lewis, c. s. - a abolição do homem

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Se algum me perguntasse qual livro, com exceo da Bblia, deveria ser lido por todo o mundo, eu diria sem hesitar: A abolio do homem. a defesa mais sensata da Lei Natural (Moralidade) que j vi ou acredito existir. Se algum livro capaz de nos salvar dos excessos futuros da insensatez e do mal, este livro. - Walter Hooper C. S. Lewis nasceu na Irlanda, em 1898. Em 1954 tornou-se professor de Literatura Medieval e Renascentista em Cambridge. Foi ateu durante muitos anos e se converteu em 1929. Essa experincia o ajudou a entender no somente a indiferena como tambm a indisposio de aceitar a religio; e, como autor cristo, com sua mente excepcionalmente lgica e brilhante e seu estilo vivo e lcido, ele foi incomparvel. Suas obras so conhecidas, em traduo, por milhes de pessoas no mundo inteiro. A abolio do homem, Cartas de um diabo a seu aprendiz, Cristianismo puro e simples e Quatro amores so apenas alguns de seus best-sellers. Escreveu tambm livros de fico cientfica, de crtica literria e para crianas. Entre estes esto Crnicas de Nrnia. C. S. Lewis morreu em 22 de novembro de 1963 em sua casa em Oxford.

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C. S. LEWIS A ABOLIO DO HOMEM Disse o Mestre: Aquele que se pe a trabalhar com um fio diferente pe a perder todo o tecido Confcio, Analectos ii.16 A abolio do homem, ou, Reflexes sobre a educao, especialmente sobre o ensino de ingls nas ltimas sries / C. S. Lewis ; traduo Remo Mannarino Filho ; reviso da traduo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto ; reviso tcnica Geuid Dib Jardim. - So Paulo : Martins Fontes, 2005. Ttulo original: The abolition of man, or, Reflections on education with special referent to the teaching of English in the upper forms of schools. ISBN 85-336-2153-1 1. Educao : Filosofia 370.1 2. Educao : Reflexes : Filosofia da educao 370.1

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ndice 1. Homens sem peito 2. O caminho 3. A abolio do homem Apndice - Exemplos do Tao 5 14 24 34

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1 HOMENS SEM PEITO Ele ento deu a ordem de matar E matou as criancinhas. Cantiga tradicional inglesa No sei se damos a devida ateno importncia dos livros didticos do ensino bsico. por essa razo que escolhi como ponto de partida destas lies um pequeno livro de ingls destinado a "meninos e meninas das ltimas sries". No creio que os autores desse livro (so dois) tivessem ms intenes, e eu lhes devo, a eles ou ao seu editor, uma palavra de agradecimento por terem me enviado um exemplar de cortesia. Ao mesmo tempo, nada tenho de bom a dizer sobre eles. Temos aqui uma situao bem difcil. No quero ridicularizar dois modestos professores escolares que estavam dando o melhor de si, mas no posso me calar diante daquilo que julgo ser a verdadeira tendncia da obra. Proponho-me, portanto, a ocultar seus nomes. Vou me referir a esses dois senhores como Gaius e Titius, e a seu livro como O livro verde. Mas asseguro que esse livro existe e que o tenho em minhas estantes. No segundo captulo, Gaius e Titius citam a conhecida histria de Coleridge na cachoeira. Havia, vocs devem se lembrar, dois turistas presentes: um a chamou de "Sublime", e o outro, de "bonita"; e Coleridge mentalmente concordou com a opinio do primeiro e rejeitou com horror a do segundo. Gaius e Titius fazem a seguinte observao: "Quando o homem disse Isto sublime, ele parecia fazer um comentrio sobre a cachoeira... Na verdade... ele no estava falando da cachoeira, mas dos seus prprios sentimentos. O que ele realmente disse foi Eu tenho sentimentos que minha mente associa palavra 'Sublime', ou, resumidamente, Eu tenho sentimentos sublimes." Levanta-se aqui uma srie de questes profundas de maneira bastante apressada. Mas os autores ainda no terminaram. Eles acrescentam: "Essa confuso est sempre presente na nossa linguagem. Aparentamos dizer algo muito importante sobre alguma coisa, e na verdade estamos apenas dizendo algo sobre nossos prprios sentimentos."1 Antes de examinar as questes de fato levantadas por esse pequeno e significativo pargrafo (dirigido, no nos esqueamos, s "ltimas sries"), preciso eliminar uma simples confuso na qual Gaius e Titius caram. Mesmo sob o ponto de vista adotado por eles e sob qualquer ponto de vista imaginvel , o sujeito que diz Isto sublime no pode querer dizer Eu tenho sentimentos sublimes. Mesmo se admitssemos que qualidades como a sublimidade fossem simples e unicamente projees das nossas emoes, ainda assim as emoes que inspirariam as projees seriam as complementares, e portanto quase opostas, s qualidades projetadas. Os sentimentos que fazem algum chamar um objeto de sublime no so sentimentos sublimes, mas sentimentos de venerao. Se Isto sublime tiver de ser reduzido a uma afirmao sobre os sentimentos de quem fala, a transposio apropriada seria Eu tenho sentimentos humildes. Se o ponto de vista defendido por Gaius e Titius fosse coerentemente aplicado, levaria a evidentes absurdos. Eles seriam obrigados a afirmar que Voc desprezvel significa Eu tenho sentimentos desprezveis; a rigor, que Seus sentimentos mentos so desprezveis significa Meus sentimentos so desprezveis. Mas no nos detenhamos neste que o prprio pons asinorum do nosso assunto. No seria justo com Gaius e Titius dar nfase ao que sem dvida foi uma simples desateno.1

O livro verde, pp. 19-20.

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O estudante que l essa passagem no Livro verde aceitar duas proposies: primeiro, que todas as frases que contm uma atribuio de valor so afirmaes sobre o estado emocional de quem as emite, e segundo, que essas afirmaes no tm nenhuma importncia. bem verdade que Gaius e Titius no disseram nenhuma dessas coisas com todas as letras. Somente uma atribuio de valor especfica (sublime) foi considerada uma descrio das emoes do sujeito falante. A tarefa de ampliar a aplicao a todas as demais atribuies de valor deixada aos prprios alunos, e nem o mais leve obstculo posto em seus caminhos. Talvez os autores desejassem essa generalizao, talvez no; pode ser que eles no tenham refletido seriamente sobre essa questo nem por cinco minutos. Na verdade, no me interessa o que desejavam, mas sim o efeito que o livro certamente ter sobre as mentes estudantis. Da mesma forma, eles tampouco disseram que os juzos de valor no tm importncia. Suas palavras so: "aparentamos dizer algo muito importante quando na verdade estamos "apenas dizendo algo sobre nossos prprios sentimentos". Nenhum estudante ser capaz de resistir sugesto trazida pela palavra apenas. No estou dizendo, claro, que o estudante v deduzir a partir disso uma teoria filosfica geral segundo a qual todos os valores so subjetivos e insignificantes. Toda a fora de Gaius e Titius depende do fato de estarem lidando com um menino; um menino que cr estar "fazendo" a sua "tarefa de ingls" e que nem suspeita de que conceitos ticos, teolgicos e polticos esto em jogo. No uma teoria que est sendo incutida em sua cabea, mas um pressuposto; um pressuposto que, dez anos mais tarde, quando sua origem estiver esquecida e sua presena for inconsciente, vai condicion-lo a tomar um determinado partido numa controvrsia que ele jamais soube existir. Os prprios autores, suspeito eu, mal sabem o que esto fazendo com o menino, e tampouco ele tem como sab-lo. Antes de examinar as credenciais filosficas das proposies que Gaius e Titius adotaram sobre a questo do valor, eu gostaria de mostrar quais so os seus resultados prticos no processo educacional. No quarto captulo, eles citam um tolo anncio de um cruzeiro de frias e passam a incitar seus alunos contra o tipo de redao que ali se encontra2. O anncio diz que quem comprar passagens para o cruzeiro vai viajar "pelo Mar Ocidental por onde navegou Drake de Devon", "aventurar-se atrs dos tesouros das ndias" e tambm levar para casa um tesouro de "momentos dourados" e "cores fulgurantes". Trata-se de um texto ruim, sem dvida: uma explorao barata e risvel das emoes de admirao e prazer que as pessoas sentem ao visitar lugares relacionados a lendas ou fatos histricos. Se Gaius e Titius se ativessem ao propsito de ensinar o leitor a escrever uma redao (conforme prometeram fazer), deveriam comparar esse anncio com trechos de grandes escritores nos quais a mesma emoo recebe um bom tratamento, e ento mostrar onde est a diferena. Eles poderiam ter usado a famosa passagem de Johnson em Western Islands, que conclui: "Pouco h a invejar num homem cujo patriotismo no se fortaleceu na plancie de Maratona, ou cuja piedade no aumentou entre as runas de lona."3 Poderiam ter tomado aquele trecho de The Prelude em que Wordsworth descreve como vislumbrou pela primeira vez a antiguidade de Londres com "Peso e poder, Poder que crescia com o peso''4. Uma lio que tivesse mostrado literatura desse porte ao lado do anncio, e que tivesse realmente discernido o bom do ruim, teria sido uma lio digna de ser ensinada. Haveria nela sangue e seiva as rvores do conhecimento e da vida crescendo juntas. Teria2 3

Ibid., p. 53. Journey to the Western Islands (Samuel Johnson). 4 The Prelude, viii, lI. 549-59.

