lavratura de auto civil crime militar

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Lavratura do auto de prisão em flagrante em crimes militares por Autoridade Policial civil. INTRODUÇÃO Não é da rotina do jurista laborar diariamente em temas relativos ao Direito Militar, nomeadamente por se tratar de matéria de restrita aplicabilidade e cujo interesse, em regra, desponta apenas em pouquíssimos estudiosos e leitores. Não se pode, todavia, olvidar-se de que o direito é um só, apenas foi fracionado em diversos ramos para facilitar sua compreensão e aplicabilidade. Assim é que, nenhum ramo do direito caminha sozinho, independente e austero, isento à ingerência dos demais campos. Desta forma, o Direito Constitucional, por exemplo, atua em todos os demais campos da ciência jurídica, exigindo que toda e qualquer interpretação dos dispositivos infraconstitucionais se ajustem aos mandamentos da Magna Carta. Noutros casos, os dispositivos inerentes a um determinado ramo do direito aplicam-se subsidiariamente a outros. É o que ocorre com as normas do sistema recursal do processo civil em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação processual penal comum aos processos dos Juizados Criminais, bem como o Direito Processual Penal Militar, ao qual se aplicam subsidiariamente as disposições do Código Processual Penal. O Direito, como dito, é um só, representado por um recipiente hermeticamente fechado, onde existem soluções para todo e qualquer questionamento judicial,

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Lavratura de Auto Civil Crime Militar

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INTRODUO

Lavratura do auto de priso em flagrante em crimes militares por Autoridade Policial civil.INTRODUO

No da rotina do jurista laborar diariamente em temas relativos ao Direito Militar, nomeadamente por se tratar de matria de restrita aplicabilidade e cujo interesse, em regra, desponta apenas em pouqussimos estudiosos e leitores.

No se pode, todavia, olvidar-se de que o direito um s, apenas foi fracionado em diversos ramos para facilitar sua compreenso e aplicabilidade. Assim que, nenhum ramo do direito caminha sozinho, independente e austero, isento ingerncia dos demais campos.

Desta forma, o Direito Constitucional, por exemplo, atua em todos os demais campos da cincia jurdica, exigindo que toda e qualquer interpretao dos dispositivos infraconstitucionais se ajustem aos mandamentos da Magna Carta.

Noutros casos, os dispositivos inerentes a um determinado ramo do direito aplicam-se subsidiariamente a outros. o que ocorre com as normas do sistema recursal do processo civil em relao ao Estatuto da Criana e do Adolescente, a legislao processual penal comum aos processos dos Juizados Criminais, bem como o Direito Processual Penal Militar, ao qual se aplicam subsidiariamente as disposies do Cdigo Processual Penal.

O Direito, como dito, um s, representado por um recipiente hermeticamente fechado, onde existem solues para todo e qualquer questionamento judicial, inexistindo lacunas, na medida em que seus diversos ramos se entrelaam na busca de solues jurdicas para os conflitos de interesse havidos, socorrendo-se, ainda, das diversas formas de integrao (analogia, princpios gerais do direito, costumes, jurisprudncia, etc).

O presente estudo tem por escopo apreciar um tema que, embora afeto ao Direito Militar, tem no seu operador um desconhecedor, em regra, desta legislao especial, razo por que poder este, ao deparar-se com a situao concreta, no saber quais as providncias a adotar.

por esta razo que nenhum estudioso do direito deve dispensar o conhecimento de temas afetos a ramos da cincia distintos daquele que opera diariamente, cabendo-lhe conhecer, ainda que superficialmente, todos os seus campos, aprofundando-se naqueles que lhe aprouver.

Acerca do tema objeto do presente estudo, observa-se ser comum o desconhecimento da matria por parte das autoridades policiais civis que, por vezes, recusam a lavratura do auto de priso em flagrante por se tratar de delito de natureza militar, argindo que a competncia, neste caso, to-somente da autoridade militar.

H casos que, inversamente, a autoridade policial lavra o auto de priso, todavia o crime militar foi cometido em local sujeito administrao militar, circunstncia esta que obsta a atuao do Delegado de Polcia.

Muitas vezes ainda, a autoridade policial admite a possibilidade de praticar o ato, todavia no sabe como identificar se est diante de uma hiptese de crime militar ou comum.

Aps apreciar as exposies adiante delineadas, talvez muitas dvidas porventura ainda existentes sejam dirimidas, facilitando, assim, a compreenso do tema por ns considerando sobejamente relevante.

CRIME MILITAR - APURAO X AUTUAO EM FLAGRANTE

Em se tratando de delitos de natureza militar, tem-se, de logo, como incompetentes para apur-los, as instituies policiais civis, notadamente pelo disposto na Carta Poltica vigente que, de forma taxativa, excepciona tais crimes, ao disciplinar a competncia da polcia civil, conforme adiante disposto:

"Artigo 144, 4 - As polcias civis, dirigidas por Delegados de Polcia de carreira, incumbem, ressalvada a competncia da Unio, as funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as militares".(grifamos)

De incio, manifesta-se imprescindvel dissociar apurao de infrao penal, de lavratura de auto de priso em flagrante.

cedio que a priso em flagrante pode ser feita por qualquer pessoa do povo, sendo, porm, dever dos agentes policiais, sejam civis ou militares, faz-la.

Efetuada a priso, segue-se, como consectrio lgico e inafastvel, ressalvadas as hipteses de crimes de menor potencial ofensivo, a lavratura do auto de priso em flagrante delito, sob a presidncia exclusiva do Delegado de Polcia de Carreira, no caso de crimes comuns, ou da autoridade militar, nos delitos especiais.

Note-se, por oportuno, que na hiptese de delitos militares, sempre que houver flagrante da infrao, dar-se- a lavratura do auto de priso, uma vez que, como de todos sabido, a Lei 9.099/95 no se aplica aos delitos sujeitos legislao castrense, no sendo possvel a dispensa do flagrante admitida pelo antedito diploma.

Lavrado o competente auto de priso em flagrante delito, surge a o segundo momento, qual seja, a apurao da infrao penal, conduzida atravs do sumrio de investigao preliminar, preparatrio da ao penal, que o Inqurito Policial, cuja natureza adequar-se- ao tipo penal especfico, sendo ele Militar ou Comum, consoante a espcie delituosa.

