kuhn, thomas. a estrutura das revoluções científicas

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  • 1 1

    cincia

    7T

    thomas s. kuhn A ESTRUTURA

    DAS REVOLUES CIENTFICAS

    g EDITORA PERSPECTIVA

  • Prximo lanamento A Bela poca do Cinema Brasileiro Vicente Paula Arajo

    Thomas S. Kuhn iniciou sua carreira universitria como fsico terico. As circunstncias levaram-no ao estudo da Histria e a preocupaes de natureza filosfica. Trajetria incoimim, que este livro de certa forma sintetiza e que explica seu carter polivalente. Mltiplas reas, desde as exatas at as humanas , convergem para as agudas anlises, que levam o Autor, questio \ando dogmas consagrados, a ver o progresso da Cincia no tanto como o acmulo gradativo de novos dados gnosiolgicos, e sim como um processo contraditrio marcado pelas revolues do pen-samento cientfico. Tais revolues so definidas como o momento de desintegrao do tradicional numa disciplina, forando a comunidade de profissionais a ela ligados a reformular o conjunto de compromissos em que se baseia a prtica dessa cincia. Um dos aspectos mais interes-santes de A Estrutura das Revolues Cientficas a anlise do papel dos fatores exteriores Cincia na erupo desses momentos de crise e transformao do pensamento cientfico e da prtica correspondente.

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    debates

  • Coleo Debates Dirigida por J. Guinsburg

    Equipe de realizao: Traduo: Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira; Reviso: Alice Kyoto Miyashiro; Produo: Ricardo W. Neves e Adriana Garcia.

  • thomas s. kuhn A ESTRUTURA

    DAS REVOLUES CIENTFICAS

  • Ttulo do origina! ingls: The Slructure of Scientific Revolulions

    Copyright 1962, 1970 by The University of Chicago

    5" edio

    Direitos reservados em lngua portuguesa EDITORA PERSPECTIVA S. A. Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025 01401-000 - So Paulo - SP - Brasil Telefone: (011) 885-8388 F a x : ( 0 1 1 ) 8 8 5 - 6 8 7 8 1998

  • SUMARIO

    Prefcio 9

    Introduo: Um Papel para a Histria 19

    1. A Rota para a Cincia Normal 29 2 . A Natureza da Cincia Normal 43 3. A Cincia Normal como Resoluo de Que-

    bra-Cabeas 57 4. A Prioridade dos Paradigmas 67 5. A Anomalia e a Emergncia das Descobertas

    77 77 6. As Crises e a Emergncia das Teorias Cient-

    93 93 7. 107

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  • g. A Natureza e a Necessidade das Revolues Cientficas 125

    9. As Revolues Como Mudanas de Concep-o de Mundo 145

    10. A Invisibilidade das Revolues 173 11. A Resoluo de Revolues 183 12. O Progresso atravs de Revolues 201

    Posfcio 1969: 217 1. Os paradigmas e a estrutura da comu-

    nidade 219 2. Os paradigmas como a constelao dos

    compromissos de grupo 225 3. Os paradigmas como exemplos compar-

    tilhados 232 4. Conhecimento tcito e intuio 237 5. Exemplares, incomensurabilidade e revo-

    lues 244 6. Revolues e relativismo 251 7. A natureza da cincia 254

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  • PREFACIO

    O ensaio a seguir o primeiro relatrio completo publicado sobre um projeto concebido originalmente h quase quinze anos. Naquele tempo eu era um estu-dante de ps-graduao em Fsica Terica tendo j em vista minha dissertao. Um envolvimento afortu-nado com um curso experimental da universidade, que apresentava a cincia fsica para os no-cientistas, pro-porcionou-me a primeira exposio Histria da Cin-cia. Para minha completa surpresa, esta exposio a teorias e prticas cientficas antiquadas minou radical-mente algumas das minhas concepes bsicas a res-peito da natureza da cincia e das razes de seu su-cesso. incomum.

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  • Eu retirara essas concepes em parte do prprio treino cientfico e em parte de um antigo interesse re-creativo na Filosofia da Cincia. De alguma maneira, quaisquer que fossem sua utilidade pedaggica e sua plausibilidade abstrata, tais noes no se adaptavam s exigncias do empreendimento apresentado pelo estudo histrico. Todavia, essas noes foram e so fundamentais para muitas discusses cientficas. Em vista disso parecia valer a pena perseguir detalhada-mente suas carncias de verossimilhana. O resultado foi uma mudana drstica nos meus planos profissio-nais, uma mudana da Fsica para a Histria da Cin-cia e a partir da, gradualmente, de problemas hist-ricos relativamente simples s preocupaes mais filo-sficas que inicialmente me haviam levado Histria. Com exceo de alguns artigos, este ensaio a primei-ra de minhas publicaes na qual essas preocupaes iniciais so dominantes. Em parte este ensaio uma tentativa de explicar a mim mesmo e a amigos como me aconteceu ter sido lanado da cincia para a sua histria.

    Minha primeira oportunidade de aprofundar algu-mas das idias expostas a seguir foi-me proporciona-da por trs anos como Jnior Fellow da Society of Fellows da Universidade de Harvard. Sem esse pero-do de liberdade, a transio para um novo campo de estudos teria sido bem mais difcil e poderia no se ter realizado. Parte do meu tempo durante esses anos foi devotada Histria da Cincia propriamente dita. Continuei a estudar especialmente os escritos de Ale-xandre Koyr e encontrei pela primeira vez os de mi-le Meyerson, Hlne Metzger e Anneliese Maier.1 Mais claramente do que muitos outros eruditos recentes, esse grupo mostrou o que era pensar cientificamente, numa poca em que os cnones do pensamento cientfico eram muito diferentes dos atualmente em voga. Embo-ra eu questione cada vez mais algumas de suas inter-pretaes histricas particulares, seus trabalhos, junta-

    1 . Exerceram influncia especial: ALEXANDRE KOVR, Etudes GaU-liennes ( 3 v.; Paris, 1 9 3 9 ) ; M I L E M E Y E R S O N , ldentity and Reality, tra-duo de Kate Loewenberg (Nova York, 1 9 3 0 ) ; H L N E METZGER, Les doctrines chimiques en France du dbul du XVII' la fin du XVIII' siicle (Paris, 1 9 2 3 ) , e Newton, Stahl, Boerhaave et la doctrine chimique (Paris, 1 9 3 0 ) ; A N N E L I E S E MAIER, Die Vorlarfer Gatileis Im 14. Jahrhundert ("Studien zur Naturphilosophie der Sptscholastik", Roma, 1 9 4 9 ) .

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  • mente com o Great Chain of Being de A. O. Lovejoy, foram decisivos na formao de minha concepo do que pode ser a histria das idias cientficas. Sua impor-tncia secundria somente quando comparada com os materiais provenientes de fontes primrias.

    Contudo, muito do meu tempo durante esses anos foi gasto explorando campos sem relao aparente com a Histria da Cincia, mas nos quais a pesquisa atual revla problemas similares aos que a Histria vinha trazendo minha ateno. Uma nota de rodap, encon-trada ao acaso, conduziu-me s experincias por meio das quais Jean Piaget iluminou os vrios mundos da criana em crescimento e o processo de transio de um para outro.2 Um colega fez-me ler textos de Psi-cologia da Percepo e em especial os psiclogos da Gestalt; outro introduziu-me s especulaes de B. L. Whorf acerca do efeito da linguagem sobre as concep-es de mundo; W. V. O. Quine franqueou-me o aces-so aos quebra-cabeas filosficos da distino analti-co-sinttica.3 Este o tipo de explorao ao acaso que a Society of Fellows permite. Apenas atravs dela eu poderia ter encontrado a monografia quase desconheci-da de Ludwik Fleck, Entstehung und Entwicklung einer wissenschajtlichen Tatsache, (Basilia, 1935), um ensaio que antecipa muitas de minhas prprias idias. O trabalho de Fleck, juntamente com uma observao de outro Jnior Fellow, Francis X. Sutton, fez-me com-preender que essas idias podiam necessitar de uma colocao no mbito da Sociologia da Comunidade Cientfica. Embora os leitores encontrem poucas refe-rncias a qualquer desses trabalhos ou conversas, devo a eles mais do que me seria possvel reconstruir ou avaliar neste momento.

    Durante meu ltimo ano como Jnior Fellow, um convite para fazer conferncias para o Lowell Institu-te de Boston proporcionou-me a primeira oportunida-

    2. Dois conjuntos de investigaes de Fiaget foram particularmente importantes, porque apresentavam conceitos e processos que tambm pro-vm diretamente da Histria da Cincia: The Chtld's Conception of Causality, traduo de Marjorie Gabain (Londres, 1930) e Les nolions de mouvement et de vitesse chez 1'enfant (Paris, 1946).

    3. Desde ento os escritos de Whorf foram reunidos por J O H N B. CARROLL em Language, Thought and Reality Selected Writings of Benjamin Lee Whorf (Nova York, 1956). Quine apresentou suas con-cepes em "Two Dogmas of Empiricism", reimpresso na sua obra From a Logical Point of View (Cambridge, Mass., 1953) pp. 20-46.

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  • de para testar minha concepo de cincia, que ainda estava em desenvolvimento. Do convite resultou uma srie de oito conferncias pblicas sobre "A Busca da Teoria Fsica" (The Quest for Physical Theory), apre-sentadas em maro de 1951. No ano seguinte comecei a lecionar Histria da Cincia propriamente dita. Os problemas de ensino de uma disciplina que eu nunca estudara sistematicamente ocuparam-me por quase uma dcada, deixando-me pouco tempo para uma articula-o explcita das idias que me haviam levado a esse campo de estudos. Contudo, afortunadamente, essas idias demonstraram ser uma fonte de orientao impl-cita e de estruturao de problemas para grande parte de minhas aulas mais avanadas. Por isso devo agra-decer a meus alunos pelas lies inestimveis, tanto acerca da viabilidade das minhas concepes, como a respeito das tcnicas apropriadas a sua comunicao eficaz. Os mesmos problemas e a mesma orientao do unidade maioria dos estudos predominantemente histricos e aparentemente diversos que publiquei des-de o fim de minha bolsa de pesquisa. Vrios deles tra-tam do papel decisivo desempenhado por uma ou outra metafsica na pesquisa cientfica criadora. Outros exa-minam a maneira pela qual as bases experimentais de uma nova teoria so acumuladas e assimiladas por ho-mens comprometidos com uma teoria mais antiga, in-compatvel com aquela. Ao fazer isso, esses estudos descrevem o tipo de desenvolvimento que adiante cha-marei de "emergncia" de uma teoria ou descoberta nova. Alm disso so apresentados outros vnculos do mesmo tipo.

