de ferro (cf. 1, 39). Embora Creso concorde, para evitar ms surpresas encarrega o suplicante que acolhera em seu palcio de acompanhar seu filho e proteg-lo. Mas um desgraado acidente far que o prprio suplicante seja, e sem o seu propsito, o responsvel pela morte do prncipe. Confessando ao rei a sua culpa involuntria, o suplicante solicita que Creso o mate. O que ele no faz porque o agente da morte no fora seno seu "autor involuntrio": "Isso obra de algum deus, daquele que me disse antes o que iria acontecer" (1, 45).

    No Livro III, a vtima do divino o persa Cambises. Culpado de matar o vitelo que encarnava pis, o deus egpcio, Cambises "enlouqueceu por causa daquele ultraje" (III, 30). Outro ato seu, em que Fornara no se detm, ser o responsvel por sua catstrofe: Cambises sonhara que seu irmo, Smerdis, estava sentado no trono "e sua cabea chegava at o cu" (m, 30). Temendo ser destitudo, mandara mat-lo. Alm disso, promovera outros crimes contra seus familiares. O comentrio de Herdoto agora ser menos preciso:

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  • Essas foram as loucuras de Cambises em relao a seus parentes, quer tenham sido praticadas por causa de pis, quer tenham resultado de algum dos muitos males de que usualmente os homens sofrem; de fato, dizem que ele sofreu desde o nas-cimento da terrvel doena "sagrada'' (a epilepsia, L. C. L.). (m, 33)

    Captulos adiante, Cambises reconhece o erro de seus crimes. Aprovei-tando-se de sua permanncia na campanha contra os egpcios, trs magos se re-belam e um deles, chamado Smerdis, empunha a coroa. Disposto a reagir, Cam-bises apressa-se a cavalgar de volta: "No momento de montar, ele deixou cair a argola da bainha de sua espada e a lmina nua atingiu-lhe a coxa, ferindo-o no mesmo lugar onde ele golpeara o deus egpcio pis (III, 64). Embora o prprio Herdoto houvesse dado uma explicao mdica para as loucuras do persa, recolhe as palavras finais do malogrado rei. Com efeito, depois de se ferir, ele se informara da cidade em que se encontrava e, lembrando-se de uma profecia que declarava que morreria em cidade de mesmo nome, recupera "o uso da razo" e declara: "Cambises, filho de Ciro, est condenado pelo destino a morrer aqui" (III, 64).

    O ltimo episdio que recordamos volta manifestao dos orculos. Na Corntia, o rei Ection, no conseguindo ter filhos com sua mulher, manda consultar Delfos. O orculo responde que sua mulher est grvida e o filho "vai esmagar os governantes de Corinto e castig-la'' (v, 92). Para evitar a ameaa, o rei ordena que, to logo nasa, o filho seja morto. Providncia intil. Pela astcia da me, Cipselos, o filho sobrevive e, chegando idade adulta, "recebeu em Delfos uma resposta parcialmente favorvel" ( v, 92), tornando-se, de fato, tirano de Corinto e destrutor dos que a governavam.

    De posse de algumas das atestaes de Fornara, venhamos sua tese. Referindo-se ao episdio de Cresa (r, 39ss), em especial "interpretao" que o filho dava a seu sonho, escreve ele: " [ ... ] Essa cena extraordinariamente interessante toca as raias de uma pardia das idias modernas, da devoo do racionalismo pela poca" (Fornara, C. W.: 1990, 36). O propsito de Herdoto seria bastante claro:

    Ele sabia exatamente como seus contemporneos racionalizariam o episdio do sonho, trivializando-o, e demonstra que tem plena conscincia de seus pontos de vista por inclu-los com vistas sua refutao final. (Id., 37)