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tambm o mrito de ser uma lio de literatura, um assunto a respeito do qual Gaius e Titius, apesar do intuito professado, parecem singularmente acanhados. Na verdade, tudo o que eles fazem mostrar que o luxuoso navio no vai navegar por onde Drake passou, que os turistas no vivero nenhuma aventura, que os tesouros que eles levaro para casa so meramente metafricos e que uma viagem at Margate seria suficiente para lhes dar "toda a diverso e descanso" que desejavam5. Tudo isso verdade: pessoas menos talentosas que Gaius e Titius poderiam descobri-lo. O que eles no perceberam, ou no quiseram perceber, que uma avaliao bastante semelhante se aplicaria boa literatura que se vale das mesmas emoes. Afinal de contas, o que pode a histria do cristianismo primitivo da Inglaterra, de um ponto de vista puramente racional, acrescentar aos motivos que havia para a piedade no sculo XVIII? Por que a hospedaria do Sr. Wordsworth seria mais confortvel, ou o ar de Londres mais saudvel, s por causa da antiguidade dessa cidade? E, se de fato existe algo que impea que um crtico "desmascare" Johnson e Wordsworth (e Lamb, e Virglio, e Thomas Browne, e Walter de Ia Mare), da mesma forma como O livro verde desmascarou o anncio, Gaius e Titius no do a seus leitores estudantes a mais leve ajuda para descobri-lo. Com essa passagem, o estudante no aprender absolutamente nada a respeito de literatura. Mas h uma coisa que ele vai aprender bem rpido, e talvez indelevelmente: a crena de que todas as emoes associadas com lugares so em si mesmas contrrias razo e por isso desprezveis. Ele no ter nenhuma idia de que h duas formas de ser imune a anncios desse tipo; que tais anncios so igualmente inteis para os que esto acima e para os que esto abaixo deles, isto , para o homem de verdadeira sensibilidade e para o primata de calas que nunca foi capaz de conceber o Oceano Atlntico como nada alm de milhes de toneladas de gua fria e salgada. H dois tipos de homens para quem so vos os apelos de um falso artigo opinativo sobre patriotismo e honra: um tipo o covarde; o outro, o homem honrado e patritico. Nada disso dito ao estudante. Ao contrrio, ele encorajado a rejeitar a seduo do "Mar Ocidental" sob a perigosa alegao de que, se agir assim, provar ser um sujeito esperto e difcil de tapear. Gaius e Titius, ao mesmo tempo que nada lhe ensinam sobre as letras, extirpam de sua alma, muito antes que ele tenha idade para decidir, a possibilidade de ter certas experincias que outros pensadores, de autoridade maior que a deles, afirmaram ser frteis, frutferas e humanas. Mas no se trata s de Gaius e Titius. Em outro livrinho, cujo autor chamarei de Orbilius, descubro que a mesma operao, sob a mesma anestesia, est sendo realizada. Orbilius escolhe para "desmascarar" um tolo trecho sobre cavalos, em que esses animais so louvados como os "servos voluntrios" dos primeiros colonizado-Homens sem peito rs da Austrlia6. E ele cai na mesma armadilha que Gaius e Titius. Nada diz de Ruksh e Sleipnir, nem dos chorosos corcis de Aquiles, nem dos cavalos guerreiros do Livro de J nem mesmo do Irmo Coelho das fbulas infantis ou de Pedro, o Coelho , nem da prhistrica piedade dos homens pelo "nosso irmo boi", de nenhum desses tratamentos semiantropomrficos que damos aos animais na histria humana e na literatura, onde quer que eles encontrem expresses nobres ou vvidas7. Nada dito nem mesmo sobre os problemasO livro verde, pp. 53-5. Livro de Orbilius, p. 5. 7 Orbilius to superior a Gaius e Titius que chega a propor (pp. 19-22) uma comparao entre o trecho criticado e um bom texto sobre animais. Infelizmente, contudo, a nica superioridade que ele realmente demonstra no segundo fragmento sua superioridade em verdade factual. A questo especificamente literria (o uso e abuso de expresses que so falsas secundum litteram) no abordada. verdade que Orbilius nos diz (p. 97) que devemos "aprender a distinguir entre afirmaes figuradas legtimas e ilegtimas", mas ele6 5

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que a cincia levanta no campo da psicologia animal. Ele se contenta em explicar que os cavalos no esto, secundum litteram, interessados na expanso colonial8. Essa informao, na verdade, tudo o que os seus alunos conseguem tirar dele. No descobriro por que a composio apresentada ruim, enquanto outras, que podem ser alvo da mesma acusao, so boas. E aprendero ainda menos sobre as duas categorias de homens que esto, respectivamente, acima e abaixo dos riscos desses escritos os homens que realmente conhecem e amam os cavalos, no com iluses antropomrficas, mas com um amor ordenado, e os irredimveis e tacanhos homens urbanos, para quem um cavalo somente um meio de transporte ultrapassado. Eles tero perdido a oportunidade de desfrutar momentos de prazer com seus pneis e seus ces; tero recebido um incentivo crueldade ou negligncia; e tero aprendido a se deleitar na prpria esperteza. Pois essa a lio de ingls do dia, ainda que de ingls ela nada ensine. Outra pequena poro da herana humana lhes foi sorrateiramente tomada antes que eles tivessem idade suficiente para compreender. At agora, tenho suposto que professores como Gaius e Titius no percebem inteiramente o que esto fazendo e que no tm o intuito consciente de atingir as conseqncias de grande alcance que de fato desencadeiam. H, claro, outra possibilidade. Aquilo que eu chamei (supondo que eles comunguem de um certo sistema de valores tradicional) de "primata de calas" e de "tacanho homem urbano" pode ser precisamente o tipo de homem que eles querem produzir. As nossas diferenas podem ser irredutveis. Pode ser que eles de fato sustentem que os sentimentos humanos comuns em relao ao passado ou aos animais ou s grandes cachoeiras so contrrios razo e desprezveis, e devem por isso ser erradicados. A inteno deles pode ser a de varrer para longe os valores tradicionais e dar incio a um novo repertrio. Essa posio ser discutida mais adiante. Se essa a posio defendida por Gaius e Titius, devo me contentar por enquanto em apontar que ela uma posio filosfica, e no literria. Ao fazer desse o assunto de seus livros, eles foram injustos com os pais ou pedagogos, que compraram a obra de filsofos amadores quando esperavam a obra de gramticos profissionais. Um sujeito ficaria chateado se o seu filho voltasse do dentista com os dentes intocados e com a cabea abarrotada dos obiter dicta do dentista sobre o bimetalismo ou sobre a teoria de Bacon. Mas duvido de que Gaius e Titius tenham realmente planejado usar o ensino de ingls como disfarce para propagar sua filosofia. Creio que eles foram cair nesse assunto pelas seguintes razes. Em primeiro lugar, fazer crtica literria difcil, e o que eles fazem muito mais fcil. Explicar por que um tratamento infeliz de alguma emoo humana primria constitui m literatura, se excluirmos os ataques falaciosos emoo em si mesma, uma tarefa difcil de ser empreendida. Mesmo o Dr. Richards, que foi o primeiro a se debruar sobre o problema da m qualidade literria, fracassou, creio eu, em sua tentativa. J "desmascarar" a emoo com base num lugar-comum racionalista est ao alcance de qualquer um. Em segundo lugar, creio que Gaius e Titius sinceramente entenderam errado a urgente necessidade pedaggica do nosso tempo. Eles vem o mundo ao redor dominado pela propaganda emotiva aprenderam com a tradio que a juventude sentimental e concluem que a melhor coisa a fazer fortalecer a mente dos jovens contra a emotividade. A minha prpria experincia como professor me ensina justamente opouco nos ajuda a pr isso em prtica. No entanto, preciso fazer justia e lembrar que, na minha opinio, essa obra est num nvel bem superior ao do Livro verde. 8 Ibid., p. 9.

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contrrio. Pois, para cada aluno que precisa ser resguardado de um leve excesso de sensibilidade, existem trs que precisam ser despertados do sono da fria vulgaridade. O dever do educador moderno no o de derrubar florestas, mas o de irrigar desertos. A defesa adequada contra os sentimentos falsos inculcar os sentimentos corretos. Ao sufocar a sensibilidade dos nossos alunos, apenas conseguiremos transform-los em presas mais fceis para o ataque do propagandista. Pois a natureza agredida h de se vingar, e um corao duro no uma proteo infalvel contra um miolo mole. Mas existe uma terceira e mais profunda razo para a opo feita por Gaius e Titius. possvel que eles admitam que uma boa educao deve moldar alguns sentimentos e extirpar outros. Pode ser at que estejam empenhados em faz-lo. Mas impossvel que obtenham bons resultados. Faam o que fizerem, o lado "desmascarados" da sua obra, e somente ele, que vai ser determinante. Para demonstrar a necessidade disso serei obrigado a desviar-me um pouco do assunto e mostrar que aquilo que podemos chamar de "a difcil situao educacional de Gaius e Titius" algo bem diferente da de todos os seus predecessores. At bem recentemente, todos os professores, e os homens em geral, acreditavam que o universo tinha uma natureza tal que nossas reaes emocionais poderiam tanto ser congruentes como incongruentes em relao a ele acreditavam, na verdade, que os objetos no so meros receptores, mas podem merecer nossa aprovao ou desaprovao, nossa reverncia ou nosso desprezo. Coleridge acreditava que a natureza inanimada era de tal forma que determinadas reaes poderiam ser mais "justas" ou "adequadas" ou "apropriadas" do que outras e essa evidentemente a razo pela qual ele concordou com o turista que chamou a queda-d'gua de sublime e discordou do que a chamou de bonita. E ele acreditava (com razo) que os turistas tambm pensavam assim. O homem que chamou a queda-d'gua de sublime no tinha simplesmente a inteno de descrever as suas prprias emoes: ele tambm afirmava que o objeto merecia a tais emoes. Se no fosse assim, no haveria nada com o que concordar ou do que discordar nessa afirmao. Discordar da frase Isso bonito, se essas palavras simplesmente expressassem os sentimentos de uma pessoa, seria absurdo: se o turista tivesse dito Sinto-me mal, Coleridge certamente no teria retrucado No; eu me sinto muito bem. Shelley assume a mesma posio quando, tendo comparado a sensibilidade humana com uma lira elica, vai adiante e diz que aquela difere desta por possuir uma capacidade de "ajuste interno" que lhe permite "acomodar suas cordas aos movimentos daquilo que as tange"9. "Pode um homem ser justo", pergunta Traherne, "a menos que seja justo ao outorgar a cada coisa a estima devida? Todas as coisas foram feitas para ser nossas e ns fomos feitos para apreci-las de acordo com seus valores."10 Santo Agostinho define a virtude como ordo amoris a disposio ordenada das afeies, na qual cada objeto corresponde ao grau de amor que lhe apropriado11. Aristteles diz que o objetivo da educao fazer com que o aluno goste e desgoste do que certo gostar e desgostar12. Quando a idade do pensamento reflexivo chegar, o aluno assim treinado nas "afeies ordenadas" ou nos "justos sentimentos" facilmente encontrar os primeiros princpios na tica; mas o homem corrupto no poder enxerg-los e no far nenhum progresso nessa cincia13. Plato, antes dele, j havia dito o mesmo. O9

Defence of Poetry. Centuries of Meditations, i, 12. 11 De Civ. Dei, XV. 22. C ibid. ix. 5, xi. 28. 12 Eth. Nic. 1104 B. 13 Ibid. 1095 B.10

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animalzinho humano no ter logo de cara as reaes certas. Ele deve ser treinado para sentir prazer, agrado, repulsa e dio em relao s coisas que realmente so prazerosas, agradveis, repulsivas e odiveis14. Na Repblica, o jovem bem-educado "aquele que veria com maior clareza o que h de errado em obras humanas imperfeitas ou em obras incompletas da natureza, e com uma justa averso censuraria e odiaria o feio mesmo em sua juventude, e elevaria aprazveis louvores beleza, recebendo-a em sua alma e sendo nutrido por ela, de modo que se torne um homem de corao gentil. Tudo isso antes que ele alcance a idade da razo; de modo que, quando a Razo por fim lhe chegar, ento, com a criao que recebeu, ele abrir seus braos para lhe dar as boas-vindas e a reconhecer por causa da afinidade que tem por ela"15. No hindusmo primitivo, a conduta dos homens que podem ser chamados bons consiste na conformidade ou quase na participao na Rta, o grande rito ou modelo do natural e do sobrenatural que se revela do mesmo modo na ordem do cosmos, nas virtudes morais e nas cerimnias do templo. A retido, a correo, a ordem, a Rta so constantemente identificadas com satya ou a verdade, correspondncia com a realidade. Tal como Plato dizia que o Bem est "alm da existncia' e Wordsworth dizia que pela virtude as estrelas so fortes, assim tambm os mestres indianos dizem que os prprios deuses nascem da Rta e obedecem a ela16. Os chineses tambm falam de um grande ente (o maior dos entes) chamado Tao. Ele a realidade alm de todos os atributos, o abismo que era antes do Prprio Criador. Ele a Natureza, a Via, o Caminho. a Via pela qual o universo prossegue, a Via da qual tudo eternamente emerge, imvel e tranqilamente, para o espao e o tempo. tambm a Via que todos os homens deveriam trilhar, imitando essa progresso csmica e supracsmica, amoldando todas as atividades a esse grande modelo17. "No ritual", dizem os Analectos, " a harmonia com a Natureza que louvada."18 Os antigos judeus igualmente louvavam a Lei como "verdadeira"19. A bem da brevidade, de agora em diante vou me referir a essa concepo, em todas as suas formas platnica, aristotlica, estica, crist e oriental , simplesmente como "o Tao". Algumas das suas descries que acabo de citar podem a muitos parecer meramente exticas ou mesmo mgicas. Mas h entre elas algo em comum que no pode ser negligenciado. a doutrina do valor objetivo, a convico de que certas posturas so realmente verdadeiras, e outras realmente falsas, a respeito do que o universo e do que somos ns. Aqueles que conhecem o Tao podem afirmar que chamar uma criana de graciosa e um ancio de venervel no simplesmente registrar um fato psicolgico sobre nossas momentneas emoes paternas ou filiais, mas reconhecer uma qualidade que exige de ns uma certa resposta, quer a demos, quer no. De minha parte, no aprecio a companhia das crianas pequenas, mas, uma vez que falo de dentro do Tao, reconheo nisso um defeito meu da mesma forma como um homem pode reconhecer-se daltnico ou desprovido de ouvido musical. E, uma vez que nossas aprovaes e desaprovaes soDas leis, 653. A Repblica, 402 A. 16 A. B. Keith, s.v. "Righteousness (Hindu)" Enc. Religion and Ethics, vol. x. 17 Ibid., vol. ii, p. 454 B; iv. 12 B; ix. 87 A. 18 The Analects of Confucius, trans. Arthur Waley, Londres, 1938, i. 12. 19 Salmo 119: 151. A palavra emeth, "verdade". Onde o Satya dos indianos d nfase verdade como "correspondncia", emeth (ligada a um verbo que significa "ser estvel") d nfase antes confiabilidade ou credibilidade da verdade. Fidelidade e permanncia so sugeridas pelos hebrastas como tradues alternativas. Emeth aquela que no ilude, no "cede", no muda, aquela que contm as guas. (Ver T. K. Cheyne na Encyclopedia Bblica, 1914, s.v. "Truth".)15 14

