liberdade de expressao e discurso do ódio no brasil

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ISSN Impresso 1809-3280 | ISSN Eletrônico 2177-1758 www. esmarn.tjrn.jus.br/revistas Revista 227 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DISCURSO DO ÓDIO NO BRASIL FREE SPEECH AND HATE SPEECH IN BRAZIL Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Luna * Gustavo Ferreira Santos ** RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar as restrições de conteúdo à liberdade de expressão quando esta se aproxima do discurso do ódio. Nessa perspectiva, visa-se a responder à seguinte questão: qual é a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em casos que envolvem o conflito entre liberdade de expressão e discurso do ódio? A metodologia utilizada combina uma revisão bibliográfica sobre os pressupostos teóricos da pesquisa (conceito de liberdade de expressão e discurso do ódio, além da compreensão do direito de defesa das minorias tradicionalmente discriminadas) e pesquisa empírica (análise documental e jurisprudencial de julgados da Suprema Corte americana, do Tribunal Constitucional alemão e do Supremo Tribunal Federal brasileiro). Em um primeiro momento, aborda-se a liberdade de expressão, delimitando seu significado, conteúdo e propósito. Em seguida, aponta-se o discurso do ódio como elemento inibidor da liberdade de expressão por ofender os membros das minorias tradicionalmente discriminadas, que estão em inferioridade numérica ou em situação de subordinação cultural, socioeconômica ou política. Posteriormente, discutem- se alguns aspectos dos modelos norte-americano (liberdade negativa) e alemão (liberdade positiva), para mostrar que culturas diversas aportam soluções jurídicas diferentes. Ao final, conclui-se que há uma aproximação do posicionamento brasileiro com a doutrina germânica, a partir da análise de casos emblemáticos como o do editor Siegfried Ellwanger (2003) e da Escola de Samba Unidos do Viradouro (2008). O entendimento do Brasil, país multicultural e formado por diferentes etnias, orienta um novo processo de defesa das minorias que, apesar de envolver a colisão de direitos fundamentais consagrados (dignidade, igualdade e liberdade), ainda encontra barreiras incompatíveis com a democracia pluralista contemporânea. Palavras-chave: Liberdade de expressão. Discurso do ódio. Direito comparado. Minorias. Preconceito. * Doutoranda em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora substituta do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). João Pessoa – Paraíba – Brasil. ** Doutor em Direito pela UFPE, com estágio pós-doutoral na Universidade de Valência, Espanha. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFPE e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Recife – Pernambuco – Brasil. Revista Direito e Liberdade – RDL – ESMARN – v. 16, n. 3, p. 227-255, set./dez. 2014.

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O objetivo deste artigo é analisar as restrições de conteúdo à liberdade de expressão quando esta se aproxima do discurso do ódio. Nessa perspectiva, visa-se a responder à seguinte questão: qual é a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em casos que envolvem o conflito entre liberdade de expressão e discurso do ódio? A metodologia utilizada combina uma revisão bibliográfica sobre os pressupostos teóricos da pesquisa (conceito de liberdade de expressão e discurso do ódio, além da compreensão do direito de defesa das minorias tradicionalmente discriminadas) e pesquisa empírica (análise documental e jurisprudencial de julgados da Suprema Corte americana, do Tribunal Constitucional alemão e do Supremo Tribunal Federal brasileiro). Em um primeiro momento, aborda-se a liberdade de expressão, delimitando seu significado, conteúdo e propósito. Em seguida, aponta-se o discurso do ódio como elemento inibidor da liberdade de expressão por ofender os membros das minorias tradicionalmente discriminadas, que estão em inferioridade numérica ou em situação de subordinação cultural, socioeconômica ou política. Posteriormente, discutem- se alguns aspectos dos modelos norte-americano (liberdade negativa) e alemão (liberdade positiva), para mostrar que culturas diversas aportam soluções jurídicas diferentes. Ao final, conclui-se que há uma aproximação do posicionamento brasileiro com a doutrina germânica, a partir da análise de casos emblemáticos como o do editor Siegfried Ellwanger (2003) e da Escola de Samba Unidos do Viradouro (2008). O entendimento do Brasil, país multicultural e formado por diferentes etnias, orienta um novo processo de defesa das minorias que, apesar de envolver a colisão de direitos fundamentais consagrados (dignidade, igualdade e liberdade), ainda encontra barreiras incompatíveis com a democracia pluralista contemporanea.

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    LIBERDADE DE EXPRESSO E DISCURSO DO DIO NO BRASIL

    FREE SPEECH AND HATE SPEECH IN BRAZIL

    Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Luna * Gustavo Ferreira Santos **

    RESUMO: O objetivo deste artigo analisar as restries de contedo liberdade de expresso quando esta se aproxima do discurso do dio. Nessa perspectiva, visa-se a responder seguinte questo: qual a orientao adotada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em casos que envolvem o conflito entre liberdade de expresso e discurso do dio? A metodologia utilizada combina uma reviso bibliogrfica sobre os pressupostos tericos da pesquisa (conceito de liberdade de expresso e discurso do dio, alm da compreenso do direito de defesa das minorias tradicionalmente discriminadas) e pesquisa emprica (anlise documental e jurisprudencial de julgados da Suprema Corte americana, do Tribunal Constitucional alemo e do Supremo Tribunal Federal brasileiro). Em um primeiro momento, aborda-se a liberdade de expresso, delimitando seu significado, contedo e propsito. Em seguida, aponta-se o discurso do dio como elemento inibidor da liberdade de expresso por ofender os membros das minorias tradicionalmente discriminadas, que esto em inferioridade numrica ou em situao de subordinao cultural, socioeconmica ou poltica. Posteriormente, discutem-se alguns aspectos dos modelos norte-americano (liberdade negativa) e alemo (liberdade positiva), para mostrar que culturas diversas aportam solues jurdicas diferentes. Ao final, conclui-se que h uma aproximao do posicionamento brasileiro com a doutrina germnica, a partir da anlise de casos emblemticos como o do editor Siegfried Ellwanger (2003) e da Escola de Samba Unidos do Viradouro (2008). O entendimento do Brasil, pas multicultural e formado por diferentes etnias, orienta um novo processo de defesa das minorias que, apesar de envolver a coliso de direitos fundamentais consagrados (dignidade, igualdade e liberdade), ainda encontra barreiras incompatveis com a democracia pluralista contempornea. Palavras-chave: Liberdade de expresso. Discurso do dio. Direito comparado. Minorias. Preconceito.

    * Doutoranda em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraba (UFPB). Professora substituta do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual da Paraba (UEPB). Joo Pessoa Paraba Brasil.

    ** Doutor em Direito pela UFPE, com estgio ps-doutoral na Universidade de Valncia, Espanha. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). Professor dos Programas de Ps-Graduao em Direito da UFPE e da Universidade Catlica de Pernambuco (UNICAP). Recife Pernambuco Brasil.