O auto de priso em exame, malgrado seja um ato de polcia judiciria, no e nem nunca foi apurao de infrao penal. Ao materializar em documentos a priso em flagrante, a autoridade tem como objetivo maior identificar o autor da infrao e determinar de que forma a mesma ocorreu, colhendo as evidncias no calor dos acontecimentos, evitando que as provas se percam com o passar do tempo.

A priso em flagrante inclui-se entre as prises cautelares de natureza processual e que a rigor um mero ato administrativo levado a cabo pela Polcia Judiciria, incumbida que de zelar pela ordem pblica. A apurao do crime, todavia, circunstncia distinta que, muita vez, sequer incumbncia da autoridade que presidiu o ato.

Foi com sapincia, pois, que o legislador constituinte excluiu da competncia das autoridades policiais civis, entenda-se Delegados de Polcia, to-somente a apurao dos delitos militares, circunstncia esta que nos faz concluir que a lavratura do auto de priso , portanto, de competncia comum, conforme dispuser a legislao ordinria.

A LEGISLAO MILITAR SOBRE O TEMA

No bastassem as argumentaes antes esposadas que, ao que se nos parece, j dilaceram qualquer entendimento contrrio, a norma infraconstitucional que disciplina o processo penal militar, em seu Artigo 250, admite expressamente a possibilidade do auto de priso em flagrante, em caso de infrao penal de natureza militar, ser lavrado pela autoridade policial civil, a saber, in verbis:

Art 250 - "quando a priso em flagrante for efetuada em lugar no sujeito administrao militar, o auto poder ser lavrado por autoridade civil, ou pela autoridade militar do lugar mais prximo daquele em que ocorrer a priso."

Infere-se da exegese literal do dispositivo supra, que o Delegado de Polcia pode presidir o ato prisional, observada a ressalva de que s permitido tal procedimento na hiptese de fato ocorrido em local no sujeito a Administrao Militar.

Note-se, ainda, que a lavratura do flagrante nos delitos militares, quando presidida por autoridade militar, atribuio exclusiva de oficiais (tenentes, capites, majores, tenentes-coronis, coronis e oficiais generais) das Foras Armadas e Milcias Estaduais, conforme seja o crime de competncia federal ou estadual respectivamente, observadas as normas relativas hierarquia que exige ser o presidente do ato, superior ou mais antigo que o flagranteado..

vedada s praas(soldados, cabos, sargentos, subtenentes e aspirantes) presidncia de Auto de Priso em flagrante e do Inqurito Policial.

A existncia de oficias militares, em todas as cidades brasileiras, todavia, mormente aquelas mais longnquas e de difcil acesso, no uma realidade por ns vivenciada, razo por que se justifica, ainda mais, a possibilidade de o flagrante, nos casos sob comento, serem lavrados pela autoridade policial civil.

Ademais, a lavratura do flagrante est sujeita a prazo fatal de 24h, findo qual deve o autor da infrao receber a nota de culpa, sob pena de nulidade do ato. No pode, pois, o fato ficar merc do comparecimento de uma autoridade militar para materializao do ato, sob pena de ensejar srios prejuzos ao andamento processual e efetivao da mais ldima justia.

A COMPETNCIA DA JUSTIA MILITAR

A competncia da Justia Militar vem traada na Carta Poltica, em seu art. 124, caput, que estabelece o seguinte:

"Compete Justia Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei"(grifo nosso)

Ao delimitar a competncia, in casu, a Constituio autorizou o legislador ordinrio especificar em quais circunstncias ter-se- um delito de natureza militar.

O Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 foi recepcionado na condio de Lei ordinria, estando no referido diploma descritas as hipteses fticas onde, inclusive no-militares, cometem crimes militares.

o que se depreende da leitura dos artigos 9 e 10 do Cdigo Penal Militar, que definem os crimes militares em tempo de paz e em tempo de guerra, respectivamente.

Os dispositivos referidos, todavia, delimitam de forma genrica quais fatos subsumem a legislao castrense, restando ao operador do direito, porm, verificar ainda se a hiptese analisada encontra tipo penal no Cdigo de Iras Especial.

Assim que, o crime s ser militar: primeiro se estiver disciplinado no Cdigo Penal Militar, na sua parte especial; segundo se subsumir-se a uma das hiptese previstas no art 9, II e III do mesmo Diploma.

Surgindo, pois, um fato delituoso cuja autoria seja atribuda a um militar ou mesmo a um civil, deve a autoridade policial, presente a situao de flagrncia, consultar o Cdigo Penal Militar para verificar se existe aquele tipo penal no seu texto. Em caso positivo, dirigir-se- ao art 9, II e III, para apreciar se as circunstncias fticas do delito encontram repouso em uma de suas alneas.

Como exemplo podemos citar o crime de aborto. Malgrado previsto no Cdigo Penal Comum, o crime de aborto no encontra definio, ainda que diversa, na legislao penal especial. Logo, o militar, mesmo que em lugar sujeito Administrao Militar, se praticar um aborto, cometer um crime comum e no militar, conquanto o art. 9,II, b, considere militar o crime praticado em tais circunstncias.

COMPETNCIA DA JUSTIA MILITAR ESTADUAL

A Justia Militar Estadual, por fora da Constituio Federal, s pode processar e julgar militares, sejam policiais ou bombeiros. Neste caso, no se estende a competncia aos civis, ainda que os delitos por eles cometidos estejam inseridos na parte especial do Cdigo Penal Militar e se enquadrem nas hipteses disciplinadas nas alneas do art 9, II e III do mesmo Diploma.

o que se depreende da leitura do art 125, 4 da Norma Magna, a seguir transcrito:

"Compete Justia Militar Estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei,..."

No que diz respeito, no entanto, Competncia da Justia Militar Federal, a Lex Mater no fez qualquer espcie de restrio, pois assim preceituou:

"Compete Justia Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei"

luz dos dispositivos acima transcritos conclui-se que em se tratando de Competncia Federal, possvel o civil cometer crime militar, o mesmo no acontecendo quando se fala em crimes na esfera da Justia Militar Estadual, uma vez que o prprio Constituinte afastou da competncia desta ltima os delitos praticados por no-militares.

Em resumo, um mesmo delito, cometido em concurso entre militar e no-militar, poder ter natureza diversa, ou seja, o ato praticado por militar ser um crime militar e o mesmo ato delituoso praticado por no-militar ser um crime de natureza comum. Exemplo: militar e civil praticam leso corporal contra um outro militar estadual que se encontra em servio.

de suma relevncia o esclarecimento em epgrafe, porquanto, neste caso, mesmo que o crime seja cometido em local sujeito Administrao Militar, a autoridade Policia Civil, ao menos em relao ao no-militar, dever presidir o flagrante e conduzir o inqurito, pois o crime de natureza comum e no militar.