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assim reconhecimentos do valor objetivo ou respostas a uma ordem objetiva, os estados emocionais podem portanto estar em harmonia com a razo (quando sentimos afeio por aquilo que merece aprovao) ou em desarmonia com ela (quando percebemos que a afeio merecida mas no conseguimos senti-la). Nenhuma emoo e, em si mesma, um julgamento; nesse sentido, todas as emoes e sentimentos so algicos. Mas eles podem ser razoveis ou irrazoveis na medida em que se conformam Razo ou no conseguem conformar-se. O corao nunca toma o lugar da cabea, mas ele pode, e deve, obedecerlhe. O mundo do Livro verde ergue-se inteiramente contra isso. Nele, a prpria possibilidade de um sentimento ser razovel ou mesmo irrazovel foi excluda desde o princpio. Pois uma coisa s pode ser razovel ou irrazovel se est em conformidade ou em desconformidade com alguma outra coisa. Dizer que a queda-d'gua sublime significa dizer que a nossa emoo de humildade apropriada ou ordenada realidade, e portanto falar de algo alm das emoes, assim como dizer que o sapato me serve, falar no s do sapato, mas tambm dos meus ps. Mas essa referncia a algo para alm da emoo o que Gaius e Titius excluem de todas as frases que contm uma atribuio de valor. Essas afirmaes, para eles, referem-se unicamente emoo. Assim, a emoo, considerada por si prpria, no pode estar nem em concordncia nem em discordncia com a Razo. Ela irracional no da forma como um paralogismo irracional, mas como um evento fsico irracional: ele no chega a se elevar nem mesmo dignidade do erro. Sob esse ponto de vista, o mundo dos fatos, sem nenhum trao de valor, e o mundo dos sentimentos, sem nenhum trao de verdade ou falsidade, justia ou injustia, se enfrentam mutuamente, e nenhum rapprochement possvel. Portanto, o problema educacional completamente diferente dependendo da posio que se adota: dentro ou fora do Tao. Para aqueles que esto dentro, a tarefa treinar os alunos para que desenvolvam as reaes em si mesmas apropriadas, quer eles as tenham quer no, e construir aquilo que constitui a verdadeira natureza humana. Aqueles que esto fora, se agirem com lgica, devero considerar todos os sentimentos como igualmente no-racionais, como meras nvoas entre ns e os objetos reais. Em conseqncia, eles devem ou se empenhar em remover todos os sentimentos, tanto quanto possvel, da mente dos alunos, ou ento encorajar sentimentos por razes que nada tm a ver com sua "justia" ou "pertinncia" intrnsecas. Esta ltima opo os compromete com o questionvel processo de criar nos outros, por "sugesto" ou por feitio, uma miragem que suas prprias capacidades racionais j conseguiram dissipar. Talvez isso fique mais claro se tomarmos um exemplo concreto. Quando um pai romano dizia a seu filho que era doce e digno morrer por sua ptria, ele acreditava no que dizia. Estava comunicando ao filho uma emoo de que ele prprio partilhava e que estava de acordo com o valor que via numa morte honrada. Estava dando ao menino o melhor de si, dando algo do seu esprito para humaniz-lo, da mesma forma como j havia dado algo do seu corpo para ger-lo. Mas Gaius e Titius no podem crer que, ao chamar uma morte assim de doce e digna, estivessem dizendo "algo importante sobre alguma coisa". Seu prprio mtodo de desmascaramento se voltaria contra eles caso tentassem faz-lo. Pois a morte no algo comestvel e portanto no pode ser dulce num sentido literal, e improvvel que as sensaes que vo na realidade preced-la sejam dulce, mesmo numa analogia. E assim tambm com decorum que no passa de uma palavra que descreve o sentimento de algumas pessoas ao se recordar dessa morte, coisa que no vai acontecer com muita freqncia e que certamente no trar nenhuma vantagem ao morto. S existem duas possibilidades para Gaius e Titius. Ou bem eles iro at o fim e desmascararo esse 11

sentimento como qualquer outro, ou bem se empenharo em produzir, desde fora, um sentimento que crem desprovido de valor para o aluno e que pode custar-lhe a vida, somente porque til para ns (os sobreviventes) que os jovens pensem assim. Se eles optarem por esse caminho, a diferena entre a educao antiga e a nova ser muito significativa. Enquanto a antiga promovia uma iniciao, a nova apenas "condiciona". A antiga lidava com os alunos da mesma maneira como os pssaros crescidos lidam com os filhotes quando lhes ensinam a voar; a nova lida com eles mais como o criador de aves lida com os jovens pssaros fazendo deles alguma coisa com propsitos que os prprios pssaros desconhecem. Em suma, a educao antiga era uma espcie de propagao homens transmitindo a humanidade para outros homens; a nova apenas propaganda. Deve-se alegar em favor de Gaius e Titius que a sua opo pela primeira alternativa. Eles abominam a propaganda: no porque sua filosofia leve a essa condenao (ou a qualquer outra coisa), mas porque eles so melhores que os seus prprios princpios. provvel que tenham alguma vaga idia (questo que vou examinar na minha prxima lio) de que o valor, a boa-f e a justia possam ser recomendados ao aluno com base naquilo que eles chamam de preceitos "racionais" ou "biolgicos" ou "modernos", caso isso seja necessrio. Enquanto isso, deixam pendente a questo e seguem tratando de desmascarar. Mas esse caminho, embora menos inumano, no menos desastroso que a alternativa da propaganda cnica. Suponhamos por um momento que as virtudes mais rduas realmente pudessem justificar-se teoricamente sem nenhum apelo ao valor objetivo. Ainda assim continua sendo verdade que nenhuma justificao da virtude habilita um homem a ser virtuoso. Sem a ajuda das emoes treinadas, o intelecto permanece impotente diante do organismo animal. Eu preferiria jogar cartas contra um homem que fosse inteiramente ctico em relao tica, mas que tivesse sido criado para acreditar que "um cavalheiro no trapaceia", do que contra um irrepreensvel filsofo moral que tenha crescido entre vigaristas. Numa batalha, no so os silogismos que vo manter os relutantes nervos e msculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo (do tipo que Gaius e Titius abominam) em relao a uma bandeira, pas ou regimento ser bem mais til. Isso nos foi dito h muito tempo por Plato. Assim como o rei governa por seus delegados, tambm a Razo no homem deve dominar os simples apetites fazendo uso do "elemento vigoroso"20. A cabea domina o estmago por meio do peito que o trono, como nos disse Alanus, da Magnanimidade21, das emoes transformadas em sentimentos estveis pelo hbito treinado. O Peito, a Magnanimidade, o Sentimento esses so os indispensveis dignitrios de ligao entre o homem cerebral e o homem visceral. Pode-se dizer mesmo que por esse elemento intermedirio que o homem homem, pois pelo seu intelecto ele apenas esprito, e pelo seu apetite ele apenas animal. A operao do Livro verde e seus semelhantes produzir o que podemos chamar de Homens sem Peito. abominvel que no raro dem a isso o nome de Intelectuais. Isso lhes d a chance de dizer que quem os ataca, est atacando a Inteligncia. No verdade. Eles no se distinguem dos demais homens por uma habilidade especial para encontrar a verdade nem por um ardor insupervel ao persegui-la. Seria de fato estranho se assim fossem: uma perseverante devoo verdade, um sentido agudo de honra intelectual no podem ser mantidos por muito tempo sem a ajuda dos sentimentos que Gaius e Titius20 21

A Repblica, 442 B, C. Alanus ab Insulis. De Planou Naturae Prosa, iii.

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desmascarariam com a facilidade habitual. No o excesso de pensamento que os caracteriza, mas uma carncia de emoes frteis e generosas. Suas cabeas no so maiores que as comuns: a atrofia do peito logo abaixo que faz com que paream assim. E todo o tempo tal o carter tragicmico da nossa situao continuamos a clamar por essas mesmas qualidades que tornamos impossveis. Mal podemos abrir um peridico sem topar com a afirmao de que nossa civilizao precisa de mais "mpeto", ou dinamismo, ou auto-sacrifcio, ou "criatividade". Numa espcie de mrbida ingenuidade, extirpamos o rgo e exigimos a sua funo. Produzimos homens sem peito e esperamos deles virtude e iniciativa. Caoamos da honra e nos chocamos ao encontrar traidores entre ns. Castramos e ordenamos que os castrados sejam frteis.