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    ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the restriction of free speech when it comes close to hate speech. In this perspective, the aim of this study is to answer the question: what is the understanding adopted by the Brazilian Supreme Court in cases involving the conflict between free speech and hate speech? The methodology combines a bibliographic review on the theoretical assumptions of the research (concept of free speech and hate speech, and understanding of the rights of defense of traditionally discriminated minorities) and empirical research (documental and jurisprudential analysis of judged cases of American Court, German Court and Brazilian Court). Firstly, free speech is discussed, defining its meaning, content and purpose. Then, the hate speech is pointed as an inhibitor element of free speech for offending members of traditionally discriminated minorities, who are outnumbered or in a situation of cultural, socioeconomic or political subordination. Subsequently, are discussed some aspects of American (negative freedom) and German models (positive freedom), to demonstrate that different cultures adopt different legal solutions. At the end, it is concluded that there is an approximation of the Brazilian understanding with the German doctrine, from the analysis of landmark cases as the publisher Siegfried Ellwanger (2003) and the Samba School Unidos do Viradouro (2008). The Brazilian comprehension, a multicultural country made up of different ethnicities, leads to a new process of defending minorities who, despite of involving the collision of fundamental rights (dignity, equality and freedom), is still restrained by incompatible barriers of a contemporary pluralistic democracy. Keywords: Freedom of expression. Hate speech. Comparative Law. Minorities. Prejudice.

    SUMRIO: 1 INTRODUO; 2 OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSO; 3 O DISCURSO DO DIO COMO ELEMENTO INIBIDOR DA LIBERDADE DE EXPRESSO; 3.1 O MODELO NORTE-AMERICANO, A LIBERDADE NEGATIVA E O MERCADO DAS IDEIAS; 3.2 O MODELO ALEMO, A LIBERDADE POSITIVA E A INTANGIBILIDADE DA DIGNIDADE HUMANA; 3.3 DUAS EXPERINCIAS, DUAS RESPOSTAS; 4 A LIBERDADE DE EXPRESSO NO CENRIO BRASILEIRO; 4.1 O CASO ELLWANGER: literatura e nazismo; 4.2 O CASO UNIDOS DO VIRADOURO: samba e holocausto; 4.3 O CASO MONTEIRO LOBATO: letras e discriminao; 4.4 O CASO LEVY FIDELIX: intolerncia e preconceito; 5 CONCLUSO; REFERNCIAS.

    1 INTRODUO

    A complexa relao entre discurso e ao suscita o debate sobre a possibilidade ou no de reprimir o Estado discursos que possam levar restrio de direitos e violncia. O exerccio de um direito fundamental

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    como a liberdade de expresso pode, em uma democracia constitucional, ser instrumento de ataque a pessoas e grupos sociais.

    O objetivo deste artigo analisar as restries de contedo li-berdade de expresso quando esta usada para veicular um discurso do dio. A metodologia utilizada combina uma reviso bibliogrfica sobre os pressupostos tericos da pesquisa com uma pesquisa emprica por meio da anlise documental e jurisprudencial. Em um primeiro momento, aborda-se a liberdade de expresso, delimitando seu significado, contedo e objetivo. Em seguida, aponta-se o discurso do dio como elemento inibidor da liber-dade de expresso por ofender os membros das minorias tradicionalmente discriminadas, que esto em inferioridade numrica ou em situao de subordinao cultural, socioeconmica ou poltica. Posteriormente, discu-tem-se alguns aspectos dos modelos norte-americano (liberdade negativa) e alemo (liberdade positiva), para mostrar que culturas diversas aportam solues jurdicas diferentes. Ao final, conclui-se que h uma aproximao do posicionamento brasileiro com a doutrina germnica, a partir da anlise de casos emblemticos como o do editor Siegfried Ellwanger (2003) e da Escola de Samba Unidos do Viradouro (2008).

    Fazendo um breve roteiro histrico, os direitos humanos so uma con-quista bastante tardia na histria da humanidade, tendo sido firmados como elementos jurdicos apenas com as Revolues Liberais do sculo XVIII, momento em que a liberdade de expresso afirmou-se definitivamente e passou a integrar as Constituies liberais, bem como convenes e tratados internacionais, como direito fundamental.

    A liberdade de expresso foi expressa, pela primeira vez, em 1689, no English Bill of Rights, um estatuto poltico formulado no contexto da Revoluo Gloriosa, que defendia os direitos dos cidados britnicos. Em seguida, vrios outros documentos passaram a incorporar em seus textos o direito liberdade de expresso, como os arts. 10 e 111 da Declarao

    1 Art. 10. Ningum pode ser molestado por suas opinies, incluindo opinies religiosas, desde que sua manifestao no perturbe a ordem pblica estabelecida pela lei. Art. 11. A livre comunicao das ideias e das opinies um dos mais preciosos direitos do ho-mem; todo cidado pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei (FRANA, 1789).

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    dos Direitos do Homem e do Cidado. No Brasil, desde a Constituio do Imprio, havia a garantia da liberdade de expresso, o que foi preservado at a Constituio de 1937. J no perodo conhecido como Estado Novo, durante o governo do presidente Vargas, o princpio constitucional da liberdade de pensamento desapareceu e foi adotada a censura como meio de impedir a publicao ou a reproduo de determinadas informaes. A liberdade de expresso s ganhou fora novamente na atual Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88)2, que trouxe vrias inovaes em relao liberdade de manifestao do pensamento, dando maior amplitude ao rol de direitos e garantias individuais, vedando apenas o anonimato como forma de evitar a verbalizao do discurso sem a devida responsabilidade.

    Em 1979, em uma conferncia do Instituto Internacional de Direitos Humanos, o jurista tcheco-francs Karel Vasak props uma classificao dos direitos humanos em geraes, inspirado no lema da Revoluo Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade). Os direitos da primeira gerao, em que est inserida a liberdade de expresso, so considerados direitos negativos, que se esgotam num dever de absteno do Estado na esfera particular do indivduo. Trata-se de uma limitao para os poderes pblicos, erigida para que eles no tenham como impedir nem coibir a manifestao de quaisquer opinies ou ideias.

    Com efeito, a liberdade de expresso um direito fundamental dos indivduos, entendida como liberdade de conscincia e de crena, e est intrinsecamente relacionada livre manifestao de ideias, opinies, posi-es e pensamentos, de interesse pblico ou no, providos de importncia

    2 Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - livre a manifestao do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alm da indenizao por dano material, moral ou imagem; VI - inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo aos locais de culto e a suas liturgias; [...] VIII - ningum ser privado de direitos por motivo de crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigao legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestao alternativa, fixada em lei; IX - livre a expresso da atividade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao, independentemente de censura ou licena; [...] (BRASIL, 1988).

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    e valor ou no, por meio de qualquer meio de comunicao, no podendo esse direito ser restringido por ningum. Em suma, a liberdade de expresso s pode ser plenamente garantida se os indivduos tiverem a possibilidade de manifestar seus pontos de vista segundo suas convices, seja na esfera pblica ou privada.