    O estgio final do desenvolvimento deste ensaio comeou com um convite para passar o ano de 1958--1959 no Center for Advanced Studies in the Behavio-ral Sciences. Mais uma vez tive a oportunidade de di-rigir toda minha ateno aos problemas discutidos adiante. Ainda mais importante foi passar o ano numa comunidade composta predominantemente de cientis-tas sociais. Esse contato confrontou-me com proble-mas que no antecipara, relativos s diferenas entre essas comunidades e as dos cientistas ligados s cin-cias naturais, entre os quais eu fora treinado. Fiquei especialmente impressionado com o nmero e a exten-so dos desacordos expressos existentes entre os cien-

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  • tistas sociais no que diz respeito natureza dos m-todos e problemas cientficos legtimos. Tanto a His-tria como meus conhecimentos fizeram-me duvidar de que os praticantes das cincias naturais possuam respostas mais firmes ou mais permanentes para tais questes do que seus colegas das cincias sociais. E contudo, de algum modo, a prtica da Astronomia, da Fsica, da Qumica ou da Biologia normalmente no evocam as controvrsias sobre fundamentos que atual-mente parecem endmicas entre, por exemplo, psic-logos ou socilogos. A tentativa de descobrir a fonte dessa diferena levou-me ao reconhecimento do papel desempenhado na pesquisa cientfica por aquilo que, desde ento, chamo de "paradigmas". Considero "pa-radigmas" as realizaes cientficas universalmente re-conhecidas que, durante algum tempo, fornecem pro-blemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia. Quando esta pea do meu quebra-cabea encaixou no seu lugar, um esboo pre-liminar deste ensaio emergiu rapidamente. -

    No necessrio recontar aqui a histria subseqen-te desse esboo, mas algumas palavras devem ser ditas a respeito da forma que ele manteve atravs das re-vises. Antes de terminar e revisar extensamente uma primeira verso, eu pensava que o manuscrito apare-ceria exclusivamente como um volume da Encyclope-dia of Unified Science. Os editores desta obra pionei-ra primeiramente solicitaram-me o ensaio, depois man-tiveram-me firmemente ligado a um compromisso e fi-nalmente esperaram com extraordinrio tato e pacin-cia por um resultado. Estou em dvida para com eles, particularmente com Charles Morris, por ter-me dado o estmulo necessrio e ter-me aconselhado sobre o manuscrito resultante. Contudo, as limitaes de espa-o da Encyclopedia tornaram necessrio apresentar mi-nhas concepes numa forma extremamente conden-sada e esquemtica. Embora acontecimentos subse-qentes tenham relaxado um tanto essas restries, tor-nando possvel uma publicao independente simult-nea, este trabalho permanece antes um ensaio do que o livro de amplas propores que o assunto aca-bar exigindo.

    O carter esquemtico desta primeira apresenta-o no precisa ser necessariamente uma desvantagem,

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  • j que meu objetivo fundamental instar uma mudan-a na percepo e avaliao de dados familiares. Ao contrrio, os leitores preparados por suas prprias pes-quisas para a espcie de reorientao advogada aqui podero achar a forma do ensaio mais sugestiva e mais fcil de assimilar. Mas esta forma tambm possui des-vantagens e essas podem justificar que eu ilustre, des-de o comeo, os tipos de ampliao em alcance e pro-fundidade que mais tarde espero incluir numa verso mais extensa. A evidncia histrica disponvel muito maior do que o espao que tive para explor-la. Alm disso a evidncia provm tanto da histria da Biologia como da Fsica. Minha deciso de ocupar-me aqui exclusivamente com a ltima foi parcialmente baseada na inteno de aumentar a coerncia deste ensaio e parcialmente na minha competncia atual. A par dis-so, a concepo de cincia desenvolvida aqui sugere a fecundidade potencial de uma quantidade de novas espcies de pesquisa, tanto histricas como sociolgi-cas. Por exemplo, necessitamos estudar detalhadamen-te o modo pelo qual as anomalias ou violaes de expectativa atraem a crescente ateno de uma comu-nidade cientfica, bem como a maneira pela qual o fracasso repetido na tentativa de ajustar uma anoma-lia pode induzir emergncia de uma crise. Ou ainda: se tenho razo ao afirmar que cada revoluo cient-fica altera a perspectiva histrica da comunidade que a experimenta, ento esta mudana de perspectiva de-veria afetar a estrutura das publicaes de pesquisa e dos manuais do perodo ps-revolucionrio. Um des-ses efeitos uma alterao na distribuio da litera-tura tcnica citada nas notas de rodap dos relatrios de pesquisa deve ser estudado como um ndice pos-svel da ocorrncia de revolues.

    A necessidade de uma condensao rpida for-ou-me igualmente a abandonar a discusso de um bom nmero de problemas importantes. Por exemplo, minha distino entre os perodos pr e ps-paradig-mticos no desenvolvimento da cincia demasiado esquemtica. Cada uma das escolas, cuja competio caracteriza o primeiro desses perodos, guiada por algo muito semelhante a um paradigma; existem cir-cunstncias, embora eu pense que so raras, nas quais dois paradigmas podem coexistir pacificamente nos pe-

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  • rodos ps-paradigmticos. A simples posse de um pa-radigma no um critrio suficiente para a transio de desenvolvimento discutida no Cap. 1. Mais impor-tante ainda, com exceo de breves notas laterais, eu nada disse a respeito do papel do avano tecnolgico ou das condies sociais, econmicas e intelectuais externas no desenvolvimento das cincias. Contudo,^ no preciso ir alm de Coprnico e do calendrio / para descobrir que as condies externas podem aju- j dar a transformar uma simples anomalia numa fonte de crise aguda. O mesmo exemplo ilustraria a manei-> ra pela qual condies exteriores s cincias podem influenciar o quadro de alternativas disponveis que-le que procura acabar com uma crise propondo uma ou outra reforma revolucionria.4 Penso que a consi-derao explcita de exemplos desse tipo no modifi-caria as teses principais desenvolvidas neste ensaio, mas certamente adicionaria uma dimenso analtica pri-mordial para a compreenso do avano cientfico.

    E por fim o que talvez seja o mais importante: as limitaes de espao afetaram drasticamente meu tra-tamento das implicaes filosficas da concepo de cincia historicamente orientada que apresentada nes-te ensaio. Tais implicaes certamente existem e tentei tanto apontar como documentar as principais. Mas, ao lazer isso, abstive-me em geral da discusso detalhada das vrias posies assumidas por filsofos contempo-rneos no tocante a esses assuntos. Onde demonstrei ceticismo, este esteve mais freqentemente dirigido a uma atitude filosfica do que a qualquer de suas expresses plenamente articuladas. Em conseqncia disso, alguns dos que conhecem e trabalham a partir de alguma dessas posies articuladas podero achar qie no compreendi suas posies. Penso que estaro errados, mas este ensaio no foi projetado para con-

    4. Esses so discutidos em T. S. K U H N , The Cvpernlcan Revolution: Plantary Astronomy in lhe Development oi Western Thought (Cambridg, Mass., 1957), pp. 122-32 e 270-71. Outros efeitos de condies externas intelectuais e econmicas esto ilustradas em meus trabalhos: "Conserva-tion of Energy as an Example of Simultaneous Discoveiy", em Criticai Problems in the History o) Science, ed. Marshall Clagett (Madison. Wistohsin, 1959), pp. 321-56; "Enginering Precedent for the Woik of Sadi Carnot", em Archives Internationales d'histoire des sciences, XIII (1960), pp. 247-51; Sadi Carnot and the Cagnard Engine, /J/J, LII, pp. 567-74

  • venc-los. Uma tentativa dessa ordem teria exigido um livro bem mais extenso e de tipo muito diferente.

    Os fragmentos autobiogrficos que abrem este prefcio servem para dar testemunho daquilo que re-conheo como minha dvida principal, tanto para com os trabalhos especializados, como para com as insti-tuies que me ajudaram a dar forma ao meu pensa-mento. Nas pginas seguintes procurarei desembara-ar-me do restante dessa dvida atravs de citaes. Contudo, nada do que foi dito acima ou abaixo far mais do que sugerir o nmero e a natureza de minhas obrigaes pessoais para com muitos indivduos cujas sugestes ou crticas sustentaram e dirigiram meu de-senvolvimento intelectual, numa poca ou noutra. Mui-to tempo passou desde que as idias deste ensaio co-mearam a tomar forma; uma lista de todos que po-dem, justificadamente, encontrar alguns sinais de sua influncia nestas pginas seria quase to extensa quan-to a lista de meus amigos e conhecidos. Nas circuns-tncias presentes tenho que me restringir quelas pou-cas influncias mais significativas, que mesmo uma me-mria falha nunca suprimir inteiramente.

    Foi James B. Conant, ento presidente da Uni-versidade de Harvard, quem primeiro me introduziu na Histria da Cincia e desse modo iniciou a trans-formao de minha concepo da natureza do progres-so cientfico. Desde que esse processo comeou, ele tem sido generoso com suas idias, crticas e tempo inclu-sive o tempo necessrio para ler e sugerir mudanas importantes na primeira verso de meu manuscrito. Leonard K. Nash, com o qual lecionei durante cinco anos o curso historicamente orientado que o Dr. Co-nant iniciara, foi um colaborador ainda mais ativo du-rante os anos em que minhas idias comearam a to-mar forma. Sua ausncia foi muito sentida durante os ltimos estgios do desenvolvimento de concepes. Felizmente, contudo, depois de minha partida de Cam-bridg, seu lugar como caixa de ressonncia criadora foi assumido por Stanley CavelI, meu colega em Ber-keley. Para mim foi uma fonte de constante estmulo e encorajamento o fato de Cavell, um filsofo preo-cupado principalmente com a tica e a Esttica, ter chegado a concluses to absolutamente congruentes com as minhas. Alm disso, foi a nica pessoa com

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  • a qual fui capaz de explorar minhas idias atravs de sentenas incompletas. Esse modo de comunicao atesta uma compreenso que o capacitou a indicar-me como ultrapassar ou contornar vrios obstculos impor-tantes que encontrei durante a preparao de meu pri-meiro manuscrito.

    Depois que esta verso foi esboada, muitos outros amigos auxiliaram na sua reformulao. Penso que me perdoaro se nomear apenas quatro, cujas contribui-es demonstraram ser as mais decisivas e de mais longo alcance: Paul K. Feyerabend de Berkeley, Emest Nagel de Columbia, H. Pierre Noyes do Lawrence Ra-diation Laboratory e meu aluno, John L. Heilbron, que trabalhou em estreita colaborao comigo na prepara-o de uma verso final para a publicao. Todas as suas sugestes ou reservas pareceram-me extremamen-te teis, mas no tenho razes para acreditar (e tenho algumas para duvidar) de que nem eles nem os outros mencionados acima aprovem o manuscrito resultante na totalidade.

    Meus agradecimentos finais a meus pais, esposa e filhos precisam ser de um tipo bastante diferente. Cada um deles tambm contribuiu com ingredientes intelec-tuais para meu trabalho, atravs de maneiras que pro-vavelmente sou o ltimo a reconhecer. Mas em graus variados, fizeram algo mais importante. Deixaram que minha devoo fosse levada adiante e at mesmo a encorajaram. Qualquer um que tenha lutado com um projeto como este reconhecer o que isto lhes custou eventualmente. No sei como agradecer-lhes.

    T. S. K.

    Berkeley, Califrnia Fevereiro 1962

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  • INTRODUO: UM PAPEL PARA A HISTRIA

    Se a Histria fosse vista como um repositrio pa-ra algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformao decisiva na imagem de cincia que atualmente nos domina. Mesmo os pr-

    prios cientistas tm haurido essa imagem principal-mente no estudo das realizaes cientficas acabadas, tal como esto registradas nos clssicos e, mais recen-temente, nos manuais que cada nova gerao utiliza para aprender seu ofcio. Contudo, o objetivo de tais livros inevitavelmente persuasivo e pedaggico; um conceito de cincia deles haurido ter tantas probabi-lidades de assemelhar-se ao empreendimento que os produziu como a imagem de uma cultura nacional obti-

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  • da atravs de um folheto turstico ou um manual de lnguas. Este ensaio tenta mostrar que esses livros nos tm enganado em aspectos fundamentais. Seu objetivo esboar um conceito de cincia bastante diverso que pode emergir dos registros histricos da prpria ativi-dade de pesquisa.