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2 O CAMINHO sobre o Tronco que um cavalheiro deve trabalhar Confcio, Analectos, 1.2 O resultado prtico da educao feita nos moldes propostos pelo Livro verde ser inevitavelmente a destruio da sociedade que a aceitar. Mas isso no constitui necessariamente uma refutao da teoria do subjetivismo de valores. A verdadeira doutrina poderia ser tal que, uma vez aceita, nos levaria morte. Ningum que fale de dentro do Tao pode rejeitar uma teoria baseando-se nisso: . Mas ainda no chegamos a esse ponto. Existem sim problemas tericos na filosofia de Gaius e Titius. No importa o quo subjetivistas sejam em relao a certos valores tradicionais, Gaius e Titius mostraram, pelo simples fato de terem escrito O livro verde, que existem valores que para eles nada tm de subjetivos. Afinal, eles escrevem com o intuito de produzir determinados estados mentais nas novas geraes; portanto, ou consideram esses estados mentais intrinsecamente bons e justos, ou ento certamente crem-nos meios de alcanar uma sociedade que julgam desejvel. No seria difcil inferir de vrias passagens do Livro verde qual o ideal para o qual trabalham. Mas no preciso faz-lo. A questo central no a natureza precisa dessa finalidade, mas o prprio fato de haver uma finalidade. Ela tem de existir, ou ento o livro (que uma obra fundamentalmente prtica) no teria nenhuma razo de ser. E essa finalidade tem de ser muito valiosa a seus olhos. Seria um subterfgio nos esquivarmos de design-la com o termo "boa", recorrendo em vez disso a atributos como "necessria", progressista' ou "eficiente". Eles seriam for ados pela lgica a responder s perguntas: "necessrio para qu?", "progressista em direo a qu?", "eficaz em qu?". Em ltima instncia, eles teriam de reconhecer que, em sua opinio, algum estado de coisas bom em si mesmo. E dessa vez no poderiam afirmar que o termo "bom" simplesmente descreve as emoes que sentem. Pois todo o propsito do livro condicionar o jovem leitor a partilhar de certas opinies; e, a no ser que eles sustentem que essas opinies so em certa medida valorosas ou corretas, esse seria um empreendimento descabido ou mesmo malvolo. A bem da verdade, veremos que Gaius e Titius defendem, com um dogmatismo inteiramente acrtico, todo o sistema de valores que estava em voga entre os jovens de classe mdia de instruo mediana durante o perodo entre as duas grandes guerras22. O22

A verdadeira (e talvez inconsciente) filosofia de Gaius e Titius torna-se clara se comparamos as duas seguintes listas de coisas aprovadas e desaprovadas. A. Desaprovadas: O apelo de uma me para que seu filho seja "corajoso" "absurdo" (O 11- vro verde, p. 62). O sentido da palavra "cavalheiro" "extremamente vago" (ibid.). "Chamar um homem de covarde nada nos diz sobre as suas aes" (p. 64). Sentimentos a respeito de um pas ou de um imprio so sentimentos "a respeito de nada em especial" (p. 77). B. Aprovadas: Aqueles que preferem as artes de paz s artes de guerra (no dito em quais circunstncias) so aqueles que "podemos chamar de homens sbios" (p. 65). Espera-se do aluno que "acredite numa vida comunitria democrtica" (p. 67). "O contato com as idias de outros povos , conforme sabemos, saudvel" (p. 86). A razo da existncia dos banheiros ("que mais saudvel e mais agradvel conviver com as pessoas quando elas esto limpas") "demasiado bvia para que precisemos mencion-la" (p. 142). Podemos ver que conforto e segurana, tal como se manifestam nas ruas dos bairros residenciais em tempos de paz, so os valores supremos: as nicas coisas que podem produzir ou espiritualizar o conforto e a segurana so ridicularizadas. S de po vive o homem, e a fonte suprema do po a carroa do padeiro: a paz mais importante que a honra, e pode ser mantida pelos expedientes de xingar coronis e ler jornais.

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ceticismo em relao aos valores apenas superficial, sendo vlido apenas para os valores alheios; eles no so muito cticos em relao aos valores correntes em seus prprios meios. E esse fenmeno bastante comum. Muitos dos que "desmascaram" os valores tradicionais ou (como eles dizem) "sentimentais" tm no fundo valores prprios, que crem imunes a desmascaramentos semelhantes. Alegam estar cortando pela raiz o crescimento parasitrio da emoo, da autoridade religiosa, de tabus herdados, para que os valores "verdadeiros" ou "autnticos" possam emergir. Tentarei agora descobrir o que acontece quando se tenta empreender isso a srio. Continuemos a usar o exemplo anterior, da morte por uma boa causa no que a virtude seja o nico valor, e o martrio a nica virtude, claro; mas tomaremos o exemplo por ser ele o experimentam crucis que lana uma luz esclarecedora sobre os diferentes sistemas de pensamento. Suponhamos que um Inovador em matria de valores considere o dulce et decoram e o homem nenhum tem amor maior como sentimentos meramente irracionais que devem ser eliminados se quisermos descer at as bases "realsticas" ou "autnticas" desse valor. Onde ele ir encontrar tais bases? Antes de mais nada, possvel que ele diga que o verdadeiro valor reside na utilidade desse sacrifcio para a comunidade. Ele pode dizer: "Bom aquilo que til para a comunidade." Mas claro que a morte de toda a comunidade no til para a comunidade, e sim somente a morte de alguns dos seus membros. O que no fundo est sendo dito que a morte de alguns homens til para outros homens. E isso a pura verdade. Mas com base em que se pede a alguns homens que morram pelo bem dos outros? Est excludo por hiptese todo e qualquer apelo ao orgulho, honra, vergonha ou ao amor. Usar algum desses conceitos seria retornar aos sentimentos, e a tarefa do Inovador arranc-los todos pela raiz e em seguida explicar aos homens, baseando-se unicamente na racionalidade, por que razo devem morrer pelos seus semelhantes. Ele pode dizer: "A menos que alguns de ns se arrisquem a morrer, todos ns certamente morreremos." Mas isso s valer para um nmero limitado de casos; e, mesmo nos casos em que isso for vlido, levanta-se a razoabilssima objeo: "Por que logo eu deveria ser um dos que se arriscam?" A essa altura, o Inovador pode perguntar por que, afinal de contas, o egosmo seria mais "racional" ou "inteligente" que o altrusmo. A pergunta pertinente. Se por Razo entendermos o processo de fato usado por Gaias e Titias em seus desmascaramentos (isto , a associao lgica de proposies, em ltima anlise retiradas dos dados dos sentidos, com proposies posteriores), ento a resposta dever ser que o egosmo no mais racional que o sacrifcio, tampouco menos racional. Nenhuma das duas opes racional ou irracional de maneira nenhuma. De proposies retiradas somente de fatos no jamais possvel tirar nenhuma concluso prtica. A enunciao A preservao da sociedade depende disso no pode levar ao imperativo faa isso, exceto se for mediada por outra enunciao, qual seja: a sociedade deve ser preservada. Da mesma forma, Isso ir custar a sua vida no pode levar diretamente a no faa isso: somente pelo intermdio de um desejo ou por um reconhecido dever de autopreservao. O Inovador tenta chegar a uma concluso de teor imperativo a partir de uma premissa de teor indicativo, e, mesmo que siga tentando por toda a eternidade, no vai conseguir, pois seria impossvel. Temos aqui, portanto, duas opes: uma delas ampliar a acepo da palavra Razo, incluindo nela aquilo que nossos ancestrais chamavam de Razo Prtica e admitindo com isso que juzos como a sociedade tem de ser preservada no so meros sentimentos, mas proposies racionais em si mesmas (embora eles no possam se sustentar por nenhuma das razes exigidas por Gaius e Titius); a outra opo desistir de uma vez por todas da tentativa de 15

encontrar uma essncia de valor "racional" por trs de todos os sentimentos que desmascaramos. O Inovador no optar pela primeira alternativa, pois os princpios prticos, conhecidos por todos os homens pelo uso da Razo, so simplesmente o Tao que ele queria suplantar. mais provvel que ele desista da busca pela essncia "racional" e passe a procurar outras bases mais "fundamentais" e "realsticas". E ele provavelmente crer que tais bases podem ser encontradas no Instinto. Dir que preservao da sociedade, e mesmo da prpria espcie, finalidade que no depende do precrio fio da Razo: dada pelo Instinto. por isso que desnecessrio discutir com aqueles que discordam. Todos ns temos um impulso instintivo de preservar a nossa prpria espcie. E por isso que os homens devem trabalhar pela posteridade. No temos nenhum impulso instintivo de cumprir promessas ou de respeitar a vida individual: por isso que escrpulos de justia e humanidade o Tao, em outras palavras podem ser devidamente varridos para longe quando entram em conflito com o nosso verdadeiro fim, a preservao da espcie. por isso, novamente, que as circunstncias modernas permitem e requerem uma nova moral sexual: os velhos tabus desempenhavam um papel importante pela preservao da espcie, mas mtodos dos contraceptivos modificaram a situao, de modo que podemos agora abandonar muitos desses tabus. Pois claro que o desejo sexual, sendo instintivo, deve ser satisfeito sempre que no estiver em conflito com a preservao da espcie. Parece, de fato, que uma tica baseada no instinto vai dar ao Inovador tudo o que ele quer e livr-lo de tudo o que no quer. Na verdade, no fizemos com isso avano nenhum. No vou insistir na tese de que Instinto um nome que damos s coisas que desconhecemos (dizer que os pssaros migram para o lugar certo por instinto apenas dizer que no sabemos como os pssaros migram para o lugar certo), pois creio que o termo est sendo usado aqui numa acepo razoavelmente definida, em que significa um impulso irrefletido e espontneo que geralmente aparece em membros de uma certa espcie. De que maneira o Instinto, assim concebido, nos ajuda a encontrar os valores "autnticos"? Afirma-se que estamos fadados a obedecer ao Instinto, que no podemos agir de outro modo? Mas, se assim, por que livros como O livro verde e assemelhados so escritos? Por que tamanho esforo de exortao para nos levar ao lugar para o qual iramos de qualquer jeito? Por que tamanho louvor por aqueles que se submeteram ao inevitvel? Ou ser que se afirma que ao obedecer ao Instinto ficaremos felizes e satisfeitos? Mas a prpria questo que estvamos analisando era a de encarar a morte, com a qual (pelo que sabe o Inovador) cessa toda e qualquer possibilidade de satisfao. Portanto, se tivermos um desejo instintivo pelo bem da posteridade, esse desejo no poder nunca ser satisfeito, uma vez que ele s ser alcanado, na melhor das hipteses, quando estivermos mortos. Ao que parece, o Inovador no diria que estamos fadados a obedecer ao Instinto, tampouco que obteremos satisfao ao faz-lo. Diria, isso sim, que temos o dever de obedecer-lhe 23.De todas as que pude conhecer, a tentativa mais agressiva de construir uma teoria do valor com base na "satisfao dos impulsos" foi a do Dr. 1. A. Richards (Principies of Literary Criticism, 1924). A antiga objeo identificao entre Valor e Satisfao est expressa no juzo de valor universal segundo o qual " melhor ser Scrates insatisfeito do que um porco satisfeito". Para combater tal juizo o Dr. Richards esfora-se por mostrar que nossos impulsos podem ser dispostos numa hierarquia e que alguns prazeres podem ser preferidos a outros, sem que se faa nenhum apelo a qualquer critrio diferente da prpria satisfao. Ele o afirma com base na doutrina que diz que alguns impulsos so mais "importantes" que outros um impulso importante aquele cuja frustrao acarreta a frustrao de outros impulsos. Uma boa sistematizao (i.e., uma boa vida) consiste na satisfao de tantos impulsos quanto possvel, o que necessariamente implica a satisfao dos "importantes" custa dos "pouco importantes". As objees a esse esquema me parecem ser duas:23