    2 OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSO

    A liberdade de expresso destina-se ao alcance de vrios objetivos. Sem maior aprofundamento e, ao mesmo tempo, destitudo de preocupao exaustiva, podem-se apontar, com base em enumerao especificada por Machado (2002), os seguintes: a) a procura da verdade; b) o mercado livre das ideias; c) a autodeterminao democrtica; d) o controle da atividade governativa e do exerccio do poder; e) o estabelecimento de esfera aberta e pluralista de discurso pblico; f ) a garantia da diversidade de opinies; g) a acomodao de interesses, com a transformao pacfica da sociedade; h) a promoo e expresso da autonomia individual; i) a formao de con-cepo multifuncional das liberdades de comunicao. Alm dos objetivos expostos, a liberdade de expresso tem um importante papel no debate pblico e nas eleies, uma vez que necessria uma opinio pblica livre e informada como requisito legtimo para o exerccio dos direitos polticos (DAHL, 1997). O controle dos poderes pblicos e a denncia dos casos de corrupo dos governantes so tarefas necessrias dos meios de comunica-o como um compromisso do direito informao e da responsabilidade social da imprensa.

    H uma relao direta entre o conceito de Estado Democrtico de Direito e a garantia da liberdade de expresso. As expresses Estado de Direito e democracia no so mais vistas apenas em suas acepes formais. O conceito de Estado de Direito evoluiu, das revolues burguesas aos dias atuais, para acrescer um conjunto de preocupaes democrticas. Por outro lado, o conceito de democracia incorporou um conjunto de exigncias quan-to garantia da autonomia dos participantes do processo.

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    O conceito de Estado de Direito remete originariamente ideia de limitao do poder estatal para a garantia de direitos de indivduos e grupos. No entanto, no basta a conteno do poder; necessrio, tambm, que exista uma legitimao democrtica na produo das prprias regras de garantia. A frmula Estado Democrtico de Direito acresce ao conceito de Estado de Direito essa preocupao com legitimidade. No dizer de Canotilho (1999, p. 10), o princpio da soberania popular serve de charneira entre o Estado de direito e o Estado democrtico, possibilitando a compreenso da moderna frmula Estado de direito democrtico. Na mesma linha, Burgos (2010, p. 242, traduo nossa) afirma que o Estado de direito permite que a demo-cracia deixe de ser um procedimento e integre fins ligados com os direitos e a autonomia humana.

    Com efeito, levando em considerao a liberdade de conscincia, o exerccio dos direitos polticos e o controle dos poderes pblicos, toda interveno do Estado para limitar a liberdade de expresso, em sistemas democrticos, deve ser vista como suspeita e exige uma justificativa especial. Constituies democrticas probem a censura. No entanto, a relao entre liberdade de expresso e outros direitos e interesses constitucionalmente consagrados complexa e desafia intrpretes/aplicadores a encontrar solu-es de compromisso.

    3 O DISCURSO DO DIO COMO ELEMENTO INIBIDOR DA LIBERDADE DE EXPRESSO

    Os Estados defrontam-se com alguns aspectos polmicos no dom-nio da tutela liberdade de expresso e so vrios os temas que suscitam o debate pblico acerca da legitimidade da interveno estatal. Entre esses temas, destaca-se a resposta ao discurso do dio, que pode ser definido como toda manifestao que denigra ou ofenda os membros das minorias tradicionalmente discriminadas, que esto em inferioridade numrica ou em situao de subordinao socioeconmica, poltica ou cultural. Em outras palavras, o discurso do dio compe-se de todas as formas de expresso que propagam, incitam, promovem ou justificam o dio racial, a xenofobia, a

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    homofobia, o antissemitismo e outras formas de dio baseadas na intolern-cia (BRUGGER, 2007). Tal discurso serve para insultar, perseguir e justificar a privao dos direitos humanos e, em casos extremos, para dar razo a ho-micdios, acarretando conflitos com outros valores igualmente tutelados pela Carta Magna, como a dignidade humana e a vedao prtica do racismo.

    Com efeito, a questo central indagar quanto melhor forma de combater o discurso do dio. Para isso, ser analisado o tratamento doutri-nrio e jurisprudencial dispensado ao tema no direito nacional e estrangeiro, buscando, assim, encontrar uma soluo jurdica eficaz para evitar e combater o discurso do dio, sem, contudo, violar a liberdade de expresso e a dignidade humana de suas vtimas e comprometer o Estado Democrtico de Direito.

    Sobre o tema, as principais polmicas so: o discurso ou as palavras podem causar danos? Em que medida o dano quantificvel? Toda ofensa uma incitao violncia? Qual deveria ser a tolerncia legal de expresses, ainda que fossem repugnantes? Trata-se de perguntas com respostas difceis, porque existem diversas concepes de liberdade de expresso e a soluo mais adequada ao caso concreto varia segundo a cultura jurdica de cada pas. Para esclarecer tais questes, sero apresentados alguns aspectos das perspectivas norte-americana, alem e brasileira sobre o tema e estabelecidas as justificativas dos limites a um direito fundamental em trs culturas jur-dicas, que esto sensibilizadas com os problemas das minorias, mas aportam solues diversas.

    A questo da regulao do discurso do dio pode ser interpretada como uma questo de conflito de direitos e os sucessivos casos judiciais que sero apresentados oferecem diferentes ponderaes, demonstrando que s possvel interpretar adequadamente as decises judiciais apelando aos fundamentos filosficos de cada modelo apresentado.

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    3.1 O MODELO NORTE-AMERICANO, A LIBERDADE NEGATIVA E O MERCADO DAS IDEIAS

    O modelo norte-americano est baseado na ideia de liberdade negati-va, sendo marcado pela viso adotada pela jurisprudncia da Suprema Corte americana de que h um mercado das ideias. Esse tribunal outorgou um papel prioritrio liberdade de expresso, que deveria limitar a interveno estatal apenas aos casos de um perigo claro e presente ou ameaa de desor-dens pblicas. A viso da liberdade negativa traduz-se na no interferncia no mbito individual e, portanto, na ausncia de barreiras para seu exerccio. Significa no ser impedido por outras pessoas a fazer o que se deseja fazer.

    A perspectiva americana pode ser sintetizada em sua Primeira Emenda Constitucional, de 1791, segundo a qual o Congresso no far nenhuma lei que restrinja a liberdade de expresso ou da imprensa3. Fiss (2005, p. 30), comentando a Primeira Emenda da Constituio Americana, aduz:

    O discurso to valorizado pela Constituio, eu sustento, no porque ele uma forma de auto-expresso ou auto-realizao, mas porque ele essencial para a autodeterminao coletiva. A democracia permite que as pessoas escolham a forma de vida que desejam viver e pressupe que essa escolha seja feita em um contexto no qual o debate pblico seja, para usar a agora famosa frmula do Juiz Brennan, desinibido, robusto e amplamente aberto.

