latim, a história de um clássico

68
REVISTA APRESENTA L NGUA portuguesa

Upload: dangnhan

Post on 08-Jan-2017

248 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

Page 1: Latim, a história de um clássico

REVISTA APRESENTAL NGUAport

uguesa

Page 2: Latim, a história de um clássico
Page 3: Latim, a história de um clássico
Page 4: Latim, a história de um clássico

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

Ad introitumA edição da revista Língua Portuguesa Especial Latim é a

concretização de meu projeto de conclusão do curso de Jor-nalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para dar forma a estas 68 páginas, foram necessários dez meses de pesquisa, período que abrange desde o pré-projeto e o meu ingresso na disciplina optativa de Latim, até o fechamento do produto.

Durante este tempo de estudo – pequeno, se considerada a complexidade do tema –, aprendi a perceber o latim. E essa per-cepção me ajudou a compreender um pouco mais os segredos da nossa própria língua e, consequentemente, a justificar, com mais clareza, o porquê de minha escolha.

Uma das primeiras entrevistas que fiz, ainda durante a apura-ção, foi com a professora de Latim da Universidade de São Pau-lo (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ao fim de nossa conversa, que gerou mais de duas horas de gravação e muitas páginas de texto, ela me confidenciou que achava curioso como uma pes-soa tão jovem estava interessada em algo tão velho. “Tão ve-lho”, respondi, “mas tão presente”. Ela concordou com a justifi-cativa, que me acompanhou durante todo o processo, servindo de resposta a muitas das perguntas que me fizeram.

Perceber o latim também me permitiu reconhecer que a an-tiga língua dos romanos não deve ser o foco de apenas um grupo restrito de estudiosos. Se o latim – ou sua origem – é encontrado em palavras populares, como apresentado na matéria Onde está o latim?, por que não torná-lo, então, mais palpável? Possibili-tar a difusão de um conhecimento tão específico, erroneamente posto sobre um altar elitizante, pode favorecer a educação e, por consequência, a justiça.

Naturalmente que, dentro de uma sociedade envolta por problemas cujas raízes já saíram do âmbito educacional, toman-do dimensões maiores e menos controláveis, o latim jamais será visto como prioridade. E, acredito, nem deve sê–lo. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser tido como uma disciplina supér-flua, já que trata, justamente, do nosso maior patrimônio em comum: a língua portuguesa. E enquanto ela e todas as outras línguas românicas forem preservadas, o latim continuará sendo antigo, continuará sendo complicado, mas, sobretudo, continu-ará presente.

MARIANA CRISTINE HILGERT

[email protected]

Carta ao leitor

L NGUAport

uguesa

Esta revista foi elaborada pela acadêmica Maria-

na Cristine Hilgert, como trabalho de conclusão

do curso de Jornalismo da Universidade Federal

de Santa Catarina, sob orientação da Prof. Dra.

Tattiana Teixeira. Todo o conteúdo foi produzido

exclusivamente para o projeto, com exceção da

publicidade, colocada com o intuito de provocar

um efeito de realidade. Todo o projeto gráfi co

foi feito conforme o padrão da revista Língua

Portuguesa (Editora Segmento), tentando seguir,

ao máximo, os estilos de fontes, cores e esquema

de diagramação. As propagandas foram escane-

adas de edições diversas da revista. Por ser um

projeto de conclusão, este trabalho não possui

fi ns comerciais ou lucrativos.

Edição, reportagem,

fotogra� a e diagramação:

Mariana Cristine Hilgert

Orientação:

Tattiana Teixeira

Articulistas:

Charlenne Mioti, José Ernesto de Vargas,

José Luiz Fiorin, Maria Helena de Moura Neves,

Mauri Furlan.

Infogra� a e ilustração:

Ítalo de Oliveira Mendonça

e Edison Patto

Crédito da foto da capa:

Mariana Hilgert (inscrição localizada em cata-

cumba, na cidade de Salzburg, Áustria)

Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Comunicação e Expressão

Departamento de Jornalismo

Florianópolis, junho de 2009

EspEcial latim

4

Page 5: Latim, a história de um clássico

Sumário

6 Frases

8 Entrevista

NASCIMENTO

12 O Império do Latim16 Um idioma transformadoJosé Ernesto de Vargas

BATISMO

18 Sob a guarda do Vaticano20 O tradutor do papa21 Na língua dos anjos

VIDA ESCOLAR

26 Passado do presente30 Uma língua adotada32 Diploma para os clássicos36 Os porquês do latimCharlene Miotti37 In dubio pro reo39 Assassinato linguísticoMaria Helena de Moura Neves

ET CETERA

40 Mutações da língua42 Onde está o latim?44 Noções básicas da gramática latina para iniciantes51 O latim e suas filhasJosé Luiz Fiorin52 Presente de gregos56 Um latim conectado58 Problemas de traduçãoMauri Furlan60 Latinidades

66 O português é uma figura

Bati

smo

5

STOCKXCHNG

Page 6: Latim, a história de um clássico

‘ Por José ernesto De Vargas

rev

ista

lín

gu

a

Bati

smo

Fra

ses

‘‘‘Alea jacta est.

A sorte está lançada

Veni, vidi, vici.Vim, vi, venci

Julio Cesar(100-44 a.C.), imperador romano

Amicus certus in re incerta cernitur.

O verdadeiro amigo se conhece

na ocasião incerta

Cícero(106-43 a.C.), orador romano

Nihil est ab omni parte beatum.

Nada é feliz sob todos os aspectos

Horácio(65-8 a.C.), fi lósofo e poeta romano

Donec eris felix, multos nume-rabis amicos:Tempora si fuerint

nubila, solus eris. Enquanto fores feliz, terás muitos amigos:

se os tempos forem sombrios, ficarás só.

Ovídio(43 a.C.-17.), poeta romano

DIV

ULG

AÇÃO

DIVUL

GAÇÃ

O

Page 7: Latim, a história de um clássico
Page 8: Latim, a história de um clássico

8

Entr

evis

tar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Mário Eduardo Viaro

Por trás das línguas

Por Mariana Hilgert ARQ

UIV

O P

ESSO

AL

Page 9: Latim, a história de um clássico

9

Como foi o seu primeiro contato com o latim? Eu sou de família pobre e comecei a estudar latim muito jovem, como autodidata, com uns 12 anos, na minha cidade natal, Botucatu, no interior de São Paulo. Eu queria ser entomólogo e adorava os artigos de um casal de professores, o prof. Be-nedito A. M. Soares e da profa. Hélia E. M. Soares sobre uns aracnídeos, chamados opiliões, escritos em latim. Entrei em contato com um primo de minha mãe, que era ex-seminarista e consegui vários métodos de latim e grego. A profa. de Ciências Yara Ceribelli Maddi conseguiu um está-gio informal para mim, na Unesp, e depois de um ano, entrei pela porta contrária ao corredor que costuma-va sempre entrar e descobri com o maior espanto da minha vida, que os professores estavam vivos e lecio-

Antes de se tornar professor de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo

(USP), Mário Eduardo Viaro já se considerava um curioso do idioma. Mais do que saber falar, ele queria compreendê-lo – e é isso que faz em Por trás das palavras – Manual de etimologia do português (Ed. Glo-bo, 2004). No livro, o pesquisador explica como se formaram os vocá-bulos portugueses de origem latina e não-latina, exercendo na prática a ciência que trata da história das palavras: a etimologia. Cinco anos antes do lançamento da obra, Viaro explorou a mesma temática no artigo A importância do latim na atualida-de, publicado em 1999, na Revista de Ciências Sociais e Humanas. Parte do material que pesquisou durante esse período virou atração no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e fez de Viaro um nome recorrente quando o assunto é o latim e sua re-lação com o nosso idioma. É sobre a importância do estudo e conheci-mento desse idioma dentro e fora da etimologia que o pesquisador falou, por e-mail, para a edição especial de Língua.

navam em Botucatu. Fui pedir um autógrafo e fiquei muito amigo deles.O professor Benedito praticamen-te me adotou como filho e me in-centivou a ter aulas particulares de alemão também. Aí a paixão pelas línguas aumentou e aos 17 anos re-solvi prestar Letras (Linguística/Por-tuguês), pela USP. Fiquei preocupa-do em comunicar ao dr. Benedito a minha mudança de interesses, mas no mesmo ano ele faleceu.

Em que momento você decidiu usar seus conhecimentos do idio-ma para dar início aos estudos de etimologia?Eu fazia mestrado em Filologia Româ-nica e sempre gostei de história anti-ga e dos estudos sobre indo-europeu, Mas o que me ajudou mesmo para aguçar meu conhecimento etimoló-gico foi ter trabalhado na equipe de etimologia do dicionário Michaelis. Eu era revisor na editora Melhora-mentos, mas tão logo eu fiz algumas correções num dicionário alemão, o editor Walter Weiszflog, que as achou muito pertinentes, apostou em mim, convidando-me a integrar a equipe. Ter contato com todas as palavras do português me deu uma visão geral do que é de fato etimologia. Tudo isso foi antes de eu entrar para a USP e hoje eu oriento estudos científicos sobre Morfologia Histórica.

Como funciona o estudo do pro-cesso de formação de vocábulos quando não há registros escritos das formas primitivas?Cada caso é um caso. Há casos em que a falta de documentos pode ser sanada por métodos de reconstru-ção e outros casos em que é preciso determinar um limite temporal para etimologia. Resumindo, nem sempre se deve confiar na intuição. Toda afir-mação etimológica deve ser pautada em dados e quanto mais recuados no tempo, melhor. Por isso, recursos como o Google Books são verdadei-ras maravilhas, pois nos oferecem um corpus imenso de palavras em livros

“Nem sempre se deve confiar na intuição. Toda afirmação eti-mológica deve ser pautada em dados e quanto

mais recuados no tempo, melhor”

Page 10: Latim, a história de um clássico

Entr

evis

taMário Eduardo Viaro

de bibliotecas internacionais, como a de Washington. Uma boa etimologia, porém, não deve só localizar a primei-ra ocorrência escrita do vocábulo, mas todo o sistema linguístico usado na época. Deve observar correlações com línguas aparentadas (espanhol, francês e, às vezes, o inglês). Deve verificar se algumas regras específi-cas de alteração de forma e conteúdo foram respeitadas. Tudo isso faz uma etimologia ficar mais convincente do que outra. O que mais existe no mercado, porém, é achismo, e isso faz com que muitos pensem que a etimo-logia não tem método ou que é uma espécie de diversão. Às vezes ainda sou alvo desse preconceito. Mas eu levo muito a sério o método etimoló-gico e o defendo.

Em países como Alemanha, há um estudo desenvolvido do latim. Como fazer para incentivá-lo no Brasil, onde a língua é de origem latina? Não só é um país de língua neolatina, mas é o maior país de língua neolatina do mundo. Morei na Alemanha e até agora, de fato, a diferença é gritante. Não só no latim, mas no ensino de línguas em geral. Já vi africanos fa-lando oito línguas aprendidas de ou-vido (não só as nativas, mas alemão e russo) e crianças búlgaras falando francês perfeito, aprendido na escola pública. Com relação ao latim, espe-cificamente, o mais chocante é o caso da Finlândia, onde falam uma língua que não tem nenhuma relação com o latim e eles têm gibis em latim, emis-soras de rádio em latim e formam os maiores linguistas especialistas em latim. Não sei explicar. Acho que a eficiência do aprendizado formal ad-vém de algum discurso no ar. Além disso, nosso país é ideologicamente monolíngue, portanto, nosso conta-to com outras línguas é menor, temos receio de sons estranhos e sentimos mais dificuldades nas línguas do que elas realmente oferecem. Só um sen-timento de prazer pelo desafio supe-ra isso de forma milagrosa. O fator facilitador e a ideologia vigente da

educação parecem contribuir para-doxalmente para o status quo, em vez de alavancar as mudanças sociais rápidas com que sonhamos. Como indivíduos, temos mais vontade do que ação; como cidadãos, estamos desamparados de políticas realmente transformadoras.

O que significaria dizer que te-mos este receio, se os falantes de português no Brasil acolhem es-trangeirismos sem muita reação contrária? Há uma visão apocalíptica sobre o estrangeirismo. Em algumas regiões do mundo, de fato, o inglês põe em risco a existência de línguas, mas os falantes são bilíngues. Não é o caso do Brasil. O que há é modismo, como havia com o francês até início do sé-culo XX. Há países como a Letônia, a Islândia e, em menor medida, a França, que fazem campanhas contra o inglês e se apressam para encontrar substitutos. Mas tudo isso é muito supérfluo e meio bobo. As línguas nunca foram puras e recebermos meia-dúzia de palavras inglesas não vai colocar nossa língua em risco. As palavras que o português divulgou ao mundo são nomes de plantas (jaca-randá, piranha) e animais da Amé-rica, África e Índia, no período das Grandes Navegações ou então con-ceitos como auto-da-fé, no período da Inquisição ou bossa nova mais recentemente. Procure esses termos em dicionários de inglês, francês, italiano e você os verá lá. Se nós eli-minássemos todos os estrangeirismos do português, acho que 80% das pa-lavras do português desapareceriam. A grande maioria das palavras cultas é adaptação do francês, sobretudo no século XIX. Palavras banalíssi-mas como população vêm do francês e não diretamente do latim. Tupi e línguas africanas seriam línguas es-trangeiras? Há muita arbitrariedade na resposta. Por isso acho que toda a discussão sobre estrangeirismos é bobagem e resquício dos fascismos. Que os estrangeirismos sejam bem-vindos.

10

Page 11: Latim, a história de um clássico

rev

ista

lín

gu

a

O que pode acarretar, aos alunos, a exclusão do Latim nos cursos de Letras? Bom, isso só nos torna mais ignoran-tes do que já somos. Privar um aluno de humanas de um conhecimento, com o discurso de que é inútil é ab-surdo. Para que serve a literatura? Para que serve a linguística? Para que serve a gramática? Se damos uma co-notação pragmática para tudo, as hu-manidades não fazem sentido algum. Não gosto de argumentos veiculados pela mídia, como “sabendo português culto, você vai ter mais chances num concurso”. Isso é reduzir o conhe-cimento a um modelo behaviorista. Para que serve entender especifica-mente a quinta declinação latina? Eu digo: para nada. Deveria ser-vir para algo? Ou melhor: para nos tornarmos menos ignorantes. Para sabermos que há outros pensamen-tos e outras expressões diferentes da nossa. Para sabermos que há os mesmos pensamentos em épocas tão distantes. Para nos aproximarmos do universal humano. Para respeitarmos a diversidade humana. Isso não me parece pouco. Cortes de disciplinas aparentemente inúteis como o latim para mim são perdas irreparáveis na consciência de nossa humanidade.

O estudo do latim pode ser consi-derado elitizado? Não é elitizado, porque nossa elite é tão ignorante quanto as outras clas-ses. O que há é uma elite formada em bons colégios, mas eu me revolto com isso. Toda minha formação es-colar foi péssima, mesmo assim passei na Universidade de São Paulo, onde o ensino está entre os melhores do Brasil. Na época morei em Moradia Estudantil e tinha de trabalhar ao mesmo tempo que fazia a graduação e a pós-graduação. Estou longe de ser uma exceção. Se após todo esse sofri-mento, posso ser considerado como pertencente a uma elite intelectu-al, como querem entender alguns formadores de opinião, penso que a questão está deslocada: não é preciso reduzir a elite, mas aumentá-la, maspara isso, é preciso também vontade.

O advento da internet pareceu-me uma solução incrível, mas, se nada mudar, até mesmo isso são facilita-dores para a manutenção do status quo em vez de motivadores e desa-fiadores que geram realmente algum progresso.

Como justificar a importância de se conhecer a civilização romana nos dias de hoje? Eu sou linguista e apaixonado por muitos outros assuntos (cognição, história, biologia, filosofia), mas paradoxalmente não vejo relação direta entre o latim e a civilização romana. Aliás, penso que foi essa associação que desmotivou o estudo da língua, pois se trata de algo mui-to distante. Os valores romanos são fascinantes sim, mas não mais do que dos gregos, persas e outros povos da época. Obviamente para entender textos escritos em latim, é preciso conhecer minimamente o contexto da época, mas isso é necessário em qualquer texto. Desmitificar é muito importante, a meu ver. Em matéria de conhecimento, os entusiastas co-laboram muito, mas também atrasam muito, pois criam mitos. Acho que a chave para tudo é a humildade. Sem ela, nenhum empreendimento vale a pena.

É possível ensinar o latim como mais uma língua estrangeira? No caso do latim, não faz sentido aprender a falar. Há várias pronún-cias: a regional, a do Vaticano, a científica. Qual usar? É uma língua viva apenas em questões neológi-cas. Mas ela própria não gera mais palavras, pois não possui falantes modernos (até onde sei) cuja língua materna é o latim. O seu ensino [do latim] é especial. Sua função parece ver de onde provém nossa língua, sua estrutura, seu vocabulário, seu modo de pensar, ao mesmo tempo que nos abre janela para outras possibilidades de estruturas e vocabulários. O latim não foi feito para o português, mas pode ajudar a entendê-lo um pouco mais.

“Para que serve entender especi-ficamente a quin-

ta declinação latina? Eu digo: para nada. De-

veria servir para algo? Para nos

tornarmos menos ignorantes. Para sabermos que

há outros pensa-mentos e outras expressões dife-rentes da nossa”

11

Page 12: Latim, a história de um clássico

Nasc

imento

Antes de se consagrar como língua erudita e compreendida por pou-

cos, o latim era um idioma sim-ples, falado por camponeses e trabalhadores rurais – origens que ficaram marcadas em muitas palavras do nosso vocabulário. O verbo ler, por exemplo, já era usa-do pelos latinos antes mesmo de terem surgido os primeiros docu-mentos escritos. A diferença é que seu ancestral, legere, queria dizer colher. A relação entre os dois pa-rece inexistir, até o momento em que se percebe que ler nada mais é do que legere oculis – ou, simples-mente, colher com os olhos.

A história do latim se mistura à de outros idiomas, como o um-bro e o osco, falados por povos vizinhos à região do Lácio, onde

nasceu Roma.

As similaridades entre os três fizeram supor a existência de uma língua primitiva, o itálico, que, junto do grego antigo, do eslavo e outras, constitui a família lin-guística indo-europeia. O latim também sofreu influência dos etruscos e gregos, que dominavam a Península Itálica, respectiva-mente, ao norte e ao sul. Para so-breviver em meio aos conflitos dos dois povos, Roma, que, nos seus primórdios, nada mais era do que uma aldeia, precisou se fortalecer. A partir do século V a.C., ela deu início a uma marcha expansionis-ta que perduraria até o século II da nossa era.

Primeiramente, sucumbiu às invasões do Lácio, a região da Itá-lia Peninsular. Logo em seguida, os romanos investiram na tentativa de conquistar a Europa Mediter-rânea. Para isso, eles precisariam

derrubar Cartago, uma colô-

nia fenícia, que já tinha grande controle sobre o comércio marí-timo da região. Foi nessa inves-tida que ocorreram as chamadas Guerras Púnicas.

Após três grandes e sangren-tas disputas, os romanos tomaram a Sicília, a Sardenha e a Córsega, territórios que, antes, pertenciam aos cartaginenses.

A Itália do Norte também foi conquistada, bem como as pri-meiras regiões fora da Itália, cen-tradas no que hoje são Andaluzia e as províncias de Castela, Múr-cia e Valência, todas situadas na Espanha. Mais tarde, os romanos conquistaram regiões da Grécia e da Macedônia.

Depois de trinta anos, Cartago já não tinha mais forças para lutar contra os romanos, que continua-vam a investir na expansão. Pas-saram pela África, foram para a atual França e Portugal e conquis-taram até pequenas localidades na Ásia. Mais tarde, o exército roma-no chegou ao que, atualmente, é a Romênia.

Com tantos povos sendo regi-dos pela mesma lei, era pratica-mente impossível que a mistura dos falares e culturas não ocor-resse. Os próprios romanos se mostravam abertos a essa mescla, permitindo que cada grupo manti-vesse seu idioma, o que favoreceu o bilinguismo. Mas, com o tempo, o latim começou a se impor como idioma mais complexo – e o único –, facilitando a comunicação e, consequentemente, as negocia-ções entre os povos.

O Império do LatimOs romanos, através de investidas territo-riais, transformaram o idioma num símbolo de poder e, com ele, conquistaram o mundo

Por Mariana Hilgert

Page 13: Latim, a história de um clássico

O Império Romano começou a perder o poderio centralizado quan-do foi dividido em dois: o Império Romano do Ocidente, tendo Constan-tinopla como capital, e o do Oriente, com a capital em Roma. A fraqueza do controle foi sentida a partir das chamadas invasões bárbaras*, espe-cialmente nos séculos IV e V.