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Mas por que deveramos faz-lo? Por acaso h algum outro instinto de ordem superior que nos obrigue a isso, e um terceiro instinto, de uma ordem ainda superior, que nos obrigue a obedecer ao anterior? Uma srie infinita de instintos? Isso presumivelmente impossvel, mas a nica resposta aceitvel. De uma afirmao sobre um fato psicolgico, como "tenho um impulso de fazer isso e aquilo", no podemos ingenuamente inferir o princpio prtico "eu tenho de obedecer a esse impulso". Seria possvel afirmar que os homens tm um impulso espontneo e irrefletido de sacrificar a prpria vida pela preservao dos seus semelhantes; mas mesmo assim restaria a questo, completamente diferente, de saber se esse um dos impulsos que devem ser controlados ou um daqueles a que devemos ceder. Pois mesmo o Inovador reconhece que muitos impulsos (aqueles que se chocam com a preservao da espcie) tm de ser controlados. E esse reconhecimento certamente nos traz uma dificuldade ainda mais fundamental. Dizer que devemos obedecer ao Instinto como dizer que devemos obedecer s "pessoas". As pessoas dizem coisas diferentes, e assim tambm os instintos. Nossos instintos esto em guerra. Se afirmssemos que o instinto de preservao da espcie deve sempre ser atendido em detrimento de todos os outros, de onde estaramos tirando essa regra de primazia? Ouvir o clamor desse instinto e decidir em seu favor seria um tanto simplrio. Cada instinto, se o ouvirmos atentamente, clamar por ser atendido custa de todos os outros. Pelo simples fato de ouvirmos um deles e no os demais, estaremos fazendo um julgamento prvio da questo. Se no trouxermos ao exame dos nossos instintos um conhecimento comparativo das suas dignidades, nunca1 0 caminho 1 poderemos deduzi-lo a partir deles prprios. E esse conhecimento no pode ser ele mesmo instintivo: o juiz no pode ser uma das partes julgadas; ou, caso fosse, a deciso no teria nenhuma validade e no haveria por que situar a preservao da espcie acima da autopreservao ou do apetite sexual. muito persistente a idia de que possvel encontrar bases para preferir um dos instintos sem apelar a nenhuma instncia superior a eles prprios. Ns nos agarramos a termos inteis: damos a ele o nome de "bsico", ou "fundamental", ou "primevo", ou "profundo". De nada adianta. Ou bem essas palavras encobrem um juzo de valor(1) Sem uma teoria da imortalidade no resta lugar para o valor da morte honrada. Pode-se dizer, claro, que um homem que tenha salvado a sua vida com um ato de traio vai sofrer de frustrao pelo resto da vida. Mas certamente no com a frustrao de todos os seus impulsos. Enquanto isso, o morto no ter a satisfao de nenhum impulso. Ou ser que afirmaro que, por no ter nenhum impulso frustrado, o morto est em situao melhor que a do homem vivo e desgraado? Isso j nos leva segunda objeo. (2) O valor em uma sistematizao deve ser julgado pela presena de satisfao ou pela ausncia de insatisfao? O caso extremo o do homem morto cujas satisfaes e insatisfaes (do ponto de vista moderno) so iguais a zero, contra o traidor que ainda pode comer, beber, dormir, coar-se e copular, mesmo que no possa mais desfrutar da amizade ou do amor ou do respeito prprio. Mas o problema surge tambm em outros nveis. Suponhamos que A tenha apenas 500 impulsos e que todos sejam satisfeitos, e que B tenha 1200 impulsos, dos quais 700 sejam satisfeitos e 500 sejam frustrados: qual deles realiza a melhor sistematizao? No h dvida sobre qual das duas opes o Dr. Richards realmente prefere ele chega a louvar a arte por nos deixar "inconformados" com a vulgaridade comum! (op. cit., p. 230). O nico indcio de um embasamento filosfico que eu consigo ver nessa escolha a afirmao de que, "quanto mais complexa uma atividade, mais consciente ela C (p. 109). Mas, se a satisfao o nico valor que existe, por que o aumento da conscincia seria algo bom? Pois a conscincia a condio de todas as insatisfaes, bem como de todas as satisfaes. O sistema do Dr. Richards no oferece nenhum fundamento para a sua (e nossa) preferncia pela vida civilizada em detrimento da vida selvagem, ou pelo humano em detrimento do animal ou mesmo pela vida em detrimento da morte.

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sobreposto ao instinto e portanto no derivado dele , ou ento elas meramente registram a intensidade com que os sentimos, a freqncia do seu funcionamento e a amplitude do seu alcance. Se a opo for a primeira, a tentativa de basear o valor no instinto ter sido abandonada; se for a segunda, tais observaes sobre os aspectos quantitativos de um fato psicolgico no levaro a nenhuma concluso prtica. o velho dilema. Ou as premissas j traziam em si um imperativo, ou a concluso segue sendo meramente um indicativo24. Por fim, vale a pena perguntar se de fato existe algum instinto de preocupao com a posteridade ou com a preservao da espcie. Eu no sou capaz de encontr-lo em mim mesmo, e no entanto sou uma pessoa propensa a pensar no futuro remoto uma pessoa capaz de obter prazer lendo o Sr. Olaf Stapledon*. Acho ainda menos provvel que a maioria das pessoas que se sentaram ao meu lado em bondes ou que estavam comigo em filas por a sentissem um impulso irracional de fazer qualquer coisa pela espcie ou pela posteridade. Somente as que receberam um tipo especfico de educao poderiam chegar a ter em mente a idia de "posteridade". difcil atribuir ao instinto a nossa atitude diante de um objeto que somente existe para homens propensos reflexo. O impulso que temos naturalmente , isso sim, o de proteger nossos filhos e netos, impulso este que se torna mais tnue medida que a imaginao entra em cena e que finalmente desaparece no "deserto da posteridade". Nenhum pai guiado por tal instinto cogitaria nem sequer por um instante defender os interesses dos seus descendentes hipotticos contra os dos bebs chorando e esperneando no quarto ao lado. Alguns dos adeptos do Tao podem, talvez, dizer que seria esse o seu dever, mas isso no vale para os que crem que o instinto a fonte de todos os valores. Conforme passamos do amor materno para o planejamento racional do futuro, passamos do domnio do instinto para o da escolha e da reflexo; e, se o instinto aOs expedientes desesperados aos quais um homem pode recorrer quando tenta basear valor em fato esto bem exemplificados no livro Science and Ethics, do Dr. C. H. Waddington. Na obra, ele explica que "a existncia a sua prpria justificativa" (p. 14) e escreve: "Uma existncia essencialmente evolutiva , ela prpria, a justificativa para uma evolu o em direo a uma existncia mais ampla" (p. 17). No creio que o Dr. Waddington esteja vontade nesse ponto de vista, j que ele se empenha em nos convencer do curso evolutivo usando trs argumentos que no se baseiam na mera existncia do mesmo curso. (a) Que os estgios mais avanados incluem ou "abarcam" os anteriores. (b) Que a imagem de evoluo de T. H. Huxley no causa indignao se for encarada de um ponto de vista "atuarial". (e) Que, de toda forma, afinal de contas, ela no nem de longe to horrorosa quanto a imagem que as pessoas tm dela ("nem to moralmente ofensiva que no possamos acen-la", p. 18). Esses trs paliativos so mais creditveis ao corao do Dr. Waddington do que ao seu crebro, e, segundo me parece, fazem desistir da sua posio principal. Se a Evoluo louvada (ou, ao menos, justificada) com base em qualquer das suas propriedades, ento estaremos usando um critrio externo, e a tentativa de fazer da existncia a sua prpria justificativa foi abandonada. Se a tentativa mantida, por que o Dr. Waddington se concentra na Evoluo, Le., numa fase temporria da existncia orgnica em um nico planeta? Isso seria "geocentrismo" da sua parte. Se Bom = "qualquer coisa que a Natureza acaso esteja fazendo", ento certamente deveramos observar o que a Natureza est fazendo como uni todo; e a Natureza como um todo, creio eu, est resoluta e irreversivelmente trabalhando no sentido da extino final de toda a vida em cada parte do universo, de maneira que a tica do Dr. Waddington, despida da sua enigmtica tendncia para um assunto to provinciano quanto a biologia telrica, nos deixaria como nicas obrigaes o assassinato e o suicdio. Confesso que mesmo isso me parece uma objeo menos contundente do que a discrepncia entre o primeiro princpio do Dr. Waddington e os juzos de valor de fato feitos pelos homens. Apreciar uma coisa somente porque ela acontece na verdade cultuar o acaso, como Quisling ou os homens de Vichy. Outras filosofias mais perversas j foram tramadas, mas nenhuma to vulgar. Estou longe de sugerir que o Dr. Waddington pratica em sua vida uma prostrao to servil ante o fait accompli. Esperemos que a obra Rasselas, cap. 22, d a imagem certa daquilo que a sua filosofia realmente produz quando aplicada. ("O filsofo, supondo que os outros estivessem vencidos, levantou-se e partiu com o ar de um homem que houvesse cooperado com o sistema vigente.") * Autor ingls de fico cientfica que escrevia romances sobre o futuro da espcie humana. (N. do T)24

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fonte de todos os valores, o planejamento do futuro tem necessariamente de ser menos respeitvel e obrigatrio que o balbuciar do beb, os afagos da me carinhosa ou as mais fantsticas histrias de dormir de um pai dedicado. Se fssemos nos pautar pelo instinto, as coisas concretas seriam essas, e a preocupao com a posteridade no passaria de uma sombra a imensa e trmula sombra da felicidade do berrio projetada sobre a tela do futuro incerto. No digo que essa projeo seja ruim, mas tambm no sou eu quem afirma que o instinto a base dos juzos de valor. Absurdo seria afirmar que a preocupao com a posteridade se justifica pelo instinto e em seguida escarnecer do nico instinto sobre o qual ela poderia se sustentar. Seria como arrancar a criana do seio materno para a creche, e de l para o jardim-de-infncia, em nome dos interesses do progresso e da raa vindoura. A verdade por fim se torna evidente: o Inovador no poder encontrar os fundamentos para um sistema de valores e nem numa operao qualquer com proposies factuais e tampouco nos apelos ao instinto. Nenhum dos princpios exigidos ser encontrado a; esto todos em outro lugar. "Tudo o que est no interior dos quatro mares seu irmo" (xii. 5), diz Confcio a respeito do Chn-tzu, o cuor gentil ou o cavalheiro. Humani nihil a me alienum puto*, diz o Estico. "Tudo o que quereis que vos faam, fazei vs a eles", diz Jesus. "A Humanidade deve ser preservada", afirma Locke25. Todos os princpios prticos por trs da preocupao do Inovador com a posteridade, ou com a sociedade, ou imemoriais. Mas no esto em nenhum outro lugar. A no ser que reconheamos esses princpios como sendo para o campo da ao o que os axiomas so para o campo da teoria, no ser possvel ter princpios prticos de maneira nenhuma. Eles no so concluses a que chegamos: so as premissas. possvel, j que no podem ser "justificados" de maneira a silenciar Gaius e Titius, tom-los como sentimentos: ser ento necessrio desistir de opor o valor "real" ou "racional" ao valor sentimental. Todo valor ser sentimental; e ser preciso admitir (sob pena de abrir mo de todos os valores) que nem todos os sentimentos so "meramente" subjetivos. possvel, por outro lado, consider-los to racionais ou melhor, como a prpria racionalidade quanto coisas to obviamente no que no carecem de provas nem as admitem. Mas ento voc teria de reconhecer que a Razo pode ser prtica, que no se pode esquivar de um dever simplesmente porque ele no capaz de produzir um juzo como sua justificativa. Se nada evidente por si, nada se pode provar. Da mesma forma, se nada obrigatrio por si mesmo, nada pode ser obrigatrio. Pode parecer a alguns que apenas dei um novo nome quilo que sempre se chamou de instinto fundamental ou primordial. Mas h muito mais em jogo do que uma simples escolha de palavras. O Inovador ataca os valores tradicionais (o Tao) em nome daquilo que ele inicialmente supe serem (num sentido prprio) os valores "racionais" ou "biolgicos". Mas, conforme vimos, todos os valores que ele usa para atacar o Tao, e que afirma serem capazes de substitu-lo, so eles prprios derivados do Tao. Se ele tivesse realmente partido do zero, desde fora da tradio dos valores humanos, nada seria capaz de faz-lo avanar um s centmetro na direo da idia do sacrifcio que um homem deve morrer pela sua comunidade ou trabalhar pela posteridade. Se o Tao sai de cena, saem com ele todas essas concepes de valor. Nenhuma delas pode reivindicar qualquer autoridade diferente da do Tao. somente a partir dos escombros do Tao que se torna possvel atac-lo. Surge ento a questo: qual o pretexto apresentado para aceitar alguns dos seus fragmentos e rejeitar os demais? Pois, se os fragmentos rejeitados no tm autoridade, tampouco a tm os aceitos;* Em latim, Nada do que humano me alheio. (N. do T.) 25 Ver Apndice.