    Todavia, foi a jurisprudncia da Suprema Corte que mostrou de forma mais clara o significado desse preceito constitucional com a concepo de mercado de ideias, que apareceu pela primeira vez no voto divergente do Juiz Oliver Wendell Holmes, no caso Abrams versus Estados Unidos (1919) (BINEMBOJM, 2006). Inclusive, Posner (2011) considera que no existe

    3 Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances (ESTADOS UNIDOS, 1791),

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    voto mais eloquente na histria do direito norte-americano do que esse voto divergente.

    Segundo a viso de mercado de ideias, no papel do Estado proibir a expresso de ideias, ainda que algum as considere equivocadas, pois o melhor teste para a verdade a competio no mercado do discurso. A livre circulao de ideias permite que todos chequem a consistncia das opinies. Assim, a correo de uma ideia no depende da conscincia dos juzes e jurados, mas da concorrncia com outras ideias. Os diferentes pontos de vista em uma sociedade competem entre si em um debate aberto e plural, no qual algumas opinies tm mais xito do que outras, dependendo do nmero de seguidores e da qualidade dos seus argumentos.

    O mercado de ideias prope a no interveno estatal na determinao da verdade ou falsidade dos argumentos, o que supe que o Estado deve ser neutro. Trata-se de uma posio que enfatiza a viso da liberdade negativa e que desconfia da interveno governamental em assuntos de liberdade de expresso. A procura da verdade como telos da liberdade de expresso assinala que, num discurso aberto de ideias, a verdade mais facilmente desvendada, enquanto, num espao onde h carncia de liberdade de expresso, a verdade fica oprimida a uma s opinio, que se impe como verdadeira. Se houver um debate livre e aberto, a verdade tender a prevalecer.

    Os pressupostos filosficos implcitos desse modelo, de acordo com Ingber (1984), so: a) a verdade algo capaz de ser descoberto pelo pen-samento, a partir da pluralidade de ideias; b) o poder da racionalidade dos indivduos pode separar a forma da substncia das posies competitivas que se apresentam. No entanto, o autor critica o argumento do mercado de ideias, afirmando ser ele mais um mito do que uma realidade, pois, na prtica, se refletem os pontos de vista convencionais sobre a sociedade, a economia e a poltica; a diversidade de perspectiva inexistente e difcil sustentar que esse mercado no sofre interferncia.

    Todavia, Machado (2002, p. 254) contesta grande parte dessas crticas ao estabelecer que:

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    O mercado livre de ideias, a despeito das suas imperfeies, traduz os valores fundamentais da descentralizao da produ-o e difuso de ideias e da autonomia individual na adeso ou no abandono das mesmas, bem como na estruturao dos procedimentos comunicativos de acordo com o princpio da persuaso, nos termos do qual o Estado no pode suprimir um discurso com base no facto de que o mesmo tem a capacidade para persuadir as pessoas.

    A fundamentao terica que justifica a liberdade de expresso como meio de chegar verdade encontra-se na obra clssica Sobre a liberdade (MILL, 1991). Nela, o filsofo afirma que a liberdade de expresso jamais deve ser restringida, pois, se o discurso for silenciado e for verdadeiro, haver privao do conhecimento da verdade; se a opinio silenciada for errada, pode haver nela, ainda assim, uma poro de verdade; e, se a opinio estiver errada, ser por meio do enfrentamento de opinies diversas que se chegar ao conhecimento pleno da verdade (RIBEIRO, 2012).

    Nessa obra, Mill (1991) tambm formula o princpio do dano a terceiros, segundo o qual o nico propsito que justifica a interveno da espcie humana, coletiva ou individualmente, na liberdade de ao sua prpria proteo, ou seja, o fim para que o poder possa ser exercido legiti-mamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, obstar que provoque danos aos demais. Assim, o Estado s pode intervir regulando as condutas que prejudiquem danos a terceiros. Depreende-se, desse modo, que a defesa do debate, o contraste das ideias, a recusa da censura e a livre circulao do discurso so necessrios para que os indivduos, como agentes morais, possam decidir autonomamente seus planos de vida. Logo, no modelo norte-americano, a interveno es-tatal s se justificaria quando as aes dos indivduos provocassem danos aos demais. Nesse ponto, um novo dilema instaura-se: quem e como se definem esses danos?

    Alguns casos polmicos julgados pela Suprema Corte americana (CORNELL..., 2014) podem embasar as respostas para tais questionamentos:

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    a) caso Brandenburg (1969): a Suprema Corte americana anulou a condenao de Clarence Brandenburg (lder do ramo de Ohio do Ku Klux Klan), apesar de suas alegaes em rede de TV sobre a supremacia da raa ariana. A Corte fundamentou a absolvio do ru na ausncia de violncia intencional, provvel e iminente do discurso contra negros e judeus. Ora, mas o que violncia? Aparenta que a Corte americana s considerou a violncia e os da-nos fsicos, no levando em conta a violncia moral e psquica das vtimas do discurso, bem como o direito memria dos familiares dos mortos nos campos de concentrao;

    b) caso Skokie (1977): a Suprema Corte americana decidiu em favor do Partido Nazista, revertendo a deciso da Corte de Illinois, e autorizou uma marcha nazista em bairro judeu. O nazismo foi um aviltamento a todas as liberdades humanas, que se desenvolveu em um meio que consentia o exerccio da liberdade, em especial, da liberdade de reunio. Isso suscita um novo problema: at que ponto legtimo dar liberdade para quem ofende a liberdade? Em que medida deve-se tolerar o intolerante?

    c) caso RAV x City of St. Paul (1992): a Suprema Corte americana anulou o julgamento que condenava alguns adolescentes por queimar uma cruz no jardim de uma famlia afro-americana. No contexto da sociedade estadunidense, o ato de queimar cru-zes representa uma manifestao de dio. Ento, no mbito do conflito entre direitos humanos fundamentais, at que ponto a no interferncia do Estado (liberdade negativa) eficaz para a proteo das minorias?

    d) caso Cohen (1971): a Suprema Corte americana anulou a deciso que condenou um sujeito chamado Cohen por usar nos corredo-res de um tribunal de justia uma jaqueta com a expresso fuck the draft. O fato aconteceu em um agitado momento de crtica poltica blica norte-americana por ocasio da Guerra do Vietn e a punio tinha a premissa de que a agressiva frase incitaria dis-trbios e ameaaria a paz. Nesse caso, a Suprema Corte alegou que

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    o Estado no tem o direito de proibir o uso de palavras ofensivas. Por que deixar, ento, impune os agressores do distrbio gratuito da paz de vtimas de grupos minoritrios, como negros e judeus?

    No existem outros danos relevantes relacionados ao discurso do dio? No srio ataque dignidade humana a utilizao de determinadas expresses? As respostas a essas indagaes, segundo a filosofia americana, que qualquer discurso, por si mesmo, no produz dano, dio, violncia ou intolerncia. No entanto, quando o discurso no mais est sendo feito in abstrato, revelando no mais apenas um posicionamento poltico, mas est dirigido a incitar a violncia, ameaando concretamente pessoas reais, a Suprema Corte entende ser possvel a penalizao dos responsveis. As chamadas fighting words, ou seja, palavras que incitam a briga, podem ser objeto de represso pelo ordenamento. No dizer de Stone (apud GULLCO, 2011, p. 68, traduo nossa), no esto dirigidas a comunicar ideias, mas a causar danos: So ataques verbais, mais parecidos com um soco na boca, que a uma expresso protegida constitucionalmente.