    Contudo, mesmo se partirmos da Histria, esse novo conceito no surgir se continuarmos a procurar e perscrutar os dados histricos sobretudo para respon-der a questes postas pelo esteretipo a-histrico extra-do dos textos cientficos. Por exemplo, esses textos fre-qentemente parecem implicar que o contedo da cin-cia exemplificado de maneira mpar pelas observa-es, leis e teorias descritas em suas pginas. Com qua-se igual regularidade, os mesmos livros tm sido inter-

    pretados como se afirmassem que os mtodos cient-ficos so simplesmente aqueles ilustrados pelas tcni-

    . cas de manipulao empregadas na coleta de dados de ; manuais, juntamente com as operaes lgicas utili-i zadas ao relacionar esses dados s generalizaes te-r i c a s desses manuais. O resultado tem sido um con-

    ceito de cincia com implicaes profundas no que diz respeito sua natureza e desenvolvimento.

    Se a cincia a reunio de fatos, teorias e mto-dos reunidos nos textos atuais, ento os cientistas so homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se em contribuir com um ou outro elemento para essa cons-telao especfica. O desenvolvimento torna-se o pro-i cesso gradativo atravs do qual esses itens foram adi-; cionados, isoladamente ou em combinao, ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a tc-nica cientficos. E a Histria da Cincia torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos como os obstculos que inibiram sua acumulaoj^Preo-cupado com o desenvolvimento cientfico, o historia-dor parece ento ter duas tarefas principais. De um lado deve determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei cientfica contempornea foi descoberta ou inventada. De outro lado, deve descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e supersties que ini-biram a acumulao mais rpida dos elementos cons-tituintes do moderno texto cientfico. Muita pesquisa foi dirigida para esses fins e alguma ainda -J

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  • Contudo, nos ltimos anos, alguns historiadores esto encontrando mais e mais dificuldades para preen-cher as funes que lhes so prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulao. Como cronistas de um processo de aumento, descobrem que a pesqui-sa adicional torna mais difcil (e no mais fcil) res-ponder a perguntas como: quando foi descoberto o oxignio? quem foi o primeiro a conceber a conserva-o da energia? Cada vez mais, alguns deles suspei-tam de que esses simplesmente no so os tipos de questes a serem levantadas. Talvez a cincia no se

    ^desenvolva pela acumulao de descobertas e inven-es individuais. Simultaneamente, esses mesmos his-toriadores confrontam-se com dificuldades crescentes para distinguir o componente "cientfico" das observa-es e crenas passadas daquilo que seus predecesso-res rotularam prontamente de "erro" e "superstio". Quanto mais cuidadosamente estudam, digamos, a di-nmica aristotlica, a qumica flogstica ou a termo-dinmica calrica, tanto mais certos tornam-se de que, como um todo, as concepes de natureza outrora cor-rentes no eram nem menos cientficas, nem menos o produto da idiossincrasia do que as atualmente em vo-ga. Se essas crenas obsoletas devem ser chamadas de mitos, ento os mitos podem ser produzidos pelos mes-mos tipos de mtodos e mantidos pelas mesmas razes que hoje conduzem ao conhecimento cientfico. Se, por outro lado, elas devem ser chamadas de cincias, ento a cincia inclui conjuntos de crenas totalmente incom-patveis com as que hoje mantemos. Dadas essas alter-nativas, o historiador deve escolher a ltima. Teorias obsoletas no so acientficas em princpio, simples-mente porque foram descartadas. Contudo, esta esco-lha torna difcil conceber o desenvolvimento cientfi-co como um processo de acrscimo. A mesma pesqui-sa histrica, que mostra as dificuldades para isolar invenes e descobertas individuais, d margem a pro-fundas dvidas a respeito do processo cumulativo que se empregou para pensar como teriam se formado essas contribuies individuais cincia.

    O resultado de todas essas dvidas e dificuldades foi uma revoluo historiogrfica no estudo da cin-cia, embora essa revoluo ainda esteja em seus pri-meiros estgios. Os historiadores da cincia, gradual-

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  • mente e muitas vezes sem se aperceberem completa-mente de que o estavam fazendo, comearam a se co-locar novas espcies de questes e a traar linhas di-ferentes, freqentemente no-cumulativas, de desenvol-vimento para as cincias. Em vez de procurar as con-tribuies permanentes de uma cincia mais antiga pa-ra nossa perspectiva privilegiada, eles procuram apre-sentar a integridade histrica daquela cincia, a partir de sua prpria poca. Por exemplo, perguntam no pela relao entre as concepes de Galileu e as da cincia moderna, mas antes pela relao entre as con-cepes de Galileu e aquelas partilhadas por seu gru-po, isto , seus professores, contemporneos e suces-sores imediatos nas cincias. Alm disso, insistem em estudar as opinies desse grupo e de outros similares a partir da perspectiva usualmente muito diversa da-quela da cincia moderna que d a essas opinies o mximo de coerncia interna e a maior adequao possvel natureza. Vista atravs das obras que da resultaram, cujo melhor exemplo talvez sejam os escri-tos de Alexandre Koyr, a cincia no parece em abso-luto ser o mesmo empreendimento que foi discutido pelos escritores da tradio historiogrfica mais anti-ga. Pelo menos implicitamente, esses estudos histri-cos sugerem a possibilidade de uma nova imagem da cincia. Este ensaio visa delinear essa imagem ao tor-nar explcitas algumas das implicaes da nova histo-riografia. y

    Que aspectos da cincia revelar-se-o como proe-minentes no desenrolar desse esforo? Em primeiro lu-gar, ao menos na ordem de apresentao, est a insu-ficincia das diretrizes metodolgicas para ditarem, por si s, uma nica concluso substantiva para vrias esp-cies de questes cientficas. Aquele que, tendo sido instrudo para examinar fenmenos eltricos ou qumi-cos, desconhece essas reas, mas sabe como proceder cientificamente, pode atingir de modo legtimo qualr quer uma dentre muitas concluses incompatveis. Entre essas possibilidades legtimas, as concluses par-ticulares a que ele chegar sero provavelmente deter-minadas por sua experincia prvia em outras reas., por acidentes de sua investigao e por sua prpria formao individual. Por exemplo, que crnas a res-peito das estrelas ele traz para o estudo da Qumica

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  • da eletricidade? Dentre muitas experincias relevan-tes, quais ele escolhe para executar em primeiro lugar? Quais aspectos do fenmeno complexo que da resulta o impressionam como particularmente relevantes para uma elucidao da natureza das transformaes qu-micas ou das afinidades eltricas? Respostas a questes como essas so freqentemente determinantes essen-ciais para o desenvolvimento cientfico, pelo menos para o indivduo e ocasionalmente para a comunidade^ cientfica. \Por exemplo, haveremos de observar no Cap. 1 que os primeiros estgios do desenvolvimento da maioria das cincias tm-se caracterizado pela con-tnua competio entre diversas concepes de natu-reza distintas; cada uma delas parcialmente derivada e todas apenas aproximadamente compatveis com os ditames da observao e do mtodo cientfico.] O que diferenciou essas vrias escolas no foi um ou outro insucesso do mtodo todas elas eram "cientficas" mas aquilo que chamaremos a inomensurabilida-de de suas maneiras de ver o mundo e nele praticar a cincia. {X observao e a experincia podem e de-vem restringir drasticamente a extenso das crenas admissveis, porque de outro modo no haveria cin-cia. Mas no podem, por si s, determinar um conjun-to especfico de semelhantes crenas.) Um elemento apa-rentemente arbitrrio, composto de" acidentes pessoais e histricos, sempre um ingrediente formador das crenas esposadas por uma comunidade cientfica espe-cfica numa determinada poca.

    Contudo, esse elemento de arbitrariedade no indi-ca que algum grupo possa praticar seu ofcio sem um conjunto dado de crenas recebidas. E nem torna me-nos cheia de conseqncias a constelao particular com a qual o grupo est realmente comprometido num v dado momento./A pesquisa eficaz raramente comea * antes que uma comunidade cientfica pense ter adqui-rido respostas seguras para perguntas como: quais so as entidades fundamentais que compem o universo? como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? que questes podem ser legitimamen-te feitas a respeito de tais entidades e que tcnicas po-dem ser empregadas na busca de solues?/Ao menos nas cincias plenamente desenvolvidas, respostas (ou substitutos integrais para as respostas) a questes co-

    23

  • mo essas esto firmemente engastadas na iniciao pro-fissional que prepara e autoriza o estudante para a pr-tica cientfica. Uma vez que essa educao ao mesmo tempo rgida e rigorosa, essas respostas chegam a exer-cer uma influncia profunda sobre o esprito cientfi-co. O fato de as respostas poderem ter esse papel auxi-lia-nos a dar conta tanto da eficincia peculiar da ati-vidade de pesquisa normal, como da direo na qual essa prossegue em qualquer momento considerado. Ao examinar a cincia normal nos Caps. 2, 3 e 4, busca-remos descrever essa forma de pesquisa como uma ten-tativa vigorosa e devotada de forar a natureza a esque-mas conceituais fornecidos pela educao profissional. Ns perguntaremos simultaneamente se a pesquisa po-deria ter seguimento sem tais esquemas, qualquer que seja o elemento de arbitrariedade contido nas suas ori-gens histricas e, ocasionalmente, no seu desenvolvi-mento posterior.

    No entanto este elemento de arbitrariedade est presente e tem tambm um efeito importante no de-senvolvimento cientfico. Esse efeito ser examinado

    r detalhadamente nos Caps. 5, 6 e 7. A cincia normal, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega ine-vitavelmente quase todo seu tempo, baseada no pres-

    1suposto de que a comunidade cientfica sabe como o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da disposio da comunidade para defender esse I pressuposto com custos considerveis, se necess-r i o . Por exemplo, a cincia normal freqentemente su-prime novidades fundamentais, porque estas subver-tem necessariamente seus compromissos bsicos. No obstante, na medida em que esses compromissos re-\tm um elemento de arbitrariedade, a prpria nature-za da pesquisa normal assegura que a novidade no ser suprimida por muito tempo. Algumas vezes um problema comum, que deveria ser resolvido por meio de regras e procedimentos conhecidos, resiste ao ata-

    ique violento e reiterado dos membros mais hbeis do grupo em cuja rea de competncia ele ocorre. Em outras ocasies, uma pea de equipamento, projetada e construda para fins de pesquisa normal, no fun-ciona segundo a maneira antecipada, revelando uma

    j anomalia que no pode ser ajustada s expectativas l profissionais, no obstante esforos repetidos. Desta e

    24

  • de outras maneiras, a cincia normal desorienta-se se-guidamente. E quando isto ocorre isto , quando os

    /membros da profisso no podem mais esquivar-se das anomalias que subvertem a tradio existente da pr-

    1 tica cientfica ento comeam as investigaes extraordinrias que finalmente conduzem a profisso a

    um novo conjunto de compromissos, a uma nova base j para a prtica da cincia. Neste ensaio, so denomina^

    dos de revolues cientficas os episdios extraordin-rios nos quais ocorre essa alterao de compromisso^ profissionais. As revolues cientficas so os comple-mentos desintegradores da tradio qual a atividade da cincia normal est ligada.