Neste caso teremos dois processos, um da competncia da Justia Comum e outro da Justia Castrense, devendo, destarte, a cada justia ser encaminhada a cpia do flagrante e o respectivo inqurito.

CONCLUSO,

Em carter derradeiro parece-nos oportuno apresentar, em pontos distintos, as concluses decorrentes do presente estudo:

1.O Delegado de Polcia, investido nas suas prerrogativas legais e de autoridade policial, alm de outras diligncias, juntamente com os membros da organizao policial, pode e deve autuar em priso flagrante delito, qualquer pessoa, civil ou militar, que tenham cometido crime militar, desde que presa fora da administrao castrense;

2.No caso de crimes militares cuja pena mxima, abstratamente cominada, no exceda a dois anos (crimes de menor potencial ofensivo), ainda assim deve ser lavrado o flagrante delito, uma vez que a Lei 9.099/95, mesmo com as modificaes resultantes do advento da lei 10.259/2001, no se aplica aos delitos militares. Em resumo, no se lavra Termo Circunstanciado de crime militar, somente flagrante;

3.No caso de delito cometido por militar, na hiptese de aplicar o art 250 do CPPM, a autoridade policial civil deve, antes de qualquer coisa, consultar a parte especial o Cdigo Penal Militar, a fim de certificar-se se a hiptese ftica apresentada subsume-se a algum dos tipos penais nela elencados. Em seguida, dever apreciar o art 9, II e III, do mesmo Diploma, para verificar se est diante de um delito de natureza militar;

4. Concludo o flagrante, seja o crime comum ou militar, se praticado por membro das corporaes armadas, deve ser o infrator encaminhado imediatamente a sua respectiva fora, devendo permanecer na Delegacia somente o tempo suficiente para a lavratura do auto de priso;

5. Nos crimes da Competncia da Justia Militar Estadual, somente se aplica a legislao Penal e Processual Penal Militar aos militares, sejam bombeiros ou policiais, pois nesta esfera de competncia o no-militar s pratica crime de natureza comum, ainda que em concurso com militar;

6. Nos crimes da Competncia da Justia Militar Federal, a legislao especial se aplica a militares e no-militares que cometam delitos desta natureza.

NOTA

Cdigo Penal Militar

"Artigo 9 - Consideram-se crimes militares me tempo de paz:

I os crimes de que trata este Cdigo quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela no previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposio especial;

II os crimes previstos neste Cdigo. embora tambm o sejam com igual definio na lei penal comum, quando praticados:

a)por militar em situao de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situao ou assemelhado;

b)por militar em situao de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito a administrao militar, contra militar da reserva ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c)por militar em servio ou atuando em razo da funo, em comisso de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito administrao militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d)por militar durante o perodo de manobras ou exerccio, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e)por militar em situao de atividade, ou assemelhado, contra o patrimnio sob a administrao, ou a ordem administrativa militar;

f)revogada

III os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituies militares, considerando como tais no s os compreendidos no inciso I, com os do inciso II, nos seguintes casos:

a)contra o patrimnio sob a administrao militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b)em lugar sujeito administrao militar contra militar em situao de atividade ou assemelhado, ou contra funcionrio de Ministrio Militar ou da Justia Militar, no exerccio de funo inerente ao seu cargo;

c)contra militar em formatura, ou durante o perodo de prontido, vigilncia, observao, explorao, exerccio, acampamento, acantonamento ou manobras;

d)ainda que forma do lugar sujeito administrao militar, contra militar em funo de natureza militar, ou no desempenho de servio de vigilncia, garantia e preservao da ordem pblica, administrativa ou judiciria, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obedincia a determinao legal superior.

Pargrafo nico Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, sero da competncia da justia comum."

Alguns conceitos importantes:

1.Militar em situao de atividade aquele que est no servio ativo, ou seja, ainda no foi para a reserva ou foi reformado. Comparando com o servidor comum, aquele no aposentado ou afastado definitivamente;

2.Assemelhado figura no mais existente na estrutura militar;

3.Militar da reserva aquele que no se encontra mais no servio ativo, embora seja ainda remunerado por fora de aposentadoria, estando sujeito a retornar ao servio ativo, mediante convocao;

4.Militar reformado aquele que deixou o servio ativo e no mais pode ser convocado, e que matem remunerao custeada pelos cofres pblicos. Em regra so os aposentados por invalidez, ou os da reserva passado determinado lapso temporal fixado em lei;

5.Militar em servio aquele da ativa que est prestando algum servio de natureza militar;

6.Militar atuando em razo da funo aquele militar que de folga, atua prestando um servio em razo da profisso abraada.Exemplo mais comum do policial militar que prende algum em flagrante mesmo fora do servio, ou do bombeiro que salva uma vida na mesma circunstncia;

BIBLIOGRAFIA e LEGISLAO CONSULTADAS

1 - Curso de Direito Penal Militar - ROMEIRO, Jorge Alberto - Editora Saraiva - Edio 1994;

2 Constituio Federal de 1988;

3 Cdigo de Processo Penal Militar;

4 Cdigo Penal Militar

Crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a vida de civis: crime militar julgado pela Justia Comum Elaborado em 04.2005.

Ccero Robson Coimbra Nevesprimeiro-tenente da Polcia Militar do Estado de So Paulo (servindo na Corregedoria), bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministrio Pblico de So Paulo, mestrando em Direito Penal pela PUC/SP, professor de Direito Penal Militar da Academia de Polcia Militar do Barro Branco e de Direito Penal Militar Aplicado no Curso de Especializao de Oficiais em Polcia Judiciria Militar na Corregedoria da Polcia Militar do Estado de So Paulo

1. Introduo

Desconsiderando ilaes acerca das razes que levaram o Poder Constituinte derivado a alterar a competncia da Justia Militar Estadual, com o advento da Emenda Constitucional n 45, de 08 de dezembro de 2004, surgiu no universo jurdico uma nova roupagem para os crimes dolosos, praticados por militares dos Estados, contra a vida de civis que encontrem tipicidade no Cdigo Penal Militar.

Transcendendo uma viso puramente crtica e inconformista, devemos absorver a nova realidade buscando delinear suas conseqncias prticas para os operadores do Direito Penal Militar, substantivo e adjetivo.