Mesmo com a queda física do im-pério, sobreviveu, no período que diz respeito à Idade Média, uma unida-de linguística, política e cultural dos povos que viveram sob o poder de Roma. Na tentativa de diferenciar-se dos bárbaros – ou seja, todos aque-les que não eram romanos –, surgiu a palavra Romania, derivada de ro-manus, que faz referência a todas as regiões com idiomas originários do latim.

A partir daí, houve uma série de derivações: primeiramente, surgiu romanice, advérbio que serve para designar algo “à maneira romana”. Depois, romanice loqui, indicando os idiomas vulgares, com origem no latim. De romanice, aparece o subs-tantivo romance, que, antigamente, se referia às obras escritas em algum dos idiomas vulgares da época.

*Do grego bárbaroi, estrangeiros, aqueles que não são romanos.

Latim e latim Quando da formação do Império

Romano, no primeiro ano do calen-dário cristão, o latim não era ape-nas mais uma língua da Península Itálica. Ele era, naquele momento, o idioma oficial de um imenso ter-ritório, povoado por soldados, co-merciantes, escravos, funcionários e eruditos. Cada um desses grupos pertencia a uma classe específica, o que acabou acarretando variações da língua. Duas são as distinções mais comumente reconhecidas: o latim vulgar e o latim clássico.

É do primeiro que se originaram as atuais línguas neolatinas. A pala-vra vulgar pode ter diferentes sen-tidos, remetendo a algo corriqueiro ou sugerindo, até, algo de baixo ní-vel. Mas seu verdadeiro significado remonta à sua origem: vulgar vem de vulgus, que, em latim, quer di-zer povo. “Ele é falado pela plebe, informal, pertencendo à sociedade que não tinha acesso a um latim mais erudito, mais elitizado. É um latim de bermuda e chinelo”, expli-ca José Ernesto de Vargas, professor de Latim da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Mas, apesar dessa infor-malidade marcante do latim vulgar, Vargas faz uma res-salva: “Os senadores, tal-vez, falassem [o latim vulgar] em casa. Não consigo acreditar que as pes-s o a s

falem polidamente a vida inteira”. O idioma da elite, dos senado-

res e escritores, em contraposição ao do vulgus, é o chamado latim clássico. Por ser mais erudito, Var-gas observa que esse latim “é abas-tecido pela literatura e pela lingua-gem da elite. Então, quando havia reunião e momentos que a situa-ção era formal, o clássico estaria em evidência”.

As preocupações de quem tra-balhava com essa forma do idioma, muito influenciada pela cultura grega, ficavam mais restritas ao campo da escrita e da parte esté-tica da língua. Suas variações não eram as mesmas daquele latim fa-lado pelo povo. Com as disputas territoriais, o latim vulgar – que era, também, dos soldados –, foi absorvendo elementos linguísticos e culturais de muitas populações conquistadas.

O latim vulgar não surgiu do clássico, e o contrário também não aconteceu. Cada um se estruturou em épocas diferentes: foi só quan-do o primeiro já estava bem encor-pado, que o outro passou a ser re-verenciado. As obras literárias de autores como Plauto, além de ou-tros registros escritos, apresentam marcas do latim vulgar e estão entre as provas. Os dois coexisti-

ram, demarcando – mais do que períodos temporais

ou formas de expres-são – a sociedade

segmentada da época.

Silhueta de Roma, mais de 2 séculos depois de sua fundação. No horizonte, a cúpula da Basílica

de São Pedro

Os Românicos

STOCKXCHNG

Page 14: Latim, a história de um clássico

Quando Olavo Bilac escreveu que a Língua Portuguesa

era “a última � or do Lácio, inculta e bela”, fez uma

referência ao idioma como último � lho do latim –

embora não o único. A propagação dos idiomas românicos

se deve ao latim, língua o� cial do Império Romano e um dos

principais legados que os antigos soldados deixaram nas

regiões conquistadas. Cada uma delas, com o tempo, deu nova

forma ao idioma, que se transformou. Através das conquistas

marítimas e dos processos de colonização, iniciados no século

XVI, as novas línguas se espalharam, estando presentes, hoje,

nos cinco continentes.

Floresdo Lácio

ESPANHOL (terceiro idioma mais falado no mundo)

A Espanha deve seu nome à antiga forma como era cha-mada a Península Ibérica: Hispania. A conquista desse território pelos romanos começou em 218 a.C. Na re-gião da atual Andaluzia, a latinização foi rápida. Já na região norte, onde se situa o País Basco, o idioma dos conquistadores demorou em se perpetuar. O espanhol ainda foi in� uenciado pelos visigodos e pelos árabes, que, em algumas regiões, permaneceram por 800 anos. Foi somente a partir da metade do séc. X, com a che-gada do Cristianismo, que o pequeno reino de Castela , situado ao norte do país e dono de um dialeto ainda desconhecido , começa a conquistar o território. Esse processo perdurou até o séc. XV, dando origem, ao � m, ao idioma espanhol – ou castelhano.

PORTUGUÊS(sexto idioma mais falado no mundo)

Os povos que habitavam a Península Ibérica eram separados pelas distinções linguísticas e culturais. Através das invasões romanas do século II.a.C., esses dialetos variados são extintos, dando lugar ao latim. Na região da Lusitânia, que não corresponde exatamente ao território atual de Portugal, o idioma dos romanos evoluiu e originou no século VIII d.C., o galego-português. O português como idioma o� cial de Portugal é reconhecido seis séculos mais tarde, e guarda, no seu vocabulário, as in� uências das invasões germânicas e árabes.

390

215

Portugal

Espanha

POR MARIANA HILGERT

INFOGRAFISTA: ÍTALO MENDONÇA

ILUSTRADOR: EDISON PATTO

Nasc

imento

REV

ISTA

LÍN

GU

A

Page 15: Latim, a história de um clássico

ITALIANO(vigésimo primeiro idioma mais falado no mundo)

Com a queda do Império Romano, em 476, a região da Itália é subdividida em pequenos estados. Cada um deles possuía um patois*distinto. A partir do séc. XIV, com a difusão da literatura, o italiano começa a tomar forma. Sua maior in� uência foi o dialeto toscano falado pelos � orentinos que, propagado através das obras de auto-res como Dante Alighieri, Boccaccio e Petrarca, se � xou como o italiano escrito. A língua falada mais uniforme começou a se espalhar pelo país somente no séc. XX, pa-ralelamente aos dialetos regionais, que existem até hoje.

*Patois: dialeto utilizado por pequenos grupos popula-cionais.

FRANCÊS (décimo idioma mais falado no mundo)

Os gauleses, com seu falar céltico, foram um dos primeiros povos a habitar a região que hoje corresponde à França. Com as conquistas lideradas por Júlio César, no século I.a.C., eles cedem o lugar de seu idioma ao latim vulgar, que perdura até o século VII d.C.. Nesse perí-odo, ele dá origem a dois idiomas distintos: a langue d’oil, usada na região norte da França, e a langue d’oc, na parte sul. A partir de cada um deles, surgem dialetos regionais. É de um deles, o chamado Île-de-France, que nasce o francês contemporâneo.

ROMENO(quadragésimo idioma mais falado no mundo)

Na época do Império Romano, a atual Romênia era habitada pelos Dácios. Apenas uma parte dessa po-pulação foi romanizada, permitindo que o idioma local sobrevivesse, in� uenciando na formação do romeno. O território onde hoje é falado esse idioma, hoje, é circundado de países de língua eslava, fora de contexto geográ� co de suas línguas-irmãs, como o português, o espanhol, o francês etc. Isso também permitiu que muitas características do latim perma-necessem vivas no idioma.

26

60

390

115

Espanha

Romênia

França

Lácio

NFonte: A aventura das Línguas no Ocidente, de Henriette Walter - Editora Mandarim, 1997

Quantidade em milhares de falantes nativos.

Itália

LEGENDA

Page 16: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

rev

ista

lín

gu

a

Bati

smo

A língua portuguesa, tal como os demais idiomas neolatinos, é resultado

de um longo processo de trans-formação. Tem como origem o latim, idioma falado no Lácio, região central da Itália, e mais tarde difundido em larga escala pelos romanos através de seu im-pério, juntamente com a língua autóctone falada na Lusitânia, então dominada por Roma. Da língua latina é possível rastrear um percurso histórico, ainda que não completamente. O mesmo não pode ser dito da língua lusi-tana original, porque não existem registros, a não ser resquícios de ordem fonética, perceptíveis no português e em outros idiomas de regiões limítrofes.

O que se conhece do latim diz respeito ao momento em que os romanos se fizeram importantes, dominadores da região central italiana e já usuários dessa lín-gua. A partir daí pode-se falar de três períodos marcantes na história do idioma, o arcaico, o clássico e o pós-clássico e de duas variantes sociolinguísticas, a eru-dita e a vulgar. Os períodos pré e proto-históricos são duas fases de que não se obtém muitos da-dos e informações, porque não foram encontrados quase regis-tros, tendo em vista que a língua existia fundamentalmente na modalidade oral. O latim arcaico

corresponde aos primeiros passos do desenvolvimento da literatura latina, quando os primeiros escri-tos nesse idioma ainda são ape-nas traduções ou adaptações das obras gregas para o latim. Já o la-tim clássico é o principal modelo dessa língua. Representa o auge do desenvolvimento literário, linguístico, político e cultural de Roma. É justamente este formato linguístico que foi e continua ain-da hoje a ser estudado nos cursos secundários e superiores mundo afora. O terceiro e último proces-so desse desenvolvimento é o de-nominado pós-clássico. Compre-ende o período que começa com a decadência literária, linguística, cultural e principalmente com a derrocada política de Roma até os nossos dias. É marcado pelo enfraquecimento e fenecimento da língua como representação da cultura romana. Entretanto, é importante que se diga, tal época não significa o fim total, mas an-tes o início dessa transformação. Pois que, apesar de não represen-tar mais o Estado Romano, já ine-xistente, a língua permanecerá como idioma da Ciência, da cul-tura e da religião católica e assim chegará até a modernidade, além, é claro dentro dos novos idiomas latinos em transformação.

Quanto às variantes sociais da linguagem, o latim se divide em erudito ou clássico, de que se fa-

lou no parágrafo anterior, e latim vulgar. O primeiro é entendido pela total influência da literatura e da escrita sobre o mesmo; seus usuários são as pessoas que têm acesso à escrita e à leitura, à lite-ratura, portanto. Ao passo que o segundo deixou poucos vestígios, porque manifesto principal e fun-damentalmente de modo oral. Os falantes dessa modalidade pertenciam ao vulgus, às classes populares, de onde o nome vul-gar, que não deve de forma algu-ma ser entendido com o sentido pejorativo que se costuma dar à palavra. Faltou dizer no primeiro parágrafo que a língua de Ca-mões é derivada do latim vulgar, embora também tenha recebido, por diversas vezes ao longo dos séculos, influências da variante erudita. Para além das estruturas gramaticais, morfologia, sintaxe e fonética, a presença do latim no português se percebe, sobretudo, no léxico.

Certas expressões, as pessoas utilizam-nas tão constantemente que nem imaginam se tratar de latim, são os casos de pro forma, pro labore, in natura, in locu e grosso modo, em que muitos di-zem “a grosso modo”, por con-siderarem idioma pátrio, e não parece mesmo?

Um idioma transformadoN

asc

imento

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

Por José ernesto De Vargas

José ERNEsTo DE VARGAs é ProFessor De latiM Da uFsc

Articulando

16

Page 17: Latim, a história de um clássico
Page 18: Latim, a história de um clássico

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

Nos cinco mil quartos de sua nada humilde casa, Bento XVI, atual papa

da Igreja Católica Apostólica Ro-mana, poderia abrigar toda a po-pulação do estado do Vaticano, que não chega a 800 pessoas. As 200 salas de espera, os 100 gabi-netes destinados à leitura, os 300 banheiros, além dos mais de 20 pátios e outros tantos cômodos são destinados a recepções diplo-máticas. Pelas imposições da mo-dernidade, tudo foi adaptado. De antigo, ali, além das construções históricas, só o latim.

O idioma dos romanos sem-pre esteve presente na história da Igreja, construída, simbolicamen-te, em torno da tumba do apóstolo Pedro – localizada na outrora cha-mada Mons Vaticanus, ou Colina Vaticana. Cada novo papa é con-siderado um sucessor de Pedro, o primeiro pontífice da Igreja. De-pois dele, já foram nomeados 265

novos representantes.O Vaticano deixou de ser ape-

nas o nome de uma colina em 1929, quando se tornou, oficial-mente, o Estado da Cidade do Vaticano. Firmado entre o ditador fascista Benito Mussolini e Pio XI, o Tratado de Latrão estipulou que a Itália reconheceria “à Santa Sé [do latim Sancta Sedes, ou sede santa] a inteira propriedade, o po-der exclusivo e absoluto e a jurisdi-ção soberana sobre o Vaticano, na sua atual composição, com todas as suas dependências e dotações, (...) a Cidade do Vaticano”. Desde a sua fundação, a Cidade do Vati-cano tem o latim como língua ofi-cial. E não poderia ser diferente, já que a Igreja Católica foi uma das principais guardiãs do idioma. Mas, como ele não se renova, por não ter mais falantes nativos, aca-ba se restringindo aos documentos oficiais e às missas tradicionais – também chamadas de tridenti-

nas –, comumente celebradas até o Concílio Vaticano II, realizado no início da década de 60.

Com as mudanças nas cele-brações católicas, que acabaram por excluir o latim como idioma oficial, a Igreja vem tentando retomar o seu uso de outras for-mas. Com esse objetivo, o papa Paulo VI criou, em 1970, a Fun-dação Latina do Vaticano. Foi ela a maior financiadora de uma das mais notáveis investidas da Igreja para ajustar o idioma às necessi-dades atuais: o lançamento de um dicionário moderno.

Publicado em 2003, o Lexicon Recentis Latinitas foi editado em dois volumes, que, no total, con-tam com 15 mil palavras latinas adaptadas para os dias de hoje. Ti-rando a curiosidade agregada à pu-blicação, a professora de Linguísti-ca da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Es-tadual Paulista (Unesp –Arara-

Sob a guarda do VaticanoUma das mais antigas tradições da Igreja Católica, o latim ainda vive nas inscrições, documentos e, até mesmo, no dia a dia do menor estado independente do mundo

Por Mariana Hilgert

Bati

smo

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

Page 19: Latim, a história de um clássico

quara), Maria Helena de Moura Ne-ves, não vê como isso poderia con-tribuir ou aumentar o interesse pelo idioma. “É um dicionário de língua morta”, enfatiza.

Apesar de não ser muito favo-rável à expressão, ela explica seu sentido: “Nunca ninguém vai pre-cisar dele, a não ser dentro daquele ambiente. Nos dicionários de hoje, aparecem termos novos porque eles estão em uso. Enquanto naquele lá, a língua parou. Eles vão criá-lo arti-ficialmente e vão mudar só o léxico. A sintaxe não muda. Muda no uso, mas não vai mudar a semântica. É absolutamente diferente de uma lín-gua em uso, pois é utilizado de forma regrada”.

Apesar das discussões, o Vati-cano continua apostando no latim. Sua mais recente tentativa se deu através da promulgação do Motu Proprio Summorum Pontificum. O documento, redigido pelo papa Bento XVI em 2007, prevê que as igrejas voltem – se houver interesse por parte de um grupo de fiéis – a celebrar missas em latim, conforme previam as definições que precedem o Concílio Vaticano II.

O objetivo da proposta é acalmar as reivindicações de grupos católi-

cos conservadores, que mesmo com o Concílio, não deixaram de lado a missa na sua forma antiga. Outra justificativa é de cunho mais espiri-tual. Como o latim teria sido língua primeira dos cristãos, não tendo so-frido modificações, desde então, ele conseguiria aproximar mais os fiéis de Deus e da religião.

Sob a guarda do Vaticano

A lista de vocábulos que deu origem ao Lexicon Recentis Latinitas vem sendo escrita desde 530 d.C. Veja alguns dos mais curiosos:

Aeronave: aeria navisÁgua gaseificada: gasiosa potioBatata frita: globulus solanianusBuzina: sonorus autocineti indexCigarro: fístula nicotianaComputador: instrumentum computa-toriumDiscoteca: taberna discothecariaFim de semana: exiens hebdomada Fósforo: flammifera assulaFutebol: pediludium Hora do rush: tempus maximae frequentiaeJeans: bracae linteae caeruleaeKamikaze: voluntarius sui interemptorLivraria: taberna librariaMacarrão: pasta tubulataMercado negro: mercatura clandestinaOdontologista: medicus dentariusOmelete: ovorum intritaONU: Unitarum Nationum CoetusOverdose: immodica medicamenti stu-pefactivi iniectioPercentual: centesima (pars)Pichação: figura graphio exarataPizza: placenta compressaPlayboy: iuvenis voluptariusRaio laser: radius lasericusRepórter: chronographusRodeio: spectaculum equestreSabotagem: occulta eversioSaca-rolhas: extraculumTelejornal: relatio televisificaTrem: hamaxostichusXampu: capitilaviumXarope: mulso conditus

Veja mais palavras em: http://www.alpheratz.org/

Sobre a tumba de Pedro teriam sido erguidos os pri-

meiros muros do Vaticano. À direita, estátua do apóstolo

Léxico de bolso

19

STO

CKXC

HN

G

Page 20: Latim, a história de um clássico

rev

ista

lín

gu

a

Mesmo apostando no latim, Foster (à esquerda) teme que a língua esteja a caminho do fim

Bati

smo O tradutor

do papaAdmirador do latim, ele tem a língua dos antigos romanos não só como o principal objeto de trabalho, mas, também, como seu lazer

Por Mariana Hilgert

O padre americano Re-ginald Foster é um apaixonado pelo latim.

É ele o responsável pelas tradu-ções oficiais dos documentos da Igreja e de quatro gerações de papas. A paixão é tanta que até caixas-eletrônicos com instru-ções em latim foram instalados pelo Vaticano, como ele mesmo mostra numa entrevista concedi-da a um programa televisivo ale-mão, em 2007. Ao repórter, ele afirma – em latim! – que, se as pessoas não puderem ler os anti-gos manuscritos da Igreja porque desconhecem o idioma, todos ficarão isolados desse mundo. “Então tudo se perderá. É contra isso que estou lutando. Até hoje, o latim é a nossa ligação com a história”, conta.

Foster lecionou Latim na Uni-versidade Gregoriana de Roma por mais de 20 anos. Em 2007, ele decidiu abrir a própria escola, chamada Academia Romae Lati-nitatis, onde dá aulas gratuitas para quem tem interesse em

aprendê-lo ou revitalizá-lo. Sua expectativa é de atrair,

por ano, cerca de 130 estudantes. Além

das aulas regulares, Foster oferece

cursos do idio -

ma durante o verão europeu, sem custo algum. Ele exige, apenas, um nível elementar de conheci-mento e o gosto pela língua.

Além de dar aulas, Foster é o protagonista do The Latin Lover (O amante do Latim), programa produzido e apresentado por ele, e transmitido, todas as sextas-feiras, pela Rádio do Vaticano*.Durante a emissão, ele traduz do inglês expressões atuais para o idioma antigo e comenta histó-rias das épocas áureas de Roma. Também é possível baixar os áu-dios do programa acessando o site** do padre.

Apesar do empenho em man-ter o latim vivo, Foster acredita que o idioma está com os dias contados. Numa entrevista à rede BBC, ele condenou o desin-teresse de alguns representantes religiosos em estudá-lo e a au-sência da disciplina nas grades curriculares de muitas escolas europeias.

O padre também se mostra mais cauteloso em relação ao re-torno das celebrações em latim, segundo o antigo rito romano. Na mesma entrevista, ele decla-rou que tal decisão só faria a Igre-ja parecer ainda mais medieval.

*www.oecumene.radiovaticana.org**www.frcoulter.com/latin/latinlover

afirma – em latim! – que, se as afirma – em latim! – que, se as pessoas não puderem ler os anti-pessoas não puderem ler os anti-gos manuscritos da Igreja porque gos manuscritos da Igreja porque desconhecem o idioma, todos desconhecem o idioma, todos ficarão isolados desse mundo. ficarão isolados desse mundo. “Então tudo se perderá. É contra “Então tudo se perderá. É contra isso que estou lutando. Até hoje, isso que estou lutando. Até hoje, o latim é a nossa ligação com a o latim é a nossa ligação com a história”, conta.