    Os exemplos mais bvios de revolues cientfi-cas so aqueles episdios famosos do desenvolvimento cientfico que, no passado, foram freqentemente ro-tulados de revolues. Por isso, nos Caps. 8 e 9, onde pela primeira vez a natureza das revolues cientficas diretamente examinada, nos ocuparemos repetida-

    ^ mente com os momentos decisivos essenciais do desen-, volvimento cientfico associado aos nomes de Copr-1 nico, Newton, Lavoisier e Einstein. Mais claramente

    que muitos outros, esses episdios exibem aquilo que constitui todas as revolues cientficas, pelo menos no

    1 que concerne histria das cincias fsicas. Cada um deles forou a comunidade a rejeitar a teoria cientfi-ca anteriormente aceita em favor de uma outra incom-patvel com aquela. Como conseqncia, cada um des-ses episdios produziu uma alterao nos problemas disposio do escrutnio cientfico e nos padres pe-

    i los quais a profisso determinava o que deveria ser considerado como um problema ou como uma solu-o de problema legtimo. Precisaremos descrever as maneiras pelas quais cada um desses episdios trans-formou a imaginao cientfica, apresentando-os como uma transformao do mundo no interior do qual era realizado o trabalho cientfico. Tais mudanas, junta-mente com as controvrsias que quase sempre as acom-panham, so caractersticas definidoras das revolues cientficas.

    Tais caractersticas aparecem com particular cla-reza no estudo das revolues newtoniana e qumica. Contudo, uma tese fundamental deste ensaio que essas caractersticas podem ser igualmente recuperadas atra-

    25

  • vs do estudo de muitos outros episdios que no fo-ram to obviamente revolucionrios. lAs equaes de Maxwell, que afetaram um grupo profissional bem mais reduzido do que as de Einstein, foram consideradas to revolucionrias como estas e como tal encontra-ram resistncia. Regularmente e de maneira apropria-da, a inveno de novas teorias evoca a mesma respos-ta por parte de alguns especialistas que vem sua rea de competncia infringida por essas teorias. Para esses homens, a nova teoria implica uma mudana nas re-gras que governavam a prtica anterior da-cincia nor-mal*. Por isso, a nova teoria repercute inevitavelmente

    ""sobre muitos trabalhos cientficos j concludos com - sucesso. por isso que uma nova teoria, por mais par-

    ticular que seja seu mbito de aplicao, nunca ou qua-se nunca um mero incremento ao que j conhecido. Sua assimilao requer a reconstruo da teoria pre-cedente e a reavaliao dos fatos anteriores. Esse pro-cesso intrinsecamente revolucionrio raramente com-pletado por um nico homem e nunca de um dia para o outro. No de admirar que os historiadores tenham encontrado dificuldades para datar com preciso este processo prolongado, ao qual, impelidos por seu voca-bulrio, vem como um evento isolado.

    Invenes de novas teorias no so os nicos acon-tecimentos cientficos que tm um impacto revolucio-nrio sobre os especialistas do setor em que ocorrem. Os compromissos que governam a cincia normal espe-cificam no apenas as espcies de entidades que o uni-verso contm, mas tambm, implicitamente, aquelas que no contm. Embora este ponto exija uma discus-so prolongada, segue-se que uma descoberta como a do oxignio ou do raio X no adiciona apenas mais um item populao do mundo do cientista. Esse o efeito final da descoberta mas somente depois da comunidade profissional ter reavaliado os procedimen-tos experimentais tradicionais, alterado sua concepo a iespeito de entidades com as quais estava de h mui-to familiarizada e, no decorrer desse processo, modifi-cado a rede de teorias com as quais lida com o mun-do. Teoria e fato cientficos no so categoricamente separveis, exceto talvez no interior de uma nica tra-dio da prtica cientfica normal. por isso que uma descoberta inesperada no possui uma importncia sim-

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  • plesmente fatual. O mundo do cientista tanto quali-tativamente transformado como quantitativamente enri-quecido pelas novidades fundamentais de fatos ou teorias.

    Esta concepo ampliada da natureza das revolu-es cientficas delineada nas pginas seguintes. No h dvida de que esta ampliao fora o sentido cos-tumeiro da concepo. No obstante, continuarei a falar at mesmo de descobertas como sendo revolucio-nrias. Para mim, o que faz a concepo ampliada to importante precisamente a possibilidade de relacio-nar a estrutura de tais descobertas com, por exemplo, aquela da revoluo copernicana. A discusso preceden-te indica como sero desenvolvidas as noes comple-mentares de cincia normal e revoluo cientfica nos nove captulos imediatamente seguintes. O resto do ensaio tenta equacionar as trs questes centrais que sobram. Ao discutir a tradio do manual, o Cap. 10 examina por que as revolues cientficas tm sido to dificilmente reconhecidas como tais. O Cap. 11 des-creve a competio revolucionria entre os defensores da velha tradio cientfica normal e os partidrios da nova. Desse modo o captulo examina o processo que, numa teoria da investigao cientfica, deveria substi-tuir de algum modo os procedimentos de falsificao ou confirmao que a nossa imagem usual de cincia tornou familiares. A competio entre segmentos da comunidade cientfica o nico processo histrico que realmente resulta na rejeio de uma teoria ou na ado-o de outra. Finalmente, o Cap. 12 perguntar como o desenvolvimento atravs de revolues pode ser com-patvel com o carter aparentemente mpar do progres-so cientfico. Todavia, este ensaio no fornecer mais do que os contornos principais de uma resposta a essa questo. Tal resposta depende das caractersticas da comunidade cientfica, assunto que requer muita explo-rao e estudo adicionais.

    Sem dvida alguns leitores j se tero perguntado se um estudo histrico poder produzir o tipo de trans-formao conceituai que visado aqui. Um arsenal inteiro de dicotomias est disponvel, sugerindo que isso no pode ser adequadamente realizado dessa ma-neira. Dizemos muito freqentemente que a Histria uma disciplina puramente descritiva. Contudo, as

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  • teses sugeridas acima so freqentemente interpretati-vas e, algumas vezes, normativas. Alm disso, muitas de minhas generalizaes dizem respeito sociologia ou psicologia social dos cientistas. Ainda assim, pelo menos algumas das minhas concluses pertencem tra-dicionalmente Lgica ou Epistemologia. Pode at mesmo parecer que, no pargrafo anterior, eu tenha violado a muito influente distino contempornea entre o "contexto da descoberta" e o "contexto da jus-tificao". Pode algo mais do que profunda confuso estar indicado nesta mescla de diversas reas e inte-resses?

    Tendo-me formado intelectualmente a partir des-sas e de outras distines semelhantes, dificilmente po-deria estar mais consciente de sua importncia e fora. Por muitos anos tomei-as como sendo a prpria natu-reza do conhecimento. Ainda suponho que, adequada-mente reelaboradas, tenham algo importante a nos di-zer. Todavia, muitas das minhas tentativas de aplic-las, mesmo grosso modo, s situaes reais nas quais o conhecimento obtido, aceito e assimilado, f-las parecer extraordinariamente problemticas. Em vez de serem distines lgicas ou metodolgicas elementares, que seriam anteriores anlise do conhecimento cien-tfico, elas parecem agora ser partes de um conjunto tradicional de respostas substantivas s prprias ques-tes a partir das quais elas foram elaboradas. Essa cir-cularidade no as invalida de forma alguma. Mas tor-na-as parte de uma teoria e, ao fazer isso, sujeita-as ao mesmo escrutnio que regularmente aplicado a teo-rias em outros campos. Para que elas tenham como contedo mais do que puras abstraes, esse contedo precisa ser descoberto atravs da observao. Exami-nar-se-ia ento a aplicao dessas distines aos dados que elas pretendem elucidar. Como poderia a Histria da Cincia deixar de ser uma fonte de fenmenos, aos quais podemos exigir a aplicao das teorias sobre o conhecimento?

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  • 1. A ROTA PARA A CINCIA NORMAL

    Neste ensaio, )"cincia normal" significa a pesqui-sa firmemente baseada em uma ou mais realizaes cientficas passadas. Essas realizaes so reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade cient-fica especfica como proporcionando os fundamentos para sua prtica posterior, fembora raramente na sua forma original, hoje em dia essas realizaes so re-latadas pelos manuais cientficos elementares e avan-ados. Tais livros expem o corpo da teoria aceita, ilustram muitas (ou todas) as suas aplicaes bem su-cedidas e comparam essas aplicaes com observaes e experincias exemplares. Uma vez que tais livros se tornaram populares no comeo do sculo XIX (e mes-

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  • mo mais recentemente, como no caso das cincias ama-durecidas h pouco), muitos dos clssicos famosos da cincia desempenham uma funo similar. A Fsica de Aristteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a ptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Qu-mica de Lavoisier e a Geologia de Lyell esses e muitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e mtodos legtimos de um campo de pesquisa para as geraes posteriores de praticantes da cincia. Puderam fazer isso porque partilhavam duas caractersticas essenciais. Suas realizaes foram suficientemente sem preceden-tes para atrair um grupo duradouro de partidrios, afastando-os de outras formas de atividade cientfica dissimilares. Simultaneamente, suas realizaes eram suficientemente abertas para deixar toda a espcie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefini-do de praticantes da cincia.

    Daqui p>r diante deverei referir-me s realizaes que partilham essas duas caractersticas como "para-digmas", um termo estreitamente relacionado com "cincia normal". Com a escolha do termo pretendo sugerir que alguns exemplos aceitos na prtica cient-fica real exemplos que incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicao e instrumentao proporcio-nam modelos dos quais brotam as tradies coerentes e especficas da pesquisa cientfica. So essas tradies que o historiador descreve com rubricas como: "Astro-nomia Ptolomaica" (ou "Copernicana"), "Dinmica Aristotlica" (ou "Newtoniana"), "ptica Corpus-cular" (ou "ptica Ondulatria"), e assim por diante.

    MD estudo dos paradigmas, muitos dos quais bem mais especializados do que os indicados acima, o que pre-para basicamente o estudante para ser membro da co-munidade cientfica determinada na qual atuar mais

    _tarde. Uma vez que ali o estudante rene-se a homens que aprenderam as bases de seu campo de estudo a partir dos mesmos modelos concretos, sua prtica sub-seqente raramente ir provocar desacordo declarado

    '-sobre pontos fundamentais. Homens cuja pesquisa est baseada em paradigmas compartilhados esto compro-

    I metidos com as mesmas regras e padres para a pr-i tica cientfica. Esse comprometimento e o consenso

    aparente que produz so pr-requisitos para a cincia

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  • normal, isto , para a gnese e a continuao de uma tradio de pesquisa determinada. ^

    Ser necessrio acrescentar mais sobre as razes da introduo do conceito de paradigma, uma vez que neste ensaio ele substituir uma variedade de noes familiares. Por que a realizao cientfica, como um lugar de comprometimento profissional, anterior aos vrios conceitos, leis, teorias e pontos de vista que de-la podem ser abstrados? Em que sentido o paradigma partilhado uma unidade fundamental para o estudo do desenvolvimento cientfico, uma unidade que no pode ser totalmente reduzida a componentes atmicos lgicos que poderiam funcionar em seu lugar? Quando as encontrarmos, no Cap. 4, as respostas a estas ques-tes e outras similares demonstraro ser bsicas para a compreenso, tanto da cincia normal, como do con-ceito associado de paradigma. Contudo, esta discusso mais abstrata vai depender da exposio prvia de exemplos da cincia normal ou de paradigmas em ati-vidade. Mais especificamente, esses dois conceitos re-lacionados sero esclarecidos indicando-se a possibili-dade de uma espcie de pesquisa cientfica sem para-digmas ou pelo menos sem aqueles de tipo to inequ-voco e obrigatrio como os nomeados acima. A aqui-sio de um paradigma e do tipo de pesquisa mais eso-trico que ele permite um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo cientfico que se queira considerar.

