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LEITURA DE CONTOS: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA NO ENSINO DE LITERATURA Irene Gomes Martins 1 Resumo Este artigo descreve e apresenta os resultados obtidos na implementação do projeto Diálogos Literários 2 - direcionado a estudantes do Ensino Médio no intuito de recuperar a experiência significativa de leitura de textos literários. Na descrição do projeto, aponta caminhos no sentido de possibilitar uma interação maior do estudante/leitor com o texto. Por meio da leitura de contos contemporâneos e canônicos, demonstra ser possível abordar as estéticas romântica e realista/naturalista, contemplando não somente a historiografia literária, mas também os “diálogos” que se estabelecem entre texto e outros textos, objetos e manifestações culturais. Assim, a abordagem de textos literários, numa perspectiva dialógica, pode atualizar a produção do passado, consagrada pela tradição, ao mesmo tempo em que rompe com práticas tradicionais no ensino de literatura. Palavras-chave: Leitura. Literatura. Diálogo. Abstract This article describes and presents the results of the project implementation of the Literary Dialogues - directed at high school students in order to recover the significant experience of reading literary texts. In describing the project, it points out ways in order to allow a greater interaction of the student/reader with the text. Through the reading of canonical and contemporary short stories, it demonstrates to be possible to address the romantic aesthetic and the realist/naturalist aesthetic, covering not only the literary history, but also the "dialogue" established between text and other texts, objects and cultural manifestations. Thus, the approach of literary texts in a dialogical perspective, can upgrade the production of the past, consecrated by tradition, while it breaks up with traditional practices in the teaching of literature. Keywords: Reading. Literature. Dialogue. “Ler nos conduz à alteridade, seja à nossa própria ou à de nossos amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção é alteridade e, portanto, alivia a solidão.” Harold Bloom 1 Professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná, participante do Programa de Desenvolvimento Educacional da Secretaria de Estado da Educação do Paraná SEED-PR. 2 Projeto orientado pelo Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo, docente da Universidade Estadual de Londrina.

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LEITURA DE CONTOS: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA NO ENSINO DE

LITERATURA

Irene Gomes Martins1

Resumo Este artigo descreve e apresenta os resultados obtidos na implementação do projeto Diálogos Literários2 - direcionado a estudantes do Ensino Médio no intuito de recuperar a experiência significativa de leitura de textos literários. Na descrição do projeto, aponta caminhos no sentido de possibilitar uma interação maior do estudante/leitor com o texto. Por meio da leitura de contos contemporâneos e canônicos, demonstra ser possível abordar as estéticas romântica e realista/naturalista, contemplando não somente a historiografia literária, mas também os “diálogos” que se estabelecem entre texto e outros textos, objetos e manifestações culturais. Assim, a abordagem de textos literários, numa perspectiva dialógica, pode atualizar a produção do passado, consagrada pela tradição, ao mesmo tempo em que rompe com práticas tradicionais no ensino de literatura. Palavras-chave: Leitura. Literatura. Diálogo.

Abstract

This article describes and presents the results of the project implementation of the Literary Dialogues - directed at high school students in order to recover the significant experience of reading literary texts. In describing the project, it points out ways in order to allow a greater interaction of the student/reader with the text. Through the reading of canonical and contemporary short stories, it demonstrates to be possible to address the romantic aesthetic and the realist/naturalist aesthetic, covering not only the literary history, but also the "dialogue" established between text and other texts, objects and cultural manifestations. Thus, the approach of literary texts in a dialogical perspective, can upgrade the production of the past, consecrated by tradition, while it breaks up with traditional practices in the teaching of literature. Keywords: Reading. Literature. Dialogue.

“Ler nos conduz à alteridade, seja à nossa própria ou à de nossos

amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção é alteridade e,

portanto, alivia a solidão.”

Harold Bloom

1Professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná, participante do

Programa de Desenvolvimento Educacional da Secretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED-PR. 2Projeto orientado pelo Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo, docente da Universidade Estadual de Londrina.

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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo constitui-se como parte integrante das atividades

previstas no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), promovido pela

Secretaria de Educação do Paraná (SEED). Apresenta-se também como resultado

do aprofundamento teórico, da reflexão sobre a prática pedagógica, de discussões -

virtuais - em torno da abordagem da leitura de textos literários, entre professores de

Língua Portuguesa, via Grupo de Trabalho em Rede (GTR); e da implementação,

num colégio da rede estadual de ensino, do projeto Diálogos Literários. Por meio

desse projeto, propõe-se o resgate da experiência significativa do leitor com o texto,

a partir do gênero conto, considerando, no enfoque das estéticas romântica e

realista/naturalista, a historiografia literária - diacronia e sincronia – e a linguagem

numa perspectiva dialógica.

Tendo em vista a adesão do colégio ao Ensino Médio por blocos de

disciplinas e que Diálogos Literários contempla os conteúdos tradicionalmente

previstos nessa série, a implementação da proposta se deu no decorrer do primeiro

semestre de 2009, na 2ª série do Ensino Médio – período da manhã, do Colégio

Estadual Professor Francisco Villanueva, em Rolândia. Para auxiliar a

implementação, foi elaborado um material de apoio – uma Unidade Didática – em

que os textos e as atividades propostas se abrem para variadas possibilidades de

abordagem da literatura, permitindo ao professor conduzir o estudante ao diálogo

com o texto, com outros textos e outras formas de expressão cultural.

Sabe-se que por influência dos manuais didáticos o texto literário foi

relegado a segundo plano em detrimento de uma abordagem historiográfica da

literatura. Essa prática de ensino de literatura contribuiu para que fosse vista apenas

como um conteúdo a ser memorizado e o texto literário como objeto ilustrativo de

características de movimentos literários. Em face disso, o projeto visa passar de um

estudo meramente historiográfico da literatura para o enfoque no texto sem,

contudo, privar o estudante do conhecimento das estéticas literárias, de modo que

os encaminhamentos, textos e intertextos revelem as múltiplas facetas das estéticas

romântica e realista/naturalista em seu contexto de produção e sua expressão na

contemporaneidade.