Foster lecionou Latim na Uni-Foster lecionou Latim na Uni-versidade Gregoriana de Roma versidade Gregoriana de Roma por mais de 20 anos. Em 2007, por mais de 20 anos. Em 2007, ele decidiu abrir a própria escola, ele decidiu abrir a própria escola, chamada Academia Romae Lati-Academia Romae Lati-nitatis, onde dá aulas gratuitas , onde dá aulas gratuitas nitatis, onde dá aulas gratuitas nitatispara quem tem interesse em para quem tem interesse em

aprendê-lo ou revitalizá-lo. aprendê-lo ou revitalizá-lo. Sua expectativa é de atrair, Sua expectativa é de atrair,

por ano, cerca de 130 por ano, cerca de 130 estudantes. Além estudantes. Além

das aulas regulares, das aulas regulares, Foster oferece Foster oferece

cursos do idio -

DIVULGAÇÃO

Page 21: Latim, a história de um clássico

Bati

smo

Bati

smo Na língua

dos anjos

O Pai Nosso teria sido pro-nunciado pela primeira vez por Jesus Cristo, em aramai-co. Mais tarde, passou para o grego, de onde vem a versão latina, já bastante diferente da original.

“Pater noster, Qui es in caelis, sanctificetur nomem tuum.

Adveniat regnum tuum. Fiat voluntas tua, sicut in

caelo et in terra. Panen nostrum quotidianum

da nobis hodie. Et dimitte nobis debita nos-tra, sicut et nos dimittimus

debitoribus nostri. Et ne nos inducas in tentationem: sed libera nos a malo.

Amen. “

A celebração em latim torna a aparecer nas Igrejas, atraindo curiosos e gerando divergên-cias dentro do próprio catolicismo

Por Mariana Hilgert

Amen!

As tardes de sá-bado são, para Marcos, sagra-

das. Desde 2007, ele vai ao mesmo lugar, no mes-mo horário, para rever as mesmas pessoas e sentar nos mesmos bancos que, naquele dia, estavam le-vemente diferentes, mais adornados do que de costume. Algumas rosas brancas os enfeitavam – para um casamento, talvez –, preenchendo o corredor que parecia não

ter fim, por

causa do longo tapete vermelho. Mas as mu-danças, sutis, cabiam apenas ao cenário, e não às razões – essas, imutáveis – que o le-varam até ali: a fé e o latim.

Aos 19 anos, Mar-cos Mattke é membro do Grupo de Jovens da Paróquia Imaculada Conceição, localizada no bairro Guabirotu-ba, em Curitiba. Dois anos antes, quando já era estudante de Re-

MA

RIA

NA

HIL

GER

T

Et ne nos inducas in tentationem: sed libera nos a malo.

Amen. “

As tardes de sá-As tardes de sá-Abado são, para Abado são, para AMarcos, sagra-AMarcos, sagra-Adas. Desde 2007, ele vai ao mesmo lugar, no mes-mo horário, para rever as mesmas pessoas e sentar nos mesmos bancos que, naquele dia, estavam le-vemente diferentes, mais adornados do que de costume. Algumas rosas brancas os enfeitavam – para um casamento, talvez –, preenchendo o corredor que parecia não

ter fim, por

causa do longo tapete vermelho. Mas as mu-danças, sutis, cabiam apenas ao cenário, e não às razões – essas, imutáveis – que o le-varam até ali: a fé e o latim.

Aos 19 anos, Mar-cos Mattke é membro do Grupo de Jovens da Paróquia Imaculada Conceição, localizada no bairro Guabirotu-ba, em Curitiba. Dois anos antes, quando já era estudante de Re-

MA

RIA

NA

HIL

GER

T

A celebração na Paróquia Imacula-da Conceição, em Curitiba,: uma hora de latim e concen-tração

MA

RIA

NA

HIL

GER

T

Page 22: Latim, a história de um clássico

lações Internacionais e, nas horas vagas, de Latim, descobriu que um pessoal da Paróquia – desconhe-cida para ele, na época – estava organizando uma missa diferente, conforme um ritual outrora bas-tante comum.

A proposta do grupo não sur-gira do acaso. Ela coincidiu com a promulgação do Motu Proprio Summorum Pontificum, uma es-pécie de decreto lançado pelo papa Bento 16, a fim de rever cer-tas determinações da Igreja que vigoravam desde 1965. Naquele ano, teve fim o Concílio Vaticano II, sob o papado de Paulo VI.

Durante três anos de discussão, foram elaboradas quatro constitui-ções, três declarações e nove de-cretos que romperam com a visão mais tradicionalista da Igreja.

O decreto O Motu Proprio foi oficial-

mente publicado no dia 7 de ju-lho de 2007. Nele, o papa traça um pequeno panorama histórico acerca da doutrina católica. Ele aponta, por exemplo, que os livros litúrgicos, para se adaptar às ne-cessidades dos dias de hoje, foram “restaurados e parcialmente reno-vados, e que ao redor do mundo foram traduzidos em diversas lín-guas vernáculas”.

Essas modificações foram fei-tas em 1969, quatro anos após o encerramento do Concílio. O gru-po de especialistas que havia sido incumbido da revisão publicou o Novus Ordo Missae, a fim de rede-finir certas questões que caracteri-zam as missas atuais. A celebração regida conforme o Concílio Vati-cano II é considerada, segundo a Igreja, a forma de expressão ordi-nária, contrapondo-se àquela de-finida em 1570, por São Pio V, que hoje é tida como extraordinária.

Chamada de Missa Tridenti-na ou Tradicional, ela é realizada

conforme o Missal Romano – li-vro usado pelos padres durante a celebração – aprovado por Pio V durante o Concílio de Trento. To-das as orações são em latim e tan-to o celebrante quanto os fiéis se voltam ad Orientem, onde nasce a luz – que para a Igreja represen-ta Jesus Cristo. Dependendo do ponto de vista, isso significa que o padre, durante quase toda a cele-bração, fica de costas para os fiéis, ou de frente para Deus.

Tal ritual, que representa ape-nas um uso diferente do mesmo rito romano, é preferência de al-guns fiéis, como relata o papa no documento. É por causa deles que o pontífice autoriza, nos 12 artigos que compõem o Motu Proprio, a utilização do antigo Missal Ro-mano por qualquer sacerdote, diariamente, excetuando o Sa-grado Tríduo (período da Páscoa – quinta-feira , sexta-feira e sába-do). Dispensam-se formalidades para autorização – basta somente o pedido de um grupo de fiéis e o aceite por parte do padre.

Reimplementar uma celebra-ção que, por quase quatro sécu-los, foi a missa de sempre, não seria o objetivo do Motu Proprio, conforme as palavras do papa. O documento seria mais uma tenta-tiva de reconciliação com grupos católicos tradicionalistas, como a Sociedade de São Pio X (SSPX), fundada pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre, em 1969.

O grupo refutou as definições do Concílio e, por isso, obteve au-torização para celebrar o rito com base no Missal antigo. Inicialmen-te, tal permissão era concedida somente em alguns casos. Com o tempo, ela se expandiu, até que, em 1984, o papa João Paulo II de-finiu que, se houvesse interessados em realizar a celebração, caberia ao bispo de cada diocese decidir a real viabilidade. Quatro anos mais

tarde, Lefebvre foi excomungado por ter ordenado bispos sem an-tes ter sido autorizado pelo papa. Morto em 1991, o arcebispo dei-xou, segundo dados da própria Sociedade, cerca de um milhão de seguidores.

A excomunhão do arcebispo francês fortaleceu o clima de dis-sidência entre os grupos da Igre-ja. Mas, para o teólogo Leonardo Boff, o decreto seria uma forma de reforçar ainda mais essa segmen-tação. “O Papa está mais perto de Lefebvre do que do Concilio Vati-cano II. Neste sentido, prejudica a unidade da Igreja e os esforços de renovação. Há o risco de que a Igreja mais e mais se isole e assu-ma atitudes de seita”, reflete, em entrevista à Língua.

A presença do latim também poderia provocar um afastamento por parte dos fiéis, já que remete à imagem de uma igreja antiga. “O papa quer interpretar este Conci-lio a partir do outro, o Vaticano I, que dava centralidade infalível ao papa e havia esvaziado a dimensão de povo, de Deus e de comunida-de”, afirma Boff. Para o teólogo, essa decisão se encaixa na men-talidade tradicionalista de Bento XVI. “O latim é um símbolo de uma atitude de fundo, restaurado-ra, conservadora e até certo ponto reacionária”.

JovensResponsável pela celebração

na Paróquia da Imaculada Con-ceição, o padre Paulo Iubel não acredita que o rito tradicional possa ser um retrocesso dentro da Igreja, já que, como descrito no próprio decreto, não seria uma im-posição. “É apenas uma resposta ao pedido de um grupo. Ninguém seria coagido a participar”, explica o sacerdote.

Uma das principais justifica-tivas da Igreja em prol do uso do

Bati

smo

22

Page 23: Latim, a história de um clássico

latim é o caráter imutável da lín-gua. Ela seria uma espécie de liga-ção com o passado à medida que preserva elementos espirituais. “Eu me sinto pessoalmente mais realizado [após a celebração da missa]. É como se o fator de mis-tério prevalecesse”, comenta.

Padre Iubel não liderou o retor-no à celebração – por mais que ela o agrade espiritualmente e por ter sido, na sua época de seminarista, a missa usual. Quem encabeçou o movimento foram jovens tão in-teressados quanto Marcos – que, quando foi visitar a Paróquia pela primeira vez, não hesitou em par-ticipar ao descobrir que o grupo já pretendia começar a celebra-ção na semana seguinte. “Passei a ajudar a organizar as missas desde então, passando a fazer parte do grupo, do qual fiquei muito ami-go”, conta.

Participar da celebração só ajudou Marcos, que, anos antes, se encontrava afastado de qual-quer religião. “A missa é bastante recolhida e isso facilita a oração”, relata Patrícia Medina, integrante do grupo, explicando a maior di-ferença dessa missa em relação às demais e justificando, sem querer, porque ela e cerca de 30 outros jo-vens preenchiam os bancos enfei-tados daquela tarde de sábado.

Nem todo mundo que vai à Missa Tridentina conhece ou estuda latim. Por isso, a Paróquia da Imaculada Con-ceição oferece aos fiéis um livreto que contém, de um lado, a versão em português e, do outro, em latim.

No Mosteiro e em latim

Construído há mais de 400 anos, o Mosteiro de São Bento atrai turistas, curiosos e fiéis que,

nas celebrações, ocupam, quase sem-pre, os seus 693 assentos. Era o caso daquele domingo. Mal o ponteiro

anunciou 18h, as pessoas começaram a cruzar a grande porta de acesso, que dá para o Largo de São Bento, região central de São Paulo. As conversas eram intimidadas pela luz baixa e pela devoção de fiéis que já se colo-cavam de joelhos. A maior parte de-les, inclusive, era notada pela forma como se vestiam. Especialmente as mulheres e as crianças, que se escon-diam por baixa do pano das saias, das blusas e dos véus – brancos, para as solteiras, e pretos, para as casadas.

Aos domingos, o Largo de São Bento, em São Paulo, fica cheio. Não de feiran-tes, mas de fiéis

Por Mariana Hilgert

Tradução simultânea

O uso do véu não é obriga-tório, mas muitas mulheres seguem a tradição

23

MA

RIA

NA

HIL

GER

T

Page 24: Latim, a história de um clássico

Bati

smo

Com os dedos cruzados em frente ao rosto, uma jovem de cabelos amarrados, cobertos por um lenço branco bordado, aguar-da os sinos anunciarem a chegada do padre para voltar a sentar. O silêncio que a acompanhara nas orações até então se esvai com os choros das muitas crianças pre-sentes – algumas sentadas, outras no colo dos pais. Nem isso parece perturbar a concentração geral, elemento importante numa missa cuja língua pairava sobre as cabe-ças dos fiéis, inscrita nas paredes da basílica, entre as figuras de san-tos: o latim.

RitualÀ frente da celebração, está

o padre Jonas dos Santos Lisboa. Com uma longa túnica roxa, ele abençoa os presentes, cruzando o corredor principal. Lentamente, volta ao altar e dá início à missa, que segue rigidamente as normas previstas pelo antigo missal ro-mano: genuflexões, uso do latim durante quase todo o ritual – com exceção da liturgia da palavra –, sucessivas anáforas – em que o pa-dre fala e os presentes respondem –, entre outros elementos. Tudo regido pelo sacerdote que fica, na maior parte do tempo, de frente para o altar e, consequentemente, de costas para os fiéis.

Padre Jonas é responsável, des-de outubro de 2008, pela celebra-ção dominical do Mosteiro, na for-ma extraordinária – que, para ele, de extraordinário, nada tem. “Eu estudei latim no seminário, desde quando entrei, em 1964, aos 12 anos de idade. Na escola, estudei latim até a 4ª série ginasial, e de-pois fiz literatura latina nos dois anos de clássico. As nossas aulas de filosofia e teologia também eram todas ministradas em latim. E pratico continuamete o latim”.

Nos seus quase 33 anos de sa-

cerdócio, padre Jonas rezou ape-nas uma missa em português. Isso se deve ao fato de ter feito parte da diocese de Campos dos Goytaca-zes (RJ), orientada pelo bispo dom Antonio de Castro Mayer. Ligado ao grupo tradicionalista do arce-bispo francês Marcel Lefèbvre, a diocese seguiu, mesmo após o Concílio Vaticano II, o ritual an-tigo. Em 1988, junto a Lefèbvre, Mayer foi excomungado da Igre-ja. Três anos depois, foi fundada a Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianey, já sob a co-ordenação de um novo bispo.

Todos os sacerdotes perten-centes à Administração celebram segundo as definições de São Pio V. “Nós estamos atendendo São Paulo há 5 anos”, conta o padre. Além de auxiliar nas celebrações da cidade, a Administração envia material de apoio para diversas lo-calidades, como Belo Horizonte,

Nova Iguaçu e Volta Redonda. Curitiba também recebe o auxí-lio do próprio padre Jonas, que, a cada dois meses, celebra a missa na forma extraordinária, na Igreja da Ordem. “Nós temos um DVD que ensina a celebrar a missa no rito tradicional”, acrescenta. Gra-vado pela Paróquia Pessoal do Se-nhor Bom Jesus Crucificado e do Imaculado Coração de Maria, de Campos, ele é enviado às igrejas junto a um livreto de orientação.

O trabalho feito pelos religio-sos já foi alvo de críticas, pois con-teria elementos de antissemitismo. Segundo reportagem da Folha de São Paulo, que teve acesso às gra-vações, haveria uma voz ao fundo, chamando os judeus de “povo deicida [assassino de Deus], o qual um dia reconhecerá que Jesus é o Messias”. A denúncia chocou a comunidade judaica, que receia o retorno da missa tridentina.

Com capacidade para quase 700 pessoas, o Mosteiro de São Ben-to lota aos domingos

rev

ista

lín

gu

a

24

MA

RIA

NA

HIL

GER

T

Page 25: Latim, a história de um clássico

25

rev

ista

lín

gu

a

Page 26: Latim, a história de um clássico

Vid

a e

scola

rr

EVIS

TA l

ÍNG

UA

“Não é possível de sconhece r a irremovível

vinculação de nossa cultura com as origens helênicas e la-tinas. Não seria conveniente romper com estas fontes”. Essa foi a justificativa dada pelo Mi-nistro da Educação Gustavo Capanema, em 1942, ao expli-car as razões de se ter, dentro do ensino secundário, discipli-nas humanitárias, como o La-tim. Capanema foi o respon-

sável pela implantação da Lei Orgânica do Ensino Secundá-rio, que permaneceu em vigor por quase 20 anos.

Segundo a legislação, o en-sino nas escolas seria divido em dois ciclos: o primeiro, cha-mado ginasial, teria duração de quatro anos; o segundo, de três anos, poderia ser voltado à área clássica ou científica. Durante os sete anos, o latim seria – como, efetivamente, foi – disciplina obrigatória.

Passado do presenteO ensino do latim nas escolas marcou um pe-ríodo em que os estu-dos clássicos e huma-nísticos eram uma das bases do sistema edu-cacional brasileiro

Por Mariana Hilgert

STO

CKXC

HN

G

26

Page 27: Latim, a história de um clássico

Zélia de Almeida Cardoso, pro-fessora aposentada de Latim da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a resposta do Ministro se enquadrava nas exigências e con-dições da época. “Além dessas razões [apresentadas pelo Ministro], sem-pre se considerou o ensino do latim como importante instrumento para o desenvolvimento de faculdades tais como o raciocínio, a atenção, a memória, entre outras”. O problema é que as justificativas não afastavam das escolas as dificuldades de ensi-no de um idioma que, para crianças e adolescentes, aparentava não ter qualquer utilidade.

Um dos principais entraves era a metodologia usada na época. “Em cada classe do antigo curso ginasial, havia apenas alguns alunos que se interessavam pela matéria. A maio-ria simplesmente decorava decli-nações e conjugações verbais ou preparava meios fraudulentos para prestar contas dos conhecimen-tos em provas escritas e chamadas orais”, conta Cardoso. Essa é uma das razões pelas quais muitos alunos temiam a disciplina, que chegou a ficar conhecida como a “matemáti-ca das letras”.

Em 1962, o ensino do latim tor-nou-se facultativo no segundo grau – mudança prevista pela Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Mas foram poucas as esco-las que optaram pela permanência da disciplina no currículo – afinal, além da falta de professores da área, havia um despreparo dos poucos que existiam. Um raro exemplo foi o Colégio Dom Pedro II, fundado em 1837, no Rio de Janeiro, que oferece a disciplina na sua grade curricular até os dias de hoje.

No mesmo ano da promulgação da lei, Vandick L. da Nóbrega era, já havia 17 anos, professor da discipli-na na escola. Para a elaboração do livro Metodologia do Latim - Vida

Cotidiana e Instituições, publica-do também em 1962, ele organizou uma pesquisa com todos os seus co-legas de profissão a fim de justificar a importância do latim nos setes anos de curso secundário. Com os resul-tados, Nóbrega pôde afirmar aquilo que pregou durante toda sua vida como docente: “[o estudo do latim] constitui um instrumento seguro de boa e sólida formação intelectual e prepara pela ordenação e disciplina do pensamento, pela agudeza do es-pírito, pelo amor à pesquisa e pelo respeito às tradições humanísticas de nossa herança linguística, as ge-rações merecedoras de um futuro realizador”.

Os resultados da pesquisa de Nóbrega e sua aplicação ficaram restritos ao Colégio Dom Pedro II. Mas na tentativa de não ter mais a instituição como uma exceção, o deputado Milton Monti (PR-SP) elaborou o Projeto de Lei No 3.963, que pretendia reinserir o Latim, a partir da 5ª série do ensino funda-mental, como disciplina obrigatória. A questão é que a ideia foi lançada quase 40 anos depois da promulga-ção da primeira versão da LDB (a segunda foi publicada em 1996, mas não gerou mudanças no que dizia respeito ao Latim nas escolas),

O objetivo do projeto era me-lhorar a própria língua portuguesa: “Conhecendo a origem das pala-vras, seu verdadeiro significado, po-deremos ter uma língua rica, com a utilização precisa dos termos. Além de auxiliar na própria gramática, na análise sintática e morfológica, per-mitirá a busca nos textos clássicos da história da humanidade”, como descreveu o deputado no documen-to oficial.

A tentativa de Monti não foi aprovada pelo relator, o deputado João Matos (PMDB-SC). Apesar de reconhecer a importância do latim como língua-mãe do idioma pátrio e

de diversos outros, ele afirma que o seu retorno não significaria, neces-sariamente, uma melhoria na Lín-gua Portuguesa. Como explicou no relatório do projeto, haveria outras questões mais complexas por trás de tal objetivo, como “a elaboração de uma política de formação continua-da dos professores da área, melhores salários e campanhas maciças de fo-mento ao hábito da leitura, aliadas à implantação de bibliotecas públicas com acervos atualizados e redes de livrarias em todo o País, com preços de livros acessíveis ao consumidor.”

Inviabilidade Dentro do atual contexto sócio-

educacional brasileiro muitos pro-fissionais compartilham da mesma opinião: não é possível reinserir o latim nas escolas. Cardoso acredita que é a condição dos próprios alu-nos de hoje que não favorece essa reinserção, impossibilitando uma comparação entre eles e os estu-dantes do tempo em que vigorava a Lei Capanema. “Nessas quase cinco décadas [desde que o latim deixou de ser obrigatório], a situação do ensino mudou completamente. O próprio perfil do aluno se modifi-cou. Até os anos 60 do século XX, o curso secundário era elitizante e os meios de informação bastante dife-rentes dos de hoje. Basta considerar que a informática só se popularizou a partir dos anos noventa. Os estu-dantes – não apenas porque estuda-ram latim – são hoje muito diferen-tes dos do tempo em que o latim era obrigatório”.