As linhas que se seguiro, abertas a crticas construtivas que possam enaltecer o debate, tero o escopo apenas de evidenciar uma viso possvel acerca da nova ordem, sem a inteno de sacramentar idias, estabelecer dogmas intransponveis ou mesmo de impor uma anlise puramente corporativista, que coloque acima do Direito interesses comezinhos repudiveis.

2. A situao vigente antes da Emenda Constitucional

O pargrafo nico do artigo 9 do Cdigo Penal Militar, acrescido pela lei 9.299, de 07 de agosto de 1.996, in verbis, dispe que os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, sero da competncia da Justia Comum.

Para boa parte da Doutrina, para no dizer sua totalidade, ao assim dispor, a lei 9.299/96 apresentou inconstitucionalidade patente, porquanto sua edio apenas suprimiu a competncia da Justia Militar, expressa no art. 124 (Justia Militar Federal) e no 4 do art. 125 (Justias Militares Estaduais), da Constituio Federal.

Com efeito, no que concerne ao deslocamento de competncia para a Justia Comum para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, perpetrados contra civis, a lei 9.299/96 apresentou flagrante inconstitucionalidade. O raciocnio para essa concluso bastante simples, bastando uma simples reflexo acerca do princpio da supremacia da constituio e da idia de uma constituio rgida. Nesse sentido, Alexandre de Moraes, de forma precisa e clara, argumenta que "a existncia de escalonamento normativo pressuposto necessrio para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituio a hierarquia do sistema normativo nela que o legislador encontrar a forma de elaborao legislativa e o seu contedo. Alm disso" prossegue o insigne autor ", nas constituies rgidas se verifica a superioridade da norma magna em relao quelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exerccio da funo legiferante ordinria" [01]. dizer, em outros termos, que nenhuma norma infraconstitucional, pelos postulados supra, pode afrontar a Lei Maior ou, do contrrio, dever ser rechaada por inconstitucionalidade.

No caso da lei 9.299/96, o que se viu foi a materializao dessa inconstitucionalidade, vez que referida lei, lei ordinria, alterou competncia de julgamento de crimes militares dolosos contra a vida de civis que, constitucionalmente, era conferida s Justias Militares, relativizando e conspurcando o princpio do juiz natural.

A propsito do princpio do juiz natural, dispem respectivamente os incisos XXXVII e LIII do art. 5 da Constituio Cidad, que no haver juzo ou tribunal de exceo e que ningum ser processado nem sentenciado seno pela autoridade competente. O princpio em relevo deve ser interpretado de forma plena, vedando-se "no s a criao de tribunais ou juzos de exceo, mas tambm de respeito absoluto s regras objetivas de determinao de competncia, para que no seja afetada a independncia e imparcialidade do rgo julgador." [02]

De se notar nesse cenrio que o texto do pargrafo nico do art. 9, nitidamente norma de Direito Penal Militar adjetivo, em um compndio que pretende ser de Direito Penal Militar substantivo, no exclui o crime doloso contra a vida praticado contra civil da esfera dos crimes militares.

Ora, se o crime era militar e tal crime, por previso expressa da Lei Maior, era de competncia da Justia Militar, o deslocamento do julgamento para a Justia Comum, materializada por lei ordinria, resultava na submisso do jurisdicionado a autoridade no competente. Interpretaes diversas desta, com a devida vnia, lastraram-se em quaisquer outros critrios, menos um critrio tcnico-jurdico.

Malgrado a construo supra, ao menos no mbito estadual e isso com o respaldo do Excelso Pretrio e do Superior Tribunal de Justia, firmou-se posio jurisprudencial no sentido da constitucionalidade da lei, sendo a previso em relevo aplicada em sua plenitude. Vejamos alguns julgados, extrados do primoroso estudo elaborado por Jorge Cesar de Assis [03]:

Supremo Tribunal Federal:

Crimes dolosos contra a vida. Inqurito. Julgada medida cautelar em ao direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associao dos Delegados de Polcia do Brasil - ADEPOL contra a Lei 9.299/96 que, ao dar nova redao ao art. 82 do Cdigo de Processo Penal Militar determina que "nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justia Militar encaminhar os autos do inqurito policial militar Justia Comum." Afastando a tese da autora de que a apurao dos referidos crimes deveria ser feita em inqurito policial civil e no em inqurito policial militar, o Tribunal, por maioria, indeferiu a liminar por ausncia de relevncia na argio de ofensa ao inciso IV, do 1 e ao 4 do art. 144, da CF, que atribuem s polcias federal e civil o exerccio das funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as militares. Considerou-se que o dispositivo impugnado no impede a instaurao paralela de inqurito pela polcia civil. Vencidos os Ministros Celso de Mello, relator, Maurcio Corra, Ilmar Galvo e Seplveda Pertence. Ao Direta de Inconstitucionalidade 1.494-DF Rel. p/ o acrdo Min. Marco Aurlio, DJU, 20.04.97).

Superior Tribunal de Justia

Ementa. Processo penal. Conflito de competncia. Justia Militar Estadual e Justia Estadual Comum. Ao penal em curso. Lei 9.299/96. Aplicao imediata. Os crimes previstos no art. 9, do Cdigo penal militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, so da competncia da Justia Comum. (Lei 9.299/96). E, por fora do princpio da aplicao imediata da lei processual (CPP, art. 2), afasta-se a competncia da Justia Militar para julgar a ao penal em curso.

Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de Direito da Vara do Jri. Unnime. (STJ 3 Seo Conflito de competncia 17.665-SP Rel. Min. Jos Arnaldo, j. 27.11.96, DJU, 17.02.97)

Tribunal de Justia do Paran:

Ementa. Conflito de competncia. Crimes de homicdio qualificado e facilitao de fuga de presos...o crime de homicdio qualificado, praticado por policial militar contra civil, em 26.06.93, cujo processo tramita perante a Justia Castrense, passa competncia da Justia Comum, sem que haja ofensa ao princpio do Juiz natural...(Ac. 3.036 Confl. Comp. 54.932-8, de Palmas grupo de Cmaras Criminais, Rel. Des. Trotta Telles, j. 18.06.97).