Num vai e vem entre o cânone e o contemporâneo, o projeto

aproxima o leitor das técnicas narrativas da literatura atual e da linguagem –

3

vocabulário, construção sintática – dos textos dos períodos romântico e

realista/naturalista. Esse encaminhamento também se impõe pelo fato de que a

leitura exaustiva de textos de movimentos literários distantes no tempo se tornaria

enfadonha, desgastante e sem sentido para o adolescente.

Nesse sentido, acredita-se que a literatura adquire um novo

significado para o estudante quando este é capaz de olhar para os textos do

passado, confrontando-os entre si com formas contemporâneas de pensar, de agir

e de se expressar por meio da arte - especialmente a literária.

2 ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

O universo literário, fruto da imaginação criadora do artista e do

trabalho artístico com a palavra, revela e exprime a natureza humana. Como

expressão do homem, a literatura assume três funções, segundo Antonio Candido: a

psicológica, a formativa e a social. Assim , inicialmente,

um certo tipo de função psicológica é talvez a primeira coisa que nos ocorre quando pensamos no papel da literatura. A produção e fruição desta se baseiam numa espécie de necessidade universal da ficção e fantasia, que de certo é coextensiva ao homem, pois aparece invariavelmente em sua vida como indivíduo e como grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais elementares.(CANDIDO, 1972, p. 804)

De fato, a literatura preenche a necessidade de fantasia inerente ao

homem. Por meio da literatura torna-se possível experimentar situações por vezes

impossíveis de se concretizarem na realidade ou, simplesmente, encontrar prazer

na fantasia. Contudo, na literatura, a fantasia tem sua base na realidade.

Por meio dessa relação com o real, a literatura passa a exercer uma

outra função – a função formativa. Pelo discurso artístico, o homem passa a ter

consciência de si e da realidade que o cerca e, assim, a arte literária assume sua

função social, já que uma nova visão do homem e do mundo vem acompanhada de

possibilidades de mudança.

Num contexto em que a maioria dos estudantes chega ao Ensino

Médio sem hábitos regulares de leitura, especialmente de textos literários, faz-se

necessário promover a interação do estudante/leitor com o texto, de modo que

encontre prazer e sentido na leitura de literatura. Para Bakhtin (1997), a obra

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literária se constitui no ato da leitura, isto é, os sentidos de uma obra existem de

forma potencial que só se manifestam num contexto que favoreça a compreensão

do leitor, a ponto de estabelecer o diálogo entre o que é contemporâneo no

momento de produção e a contemporaneidade no momento de recepção. Sendo

assim, textos do passado podem ser atualizados à medida que o leitor reconhece

neles aspectos de sua realidade contemporânea sem, contudo, desconsiderar o

contexto de produção da obra. Dessa forma, tanto o contexto de produção quanto o

de recepção são igualmente importantes na análise de uma obra.

Segundo Zappone (2004), embora leitura e literatura estejam

intrinsecamente relacionadas, só a partir da década de 1960, estudos sobre esse

assunto se apresentam de forma mais sistemática, em decorrência das novas

dimensões atribuídas à noção de autor, de texto e de leitor. O autor perdeu o status

de detentor dos sentidos do texto enquanto o texto deixou de apenas transmitir os

pensamentos, as informações do autor e passou a ser considerado como arranjo

repleto de vazios, os quais são preenchidos pelo leitor no ato da leitura. Por essa

razão, o leitor tem se tornado fator determinante no processo de leitura e recepção

do texto.

Um dos maiores expoentes que colocam em evidência o leitor e a

leitura no campo dos estudos literários é Hans Robert Jauss. Em 1967, em sua aula

inaugural na Universidade de Konstanz (Alemanha), Jauss propôs uma reflexão a

respeito da abordagem da história da literatura vinculada à recepção do texto

literário, contrapondo-se à teoria formalista (destaque às estruturas que tornam um

texto literário) e à estética marxista (literatura como representação de estruturas

sociais).

A proposta de Jauss ou a saída para o dilema de como unir em um só aspecto a estética e a história vem da incorporação de uma dimensão pouco trabalhada pelos estudos literários até então – a dos leitores, dos espectadores ou do “público”. (ZAPPONE, 2004, p. 139)

Ao propor um estudo da literatura partindo do modo como o leitor

recebe o texto e lhe confere valor estético, defende a ideia de que a história literária

está intimamente vinculada ao aspecto recepcional, ou seja, é a partir do leitor que

os fenômenos literários passam a ser analisados.

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Para Jauss (1994), o texto literário é um ato de recepção, no qual a

experiência do leitor se traduz em seu horizonte de expectativas. Uma obra pode

provocar rupturas e ampliar o horizonte de expectativas na medida em que se afasta

desse horizonte. Ao transformá-lo, o leitor adquire a experiência de leitura

necessária para buscar e compreender obras mais complexas - pela temática, pela

linguagem, estilos e técnicas - distantes de seu horizonte inicial de expectativas.

Segundo Jauss, é importante considerar, na interpretação de uma

obra, a reconstrução do horizonte de expectativas sob o qual foi criada e recebida no

passado, pois essa abordagem permite conhecer o modo pelo qual o público de

então terá recebido ou compreendido a obra. Em outras palavras, a interpretação de

uma obra deve levar em conta os contextos em que foi criada e recebida, a fim de se

evitarem interpretações superficiais baseadas somente em critérios do passado ou

apenas em critérios do presente.

Da mesma forma que Jauss considera o leitor uma peça

fundamental no processo de leitura, na concepção bakhtiniana “o outro na figura do

destinatário se instala no próprio movimento de produção do texto na medida em

que o autor orienta sua fala, tendo em vista o público-alvo selecionado”. (BRANDÃO,

1997, p. 286).

Vale lembrar que determinados gêneros contemporâneos como

telenovela e obras consideradas best sellers são produzidas para atender o

horizonte de expectativas de um determinado público. E, no cotidiano da sala de

aula, a seleção de obras pelo professor deve ser, de certa forma, condicionada pelo

horizonte de expectativas do estudante, pois, se assim não for, a resistência à leitura

será ainda maior. Todavia, diferentemente de telenovelas ou best sellers, o trabalho

do professor deve direcionar-se para a ruptura e ampliação do horizonte do aluno,

para que este alargue seu repertório e experiências de leitura e possa compreender

o fenômeno literário em todas as suas dimensões.