    Para Fuente (2010), aos olhos de um jurista europeu, a regulao estadunidense da liberdade de expresso , no mnimo, paradoxal, pois a Suprema Corte ora se mostra neutra frente ao racismo, ora se mostra parcial diante do aborto, da escravatura e da obscenidade. Os pilares do sistema baseiam-se na filosofia de Mill (1991) e no princpio de danos a terceiros, em que o dano est vinculado ao perigo de violncia iminente.

    3.2 O MODELO ALEMO, A LIBERDADE POSITIVA E A INTANGIBILIDADE DA DIGNIDADE HUMANA

    A histria da ditadura nacional socialista por Adolf Hitler claramen-te influenciou a construo de um entendimento judicial que atribuiu importncia relativa liberdade de expresso, de modo que, no panorama das Constituies europeias do segundo ps-guerra, destaca-se, em parti-cular, a Grundgesetz (GG), ou seja, a Lei Fundamental Alem, de 1949,

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    que j no incio do seu texto proclama solenemente a inviolabilidade da dignidade humana:

    Artigo 1[Dignidade da pessoa humana Direitos humanos Vinculao jurdica dos direitos fundamentais](1) A dignidade da pessoa humana intangvel. Respeit-la e proteg-la obrigao de todo o poder pblico.(2) O povo alemo reconhece, por isto, os direitos inviolveis e inalienveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justia no mundo.(3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, cons-tituem direitos diretamente aplicveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judicirio (ALEMANHA, 1949).

    Como se observa, no sistema jurdico alemo, a liberdade de expresso no o valor constitucional mais importante; essa posio pertence digni-dade humana, tratada como princpio constitucional supremo e direito fun-damental. Portanto, quando os casos apresentam fatos nos quais a dignidade humana e a liberdade de expresso colidem, esta deve render-se para que a dignidade humana prevalea. Alm disso, a Lei Fundamental Alem ressalta a conduta positiva do ente pblico como garantidor da proteo dignidade humana: o Estado existe para o bem do homem e no o homem, para o bem do Estado. Os indivduos requerem que o Estado tenha um papel proativo para assegurar as possibilidades de realizao de seus planos de vida. Isso no significa que o modelo alemo seja antidemocrtico, mas pressupe que a esfera pblica no tenha um discurso neutro, sendo definida em torno de valores baseados em sua superioridade tica.

    Caracterizando o republicanismo que defenderia a justificao da liberdade de expresso como liberdade positiva, o Estado ausente no liberalismo substitudo por um Estado ativo. Nesse contexto, coloca-se a questo sobre o que se deveria fazer no caso Skokie (1977), que trata-va de autorizar uma marcha nazista em um bairro em que viviam judeus sobreviventes do holocausto:

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    os liberais sustentam que o Estado deve ser neutro e respeitar as opinies que promovam seus cidados. Proibir expresses ofen-sivas e impopulares significa impor a alguns cidados os valores dos outros e no respeitar a capacidade de cada cidado escolher e expressar suas prprias opinies;

    os republicanos, ao contrrio, diferenciam em cada caso o contedo do discurso, a natureza da causa e o valor moral das comunidades locais cuja integridade estava em jogo. Os neonazistas promove-ram o genocdio e o dio, por isso memrias compartilhadas de sobreviventes do holocausto merecem deferncia moral.

    O conceito de liberdade de expresso como liberdade positiva loca-liza-se dentro da cultura jurdica alem. Para mostrar as diferenas com a perspectiva dos Estados Unidos, ser analisado o caso Lth, que, segundo o Tribunal Constitucional Federal alemo, foi o caso fundamental para a interpretao das liberdades de opinio.

    Os fatos so os seguintes: Veit Harlan, um diretor de cinema, traba-lhou em estreita colaborao com a mquina de propaganda nazista. Ele produziu e dirigiu uma srie de filmes altamente ofensivos, incluindo o filme antissemita Jud Sss, em 1940. Apesar de sua colaborao ativa com o governo nazista, os Aliados no o consideravam culpado de crimes de guerra por sua contribuio para o programa de genocdio nazista. Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, ele tentou voltar como um grande diretor e, em 1950, escreveu e dirigiu o filme Amada imortal (Unsterbliche Geliebte), que recebeu elogios na Alemanha e no exterior. Ocorre que, antes da estreia de referido filme, vrios judeus de prestgio e de influncia na mdia alem, entre eles, Eric Lth, presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, resolveram boicotar a exibio do filme, ainda que no tivesse cenas e nada que lembrasse o nazismo ou o antissemitismo. Os produtores e os distribuidores do filme buscaram uma liminar contra o boicote em uma disposio do Cdigo Civil alemo que previa uma reparao contra a pessoa

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    que intencionalmente causar prejuzo a outra pessoa de forma contrria aos bons costumes (ALEMANHA, 1900)4.

    Nesse julgamento, foi estabelecido pela primeira vez que a Constituio no um documento de valores neutros, uma vez que a seo sobre direitos fundamentais estabelece uma ordem objetiva de valores que incide sobre a dignidade humana, que deve considerada uma deciso constitucional fundamental que afeta todas as reas do direito (pblico e privado)5. Esse valor utilizado como critrio para medir e avaliar todas as aes nas reas do direito, seja no mbito do Legislativo, Executivo ou Judicirio. Portanto, claro que os direitos fundamentais tambm influenciam o desenvolvimento do direito privado. Essa doutrina, denominada Drittwirkung, assegura a eficcia dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares.

    A Corte Constitucional alem percebeu e desenvolveu alguns concei-tos que atualmente so as vigas mestras da teoria dos direitos fundamentais, como, por exemplo, a dimenso objetiva dos direitos fundamentais, a eficcia horizontal dos direitos fundamentais e a necessidade de ponderao, em caso de coliso de direitos.

    No Brasil, esses fenmenos chegaram com outras roupagens. Fala-se em constitucionalizao do direito privado e filtragem constitucional, inter-pretao conforme os direitos fundamentais.

    3.3 DUAS EXPERINCIAS, DUAS RESPOSTAS

    As formas to diversas de tratamento do discurso do dio decor-rem, evidentemente, das diferentes experincias nacionais em relao palavra. Os Estados Unidos nunca vivenciaram um regime poltico que, com o uso de discursos, falseou a realidade para estigmatizar grupos sociais especficos e contra eles fomentar a violncia. O trauma do nazismo no

    4 Art. 226 do Cdigo Civil alemo: 226 - Schikaneverbot: Die Ausbung eines Rechts ist unzulssig, wenn sie nur den Zweck haben kann, einem anderen Schaden zuzufgen.