Ementa. Conflito de Competncia. Homicdio doloso na forma tentada, cometido por policial militar do Estado, contra civil. Competncia da Justia Comum. Aplicao da Lei 9.299/96. Incoerncia de ofensa a dispositivos constitucionais. Os crimes previstos no art. 9 do CPM, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, com o advento da Lei 9.299/96, passaram competncia da Justia Comum. No inconstitucional o art. 1, 1, da Lei 9.299/96. (Confl. Comp. 67.824-6, de Realeza. Grupo de Cmaras Criminais. Rel Des. Trotta Telles, j. 16.09.98).

Em adio, tome-se julgado oriundo de Minas Gerais, no seguinte sentido:

Ementa: - Convencido o Juiz Auditor da existncia de dolo no ato praticado por policial militar de que resultou a morte de um civil, correta a deciso que julgou a Justia Militar incompetente nos termos da Lei. 9.299/96. (Rec. Sentido Estrito n 226. Processo n 16.348/2 AJME. Rel. Juiz Cel PM Laurentino de Andrade Filocre. Recorrente: Ministrio Pblico. Recorrido: O Juzo da 2 AJME).

Como se verificou, por via concentrada, o Supremo Tribunal, em face de Ao Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associao dos Delegados de Polcia do Brasil [04], entendeu que a disposio em discusso era constitucional. Por outro lado, h decises, por via difusa, que muito acertadamente afastam a constitucionalidade da lei 9.299/96, dentre as quais pode-se destacar posio do Superior Tribunal Militar, na seguinte conformidade:

Ementa. Recurso Criminal. Competncia da Justia Militar da Unio.Inconstitucionalidade, declarada incidenter tantum, da Lei n 9.299 de 1996, no que se refere ao pargrafo nico do art. 9 do CPM e ao caput do art. 82 e seu pargrafo 2 do CPPM. Desde a sano da Lei n 9.299 de 1996, com o Projeto de Lei encaminhado ao Congresso Nacional para modific-la, verifica-se que seu texto resultou equivocado. Enquanto no ocorre a alterao do texto legal pela via legislativa, o remdio a declarao de sua inconstitucionalidade Incidenter tantum, conforme dispe o Art. 97 da CF. Antecedentes da Corte (RCr n 6348-5/PE). Provido o recurso do RMPM e declarada a competncia da Justia Militar da Unio para atuar no feito. Deciso unnime.(Acrdo n 1997.01.006449-0 UF: RJ Deciso: 17/03/1998. Rel. Min. Aldo da Silva Fagundes).

Dessarte, o entendimento jurisprudencial dominante era o de que os crimes em apreo deveriam ser julgados pela Justia Comum. Essa realidade levou muitos concluso de que, se a lei no era inconstitucional (at mesmo na viso da Corte Maior), somente uma soluo poderia ser dada ao problema: concluir, a frceps, que os crimes dolosos contra a vida praticados por militares, contra civis, deixaram de ser crimes militares com o advento da lei 9.299/96. Por essa razo, muito bem observa Clio Lobo, acertaria o legislador ordinrio se, simplesmente, utilizasse a seguinte redao: "os crimes dolosos contra a vida, praticados contra civis, no so crimes militares" [05]. O texto idealizado por Clio Lobo, de redao simples e direta, solucionaria, sem a necessidade de nenhuma construo metajurdica, a questo, porquanto o Poder Constituinte originrio atribuiu ao legislador ordinrio a definio do ilcito penal militar ("crimes militares definidos em lei", consignam os art. 124 e 125, 4 da Constituio Federal).

A prxis demonstrou que a interpretao por desnaturao do delito doloso contra a vida de civil para o catlogo dos crimes comuns era a mais adequada e vivel, vez que as condenaes de militares dos Estados aps o surgimento do pargrafo nico do art. 9 se deram com lastro no art. 121 do Cdigo Penal e no no art. 205 do Cdigo Penal Militar.

3. Crimes dolosos contra a vida de civis: crime militar julgado pela Justia Comum

3.1. Crime militar doloso contra a vida de civil, perpetrado por militares das Foras Armadas

A situao esboada permanece inerte no que concerne ao crime militar doloso contra a vida de civil, perpetrado por militares das Foras Armadas, j que a Emenda Constitucional n 45/04 no alterou o art. 124 da Constituio Federal.

Como se demonstrou, dois caminhos poderiam ser seguidos em face da realidade apresentada: desnaturar o crime do rol dos crimes militares ou considerar a lei 9.299/96, particularmente no que concerne ao pargrafo nico do art. 9, inconstitucional, isso pelo controle difuso de constitucionalidade.

Felizmente, no mbito da Justia Militar Federal prevaleceu a racionalidade tcnico-jurdica, afastando o Superior Tribunal Militar a aplicao do dispositivo reconhecendo sua inconstitucionalidade incidenter tantum, posio que deve ser mantida, salvo se a reforma do Poder Judicirio, que ainda continua em curso, alterar o cenrio constitucional.

3.2. A nova realidade das Justias Militares Estaduais

Em que pesem as justas crticas tecidas nova redao do art. 125 da Carta Me, e nesse propsito muito feliz foi Jorge Csar de Assis [06], em um ponto o constituinte derivado parece ter mrito inconteste: caiu por terra a discusso acerca da inconstitucionalidade do pargrafo nico do art. 9 do Cdigo Castrense no mbito das Justias Militares Estaduais.

O novo texto claro ao consagrar a competncia do Tribunal do Jri para processar e julgar os crimes militares dolosos contra a vida de civil, perpetrados por militares dos Estados.

Vejamos o que consigna a nova redao do 4 do art. 125 da Carta Magna:

Compete Justia Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as aes judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competncia do jri quando a vtima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduao das praas (grifei).

Nitidamente, o Tribunal do Jri, em uma situao excepcional trazida pela prpria Constituio, passar a julgar crimes militares dolosos contra a vida de civis, ou seja, ao contrrio do que se praticou at o advento da Emenda Constitucional em apreo, os processos devero ter curso por incorrncia do jurisdicionado nos art. 205 ou 207 do Cdigo Penal Militar, ainda que o Tribunal do Jri seja expresso da Justia Comum.

3.3. A posio hierrquica da Emenda Constitucional

"O poder constituinte pode ser conceituado como o poder de elaborar (e neste caso ser originrio), ou atualizar uma Constituio, atravs da supresso, modificao ou acrscimo de normas constitucionais (sendo nesta ltima situao derivado do originrio)" [07].

Como se vislumbra da proposio acima, o Poder Constituinte pode ser originrio (direto, de primeiro grau, inicial, inaugural) ou derivado (indireto, de segundo grau, institudo, derivado ou secundrio). Este interessa ao tema proposto, porquanto dele origina-se a emenda constitucional.