Como elucidam Aguiar e Bordini (1993, p.17) :

A educação do leitor de literatura não pode ser, em vista da polissemia que é própria do discurso literário, impositiva e meramente formal. Como os sentidos literários são múltiplos, o ensino não pode destacar um conjunto deles como meta a ser alcançada pelos alunos. Por outro lado, informar a esses de técnicas ou períodos literários não resultará em alargamento dos limites culturais que orientam as práticas significativas deles, senão num estágio bem mais adiantado de sua formação. Antes de formalizar o estudo de textos por essas vias, é preciso vivenciar muitas obras para que estas venham a preencher esquemas conceituais.

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Em face do exposto, considera-se relevante tratar o texto literário

como objeto de estudo, de forma que a interação do leitor com o texto realmente se

concretize. Como ensinar literatura pelo viés da historiografia requer um leitor

maduro, com um percurso considerável de leituras, essa deve ser apenas uma das

ferramentas, e não a única para a realidade do público com o qual se trabalha,

atualmente, no Ensino Médio.

.

3 UM BOM MOTIVO PARA SE LER UM CONTO

Dada sua dimensão reduzida, o conto constitui-se num gênero de

boa aceitação entre os adolescentes, tão acostumados à velocidade com que

recebem variadas informações, seja pela Internet ou por outros meios de

comunicação, os quais não demandam uma postura reflexiva e solitária como é o

ato da leitura. Em razão disso, o conto, por sua clareza e brevidade, preenche os

requisitos que atendem às expectativas do leitor adolescente no tocante ao tempo

despendido para a leitura. Como afirma Simon (2007, p.138) “[...] a própria condição

breve do conto – e, mais uma vez, é bom reforçar – representa uma sintonia com a

ideia de velocidade”.

Diante de um computador, basta dar um clique e a tela se enche de

novas imagens e palavras; diante do aparelho de TV não é diferente, pois as

imagens se multiplicam tão rapidamente que nem sempre há tempo de absorvê-las

em profundidade. Quando não, se o que se vê na tela não mais interessa, o controle

remoto constitui-se numa ferramenta útil. No âmbito da sala de aula, observa-se

situação semelhante em relação a mudanças frequentes do objeto de interesse do

estudante. Diante de um texto mais extenso, a leitura passa a ser considerada uma

tarefa árdua, cansativa e monótona e perde-se o interesse antes mesmo de iniciá-la.

Dentre os gêneros ficcionais, o conto se constitui em uma narrativa

cujo enredo gira em torno de um único evento. Na trama, os fatos, personagens,

ação se encaminham sem delongas para um desfecho. Assim, “o conto tende a

cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual

convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra”. (BOSI,

1975, p.8) A ausência de detalhes favorece a construção de um enredo em que

cada palavra condensa e exprime, simultaneamente, parte da trama; logo, vem

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carregada de um significado em potencial que confere ao conto a capacidade de

envolver o leitor.

Se o que se pretende é o envolvimento do leitor com o texto, faz-se

necessário que haja algo que o prenda à leitura. Segundo Gotlib (1999), Poe -

considerado o primeiro grande teórico do conto – apregoa que o conto é fruto de um

trabalho consciente que tem por finalidade a conquista do efeito único. Assim, a

definição do efeito que se pretende produzir no leitor é o que, segundo o teórico e

contista, determina a seleção das palavras certas.

Ainda conforme os estudos de Gotlib, no início do século XX,

Brander Matthews3 reafirma a teoria da unidade de efeito e aponta que a diferença

entre o romance e o conto não decorre apenas de extensão, mas, sobretudo, de

natureza: o conto apresenta unidade de tempo, de lugar e de ação, ou melhor,

trabalha com um só elemento - personagem, fato, emoção e situação. No entanto,

há controvérsias em torno do estabelecimento de uma teoria para o conto no que

tange aos limites da especificidade do gênero e à definição de suas características

num conjunto maior das narrativas. Mário de Andrade (1972, p.5) define “em

verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”.

Para Gotlib, esse gênero caracteriza-se, por sua natureza, como um modo de

simplesmente contar estórias.

O panorama da história do conto remonta ao fato de que o ato de

contar e ouvir histórias sempre foi motivo para pessoas se reunirem desde os

tempos mais remotos. Em sua trajetória, da tradição oral para a escrita, o conto vai

se afirmando como categoria estética quando, no século XIV, com Boccacio, ganha

arranjo estético. Daí por diante, surgem grandes nomes como Marguerite de

Navarre, no século XVI, Cervantes e Charles Perrault (séc. XVII), La Fontaine (séc.

XVIII).

No século XIX, o conto se desenvolve e adquire espaços próprios,

estimulados pelo retorno à cultura medieval, o interesse pelo folclórico, e pela

expansão da imprensa que permite sua ampla divulgação. Grandes contistas

surgem no mundo inteiro como Edgar Allan Poe, Maupassant, Eça de Queirós e

Machado de Assis.

3James Brander Matthews (1852-1929) – Escritor estadunidense e professor de literatura dramática.

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Na literatura brasileira, embora a poesia e o romance tenham

prevalecido no período romântico, Álvares de Azevedo marca a prosa gótica desse

período com a obra de contos macabros Noite na taverna. Contudo, é com Machado

de Assis, considerado um dos maiores contistas brasileiros, que o conto ganha

destaque e se projeta como um gênero que no século XX atrairia muitos leitores.

Com a modernidade, o conto brasileiro se afirma e abre espaço entre os gêneros

ficcionais bastante apreciados pelo público leitor – o romance e a novela. Surgem,

então, inúmeros contistas como Lima Barreto, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato,

Alcântara Machado, Mario de Andrade. Na segunda metade do século XX, contistas

como Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Murilo Rubião, J.J.

Veiga, Dalton Trevisan renovam as técnicas, temas e formas.

Apesar de haver uma variedade de tipos – contos maravilhosos,

fantásticos, de terror, de amor, de ficção científica, entre outros - para Cortázar

(1974), o conto precisa ter algo mais, aquela “alquimia secreta” que seja capaz de

atrair o leitor e tornar a narrativa inesquecível; é nessa capacidade de atração que

reside sua qualidade.