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e, se os aceitos so vlidos, tambm o so os rejeitados. O Inovador, por exemplo, tem em alta conta as necessidades da posteridade. Ele no pode chegar a nenhuma necessidade real da posteridade partindo dos instintos ou da razo (no sentido moderno deste termo). Na verdade, do prprio Tao que ele est colhendo tais deveres para com a posteridade; o dever de fazer o bem a todos os homens um axioma da Razo Prtica, e o dever de fazer o bem aos nossos descendentes claramente uma deduo a partir desse axioma. Mas ento, em todas as formas do Tao que se manifestaram a ns, lado a lado com o dever para com nossos filhos e descendentes reside o dever para com nossos pais e ancestrais. Com que direito rejeitamos um e aceitamos o outro? Mais uma vez, o Inovador pode querer pr o valor econmico em primeiro lugar. Alimentar e vestir as pessoas a grande finalidade em questo, e os escrpulos de justia e boa-f podem ser deixados de lado quando buscamos essa finalidade. claro que o Tao concorda com ele sobre a necessidade de alimentar e vestir as pessoas. A menos que o Inovador estivesse se valendo do Tao, no poderia nunca ter chegado a esse dever. Mas pinto com ele no Tao residem aqueles deveres de justia e boaf que o Inovador est disposto a desbancar. Ele se baseia em qu? possvel que ele seja um jingosta, um adepto de filosofias racistas, um nacionalista extremo, que sustente que o progresso do seu prprio povo o objetivo para o qual tudo o mais deve estar ordenado. Mas nenhuma observao factual e nenhum apelo ao instinto daro a ele um embasamento para essa opo. Mais uma vez, ele est na verdade retirando-a do Tao: um dever para com os nossos consangneos, somente porque so nossos consangneos, faz parte da moral tradicional. Mas junto dele no Tao, e limitando-o, esto as inflexveis exigncias de justia e a regra segundo a qual, em ltima anlise, todos os homens so nossos irmos. De onde vem a autoridade do Inovador para pinar e escolher? Uma vez que no consigo encontrar resposta para essas perguntas, chego s seguintes concluses. Isso a que tenho chamado por convenincia de Tao, e que outros poderiam chamar Lei Natural, Moral Tradicional, Primeiros Princpios da Razo Prtica ou Primeiros Lugares-comuns, no um entre uma srie de sistemas de valores possveis. a nica fonte possvel de todos os juzos de valor. Caso seja rejeitado, todos os valores sero tambm rejeitados. Se qualquer valor for preservado, tambm ele ser preservado. O intuito de refut-lo e de erigir em seu lugar um novo sistema de valores em si mesmo contraditrio. Nunca houve, e nunca haver, um juzo de valor radicalmente novo na histria do mundo. Tudo aquilo que pretende ser um novo sistema ou (como se diz agora) uma "ideologia" consiste em fragmentos do prprio Tao, arbitrariamente arrancados de seu contexto e ento hipertrofiados at a loucura em seu isolamento, mas devendo ainda ao Tao, e somente a ele, a validade que possuem. Se o meu dever para com meus pais no passa de superstio, ento o mesmo vale para meus deveres em relao posteridade. Se a justia uma superstio, ento tambm o o meu dever para com o meu pas ou para com a minha raa. Se a busca do conhecimento cientfico um valor verdadeiro, ento tambm o a fidelidade conjugal. A rebeldia das novas ideologias contra o Tao a rebeldia dos galhos contra a rvore: se os rebeldes pudessem vencer, descobririam que destruam a si prprios. A capacidade da mente humana para inventar novos valores no maior do que a de imaginar uma nova cor primria, ou, na verdade, a de criar um novo sol e um novo cu no qual ele se mova. Isso significa que nossas percepes acerca dos valores no podem jamais evoluir? Que estamos para sempre atados a um cdigo imutvel que nos foi dado de uma vez por todas? E seria possvel, de qualquer modo, falar de obedincia quilo que estamos chamando de Tao? Se formos comparar, como fizemos, os sistemas morais tradicionais do 20

Oriente e do Ocidente o cristo, o pago e o judeu , no encontraremos inmeras contradies e mesmo alguns absurdos? Reconheo que h verdade em tudo isso. preciso ter algum senso crtico, remover algumas contradies e at mesmo promover algumas melhoras. Mas existem duas maneiras muito diferentes de se ter senso crtico. Um acadmico que estude idiomas pode abordar a sua lngua natal com certo distanciamento, apreciar a sua natureza como se fosse algo que nada tem a ver com ele, defendendo alteraes radicais dos termos e das grafias, motivado unicamente por interesses comerciais ou por critrios cientficos. Isso uma coisa. Um grande poeta, que tenha "amado e sido bem instrudo em sua lngua materna', pode tambm promover nela grandes alteraes, mas suas mudanas na lngua sero feitas no esprito da prpria lngua: ele trabalha de dentro. A lngua que se submete s mudanas foi a mesma que as inspirou. Isso uma coisa completamente diferente assim como as obras de Shakespeare so diferentes do ingls corriqueiro. Essa a diferena entre a alterao vinda de dentro e a alterao vinda de fora: a mesma que existe entre o orgnico e o cirrgico. Da mesma forma, o Tao comporta um desenvolvimento que vem de dentro. Existe uma diferena entre um autntico avano moral e uma simples inovao. Existe um avano autntico da mxima confuciana "No faas com os outros o que no gostarias que fizessem contigo" para a crist "Assim, em tudo, faam aos outros o que vocs querem que eles lhes faam." J a moral de Nietzsche um exemplo de simples inovao. O primeiro caso um avano porque ningum que no reconhecesse a validade da antiga mxima poderia ver uma razo para aceitar a mais recente, e qualquer um que aceitasse a antiga iria imediatamente reconhecer a mais recente como sendo uma ampliao do mesmo princpio. Caso a rejeitasse, seria por consider-la suprflua, ou algo que foi longe demais, mas no algo simplesmente heterogneo em relao s suas prprias idias de valor. Mas a tica nietzschiana s poderia ser aceita se estivssemos dispostos a descartar a moral tradicional como um simples erro, se nos pusssemos em uma posio de onde no pudssemos encontrar nenhum fundamento para os juzos de valor. Essa a diferena entre um homem que nos diz: "J que voc gosta de comer legumes frescos, por que no os planta no quintal para com-los ainda mais frescos?" e um que nos diz: "Jogue fora esse pedao de po e experimente comer tijolos ou centopias em vez disso." Aqueles que compreendem o esprito do Tao, e que tenham sido norteados por esse esprito, podem modific-lo, bastando para isso lev-lo para as direes que o prprio esprito exige. S eles podem saber quais so essas direes. Um intruso nada pode saber sobre isso. As suas tentativas de mudana, conforme foi visto, so contraditrias. Sendo inteiramente incapaz de penetrar no esprito para harmonizar as discrepncias literais, ele simplesmente se agarra a um preceito que tenha chamado a sua ateno por meras circunstncias temporais e espaciais, e ento o leva at as ltimas conseqncias sem que tenha nenhuma razo para tanto. de dentro do prprio Tao que emerge a nica autoridade para modificar o Tao. isso o que Confcio quis dizer quando afirmou que " intil aconselhar-se com aqueles que seguem um Caminho diferente"26. por isso que Aristteles afirmava que s aqueles que tivessem recebido boa criao poderiam obter algum xito no estudo da tica: para o homem corrompido, o homem de fora do Tao, o prprio ponto de partida dessa cincia invisvel27. Um homem assim pode at ser hostil, porm jamais crtico: ele no sabe o que est sendo discutido. por isso que tambm se diz

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Analectos, xv. 39. Eth. Nic. 1095 B, 1140 B, 1151 A.

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que "Mas esta plebe, que no conhece a Lei, maldita"28 e "Aquele que crer ser salvo"29. Em assuntos no cruciais, uma mente aberta pode ser til. Mas, no que se refere aos fundamentos primordiais tanto da Razo Prtica quanto da Terica, uma mente aberta estupidez. Se a mente de um homem aberta em relao a esses assuntos, que ele ao menos faa o favor de ficar calado. Ele nada pode dizer que seja pertinente. Fora do Tao, no h possibilidade de crtica nem ao prprio Tao nem a mais nada. possvel sem dvida que em alguns casos seja uma questo sutil determinar onde termina a crtica interna legitima e onde comea a fatal crtica externa. Mas onde quer que um preceito da moral tradicional tenha sido desafiado a se justificar, como se coubesse a ele o nus da prova, teremos feito a escolha errada. O verdadeiro reformador se esfora por demonstrar que o preceito em questo entra em conflito com algum outro preceito que ele reconhece como mais fundamental, ou que ele na verdade no encarna o juzo de valor que alega encarnar. Os ataques frontais e diretos tais como "Por qu?", "O que h de bom nisso?" ou "Quem disse?" no so jamais admissveis; no por serem rudes ou ofensivos, mas porque nenhum valor jamais pode se justificar dessa forma. Se insistirmos nesse tipo de inquirio, acabaremos por destruir todos os valores, destruindo assim as bases da prpria crtica junto com a coisa criticada. No se deve apontar uma pistola para a cabea do Tao. Tampouco se deve adiar a obedincia a um preceito at que suas credenciais tenham sido examinadas. Somente aqueles que praticam o Tao podero compreend-lo. o homem bem criado, o cuor gentil e somente ele, que capaz de reconhecer a Razo quando ela aparece30. Foi somente Paulo, o Fariseu, o homem "perfeito no tocante Lei", que foi capaz de perceber onde e como aquela Lei era deficiente31. Para evitar mal-entendidos, devo acrescentar que embora de minha parte eu seja um testa, e na verdade um cristo, no estou aqui apresentando nenhum argumento indireto para o tesmo. Estou apenas argumentando que, se vamos cultivar qualquer valor, devemos aceitar as mais fundamentais obviedades da Razo Prtica como absolutamente vlidas: que qualquer tentativa, movida pelo ceticismo, de restabelecer valores mais profundos em bases supostamente mais "realistas" est fadada ao fracasso. Se essa posio implica ou no uma origem sobrenatural para o Tao uma questo da qual no me ocuparei aqui. Contudo, como podemos esperar que a mentalidade moderna aceite as concluses a que chegamos? Afinal, esse Tao que, segundo parece, devemos tratar como algo absoluto simplesmente um fenmeno como qualquer outro o reflexo, na mentalidade dos nossos antepassados, do ritmo das suas plantaes, talvez mesmo da sua fisiologia. j conhecemos em linhas gerais como essas coisas foram produzidas, em breve poderemos conhec-las em detalhe, e por fim seremos capazes de produzi-las vontade. claro que, enquanto no sabamos como se produziam as mentalidades, aceitamos esse aparato mental simplesmente como um dado, ou at mesmo como um mestre. Mas muitas coisas da natureza que foram nossos mestres acabaram se tornando nossos servos. Por que no a mente? Por que nossas conquistas sobre a natureza devem ser interrompidas, numa reverncia descabida, ante esse pedao persistente e derradeiro da "natureza" que tem sido at aqui chamado de conscincia humana? Voc nos ameaa com terrveis desastres caso esse limite seja transposto, mas fomos da mesma forma ameaados por obscurantistas em cada passo da nossa evoluo, e a ameaa mostrou-se sempre falsa. Voc nos diz que noJo 7:49. Isso foi dito maliciosamente, porm com mais verdade do que poderia supor quem a disse. Cf. Jo 13:51. 29 Mc 16:6. 30 A Repblica, 402 A. 31 Fp 3:6.28