O Poder Constituinte derivado altera a constituio em vigncia, obedecendo as regras materiais e formais nela previstas ou estrutura, calcado na capacidade de auto-organizao, a Constituio dos Estados-membros. Trata-se de um poder subordinado e condicionado, e com procedimento previsto na Constituio em vigor.

A alterao do texto constitucional por emenda no livre, limitando-se pelo que estabeleceu o prprio Poder Constituinte originrio. Essa caracterstica, ressalte-se, o que confere nossa Constituio, quanto alterabilidade, as classificaes de rgida e parcialmente altervel. Dessarte, o constituinte derivado deve observar limites para alterar a Lei Maior, sendo eles de natureza formal (quorum de aprovao e rito diferenciado para a alterao da constituio art. 60, I, II e III, e 2o, da Constituio Federal), circunstancial (art. 60, 1o, da CF - A Constituio no poder ser emendada na vigncia de interveno federal, de estado de defesa ou de estado de stio), material (contedo material da Constituio que no pode ser alterado; so as clusulas ptreas previstas no art. 60, 4o forma federativa de Estado; voto direto, secreto, peridico e universal; separao dos poderes; direitos e garantias individuais), e implcitos (veda-se a alterao das normas limitadoras de alterao constitucional).

Primordial ressaltar que a "emenda Constituio Federal, enquanto proposta, considerada um ato infraconstitucional sem qualquer normatividade, s ingressando no ordenamento jurdico aps sua aprovao, passando ento a ser preceito constitucional, de mesma hierarquia de normas constitucionais originrias" [08].

3.4. Competncia de julgamento dos crimes militares e dos crimes militares dolosos contra a vida de civis

A nova redao trazida pelo 4 do art. 125 mantm a competncia da Justia Militar dos Estados para processar e julgar os crimes militares, a exceo de uma espcie, qual seja, o crime militar doloso contra a vida de civil, que passou a ser de competncia do Tribunal do Jri, agora, por uma exceo lmpida, o juzo natural para tal delito.

Por estranho que possa parecer, essa a nova realidade a ser reconhecida.

A estranheza, no entanto, comea a se dissipar quando da incurso pelo carter especial do Direito Penal Militar e quando da anlise do Direito comparado.

A especialidade do Direito Penal Castrense, em viso tradicional, evidencia-se pelo rgo especial que o aplica: as Justias Militares. Nessa linha, desponta Mirabete afirmando que a distino entre Direito Penal comum e Direito Penal especial "s pode ser assinalada tendo em vista o rgo encarregado de aplicar o Direito objetivo comum ou especial". [09]

A especialidade (ius singulari), que no se confunde com excepcionalidade (privilegium), por esse critrio, adviria das normas constitucionais (artigos 124 e 125, 4 da Constituio Federal), que definem a competncia da Justia Militar.

Recentemente, porm, a clssica abordagem vem sofrendo duras crticas, no sem um fundo de razo, deve-se assinalar.

Clio Lobo, aproveitando os postulados, dentre outros, de Romeu de Campos Barros, entende que "classificar o direito penal especial em funo do rgo judicirio encarregado de aplicar o direito objetivo, demonstra evidente confuso entre Direito Penal especial e Direito Processual Penal especial". Assevera ainda, aps notvel argumentao, que "o Direito Penal Militar especial em razo do bem jurdico tutelado, isto , as instituies militares, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, do servio e do dever militar, acrescido da condio de militar dos sujeitos do delito" [10], concluindo adiante, com base na premissa acima, que apenas os crimes propriamente militares merecem o ttulo de Direito Penal especial, sendo os crimes impropriamente militares, cometidos por militares ou por civil, delitos comuns que o legislador ordinrio, entendeu por determinar a competncia de julgamento s Justias Militares.

Assim, nas lies do caro mestre, os crimes de homicdio (art. 205 do CPM), leso corporal (art. 209 do CPM) etc, no fariam parte do Direito Penal especial, mas do Direito Penal comum, ainda que a competncia de julgamento seja da Justia Castrense.

Sem embargo, a premissa exposta pelo professor, qual seja, a de que a especialidade do Direito Penal Militar decorre do carter sui generis do bem jurdico por ele tutelado perfeita e irretocvel. Entretanto, data maxima venia, parece equivocado o entendimento de que somente os crimes impropriamente militares possuem essa especialidade, justamente em razo da abordagem acerca do bem jurdico-penal militar.

Vrios bens, na acepo genrica de bem jurdico-penal, interessam ao Direito Penal Militar, destacando-se, obviamente, a hierarquia e a disciplina, hoje elevadas a valores tutelados pela Carta Maior. Dessa forma, alm da disciplina e da hierarquia, outros bens da vida foram eleitos, a exemplo da integridade fsica preservada, do patrimnio etc.

Por outro lado, possvel afirmar que, qualquer que seja o bem jurdico evidentemente tutelado pela norma, sempre haver, de forma direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituies militares, o que permite afirmar que, ao menos ela, a regularidade, sempre estar na objetividade jurdica dos tipos penais militares, levando concluso de que em alguns casos ter-se-a um bem jurdico composto como objeto da proteo do diploma penal castrense. dizer, e.g., o tipo penal do art. 205, sob a rubrica "homicdio" tem como objetividade jurdica, em primeiro plano, a vida humana, porm no se afasta de uma tutela mediata da manuteno da regularidade das instituies militares.

Para afastar, sempre com a merecida reverncia, a viso do mestre Clio Lobo, h casos mais gritantes de crimes impropriamente militares, em que a especialidade, pela tutela da regularidade da instituio, inequvoca, como o caso do delito de violncia contra sentinela (art. 158 do CPM). Ainda que possa ser perpetrado por qualquer pessoa, portanto um crime impropriamente militar, o que excluiria, na viso do autor, o delito do "catlogo" do Direito Penal especial, o tipo penal visa a integridade da instituio, em forma de preservao da autoridade e da integridade fsica da sentinela, aspecto externo da regularidade.

Em concluso, acerca da especialidade, prefervel, partindo da mesma premissa, entender que o Direito Penal Militar especial em razo do objeto de sua tutela jurdica, qual seja, sempre a regularidade das instituies militares, seja de forma direta, imediata, seja de forma indireta ou mediata. Abarcar-se-a, portanto, como crimes integrantes deste Direito Penal especial, todos aqueles capitulados no Cdigo Penal Militar, ainda que impropriamente militares.