4 IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO “DIÁLOGOS LITERÀRIOS”

No processo de implementação do projeto, o conhecimento do

público-alvo é imprescindível, pois seu perfil determina e reorienta as ações do

professor. Para tanto, aplicou-se o questionário Leitura e Literatura numa turma de

35 alunos. Ao serem questionados sobre o hábito regular de leitura, 62,8%

responderam que não leem com frequência, e ainda, 77,1% declararam não ter lido

um só livro em quatro meses. Os dados coletados, certamente, atestam o que,

empiricamente, é do conhecimento dos professores de Língua Portuguesa: os

estudantes do Ensino Médio não possuem hábitos regulares de leitura e, de certa

forma, suas atitudes no cotidiano da sala de aula revelam orgulho diante dessa

posição.

Quanto ao questionamento a respeito das motivações para a leitura

de obras literárias, 48,5% assumem que essas leituras ocorrem apenas durante as

aulas de literatura, ou seja, o estudante lê o que o professor lhe apresenta. Dessa

maneira, a literatura permanece “enclausurada” na sala de aula, vista como mais um

conteúdo a ser aprendido e não um hábito a ser formado; a leitura de textos literários

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se restringe, na maioria das vezes, ao espaço da sala de aula. Para agravar ainda

mais esse quadro, é comum a resistência dos estudantes à leitura de textos

selecionados pelo professor, seja um texto contemporâneo ou um clássico da

literatura.

Com o intuito de preparar os estudantes para a fruição estética do

texto, antes de iniciar a leitura dos contos selecionados, teceram-se considerações

a respeito do caráter artístico e humanizador da literatura, uma vez que são

constantes os questionamentos em torno das razões para se ler obras e conhecer

as estéticas literárias no Ensino Médio.

Ao introduzir a leitura do conto O gato preto, de Edgar Allan Poe,

fez-se um breve comentário sobre o fantástico e o terror na literatura; a importância

do autor em questão no tocante às narrativas policiais e de suspense. Para

incentivar a leitura, o estudante foi desafiado a observar sua reação e a dos colegas

frente aos fatos narrados no conto. A leitura foi realizada em sala de aula, oralmente,

comentada por professor e estudantes, garantindo assim a compreensão do texto.

Embora o conto seja extenso, a maioria dos estudantes se envolveu, surpresos com

os fatos estranhos e macabros narrados pelo personagem. Em seguida, formaram-

se pequenos grupos para discussão de questões que giravam em torno da

sanidade mental do narrador-personagem, da possibilidade de concretização dos

eventos narrados, das justificativas apresentadas para os atos cruéis do narrador,

dos sentimentos que perpassam toda a narração dos fatos. Alguns elementos

presentes no conto foram ressaltados como o terror, o mórbido, o grotesco e o

sobrenatural. Comentou-se também sobre a simbologia em torno da cor preta na

cultura popular contemporânea, no Egito antigo e na Idade Média.

Partindo do fantástico e do terror, traduzidos no conto pela morbidez,

pelo macabro e pelo sobrenatural, passou-se à discussão dos elementos que

constituem a cultura gótica como a indumentária, o hábito de frequentar cemitérios e

lugares abandonados e, principalmente, o gosto pela produção literária de Álvares

de Azevedo, Augusto dos Anjos, Baudelaire, Lord Byron, Edgar Allan Poe, Anne

Rice, entre outros; a presença de elementos da cultura gótica em personagens do

cinema, em letras de bandas de rock, nas HQs. Também foram alvo das discussões

o respeito às diferenças e os limites estabelecidos socialmente para o equilíbrio nas

manifestações culturais.

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Por meio do encontro entre a literatura e a cultura gótica os

estudantes foram estimulados a ler o conto Venha ver o pôr-do-sol, de Lygia

Fagundes Telles. A proposta de leitura deu-se em forma de convite, como uma

atividade extraclasse. Foi estipulado um período de oito dias para que os estudantes

lessem o conto. Uma aula após o convite para a leitura, alguns estudantes teceram

comentários sobre o impacto que o desfecho provocou, o que foi fundamental para

despertar a curiosidade nos demais. Apesar disso, findo o prazo, constatou-se que o

número de estudantes que fizeram a leitura foi inferior a 50%. Contudo, esse fato

não tornou a discussão menos profícua. À medida que estudantes e professor

avançavam no relato dos acontecimentos, numa espécie de contação de história, os

demais demonstravam interesse e participavam das discussões propostas em torno

do conto. Entre os pontos discutidos, destacam-se as questões da produção

didático-pedagógica, as quais enfocam os indícios que, no transcorrer da narrativa,

dão sentido à trama, embora o conto apresente um desfecho surpreendente. Nesse

ponto, o estudante foi orientado a observar a maneira como, na construção do texto,

os elementos se articulam de tal forma que enredam o leitor e este,

inadvertidamente, também é conduzido pelo ardil do personagem; logo, a surpresa

ao se deparar com o desfecho inesperado.

Salienta-se aqui que houve um estranhamento quanto ao desfecho,

que se abre para várias possibilidades de conclusão, levando muitos estudantes a

acreditarem que não haviam entendido o conto. Elucidou-se, então, a importância

do leitor na interação com o texto e na produção de sentidos do mesmo, conferindo

a quem lê um papel significativo no ato da leitura. Nessa perspectiva, foram

levantadas hipóteses e sugestões para o encerramento do conto - atividade que

envolveu de maneira entusiástica a totalidade da turma.

Tomando como ponto de partida a morbidez presente no conto de

Lygia, foi apresentado um breve histórico do romance gótico, surgido no século

XVIII, sendo caracterizado, entre outros, pela presença do sobrenatural e pela

preferência por ambientes sombrios. Discorreu-se sobre o surgimento de escritores

cujas obras apresentam elementos desse gênero como E. A. Hoffmann, Edgar Allan

Poe, Anne Rice e sua literatura vampiresca; e, mais recentemente, os livros da série

Crepúsculo, de Sthepenie Meyer, os quais têm tido grande repercussão entre os

adolescentes.