    5 importante mencionar tambm que a negao do holocausto no considerada manifestao do pensamento possvel. Para a Alemanha, trata-se de negao de fato ocorrido e no de mera expresso do pensamento. Esse entendimento advm do julgado da Corte Constitucional alem de 1994, que se posicionou contra a tese negacionista do historiador David Irving sobre a no existncia do holocausto como um dado histrico.

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    deixa a Alemanha ver o discurso do dio como um mero discurso poltico. Ainda, nos Estados Unidos, desde o esforo para que as ex-colnias inglesas aceitassem viver sob uma nica Constituio, abrindo mo da soberania, a garantia da diversidade interna preocupao central. As liberdades de culto e de expresso esto entre os mais caros direitos entre os que, nas primeiras emendas Constituio, foram declarados.

    As duas experincias so polos, entre os quais, h uma enorme variedade de solues possveis para as democracias constitucionais. Para ilustrar as diferenas entre os dois pases, Brugger (2007, p. 119) imagina, a partir das jurisprudncias da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal Constitucional Federal alemo, o contedo de um cartaz que, levantado em frente ao Capitlio norte-americano, seria ato legtimo, protegido pela liberdade de expresso, mas que, levantado nas escadarias do Reichstag, em Berlim, configuraria ilcito:

    Acordem, massas cansadas, eu tenho quatro mensagens que melhor vocs ouvirem, entenderem e compartilharem! Primeiro, nosso Presidente um porco! Eu pintei dois quadros para demonstrar meu argumento. Aqui tem um mostrando o nosso claramente reconhecvel Presidente como um porco mantendo relaes sexuais com outro porco vestido com uma toga de juiz e, aqui, h um outro, mostrando nosso Presidente mantendo relaes sexuais com sua me na casinha. Segundo, todos os nossos soldados so assassinos. Terceiro, o Holocausto nunca aconteceu. Quarto, afro-americanos usam a mentira da escravatura para extorquir dinheiro do governo americano, da mesma forma que os judeus usam a mentira do Holocausto para extorquir dinheiro da Alemanha. Alguma coisa tem que ser feita sobre isso!

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    4 A LIBERDADE DE EXPRESSO NO CENRIO BRASILEIRO

    4.1 O CASO ELLWANGER: literatura e nazismo

    Apesar de a CRFB/88, promulgada aps o fim da ditadura militar, garantir a igualdade dos indivduos perante a lei e a proteo legal contra a discriminao, no existe no Brasil nenhuma legislao especfica em relao ao discurso do dio. O dispositivo legal que trata do tema, sob o vis no discriminatrio, a Lei n 7.716/1989, que define os crimes resultantes do preconceito de raa e de cor (BRASIL, 1989). Em seu art. 20, assim determina:

    Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminao ou pre-conceito de raa, cor, etnia, religio ou procedncia nacional. (Redao dada pela Lei n 9.459, de 15/05/97)Pena: recluso de um a trs anos e multa.(Redao dada pela Lei n 9.459, de 15/05/97) 1 Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular smbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz sustica ou gamada, para fins de divulgao do nazismo. (Redao dada pela Lei n 9.459, de 15/05/97)Pena: recluso de dois a cinco anos e multa.(Includo pela Lei n 9.459, de 15/05/97) 2 Se qualquer dos crimes previstos no caput cometido por intermdio dos meios de comunicao social ou publicao de qualquer natureza: (Redao dada pela Lei n 9.459, de 15/05/97)Pena: recluso de dois a cinco anos e multa.(Includo pela Lei n 9.459, de 15/05/97) 3 No caso do pargrafo anterior, o juiz poder determinar, ouvido o Ministrio Pblico ou a pedido deste, ainda antes do inqurito policial, sob pena de desobedincia: (Redao dada pela Lei n 9.459, de 15/05/97)I - o recolhimento imediato ou a busca e apreenso dos exem-plares do material respectivo;(Includo pela Lei n 9.459, de 15/05/97)

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    II - a cessao das respectivas transmisses radiofnicas, televisivas, eletrnicas ou da publicao por qualquer meio;(Redao dada pela Lei n 12.735, de 2012)(Vigncia)III - a interdio das respectivas mensagens ou pginas de informao na rede mundial de computadores. (Includo pela Lei n 12.288, de 2010)(Vigncia) 4 Na hiptese do 2, constitui efeito da condenao, aps o trnsito em julgado da deciso, a destruio do material apreendido. (Includo pela Lei n 9.459, de 15/05/97). (BRASIL, 1989).

    Em 17 de setembro de 2003, no Habeas Corpus 82.424/RS, o Supremo Tribunal Federal orientou-se segundo uma tradio germanista no caso do livreiro brasileiro Siegfried Ellwanger Casten, fundador da editora gacha Reviso, que escreveu e publicou livros disseminando e legitimando o dio aos judeus. Entre os principais livros editados pela Reviso, destacam-se: Holocausto: judeu ou alemo?, Hitler: culpado ou inocente? e O plano judaico de dominao mundial: os protocolos dos sbios de Sio. As obras de Ellwanger, bem como de sua editora, provocaram perplexidade e inquietao na comunidade semita brasileira por seu contedo racista e por acusar os judeus de serem responsveis pelos mais diversos infortnios da humanidade, entre eles, a ecloso da Segunda Guerra Mundial. Foi acusado de crime de racismo, com base no art. 20 da citada Lei n 7.716/1989.

    No caso em comento, o Supremo Tribunal Federal manteve a conde-nao do editor, imposta pelo Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, por crime de racismo e, por maioria de votos, o Plenrio negou o habeas corpus e acabou por repudiar o discurso do dio. A votao obteve o seguinte placar:

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    Quadro 1 Votao do Plenrio no caso Ellwanger.

    ABSOLVIO: deferimento do habeas corpus, inexistncia de racismo e liberdade de expresso irrestrita.

    CONDENAO: denegao do habeas corpus, existncia de discurso do dio e ponderao de valores em caso de coliso de direitos.

    Ministros: Moreira Alves, Carlos Ayres Britto e Marco Aurlio.

    Ministros: Carlos Velloso, Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Maurcio Corra, Nelson Jobim e Seplveda Pertence.

    Impende ressaltar que o jurista Celso Lafer (2005), na qualidade de amicus curiae, apresentou parecer defendendo a denegao do habeas corpus impetrado a favor de Siegfried Ellwanger. Ele aprofunda a discusso a partir do posicionamento de cada um dos ministros que votaram no caso em seu livro A internacionalizao dos direitos humanos.

    Alguns votos, eivados de diferentes ideologias, merecem destaque, como os dos Ministros Moreira Alves, Celso de Melo, Gilmar Mendes, Carlos Velloso e Ayres Britto (MACHADO, 2013). O primeiro ministro a votar foi Moreira Alves, relator do processo, que argumentou que, do ponto de vista cientfico, os judeus no constituem uma raa, indicando que tal constatao poderia ser verificada em razo de dados fsicos como cor da pele, formato dos olhos e textura do cabelo. Portanto, em face da inexistncia de crime de racismo, entendeu por deferir o pedido de habeas corpus e justificar o discurso do dio (STF, 2003).