A existncia de um Direito Penal especial, conclui-se, no clama necessariamente pela instalao de uma Justia Militar competente para julgar todos os crimes militares perpetrados. Obviamente que, se ela estiver instalada no mbito constitucional, sua competncia, por todos os argumentos j aduzidos, h que ser respeitada.

A inslita situao em que nos encontramos (crimes militares julgados pela Justia Militar e, em alguns casos, pela Justia Comum), alis, no privilgio de nosso Pas. No Direito comparado isso percebido como aponta o prprio Clio Lobo, ao citar como exemplo a Frana que "extinguiu a Justia Militar em seu territrio, mas autorizou sua manuteno junto s tropas estacionadas ou operando fora do territrio francs". [11] Dessa ciso, resultou a seguinte realidade: "a) esto sujeitos jurisdio comum os crimes militares cometidos no territrio francs e aqueles cometidos por militares estacionados ou em operao em pas estrangeiro, onde no foi instalado rgo da Justia Militar; b) esto sujeitos jurisdio especial, jurisdio militar, os crimes militares e os comuns de qualquer natureza, cometidos por militares integrantes de tropas estacionadas ou em operao em pas estrangeiro ou por civis que nelas prestam servio, desde que junto a essas tropas funcione rgo da Justia Militar (conf. arts. 1, aln. 1, 3, 5, 59, 60, do Cd. de Just. Militar francs)". [12]

3.5. A Constituio como um subsistema

A Constituio Federal, como j sabido, compe-se de um conjunto de proposies que, por uma anlise pontual, levaria a uma irracionalidade de difcil composio. Disso decorre que deve ela ser interpretada de forma sistmica, como, alis, o deve ser o prprio Direito.

Iniciemos o raciocnio, pois, pela noo elementar de sistema. Como muito bem ilumina Paulo de Barros Carvalho o sistema, em seu significado de base, "aparece como o objeto formado de pores que se vinculam debaixo de um princpio unitrio ou como a composio de partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referncia determinada, teremos a noo fundamental de sistema." [13] Os sistemas, completa o caro mestre, podem ser reais ("formados por objetos extralingsticos, tanto do mundo fsico ou natural como do social, da maneira mesma que eles aparecem intuio sensvel do ser cognoscente, exibindo sua relao de causalidade. So grupamentos de entidades que se vinculam mediante laos constantes, e tudo subordinado a um princpio comum unificador" [14]. Ex.: sistema solar, sistema sanguneo etc.), ou proposicionais (compostos por "proposies, pressupondo, portanto, linguagem" [15])

Os sistemas proposicionais, por sua vez, podem ser cindidos em nomolgicos (meramente formais, onde as partes componentes so "entidades ideais, como na Lgica, na Matemtica etc." [16]) e nomoempricos (compostos por "proposies com referncias empricas" [17]). Os sistemas proposicionais nomoempricos, por fim, podem ser descritivos ("como no caso de sistemas de enunciados cientficos" [18]) ou prescritivos ("como acontece com os sistemas que se dirigem conduta social, para alter-la" [19]).

Assim, "as normas jurdicas formam um sistema, na medida em que se relacionam de vrias maneiras, segundo um princpio unificador. Trata-se do direito posto que aparece no mundo integrado numa camada de linguagem prescritiva" [20].

Na acomodao interna desse sistema, a lgica de funcionamento converge toda a estrutura para a norma fundamental que, por sua vez, a base de derivao de todas as demais normas.

Alerte-se que o direito posto no se confunde com a Cincia do Direito que, muito embora se configure em um sistema nomoemprico no prescritivo, mas "teortico ou declaratrio, vertido em linguagem que se prope ser eminentemente cientfica" [21]. A Cincia do Direito tem seu foco temtico repousado sobre o fenmeno lingstico do direito posto, conjunto de enunciados prescritivos [22].

Pois bem, a ordem jurdica ptria, na linha de raciocnio do mesmo autor, constitui-se em um sistema de normas que podem ser de comportamento (voltadas para as condutas das pessoas, enumerando o contedo dentico do sistema, do dever ser) ou de estrutura (aquelas que dispem sobre rgos, procedimentos e estatuem o modo de criao e extino das regras).

Este sistema jurdico composto por "subsistemas que se entrecruzam em mltiplas direes, mas que se afunilam na busca de seu fundamento ltimo de validade semntica que a Constituio do Brasil. E esta, por sua vez, constitui tambm um subsistema, o mais importante, que paira, sobranceiro, sobre todos os demais, em virtude de sua privilegiada posio hierrquica, ocupando o tpico superior do ordenamento e hospedando as diretrizes substanciais que regem a totalidade do sistema jurdico nacional" [23].

Como se verifica, os subsistemas do ordenamento jurdico devem ser desenvolvidos e interpretados como fenmeno de linguagem, de forma integrada no sentido de conformar a relao jurdica com o mote imposto pela Constituio Federal.

Em sentido paralelo, tambm se deve ter em mente que ela, a Constituio Federal, por seu conjunto de normas de comportamento e de estrutura, estas em predominncia, constitui-se em um subsistema que possui lgica prpria, ou pelo menos uma lgica no condicionada por outro subsistema. No interior desse subsistema, figuram proposies diversas que, por vezes se colidem, exigindo uma interpretao entrelaada dentro do prprio subsistema. Essa coliso poder ocorrer mesmo por normas constitucionais decorrentes de Emendas, j que integram, a partir do transcorrer de seu iter de concepo, o prprio texto constitucional, com a mesma hierarquia. dizer que, nessa lgica, as permisses, restries, imposies etc. devem interagir de modo a tornar o subsistema congruente, o que perfeitamente vivel, porquanto o subsistema constitucional pode se auto-limitar.

guisa de exemplo, o direito greve expressa essa inter-relao de proposies dentro do prprio subsistema. A amplitude conferida no art. 9, segundo o qual assegurado o direito greve, encontra limitao no prprio Texto Maior no que concerne aos militares, j que o inciso IV do 3 do art. 142, veda expressamente aos militares o exerccio desse direito.