A inviabilidade de se ter uma dis-ciplina também está ligada à falta de professores. De acordo com dados do Censo do Ensino Superior, divul-gado pelo Instituto Nacional de Es-tudos e Pesquisas Educacionais Aní-sio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação (MEC), em fevereiro des-te ano, o número de formandos em

27

Page 28: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

rev

ista

lín

gu

a

Bati

smo

Nasc

imento

áreas específicas de magistério caiu 4,5%, entre 2006 e 2007. O curso de Letras teve uma redução de 10%, ficando entre os que apre-sentam dados mais preocupantes.

As próprias universidades ten-tam reverter essa situação, crian-do meios de aproximar a cultura romana das crianças. É o caso do projeto Latim na Escola, colocado em prática a partir de 2000, com a colaboração de professores e alu-nos de Latim da Universidade Fe-deral de Santa Catarina (UFSC).

A atividade, como consta no documento do projeto, “visa ao resgate da Língua Latina, à recu-peração da sua história e cultura, ao desenvolvimento do raciocínio lógico, bem como contribuir para o processo ensino/aprendizagem da língua portuguesa.” O projeto de aplicação nas escolas foi inter-rompido em 2005 – mesmo assim, o trabalho de re-edição das obras voltado ao público infanto-juvenil continua à espera de editoras inte-ressadas em publicá-lo.

Ideias como esta podem ser bastante proveitosas no sentido de

difundir a história e a cultura da civilização romana. Mas é preci-so incentivar outras atitudes para que as crianças de hoje se interes-sem pelo estudo do latim.

A leitura é uma delas, como afirma o professor de Lingua Por-tugesa da USP, Mário Eduardo Viaro, “Quem não gosta de ler ou não gosta de desafios, jamais gos-tará de línguas difíceis e o latim é uma língua difícil para nós, não nego”.

Apesar de não acreditar muito em fórmulas prontas de motiva-ção, ele visualiza uma condição ideal para que ela funcione: “Acho sim, que quando se junta uma so-ciedade com indivíduos sedentos de conhecimento e professores muito maleáveis, aí a fórmula dá certo. Uma utopia é impossível de imaginar, mas é o que se verifica em muitos países, não necessaria-mente os mais desenvolvidos eco-nomicamente”.

áreas específicas de magistério caiu 4,5%, entre 2006 e 2007. O curso de Letras teve uma redução de 10%, ficando entre os que apre-sentam dados mais preocupantes.

As próprias universidades ten-tam reverter essa situação, crian-do meios de aproximar a cultura romana das crianças. É o caso do projeto Latim na Escola, colocado em prática a partir de 2000, com a colaboração de professores e alu-nos de Latim da Universidade Fe-deral de Santa Catarina (UFSC).

A atividade, como consta no documento do projeto, “visa ao

Didática do futuro

Responsável por preservar o nos-so idioma e contar toda a sua histó-ria, o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, não é apenas uma simples exposição. Interativo e inte-ressante, ele é visitado, desde a sua inaguração, em 2006, por crianças, jovens e adultos.

Como não poderia ser diferente, o latim ganha destaque dentro da história de formação da língua. Com desenhos, explicações, tabelas de palavras que se modificaram, além

de vídeos, ele se torna mais um dos elementos que compõem a estrutura do Museu.

No Beco das Palavras, uma da seções mais concorridas do local, a presença do idioma antigo se torna mais palpável. Com uma mesa inte-rativa dedicada à etimologia, o pú-blico brinca e aprende.

Periodicamente, o Museu tam-bém faz exposições sobre persona-lidades que tiveram a língua portu-guesa como seu foco de trabalho.

28

MARIANA HILGERT

Page 29: Latim, a história de um clássico
Page 30: Latim, a história de um clássico

Vid

a e

scola

r

Embora não façam parte da mesma família linguística, o finlandês e o latim pos-

suem uma relação estreita. Locali-zada ao norte da Europa, a Finlân-

dia possui um noticiário produzido na língua oficial do Império Ro-mano. O site Nuntii Latini – ou Notícias em Latim –, concebido pela YLE (Finnish Broadcasting

Company), publica, no idioma clássico, as manchetes de maior destaque mundial. Através dele também é possível escutar emis-sões de rádio na língua, que, em

Uma línguaadotadaEm muitos países europeus, o vínculo com o latim não vem de berço. Mas nem isso impediu que surgisse um interesse em conhecê-lo, estudá-lo, traduzi-lo e, até mesmo, cantá-lo

Não incentivar o ensino do latim nas es-colas dificulta o nascimento de novos tradu-

tores. E um dos objetivos do seu estudo é, jus-tamente, permitir a leitura de obras e, talvez, traduzi-las.

Através do site Index Translation, da Unesco, é possível ter uma noção, em-

bora reduzida, do quanto cada país produz na área. Neste exemplo,

cinco países foram analisados a partir do mesmo requisito: tradução de obras do latim para suas respectivas línguas nativas.

Acesse o site do Index Translation em: http://databases.unesco.org/xtrans/

Acesse o site do Acesse o site do em: http://databases.unesco.org/xtrans/em: http://databases.unesco.org/xtrans/

Não incentivar o ensino do latim nas es-colas dificulta o nascimento de novos tradu-

tores. E um dos objetivos do seu estudo é, jus-tamente, permitir a leitura de obras e, talvez, traduzi-las.

Através do siteUnesco, é possível ter uma noção, em-

bora reduzida, do quanto cada país produz na área. Neste exemplo,

cinco países foram analisados a partir do mesmo requisito: tradução de obras do latim para suas respectivas línguas nativas.

2831

2810

1280

309

266

Espanha

Alemanha

Itália

Inglaterra

Brasil

Ranking de traduções

Por Mariana Hilgert

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

30

STO

CKXC

HN

G

Page 31: Latim, a história de um clássico

rev

ista

lín

gu

a

Uma línguaadotada

2006, atraíram mais de 75 mil ou-vintes. O número surpreendeu: há mais pessoas escutando um progra-ma em latim do que inúmeros outros transmitidos pela BBC inglesa.

Por estar disponível na internet, qualquer pessoa pode ter acesso e tirar proveito do material produzido pela YLE. Assim faz um grupo de espanhóis, todos integrantes do Cir-culus Latinus Matritensis (Círculo Latino de Madri), espécie de filial da Societas Circulorum Latinorum, federação que organiza círculos de conversação em latim. Para aperfei-çoar e praticar a língua, que é uti-lizada pelo menos uma vez ao mês, eles escutam a rádio finlandesa, participam de fóruns na rede, além de promoverem encontros entre fa-lantes de países diferentes. Mas a ra-zão de ser do grupo é, basicamente, uma: os encontros da última sexta-feira do mês.

O aviso da reunião fica preso na cafeteria escolhida. “Aqui, fala-se latim”, anuncia o cartaz, que atrai poucos curiosos. Os que vêm são, basicamente, os mesmos nove. Fora dali, cada um exerce uma profissão distinta. Mas ao redor da mesa, to-dos se tornam iguais na busca de um mesmo objetivo: praticar o latim. E eles discutem tudo – até futebol! – usando, quando preciso, um lé-xico atualizado pelo Vaticano, com palavras adaptadas às necessidades atuais.

O Matritensis vem de Madri, uma das cidades que abriga um cír-culo de conversa. Mas a Societas é bem distribuída pelo continente eu-ropeu: além de Madri, há mais 15 cidades, espalhadas por nove países. A existência de uma unidade que coordena os grupos permite a tro-ca e o acesso a materiais, além do intercâmbio entre os curiosos estu-dantes.

O vizinho Portugal também tem um Circulus Latinus – embora o inte-resse pelo ensino do idioma clássico

venha decaindo. Entre 2006 e 2008, o número de estudantes escolares da disciplina reduziu 80%. A queda tão abrupta deu margem a uma discus-são entre professores, de um lado, e políticos, de outro. Para os docentes, o ensino na área de Humanas vem sendo desvalorizado, perdendo es-paço para investimentos no campo tecnológico. Já segundo os repre-sentantes do Governo, o problema diz respeito aos estudantes, que não estariam interessados em aprender o idioma.

A Inglaterra é o exemplo contrá-rio nesse sentido. Segundo um estu-do feito pela organização Cambridge Schools Classics Project (CSCP) com escolas públicas inglesas de ní-vel secundário, em 2008, verificou-se que cerca de 200 instituições le-cionavam latim em 2000; sete anos depois, o índice subiu para 471. Os resultados da pesquisa também de-tectaram uma redução no número de profissionais da área. Essa dimi-nuição é incompatível com a de-manda, acentuada, também, pela procura das escolas primárias – cer-ca de 2500 delas preveem o ensino do idioma dos romanos para ajudar as crianças a aprenderem a gramáti-ca inglesa.

Como o inglês, a língua alemã, apesar de toda a influência que teve do latim, não é sua filha. Mesmo as-sim, a Alemanha demonstra ter um grande interesse pelo seu estudo, como atestam os 740 mil estudan-

tes de ensino médio, que, em 2006, enchiam as aulas da disciplina, nas escolas do país. O número indica um aumento de 13% em três anos – em 2003, eles eram 654 mil. So-mente o inglês, que tinha dez vezes mais alunos, e o francês, que atraía quase três vezes mais interessados, superavam esse índice.

Uma escola da cidade de Bre-men, na região noroeste da Alema-nha, virou notícia com aquilo que pode ser uma explicação para um número tão alto de alunos: a busca por novas formas de passar o conte-údo aos estudantes. Em 2006, sete professores se organizaram e, juntos, passaram a transmitir, mensalmente, as principais notícias – fossem elas locais, nacionais ou mesmo interna-cionais – em latim.

Fora da Europa, os Estados Uni-dos se destacam. Segundo reporta-gem do The New Tork Times, publi-cada em 2008, o número de alunos prestando o Exame Nacional de La-tim cresceu. De 101 mil estudantes, em 1998, o índice subiu para mais de 134 mil em 2007.

Uma das razões que explica esse interesse é a curiosidade dos alunos, aguçada por livros como Harry Pot-ter. Na obra, os nomes dos feitiços e magias são baseados no idioma.

Se a língua clássica virar uma fe-bre como já virou o livro, ela pode vir a ser a terceira mais estudada do país, perdendo apenas para espanhol e francês.

Qual a relação entre Elvis Pres-ley, Finlândia e latim? Nenhuma, até 2006, quando o cantor fin-landês Jukka Ammondt resolveu recriar os sucessos do americano, traduzindo-os para o idioma dos antigos romanos.

Em entrevista ao site da BBC, ele justifica o trabalho, ao afirmar

que a lenda de Elvis ainda vive e deve ser cantada em latim, já que esse é um idioma eterno.

Entre as músicas traduzidas por Ammond, estão Can’t Help Falling in Love (1961) , que virou Non Adamare Non Possum, e Sur-render, que passou a ser Nunc Ae-ternitatis.

Em latim, Elvis também não morreu

31

Page 32: Latim, a história de um clássico

Vid

a e

scola

rr

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Quando começou a apren-der latim, aos 10 anos, Maria Helena de Moura

Neves ainda desconhecia a impor-tância da língua que ouvia somen-te da boca do padre, nas missas que frequentava quando criança. O aprendizado que teve na infância só foi lhe ser útil anos mais tarde, quando prestou vestibular. “Aqui-lo ali, para mim, era a coisa mais simples do mundo”, comenta, ao relembrar a prova de latim que fez

para ingressar no curso de Letras Português-Grego da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Arara-quara). Atualmente, trabalhando como professora de Linguística na Universidade Presbiteriana Ma-ckenzie e na mesma Unesp em que estudara, ela compara a época em que viveu com a atual no que diz respeito ao estudo do latim. “Eles [os estudantes] começam a fazer aquilo que eu fazia com 10 anos, que é começar a saber o que era

caso, o que era declinação, quan-do entram na universidade”.

A história de Neves serve para ilustrar uma época em que o latim era prestigia-do em todos os níveis educacionais – cul-tura que vem do século XVII, quando o ensino do i d i o m a é in-

Diploma para osHistórias de estudantes e docentes de ensino superior que ainda veem o latim como uma chave importante para a compreensão da própria língua portuguesa

clássicosPor Mariana Hilgert

STOCKXCHNG

Page 33: Latim, a história de um clássico

troduzido nos seminários. Os jesuítas foram os primeiros professores da lín-gua, que só se tornou disciplina obri-gatória, em nível secundário, no ano de 1772, mais de um século depois. Com o surgimento das primeiras uni-versidades – como a de Manaus e a do Rio de Janeiro, criadas, respecti-vamente, em 1909 e 1920 – e dos pri-meiros cursos de Filosofia, a língua e a literatura latina se tornam disciplinas relevantes no âmbito educacional do ensino superior. Em 1931, o Minis-tro da Educação Francisco Campos incentiva oficialmente a dedicação à área, através da promulgação do De-creto No 19851.

Com isso aumentam

as produções de gramáticas,

traduções de obras latinas e elaboração de livros

didáticos diferenciados. Trinta anos depois, a situação do

latim já era diferente. Com a lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional (LDB), decretada em 1962, seu ensino se restringiu ao curso de Língua e Literatura Latinas e às dis-ciplinas compulsórias presentes no currículo de Letras. Nem mesmo as instituições de ensino superior regi-das pela Igreja Católica, responsável pelas primeiras investidas da língua no país, o mantiveram, deixando tal responsabilidade a cargo das institui-ções, na sua maioria, públicas.

Em 1989, o professor da Univer-sidade Federal Fluminense (UFF) Rosalvo do Vale escreveu o artigo Os estudos clássicos na universidade, no qual justifica a crise de disciplinas como o Latim, dentro do ensino su-perior. Um dos fatores remonta ao Parecer No 283 , elaborado, no mes-mo ano da LDB, pelo Conselho Fe-deral de Educação. Nele, fica estabe-lecido que, no currículo mínimo para os cursos de Letras, a “Língua Latina integra a parte comum, obrigatória das disciplinas, porém com a ressal-

va de que deve ser entendida como ‘simples matéria instrumental’’’.

Autor da obra Dal latino al italia-no, Italo Lana enxerga esse proces-so de instrumentalização de forma positiva. Para ele, somente usando o latim como um meio, através do estudo das obras literárias, será pos-sível compreender historicamente a civilização romana. Já Alceu Dias Lima, no livro Uma estranha língua: questão de linguagem e de método, publicado em 1995, vê a língua como um instrumento para outro fim: o aperfeiçoamento do português.

JustificativasNesse contexto, surge o ques-

tionamento: afinal, por que estudar latim? Para José Ernesto de Vargas, professor da disciplina de História da Língua Portuguesa, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é interessante suscitar tal questiona-mento entre os alunos. Concordando com a ideia de Lana, ele entende que “a razão primordial [para o estudo do latim] é a questão histórica, e, para mim, história é uma preocupação fundamental. O próprio Cícero dizia que não saber o que se passou, o que aconteceu no passado, é ter uma pos-tura de criança”.

Esse fator, que diz respeito à histó-ria da civilização, é a principal razão levantada por Lana. Na sua obra, ele explica o porquê do estudo do latim: “A sociedade de hoje deve conhecê-lo (e a cultura de hoje, a ele recorrer com frequência) para conhecer a si mesma. A compreensão do presente passa pelo conhecimento do passado. E o nosso passado é antes de tudo a civilização da Roma antiga no que teve de bom e no que teve de mau”.

A outra justificativa, de que o latim favoreceria a compreensão da língua, era usada pela professora de Latim da Universidade de São Paulo (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ela conta que costumava brincar com os

alunos quando eles a questionavam sobre a real utilidade do latim. “Para que serve é uma coisa relativa, eu di-zia. Saber fritar um ovo é algo muito mais relevante quando você está com fome”. Apesar de brincar, ela deixa-va clara a função da sua disciplina: explicar os fenômenos do português. Mesmo assim, ela ressalta que “a pes-soa pode falar um português perfeito sem conhecer latim. Você pode falar um inglês perfeito sem saber de onde ele veio”.

Como professora de Linguística, Maria Helena de Moura Neves con-corda com a afirmação de Cardoso. “Não é dizer que eu preciso do latim para escrever bem. Eu estou pensan-do em pessoas que se aprofundam na linguagem, que lidam com a lingua-gem como objeto de investigação”, explica, referindo-se aos discentes. Para ela, o latim traz uma vantagem específica que difere seus estudantes dos demais: “Você tem um gatilho disparado para poder observar mais coisas na sua língua. A vivência do latim é a preparação de um gatilho disponível pra você desvendar certas construções”.

Responsável pelas disciplinas de Língua, Literatura e Tradução La-tina no curso de Letras da UFSC, Mauri Furlan volta suas aulas para a questão do funcionamento e da es-trutura do sistema linguístico latino. Mas, segundo ele, isso é uma questão de escolha que fica a critério do do-cente. “Ele pode dirigir a sua prática de acordo com os seus objetivos”, observa. Por isso que, para ele, não há uma justificativa principal para o estudo do latim. “No curso de Letras, o latim é oferecido não com vistas a ler as obras clássicas. Mas isso é uma consequência – primeira, talvez. O latim também é a base de nossa cul-tura. A gente sempre aprende que ela é greco-romano-judaica, mas eu deveria entender essas culturas, que estão na base da minha origem”, ex-plica.

33

Page 34: Latim, a história de um clássico

Vid

a e

scola

r

Em 1996, mais de 30 anos após o lançamento de sua primeira versão, foi apro-

vada a nova LDB, concedendo às universidades, o direito de decidir sobre o ensino da língua latina nos cursos de Letras. Enquanto algumas excluíram a disciplina, diversas instituições, como USP, Unicamp, Unesp e UFSC, man-tiveram-na no quadro curricular. Mas havia, entre elas, um proble-ma comum: a desistência por par-te dos alunos.

Para tentar melhorar os ín-dices, a USP, única universidade no Estado de São Paulo que pos-sui um departamento destinado exclusivamente aos estudos clás-sicos, repensou a forma de in-troduzir o latim aos alunos. Para isso, a instituição criou, em 1998, a disciplina de Introdução aos Es-tudos Clássicos (IEC). Apesar de já estar aposentada quando a IEC foi implantada, a professora Zélia de Almeida Cardoso reconhece a validade da escolha feita pela ins-tituição. “Os alunos que entram em Letras têm algumas matérias obrigatórias, como a Iniciação aos

Estudos Clássicos, de dois semes-tres. Eles leem textos, depois têm a poesia lírica e o teatro. É uma matéria que geralmente eles gos-tam bastante”, observa. A refor-mulação foi eficaz: com índices de 40%, em 1998, a desistência caiu para apenas 9%, seis anos depois.

Os dados são da dissertação da pesquisadora Charlene Miot-ti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O peque-no vínculo que os alunos criam com o passado romano durante os estudos e até mesmo a desor-ganização do corpo docente são alguns dos problemas levantados pela pesquisadora. Mas foi a fal-ta de uma metodologia de ensino unificada, outro desmotivador dos alunos, que deu origem ao objeto principal de pesquisa de Miotti: o método Reading Latin.

Lançado em 1986 pelos profes-sores Peter Jones e Keith Sidwell, a estrutura dele se baseou na do já existente Reading Greek. A ideia dos dois projetos era a mesma: criar uma forma de ensinar os idiomas para adultos e “quase-adultos” que permitisse um acesso rápido e eficaz a obras originais de autores da época. Escrito, inicialmente, em inglês, o método continha um conjunto de textos e um livro de exercícios, teorias gramaticais e vocabulários. Em 1994, a ideia foi adotada pela Universidade Fede-ral do Paraná (UFPR). Mais tarde, outras instituições também opta-ram pela novidade, como a UFSC, que, em 2002, passou a aplicar a metodologia em sala de aula.

Um dos maiores obstáculos dentro da universidade catarinen-se se repetia em outras instituições

do país: cada professor usava um método próprio, inviabilizando que o aluno acompanhasse a mes-ma linha de raciocínio por todo o curso. Foi para resolver esta ques-tão que Furlan apostou na inova-ção do Reading. “Cada um usava seu método, e a gente percebeu que havia diferença. Por sugestão minha, padronizamos um pouco mais”, conta. Além de permitir uma uniformidade no ensino, o método causou uma revolução na própria relação com os alunos. “O latim que era dado demorava muito tempo para dar uma noção do sistema ao aluno. Agora, já na primeira fase, ele começa com a leitura de uma comédia de Plauto e a língua já é apresentada de uma forma mais completa”, garante.