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O enfoque dado à cultura e à literatura góticas favoreceu a recepção

da obra Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Despertar o interesse pela leitura

de um texto de Álvares de Azevedo (relato de Johann), da obra Noite na taverna é,

indubitavelmente, um grande desafio, haja vista o vocabulário e a construção

sintática empregados, sendo pouco atrativos para os estudantes de Ensino Médio.

Como se pode observar, houve todo um caminho a ser percorrido

até o contato inicial do aluno com o texto do escritor ultrarromântico: a atmosfera

perturbadora que envolve a narrativa de Allan Poe; a curiosidade despertada por

aquilo que rompe com os padrões de comportamento aceitos socialmente, as

motivações e as implicações da cultura gótica numa sociedade conservadora, a

presença de elementos dessa cultura nas mais variadas formas de expressão

artística; o tema do amor e da morte, tão marcante no convite Venha ver o pôr-do-

sol.

Ressalta-se que esse foi, certamente, o fator decisivo para que as

atividades – leitura, comentários, resolução das questões propostas, discussões

sobre os temas que permeiam a obra de Álvares de Azevedo e, em especial, sobre

o tema do conto lido, a percepção das estratégias do autor para criar um clima de

suspense e mistério - envolvessem os estudantes a ponto de superarem as barreiras

do tempo no tocante à linguagem. Tanto na contextualização como na análise de

Noite na taverna, fez-se referência ao Romantismo e à segunda geração romântica,

associando-a mais uma vez ao gosto literário dos góticos. Dessa forma, toda uma

produção literária é atualizada, possibilitando uma interação maior do estudante com

os textos do século XIX.

Da prosa gótica de Álvares de Azevedo e da ênfase nos temas que

permeiam sua obra em geral – a noite, as sombras, a morte, o túmulo, o tédio –

enveredou-se por sua produção poética (poema Lembrança de morrer), na qual o

tema da morte, sempre tão presente, é visto sob o prisma espiritual e sentimental.

Contrapondo-se a essa visão, propôs-se a leitura do poema Vozes de um túmulo, de

Augusto dos Anjos, em que a morte representa o fim absoluto, a decomposição da

matéria.

Tendo como referência a figura da mulher no relato de Johann,

enfatizou-se a dualidade presente na obra do escritor ultrarromântico, em que ora a

mulher é idealizada, inacessível, angelical; ora surge como uma figura erotizada,

porém envolta numa atmosfera em que o amor físico é apenas sugerido. Do conto

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para a poesia, a figura feminina foi analisada a partir do confronto entre a

sensualidade sugerida de Álvares de Azevedo (Soneto) e a figura sensual da

mulher, próxima, concreta, na obra de Castro Alves (O adeus de Teresa).

A figura feminina sempre marcou as manifestações literárias nas

mais diferentes épocas. Para tratar desse tema na contemporaneidade, optou-se por

Adélia Prado – uma voz que tem se destacado ao expressar o universo feminino,

valorizando o cotidiano da mulher contemporânea. Para leitura, foi selecionado o

poema Bilhete em papel rosa, no qual o eu lírico feminino expressa seu mais

genuíno sentimento amoroso e dialoga com o poeta Castro Alves, numa declaração

de amor, apelando para os versos de Alphonsus de Guimaraens, numa evidente

riqueza de intertextos.

Para ampliação do repertório de leituras foram sugeridas obras da

prosa romântica, aproveitando-se da referência feita à valsa no poema de Castro

Alves (O adeus de Teresa). Por meio da leitura de um texto em que Dante Moreira

Leite descreve o significado da valsa na sociedade do século XIX – discorreu-se

sobre as reações que essa dança provocava no comportamento dos personagens

dos romances românticos.

Para compreender as reações à valsa, devemos lembrar que os sexos estavam, na sociedade brasileira do século XIX, separados por uma grande barreira física, e que os seus contatos eram regulados por um ritual muito mais rígido do que o nosso. A valsa, ao permitir que o casal se aproximasse fisicamente, e se isolasse dos outros, representava uma situação quase única na época. Por isso, os seus efeitos aparecem muito claramente na literatura romântica, onde a valsa passa a apresentar uma situação de perigo real ou potencial. É na valsa que os amores se declaram, ou é nela que os heróis se apaixonam pelas heroínas. (LEITE, 1979. p. 51)

A seguir, foram comentadas e apresentadas obras do período como

A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo e obras de José de Alencar,

especialmente o romance Senhora.

Quando a mão de Aurélia calcava-lhe no ombro, transmitindo-lhe com a branda e macia pressão o seu doce calor, era como se todo o seu organismo estivesse ali, naquele ponto em que um fluido magnético o punha em comunicação com a moça.(ALENCAR, 2002. p.185)

Aproveitando-se da menção à série Crepúsculo, na Unidade

Didática, e do interesse despertado nos estudantes, as obras românticas foram

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associadas a alguns elementos presentes no best seller como a visão romântica da

figura feminina, a idealização do amor e a presença do herói. Destacou-se também a

recepção de Crepúsculo entre o público adolescente atual, bem como se

considerou a recepção das obras românticas pelo público leitor do século XIX.

Ainda em relação ao sentimentalismo tão característico da estética

romântica, fez-se referência a Gonçalves Dias – poeta que valorizou o sentimento

amoroso em grande parte de sua obra. Como sugestão de leitura, apresentou-se um

novo gênero que tem se destacado nos últimos anos - a metaficção historiográfica.

Ana Miranda, um dos grandes expoentes desse gênero no Brasil, mescla história

literária e ficção ao recriar a vida de escritores consagrados pela tradição como

Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos. Para incentivar a leitura dessa escritora, foram

lidos para os estudantes alguns capítulos de Dias e Dias – romance inspirado na

vida do poeta Gonçalves Dias.

O sentimentalismo tão exaltado pelos românticos também foi tema

de discussão na referência a letras de música da banda gaúcha Fresno, tão

apreciadas por uma tribo urbana – os emos. Surgiram questionamentos e reflexões

acerca da opção por esse estilo de vida e de atitude, salientando-se a importância

do respeito à diversidade e às opções de cada indivíduo.