    O Ministro Celso de Melo, que votou contrariamente ao habeas corpus, ponderou: Aquele que ofende a dignidade pessoal de qualquer ser humano, especialmente quando movido por razes de fundo racista, tam-bm atinge e atinge profundamente a dignidade de todos e de cada um de ns (STF, 2003). Em seguida, ao proferir seu voto, o Ministro Gilmar Mendes discorreu sobre a coliso entre direitos fundamentais: de um lado, a liberdade de expresso e, de outro, a dignidade humana. Assim, utilizando o princpio da proporcionalidade, tambm votou pelo indeferimento do remdio constitucional (STF, 2003). Nessa mesma linha, o Ministro Carlos Velloso entendeu que a liberdade de expresso em momento algum pode

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    se sobrepor dignidade da pessoa humana e denegou o habeas corpus (STF, 2003).

    O Ministro Carlos Ayres Britto, seguindo o modelo estadunidense, argumentou que a liberdade de expresso seria uma liberdade de hierarquia maior e, portanto, excludente de qualquer limite. O voto do ministro foi um tanto contraditrio, uma vez que ora reconhece que Ellwanger deixa transparecer em suas obras uma ideia preconceituosa acerca dos judeus, ora alega a impossibilidade de ser proibida a divulgao do pensamento. Ainda, citando Douglas Chrstie, declara: Ningum tem o monoplio de apresentar o desenrolar de fatos histricos. NUNCA dever ser silenciada uma discus-so, a esse respeito, por imposio de meios estatais (STF, 2003).

    Ao final do julgamento, concluiu-se que a liberdade de expresso no pode servir de respaldo para manifestaes preconceituosas, nem incitar a violncia e a intolerncia contra grupos humanos.

    4.2 O CASO UNIDOS DO VIRADOURO: samba e holocausto

    Outro caso polmico que merece destaque aconteceu no Carnaval carioca, em 2008. Com o enredo de arrepiar e alas de guilhotina, fogueira, forca e cadeira eltrica, a Escola de Samba Unidos do Viradouro pretendia apresentar uma alegoria alusiva s vtimas do holocausto que mostrava uma pilha de corpos esqulidos e nus, em que desfilaria um destaque fantasiado de Adolf Hitler. No entanto, a exibio do carro alegrico foi proibida por fora de uma ao judicial (Processo n 2008.001.024498-5), promovida no Tribunal de Justia do Rio de Janeiro pela Federao Israelita do Rio de Janeiro (FIERJ).

    A escola deixou claro que no tinha a inteno de questionar nem fortalecer a ideologia pregada pelo holocausto, mas, ao contrrio, desejava demonstrar a brutalidade histrica desse acontecimento. No entanto, o pedi-do da FIERJ foi reconhecido, tendo a magistrada, Dra. Juliana Kalichsztein, concedido a liminar e imposto uma multa de 200 mil reais se a escola de samba desfilasse com o carro na Marqus de Sapuca, alm de uma multa adicional de 50 mil reais se houvesse algum integrante da escola com fantasias

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    que lembrassem a figura de Hitler (MEYER-PFLUG, 2009). No lugar do carro alegrico do holocausto, os membros da Viradouro desfilaram usando mordaas e com a frase no se constri o futuro enterrando a histria, em protesto contra deciso judicial.

    cerceamento de liberdade de expresso impedir a banalizao dos eventos brbaros e injustificados praticados contra as minorias? justo privar o direito do artista, no caso em comento, do carnavalesco Paulo Barros, de mostrar sua obra, ainda que essa obra retrate o morticnio de judeus, praticado na Alemanha hitlerista? O holocausto trata de assunto que deve ser escondido ou esquecido?

    A deciso da juza de 1 grau do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro foi irrefletida e evidenciou a ausncia de critrios claros na resoluo do caso Ellwanger, que deu azo a interpretaes erradas acerca da proteo contra o discurso de dio, especialmente no que diz respeito motivao do agente de promover o dio e a discriminao. No caso da deciso que impediu o desfile do carro alegrico da Escola de Samba Unidos do Viradouro, entende-se que deveria prevalecer a liberdade de expresso, pois no havia qualquer inteno de banalizar a memria dos judeus mortos naquele perodo. Tratava-se de uma homenagem sria, que pretendia beneficiar a comunidade judaica, por meio da divulgao para um pblico bastante heterogneo das tragdias acontecidas naquele perodo.

    4.3 O CASO MONTEIRO LOBATO: letras e discriminao

    Desde 2011, tramita no Supremo Tribunal Federal o Mandado de Segurana 30952, de relatoria do Ministro Luiz Fux6, movido pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) contra a distribuio do livro Caadas de Pedrinho (LOBATO, 2009), publicado em 1924, a escolas p-blicas pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), do Ministrio da Educao. A alegao do IARA que passagens do livro so racistas,

    6 A princpio, o Mandado de Segurana 30952 foi distribudo para o Ministro Joaquim Barbosa, que negro, mas este se declarou suspeito para atuar no feito, por razes de foro ntimo (art. 135, pargrafo nico, do Cdigo de Processo Civil), e encaminhou os autos Presidncia para providenciar a redistribuio.

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    como a que diz que Tia Nastcia subiu em uma rvore como uma macaca de carvo. O mandado de segurana pede ainda, no caso da manuteno do livro nas escolas, que apresente nota explicativa acerca da presena de es-teretipos raciais na literatura e que sejam adotadas medidas de capacitao e formao de educadores para que a obra seja utilizada de forma adequada na educao bsica.

    Em 2012, o Ministro Luiz Fux deferiu o ingresso como assistentes de Joyce Campos Kornbluh e Jerzi Mateusz Kornbluh, herdeiros do escritor Monteiro Lobato, que advogam a favor da preservao da cultura e da histria literria do Brasil. Ao deferir o pedido, o ministro levou em considerao a qualidade de herdeiros e de detentores dos direitos autorais da obra do autor, circunstncia que poder acarretar efeitos jurdicos e patrimoniais futuros. Em maio de 2013, por meio do Parecer n 10372-RG, a Procuradoria Geral da Repblica opinou pelo no conhecimento do mandado de segurana e, se conhecido, pelo indeferimento do pedido de medida liminar.

    Inmeras tentativas de conciliao, debates e reunies j aconteceram, mas o Supremo Tribunal Federal ainda no se posicionou. A polmica ins-talou-se, bem como opinies divergentes que transitam entre a censura, a liberdade de expresso e o discurso do dio.