A baixa carga-horária do latim em grande parte dos cursos de Le-tras seria um fator que poderia jus-tificar os poucos alunos que se in-teressam, ao fim do curso, por uma área tão específica. Na tentativa de ir contra esse fluxo, a UFSC é um exemplo único no país: hoje, ela estabelece, no currículo do curso de Letras, 72 horas-aula de Latim, diferente do padrão, que é de 45 horas. Mas, segundo a professora Maria Helena de Moura Neves, a carga-horária não explica o bai-xo número de estudiosos da área. Para ela, o que não acontece hoje é, justamente, o que aconteceu na sua época: o incentivo ao estudo do latim ainda antes do ensino su-perior. “Um aluno começando na universidade, vai sair com umas pinceladas”, opina. “Não é ques-tão de carga horária, é questão de tempo de formação, é questão de período que a pessoa fica exposta

Os furos de currículoA falta de metodolo-gia adequada ainda é um dos fatores que desistimula os estu-dantes universitários a darem início ou continuidade aos es-tudos do latim

Por Mariana Hilgert

34

STO

CKXC

HN

G

Page 35: Latim, a história de um clássico

rev

ista

lín

gu

a

a este estudo. De fato, vai haver aqueles fatos de vocação. Eles po-dem se tornar muito bons, mas como formação, eu acho tarde”, conclui.

Dificuldades Além de questões pontuais refe-

rentes a escolhas de cada instituição, há outros motivos que dificultam o ensino do latim na graduação, tanto no curso de Letras, como disciplina obrigatória, quanto no próprio cur-so de licenciatura. Para Neves, um dos entraves é a elitização do latim. “No Brasil, não tem jeito de não ser considerado de elite. Todo mundo vai dizer: para quê? E a explicação do ‘para quê?’ é de elite mesmo”, afirma. Essa explicação, segundo a professora, diz respeito aos obje-tivos do latim. Ensiná-lo significa

direcionar pessoas para um certo rumo. “A questão não é dar estudo pra elite, é conseguir dar alguma coisa da elite pro povo. Eu gostaria que o povo fosse elitizado. Eu acho que isso é acrescentar”, reflete.

No blog que criou para com-plementar suas aulas, o professor Adriano Scatolin, da USP, aponta outros fatores, de cunho mais prá-tico, que também inviabilizam o fortalecimento do ensino e da pes-quisa na área do latim. Em primeiro lugar, ele cita a falta de traduções. Segundo ele, muitas obras de auto-res romanos ainda não existem em português – o que há, normalmen-te, são versões feitas a partir de ou-tra língua.

Outro empecilho seria a falta de dicionários bons à venda, hoje, nas livrarias brasileiras. Segundo o

professor, eles ainda não têm uma “combinação ideal de abrangência vocabular e apresentação sistemáti-ca das diversas acepções, constru-ções, regências e exemplos”.

Mas quando há muitas lacunas – não há tradução e os dicionários são confusos – e recorrer a obras es-trangeiras se torna inevitável, surge mais um entrave: o idioma. Scato-lini afirma que é possível se dedicar aos estudos de latim sem conhecer outras línguas, embora, como ex-plica, “isso represente uma grande limitação, pelo menos com nossa disponibilidade atual de material básico de trabalho”. A responsabili-dade, dessa vez, recai sobre o aluno, que deverá trabalhar com uma si-tuação irônica: antes de entender a língua-mãe, terá que compreender as línguas-filhas.

O tênis de solado baixo, as meias listradas – sutil-mente à mostra –, e o casaco de moletom enquadram Fernando Coelho, 29 anos, no estereótipo perfeito de aluno universitário – coisa que ele realmente é. Mas será que também o encaixariam dentro da imagem usualmente feita acerca de professores de Latim e Grego? Ele mesmo reconhece que não.

Quando entrou para o curso de Economia da Uni-versidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aos 21 anos, Coelho já se interessava pela cultura e história do latim, mesmo sem saber por quê. “Eu sempre tive uma afinidade inexplicável com o mundo antigo, em especial com o mundo romano. As imagens de Roma e a língua de Roma me fascinavam e eu sabia que, de alguma forma, um dia eu as estudaria”, conta. Foi o que decidiu fazer um ano depois do vestibular: trocou os cálculos pela Filosofia e mergulhou no latim.

Coelho aprendeu o idioma sozinho, mesmo saben-do que ele era oferecido como disciplina optativa no curso de Letras. Ele até chegou a assistir a uma aula de cada professor. “Mas essas aulas me fizeram saber que o meu ritmo de estudo era muito diferente dos alunos”, relembra. Em 2005, ele comentou com um amigo do interesse que tinha em criar um grupo de estudos de Latim. Os dois levaram adiante a ideia, que atraiu outros interessados.

Paulo Costa foi um deles. Ele relembra que, nos

dois de anos de existência do grupo, os três se reu-niam semanalmente para estudar duas horas de la-tim, seguidas de duas horas de grego. Para ele, que era estudante de Ciências Sociais, esse interesse por idiomas teve uma razão bem pontual. “Quando um professor me falou que os professores de Ciência So-ciais não sabiam falar e não conseguiam ler em outras línguas, comecei a estudar Grego sozinho. Comecei a me entusiasmar. Queria ler Platão e perguntei para a professora se ela conseguia ler sozinha. Ela riu”, re-corda.

O estudo do Latim rendeu frutos para cada um de-les. Costa disse que sentiu muita diferença no uso do português. Já Coelho levou mais adiante o gosto. Aca-bou terminando Filosofia e pediu retorno para o curso de Letras-Francês, que concluiu em 2008. Ao mesmo tempo, entrou no mestrado em Estudos da Tradução, na própria UFSC, defendendo a sua dissertação no co-meço desse ano. Hoje, ele é professor substituto de Grego, aluno do curso de Letras-Italiano, tem um gru-po de extensão de Latim iniciante e já está com ideias de aulas para o próximo semestre. Nada planejado, como ele admite. “Eu não tinha ideia dos impactos e consequências que o estudo do latim e grego teria na minha vida. As pessoas que são levadas a ele por um conselho não se dão conta, de fato, do que significa aprendê-lo.”

Os furos de currículoDe repente, latim

35

Page 36: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

rev

ista

lín

gu

a

Bati

smo

Vid

a e

scola

rr

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Não existe uma recei-ta. Há quem diga: “sei conversar em latim!”

ou “conheço As Metamorfoses de cor!”. Terão esses aprendido e conservado seu latim na base das tabelas, da tradução contumaz ou ainda por uma fórmula má-gica ignorada pelos mortais? Ou ainda: o que é saber latim? Seria dominar o sistema declinatório, o universo sintático e vocabular tão bem a ponto de transportar o latim para o presente e fazê-lo sambar para se referir, por exem-plo, ao nosso irremediavelmente moderno jeans (socorre o Vatica-no: bracae linteae caerulae)? Ou seria ter na ponta da língua o top da literatura clássica (junto com uma galeria de aforismas de cada autor)?

Orbitam em volta do latim prescrições, mitos e preconcei-tos de todo tipo. Extinto do en-tão “segundo grau” na década de sessenta e desobrigado pelo MEC no currículo universitário, o la-tim vem ganhando uma aura de erudição inacessível que reforça as crenças populares sobre ele. Se em uma roda de amigos o estu-dioso de latim cair na armadilha cotidiana de contar o que faz da vida, com muita probabilidade será presenteado com um bom-bardeio de perguntas curiosas: “para quê você usa o latim?”, “fala alguma coisa em latim?” etc...

O latim faz parte de um ima-

ginário coletivo construído por quem ainda sofria com ele no colégio sob os pretextos clássicos que inúmeros professores, auto-res de métodos e gramáticas e até admiradores leigos sustentavam: aprendê-lo aguça o intelecto, am-plia a capacidade de observação, aperfeiçoa o poder de concentra-ção, desenvolve o espírito analí-tico, ajuda a mente a adequar-se à calma e à ponderação . Sem falar na militância do latim para se tornar dono de um português impecável. Essas justificativas, são elas suficientes para embasar o ensino e o estudo de latim em qualquer instância?

Para além dos conteúdos e do modo como eles vêm sendo ensi-nados em sala de aula, há que se repensar principalmente os obje-tivos que norteiam esses esforços que, se não forem bem delinea-dos, produzirão pífios resultados quando muito. O que buscamos quando ensinamos latim para alunos de Letras e Filosofia em contexto universitário? Que eles possam conversar em latim? Que eles decorem os textos-base? Que eles saibam traduzir frases construídas por aqueles autores de gramática para quem o latim é ferramenta indispensável para um bom português e um raciocí-nio lógico-matemático?

Essas questões vieram à tona com o estudo em nível de mes-trado que realizamos na Unicamp

sobre a metodologia de ensino de latim nas Universidades Estaduais de São Paulo. O que foi possível constatar nas cinco Universida-des (considerando cada campus da Unesp como uma unidade) era previsível: cada professor tra-ta de compor por si só um méto-do que de fato ajude seus alunos a aprender aquele latim obriga-tório do currículo mínimo dos cursos de Letras – que não é nem de longe o latim necessário para se ter acesso a qualquer tipo de literatura, mas resolve a questão de quem sempre quis entender as frases de Edgar Allan Poe em O Barril de Amontillado.

O latim precisa ser encarado sem o ranço erudito, tradicio-nalista e arcaizante que o reduz a uma língua morta (quando se trata apenas de uma língua do passado). Ora, um ensino que se pretenda eficaz precisa levar em conta a complexidade e as parti-cularidades do sistema linguístico com o qual está lidando, além das múltiplas competências sem as quais é impossível alcançar qualquer dimensão, mesmo que pequena do que de fato é deter-minada obra no seu registro origi-nal. E sem essa dimensão, afinal, por que dedicar-se ao estudo de uma língua clássica?

Os porquês do latim

CHARLENE MIoTTI é autora Da DissertaÇÃo o ensino Do latiM nas uniVersiDaDes PÚblicas Do estaDo De sÃo Paulo e o MétoDo inglÊs reaDing latin: uM estuDo De caso.

Por cHarlene Miotti

36

Articulando

Page 37: Latim, a história de um clássico

Bati

smo

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

In dubio pro reo

“Viver honestamen-te, não lesar nin-guém, dar a cada

um o que lhe pertence”. Apesar de simples e óbvias, estas três ideias remetem a uma história bastante peculiar. Originalmente publicadas em latim – honeste vi-vere, alterum non laedere, suum cuique tribuere –, elas se referem aos preceitos de um dos maiores legados deixados pelos antigos ro-manos: o Direito.

A máxima foi apresentada no Institutas, manual destinado a estudantes de Direito organi-zado por Justiniano (482-565), imperador que assumiu o Impé-rio Oriental anos após a queda de Roma (476). Ele exigiu que as ideias publicadas no seu guia fos-sem adicionadas, junto a outros trabalhos, ao Corpus Iuris Civilis. A obra se opunha ao Corpus Iuris Canonici, conjunto das primeiras leis compiladas pela Igreja Cató-lica.

Mas foi bem antes de Justinia-no que surgiram as bases iniciais do Direito Romano. Não há re-gistro escrito dos primeiros con-

ceitos, que correspondem à época da Realeza (754 a.C – 509 a.C). Nesse período, o que valia mesmo eram os costumes da população. Foi para reorganizar essa condi-ção que se instituiu a Lei das XII Tábuas. Como explica o histo-riador Mario Curtis Giordani, na obra História de Roma, ela teria sido escrita “com a finalidade de codificar o direito costumeiro, impedindo as arbitrariedades dos patrícios contra os plebeus”. A partir disso, a organização jurídica de Roma começa a tomar forma.

Até chegar às definições de hoje, o direito romano passou por transformações e adaptações. Mesmo assim, ele sobreviveu como a maior fonte do sistema jurídico ocidental, regendo os principais conceitos das nossas re-lações em sociedade. Para enten-dê-los bem, é preciso se familiari-zar com o latim, língua materna do direito que ainda se mantém viva nos tribunais e em textos ju-rídicos. É o que afirmaVandick L. da Nóbrega, no seu Metodologia do latim (1972). “O conhecimen-to do latim é tão somente a fase

preliminar e obrigatória para que alguém possa pronunciar-se com autoridade sobre as obras clássicas dos jurisperitos romanos”.

InteresseMesmo não tendo a disciplina

na sua grade curricular obrigató-ria, Misael Torquato de Souza, estudante da 5ª fase de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), fez questão de aprender o idioma da civilização romana – pela qual ele, aliás, nu-tre grande interesse. “Entrei no Direito porque é uma produção dos romanos”. Seu interesse pela língua começou antes mesmo da universidade. Estudando-a, ele pretende, mais do que adquirir um conhecimento, provocar uma mudança. “Eu pretendo utilizar o latim para definir conceitos, para conceituar melhor, e trabalhar mais honestamente. Não é por reles capricho intelectual”, justi-fica.

No artigo O Latim e outras di-ficuldades da linguagem forense, Pedro Inácio da Silva também de-fende o ensino do latim. Segundo

Por Mariana Hilgert

A expressão latina é uma das ba-ses do Direito Penal e propõe que, em caso de falta de provas ou dú-vida, decida-se a favor do réu. E se o réu for, justamente, o latim?

37

Vid

a e

scola

r In dubio pro reo

A expressão latina é uma das ba-ses do Direito Penal e propõe que, em caso de falta de provas ou dú-vida, decida-se a favor do réu. E se o réu for, justamente, o latim?

Vid

a e

scola

r

pro reo

Vid

a e

scola

r

pro reoSTOCKXCHNG

Page 38: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De VargasVid

a E

scola

r

assim para evitar que futuros ad-vogados e juízes trabalhem com expressões as quais nem sequer entendem. “O que comumente ocorre é a repetição de expressões que se tornaram usuais no meio forense, sem o real domínio do seu significado, particularmente em razão da supressão do ensino do latim nos cursos de direito, língua em que foram escritas as linhas mestras do direito ociden-tal, e que até hoje reverbera na linguagem forense”, analisa.

Quem trabalha no meio jurídi-co e não possui um conhecimento mínino do idioma, está mais sus-cetível a deslizes – especialmente por se tratar de uma língua que não tem sequer falantes nativos vivos. Há muitas máximas e ci-tações jurídicas de origem latina que se tornaram comuns e, por isso, com mais chances de te-rem seu e sentido e forma adul-terados. Um dos exemplos é a expressão data venia, que, como explica José Barbosa Moreira, na obra A linguagem forense, “é uti-lizada em sinal de respeito, como licença à pessoa de quem se quer divergir.” Mas se os romanos antigos escutassem as variações que ela já sofreu, chegando a se transformar em superlativos – como em datissima venia e data veníssima –, não se lembrariam da carga semântica respeitosa da expressão.

Para evitar situações embara-çosas causadas pelo desconheci-mento, Maria Helena de Moura Neves, professora de Linguística da Universidade Estadual Paulista (UNESP – Campus Araraquara) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, apoia a implantação de disciplinas de latim voltadas para esses estudantes. “Tem mui-ta coisa ali que não dá para deco-rar e que é preciso saber, porque é tudo fundamentado no direito

romano. Por isso, acho que a for-mação em Direito tinha que exi-gir uma boa formação em latim”, defende.

Enquanto a sua falta no ensi-no provoca discussão entre edu-cadores, o seu excesso no meio jurídico levanta polêmica, já que pode gerar um grave problema: a incompreensão. Por causa disso, o Código de Processo Civil de 1973 enxugou as expressões em-pregadas em demasia pelo Código anterior, de 1939, estabelecendo, também, a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa em to-dos os atos e termos processuais.

Na práticaMembro da Comissão de

Ensino Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2007, Paulo Roney Ávila Fa-gundez acredita que a decisão expressa pelo Código remete ao momento contemporâneo do Di-reito. “Seria uma necessidade do estudo do latim, muito embora tenha havido uma redução dos vocábulos. Há alguns provérbios, ditados e máximas que facilitam algumas coisas no Direito, mas, hoje, cada vez menos, se usa [o latim]”.

Por já ter trabalhado na Co-missão de Ensino, ele reconhece que a questão do latim é muito pouco discutida justamente por causa da redução do seu uso. “E até mesmo quando há o empre-go, as pessoas acham estranho”, admite. A estranheza surge, es-pecialmente, daqueles que estão fora do contexto jurídico. O uso, aliás, de inúmeras expressões complicadas teria dado origem a uma “língua” própria, compreen-dida somente por aqueles que fa-zem parte do meio: o juridiquês.

O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidi-gal, chegou a comparar o jargão

com o uso do latim nas missas. Para ele, na celebração católica, o idioma acobertaria “um misté-rio que amplia a distância entre a fé e o religioso; do mesmo modo, entre o cidadão e a lei. Ou seja, o uso da linguagem rebuscada, incompreensível para a maio-ria, seria também uma maneira de demonstração de poder e de manutenção do monopólio do conhecimento”.

Por José ernesto De Vargas

Lei das 12 Tábuas

Escritas por volta de 450 a.C., as Tábuas representam as primeiras leis oficialmente registradas e pú-blicas – tanto que estavam expostas no Forum Romano.

Os 12 temas sobre os quais os textos legislavam eram:

I De in jus vocando Do chamamento a juízoII De judiciis Das instâncias judiciárias III De aere confesso rebusque jure judicatis Da execução em caso de confissão ou de condenação IV De jure patrio Do pátrio poder V De haereditatibus et tutelis Da tutela hereditária VI De dominio et possessione Da propriedade e da posse VII De jure aedium et agrorum Do direito relativo aos edifícios e às terras VIII De delictis Dos delitos IX Do Direito Público X De jure sacro Do direito sagrado XI Complementar XII Complementar

rev

ista

lín

gu

a

38

Page 39: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

Vid

a e

scola

rr

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Maria Helena De Moura

rev

ista

lín

gu

a

Assassinato linguísticoHá várias maneiras de

discutir o conceito de língua morta. Existem

as línguas que “morrem” porque nunca foram de grandes comuni-dades e acabam circunscritas a um número tão diminuto de falantes que naturalmente chegam à ex-tinção. Existem aquelas, porém, que foram línguas de dominação, e, implicadamente, foram línguas de cultura, em relação às quais o processo que leva ao conceito de “morta”, mesmo que seja aceito, dificilmente envolve extinção. Lembrem-se, no Oriente, o sâns-crito e o grego, e, no Ocidente, o latim, línguas que aí estão em obras que são lidas, comentadas, discutidas e apreciadas, que aí es-tão em ritos consagrados, e que, afinal, aí estão, modificadas, nas suas descendentes (o caso, por exemplo, das nossas línguas novi-latinas, ou neolatinas).

A primeira discussão vai exa-tamente nesse sentido: aceita-se a classificação de “mortas” para estas últimas línguas tanto quan-to para as línguas extintas, que se contam aos milhares?

Todo conceito tem de ser discutido no universo em que ele se insere, o que envolve um eixo de similaridade em que ele seja colocado para um contraste. Assim, se, em princípio, o eixo envolvido nesta discussão opõe tradicionalmente língua morta a língua viva. Em princípio, parece

não caber dúvida de que língua viva é uma língua que está em uso, e que, a partir daí, até para poder responder às necessidades dos usuários, abriga variações e é sujeita a mudanças com o devir do tempo. Se assim é, sânscrito, grego e latim não são línguas vi-vas, e, na verdade, o argumento de que o latim, por exemplo, está “vivo” no português, no italiano, no espanhol, no francês, etc. tem poesia mas não tem respaldo.

Por outro lado, pode-se ar-gumentar que cada uma dessas línguas está viva no uso que dela fazem determinados usuários: de um lado, por exemplo, leitores e estudiosos de Homero ou de Oví-dio, de outro lado, por exemplo, comunidades religiosas, e para ilustrar aí está o latim no Vatica-no, ou em ritos católicos, assim como estão, por exemplo, o copta e o aramaico em ritos de países orientais. Na verdade, de um ponto de vista científico, nada disso é “uso” linguístico, tópico que desenvolvo adiante.

Outra questão pertinente na discussão é o fato de que tais lín-guas não estão historicamente inseridas, e lhes falta, pois, pelo menos um dos três componentes que Coseriu (1992) nos ensina a considerar, quando ele explicita a natureza da linguagem. Como ensina Coseriu, o homem “fala” (usa a linguagem) por estas razões determinantes: porque ele tem a

competência linguística, ou seja, a capacidade natural de produzir linguagem ( “pode falar” uma lín-gua); porque ele tem o conheci-mento de uma língua particular historicamente inserida (“sabe falar” uma língua); porque ele tem uma situação de uso, ou seja, um evento comunicativo (“pro-duz” discurso em uma língua).

Na verdade, do latim temos de dizer que não somente lhe fal-ta o estatuto de língua oficial de uma nação. Falta-lhe o estatuto de língua cuja ativação se opere em um contexto de inserção na-tural de falantes pactuantes de uma atividade linguística exerci-da em contexto de inserção his-tórica comum.