    Se o historiador segue, desde a origem, a pista do conhecimento cientficp de qualquer grupo seleciona-do de fenmenos interligados, provavelmente encontra-r alguma variante menor de um padro ilustrado aqui a partir da Histria da ptica Fsica. Os manuais atuais de Fsica ensinam at> estudante que a luz composta de ftons, isto , entidades quntico-imecnicas que exibem algumas caractersticas de ondas e outras de partculas. A pesquisa realizada de acordo com este ensinamento, ou melhor, de acordo com as caracteriza-es matemticas mais elaboradas a partir das quais derivada esta verbalizao usual. Contudo, esta ca-racterizao da luz mal tem meio sculo. Antes de ter sido desenvolvida por Planck, Einstein e outros no co-meo deste sculo, os textos de Fsica ensinavam que a luz era um movimento ondulatrio transversal, con-

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  • cepo que em ltima anlise derivava dos escritos pticos de Young e Fresnel, publicados no incio do sculo XIX. Alm disso, a teoria ondulatria no foi a primeira das concepes a ser aceita pelos pratican-tes da cincia ptica. Durante o sculo XVIII, o pa-radigma para este campo de estudos foi proporciona-do pela ptica de Newton, a qual ensinava que a luz era composta de corpsculos de matria. Naquela po-ca os fsicos procuravam provas da presso exercida pelas partculas de luz ao colidir com os corpos sli-dos, algo que no foi feito pelos primeiros tericos da concepo ondulatria.1

    / Essas transformaes de paradigmas da ptica I Fsica so revolues cientficas e a transio sucessiva

    de um paradigma a outro, por meio de uma revolu-o, o padro usual de desenvolvimento da cincia amadurecida. No entanto, este no o padro usual

    v_do perodo anterior aos trabalhos de Newton. este contraste que nos interessa aqui. Nenhum perodo entre a antigidade remota e o fim do sculo XVII exibiu uma nica concepo da natureza da luz que fosse ge-ralmente aceita. Em vez disso havia um bom nmero de escolas e subescolas em competio, a maioria das quais esposava uma ou outra variante das teorias de Epicuro, Aristteles ou Plato. Um grupo considerava a luz como sendo composta de partculas que emana-vam dos corpos materiais; para outro, era a modifica-o do meio que intervinha entre o corpo e o olho; um outro ainda explicava a luz em termos de uma intera-o do meio com uma emanao do olho; e haviam outras combinaes e modificaes alm dessas. Cada uma das escolas retirava foras de sua relao com alguma metafsica determinada. Cada uma delas enfa-tizava, como observaes paradigmticas, o conjunto particular de fenmenos pticos que sua prpria teoria podia explicar melhor. Outras observaes eram exa-minadas atravs de elaborao ad hoc ou permaneciam como problemas especiais para a pesquisa posterior.2

    Em pocas diferentes, todas estas escolas fizeram contribuies significativas ao corpo de conceitos, fe-

    1. PRIESTLEY, Joseph. The History and Presenl State of Discoveries Relating to Vision Light and Colours. (Londres, 1772) pp. 385-90.

    2 . RONCH, Vasco. Histoire de la lumiire. (Paris, 1 9 5 6 ) , Caps. I - IV, traduo de Jean Taton.

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  • nmenos e tcnicas dos quais Newton extraiu o pri-meiro paradigma quase uniformemente aceito na pti-ca Fsica. Qualquer definio do cientista, que exclua os membros mais criadores dessas vrias escolas, exclui-r igualmente seus sucessores modernos. Esses homens eram cientistas. Contudo, qualquer um que examine uma amostra da ptica Fsica anterior a Newton po-der perfeitamente concluir que, embora os estudio-sos dessa rea fossem cientistas, o resultado lquido de suas atividades foi algo menos que cincia. Por no ser obrigado a assumir um corpo qualquer de crenas comuns, cada autor de ptica Fsica sentia-se forado a construir novamente seu campo de estudos desde os fundamentos. A escolha das observaes e experin-cias que sustentavam tal reconstruo era relativamen-te livre. No havia qualquer conjunto-padro de m-todos ou de fenmenos que todos os estudiosos da ptica se sentissem forados a empregar e explicar. Nestas circunstncias o dilogo dos livros resultantes era freqentemente dirigido aos membros das outras escolas tanto como natureza. Hoje em dia esse pa-dro familiar a numerosos campos de estudos cria-dores e no incompatvel com invenes e descober-tas significativas. Contudo, este no o padro de de-senvolvimento que a ptica Fsica adquiriu depois de Newton e nem aquele que outras cincias da natureza tornaram familiar hoje em dia.

    A histria da pesquisa eltrica na primeira me-tade do sculo XVIII proporciona um exemplo mais concreto e melhor conhecido da maneira como uma cincia se desenvolve antes de adquirir seu primeiro paradigma universalmente aceito. Durante aquele pe-rodo houve quase tantas concepes sobre a nature-za da eletricidade como experimentadores importantes nesse campo, homens como Hauksbee, Gray, Desa-guliers, Du Fay, Nollet, Watson, Franklin e outros. Todos seus numerosos conceitos de eletricidade tinham algo em comum eram parcialmente derivados de uma ou outra verso da filosofia mecnico-corpuscular que orientava a pesquisa cientfica da poca. Alm dis-so, eram todos componentes de teorias cientficas reais, teorias que tinham sido parcialmente extradas de expe-rincias e observaes e que determinaram em parte a escolha e a interpretao de problemas adicionais

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  • enfrentados pela pesquisa. Entretanto, embora todas as experincias fossem eltricas e a maioria dos experi-mentadores lessem os trabalhos uns dos outros, suas teorias no tinham mais do que uma semelhana de famlia.3

    Um primeiro grupo de teorias, seguindo a prtica do sculo XVII, considerava a atrao e a gerao por frico como os fenmenos eltricos fundamentais. Esse grupo tendia a tratar a repulso como um efeito se-cundrio devido a alguma espcie de rebote mecni-co. Tendia igualmente a postergar por tanto tempo quanto possvel tanto a discusso como a pesquisa sis-temtica sobre o novo efeito descoberto por Gray a conduo eltrica. Outros "eletricistas" (o termo de-les mesmo) consideravam a atrao e a repulso como manifestaes igualmente elementares da eletricidade e modificaram suas teorias e pesquisas de acordo com tal concepo. (Na realidade este grupo extremamente pequeno mesmo a teoria de Franklin nunca expli-cou completamente a repulso mtua de dois corpos carregados negativamente.) Mas estes tiveram tanta di-ficuldade como o primeiro grupo para explicar simul-taneamente qualquer coisa que no fosse os efeitos mais simples da conduo. Contudo, esses efeitos pro-porcionaram um ponto de partida para um terceiro grupo, grupo que tendia a falar da eletricidade mais como um "fluido" que podia circular atravs de con-dutores do que como um "eflvio" que emanasse de no-condutores. Por seu turno, esse grupo tinha difi-culdade para reconciliar sua teoria com numerosos efei-tos de atrao e repulso. Somente atravs dos traba-lhos de Franklin e de seus sucessores imediatos surgiu uma teoria capaz de dar conta, com quase igual faci-lidade, de aproximadamente todos esses efeitos. Em

    3 D U A N E ROLLER & D U A N E H . D . ROLLER, The Development of the Concept of Electric Charge: Electricity from the Greeks to Coulomb ("Harvard Case Histories in Experimental Science", Case 8, Cambridge, Mass., 1954); e I. B. COHEN, Franklin and Newton: An Inquiry into Speculatlve Newtonian Experimental Science and Franklin's Work in Elec-tricity as an Example Thereof (Filadlfia, 1956), Caps. VII - XII. Estou em dvida com um trabalho ainda no publicado de meu aluno John L. Heilbron no que diz respeito a alguns detalhes analticos do pargrafo seguinte. Enquanto se aguarda sua publicao, pode-se encontrar uma apresentao de certo modo mais extensa e mais precisa do surgimento do paradigma de Franklin em "The Function of Dogma in Scientific Research" de THOMAS S. K U H N , publicado em A . C. Crombie (ed.), Symposium on the History of Science, University of Oxford, jul. 9-15, 1961, que ser publicado por Heinemann Educational Books. Ltd.

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  • Vvista disso essa teoria podia e de fato realmente pro-porcionou um paradigma comum para a pesquisa de

    : uma gerao subseqente de "eletricistas". "" Excluindo reas como a Matemtica e a Astrono-

    mia, nas quais os primeiros paradigmas estveis datam da pr-histria, e tambm aquelas, como a Bioqumi-ca, que surgiu da diviso e combinao de especiali-dades j amadurecidas, as situaes esboadas acima so historicamente tpicas. Sugiro que desacordos fun-damentais de tipo similar caracterizaram, por exemplo, o estudo do movimento antes de Aristteles e da Est-tica antes de Arquimedes, o estudo do calor antes de Black, da Qumica antes de Boyle e Boerhaave e da Geologia Histrica antes de Hutton embora isso envolva de minha parte o emprego continuado de sim-plificaes infelizes que rotulam um extenso episdio histrico com um nico nome, um tanto arbitraria-mente escolhido (por exemplo, Newton ou Franklin). Em partes da Biologia por exemplo, no estudo da hereditariedade os primeiros paradigmas universal-mente aceitos so ainda mais recentes. Permanece em aberto a questo a respeito de que reas da cincia social j adquiriram tais paradigmas. A Histria suge-re que a estrada para um consenso estvel na pesqui-sa extraordinariamente rdua.