Ainda em busca da atualização da literatura romântica, fez-se

alusão à poesia abolicionista de Castro Alves associada às literaturas afro-brasileira

e africana. Deu-se destaque à produção de Conceição Evaristo, especialmente à

obra Ponciá Vicêncio. Nessa obra, a protagonista, além de sofrer com a

marginalização de seu passado africano, experimenta uma crise de identidade por

carregar o sobrenome do antigo dono da terra (Vicêncio).

Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Panda, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. Tinha, então, vontade de choros e risos.(EVARISTO, 2003. p.19)

Subsidiaram as discussões e reflexões em torno desse tema textos

extraídos de História da vida privada no Brasil, v. 2, organizado por Luiz Felipe de

Alencastro, os quais tratam do cotidiano das relações entre senhores e escravos, da

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saturação do sistema escravocrata, e que podem ser associados à leitura de Ponciá

Vicêncio.

Como se constata pelo rol de leituras apresentadas, a literatura do

período romântico oferece uma diversidade de diálogos com a literatura, a cultura e

outras formas contemporâneas de linguagem. É preciso, pois, articulá-las de

maneira que o estudante encontre sentido nos textos que lê, ainda que haja um

período de um século e meio entre obra e leitor.

Encerradas as atividades acerca da estética romântica, propôs-se a

leitura de contos que, diferentemente das obras românticas, apresentam uma visão

mais objetiva da realidade. Acredita-se que a literatura contemporânea, pelo tema e

pela linguagem, possa atrair o estudante de Ensino Médio. Logo, optou-se por

autores da atualidade para introduzir clássicos como Machado de Assis e Aluísio

Azevedo.

Iniciou-se essa etapa com o conto Passeio noturno – Parte I, de

Rubem Fonseca, tomando-se o título como ponto de partida a fim de despertar o

interesse dos estudantes para a leitura. A partir dele, levantaram-se hipóteses,

criaram-se expectativas em torno do texto. Para intensificar ainda mais as

expectativas, o aluno foi privado, inicialmente, do contato com o texto impresso, e a

leitura foi realizada pelo professor até o momento em que o narrador declara

Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. (FONSECA, 1989, p.62)

Nesse ponto os estudantes já haviam confirmado ou não,

parcialmente, suas hipóteses iniciais e, instigados pela interrupção proposital da

leitura, fizeram uma série de suposições em torno da ação futura do protagonista.

Em seguida, cada estudante recebeu uma cópia do texto para comprovar ou não

suas suposições a respeito da ação da personagem.

O conhecimento das verdadeiras intenções do protagonista causou

impacto e gerou discussões em torno do enredo, do ponto de vista do narrador e

questionamentos em relação a suas possíveis motivações, à sua atitude e à atitude

da família diante de suas saídas noturnas. Simultaneamente, os estudantes foram

instigados a assumir uma postura crítica diante dos crimes do protagonista, da

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alienação da família, da crise de valores pela qual passa a sociedade

contemporânea e como isso se reflete no cotidiano, principalmente, das grandes

cidades.

Na contextualização da obra, discutiu-se sobre as razões que

levaram o livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, a não passar pelo crivo do

regime militar, sendo proibido em 1976. Em seguida, cogitou-se sobre a reação do

público e das autoridades se o lançamento do livro fosse hoje. Isso, sem dúvida,

conduziu o olhar dos estudantes para fatos recentes – veiculados na mídia –

reveladores das atrocidades cometidas pelo ser humano.

Uma relação com o filme “Crash – No limite”, lançado no segundo

semestre de 2005, aprofundou as reflexões, já que essa produção cinematográfica

retrata o ser humano em suas contradições (ora vilão, ora vítima da violência e da

falta de escrúpulos).

Assim, a temática do conto, abordada por meio da linguagem

cinematográfica, levou os estudantes a buscá-la também em outras manifestações

culturais - música, imagens, cinema nacional - e em outros textos - notícia, conto,

poesia.

Indubitavelmente, a criação de expectativas e a relação estabelecida

entre a atualidade da temática do conto com outros textos e expressões culturais

propiciam uma interação maior entre obra/autor/leitor, comprovando o papel

fundamental deste último na atribuição de sentido à obra, o que torna a leitura mais

significativa; ao mesmo tempo, a arte literária cumpre as funções social e formativa

ao modificar a percepção que o leitor tem do homem e do mundo, provocando

mudanças que podem partir dessa nova consciência.

A experiência com a leitura do conto Missa do galo, de Machado de

Assis, revelou mais uma vez que é possível despertar o interesse pela leitura dos

clássicos a partir do contemporâneo. Para isso, solicitou-se a leitura do conto A

descoberta do amor por e-mail, de Elias José. Numa linguagem próxima à

linguagem do adolescente, Elias José cria um enredo em que dois estudantes

trocam e-mails repletos de confabulações em torno das atitudes de Conceição e

Nogueira - estratégia de trabalho escolhida pelos personagens do escritor

contemporâneo para apresentar ao professor como resultado da leitura de Missa do

galo. O que incentiva a leitura do conto de Elias José é que há uma espécie de

16

identificação dos estudantes com os personagens - adolescentes habituados a fazer

uso das tecnologias no seu cotidiano.

A partir dessa leitura, ler o conto de Machado de Assis tornou-se

algo mais instigante, visto que foi preciso confirmar ou não a veracidade dos

comentários e a consistência dos argumentos apresentados pelos personagens de

Elias José a respeito dos personagens de Machado de Assis. Assim, por meio da

análise do comportamento de Conceição e Nogueira, a leitura do conto Missa do

galo permitiu contrapor à visão romântica a visão mais objetiva da realidade, ou

seja, o sentimentalismo e a imaginação do Romantismo são substituídos pela

imparcialidade e objetividade presentes nas obras realistas. Esse foi o ponto de

partida para explanações a respeito de outras obras de Machado de Assis e do

contexto do Realismo literário brasileiro.