Aplicando o raciocnio exposto ao tema da presente construo, teramos que os subsistemas penal ou processual penal jamais poderiam afrontar validamente o subsistema constitucional, como o fez a lei 9.299/96. Em mesmo sentido, o subsistema constitucional conferiu, em nome do Estado de Direito social e democrtico, o direito ao autor de um injusto penal capitulado como doloso contra a vida de ser julgado por leigos, que entenderiam, por serem pares, as peculiaridades afetas ao fato [24], porm, o prprio subsistema excepcionou a regra ao tratar dos crimes militares conferindo s Justias Militares a competncia de julgamento para os crimes militares, inclusive aqueles dolosos contra a vida. Com o novo texto do 4 do art. 125 da Constituio Federal, o constituinte excepcionou para as Justias Militares Estaduais, agora em sentido oposto (ao menos no que concerne aos atos perpetrados contra a vida de civil), retirando destas a competncia de julgamento e deslocando-a para a Justia Comum (Tribunal do Jri).

4. O exerccio da polcia judiciria nos crimes dolosos contra a vida de civil

Pelo que at aqui se aduziu, conclui-se que, na esfera estadual, o crime doloso contra a vida de civil continua a ser crime militar [25], havendo, porm, a competncia de julgamento pelo Tribunal do Jri.

Ainda com lastro na Lei Maior, cumpre iluminar que a misso constitucional da Polcia Civil cinge-se, por fora do 4 do art. 144, ressalvada a competncia da Unio, s funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as militares (grifei).

Bem clara, na lgica do subsistema constitucional, a exceo criada pelo legislador constituinte, no sentido de que a infrao penal militar ficasse margem das atribuies das Polcias Civis.

Os crimes dolosos contra a vida de civis, perpetrados por militares dos Estados, ao encontrarem a plena tipicidade no Cdigo Penal Militar [26], sero de atribuio apuratria das autoridades de polcia judiciria militar, entenda-se do Comandante de Unidade e, nos casos de delegao, do Oficial de servio delegado. Como reflexo, as medidas previstas no art. 12 do Cdigo de Processo Penal Militar devem ser encetadas pelo Oficial com atribuio de polcia judiciria militar e no pelo Delegado de Polcia.

5. Concluso

Por todo o consignado, pode-se chegar concluso de que h duas realidades no que se refere ao crime doloso contra a vida de civil que encontre subsuno no Cdigo Penal Militar (Parte Especial com complemento da Parte Geral): uma em mbito federal e outra em mbito estadual.

No mbito federal, a Emenda Constitucional n 45/04 no alterou a realidade existente, sendo possvel sacramentar que a previso do pargrafo nico do art. 9 do CPM inconstitucional.

J no mbito estadual, a supracitada Emenda contribuiu para o entendimento de que tais crimes permanecem com a classificao de militares, porm com competncia de julgamento pelo Tribunal do Jri.

Essa concluso perfeitamente aceitvel, porquanto a exceo partiu do prprio subsistema constitucional, diferenciando o tratamento por razes que fogem ao escopo deste trabalho.

Como j se alertou no incio, o objetivo do raciocnio sobreposto no o de sacramentar o entendimento de forma intransigente, mas de iniciar uma discusso que pode parecer estril para os operadores do Direito Penal Militar que militam nas Justias Militares, mas de suma importncia para aqueles afetos ao exerccio da polcia judiciria militar.

Vultus animi janua est!

Notas

01 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. So Paulo: Atlas, 2004. p. 598.

02 Cf. MORAES, Alexandre de. Op. cit. p. 109.

03 ASSIS, Jorge Csar de. Comentrios ao Cdigo Penal Militar Vol. 1. Curitiba: Juru, 2001, p. 294 a 300.

04 Embora a ao no tenha tido seguimento por ilegitimidade da Associao para prop-la, os votos do relator e dos demais Ministros ao apreciarem o pedido de liminar, que foi denegado, deixaram clara a posio do Supremo Tribunal Federal.

05 LOBO, Clio. Direito Penal Militar. Braslia: Braslia Jurdica, 2001, p. 112.

06 ASSIS, Jorge Csar. A Reforma do Poder Judicirio e a Justia Militar. Breves Consideraes sobre seu Alcance. Revista Direito Militar, n. 51, jan./fev. 2005. p. 23 a 27.

07 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. So Paulo: Mtodo, 2004, p. 55.

08 MORAES. Alexandre de. Op. cit. p. 563 (grifei).

09 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ob. Cit. p. 26.

10 LOBO, Clio. Direito Penal Militar. Direito Penal Especial. Direito Penal Comum. Direito Processual Especial. In Direito Militar Histria e Doutrina Artigos Inditos. Florianpolis: AMAJME, 2002. p. 38 a 45.

11 LOBO, Clio. Direito Penal Militar. Direito Penal Especial. Direito Penal Comum. Direito Processual Especial. In Direito Militar Histria e Doutrina Artigos Inditos. Florianpolis: AMAJME, 2002. p. 40.

12 Idem. Ibidem.

13 CARVALHO,Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio. So Paulo: Saraiva, 1997. p. 79.

14 Idem. p. 81.

15 Idem. p. 80.

16 Idem. p. 81.

17 Idem. Ibidem.

18 Idem. Ibidem.

19 Idem. Ibidem.

20 Idem. p. 82.

21 Idem. Ibidem.

22 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Ob. cit. p. 82. Nessa relao entre Cincia do Direito, com feio de foros sistemticos, e o direito posto, identifica o autor a importncia da descoberta da norma hipottica fundamental, empreendida por Hans Kelsen, porquanto se torna ela "o postulado capaz de dar sustentao Cincia do Direito, demarcando-lhe o campo especulativo e atribuindo unidade ao objeto de investigao". Ob. Cit. p. 83.

23 CARVALHO, Paulo de Barros. Ob. cit. p. 86.

24 Vide art. 5, XXXVIII, "d" da Constituio Federal.

25 Para alguns, de acordo com a soluo adotada anteriormente, o crime voltou a ser militar.

26 A tipicidade dos crimes dolosos contra a vida no CPM merece ateno redobrada, porquanto h que se considerar que, diferentemente do Cdigo Penal comum, no h um captulo que condense os crimes contra a vida. Nesse contexto, seriam crimes contra a vida apenas o homicdio e a provocao direta ou auxlio ao suicdio, excluindo-se, embora haja entendimentos diversos, o genocdio que seria um delito contra a humanidade e no contra a vida. Deve-se atentar, ademais, que a tipicidade do crime militar , em regra, indireta, ou seja, no h um pleno preenchimento da tipicidade apenas pela anlise da Parte Especial do CPM, devendo-se complementar com a Parte Geral, mormente os dispositivos do art. 9.