    Contudo, a Histria sugere igualmente algumas razes para as dificuldades encontradas ao longo des-se caminho. Na ausncia de um paradigma ou de algum candidato a paradigma, todos os fatos que possivelmen-te so pertinentes ao desenvolvimento de determinada cincia tm a probabilidade de parecerem igualmente relevantes. Como conseqncia disso, as primeiras co-letas de fatos se aproximam muito mais de uma ativi-dade ao acaso do que daquelas que o desenvolvimen-to subseqente da cincia torna familiar. Alm disso, na ausncia de uma razo para procuraf alguma forma de informao mais recndita, a coleta inicial de fa-tos usualmente restrita riqueza de dados que esto prontamente a nossa disposio. A soma de fatos re-sultantes contm aqueles acessveis observao e experimentao casuais, mais alguns dos dados mais esotricos procedentes de ofcios estabelecidos, como a Medicina, a Metalurgia e a confeco de calendrios. A tecnologia desempenhou muitas vezes um papel vi-

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  • tal no surgimento de novas cincias, j que os ofcios so uma fonte facilmente acessvel de fatos que no poderiam ter sido descobertos casualmente.-, Embora esta espcie de coleta de fatos tenha sido essencial para a origem de muitas cincias significativas, qualquer pessoa que examinar, por exemplo, os escritos enciclo-pdicos de Plnio ou as Histrias Naturais de Bacon, descobrir que ela produz uma situao de perplexida-de. De certo modo hesita-se em chamar de cientfica a literatura resultante. As "histrias" baconianas do ca-lor, da cor, do vento, da minerao e assim por diante, esto repletas de informaes, algumas das quais re-cnditas. Mas justapem fatos, que mais tarde demons-traro ser reveladores (por exemplo, o aquecimento por mistura), com outros (o calor dos montes de ester-co) que continuaro demasiado complexos para serem integrados na teoria.4 Alm disso, visto que qualquer descrio tem que ser parcial, a Histria Natural tpi-ca omite com freqncia de seus relatos imensamente circunstanciais exatamente aqueles detalhes que cien-tistas posteriores consideraro fontes de iluminaes importantes. Por exemplo, quase nenhuma das primei-ras "histrias" da eletricidade mencionam que o fare-lo, atrado por um basto de vidro coberto de borra-cha, repelido novamente. Esse efeito parecia mec-nico e no eltrico.5 Alm do mais, visto que o cole-tor de dados casual raramente possui o tempo ou os instrumentos para ser crtico, as histrias naturais jus-tapem freqentemente descries como as menciona-das acima como outras de, digamos, aquecimento por antiperstase (ou por esfriamento), que hoje em dia no temos condio alguma de confirmar.6 Apenas muito ocasionalmente, como no caso da Esttica, Di-nmica e ptica Geomtrica antigas, fatos coletados com to pouca orientao por parte de teorias preestabele-

    4. Compare-se o esboo de uma histria natural do calor no Novum Organum de BACON, V. VIII de The Works of Francis Bacon, ed. J . Spedding, R. L. Ellis e D. D. Heath (Nova York, 1869), pp 179-203).

    5. ROLLER & ROLLER, op. cit., pp. 14, 22, 28 e 43. Somente depois t.0 aparecimento do trabalho mencionado na ltima dessas citaes que os efeitos repulsivos foram reconhecidos como inequivocamente eltricos.

    6 . BACON, op. cit., pp. 2 3 5 , 3 3 7 , diz: " A gua ligeiramente morna gela mais rapidamente do que a totalmente fria". Para uma apresentao parcial da histria inicial dessa estranha observao, ver MARSHALL C L A -GETT, Giovanni Marliani and Late Medieval Phycs (Nova York, 1941), Cap. IV.

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  • cidas falam com suficiente clareza para permitir o sur-gimento de um primeiro paradigma./

    As escolas caractersticas dos primeiros estgios do desenvolvimento de uma cincia criam essa situao. Nenhuma Histria Natural pode ser interpretada na ausncia de pelo menos algum corpo implcito de cren-as metodolgicas e tericas interligadas que permita a seleo, avaliao e a crtica. Se esse corpo de cren-as j no est implcito na coleo de fatos quando ento temos disposio mais do que "meros fatos" precisa ser suprido externamente, talvez por uma metafsica em voga, por outra cincia ou por um aci-dente pessoal e histrico. No de admirar que nos primeiros estgios do desenvolvimento de qualquer cincia, homens diferentes confrontados com a mes-ma gama de fenmenos mas em geral no com os mesmos fenmenos particulares os descrevam e inter-pretem de maneiras diversas. surpreendente (e tal-vez tambm nico, dada a proporo em que ocorrem) que tais divergncias iniciais possam em grande parte desaparecer nas reas que chamamos cincia.

    As divergncias realmente desaparecem vem grau considervel e ento, aparentemente, de uma vez por todas. Alm disso, em geral seu desaparecimento cau-sado pelo triunfo de uma das escolas pr-paradigm-ticas, a qual, devido a suas prprias crenas e precon-ceitos caractersticos, enfatizava apenas alguma parte especial do conjunto de informaes demasiado nume-roso e incoativo. Os eletricistas que consideravam a eletricidade um fluido, e por isso davam uma nfase especial conduo, proporcionam um exemplo tpico excelente. Conduzidos por essa crena, que mal e mal podia dar conta da conhecida multiplicidade de efeitos de atrao e repulso, muitos deles conceberam a idia de engarrafar o fluido eltrico. O fruto imediato de seus esforos foi a Garrafa de Leyden, um artifcio que nunca poderia ter sido descoberto por algum que explorasse a natureza fortuitamente ou ao acaso. En-tretanto, este artifcio foi desenvolvido independente-mente, pelo menos por dois investigadores no incio da dcada de 1740.7 Quase desde o comeo de suas pes-quisas eltricas, Franklin estava especialmente interes-

    7 . ROLLER & ROLLER. Op. cit. p p . 5 1 - 5 4 .

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  • sado em explicar aquele estranho e, em conseqncia, to revelador aparelho. O sucesso na explicao pro-porcionou o argumento mais efetivo para a transfor-mao de sua teoria em paradigma, apesar de este ser ainda incapaz de explicar todos os casos conhecidos de repulso eltrica.8 Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competido-ras, mas no precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser con-frontada.

    Aquilo que a teoria do fluido eltrico fez pelo sub-grupo que a defendeu, o paradigma de Franklin fez mais tarde por todo o grupo dos eletricistas. Este su-geria as experincias que valeriam a pena ser feitas e as que no tinham interesse, por serem dirigidas a ma-nifestaes de eletricidade secundrias ou muito com-plexas. Entretanto, o paradigma realizou esta tarefa bem mais eficientemente do que a teoria do fluido el-trico, em parte porque o fim do debate entre as esco-las deu um fim reiterao constante de fundamentos e em parte porque a confiana de estar no caminho certo encorajou os cientistas a empreender trabalhos de um tipo mais preciso, esotrico e extenuante.9 Livre da preocupao com todo e qualquer fenmeno el-trico, o grupo unificado dos eletricistas pde ocupar-se bem mais detalhadamente de fenmenos selecionados, projetando equipamentos especiais para a tarefa e em-pregando-os mais sistemtica e obstinadamente do que jamais fora feito antes. Tanto a acumulao de fatos como a articulao da teoria tornaram-se atividades altamente orientadas. O rendimento e a eficincia da pesquisa eltrica aumentaram correspondentemente, proporcionando provas para uma verso societria do agudo dito metodolgico de Francis Bacon: "A ver-

    8. O caso mais problemtico era a mtua repulso de corpos carre-gados negativamente. A esse respeito ver C O H E N , op. cit., pp. 491-494 e 531-543.

    9. Deve-se notar que a aceitao da teoria de Franklin no terminou com todo o debate. Em 1759, Robert Symmer props uma verso dessa teoria que envolvia dois fluidos e por muitos anos os eletricistas estiveram divididos a respeito da questo de se a eletricidade compunha-se de um ou dois fluidos. Mas os debates sobre este assunto apenas confirmaram o que foi dito acima a respeito da maneira como uma realizao universalmente aceita une a profisso. Os eletricistas, embora continuassem divididos a esse respeito, concluram rapidamente que nenhum teste experimental po-deria distinguir as duas verses da teoria e portanto elas eram equivalen-tes. Depois disso, ambas escolas puderam realmente explorar todos os benefcios oferecidos pela teoria de Franklin (lbid., pp. 543-546, 548-554).

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  • dade surge mais facilmente do erro do que da con-fuso".10

    No prximo captulo examinaremos a natureza dessa pesquisa precisamente orientada ou baseada em paradigma, mas antes indicaremos brevemente como a emergncia de um paradigma afeta a estrutura do gru-po que atua nesse campo, guando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma cincia da natureza, um indivduo ou grupo produz uma sntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de cincia da gerao se-guinte, as escolas mais antigas comeam a desaparecer gradualmente. Seu desaparecimento em parte cau-sado pela converso de seus adeptos ao novo paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das concepes mais antigas; so simplesmente excludos da profisso e seus trabalhos so ignorados. O novo paradigma implica um definio nova e mais rgida do campo de estudos. Aqueles que no desejam ou no so capazes de acomodar seu trabalho a ele tm que proceder isoladamente ou unir-se a algum grupo.11 Historicamente, tais pessoas tm freqentemente per-manecido em departamentos de Filosofia, dos quais tm brotado tantas cincias especiais. Como sugerem essas indicaes, algumas vezes simplesmente a recepo de um paradigma que transforma numa profisso ou pelo menos numa disciplina um grupo que anterior-mente interessava-se pelo estudo da natureza. Nas cin-cias (embora no em campos como a Medicina, a Tec-nologia e o Direito, que tm a sua raison d'tre numa necessidade social exterior) a criao de jornais espe-cializados, a fundao de sociedades de especialistas e a reivindicao de um lugar especial nos currculos de

    1 0 . B A C O N . Op. cit. p . 2 1 0 .

    11. A histria da eletricidade proporciona um excelente exemplo que poderia ser duplicado a partir das carreiras de Priestley, Kelvin e outros. Franklin assinala que Nollet, que era o mais influente dos eletricistas europeus na metade do sculo, "viveu o bastante para chegar a ser o ltimo membro de sua seita, com a exceo do Sr. B. seu discpulo e aluno mais imediato" ( M A X FAKRAND (ed.), Benjamin Franklin's Memoirs [Berkeley, Califrnia, 1949], pp. 384-86). Mais interessante i o fato de escolas inteiras terem sobrevivido isoladas da cincia profissional. Con-sideremos, por exemplo, o caso da Astrologia, que fora uma parte inte-gral da Astronomia. Ou pensemos na continuao, durante o fim do sculo XVIII e comeo do XIX, de uma tradio anteriormente respeitada de Qumica "romntica". Essa tradio discutida por CHARLES C . G I L -LISPIE em "The ncyclopdie and the Jacobin Philosophy of Science: A Study in Ideas and Consequences", em Criticai Problems in the History oi Science, ed. Marshall Clagett (Madison, Wisconsin, 1959), pp. 255-89; e "The Formation of Lamarck's Evolutionary Theory", em Archives interna-tfonales d'histoire des sciences, XXXVII (1956), pp- 323-338.

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  • estudo, tm geralmente estado associadas com o mo-mento em que um grupo aceita pela primeira vez um paradigma nico. Pelo menos foi isso que ocorreu, h sculo e meio atrs, durante o perodo que vai desde o desenvolvimento de um padro institucional de es-pecializao cientfica at a poca mais recente, quan-do a parafernlia de especializaes adquiriu prestgio prprio. ^

    A definio mais estrita de grupo cientfico tem outras conseqncias, (Quando um cientista pode con-siderar um paradigma como certo, no tem mais neces-sidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo de estudos comeando pelos pri-meiros princpios e justificando o uso de cada conceito introduzido. Isso pode ser deixado para os autores de manuais./Mas, dado o manual, o cientista criador pode comear suas pesquisa onde o -manual a interrompe e desse modo concentrar-se exclusivamente nos aspectos mais sutis e esotricos dos fenmenos naturais que preocupam o grupo. Na medida em que fizer isso, seus relatrios de pesquisa comearo a mudar, seguindo tipos de evoluo que tm sido muito pouco estudados, mas cujos resultados finais modernos so bvios para todos e opressivos para muitos. Suas pesquisas j no sero habitualmente incorporadas a livros como Expe-rincias. .. sobre a Eletricidade de Franklin ou a Ori-gem das Espcies de Darwin, que eram dirigidos a to-dos os possveis interessados no objeto de estudo do campo examinado. Em vez disso, aparecero sob a for-ma de artigos breves, dirigidos apenas aos colegas de profisso, homens que certamente conhecem o para-digma partilhado e que demonstram ser os nicos ca-pazes de ler os escritos a eles endereados.