Antes de iniciar a leitura do último conto sugerido na Unidade

Didática - Incidente na loja, de Dalton Trevisan -, para aguçar a curiosidade, sem

qualquer comentário prévio, propôs-se a leitura do texto Conto erótico nº 1, de Luís

Fernando Veríssimo, em que a ausência de um contexto discursivo provoca

ambiguidade e o desfecho rompe com as expectativas do leitor. Após a leitura, os

estudantes comentaram sobre sua frustração, pois as falas das personagens

induzem o leitor a acreditar que se trata de uma relação sexual, quando, na verdade,

trata-se de uma ação despretensiosa realizada por um dos personagens: o ato de

coçar as costas do outro.

Feito isso, apresentou-se Nelsinho - personagem protagonista dos

contos reunidos no livro O vampiro de Curitiba , de Dalton Trevisan. Destacou-se o

conto Incidente na loja no contexto de O vampiro de Curitiba, obra de contos em que

o personagem Nelsinho revela toda sua obsessão por sexo e mulheres.

A leitura de Incidente na loja deu-se oralmente, com pausas para

comentários e esclarecimentos referentes à sequência dos fatos narrados, à

linguagem enxuta e ao estilo fragmentado do autor. A leitura do conto suscitou

reflexões relacionadas ao drama das relações humanas, percebido nas atitudes de

Nelsinho. Para situar Dalton Trevisan na contemporaneidade e aproximá-lo ainda

mais do estudante/ leitor, foi lida e comentada uma reportagem publicada no jornal

Folha de Londrina, em 08 fev. 2009. Nessa matéria, alguns hábitos do escritor –

homem recluso e avesso a entrevistas - são revelados, bem como as suas

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indicações de leitura para o autor da reportagem, as quais incluem os contos de

Machado de Assis.

A partir das reflexões, os estudantes foram questionados sobre a

recepção da obra de Dalton Trevisan hoje e o impacto que a obra teria provocado na

sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. Desse modo, fez-se uma

explanação sobre o tradicionalismo burguês do século XIX contrapondo-se às

mudanças ocorridas pelo processo de industrialização e pelo crescimento acelerado

de grandes centros, como o Rio de Janeiro; e às teorias científico-filosóficas como o

determinismo de Taine, o evolucionismo de Darwin e o positivismo, de Augusto

Comte.

Essa contextualização permitiu a referência ao Naturalismo

brasileiro, ilustrado em O cortiço, de Aluísio Azevedo – obra comentada e detalhada

pelo professor, com utilização de cenas da versão cinematográfica homônima,

lançada em 1977, dirigida por Francisco Ramalho Jr. Isso posto, foi possível, então,

traçar um paralelo entre a atitude de Nelsinho e a do personagem Miranda (O

cortiço) que, em dado momento, violenta a própria esposa para satisfazer seus

instintos. “Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem

de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo.

Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo.”

(AZEVEDO, 1995. p.16)

Esse diálogo entre o contemporâneo e o clássico propicia uma

abordagem da história literária em que a obra passa a ser o ponto de partida e o de

chegada. Como postulam as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa (2008), o

produto literário não pode ser apreendido somente em sua constituição, pois o

entendimento do que seja literatura está sujeito a modificações históricas. Daí a

importância de se estabelecerem relações dialógicas do texto literário com outros

textos, considerando-se a linguagem, o contexto de produção, a cultura, entre

outros, a fim de que o estudante possa compreender a obra literária em todas as

suas dimensões.

Para a culminância do projeto, propôs-se aos estudantes a leitura e

a seleção de um conto de um dos autores lidos ou então de outros autores, incluindo

as literaturas afro-brasileira e africana (ressalta-se que a lei 10.639/2003

estabeleceu a obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana nos currículos da Educação Básica). Após leitura e seleção – atividade em

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grande parte realizada fora do âmbito da sala de aula – oportunizaram-se trocas de

ideias e sugestões para apresentação do conto para a turma. Além de conhecer o

enredo, os estudantes deveriam identificar os intertextos ou então relacionar a

temática explorada no conto a outros textos, formas de linguagem ou manifestações

culturais.

Seguindo a proposta acima, cada conto foi apresentado num período

máximo de uma hora/aula. A seguir, em linhas gerais, são explanadas as leituras e

os diálogos com outros textos ou objetos culturais, realizados por cada grupo de

estudantes.

Apresentado por meio de slides, o conto As formigas, de Lygia

Fagundes Telles, foi relacionado ao conto Casa tomada, de Julio Cortázar. No conto

da escritora brasileira, o enredo gira em torno de fatos estranhos observados por

duas estudantes (uma de Direito, outra de Medicina), num quarto de pensão, e que

não são explicados no desfecho. No conto do escritor argentino, os personagens

(Irene e o irmão), numa atmosfera de mistério, vão aos poucos sendo obrigados a

abandonar a casa que foi da família há tanto tempo. Em ambos os contos, os

personagens se sentem intimidados num espaço que vai se tornando cada vez mais

incompreensível, o que assinala a presença do elemento fantástico, e que justifica o

diálogo estabelecido entre esses contos pelos estudantes.

Também foi apresentada por meio de slides uma versão do conto

Missa do galo, escrita por Moacyr Scliar. Narrado sob a perspectiva de Conceição,

revela seus sentimentos naquela estranha conversa com Nogueira na noite de Natal

e as impressões que essa noite provocou nela. Estabeleceu-se relação com o conto

de Machado de Assis e com cenas da telenovela Laços de família, em que o

personagem feminino (Helena) se apaixona por um rapaz mais jovem (Edu).

Em slides, o conto Um braço de mulher, de Rubem Braga, expôs um

momento de revelação do personagem masculino ao observar o braço de sua

companheira de viagem, em pânico por medo da viagem de avião. Estabeleceu-se

um diálogo com o conto Uns braços, de Machado de Assis, em que o personagem

Inácio, de quinze anos, se encanta com os braços de D. Severina, esposa de

Borges, para quem o jovem trabalhava.

Por meio de um vídeo montado pelos próprios estudantes, o conto

Último beijo de amor, de Noite na taverna, retoma os personagens do relato de

Johann – lido pela turma – e surpreende pelo retorno de Giorgia; pelo conhecimento

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de que o jovem Arthur sobrevivera ao ferimento provocado pelo duelo com Johann;

pela fantasia materializada num final trágico. Deu-se ênfase à epigrafe – da obra

Romeu e Julieta, de Willian Shakespeare – relacionando-a à tragédia experimentada

pelos personagens Arthur e Giorgia. Para enriquecer a leitura, apresentou-se

também um trailer da versão cinematográfica da peça Romeu e Julieta, transposta

para os dias atuais, lançada em 1996.