Entretanto, temos de con-vir que o rótulo “morta” para o latim é extremamente infeliz. O latim não é uma língua suscetível a mudanças, mas também não é uma língua enterrada e sepulta-da junto com falantes derradeiros que com ela sucumbiram no es-quecimento.

Opto, pois, por uma proposta de que o eixo a ser estabelecido é língua viva vérsus língua extinta, o que leva à paradoxal conclusão de que, no caso, morta não é o antônimo de viva. Se me permi-tem!

Maria Helena De Moura neVes

MARIA HELENA DE MoURA NEVEs é ProFes-sora De linguistica Da uniVersiDaDe Presbiteriana MacKenzie e Da unesP

39

Articulando

Page 40: Latim, a história de um clássico

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

É impossível afirmar quando foi que o latim deixou de ser latim para se tornar portu-

guês, francês, italiano, espanhol e todas as suas demais línguas filhas. O processo de mudança demorou séculos e só ocorreu porque muda-ram, também, os povos vizinhos, os conquistadores, as necessidades etc. Uma coisa, porém, é certa: o latim evoluiu e deixou uma carga hereditária de vocábulos em cada um de seus descendentes.

Cerca de 80% do léxico usado pelos falantes de língua portugue-sa vem do latim. Muito desse total é fruto de um período em que o idioma era falado pelos agriculto-res da região do Lácio – situada na parte central da atual Itália –, por volta do século VIII a.C. Mas as palavras dessa época não ficaram restritas ao meio rural (veja box). Algumas perderam seu sentido ori-ginal – que, hoje, passa desperce-bido – e tomaram outros rumos.

O português também carrega, no seu léxico, marcas do grego, trazidas através do latim. Quando os romanos invadiram a Grécia,

em 146 a.C., a cultura desse país teve livre entrada no território conquistador. Muitas influências vieram dos escritores gregos e sua literatura. Mas a maior parte dos vocábulos agregados ao la-tim remete ao cotidiano do povo, como: aer (ar), amphora (ânfora), spathula (colher), gubernare (di-rigir um navio), oliva (azeitona), oleum (óleo), punire (punir) etc. As vogais e consoantes latinas foram outro resquício do grego, cujo próprio alfabeto já havia sido transformado com base naquele usado pelos fenícios.

Assim como os gregos, o povo etrusco, que povoava a região nor-te da Itália, também emprestou palavras ao latim. Cisterna, lan-terna, catena (corrente), persona (máscara de teatro; mais tarde, pessoa)e servus (servo) são algu-mas das influências mais visíveis. O gaulês, de origem céltica, fez outros acréscimos, como em car-rus (carroça de quatro rodas), bec-cus (bico), cambiare (trocar) etc.

Todo esse léxico mesclado era levado pelos soldados romanos durante suas incursões pelo Im-pério. A província da Lusitania, região onde nasceu Portugal, não resistiu ao idioma dos invasores, e foi somando as novas palavras ao vocabulário que já possuía. As transformações lexicais foram ine-vitáveis, já que do século II a.C., quando foi conquistado, até o sé-culo VIII, o território português sofreu invasões germânicas e, du-rante 500 anos, foi também ocu-pado pelos árabes.

Uma das formas através da qual a mudança foi sentida foram

as evoluções fonéticas, a partir do século IX. As letras ele e ene, por exemplo, caíram em desuso em certas palavras latinas: diabolu (diabo), dolor (dor), luna (lua), tenere (ter), volare (voar). Tal transformação caracterizou o por-tuguês, diferenciando-o do latim e de outras línguas românicas – em espanhol e francês, as consoantes permaneceram nos mesmos vocá-bulos.

A evolução de sons continuou diferenciando a língua portuguesa das demais. As formas de pl, cl e fl , em palavras latinas, assumiram uma nova roupagem: o ch. Os exemplos são vários: pluvia (chu-va), clamare (chamar), clavem (chave), plorare (chorar), plenus (cheio), flamma (chama) etc. A forma originalmente latina tam-bém existe no português, indican-do sinônimos, como em pluvial, clamar e plenitude.

Muitas palavras da forma clás-sica do latim perderam lugar para as mais populares, embora tenham sobrevivido em certos vocábulos. Mar, por exemplo, era chamado de aequor, na versão mais culta, ou mare, na mais comum. O pri-meiro modelo foi esquecido, como mostra a semelhança dos vocábu-los. Mas aquático, por exemplo, resistiu. Outro caso é o do animal cavalo, dito equus e caballus. Pre-dominou, no nosso vocabulário, a segunda forma, mais popular. Mas referente à primeira, tem-se equi-tação, que guarda a história no seu étimo.

O vocábulo étimo, por sua vez, não veio do latim. Foi mais um em-préstimo do grego (étumus, verda-

As semelhanças le-xicais não permitem disfarçar que a língua portuguesa é fruto das transformações e influências sofridas pelo latim durante sé-culos

Mutações da língua

Por Mariana Hilgert

40

Page 41: Latim, a história de um clássico

EM LATIM

Cernere (verbo)

Legere (verbo)

Putare (verbo)

Delirare (verbo)

Rivalis (adjetivo)

Pauper (adjetivo)

Felix (adjetivo/antônimo de pauper)

Luxus (adjetivo)

Pagina (substantivo)

Versus (substantivo)

Fonte: A aventura das línguas no ocidente, de Henriette Walter - Ed. Mandarim, 1997

Direto do campo

PRIMEIRO SENTIDO

peneirar

colher > legere oculis >colher com os olhos

podar

sair do sulco (do arado)

Quem tinha direito ao mesmo rivus, ou curso de água

Referente aos produtos que forneciam pouco

Referente àquele que produz (fértil); favorecido dos deuses

Em excesso na colheita; teve sempre sentido pejorativo no latim

Fileira de vinha que formava um retângulo >página do papiro> página com uma coluna por folha

A virada do arado no fim do campo> linha de escrita que se repete como os sulcos no campo> verso poético

EM PORTUGUÊS

distinguir

ler

contar

delirar

rival

pobre

feliz

luxo

página

verso

Mutações da línguadeiro) que resistiu aos sé-culos e às influências cul-turais. No português, ela é normalmente associada ao sufixo – também grego – logia (estudo), dando ori-gem à etimologia, ciência responsável por pesquisar a histórias das palavras.

Aos etimólogos cabe a descoberta da língua. Fo-ram eles que desvendaram as transformações fonéticas e a identificação das formas culta e popular do latim. Eles descobriram, tam-bém, que palavras distintas (como desenhar, designar e design) podem ter o mesmo étimo (designare); que, se terminadas em -us no latim, as palavras ficam com o fim em -o (romanus – romano) no português; se terminam em -bilis, viram -vel (per-ceptibilis – perceptível); se acabam em -tas, viram -dade (caritas- caridade); se em -ens, passam a finalizar com -nte (gens – gente).

Saber de onde viriam as palavras instigou Isidoro de Sevilha, bispo da cidade es-panhola e responsável por descobertas na área duran-te a Idade Média. Ele foi o autor de Etymologiae, con-junto de 20 livros, cada um representando uma área e as etimologias das palavras pertencentes a cada uma delas.

Muitas dessas descober-tas não tinham um emba-samento científico – eram

h ipóteses fantasiosas, p r o b l e -ma que acompa-nha os etimólogos até hoje.

41

STOCKXCHNG

Page 42: Latim, a história de um clássico

Camu� ado em meio à língua portuguesa e escondido entre palavras e expressões, o latim é imperceptível para quem não o conhece. Mas encontrá-lo perdido por aí não é tarefa difícil – só exige um pouco de atenção e curiosidade

Onde estáo latim?

ÔnibusVeio da expressão latina omnibus, que quer dizer “para todos”.

Homo SapiensExpressão que signi� ca “homem que sabe”. Desde 1758, quando foi men-cionada pela primeira vez, a expres-são é usada cienti� camente, para denominar o ser humano.

Lápis

No latim, lapis sign� ca “pedra”. Do italiano, teria agregado o sen-tido de uma ferramenta que pos-sui uma pedra com cor, o gra� te.

Moeda

Na Roma antiga, as moedas eram fabricadas ao lado do tem-plo da deusa Juno. Certa vez, os gansos que � cavam ao redor de seu templo teriam avisado, com seus grasnados, aos romanos, acerca de uma invasão dos gau-leses. Como monere, em latim, é advertir, um dos epítetos de Juno passou a ser Moneta. Em sua homenagem, as moedas co-meçaram a ser assim chamadas, originando também a palavra money, no inglês.

I.N.R.I.

Fixada na cruz de Cristo, a ex-pressão está em latim: Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum. No latim, não havia a consoante “j”. Em português, foi traduzida por Jesus Nazareno, Rei dos Ju-deus.

Armário

Do latim, armarium, que, a principio, era o local onde se guardavam armas. Mais tarde, passou a ter o senti-do atual, de guarda-roupa e prateleira.

PS.

Abreviação de Post Scriptum, que signi� ca, literalmente, “es-crito depois”. É usada ao � nal de cartas ou documentos para acrescentar uma informação.

ETC.

Abreviação de et cetera, que quer dizer “e as demais coisas”.

Et

cete

raRE

VIS

TA L

ÍNG

UA

POR MARIANA HILGERT INFOGRAFISTA: ÍTALO MENDONÇA ILUSTRADOR: EDISON PATTO

Page 43: Latim, a história de um clássico

Cur r iculum VitaeLiteralmente, curriculum quer dizer “corrida ou lugar onde se corre”, enquanto vitae signi� ca “da vida”. Dessa soma, vem o sentido atual da expressão, que indica o conjunto de ações, estudos e trabalhos de uma pessoa durante sua vida.

A.M. / P.M.

Trazidas pelo inglês, as expres-sões estão em latim, indicando o período anterior ao meio-dia (ante meridiem) e posterior (post meridiem)

Carpe DiemAparece no poema homônimo do poeta romano Horácio, escrito no século I a.C.. A tradução ainda gera discussão, mas, em portu-guês, sua versão mais comum é “aproveite o dia”.

Aranha

A palavra em latim aranea, que deu ori-gem à “aranha”, vem, na realidade, do grego arákne. Esse vocábulo, por sua vez, tem origem na mitologia grega. Aracne era uma bordadeira que, com a sua arte, teria desa� ado a deusa Atená (correspondente a Minerva, para os romanos). Tendo uma reles humana feito trabalho tão belo, a deusa, fu-riosa, teria suspendido a moça no ar, trans-formando-a numa aranha e condenando-a a tecer pela eternidade.

Quarto

Ainda na época da antiga Roma, indicava o quarto (ori-ginalmente, quartu) da casa – no sentido numérico de ¼ – onde se dormia. Os outros três aposentos eram a cozi-nha e duas salas: a de visita e a de refeição. Banheiro, só o público.

FAX

Fax veio do inglês, mas é, na realida-de, uma abreviação da expressão fac simile, que quer dizer “faça de ma-neira semelhante”.

Álbum

A tábua branca sobre a qual � xavam normas e atos do governo romano era chama-da de album. O motivo era, justamente, a sua cor – em latim, album também signi� -ca “branco”. Com o tempo, a palavra mudou seu senti-do: foi nome de catálogo de santos, de livro no qual eram escritos ideias, passando a designar, atualmente, um conjunto de elementos, seja de música, de fotos etc.

Aquário

A princípio, servia para designar um tanque de água – palavra proveniente do latim aqua. Apenas no século XIX é que o sentido dele passou a se rela-cionar a peixes.

LenteNos primórdios, a palavra signi� cava “lentilha”. Com o tempo, mudou de sentido e, devido à sua forma, foi as-sociada à lente dos óculos.

ÓculosVeio de oculu, que originou olho e óculo, instrumento como uma luneta, que auxilia na visão. Óculos é, ape-nas, o plural, que deve sempre con-cordar em número com o pronome: os meus óculos e, não, o meu óculos.

Aedes aegyptiO popular mosquito da dengue tem a ori-gem do seu nome no grego e no latim. A palavra grega Aedes signi� ca “odioso”, enquanto aegypti, do latim, quer dizer “do Egito”.

Page 44: Latim, a história de um clássico

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi

Finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios

Tentaris numeros. Ut melius quidquid erit pati!

Seu plures hiemes, seu tribuit Jupiter ultimam,

Quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare

Tyrrhenum, sapias, vina liques et spatio brevi

Spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida

Aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.

CARPE DIEMOde (I, XI) Horácio, séc. I

Inuida (adjetivo feminino triforme (uma para cada gênero: inuidus, a, um)/ singular /nominativo): inve-josoOs adjetivos qualificam os substantivos e devem concordar com eles em gênero, número e caso. Nes-se caso, inuida concorda com aetas, substantivo a que se refere: feminino, singular, nominativo.

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Para iniciantesNoções básicas da gramática latina

Como no português, as palavras no latim podem ser invariáveis ou variáveis. Ao primeiro grupo pertencem as conjunções, interjeições, preposições e a maioria dos advérbios. Do segundo, fazem parte os verbos e os no-

mes (adjetivos, numerais, pronomes e substantivos).As peculiaridades da língua começam pela forma que essas palavras podem assumir dentro de um texto.

No latim, os nomes declinam. Isso quer dizer que

Dum (conjunção): enquanto

Elementos invariáveis, as conjunções servem para ligar

palavras e orações. Dum é um exemplo de conjunção su-

bordinativa temporal, responsável por conectar as frases

separadas – neste verso – pela primeira vírgula, atribuin-

do um sentido de simultaneidade aos eventos.

Loquimur (verbo depoente/1ª pessoa do plural/ pre-

sente do indicativo): falamosOs verbos depoentes têm uma roupagem de voz pas-

siva, mas exprimem um sentido de ativa. No Portu-

guês, podem ser comparados com estruturas do tipo:

é um homem viajado, em que a voz passiva tem sen-

tido de ativa.

(verbo depoente/1ª pessoa do plural/ pre-

Fugerit (3ª conjugação/ 3ª pessoa do singular / preté-rito do futuro): terá fugido.

que se refere: feminino, singular, nominativo.

Carpe (3ª conjugação/ Imperativo afirmativo / verbo transi-

tivo direto / 2ª pessoa do singular): aproveita.

A 3ª conjugação – flexão referente aos verbos – não tem

uma vogal temática, mas possui vogais de ligação variáveis,

responsáveis por conectar o tema à desinência - terminação

que indica número, tempo e pessoa do verbo. Carpe está

conjugado na forma do imperativo afirmativo. Se estivesse

na 2ª pessoa do indicativo presente, seria carpis, sendo o i,

uma vogal de ligação.

Por Mariana Hilgert

STOCKXCHNG

Page 45: Latim, a história de um clássico

Tu não procures, conhecer não deves, o fi m que a mim,

a ti concederam os deuses, ó Leucone, nem experimentes os

números babilônicos. Melhor sofrer o que quer que seja! Seja muitos invernos, seja o último

que Júpiter concedeu, e que agora o mar Tirreno quebra con-

tra os rochedos, sejas sábia, fi ltres os vinhos,

e pelo curto espaço de tempo suprimas qualquer longa esperança.

Enquanto falamos, o tempo invejoso foge: aproveita o dia,

muito pouco crédula no que virá.

APROVEITA O DIATradução de Mauri Furlan

Minimum – é o super-

lativo no gênero neu-

tro do adjetivo paruus,

a, um. O superlativo

latino pode ser re-

forçado, entre outros

modos, pelo advérbio

quam: quam minimum

- muito pouco.

Credula (adjetivo/ feminino/ singular/ nominativo de cre-dulus, a, um): crédula, fácil de acreditar

dulus, a, um): crédula, fácil de acreditar

Diem (5ª declinação/ acusativo/ singular mascu-

lino ): dia

A 5ª declinação possui o menor número de pa-

lavras, sendo a maior parte delas feminina. Dies

é um caso especial, pois pode significar ambos

os gêneros. O que irá diferenciar é o sentido da

palavra no texto – se indicar dia marcado será

feminino; caso contrário, masculino. O genitivo

será marcado pela terminação –ei, sendo o e ,

sua vogal temática. No dicionário, é encontrado

como dies, ei.como dies, ei.

Postero (ablativo/ singular/

masculino,por referência a

diem/ adjetivo de posterus, a,

um): que vem depois, poste-

rior, seguinte.

eles podem tomar formas diferentes conforme a função sintática que exercem – por isso que a posição deles na frase não faz diferença. Existem, no total, seis formas di-ferentes, todas possuindo correspondentes no português. Cada uma delas é chamada de caso. Além da função, gênero (masculino, feminino e neutro) e número (plural e singular) também fazem com que os vocábulos se mo-difiquem.

Todas essas características são armazenadas numa terminação específica ao fim da palavra. Por conseguir resumir tanta informação em tão pouco espaço, a lín-gua latina é sintética - diferentemente do português, um idioma analítico. Por isso que, em latim, é possível se di-zer multa paucis: muitas coisas em poucas palavras.

Abaixo, observe a análise sintática feita a partir do último trecho do texto de Horácio, Carpe Diem.

CredulaCredula (adjetivo/ feminino/

Quam (advérbio): quão

um): que vem depois, poste-

Aetas (3ª declinação/ nominativo/ singular / feminino): tempoA 3ª declinação é a mais complexa e irregular. Em comum, seus substan-tivos possuem a terminação is do genitivo. Cada declinação possui uma vogal temática que, ligada ao radical da palavra, dará origem ao tema da palavra. Mas a 3ª é conhecida como consonantal – seus vocábulos não possuem vogal temática, com exceção de um pequeno grupo de vogal i. Para saber a qual declinação pertence uma palavra, é preciso descobrir sua forma no genitivo. Por isso que, no dicionário, ela aparece assim: aetas, atis (forma no nominativo, seguido de seu genitivo).

STOCKXCHNG

MARIANA HILGERT

Page 46: Latim, a história de um clássico

Os registros escritos e as obras literárias de au-tores originalmente latinos são a única fon-te de informação sobre a estrutura da língua

dos antigos romanos. Para compreender tais textos, o dicionário bilíngue é uma ferramenta imprescindí-vel, tanto para tradutores profissionais, quanto para estudantes iniciantes. O problema é quando ele se torna, em vez de solução, um obstáculo.

Com o intuito de diagnosticar as maiores dificul-dades que os dicionários criam para alunos iniciantes da língua, Giovanna Longo, da Universidade Esta-dual Paulista (Unesp-Araquara) defendeu, em 2006, a dissertação Ensino de latim – problemas linguísti-cos e uso do dicionário. Segundo a pesquisadora, a questão da língua clássica é bastante peculiar: “Para quem está diante de um dicionário de uma língua antiga como latim (...), todas as informações que visam à produção de discursos na língua, geralmen-te fornecidas pelos dicionários bilíngues, não têm a mesma relevância que no dicionário de um idioma moderno”, explica.

A maior diferença se deve ao fato de o latim ser uma língua flexional e, também, por ter sido usada há mais de 2 mil anos. “Uma descrição linguística do idioma passa a exigir, desse tipo de obra [os dicioná-rios], soluções que de algum modo permitam reduzir as distâncias estabelecidas pelas diferenças linguís-ticas e culturais existentes entre essa língua antiga e os idiomas modernos”, explica Longo. Mas não é bem isso o que acontece.

Como todos os dicionários disponíveis hoje foram elaborados de forma padrão, todos eles apresentam

dificuldades comuns. “As soluções encontradas pe-los dicionaristas de tradição impõem inúmeras bar-reiras à consulta, dificultando desde a localização do verbete, até a compreensão do significado do item”. Manejar bem o dicionário é, por isso, premissa para compreender um texto em latim. Ou chegar perto disso.

A saga para encontrar um vocábulo no dicionário Latim-Português começa pela identificação da pala-vra. Ainda usando o poema de Horácio, peguemos o substantivo diem para dar início à procura no Di-cionário escolar latino português (6ª edição – 1992), de Ernesto Faria.

Em busca do vocábulo perdidoAchar qualquer palavra num di-cionário latino - português exi-ge, mais do que curiosidade, um bom conhecimento de gramática das duas línguas

Et

cete

ra

Por Mariana Hilgert

46

Page 47: Latim, a história de um clássico

No dicionário, os nomes apre-sentam duas formas:1. dies = nominativo2. diei = genitivo(ei é a marca do genitivo)

Primeiro passo

Se procurarmos pela palavra diem (abaixo) no dicioná-rio, não a encontraremos, o que denuncia a sua forma decli-nada . Para descobrirmos a qual declinação ela pertence, é preciso verificar a sua função sintática. Como complemen-to direto do verbo carpe (página seguinte), que quer dizer aproveitar, conjugado na segunda pessoa do singular, do imperativo afirmativo, ela será um objeto direto, correspon-dendo, no latim, ao caso acusativo. Com base na tabela de declinações, vemos que duas declinações têm terminação -em no seu acusativo: a 3ª e a 5ª.