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nos restar nenhum valor se pisarmos fora do Tao. Muito bem: provavelmente descobriremos que podemos perfeitamente ir em frente sem valor nenhum. Consideremos todas as idias de dever como um simples e til mtodo de sobrevivncia: deixemos de lado tudo isso e comecemos a fazer o que bem quisermos. Decidamos por ns mesmos o que o homem deve ser e faamos com que se torne o que desejamos, no com base num valor ideal, mas apenas porque queremos que assim seja. Tendo decidido as nossas circunstncias, sejamos agora os nossos prprios mestres e escolhamos os nossos prprios destinos. Essa uma posio possvel, e aqueles que a defendem no podem ser acusados de contradio como os cticos indiferentes que ainda esperam encontrar valores "realistas" depois de terem desbancado os tradicionais. Trata-se da rejeio total do conceito de valor. Precisarei de outro captulo para apreci-la.

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3 A ABOLIO DO HOMEM Um pensamento ardeu na minha mente: por mais que ele dissesse e por mais que me lisonjeasse, vender-me-ia como escravo quando me tivesse em seu poder Bunyan "A conquista da Natureza pelo Homem" uma expresso utilizada habitualmente para descrever o progresso das cincias aplicadas. "O Homem derrotou a Natureza", disse algum no faz muito tempo a um amigo meu. Em seu contexto, essas palavras tinham uma certa beleza trgica, pois o sujeito que as pronunciou estava morrendo de tuberculose. "No importa", prosseguiu, "sei que sou uma das baixas. claro que existem baixas do lado dos vencedores e do lado dos perdedores. Mas isso no muda o fato de que o Homem est vencendo." Escolhi essa histria como ponto de partida com o intuito de deixar claro que no desejo menosprezar o que existe de benfico no processo descrito como "a conquista humana", e muito menos toda a verdadeira paixo e o sacrifcio pessoal que a tornaram possvel. Mas, dito isto, devo passar a uma anlise um pouco mais atenta dessa concepo. Em que sentido o Homem possui um poder crescente sobre a Natureza? Consideremos trs exemplos tpicos: o avio, o rdio e os anticoncepcionais. Numa comunidade civilizada, em tempos pacficos, qualquer um que tenha dinheiro pode fazer uso dessas trs coisas. Mas no se pode dizer estritamente que quem o faz est exercendo seu poder pessoal ou individual sobre a Natureza. Se eu pago para que algum me leve a algum lugar, no se pode dizer que eu seja um homem que dispe de poder. Todas e cada uma das trs coisas que mencionei podem ser negadas a alguns homens por outros homens por aqueles que vendem, ou por aqueles que permitem que sejam vendidas, ou por aqueles que possuem os meios de produzi-Ias, ou por aqueles que as produzem. Aquilo que chamamos de poder do Homem , na realidade, um poder que alguns homens possuem, e que por sua vez podem ou no delegar ao resto dos homens. Novamente, no que se refere ao poder do avio ou do rdio, o Homem tanto o paciente ou o objeto como o possuidor de tal poder, uma vez que ele o alvo tanto das bombas quanto da propaganda. E, quanto aos anticoncepcionais, existe paradoxalmente um sentido negativo no qual todas as possveis geraes futuras so os pacientes ou objetos de um poder exercido por aqueles que j vivem. Pela contracepo enquanto tal, simplesmente lhes negada a existncia; pela contracepo usada como meio de reproduo seletiva, so obrigados a ser, sem que ningum os consulte, o que uma gerao, por suas prprias razes, vier a escolher. Sob esse ponto de vista, o que chamamos de poder do Homem sobre a Natureza se revela como um poder exercido por alguns homens sobre outros, com a Natureza como instrumento. Trata-se, claro, de um lugar-comum reclamar que os homens tm usado erroneamente e contra seus prprios congneres o poder que a cincia lhes outorgou. Mas no isso o que quero demonstrar aqui. No me refiro a abusos ou degradaes particulares que pudessem ser sanados por um aperfeioamento da virtude moral; estou tratando daquilo que sempre e essencialmente ser aquilo que chamamos de "o poder do Homem sobre a Natureza". Sem dvida, esse quadro poderia ser alterado com a estatizao das matrias-primas e das empresas e mediante o controle pblico da investigao cientfica. Mas, a menos que existisse um nico Estado mundial, ainda teramos a preponderncia de algumas naes sobre outras. E mesmo essa nica nao ou Estado mundial significaria (em geral) o poder das maiorias sobre as minorias e (em particular) o poder do governo sobre o povo. E todos os exerccios de poder a longo prazo, 24

especialmente no que diz respeito natalidade, significam o poder das geraes anteriores sobre as posteriores. Essa ltima questo nem sempre suficientemente enfatizada, pois os estudiosos de assuntos sociais ainda no aprenderam a imitar os fsicos na considerao do tempo como uma dimenso. A fim de compreender plenamente o que de fato significa o poder do Homem sobre a Natureza e, portanto, o poder de alguns homens sobre outros, devemos considerar a raa humana no tempo, desde a data da sua apario at a da sua extino. Cada gerao exerce um poder sobre os seus sucessores e cada uma, na medida em que modifica o meio ambiente que herda e na medida em que se rebela contra a tradio, limita o poder dos seus predecessores e resiste a ele. Isso modifica o quadro comumente apresentado de uma progressiva emancipao da tradio e de um crescente controle dos processos naturais como resultando em um contnuo crescimento do poder do homem. Na verdade, evidente que, se alguma gerao realmente alcanasse, mediante a educao cientfica e a eugenia, o poder de realizar em seus descendentes o que bem entendesse, qualquer homem que vivesse depois dessa gerao seria objeto de tal poder. E seria mais fraco, e no mais forte, pois, embora tenhamos sido capazes de pr engenhos maravilhosos em suas mos, teremos prefixado a maneira como deve us-los. E se, como provvel acontecer, a gerao que tenha alcanado o poder mximo for tambm a gerao mais emancipada da tradio, ela se ver comprometida a reduzir o poder dos seus predecessores to drasticamente quanto o dos seus sucessores. Tambm temos de lembrar que, parte isto, quanto mais recente uma gerao e, por conseqncia, quo mais prxima est da extino da espcie , menor o poder que ter para avanar, uma vez que estaro reduzidos os objetos das suas aes. Por isso, no existe um poder conferido a toda a raa e que cresce substancialmente medida que essa raa segue vivendo. Os ltimos homens, longe de serem os herdeiros do poder, sero os que mais estaro sujeitos mo mortal dos grandes planejadores e manipuladores, e sero os menos capazes de exercer algum poder sobre o futuro. O quadro resultante o de uma poca dominante digamos por exemplo o sculo C d.C. que resiste com xito s geraes precedentes e domina de forma irresistvel as seguintes e, portanto, dominante na espcie humana. Mas, dentro dessa gerao dominante (que , ela prpria, uma minoria infinitesimal da espcie), o poder ser exercido por uma minoria ainda mais reduzida. A conquista da Natureza pelo Homem, caso se realizem os sonhos de alguns cientistas planejadores, significaria que algumas centenas de homens estariam governando os destinos de bilhes e bilhes. No h nem pode haver nenhum acrscimo ao poder do Homem. Cada novo poder conquistado pelo homem da mesma forma um poder sobre o homem. Cada avano o deixa mais fraco, ao mesmo tempo que mais forte. Em toda vitria, o homem ao mesmo tempo o general que triunfa e o escravo que segue o carro dos vencedores. Ainda no estou considerando se o resultado de tais vitrias ambivalentes algo bom ou mau. Estou apenas esclarecendo o que verdadeiramente significa a conquista da Natureza e, especialmente, qual o seu ltimo estgio (que talvez no esteja longe). O ltimo estgio vir quando, mediante a eugenia, a manipulao pr-natal e uma educao e propaganda baseadas numa perfeita psicologia aplicada, o Homem alcanar um completo domnio sobre si mesmo. A natureza humana ser a ltima parte da Natureza a se render ante o Homem. A batalha estar ento vencida. Teremos "arrancado o fio da vida das mos de Cloto" e, da por diante, seremos livres para fazer da nossa espcie aquilo que desejarmos. A batalha estar definitivamente vencida. Mas a pergunta : quem exatamente a ter vencido? 25

Pois o poder do Homem para fazer de si mesmo o que bem quiser significa, conforme vimos, o poder de alguns homens para fazer dos outros o que bem quiserem. No h dvida de que sempre, ao longo da histria, a educao e a cultura, de algum modo, pretenderam exercer tal poder. Mas a situao para a qual voltamos nossas atenes inusitada em dois aspectos. Em primeiro lugar, o poder estar enormemente hipertrofiado. At agora, os planos educativos conseguiram pouco do que pretendiam e, de fato, quando os relemos vendo como Plato faria de cada criana "um bastardo criado em uma repartio pblica", e como Elyot desejava que a criana no visse homem nenhum at os sete anos e, completada essa idade, no visse nenhuma mulher32, e como Locke queria os meninos de sapatos esfarrapados e sem aptido para a poesia33 , podemos agradecer a benfica teimosia das verdadeiras mes, das verdadeiras amas e (sobretudo) das verdadeiras crianas por preservar a sanidade que a raa humana ainda possui. Mas os projetistas de homens destes novos tempos estaro armados com os poderes de um Estado onicompetente e uma irresistvel tecnologia cientfica: obteremos finalmente uma raa de manipuladores que podero, verdadeiramente, esculpir toda a posteridade a seu bel-prazer. A segunda diferena ainda mais importante. Nos sistemas antigos, tanto o tipo de homem que os educadores pretendiam produzir quanto seus motivos para faz-lo estavam prescritos pelo Tao uma norma que sujeitava os prprios professores e frente qual no pretendiam ter a liberdade da transgresso. No reduziam os homens a um esquema por eles estabelecido. Transmitiam o que tinham recebido: iniciavam o jovem nefito nos mistrios da humanidade que a todos concernia. Exatamente como as velhas aves ensinando as novas a voar. Mas isso vai mudar. Os valores agora so meros fenmenos naturais. Juzos de valor sero produzidos no aluno como parte do condicionamento. Qualquer que seja o Tao, ele ser o produto, e no a razo, da educao. Os Manipuladores se livraram disso tudo. mais uma parte da Natureza que eles conquistaram. A origem ltima de toda ao humana j no , para eles, algo dado. Eles a tm sob seu domnio tal como a eletricidade: funo dos Manipuladores control-la, no obedecer-lhe. Sabem como produzir a conscincia e decidem qual tipo de conscincia iro produzir. Esto fora desse processo e acima dele. Pois estamos chegando ao ltimo estgio da luta humana contra a Natureza. A ltima vitria foi obtida. A natureza humana foi conquistada e conquistou qualquer que seja o sentido que essas palavras possam ter agora. Os Manipuladores, nesse ponto, estaro em condio de escolher que tipo artificial de Tao iro impor raa humana, segundo as razes que lhes convierem. Eles so os motivadores, os criadores de motivos. Mas de onde que tiram esses motivos? No princpio, talvez, possvel que tragam reminiscncias do antigo Tao "natural". Assim, num primeiro momento, eles podem olhar para si prprios e enxergar guardies e servos da humanidade, crendo ter o "dever" de exercer "bem" esse papel. Mas somente a confuso pode faz-los insistir nessa postura. Eles consideram o conceito de dever como o resultado de certos processos que agora so capazes de controlar. A vitria que conquistaram consistiu precisamente em passar do estado em que se sujeitavam a essesThe Boke Named the Governour, 1. iv: "Todos os homens, exceto os mdicos, deveriam ser mantidos longe dos berrios." 1. vi: "Depois que uma criana atingiu os sete anos de idade (...) o mais aconselhvel priv-la de toda companhia de mulheres." 33 Some Thoughts concerning Education, 7: "Tambm o aconselho a lavar seus ps em gua fria todos os dias, e a usar sapatos to finos que possam deixar vazara gua para dentro, sempre que dela se aproximar." 174: "Caso ele tenha uma veia potica, para mim coisa das mais estranhas que o pai deseje ou tolere que isso seja encorajado ou desenvolvido. Creio que os pais devem se empenhar para que essa tendncia seja sufocada e suprimida tanto quanto possvel." Ainda assim, Locke um dos nossos educadores mais sensveis.32