  • E a refutao final implicaria que, na viso do hstor, to theion (o poder divino) " uma divindade vingativa, assim como um deus ciumento" (ib., 41 ). Contemporneo dos desmistificadores de todo o sagrado, os sofistas, Herdoto, por sua ateno aos orculos e sonhos, indicava sua reao presumida autonomia da agncia humana. Perguntamo-nos, porm, como Fornara explica o fracasso do sonho de Xerxes, no episdio decisivo para o desenrolar das Histrias, a propsito da invaso datica ( cf. VII, 5-18). Xerxes comunicara a seus conselheiros sua deciso de invadir a terra dos helenos. Um deles, seu tio Artabanus, procura dissuadi-lo. Embora o rei persa, de imediato, se irrite com a objeo, depois recua. Ento passa a ter o sonho no qual ouve que lhe dizem:

    "Mudaste de opinio, persa? Tomas a deciso de no mais conduzir uma expedio contra a Hlade, depois de dar ordens aos persas para reunirem tropas! Pois no fazes bem mudando de opinio [ ... ].Vamos! Faze o que decidiste durante o dia! Marcha por esse caminho!" (vn, 12)

    Apesar do tom peremptrio da voz que escuta, Xerxes no se convence e, no dia seguinte, informa a seus conselheiros que resolvera seguir a advertncia do tio. Na mesma noite, retorna o sonho da vspera (VII, 14). Ainda no convencido, Xerxes manda que Artabanus vista sua roupa real e durma em seu trono. O prprio Artabanus ento recebe o mesmo sonho:

    Ento exortas Xerxes a no marchar contra a Hlade, como se assim o protegesses! Mas nada ganhars, nem no futuro, nem no presente, querendo desvi-lo da deciso do destino. Quanto a Xerxes, j lhe revelei o que ele ter de sofrer se se recusar a obedecer-me. (vn, 17)

    Ante tamanha veemncia do alm, o tio recua e muda sua deciso ( vn, 18). Sem mais entraves do que lhe parecera razovel, o rei persa prepara a expedio, afinal desastrosa. Ser agora Fornara que no se dar por vencido: pelo episdio, dir, o leitor aprende "que a deciso de Xerxes estava preordenada. O efeito de sua irresoluo, que torna o sonho necessrio, est em nos demonstrar a efetiva ausncia de livre-arbtrio (free will) de Xerxes" (ib., 44).

    De onde adviria ao analista essa certeza seno de saber que, se no man -tivesse a homogeneidade de sua interpretao, comprometeria o prprio

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  • princpio da altheia? Mas no teria uma alternativa que no comprometesse seu caro pressuposto? No teria sido mais prudente afirmar, como John Gould, que a ambigidade da lio dos sonhos em Herdoto derivava da prpria incerteza que os gregos mantinham quanto ao sobrenatural? Enquanto reiterava que "em Herdoto, o sistema de causa e efeito inerentemente moral" (ib., 42), ainda mantinha a homogeneidade exigida da interpretao pelo modelo objetivista. Mas a univocidade assegurada seria muito menor do que a alcanada pela tese do theological historian.

    Parece estar em causa, portanto, a permanncia de um certo paradigma interpretativo, ainda que seu objeto, as Histrias, fosse muito mais sinuoso do que o que dele se passara a requerer. Herdoto tinha o cuidado de no confundir o que pensava com o que lhe haviam dito, ora recusando o que registrara, ora declarando haver outras opinies, ora dando seu endosso. Uma figura assim deslizante no parecia muito recomendvel ao que se passara a exigir do historiador.

    3.1. Dos sintomas a sistematizaes incomuns

    As obras dos historiadores agora lembrados tero um efeito de amos-tragem: enquanto a reflexo de Franois Hartog sobre a peculiaridade que Herdoto empresta aos citas ser mais longa, a de Christian Meier limitar-se- a seu comeo - seria impossvel abrang-lo em sua totalidade.

    Embora O nascimento do poltico entre os gregos [Die Entstehung des Politischen bei den Griechen ( 1980)], por sua prpria data de publicao, no tenha podido dispor da reflexo de M. I. Finley sobre os dilemas do historiador da Antigidade, esta nos ajuda a penetrar na problemtica que Christian Meier levanta e concretiza pelo exame de Herdoto.