Já para a apresentação do conto A cartomante, de Machado de

Assis, o grupo “garimpou” na Internet um vídeo e o apresentou para a turma.

Relacionou-o também a um vídeo, em formato de animação (os estudantes tiveram

contato com esse vídeo numa aula em que, no laboratório de Informática da escola,

assistiram on line a clipes de obras de autores consagrados no endereço eletrônico

http://www.livroclip.com.br) e ao filme homônimo, inspirado no conto de Machado de

Assis, lançado em 2004.

Para encerrar os trabalhos, foi apresentado pelos alunos, oralmente,

o conto A carta, do escritor moçambicano Mia Couto. Nesse conto, o autor,

sutilmente, deixa entrever o sentimento materno de esperança e saudade,

decorrente da ausência do filho e o apego à única lembrança - a carta que

escrevera à mãe, durante a guerra -, objeto sempre retomado até que,

intuitivamente, é queimado por ela no momento em que o narrador, também

personagem, deveria ter-lhe informado sobre a morte do filho. Estabeleceu-se um

diálogo com o poema Canção do africano, de Castro Alves, em que o escritor

brasileiro expressa os sentimentos saudosistas do negro escravizado no Brasil e o

receio da mãe em ser separada do filho pela sua condição de escrava.

No período romântico, Castro Alves expressa e denuncia, por meio

de parte de sua obra, as misérias da escravidão, além de revelar um negro dotado

de sentimentos e angústias. Na produção contemporânea, um equívoco é acreditar

que as literaturas africana e afro-brasileira expressam apenas o preconceito sofrido

pelos negros ou a humilhação sofrida por um povo subjugado, quando na verdade

essas literaturas são a expressão de um povo que tem sua identidade cultural e,

como ser humano, possui modos de pensar próprios e emoções que são

exteriorizadas também por meio da arte.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Formar o leitor de textos literários é, certamente, um dos objetivos,

senão o maior de se trabalhar literatura na escola. Contudo, esse ainda se constitui

num desafio para o professor, especialmente do Ensino Médio, já que muitos

estudantes sequer adquirem hábitos regulares de leitura nos últimos anos da

Educação Básica. Assim atestam os resultados obtidos na coleta de dados ao iniciar

a implementação do projeto Diálogos Literários – estudantes que, em sua maioria,

assumem a postura de não leitores.

Mediante os dados iniciais, dos quais se tem conhecimento pela

experiência com estudantes de Ensino Médio, pensou-se numa abordagem da

literatura que tomasse o texto como objeto de estudo e o analisasse em suas

múltiplas dimensões e nas relações que se podem estabelecer com outros textos,

formas de linguagem ou expressões culturais. Dessa forma, os encaminhamentos

metodológicos do projeto apontam para a multiplicidade de textos – canônicos e

contemporâneos – e outras formas de expressão e contextualização da literatura. Na

perspectiva dialógica, ressalta-se que o contato com o texto literário, seja impresso

ou por meio de outros suportes e mídias, torna-se mais significativo à medida que o

leitor busca sentidos e relações nos diversos campos do conhecimento.

É evidente a interação que ocorre entre obra e leitor quando o

estudante encontra sentido naquilo que lê. Todavia, nessa interação com o texto,

faz-se necessária a mediação do professor, de modo a garantir uma leitura

compreensiva e a formação de um leitor mais autônomo em outras situações de

leitura. Há que se considerar que se trabalha com um público, em grande parte, não

leitor e, portanto, inexperiente, ainda com dificuldade até de estabelecer relações

entre os elementos internos que compõem a obra. Daí a relevância do papel do

professor, pois ao aliar o texto literário a outras linguagens, num diálogo com outros

textos ou objetos culturais, amplia não somente o repertório de leituras do estudante,

mas também lhe oferece conhecimentos e experiências , os quais podem ser

mobilizados em outras situações de leitura.

No decorrer da implementação, um dos instrumentos de coleta de

dados foi o registro, pelos alunos, das impressões de leitura, assim que se

encerraram as atividades referentes ao conto Johann (Noite na taverna), de Álvares

de Azevedo. Suas impressões revelam que é possível extrair do cânone literário os

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elementos que o atualizam sem, contudo, ignorar o contexto de produção; revelam

ainda que é possível superar as barreiras do tempo no tocante à linguagem quando

o estudante é estimulado por leituras, discussões e reflexões em torno da temática

que permeia a obra. Assim, os registros comprovam que o clássico pode ser bem

recebido se houver uma preparação para tal (nisso os pressupostos da Estética da

Recepção podem contribuir).

Ao final da implementação foram realizados novos registros para se

avaliarem as propostas de leituras e os encaminhamentos. Embora alguns

considerassem a leitura cansativa, os registros indicam que as aulas do semestre

foram mais interessantes, inovadoras e que os estudantes passaram a se interessar

mais por leitura; que suas expectativas foram superadas, pois as aulas de leitura

“diferenciadas” despertaram o gosto e o prazer pela leitura de textos literários.

Esse fato pode ser observado por meio dos dados coletados no

questionário Leitura e Literatura (após a implementação) em que a percentagem dos

estudantes que se declararam , em fevereiro, não leitores caiu de 62,8% para 50%.

Sabe-se que esse não é o índice ideal, tampouco indica se o hábito se consolidará

com o tempo (pode refletir apenas um entusiasmo momentâneo); contudo, ainda

assim, assinala a relevância do projeto na formação do hábito da leitura.

Por fim, as observações e anotações do professor PDE foram

decisivas no encaminhamento das leituras durante o processo de implementação,

pois possibilitaram constantes reflexões em torno dos referenciais teóricos que

subsidiaram o projeto e a recepção dos textos e das atividades. Em síntese,

verificou-se que a resistência à leitura observada em grande parte dos estudantes,

no início da implementação do projeto, foi dando lugar ao envolvimento com o texto

conforme as leituras iam sendo propostas em sala, o que revela, de certa forma, um

novo “olhar” sobre o texto literário.

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