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processos ao estado em que os utilizam como ferramentas. Uma das coisas que precisam decidir agora e se vo ou no nos condicionar a seguir aceitando a velha idia de dever e as velhas reaes diante dela. Como que a idia de dever pode ajud-los a tomar essa deciso? O prprio dever um ru: no pode ser ao mesmo tempo o juiz. Da mesma forma, a situao do termo "bem" no nada melhor. Sabem com preciso como produzir em ns uma dzia de diferentes noes de bem. Nenhum conceito de bem pode ajud-los a decidir. Seria absurdo centrar-se em um dos termos comparados e us-lo como modelo da mesma comparao. Parecer a alguns que estou imaginando dificuldades fictcias para os meus Manipuladores. Outros, mais simplrios, poderiam perguntar: "Por que voc supe que eles seriam homens to maus?" Mas eu no suponho tal coisa. A rigor eles nem sequer so homens (no sentido antigo). So, se assim desejam, homens que sacrificaram sua poro de humanidade tradicional a fim de dedicar-se tarefa de decidir o que "Humanidade" deve significar a partir de agora. "Bons" e "maus", aplicadas a eles, so palavras vazias, pois de agora em diante deles prprios que o contedo dessas palavras retirado. Tampouco fictcia a dificuldade. Suponhamos que nos dissessem: "No fim das contas, a maioria dos homens quer mais ou menos a mesma coisa: comida, bebida, relaes sexuais, diverso, arte, cincia e a vida mais longa possvel para os indivduos e para a espcie. Deixemos que digam simplesmente: 1 isso o que nos agrada, vamos em frente e manipulemos os homens de forma que consigamos gamos obt-lo.' Qual o problema?" Mas no esta a resposta. Em primeiro lugar, no verdade que todos gostemos das mesmas coisas. Mas, ainda que assim fosse, o que mover os Manipuladores a desprezar os prazeres e viver dias de trabalho rduo para que ns e a posteridade tenhamos aquilo que apreciamos? O dever? Mas o dever somente o Tao, que eles podem querer impor aos homens, mas que no vlido para eles. Se eles o aceitam, ento no so mais os forjadores de conscincias, mas apenas seus sditos, e a sua conquista sobre a Natureza no ter de fato acontecido. A preservao da espcie? Mas por que as espcies devem ser preservadas? Um dos problemas levantados por eles se esse sentimento em relao posteridade (que eles sabem perfeitamente como produzir) deve ou no ser perpetuado. No importa o quanto retrocedam, ou o quanto aprofundem, jamais encontraro uma base sobre a qual fundament-lo. Qualquer motivao que tentem encontrar vai de cara se transformar numa petitio. No que eles sejam homens maus. Eles no so homens em absoluto. Saindo do Tao, eles caram no vazio. Nem os objetos do condicionamento sero homens infelizes. Eles no so homens em absoluto: so artefatos. A conquista final do homem mostrou-se a abolio do Homem. Ainda assim os Manipuladores agiro. Eu disse h pouco que eles no tm nenhuma motivao, mas deveria ter dito que existe uma nica exceo. Eles no tm nenhuma motivao, exceto a que lhes definida pela fora de suas emoes num determinado momento. Tudo foi desmistificado, exceto o sic volo, sic jubeo*. Mas um pensamento que no se pretende objetivo no pode ser anulado pelo subjetivismo. O impulso de coar uma comicho ou de desmoralizar algum quando o interrogo imune ao antdoto que capaz de neutralizar a justia, a honra ou a preocupao com a posteridade. Quando todas as noes que dizem "isto bom" so desmoralizadas, permanece a que diz "eu quero". Ela no pode ser anulada nem "interpretada", j que nunca teve nenhuma pretenso de objetividade. Os Manipuladores, portanto, tm de chegar a ser motivados simplesmente pelo seu prprio prazer. No estou aqui me referindo influncia corruptiva*

Em latim, "como quero, assim ordeno". (N. do T)

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do poder nem estou expressando o medo de que nossos Manipuladores venham a ceder a essa influncia malfica. Os prprios termos "corromper" e "influncia malfica" implicam uma doutrina de valores e so portanto desprovidos de significado nesse contexto. O que quero dizer que aqueles que se abstm de todos os juzos de valor jamais tero como encontrar um fundamento para preferir um impulso aos demais, exceto pela fora emocional desse impulso. legtimo esperar que surjam alguns impulsos benficos entre os que brotam em mentes assim esvazia das de toda motivao "racional" ou "espiritual". De minha parte, duvido muito que os impulsos benficos tenham grande influncia, uma vez abandonados sua fora natural e desprovidos do incentivo e da predileo com que o Tao os encoraja. No creio que a histria nos d algum exemplo de um homem que, tendo abandonado a moral tradicional e alcanado o poder, tenha usado esse poder de maneira benfica. Sou propenso a crer que os Manipuladores odiariam os produtos da sua prpria manipulao. Embora considerem ilusria a conscincia artificial que produzem em seus sditos, ainda assim percebero que ela cria neles uma iluso de sentido que, em comparao com a futilidade das suas prprias vidas, parecer uma coisa boa, e eles os invejaro da mesma forma como eunucos invejam homens normais. Mas no insistirei neste ponto, que no passa de uma conjetura. O que no conjetura de maneira nenhuma o fato de que a nossa esperana de felicidade, mesmo condicionada ou "manipulada", reside no que vulgarmente chamamos de "acaso" o acaso de que os impulsos benficos possam predominar no fim das contas em nossos Manipuladores. Pois sem o juzo segundo o qual "a benevolncia boa" isto , sem entrar novamente no Tao , eles no tero como promover ou estabelecer esses impulsos em vez de outros. Pela lgica da posio que defendem, preciso que acatem os impulsos conforme aparecem, do acaso. E Acaso aqui significa Natureza. Ser da hereditariedade, da digesto, da temperatura ambiente ou da associao de idias que brotaro os motivos dos Manipuladores. O seu racionalismo extremado, de "ver o que est por trs" de todas as motivaes "racionais", faz com que se tornem criaturas de comportamento inteiramente irracional. Se voc no se dispe a obedecer ao Tao, tampouco a cometer o suicdio, a obedincia aos impulsos (e portanto, a longo prazo, mera "natureza") a nica via possvel. Portanto, no momento mesmo da vitria do Homem sobre a Natureza, encontramos toda a raa humana sujeita a alguns poucos indivduos, e estes indivduos sujeitos quilo que neles mesmos puramente "natural" aos seus impulsos irracionais. A Natureza, livre dos valores, controla os Manipuladores e, por intermdio deles, toda a humanidade. A conquista do Homem sobre a Natureza revela-se, no momento da sua consumao, a conquista da Natureza sobre o Homem. Todas as vitrias que parecamos alcanar nos levaram, passo a passo, a essa concluso. Todas as aparentes derrotas da Natureza no foram nada mais que recuos tticos. Pensvamos estar golpeando-a mortalmente quando na verdade era ela quem estava nos seduzindo. Quando acreditvamos que ela erguia as mos para se render, preparava-se na verdade o abrao da morte que nos envolveria para sempre. inteiramente e. Se o mundo inteiramente condicionado e planejado (tendo como Tao um mero produto de planejamento) chegar a existir, a Natureza no mais se incomodar com a espcie inquieta que se ergueu revoltada contra ela h tantos milhes de anos, no mais se incomodar com a sua tagarelice a respeito da verdade e da misericrdia e da beleza e da felicidade. Ferum victorem cepit**, e, se os eugenistas forem suficientemente competentes,Trecho da clebre citao de Horcio: Graecia capta ferum victorem cepit [A Grcia cativa subjugou o feroz vencedor]. (N. do T.)*

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no haver uma segunda revolta, mas tudo estar em ordem sob os Manipuladores, e os Manipuladores submetidos Natureza, at que a lua caia. sobre ns ou at que o sol se torne frio. Pode ser que meu raciocnio fique mais claro se eu o expuser de outra forma. Natureza uma palavra com muitos significados, que pode ser mais bem compreendida se analisarmos seus vrios opostos. Natural se ope a Artificial, Civilizado, Humano, Espiritual e Sobrenatural. O termo Artificial no nos diz respeito aqui. Quanto ao resto da lista, creio que nos d uma vaga idia daquilo que os homens entendem por Natureza e daquilo que consideram o oposto dessa idia. A Natureza parece ser espacial e temporal, em contraste com aquilo que pertence a outros domnios. Ela parece ser o mundo da quantidade em oposio ao mundo da qualidade; dos objetos em oposio conscincia; do servil em oposio ao completa ou parcialmente autnomo; da ausncia de valor em oposio quilo que tem e que percebe valores; das causas eficientes (ou, para algumas concepes modernas, da ausncia de causalidade) em oposio s causas finais. Segue-se da que, quando compreendemos uma coisa analiticamente, a dominamos e usamos para a nossa prpria convenincia, ns a reduzimos condio de "Natureza" no sentido de que suspendemos nossos juzos de valor a respeito dela, fazemos abstrao da sua causa final (se que existe alguma) e a tratamos quantitativamente. Realiza-se a supresso de certos elementos, impedindo que tenhamos uma percepo completa do objeto; e essa supresso s vezes se faz de maneira bastante agressiva e mesmo dolorosa: preciso vencer algumas barreiras antes de sermos capazes de cortar um cadver ou um animal vivo numa sala de dissecao. E os objetos resistem a esse movimento mental com o qual os atiramos ao mundo da mera Natureza. Mas h tambm outros casos em que um preo semelhante pago para que possamos obter um conhecimento analtico ou exercer certo poder manipulados, mesmo que no o percebamos. No podemos ver as rvores como drades ou admir-las em sua beleza quando as cortamos em tbuas. possvel que o primeiro homem a faz-lo tenha percebido claramente a atrocidade que cometia, e as rvores sa