Observação: Longo acredita que “a baixa probabilidade de correspondência entre a variante encontrada no texto, que motiva a busca, e aquela pela qual há de ser procura-da, é o grande obstáculo que se impõe à consulta”. Para a pesquisadora, a superação dessa barreira está ligada ao processo de aprendizado, demandando tempo.

Segundo passo

No dicionário, um substantivo sempre vai estar na sua forma de nominativo, seguido da terminação de genitivo. No caso de diem, não é possível dizer qual seria a forma de nominativo, se ele for de 3ª declinação, pois há variações. Caso seja de 5ª, terá a forma dies. Observe a tabela na página seguinte.

Observação: Para falantes de línguas neolatinas, a iden-

tificação do nominativo é mais fácil em virtude da seme-lhança que há entre os vocábulos dos idiomas. Como lem-bra a pesquisadora, “é no léxico que se reflete, de maneira mais expressiva, a história externa de uma língua, isto é, a história de seus contatos culturais”.

STOCKXCHNG

Page 48: Latim, a história de um clássico

Et

cete

ra

O dicionário apresenta, tam-bém, sinais diacríticos: braquia (˘ ), indicando uma vogal breve; macro (- ), indicando uma vogal longa (dois tempos

de uma breve)

Neste dicionário, os verbos são apresentados de cinco formas:1a pessoa Pres. Indic.: carpo2a pessoa Pres. Indic.: carpisInfinitivo: carperePretérito Perfeito: carpsiSupino: carptum

Terceiro passo

Indo direto ao dicionário, encontraremos a palavra dies, ei. Sabemos agora, que ela pertence à 5ª declinação, pelo seu genitivo. Mas se tivéssemos uma palavra já no genitivo e quiséssemos descobrir a sua forma no nominativo, seria preciso identificar o tema da palavra.

Formado pela vogal temática, diferente para cada uma das declinações, e pelo radical, que sempre vai pertencer ao nome, o tema permite perceber que a irregularidade das palavras é só aparente, já que, por trás, há uma estrutura solidificada.

Para encontrar o tema, a palavra deve ser colocada no genitivo plural. Dies, por exemplo, viraria dierum. A partir disso, se retira a desinência do caso e da declinação (-rum = genitivo da 5ª). Temos, assim, die (radical di + vogal te-mática e), base da palavra que, independente da forma que essa tomar, estará sempre presente.

Observação: Quando se vai em busca de outras formas que não o nominativo, pode ocorrer uma confusão por cau-sa dos cortes da palavra. No caso de dies, -ei, um estudante iniciante poderá pensar que a forma de genitivo é diesei. Com os verbos, a confusão também pode ocorrer. No dicio-nário, eles são sempre apresentados na forma de primeira pessoa do singular, mas, na tradução, o sinônimo é dado a partir do infinitivo, como no caso do verbo diffamo, encon-trado no dicionário logo abaixo de dies.

Quarto passo

Depois de encontrar a palavra, é preciso entender o seu significado dentro do contexto. O maior problema com re-lação à palavra diem diz respeito ao gênero, que pode ser masculino ou feminino, conforme o sentido da frase. Mas, para a tradução, o dicionário apresenta sinônimos seme-lhantes, o que não dificulta muito a compreensão.

Observação: No caso do verbo carpo, a situação é ou-tra. Mauri Furlan, tradutor do poema acima, optou pelo sentido de aproveitar. Embora questionado, Furlan justifica sua escolha. “Traduzir é interpretar. Se você for traduzir lite-ralmente, você vai produzir um texto incompreensível”.

Realmente, se a palavra for versada para o português a partir de algum dos significados apresentados pelo dicio-nário, a frase ficaria sem sentido. Afinal, entre colher, arran-car, consumir e censurar – algumas das opções dadas – há muita diferença. Por essa razão, Longo questiona: “Como é possível, através da leitura do texto, garantir um melhor en-tendimento daquela civilização antiga, se o que se encon-tra no dicionário é uma lista numerosa de sinônimos que parece em nada se comprometerem com a cultura do povo cujas experiências foram expressas através da língua?”.

48

Page 49: Latim, a história de um clássico

rev

ista

lín

gu

ar

evis

ta l

íng

ua

1a declinaçãoSingular Plural

NominativoGenitivoAcusativoDativoAblativoVocativo

-a-ae-am-ae-a-a

-ae-arum-as-is (-abus)-is (-abus)- ae

2a declinaçãoNominativoGenitivoAcusativoDativoAblativoVocativo

-us, -er, -ir/ -um-i-um-o-o-e, -er, -ir/ -um

-i/ -a-orum-os/ -a-is-is-i/ -a

3a declinaçãoNominativoGenitivoAcusativoDativoAblativoVocativo

variável-is-em (-im)/ variável-i-e (-i)variável

-es (-is) -a (-ia)-um (ium)- es (is)/ a (-ia)-ibus-ibus-es (-is)/ -a (-ia)

4a declinaçãoNominativoGenitivoAcusativoDativoAblativoVocativo

-us/ -u-us-um/ -u-ui/ -u-u-us/ -u

-us/ -ua-uum-us/ -ua-ibus (-ubus)-ibus (-ubus)-us/ ua

5a declinaçãoNominativoGenitivoAcusativoDativoAblativoVocativo

-es-ei-em-ei-e-es

-es-erum-es-ebus-ebus-es

Gramática de bolsoPara declinar

Para identificar

•Ausência de artigos•Três gêneros: masculino, feminino e neutro.•Numa frase, as palavras podem mu-dar de posição, já que o sentido se dá por causa das terminações e não pela função dos vocábulos, como no portu-guês.•As palavras podem tomar formas di-ferentes. O conjunto dessas variações é chamado de declinação.•O latim tem cinco declinações. •Cada declinação possui seis casos, com correspondências no português: nominativo (sujeito) acusativo (objeto direto), genitivo (complemento nomi-nal), dativo (objeto indireto), ablativo (complemento verbal) e vocativo (cha-mamento).

Fonte (Box e Tabela): Mauri Furlan - Legenda Roma, Universidade Fe-deral de Santa Catarina/2008

O latim exige daquele que o estuda muita atenção às regras gramaticais. Por isso, selecionamos e re-sumimos alguns dos seus elementos mais importan-tes numa só página. Re-corte-a e leve-a com você

Por Mariana Hilgert

Page 50: Latim, a história de um clássico

Gramática de bolso

Dobre aqui

Dobre aqui

revista língua

L NGUAport

uguesa

EspEcial latim

Um prEsEntE dE

Page 51: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

Maria Helena De Moura

rev

ista

lín

gu

a

O latim e suas filhasAs línguas românicas ou

neolatinas são dez: por-tuguês, espanhol, ca-

talão, francês, provençal, sardo, reto-românico, italiano, dalmá-tico (hoje já extinto) e romeno. Os idiomas românicos represen-tam uma etapa qualitativamente nova do latim. As transformações que levaram ao aparecimento das línguas neolatinas se deram paulatinamente.

O latim pertence à grande fa-mília das línguas indo-europeias. As conquistas romanas, ao lon-go de três séculos, converteram a língua de Roma em língua ofi-cial de um vasto império. No en-tanto, o domínio militar não se confunde necessariamente com a romanização linguística, que só ocorreu com a implantação do latim dos centros urbanos às localidades rurais.

Ao exército seguiam mer-cadores, funcionários, coloni-zadores. Todos falavam latim e impunham-no às populações dominadas: as transações econô-micas e os atos da administração se faziam em latim, jovens eram incorporados às legiões romanas e lá se valiam do latim para a comunicação... O latim que fala-vam, no entanto, não era o latim clássico, língua da literatura, do senado, da escola, da adminis-tração, etc., mas o latim vulgar,

conjunto de variedades popu-lares, utilizadas na conversação corrente, na esfera familiar. O la-tim vulgar, sofrendo menos pres-sões homogeneizadoras, era mais suscetível de inovações. Todas as línguas variam de região para re-gião, de grupo social para grupo social, de geração para geração e, por isso, todas mudam. Além disso, houve a ação do substrato sobre o latim, ou seja, das línguas das populações que adotavam o latim, assim como acontece, quando aprendemos uma nova língua e a língua que usamos ha-bitualmente interfere na língua que adquirimos mais tarde.

A evolução interna do latim vulgar e a ação do substrato fo-ram agindo no sentido de uma dialetação (criação de variedades regionais) da língua de Roma. No entanto, enquanto se conservou a unidade econômica, política e administrativa do império, houve uma relativa unidade linguística. Quando se rompe a organização político-social, que culmina com a queda do império romano (em 476 no Ocidente e em 610 no Oriente), os fatores de unificação do latim vulgar se enfraquecem, e se multiplicam e se fortalecem os elementos de diversificação. Di-minuem as influências exercidas pelo centro do império sobre sua periferia, organiza-se uma vida

social independente de Roma e, depois da invasão dos chamados bárbaros, criam-se reinos germâ-nicos independentes. Quando as diferenças no latim falado nas di-versas províncias se tornam sig-nificativas, estamos em presença das línguas românicas.

Quando essas línguas subs-tituíram o latim? Não se pode precisar com exatidão, porque as mudanças linguísticas são con-tínuas. Sabe-se, porém, que isso deve ter ocorrido por volta dos séculos VIII e IX.

Inúmeras classificações das línguas românicas foram fei-tas, com base em dois critérios: as semelhanças linguísticas e a distribuição geográfica. Para classificar línguas, o melhor é o primeiro, baseado em identi-dades e diferenças de natureza estrutural. Por isso, parece mais acertado dispor as línguas româ-nicas em dois grupos: o oriental (romeno, dalmático e italiano) e o ocidental (todos os demais idiomas neolatinos).

José luiz Fiorin

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

José LUIZ FIoRIN é ProFessor De linguistica Da usP e autor Do liVro eM busca Do sentiDo: estuDos DiscursiVos

Articulando

L NGUA

51

Page 52: Latim, a história de um clássico

Como língua rústica que era nos primórdios de Roma, o latim, nas suas primei-

ras manifestações escritas, nada tinha de literário. Representado em inscrições antigas, algumas remontando ao século VI a.C., foi útil, apenas, a pesquisas filoló-gicas e linguísticas. Somente com a conquista de Tarento (272 a.C.) – centro helênico situado ao sul da Península Itálica – pelo Impé-rio Romano, é que nasce uma li-teratura de nome latino, com jeito grego e precocemente desenvolvi-da.

A primeira obra efetivamente latina foi uma tradução – feita, ironicamente, por um grego. Ven-dido como escravo aos romanos, Livio Andronico traduziu o texto de Homero, Odisseia, para o la-tim, abrindo caminho para outros autores. Todos foram influencia-dos pela Poesia, Epopeia e pelo Drama, gêneros literários já bem desenvolvidos na terra vizinha e que serviram, nesse período ini-

cial, de inspiração e molde para as obras latinas.

Dizer que os romanos segui-ram a tendência literária grega não quer dizer, para o historiador Mario Curtis Giordani, que eles a copiaram. “[Eles] não só assimila-ram as obras literárias gregas, mas souberam dar-lhes um cunho pró-prio de um caráter nacional”, ob-serva o autor de História de Roma (1979). Uma das marcas desse na-cionalismo foi a sátira, classificada por Lucilius (180-103 a.C.), seu criador, como um gênero original e capaz de se adaptar a uma diver-sidade de assuntos.

Nas cerca de 30 obras que pro-duziu, o autor imprimiu sua von-tade de criticar e ridicularizar a sociedade, as coisas e as pessoas da época – temática inexistente entre as produções, até então.

Mas antes mesmo do nasci-mento de Lucilius, outros autores já tentavam marcar suas obras com as peculiaridades do povo la-tino. Autor de comédias teatrais, Plauto (250? – 184? a.C.) foi um deles. Apesar de sempre ambien-tar suas histórias e temáticas em cenários gregos, ele insere divin-dades latinas nos seus textos e mescla os nomes gregos dos per-sonagens com características bem típicas dos romanos.

Cem textos são atribuídos ao comediógrafo, embora a vera-

cidade de alguns seja contestada. Dentre eles, A Marmita (em latim, Aulularia) é um dos mais conhecidos – não tanto pela sua história, mas pela repercussão que teve. Jean-Bap-tiste Poquelin, sob o pseudônimo de Mo-lière, escreveu a obra O Avarento (1668) a partir daquela de Plauto. Não foi o único – no Brasil, Ariano Suassu-na fez de A Marmita, uma inspira-ção para sua cômica peça O Santo e a Porca.

Os textos de Plauto também repercutiram nos estudos do latim por serem uma das poucas fontes da versão popular – ou vulgar, por ser falado pelo vulgus (povo) – do idioma. Mas a literatura latina, na sua forma preponderante, se vin-cula mais ao latim erudito, clás-sico, em que forma e estética são importantes para a construção do texto. Seu ápice se deu na época em que foram escritos os registros históricos mais significativos do Império.

Como representante desse pe-ríodo, Julio César (100-44 a.C.) deixou um grande legado de obras de caráter histórico. Como fruto da própria experiência que teve ao

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Presente de gregos

(em latim, ) é um dos

mais conhecidos – não tanto pela sua história, mas pela repercussão que teve. Jean-Bap-tiste Poquelin, sob o pseudônimo de Mo-lière, escreveu a obra

(1668) a partir daquela de Plauto. Não foi o único – no Brasil, Ariano Suassu-

A Marmita, uma inspira-A Marmita, uma inspira-A Marmitação para sua cômica peça O Santo

A literatura romana deve muito de seu es-tilo, história e propa-gação à influência da cultura helênica

Por Mariana Hilgert

52

STOCKXCHNG

Page 53: Latim, a história de um clássico

liderar as tropas romanas du-rante as conquistas territo-riais, César escreveu Comen-tários sobre a guerra da Gália, compêndio de oito livros, e Comentários sobre a guerra civil, composto por três obras.

A morte de César se deu um ano antes à de outro gran-de representante da época. Marcus Tullius Cicero (106-43 a.C.) ou apenas, Cícero, despontou em Roma como orador. Seus discursos eram marcados por uma linguagem excessivamente pomposa, em-bora sensível e com o claro ob-

jetivo de persuadir. As 56 obras que sobreviveram até hoje são referência de uma literatura latina madura e de um latim no ápice da sua pureza.

Poucos anos depois de Cíce-ro, a literatura latina começa a rumar para um fim – apesar do surgimento de novos e reno-mados autores. O paganismo que influenciava as obras vai cedendo lugar ao cristianismo, os temas ficcionais se tornam cada vez mais recorrentes, e os vestígios literários ficam à es-pera de um novo processo de reconquista: a tradução.

Mitologia romana

Uma das maiores influências da cultura he-lênica na literatura de Roma foi a mitologia. Os mitos gregos foram “importados”, ganhando novos nomes e ingressando nas histórias e no imaginário popular.

NA GRÉCIA

AfroditeDeusa da beleza

Apolo Deus da juventude

Ares Deus da guerra

Ártemis Deusa da caça

AtenaDeusa da sabedoria

CronosDeus do tempo

DeméterDeusa da fertilidade

DionísioDeus do vinho

ErosDeus do amor

HadesDeus do mundo dos mortos

HeraDeusa do matrimônio e do parto

PosêidonDeus dos mares

ZeusPai dos deuses e mortais

Fonte: O livro completo da Mitologia Clássi-ca, de Lesley Bolton - Ed. Madras, 2002

EM ROMA

Vênus

Sol

Marte

DIana

Minerva

Saturno

Ceres

Baco

Cupido

Plutão

Juno

Netuno

Júpiter

Page 54: Latim, a história de um clássico

Et

cete

ra

Pouco adiantaria ter obras de Plauto e Cícero em mãos se não pudéssemos

compreendê-las. E pouco se com-preenderia do mundo de hoje se não fossem estas obras. É justa-mente esta a função do tradutor: permitir que a comunicação entre culturas e povos, mesmo que sécu-los de história os separem, acon-teça.

A necessidade de profissionais nesta área surgiu com o Renasci-mento (1300-1650), período de transformações marcantes na ci-vilização europeia, como a reva-lorização das línguas nacionais. O latim, apesar de ainda continuar sendo usado por alguns autores (veja box), começa a ser visto como um idioma estrangeiro e vai perdendo seu espaço.

Com o tempo, a tradução passa a ser uma tarefa que exige não só competência, mas, também, muito domínio da realidade sobre a qual se traduz, como afirma Mauri Fur-

lan, tradutor e professor de Lite-ratura e Língua Latina da Univer-sidade Federal de Santa Catarina (UFSC).“Não basta o conheci-mento da língua. O tradutor tem que conhecer a matéria que traduz e ter a habilidade de expressar o texto original, com arte, com legi-bilidade, tentando reproduzir to-dos os valores estéticos e de con-teúdo que estão presentes”.

A grande diferença entre um tradutor de alemão, por exemplo, e um de latim, é que, enquanto o idioma germânico sofre transfor-mações por estar vivo e em mo-vimento, a língua dos romanos não se modifica mais. Isso também significa que não surgirão mais au-tores latinos com o tempo. Já se sabe o que precisa ser traduzido. O problema é saber como e quem irá fazê-lo.

Durante a 2ª Jornada de Pes-quisa Literatura Traduzida, rea-lizada em 2005, na UFSC, Luiz Henrique Queriquelli analisou o perfil dos tradutores brasileiros de latim, que, segundo ele, é bastante heterogêneo, es-pecialmente por causa da lacuna de estudos da língua latina no país. Den-tro desse grupo, os que mais se desta-cam são os acadê-micos e os literatos.

O berço principal do primeiro grupo é, segundo ele, a Universi-dade de São Paulo (USP), através do Curso de Pós-Graduação em Letras Clássicas. Desde que foi criado, no início da década de 70, o curso tem formado tradutores que continuam preenchendo as prateleiras de bibliotecas com ver-sões em português de César, Cíce-ro, Plínio, Plauto etc.

Uma característica dos tradu-tores acadêmicos é, como explica Queriquelli, “buscar ao máxi-mo uma equivalência na língua-alvo das características formais e contextuais do texto na língua fonte”. Por isso, nas obras tradu-zidas por este tipo de tradutor, os textos são complexos e oferecem, normalmente, notas de ro-dapé,

sabe o que precisa ser traduzido. O problema é saber como e quem

Durante a 2ª Jornada de Pes-quisa Literatura Traduzida, rea-lizada em 2005, na UFSC, Luiz Henrique Queriquelli analisou o perfil dos tradutores brasileiros de latim, que, segundo ele, é bastante heterogêneo, es-pecialmente por causa da lacuna de estudos da língua latina no país. Den-

oferecem, normalmente, notas de ro-dapé,

Por Mariana Hilgert

Para evitartraiçõesDiferente de qual-quer outra língua, o latim não possui mais autores nativos vivos. Por isso, a sua tradu-ção exige, além de conhecimento, muito cuidado

54

STOCKXCHNG

Page 55: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

Maria Helena De Moura

rev

ista

lín

gu

a

comentando o porquê de certas traduções.

Além de integrar o corpo docen-te da Universidade de São Paulo (USP), Zélia de Almeida Cardoso é reconhecida por Queriquelli como uma profissional que se encaixa no perfil acadêmico. Tradutora de obras como Troades (As Troianas), de Sêneca, Cardoso conhece bem as dificuldades daqueles que tra-balham com o latim como a língua de partida. “Não é fácil, realmente, traduzir bem um texto latino, pe-netrar em seu sentido profundo, descobrir-lhe as nuanças, compre-endê-lo, enfim, e transformá-lo em outro texto, de outra língua, sem danificar suas especificidades”, ob-serva.

As dificuldades do outro grupo, os literatos, não diferem muito da-quelas enfrentadas pelos traduto-

res acadêmicos. É o estilo do tex-to traduzido que distingue os dois grupos. Analisando a tradução da obra Satyrikon, de Petrônio, feita pelo dramaturgo e escritor Paulo Leminski, Queriquelli aponta as marcas de liberdade desse autor. O próprio Leminski admite, ao fim de sua obra, que “entre trair Petrô-nio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair nin-guém”.

Apesar do pouco incentivo dado à área, muito já foi feito pela tradu-ção dos clássicos latinos no Brasil. “A gente pode ter uma postura de se orgulhar”, revela Furlan. “Mas a gente não pode se acomodar”. Para ele, o estudo do latim nas univer-sidades ainda é uma grande por-ta para a formação de tradutores. “Quando o MEC elimina a obriga-toriedade, ele elimina, também, a

possibilidade da formação de tra-dutores”, comenta, criticando a medida do Ministério de Educação e Cultura, que deixou, às universi-dades, a decisão de adotar, ou não, o Latim dentro dos currículos de Letras.