    Hoje em dia os livros cientficos so geralmente ou manuais ou reflexes retrospectivas sobre um ou outro aspecto da vida cientfica. O cientista que escreve um livro tem mais probabilidades de ver sua reputao^ comprometida do que aumentada. De uma maneira re-gular, somente nos primeiros estgios do desenvolvi-mento das cincias, anteriores ao paradigma, o livro possua a mesma relao com a realizao profissional que ainda conserva em outras reas abertas criativi-dade. somente naquelas reas em que o livro, com l ou sem o artigo, mantm-se como um veculo para a

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  • comunicao das pesquisas que as linhas de profissio-nalizao permanecem ainda muito tenuemente traa-das. Somente nesses .casos pode o leigo esperar manter-se a par dos progressos realizados fazendo a leitura dos relatrios originais dos especialistas. Tanto na Ma-temtica como na Astronomia, j na Antigidade os relatrios de pesquisas deixaram de ser inteligveis para um auditrio dotado de cultura geral. Na Dinmica, a pesquisa tornou-se igualmente esotrica nos fins da Idade Mdia, recapturando sua inteligibilidade mais ge-neralizada apenas por um breve perodo, durante o in-cio do sculo XVII, quando um novo paradigma subs-tituiu o que havia guiado a pesquisa medieval. rA pes-quisa eltrica comeou a exigir uma traduo para lei-gos no fim do sculo XVIII. Muitos outros campos da cincia fsica deixaram de ser acessveis no sculo XIX. Durante esses mesmos dois sculos transies simila-res podem ser identificadas nas diferentes reas das cincias biolgicas. Podem muito bem estar ocorrendo hoje, em determinados setores das cincias sociais. Em-bora se tenha tornado costumeiro (e certamente apro-priado) lamentar o hiato cada vez maior que separa o cientista profissional de seus colegas de outras disci-plinas, pouca ateno tem sido prestada relao es-sencial entre aquele hiato e os mecanismos intrnsecos ao progresso cientfico. ^

    Desde a Antigidade um campo de estudos aps o outro tem cruzado a divisa entre o que o historiador poderia chamar de sua pr-histria como cincia e sua histria propriamente dita. Essas transies maturi-dade raramente tm sido to repentinas ou to ine-quvocas como minha discusso necessariamente es-quemtica pode ter dado a entender. Mas tampouco foram historicamente graduais, isto , coextensivas com o desenvolvimento total dos campos de estudo em que ocorreram. Os que escreveram sobre a eletricidade du-rante as primeiras dcadas do sculo XVIII possuam muito mais informaes sobre os fenmenos eltricos que seus predecessores do sculo XVI. Poucos fen-menos eltricos foram acrescentados a seus conheci-mentos durante o meio sculo posterior a 1740. Apesar disso, em pontos importantes, a distncia parece maior entre os trabalhos sobre a eletricidade de Cavendish, Coulomb e Volta (produzidos nas trs ltimas dcadas

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  • do sculo XVIII) e os de Gray, Du Fay e mesmo Fran-klin (incio do mesmo sculo), do que entre esses lti-mos e os do sculo XVI.12 Em algum momento entre 1740 e 1780, os eletricistas tornaram-se capazes de, pela primeira vez, dar por estabelecidos os fundamen-tos de seu campo de estudo. Da para a frente orien-taram-se para problemas mais recnditos e concretos e passaram cada vez mais a relatar os resultados de seus trabalhos em artigos endereados a outros eletricistas, ao invs de em livros endereados ao mundo instrudo em geral. Alcanaram, como grupo, o que fora obtido pelos astrnomos na Antigidade, p^los estudantes do movimento na Idade Mdia, pela ptica Fsica no s-culo XVII e pela Geologia Histrica nos princpios do sculo XIX. Elaboraram um paradigma capaz de orien-tar as pesquisas de todo o grupo. S no se tem o poder de considerar os eventos retrospectivamente, tor-na-se difcil encontrar outro critrio que revele to cla-ramente que um campo de estudos tornou-se uma cinciaj

    12. Os desenvolvimentos posteriores a Franklin incluem um aumento enorme na sensibilidade dos detectores de carga, as primeiras tcnicas dignas de confiana e largamente difundidas para medir as cargas, a evo-luo do conceito de capacidade e sua relao com a noo de tenso eltrica, que fora recentemente refinada e ainda a quantificao da fora eletrosttica. Com respeito a todos esses pontos, consulte-se ROLLER & ROLLER, op. cit., pp. 6 6 - 8 1 ; W . C. WALKER, "The Detection and Estima-tion of Electric Charges in the Eighteenth Century", em Annals of Science, 1 ( 1 9 3 6 ) , pp. 6 6 - 1 0 0 ; e EDMUND HOPPE, Geschichte der Eletrizitf (Leipzig, 1884), Parte I, Caps. III-IV.

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  • 2. A NATUREZA DA CINCIA NORMAL

    Qual ento a natureza dessa pesquisa mais es-pecializada e esotrica permitida pela aceitao de um -paradigma nico por parte de um grupo? Se o para-digma representa um trabalho que foi completado de uma vez por todas, que outros problemas deixa para serem resolvidos pelo grupo por ele unificado? Essas questes parecero ainda mais urgentes se observarmos um aspecto no qual os termos utilizados at aqui podem,, ser enganadores. No seu uso estabelecido, um para- I digma um modelo ou padro aceitos. Este aspecto) de seu significado permitiu-me, na falta de termo me-lhor, servir-me dele aqui. Mas dentro em pouco ficar claro que o sentido de "modelo" ou "padro" no

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  • o mesmo que o habitualmente empregado na definio de "paradigma". Por exemplo, na Gramtica, "amo, amas, amat" um paradigma porque apresenta um padro a ser usado na conjugao de um grande n-mero de outros verbos latinos para produzir, entre outros, "laudo, laudas, laudat". Nesta aplicao costu-meira, o paradigma funciona ao permitir a reproduo de exemplos, cada um dos quais poderia, em princpio, substituir aquele. Por outro lado, na cincia, um para-digma raramente suscetvel de reproduo. Tal como uma deciso judicial aceita no direito costumeiro, o paradigma um objeto a ser melhor articulado e pre-cisado em condies novas ou mais rigorosas.

    Para que se compreenda como isso possvel, deve-mos reconhecer que um paradigma pode ser muito limi-tado, tanto no mbito como na preciso, quando de. sua primeira apario. Os paradigmas adquirem seu staus porque so mais bem sucedidos que seus com-petidores na resoluo de alguns problemas que o gru-po de cientistas reconhece como graves. Contudo, ser bem sucedido no significa nem ser totalmente bem su- r cedido com um nico problema, nem notavelmente bem sucedido com um grande nmero. De incio, o su-cesso de um paradigma seja a anlise aristotlica do movimento, os clculos ptolomaicos das posies planetrias, o emprego da balana por Lavoisier ou a matematizao do campo eletromagntico por Maxwell , em grande parte, uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em exemplos selecionados e ainda incompletos. A cincia normal consiste na atualizao dessa promessa, atualizao que se obtm ampliando-se o conhecimento daqueles fatos que o paradigma apre-senta como particularmente relevantes, aumentando-se a correlao entre esses fatos e as predies do para-digma e articlando-se ainda mais o prprio paradigma.

    Poucos dos que no trabalham realmente com uma cincia amadurecida do-se conta de quanto trabalho de limpeza desse tipo resta por fazer depois do esta-belecimento do paradigma ou de quo fascinante a execuo desse trabalho. Esses pontos precisam ser bem compreendidos. A maioria dos cientistas, durante toda a sua carreira, ocupa-se com operaes de lim-peza. Elas constituem o que chamo de cincia normal. Examinado de perto, seja historicamente, seja no labo-

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  • ratrio contemporneo, esse empreendimento parece ser uma tentativa de forar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente in-flexveis fornecidos pelo paradigma. A cincia normal no tem como objetivo trazer tona novas espcies de fenmeno; na verdade, aqueles que no se ajustam aos limites do paradigma freqentemente nem so vistos. Os cientistas tambm no esto constantemente pro-curando inventar novas teorias; freqentemente mos-tram-se intolerantes com aquelas inventadas por ou-tros.1 Em vez disso, a pesquisa cientfica normal est dirigida para a articulao daqueles fenmenos e teo-rias j fornecidos pelo paradigma.

    Talvez essas caractersticas sejam defeitos. As reas investigadas pela cincia normal so certamente minsculas; ela restringe drasticamente a viso do cien-tista. Mas essas restries, nascidas da confiana no paradigma, revelaram-se essenciais para o desenvolvi-mento da cincia. Ao concentrar a ateno numa faixa de problemas relativamente esotricos, o paradigma fora os cientistas a investigar alguma parcela da na-tureza com uma profundidade e de uma maneira to detalhada que de outro modo seriam inimaginveis. E a cincia normal possui um mecanismo interno que asse-gura o relaxamento das restries que limitam a pes-quisa, toda vez que o paradigma do qual derivam deixa de funcionar efetivamente. Nessa altura os cientistas co-meam a comportar-se de maneira diferente e a natu-reza dos problemas de pesquisa muda. No intervalo, en-tretanto, durante o qual o paradigma foi bem sucedido, os membros da profisso tero resolvido problemas que mal poderiam ter imaginado e cuja soluo nunca teriam empreendido sem o comprometimento com o paradigma. E pelo menos parte dessas realizaes sempre demons-tra ser permanente.

    Para mostrar mais claramente o que entendemos por pesquisa normal ou baseada em paradigma, tentarei agora classificar e ilustrar os problemas que constituem essencialmente a cincia normal. Por convenincia, adio o estudo da atividade terica e comeo com a coleta de fats, isto , com as experincias e observaes descri-

    1. BAKBER, Bernard. Resistance by Scientists to Scientific Discoveiy. Science, CXXXIV, pp. 596-602 (1961).

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  • tas nas revistas tcnicas, atravs das quais os cientistas informam seus colegas dos resultados de suas pesquisas em curso. De que aspectos da natureza tratam geral-mente esses relatrios? O que determina suas escolhas? E, dado que a maioria das observaes cientficas con-somem muito tempo, equipamento e dinheiro, o que mo-tiva o cientista a perseguir essa sscolha at uma con-cluso^

    Penso'que existem apenas trs focos normais para a investigao cientfica dos fatos e eles no so nem sempre nem permanentemente distintos. Em primeiro lugar, temos aquela classe de fatos que o paradigma mostrou ser particularmente reveladora da natureza das coisas. Ao empreg-los na resoluo de problemas, o paradigma tornou-os merecedores de uma determinao mais precisa, numa variedade maior de situaes. Numa poca ou noutra, essas determinaes significativas de fatos incluram: na Astronomia a posio e magni-tude das estrelas, os perodos das eclipses das estrelas duplas e dos planetas; na Fsica as gravidades e as compressibilidades especficas dos materiais, comprimen-tos de onda e intensidades espectrais, condutividades eltricas e potenciais de contato; na Qumica os pe-sos de composio e combinao, pontos de ebulio e a acidez das solues, as frmulas estruturais e as ativi-dades pticas. As tentativas de aumentar a acuidade e extenso de nosso conhecimento sobre esses fatos ocupam uma frao significativa de literatura da cin-cia experimental e da observao. Muitas vezes, comple-xos aparelhos especiais tm sido projetados para tais fins. A inveno, a construo e o aperfeioamento des-ses aparelhos exigiram talentos de primeira ordem, alm de muito tempo e um respaldo financeiro considervel. Os sncrotrons e os radiotelescpios so apenas os exem-plos mais recentes de at onde os investigadores esto dispostos a ir, se um paradigma os assegurar da impor-tncia dos fatos que pesquisam. De Tycho Brahe at E. O. Lawrence, alguns cientistas adquiriram grandes reputaes, no por causa da novidade de suas desco-bertas, mas pela preciso, segurana e alcance dos m-todos que desenvolveram visando redeterminao de categoria de fatos anteriormente conhecida.