    4.4 O CASO LEVY FIDELIX: intolerncia e preconceito

    Em 29 de setembro de 2014, uma nova polmica acerca da relao entre discurso do dio e liberdade de expresso instaurou-se no cenrio na-cional: durante o debate eleitoral promovido pela Rede Record, o candidato Presidncia da Repblica pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), Jos Levy Fidelix da Cruz, ao ser questionado pela candidata Luciana Genro, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), sobre por que a defesa da famlia no abrange aquelas formadas por pessoas do mesmo sexo, ele se manifestou contra os homossexuais, o que foi classificado por entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como discurso do dio (FREITAS, 2014). O candidato respondeu pergunta opondo uma maioria de heterossexuais a uma minoria de homossexuais, com palavras que incitam

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    o enfrentamento: Ento, gente, vamos ter coragem. Ns somos maioria, vamos enfrentar essa minoria. Vamos enfrent-los (FREITAS, 2014). As palavras aproximam-se daquilo que, anteriormente, foi apontado como figh-ting words. Apesar das vrias crticas recebidas, no primeiro turno das eleies de 2014, Levy Fidelix ficou em ltimo lugar entre os candidatos e obteve o voto de 0,43% do eleitorado nacional; no entanto, alcanou votao recorde de sua carreira poltica e o nmero de seguidores de sua pgina oficial no Facebook aumentou 1000% aps o debate.

    Ocorre que a banalizao do discurso do dio e da incitao vio-lncia contra a populao de lsbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgneros assustadora no Brasil. Por isso, a sociedade no deve compreend-la como liberdade de expresso ou opinio, pois a histria tem inmeras amostras que comprovam as consequncias nefastas dessa prtica. Adolf Hitler, por exemplo, tambm considerava que os judeus eram uma minoria asquerosa que devia ser expurgada da Alemanha e isso culminou em uma guerra mundial e mais de seis milhes de mortos tanto judeus quanto homossexuais, comunistas, negros, ciganos, deficientes e outros grupos que o nazismo escolheu como adversrios pblicos do povo alemo. Disso no restou uma lio?

    A lio que fica que a prdica de dio no cabe na democracia. papel do Estado conter e punir qualquer forma de comunicao verbal, escrita ou simblica que instigue o recrudescimento da violncia letal contra minorias, entre elas, gays, lsbicas, travestis e transexuais.

    5 CONCLUSO

    A liberdade de expresso a mxima dentro das liberdades clssicas, constituindo um direito de primeira gerao. , em regra, um direito que exige uma absteno do Estado na sua tutela. No entanto, seu domnio no um campo ilimitado nem absoluto e pode ser restringido em nome da pon-derao de outros bens jurdicos igualmente expressivos, devendo qualquer regulao liberdade de expresso ser realizada com cautela, de modo a no retroceder censura.

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    O primeiro modelo de liberdade de expresso como liberdade negativa caracteriza-se pelo Estado no dever intervir em assuntos sobre a liberdade de expresso e dever sair para o mercado de ideias. Na liberdade negativa, no h interferncia. A verdade ou falsidade de ideias surge a partir das ideias contrrias da competio e no das decises judiciais. O Estado deve ser neutro sobre o contedo da expresso, o que tem levado a considerar inconstitucional uma regulao que proba opinies e aes racistas.

    A perspectiva estadunidense de liberdade de expresso pode causar perplexidade a partir de outras culturas jurdicas, uma vez que esta no apenas o direito constitucional mais precioso, mas tambm um dos seus sm-bolos culturais mais importantes. A nfase na no interveno estatal sobre a liberdade de expresso leva alguns a consider-la um direito absoluto. Com efeito, a Suprema Corte americana reconheceu alguns limites liberdade de expresso. A partir dessa perspectiva, de acordo com os princpios de Mill (1991), o Estado poderia regular expresses que agridem, principalmente, os membros de minorias que tm sido tradicionalmente vilipendiadas. Ademais, as manifestaes de dio, quando colocadas apenas no nvel do discurso, no produzem nenhum dano significativo para a interveno do Estado, de acordo com a Suprema Corte. A incitao ao dio estar permi-tida se no envolver tambm uma incitao violncia. Isso diferencia os Estados Unidos em relao a outras democracias que adotaram regulamentos restritivos nesse assunto.

    Quanto ao segundo modelo, que toma a Alemanha aps a Segunda Guerra Mundial, observa-se ntida preocupao com a regulao da liberda-de de expresso e a repercusso do discurso do dio. Sem dvida, a liberdade de expresso constitui direito fundamental, mas convive com o princpio da dignidade humana a lhe opor limites. importante ressaltar tambm que o princpio da dignidade humana adquire valor mximo de hierarquia no ordenamento jurdico alemo consagrado no art. 1 da Constituio promulgada no ps-guerra. Dessa forma, haver sempre a ponderao de valores em face de conflitos entre a liberdade de expresso e outros direitos fundamentais. Para os casos de violao de um direito constitucional, a soluo dar-se- pelo princpio da proporcionalidade.

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    Quanto ao Brasil, o nmero de aes judiciais envolvendo a temtica do discurso do dio ainda pequeno, no por ausncia de discriminao, mas pelo fato de que o preconceito, o racismo, a homofobia e a xenofobia manifestam-se de modo implcito, velado, muitas vezes revestidos de humor, o que assinala um discurso do dio material, dificultando seu combate.

    O pas nunca tinha enfrentado uma polmica at o caso de Siegfried Ellwanger. Para solucion-lo, o Supremo Tribunal Federal valeu-se da juris-prudncia tanto dos tribunais europeus quanto dos tribunais americanos. Ao trmino do julgamento, a Corte orientou-se segundo a tradio germanista, contra o discurso do dio, elaborando um novo conceito de raa ao pressu-por que racismo a perseguio a qualquer grupo tnico, religioso, social ou cultural. A importncia desse caso servir de paradigma para os processos posteriores, como o caso da Escola de Samba Unidos do Viradouro e dos livros de Monteiro Lobato.

    O posicionamento do Brasil, pas multicultural e formado por diferen-tes etnias, orienta um novo processo de defesa das minorias e de combate ao preconceito que, apesar de envolver a demarcao de direitos fundamentais consagrados (dignidade, igualdade e liberdade), ainda encontra barreiras incompatveis com a democracia pluralista contempornea.

    Por fim, o debate acerca dos limites entre a liberdade de expresso e o discurso do dio relevante e ganha espao nas cincias jurdicas porque, embora trate de um problema antigo, algumas questes permanecem sem contornos bem definidos. Uma soluo para o fim do preconceito seria a construo de polticas que garantam efetivamente o acesso s mdias e aos meios de comunicao das minorias vtimas de discriminao em nossa sociedade, de modo que as diferentes etnias, religies, culturas e gneros estejam de fato representados, pois, ao assegurar voz e visibilidade a esses grupos, se ergue uma sociedade igualitria, plural e desprovida de qualquer forma de intolerncia.

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    Correspondncia | Correspondence:

    Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca LunaRua Carlos Ulisses de Carvalho, 45/1502, Ed. Villaggio di Luna, Brisamar, CEP 58.033-130. Joo Pessoa, PB, Brasil.Fone: (83) 8845-8845.Email: [email protected]

    Recebido: 20/08/2014.Aprovado: 14/11/2014.

    Nota referencial:

    LUNA, Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca; SANTOS, Gustavo Ferreira. Liberdade de expresso e discurso do dio no Brasil. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 16, n. 3, p. 227-255, set./dez. 2014. Quadrimestral.