No caso da UFSC, há estudan-tes no quinto semestre de latim – embora seja obrigatório, somen-te, até o terceiro. Por ver que exis-te um interesse, Furlan aposta no potencial dos alunos. “Eu tento estimulá-los. Eu já estou cultivan-do uns futuros tradutores e tenho a certeza de que algum desses vai acabar se envolvendo a ponto de traduzir. De um grupo grande que começa, acaba ficando uns pou-cos que vão em frente. E são esses poucos que vão acabar traduzindo, retraduzindo e melhorando as tra-duções”.

A tradição do latim na escrita

Muitos autores continuaram fazendo uso do latim, mesmo quando as línguas orais já eram outras. Confira

Dante Alighieri (1265-1321): escreveu, em latim, De vulgari eloquentia, primeiro livro a tratar do vínculo entre os idiomas românicos. A Divina Comédia, por sua vez, foi toda escrita em toscano.

Erasmo de Roterdã (1467-1536): assinando como Desiderius Erasmus Roterodamus, o autor redigiu toda sua obra no idioma dos antigos romanos.

Nicolau Copérnico (1473-1543): revolucionou os estudos astronômicos com a teoria do movimento duplo dos planetas sobre si e ao redor do sol. Muitas de suas criações,

deixou em latim.

René Descartes (1596-1650): os primeiros livros do filósofo e matemático foram redigidos em latim.

Jean Jaurès (1859-1914): a tese do político francês, defendida na Sorbonne no fim do século XIX, foi toda em latim.

Jacques Derrida (1930-2004): ao ser recebido como Doutor Honoris Causa na Universidade de Oxford, o filósofo francês teve de escrever seu discurso em latim.

Fonte: A aventura das línguas no ocidente, de Henriette Walter - Ed. Mandarim, 1997

55

Page 56: Latim, a história de um clássico

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Como língua materna de um povo que viveu há mais de dois mil anos, o latim pare-

ce inútil e fora de moda. Por que será, então, que o próprio Google, ícone de uma geração conectada, já tem sua versão latina? Acesse www.google.com/intl/la/ e clique em Explorare Googles ope para descobrir.

A palavra latin gera, no maior site de buscas da rede, 360 mi-lhões de resultados. É ali, entre tópicos e links, que o latim vive. E vive tanto que levou o pesqui-sador Luiz Fernando Dias Pita, da Universidade do Grande Rio (Unigranrio), a escrever, em 2001, um artigo sobre o assunto.

No texto, intitulado “Latim e Esperanto, via Internet”, Pita analisa como grupos linguísticos minoritários fazem uso das ferra-mentas virtuais para sobreviver. No caso do latim, a criação de sites de debate é uma das estra-tégias mais recorrentes. O gru-po Grex Latine Loquentium é o maior exemplo online. Reunindo todos os tipos de latinistas – ama-dores, estudantes e profissionais –,

ele foi criado com o intuito de promover o idioma, se valen-do, especialmente, de listas de discus-são. Fala-se de tudo e sobre tudo. A úni-ca exigência é que as informações sejam sempre acrescentadas em latim, como adverte a Regula (–mentação!) do site.

Qualquer um pode entrar no grupo. Basta enviar um email para [email protected], com o nome numa versão latinizada.

Alguns exemplos estão na lis-ta dos integrantes do grupo, que já passam de 500: Aberlardo vira Abelardus, Dionísio passa a ser Dionysius, Marcos vira Marcus, Felipe, Phillipus e assim por dian-te.

Mas o Grex Latine não é um exemplar único. “Há, em rede, di-versos métodos de Latim com li-vre distribuição, além de cursos de língua latina oferecidos segundo as mais diferentes metodologias. Há também verdadeiras bibliote-cas virtuais, de onde se pode dis-

por dos clássicos da literatura latina”, enumera Pita.

Aprender latim via internet é algo viável, se isso depender da quantidade de material dis-ponibilizado online. Além dos

sites que permitem entrar em contato com pesquisadores do mundo inteiro, é possível estudar

a gramática e os textos a partir de métodos de ensinos pré-defini-dos. Dicionários on-line também não faltam: alguns possibilitam o acesso virtual e, outros, já vêm em versão PDF, podendo ser arquiva-dos no computador.

Do ano em que escreveu o ar-tigo até 2009, Pita analisa de for-ma positiva a evolução da internet como fonte de informação. Para ele, “[foi] o surgimento dos sites de relacionamento o fator que mais alavancou o agrupamento de pessoas interessadas no latim - e no grego, no sânscrito etc.”. O problema seria o reconhecimento desse estudo pelos profissionais da área. “O meio acadêmico vê com muita desconfiança o ensino a dis-tância – situação em que o ensino do latim se inseriria”. Essa seria

Por Mariana Hilgert

O latimconectadoAtravés da rede mundial de computado-res, é possível perceber que o estudo e o interesse pelo latim ainda vivem

56

STOCKXCHNG

Page 57: Latim, a história de um clássico

uma das razões que teria impedido, segundo o pesquisador, o “casamen-to” entre o meio acadêmico e o ensi-no de latim”.

Outro empecilho, referente à questão de aprendizagem, pode ser o próprio idioma do interessado, já que grande parte dos documentos dispo-níveis na rede está em inglês. Fran-cês, alemão e italiano são línguas que também possuem bastante material. Mas, em português, ainda não exis-tem muitas opções.

A riqueza de métodos na internet também reforça a ideia de que não foi o latim que morreu, mas, sim, as técnicas anciãs usadas para ensiná-lo. Como explica Pita, “através da in-ternet pôde esse idioma não apenas integrar seus falantes, mas também promover a renovação das práticas pedagógicas a ele relacionadas”. Pela forma como é preservado e pratica-do, ele acredita, também, que a lín-gua dos romanos pode ser classifica-da como “língua artificial”.

Na redeEncontrar um site que disponibi-

lize seu conteúdo em latim não é algo tão difícil. Além do Google, mais de

26 mil artigos encontram-se disponí-veis numa versão latinizada da Wiki-pedia – ou melhor, Vicipaedia – des-de 2002.

O site do Vaticano, local onde o latim ainda é reconhecidamente ofi-cial, também inaugurou, em 2008, uma seção intitulada Sancta Sedes. Nela, foram dispo-nibilizados textos religiosos e de papas anteriores na língua, que entra no rol das já existentes no site: inglês, francês, alemão, italiano, por-tuguês e espanhol.

Para praticar a habilidade da escuta, há quem acompanhe a transmissão semanal Nuntii Latini. Produzido na Finlân-dia, o noticiário abrange uma variedade de temas, adaptando ao latim o vocabulário que, na época dos romanos, não exis-tia. Com o mesmo intuito, a rádio alemã Bremen produz um programa com as principais chamadas do mês.

Já para aprimorar o vocabulá-rio, há, na rede, o jornal polonês Ephemeris. Além das notícias, há um cardápio extenso de áreas específicas,

como Artes, Cultura, His-tória, Opinião e até Mangá, histórias em quadrinho ja-ponesas. Tudo, sem exce-ção, em latim.

rev

ista

lín

gu

a

Latin Dictionary and Grammar Aid Idioma: inglês. Endereço: archives.nd.edu/latgramm.htm

Dicionário escolar Latim- PortuguêsIdioma: português. Endereço:dominiopublico.gov.br/downlo-ad/texto/me001612.pdf

The Latin Library Idioma : inglês. Endereço: thelatinlibrary.com/

YLE Radio 1Idioma: latim. Endereço: /www.yleradio1.fi/nuntii/

Grex Latine LoquentiumIdioma: latim. Endereço: alcuinus.net/GLL/

VicipaediaIdioma:latim. Endereço: la.wikipedia.org/wiki/Pagi-na_prima

Radio BremenIdioma: alemão. Endereço: radiobremen.de/nachrichten/la-tein/

Latin Background StudiesIdioma do site: inglês. Endereço:community.middlebury.edu/

The World of Live Latin:Idioma: inglês. Endereço:.latinitatis.com/latinitas/

Dos links rastreados pelo Google, alguns que podem ser úteis àqueles que querem se aventurar pelo latim:

Para navegar

57

STOCKXCHNG

Page 58: Latim, a história de um clássico

Por José ernesto De Vargas

rev

ista

lín

gu

a

Bati

smo

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Por maiores que sejam os reve-ses e adversidades que atingem o Latim em nosso tempo, podemos afirmar que seu destino é o de ser imortal! Nossa cultura ocidental está fundada sobre a cultura ro-mana, as grandes obras literárias sempre clamam por novas relei-turas e retraduções, muitíssimos textos científicos foram escritos em Latim durante todos os sé-culos em que foi a língua franca do Ocidente, a literatura clássica da Igreja Católica foi produzida em Latim, sua língua oficial, e as línguas modernas ocidentais, neolatinas ou não, têm origens e influências na língua dos roma-nos. É, pois, uma conditio sine qua non da existência e evolução de nossa cultura a manutenção e revivificação do Latim. E isto se dá, sobretudo, via tradução.

Se concebemos a tradução como uma “interação entre duas poéticas” (Meschonnic, 1973), entendemos que, no domínio linguístico-literário, todas as lín-guas-culturas quando se prestam à leitura e à tradução revelam-se ativas e redivivas. O Latim pode ser considerado língua morta apenas sociologicamente, no sen-tido de não possuir mais uma so-ciedade viva que o pratique. Por isso, nessa acepção, é parte, pois, da tarefa do tradutor, segundo Mounin (1963), o tornar-se um etnólogo e um filólogo. Traduzir

do Latim é, assim, revelar a vida do Latim, e na forma em que fora praticado por uma sociedade his-toricamente extinta. É fazê-lo pulsar novamente nessa forma para poder auscultá-lo com ouvi-dos contemporâneos. Esse acon-tecimento se realiza através do tradutor.

A problemática da formação de um tradutor de Latim diz res-peito, pois, grosso modo, aos se-guintes aspectos: o domínio lin-güístico das línguas de partida e de chegada, o conhecimento do tema abordado, o conhecimento cultural da época e das circuns-tâncias de cada texto, e a habili-dade poético-artística do tradutor para a reprodução na tradução de valores semelhantes aos do modelo. Esses aspectos, em geral, se desenvolvem simultaneamen-te. A questão-chave talvez seja onde, por quem e como pode dar-se essa formação.

Atualmente, no Brasil, o en-sino do Latim se restringe pra-ticamente a uns poucos cursos universitários de graduação em Língua Latina ou a disciplinas de Língua Latina em cursos univer-sitários de Letras. A qualidade desta formação, contudo, não é das piores. O que se pode lamen-tar com relação ao Latim é o pe-queno número de latinistas que se formam regularmente, aptos e voluntários a dedicarem-se à tra-

dução. Mas, poderia algo ser feito para o incremento do número de latinistas?

Em nossa sociedade capitalista técnico-pragmática, o Latim não passa de uma disciplina partícipe das antigas Humanidades, cujo valor puramente cultural não rende dividendos nem enrique-ce seus estudiosos. E as editoras, com os atuais contratos de traba-lho oferecidos, não fomentam in-teresses para o trabalho exclusivo da tradução. Os que ao Latim se dedicam fazem-no antes por dile-tantismo e formação própria. De forma que, hodiernamente tor-nou-se parte do papel dos cursos universitários de Língua Latina despertar o interesse dos alunos que buscam tal formação pro-porcionando-lhes meios para um bom aprendizado e estimulando-os a realizarem, via tradução, uma função social, a da divulgação da cultura, em nome da evolução da humanidade.

Somos, sim, frutos de nosso meio e expressão de nosso tempo. E nesse contexto, os tradutores e as traduções do Latim surgem como a chama parca mas imorre-doura da cultura que nos originou e que agora luta insegura sobre os rumos que persegue.

Problemasde tradução

Mauri Furlan

MAURI FURLAN é traDutor e ProFessor De lÍngua e literatura latina Da uFsc

Articulando

58

Page 59: Latim, a história de um clássico
Page 60: Latim, a história de um clássico

Et

cete

rar

EVIS

TA l

ÍNG

UA

Se pareba bouesalba pratalia araba,albo uersorio teneba,negro semen seminaba.

Pareciam bois:aravam um campo branco,seguravam um arado brancoespalhavam uma semente negra

L’Indovinello Veronese (Séc. IX)(A Adivinha de Verona)

STO

CKXC

HN

G

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

STO

CKXC

HN

G

Page 61: Latim, a história de um clássico

FrancÊs antigo:Pro deo amur et pro christian po-blo et nostro commum saluament, d’ist di en avant in quant Deus savir et podir me dunat, si salvarai eo cist meon fradre Karlo, et in aiudha et in ca-dhuna cosa, si cum om per dreit son fradre salver deit, en ço que il mi altresi fazet, et ab Ludher nul plait onques ne prendrai, que qui mien vueil cest mien frere Charlon em dam seit;

Português:Por amor de Deus e pelo bem comum do povo cristão e pelo nosso bem, a partir desse dia, en-quanto Deus me der o saber e o poder, eu virei em aju-da a meu irmão Carlos (Luís) em todas as coisas, como se deve ajudar a um irmão, com a condição de que ele faça a mesma coisa e eu não farei nenhum acordo com Lotário, que, pela minha vontade, seja prejudicial ao meu referido irmão Carlos (Luís).

Jurament0 de Estrasburgo (842)

O Juramento de Es-trasburgo foi pronun-ciado pelos irmãos Luiz o Germânico e Carlos o Calvo, durante a divi-são do Império de seu avô, Carlos Magno. Luiz jurou em francês anti-go, língua do irmão. O texto disputa, com a

Adivinha de Verona (à esquerda), o posto de documento mais antigo em língua românica. A Adivinha se trata de um enigma, escrito no que viria a ser o italiano. A diferença entre os dois é que apenas o primeiro tem uma data precisa.

O primeiro texto românico

STO

CKXC

HN

G

STO

CKXC

HN

G

Page 62: Latim, a história de um clássico

Et

cete

ra

O aprendiz de bruxo mais famoso do mundo ganhou, em 2003, sua primeira versão em latim. A segunda obra da série, Harry Potter e a Câmara Secreta, também foi traduzida e, desde 2007, está à venda.

Dez anos antes, Tintin já ti-nha sua versão em latim. Essa

é uma das 91 línguas que já possuem as obras do aventu-reiro.

Asterix e Obelix são ou-tros personagens que têm sua versão latina. No total, há 23 volumes já traduzidos para o idioma. Eles podem ser encon-trados em asterix-obelix.nl/.

Traduções curiosas

STO

CKXC

HN

G

Page 63: Latim, a história de um clássico

A origem das notas musiciasFoi o monge beneditino

Guido d’Arezzo (995-1050) que adotou, pela primeira vez, uma pauta de quatro linhas para re-gistrar as notas musicais.

Para criá-las, ele se baseou num hino em homenagem a São João Batista. Cada primei-ra sílaba virou uma das notas,

permanecendo iguais até os dias de hoje.

A exceção é o Ut, que, por terminar em consoante e tra-var a musicalidade, passou a ser dó. A ideia veio do maes-tro Giovanni Batista Donni, em 1640, a partir da primeira síla-ba do seu sobrenome.

UT queant laxisREsonare fibrisMIra gestorumFAmuli tuorum SOLve pollutiLAbii reatumSancte Ioannes

Hino a São João Batista

Para que possamressoar as maravilhasde teus feitoscom largos cantosapaga os erros dos lábios manchadosÓ São João

STO

CKXC

HN

G

STO

CKXC

HN

G

Page 64: Latim, a história de um clássico

Et

cete

ra

A palavra vem do latim Calendae, o primeiro dia do mês. Os meses e dias da semana vêm da mitolo-gia. Antes do cristianismo, os romanos eram pagãos, e toda sua crença era ba-seada naquela existente na Grécia. Assim, cada

deus/deusa grego tinha uma correspondência no latim – inclusive no que dizia respeito ao mito.

Com base na mitolo-gia, criou-se o calendário, que só se tornou mais se-melhante ao atual a partir de Julio Cesar (45 a.C.):

JANUARIUS: DE JANO, DEUS DE TUDO O QUE INI-CIA E QUE ENCERRA FEBRUARIUS: DE FEBRA, DEUSA DA PURIFICAÇÃO MARTIUS: DE MARTE, DEUS DA GUERRA APRILIS: NÃO SE SABE AO CERTO SE EM HOMENAGEM A AFRODITE, DEUSA GREGA DO AMOR, OU POR SER A ÉPOCA DE ABERTURA DE FLORES MAIUS: DE MAIA, DEUSA

DO FLORESCIMENTO

JUNIUS: DE JUNO, DEUSA PROTETORA DAS MULHERES JULIUS: HOMENAGEM A JULIO CÉSAR AUGUSTUS: HOMENAGEM A CESAR AUGUSTO SEPTEMBER: SÉTIMO MÊS, NA ÉPOCA EM QUE O ANO COMEÇAVA EM MARÇO; A REGRA VALE PARA OS TRÊS MESES SEGUINTES OCTOBER, NOVEMBER, DECEMBER.

Os Meses do Ano

Origens do Calendário

STO

CKXC

HN

G

STO

CKXC

HN

G

Page 65: Latim, a história de um clássico

Os dias da semana também eram, original-mente, em homenagem aos deuses. Isso permane-ceu, inclusive, em outras línguas – até mesmo em algumas que não são de

origem latina. O português foi o úni-

co idioma que manteve o feira, originária de feria. Em latim, a palavra desig-nava os dias festivos, que tinham sentido religioso.

DIES SOLIS (DIA DO SOL, O ASTRO-REI) = PRIMA FERIA = DOMINICUS DIES = DOMINGO (DIA DO SENHOR).DIES LUNAE (DIA DA LUA, QUE, DEPOIS DO SOL, ERA A LUZ MAIS VISTA PELO HOMEM) = SECUNDA FERIA

DIES MARTIS (DIA DE MARTE, DEUS DA GUERRA) = TERTIA FERIA DIES MERCURII (DIA DE MER-CÚRIO, DEUS DO COMÉRCIO) =

QUARTA FERIA

DIES IOVIS (DIA DE JUPITER, DEUS MAIS FURIOSO) = QUINTA FERIA

DIES VENERIS (DIA DE VENUS, DEUSA DO AMOR) VIROU SEXTA FERIA

DIES SATURNI (DIA DE SATUR-NO) = SEPTIMA FERIA = SÁBA-DO (DO HEBRAICO SHABBATH, QUE SIGNIFICA “REPOUSO”, DIA DAS ORAÇÕES PARA OS JU-DEUS).

A Semana

De onde vem a nossa Feira?

STO

CKXC

HN

G

STO

CKXC

HN

G

Page 66: Latim, a história de um clássico

rEV

ISTA

lÍN

GU

A

O português é uma figura

FOLII DIARII CARMENPoema do Jornal

Casus nondum plene evenitO fato ainda não acabou de acontecer manus atque iam nervosa diurnarii e já a mão nervosa do repórter

vertit in notitiam.o transforma em notícia.

Morti coniux dat uxorem.O marido está matando a mulher.

Sparsa sanguine clamat uxor.A mulher ensanguentada grita.

Fures fores arcae effringunt.Ladrões arrombam o cofre.

Coetum milites dissolvunt.A polícia dissolve o meeting.

Tradit folio calamus.A pena escreve.

Camera ex machinarum dulce melos provenit mechanicum.Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

carlos DruMMonD De anDraDe

traDuÇÃo: silVa bélKior

arte: Murilo Polla, insPiraDo na PÁgina De MarcÍlio goDoi

Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de Andrade nasceu em 1902. Anos mais tarde mu-dou-se com a família para Belo Horizonte, onde iniciou e concluiu seus estudos em Farmácia – embora, para “preservar a saúde dos outros”, como dizia, não tenha exercido a profissão.

Virou escritor, e sua obra tornou-se conheci-da não só no Brasil, mas no mundo. Seus livros já podem ser lidos em alemão, francês, inglês, italiano, sueco, tcheco e, até mesmo, latim. Para

esse último idioma, foi feita uma edição especial, intitulada Carmina drummondiana, no seu 80º aniversário. Os poemas, como o Poema do Jor-nal, foram traduzidos por Silva Bélkior, em 1982, permitindo que a obra de Drummond fosse eter-nizada, também, no idioma do Império Romano. E não é que o latim caiu bem para ele!

Para ler os textos, acesse o site do Jornal de Poesia. O endereço é http://www.jornaldepoe-sia.jor.br/.

Latim em Drummond, Drummond em latimCD

L

A

T IM

66

Page 67: Latim, a história de um clássico

67

M

Page 68: Latim, a história de um clássico

L NGUAport

uguesa