    Uma segunda classe usual, porm mais restrita, de fatos a serem determinados diz respeito queles fenme-

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  • nos que, embora freqentemente sem muito interesse in-trnseco, podem ser diretamente comparados com as predies da teoria do paradigma. Como veremos em breve, quando passamos dos problemas experimentais aos problemas tericos da cincia normal, raramente en-contramos reas nas quais uma teoria cientfica pode ser diretamente comparada com a natureza, especialmente se expressa numa forma predominantemente matem-tica. At agora no mais do que trs dessas reas so acessveis Teoria Geral da Relatividade de Einstein.2 Alm disso, mesmo nas reas onde a aplicao poss-vel, freqentemente requer aproximaes tericas e ins-trumentais que limitam severamente a concordncia a ser esperada. Aperfeioar ou encontrar novas reas nas quais a concordncia possa ser demonstrada coloca um desafio constante habilidade e imaginao do ob-servador e experimentador. Telescpios especiais para demonstrar a paralaxe anual predita por Coprnico; a mquina de Atwood, inventada pela primeira vez quase um sculo depois dos Principia, para fornecer a pri-meira demonstrao inequvoca da segunda lei de New-ton; o aparelho de Foucault para mostrar que a velo-cidade da luz maior no ar do que na gua; ou o gi-gantesco medidor de cintilaes, projetado para a exis-tncia do neutrino esses aparelhos especiais e muitos outros semelhantes ustram o esforo e a engenhosi-dade imensos que foram necessrios para estabelecer um acordo cada vez mais estreito entre a natureza e a teoria.3 Esta tentativa de demonstrar esse acordo re-

    2. O nico ndice de verificao conhecido de h muito e ainda geral-mente aceito a precesso do perilio de Mercrio. A mudana para o vermelho no espectro de luz das estrelas distantes pode ser derivada de consideraes mais elementares do que a relatividade geral, e o mesmo parece possvel para a curvatura da luz em torno do Sol, um ponto atual-mente em discusso. De qualquer modo, medies desse ltimo fenmeno permanecem equvocas. Foi possvel, mais recentemente, estabelecer um ndice de verificao adicional: o deslocamento gravitacional da radiao de Mossbauer. Talvez em breve tenhamos outros ndices neste campo atualmente ativo, mas adormecido de h muito. Para uma apresentao resumida e atualizada do problema, ver L. I. SCHIFF, A Report on the NASA Conference on Experimental Tests of Theories of Relativity, Physics Today, XIV, pp. 42-48 (1961).

    3 . No que toca aos telescpios de paralaxe, ver ABRAHAM WOLF, A History vf Science, Technology, and Philosophy in the Eighteenth Century ( 2 . ed.; Londres, 1 9 5 2 ) , pp. 1 0 3 - 1 0 5 . Para a mquina de Atwood, ver N. R . H A N S O N , Pattems of Discovery (Cambridge, 1 9 5 8 ) , pp. 1 0 0 - 1 0 2 , 2 0 7 - 2 0 8 . Quanto aos dois ltimos tipos de aparelhos especiais, ver M. L. FOUCAULT, Mthode .gnrale pour mesurer la vitesse de la lumire dans l'air et les milieux transparents. Vitesses relatives de la lumire dans l'air et dans l'eau.. . , em Comptes rendus... de VAcadimie des sciences, XXX ( 1 8 5 0 ) , pp. 5 5 1 - 5 6 0 ; e C. L. COWAN, Jr. et al., Detection of the Free Neu-trino: A Confirmation, Science, CXXIV, pp. 1 0 3 - 1 0 4 ( 1 9 5 6 ) .

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  • presenta um segundo tipo de trabalho experimental nor-mal que depende do paradigma de uma maneira ainda mais bvia do que o primeiro tipo mencionado. A exis-tncia de um paradigma coloca o problema a ser resol-vido. Freqentemente a teoria do paradigma est dire-tamente implicada no trabalho de concepo da apa-relhagem capaz de resolver o problema. Sem os Prin-cipia, por exemplo, as medies feitas com a mquina de Atwood no teriam qualquer significado.

    Creio que uma terceira classe de experincias e ob-servaes esgota as atividades de coleta de fatos na cin-cia normal. Consiste no trabalho emprico empreendido para articular a teoria do paradigma, resolvendo algu-mas de suas ambigidades residuais e permitindo a so-luo de problemas para os quais ela anteriormente s tinha chamado a ateno. Essa classe revela-se a mais importante de todas e para descrev-la necessrio sub-dividi-la. Nas cincias mais matemticas, algumas das experincias que visam articulao so orientadas para a determinao de constantes fsicas. Por exemplo, a obra de Newton indicava que a fora entre duas unida-des de massa a uma unidade de distncia seria a mes-ma para todos os tipos de matria, em todas as posies do universo. Mas os problemas que Newton examinava podiam ser resolvidos sem nem mesmo estimar o tama-nho dessa atrao, a constante da gravitao universal. E durante o sculo que se seguiu ao aparecimento dos Principia, ningum imaginou um aparelho capaz de de-terminar essa constante. A famosa determinao de Ca-vendish, na ltima dcada do sculo XVIII, tampouco foi a ltima. Desde ento, em vista de sua posio cen-tral na teoria fsica, a busca de valores mais precisos para a constante gravitacional tem sido objeto de repe-tidos esforos de numerosos experimentadores de pri-meira qualidade.4 Outros exemplos de trabalhos do mes-mo tipo incluiriam determinaes da unidade astron-mica, do nmero de Avogadro, do coeficiente de Joule, de carga eltrica, e assim por diante. Poucos desses com-plexos esforos teriam sido concebidos e nenhum teria

    4. J. H. P[OYNTINO] examina umas duas dzias de medidas da cons-tante gravitacional efetuadas entre 1741 e 1901 em "Gravitational Constant and Mean Density of the Earth", Encycopedia Britannica (11. ed. Cam-bridge, 1910-11), XII, pp. 385-389.

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  • sido realizado sem uma teoria do paradigma para definir o problema e garantir a existncia de uma soluo estvel.

    Contudo, os esforos para articular um paradigma no esto restritos determinao de constantes univer-sais. Podem, por exemplo, visar a leis quantitativas: a Lei de Boyle, que relaciona a presso do gs ao volume, a Lei de Coulomb sobre a atrao eltrica, e a frmula de Joule, que relaciona o calor produzido resistncia e corrente eltrica todas esto nessa categoria. Tal-vez no seja evidente que um paradigma um pr-requi-sito para a descoberta de leis como essas. Ouvimos fre-qentemente dizer que elas so encontradas por meio do exame de medies empreendidas sem outro objetivo que a prpria medida e sem compromissos tericos. Mas a histria no oferece nenhum respaldo para um mtodo to excessivamente baconiano. As experincias de Boyle no eram concebveis (e se concebveis teriam recebido uma outra interpretao ou mesmo nenhuma) at o mo-mento em que o ar foi reconhecido como um fluido el-trico ao qual poderiam ser aplicados todos os elaborados conceitos de Hidrosttica.5 O sucesso de Coulomb de-pendeu do fato de ter construdo um aparelho especial para medir a fora entre cargas extremas. (Aqueles que anteriormente tinham medido foras eltricas com ba-lanas de pratos comuns, e t c . . . no encontraram ne-nhuma regularidade simples ou coerente.) Mas essa con-cepo do aparelho dependeu do reconhecimento prvio de que cada partcula do fluido eltrico atua a distncia sobre todas as outras. Era a fora entre tais partculas a nica fora que podia, com segurana, ser consi-derada uma simples funo da distncia que Cou-lomb estava buscando.6 As experincias de Joule tam-bm poderiam ser usadas para ilustrar como leis quan-titativas surgem da articulao do paradigma. De fato: a relao entre paradigma qualitativo e lei quantitativa

    5. Para a transplantao dos conceitos de Hidrosttica para a Pneu-mtica, ver The Physlcal Treatises of Pascal, traduzido por I. H. B. Spiers e A. G. H. Spiers, com introduo e notas por F. Barry (Nova York, 1937). Na p. 164 encontramos a introduo original de Torricelli ao paralelismo ("Ns vivemos submergidos no fundo de um oceano do ele-mento ar"). Seu rpido desenvolvimento apresentado nos dois tratados principais.

    6 . ROLLER, Duane & ROLLER, Duane H. D. The Development of lhe Concept of Electric Charge: Electrlcity from the Greeks to Coulomb ("Harvard Case Histories in Experimental Science", Case 8; Cambridge, Mass., 1954), pp. 66-80.

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  • to geral e to estreita que, desde Galileu, essas leis com freqncia tm sido corretamente adivinhadas com o auxlio de um paradigma, anos antes que um aparelho possa ser projetado para sua determinao ex-perimental.7 ^

    Finalmente, existe uma terceira espcie de expe-rincia que visa articulao de um paradigma. Esta, mais do que as anteriores, pode assemelhar-se explo-rao e predomina especialmente naqueles perodos e cincias que tratam mais dos aspectos qualitativos ,das regularidades da natureza do que dos quantitativos/Fre-qentemente um paradigma que foi desenvolvido para um determinado conjunto de problemas ambguo na sua aplicao a outros fenmenos estreitamente relacio-nados. Nesse caso experincias so necessrias para per-mitir uma escolha entre modos alternativos de aplicao do paradigma nova rea de interesse^ Por exemplo, as aplicaes do paradigma da teoria calorfica referiam-se ao aquecimento e resfriamento por meio de misturas e mudana de estado. Mas o calor podia ser liberado ou absorvido de muitas outras maneiras por exemplo, por combinao qumica, por frico e por compresso ou absoro de um gs e a cada um desses fen-menos a teoria podia ser aplicada de diversas maneiras. Por exemplo, se o vcuo tivesse uma capacidade tr-mica, o aquecimento por compresso poderia ser expli-cado como sendo o resultado da mistura do gs com o vazio. Ou poderia ser devido a uma mudana no calor especfico de gases sob uma presso varivel. E existem vrias outras explicaes alm dessas. Muitas experin-cias foram realizadas para elaborar essas vrias possi-bilidades