    J notamos a indignao de Finleypor seus colegas insistirem em tratar dos historiadores gregos e romanos como se houvessem partilhado da concepo moderna de histria, parecendo desconhecer as condies derivadas da oralidade ento dominante. Ao passo que Finley acenava para a importncia decisiva da teoria, por fornecer um padro de anlise impossvel de ser preenchido por dados empricos e, no ensaio "Max Weber and the Greek City-State", para a urgncia de operacionalizar-se e/ou desenvolver certos conceitos e frentes de anlise

  • weberianos - "Sua anlise da economia antiga e da estrutura social [ ... ] no tem paralelo. Mas, sobre a histria grega e a poltica, desconcertantemente, no oferecia mais do que sugestes ou explicaes errneas" (Finley, M. I.: 1985, 90) -, Meier incisivamente apontava para uma drstica mudana de rumos no estudo da Antigidade. A pergunta por que a escrita da histria se desenvolveu apenas entre alguns povos- chineses, judeus e gregos - enquanto cedo se estiolara entre os persas e os egpcios no poder ser levada adiante sem a apreenso das "profundas circunstncias subjacentes" (Meier, C.: 1980, 366), i. e., sem o estudo interdisciplinar da sociedade (id., 366-7). Ora, ainda que Momi-gliano oferecesse a chave para o estancamento do interesse dos judeus pelo estudo da histria-a centralidade da Tor fazia com que "para o hebreu bblico, histria e religio fossem urros" (Momigliano,A.: 1990, 20)-, esta seria uma explicao particular e no sinal de avano na abordagem interdisciplinar da sociedade. Tal interdisciplinaridade serve a Meier to-s de remoto pano de fundo para a abordagem de Herdoto. Contudo, mesmo esse seu carter ento de fragmento ainda nos desviaria de nossa rota. Assim se explica que me restrinja a seu comentrio do curto "Promio" da Histrias:

    Esta a exposio da investigao de Herdoto de Halicarnasso, para impedir que o que os homens fizeram (genmena) no se dissipe da memria e que grandes e maravilhosos feitos (erga), realizados tanto pelos gregos como pelos brbaros, no deixem de ser lembrados; antes de tudo, qual a razo e por qual culpa (aitan) entraram em guerra uns contra os outros. (Herdoto: r, 1)

    Meier ressalta a heterogeneidade das trs metas: "Frente terceira meta, as duas primeiras parecem menos significativamente distintas" (ib., 370). De todo modo, "essa contigidade de metas diversas caracterstica para toda a obra'' (ib., 369-70). "Erga (feitos) e genmena (eventos) so por si tomados no como partes de um todo ou de um processo histrico, seno antes como obras, aes, acontecimentos e tambm costumes" (ib., 371). No serem destacados como partes de "um processo histrico" ser decisivo para a particularidade que singularizar Herdoto. Pois sua obra no concebida como similar ao que hoje entendemos por histria, seno que dela uma forma bastante especfica, por um lado, em retardo quanto ao que, a partir de Tucdides, assim se entender, por

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  • outro, adiante dela (cf. ib., 360). Deveria, por isso, "manter-se livre de todas as insinuaes do conceito moderno de histria" (ib., 367).

    Dentro do horizonte interdisciplinar que ressalta, o propsito de Meier era mostrar que a "histria" de Herdoto haveria de ser examinada como sincrnica ao nascimento da democracia ateniense. Em funo do ponto de vista que procuro desenvolver, sacrifica-se esse rico filo para nos fixarmos nas metas do "Promio". A terceira - por que gregos e brbaros se guerrearam - "contm [ ... ] o problema propriamente intelectual que ocupava Herdoto" ( ib., 3 72, grifo meu). Porque no encontrava uma resposta satisfatria, era ele obrigado a exp-lo cronologicamente (ib.). Desse modo, as guerras dos gregos contra os persas vm configurar o conflito entre o Ocidente e o Oriente. E dizer que o exame de feitos e eventos no lhe d a resposta satisfatria a seu problema intelectual, sendo por isso levado a exp-lo cronologicamente, equivale a uma afirmao capital:

    Herdoto no quer escrever"histria". Ignora o que ela , to completamente como qualquer um de seu tempo. Isso no s significa apenas que faltasse a ele e a seus contemporneos uma palavra, um conceito. Mais do que isso, o prprio objeto ainda no estava suficientemente destacado do amplo crculo da experincia humana para que, de algum modo, fosse bem delimitado e ainda no bastante pensado e conceituado para que estivesse seguro de si mesmo. (Ib., 374)

    Os exemplos anteriores de empreendimentos parecidos no lhe bastavam, por se resumirem crnica de fatos memorveis, relatos e anedotas restrita ao mbito de uma dinastia ou cidade, ao passo que seu tema era muito mais amplo. Da a extrema justeza do "Promio". Em outras palavras, com Herdoto o fio histrico se constitui como o "campo estreito" de um muito mais largo, irregular e irrepetvel, coordenado pelo eixo da causalidade - " [ ... ] o especfico mais importante de sua obra constitudo por uma forma histrica de causalidade" ( ib., 3 79). Mas o carter especfico da causalidade herodotiana nos escapa e, com ela, a questo dos poderes sobrenaturais, se no acentuarmos a advertncia de Meier: saber que "os eventos - de procedncia divina ou humana - so condicionados por causas mais profundas [no significa] que elas lhe fossem suficientes" (ib., 383). Da se explica melhor a nomeao de seu prprio nome, na abertura do "Promio": "Exatamente considerada, a unidade da obra consiste

  • apenas em ser o relato da pesquisa de um certo homem" (ib., 375). Isso supunha excluses e incluses. Excluem-se de sua investigao a natureza e o mito. Incluem-se, em parte, a etnografia, em parte a geografia, o destino dos homens, de dinastias, cidades e imprios, que conduzem, por fim, grande oposio entre Ocidente e Oriente. ''A histria d acesso a este mundo" (ib., 376). Mas em que sentido h de se tornar tal acesso (Zugang)? De acordo com o "campo estreito" a que se reduzira seu "problema intelectual': Herdoto o situa na pr-histria da guerra contra os persas. Obviamente, a investigao que processa ficava muito aqum do terna que o obsedava: "Diz Cobet [em Herodots Excursus und die Frage der Einheit seines Werkes, 1971], a histria de Herdoto apresenta-se corno a cincia da realidade relacionada aos homens. [ ... ] Para esse crculo de interesses, no havia um conceito e, ainda hoje, continua no havendo" (ib., 376). Em sntese, a histria descoberta corno a Amrica: Herdoto procurava o caminho das ndias; s que esse caminho - que diria por que os homens se guerreiam e de que(rn) a culpa- continua ignorado.

    Contentemo-nos com essa pequena amostra de urna abordagem excep-cional. Ela bastante para mostrar o rendimento que se extrai de um texto de historiografia antiga, desde que no o subordinemos ao conceito vigente de histria.

    Apenas um acrscimo no pode ser omitido: a variedade de causas explicativas que Herdoto acumula, em vez de criticveis, corno secularmente se tem feito, demonstra sua abertura corno a sua no-sujeio a alguma crena religiosa:

    Herdoto no indaga como telogo, mas sim como um homem que, por um lado, cr que os deuses muitas vezes interferem na vida humana, sabendo, por outro, que, com freqncia, no se pode perceber a inteno divina. Desse modo, seu conceito de histria, de confiana na tradio o interdita de conjecturar sobre as intenes divinas e de procurar por si o significado dos acontecimentos. (Ih., 398)

    A causalidade , por certo, o meio de conexo entre os eventos; mas no h segurana sobre seu acerto. Com Herdoto, a histria nasce pela impossibilidade de encontrar razo para a permanente beligerncia entre os homens.

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  • J em relao ao segundo exemplo de uma anlise incomum, temos de ser me