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JUSTIÇA RESTAURATIVA E PROCESSO PENAL CONTEMPORÂNEO: UMA PERSPECTIVA DE PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Lucas P. Carapiá Rios 1 [email protected] RESUMO: A Justiça Restaurativa estabelece premissas dialógicas e de descentralização das respostas ao conflito, essencialmente diversas das estruturas dominantes, que deslocariam a figura do Estado da condição de prescritor de comandos previamente emoldurados para o lugar de garantidor da proteção dos direitos humanos e fundamentais dos cidadãos, nas soluções aos conflitos criminais por estes apresentados. Tais premissas possuem significativa influência na “ciência normal” do processo penal e apontam no sentido da necessária reflexão desse ramo do Direito, revelando-se urgente a necessidade de se adotar uma postura de pesquisa extraordinária. No período contemporâneo parece ter virado um chavão discorrer sobre a crise nas mais variadas áreas da pesquisa científica. Tal constatação, entretanto, não retira a necessidade recorrente dos pesquisadores de questionarem e reestruturarem as suas próprias ciências, movidos justamente por esse desconforto que a sensação de crise provoca. No âmbito do Direito Processual Penal é possível perceber um constante distanciamento deste para com o Direito Penal e, ainda mais, dos seus preceitos básicos como mecanismos eficazes de suporte na promoção de solução aos conflitos criminais tendo como pressuposto a preservação dos direitos humanos. A constatação de que o Estado contemporâneo, buscando atender às demandas de um tempo dito pós- moderno, precisaria romper com alguns paradigmas exclusivistas e de protagonismo institucional, permitindo a penetração de instrumentos cooperativos e atuando com um caráter menos prescritivo, é indissociável da conclusão de que os correspondentes padrões jurídicos também precisariam ser repensados. No Processo Penal, as novas concepções trazidas pela Justiça Restaurativa oferecem modelos de maior participação da vítima e consequente empoderamento dos envolvidos, espaço verdadeiramente dialogal, e transferência do foco, ou parte dele, para as relações subjetivas com vistas à solução do conflito criminal. PALAVRAS CHAVE: Justiça Restaurativa; Processo Penal; Direitos Humanos. 1 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Subárea: Direito Penal; Linha de Pesquisa: Justiça Restaurativa. Pós graduado em Ciências Criminais e em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito / Escola de Magistrados do Estado da Bahia (EMAB). Professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Jorge Amado e de cursos de Pós Graduação. Membro efetivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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JUSTIÇA RESTAURATIVA E PROCESSO PENAL CONTEMPORÂNEO: UMA

PERSPECTIVA DE PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Lucas P. Carapiá Rios1

[email protected]

RESUMO:

A Justiça Restaurativa estabelece premissas dialógicas e de descentralização das respostas ao

conflito, essencialmente diversas das estruturas dominantes, que deslocariam a figura do Estado

da condição de prescritor de comandos previamente emoldurados para o lugar de garantidor da

proteção dos direitos humanos e fundamentais dos cidadãos, nas soluções aos conflitos

criminais por estes apresentados. Tais premissas possuem significativa influência na “ciência

normal” do processo penal e apontam no sentido da necessária reflexão desse ramo do Direito,

revelando-se urgente a necessidade de se adotar uma postura de “pesquisa extraordinária”. No

período contemporâneo parece ter virado um chavão discorrer sobre a crise nas mais variadas

áreas da pesquisa científica. Tal constatação, entretanto, não retira a necessidade recorrente dos

pesquisadores de questionarem e reestruturarem as suas próprias ciências, movidos justamente

por esse desconforto que a sensação de crise provoca. No âmbito do Direito Processual Penal é

possível perceber um constante distanciamento deste para com o Direito Penal e, ainda mais,

dos seus preceitos básicos como mecanismos eficazes de suporte na promoção de solução aos

conflitos criminais tendo como pressuposto a preservação dos direitos humanos. A constatação

de que o Estado contemporâneo, buscando atender às demandas de um tempo dito pós-

moderno, precisaria romper com alguns paradigmas exclusivistas e de protagonismo

institucional, permitindo a penetração de instrumentos cooperativos e atuando com um caráter

menos prescritivo, é indissociável da conclusão de que os correspondentes padrões jurídicos

também precisariam ser repensados. No Processo Penal, as novas concepções trazidas pela

Justiça Restaurativa oferecem modelos de maior participação da vítima e consequente

empoderamento dos envolvidos, espaço verdadeiramente dialogal, e transferência do foco, ou

parte dele, para as relações subjetivas com vistas à solução do conflito criminal.

PALAVRAS CHAVE: Justiça Restaurativa; Processo Penal; Direitos Humanos.

1 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Subárea: Direito Penal; Linha de

Pesquisa: Justiça Restaurativa. Pós graduado em Ciências Criminais e em Direito Público pela Faculdade Baiana

de Direito / Escola de Magistrados do Estado da Bahia (EMAB). Professor de Direito Processual Penal do Centro

Universitário Jorge Amado e de cursos de Pós Graduação. Membro efetivo do Instituto Baiano de Direito

Processual Penal (IBADPP).

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INTRODUÇÃO

No período contemporâneo parece ter virado um chavão, quase um topoi, discorrer sobre a

crise nas mais variadas áreas da pesquisa científica. Tal constatação, entretanto, não retira a

necessidade recorrente dos pesquisadores de questionarem e reestruturarem as suas próprias

ciências, movidos justamente por esse desconforto que a sensação de crise provoca. No âmbito

do Direito Processual Penal é possível perceber um constante distanciamento deste para com o

Direito Penal e, ainda mais, dos seus preceitos básicos como mecanismos eficazes de suporte

na promoção de solução aos conflitos criminais.

A constatação de que o Estado contemporâneo, buscando atender às demandas de um tempo

dito pós-moderno, precisaria romper com alguns paradigmas exclusivistas e de protagonismo

institucional, permitindo a penetração de instrumentos cooperativos e atuando com um caráter

menos prescritivo, é indissociável da conclusão de que os correspondentes padrões jurídicos

também precisariam ser, ao menos, repensados. No Processo Penal, as novas concepções

trazidas pela Justiça Restaurativa estimulam um ambiente de discussão e oferecem modelos de

maior participação da vítima e consequente empoderamento das partes, maior espaço

verdadeiramente dialogal2, e transferência do foco, ou parte dele, para as relações subjetivas

com vistas à solução do conflito criminal.

Impulsionado a escrever sobre o tema, verifica-se, inicialmente, justamente por conta de

certa banalização da expressão crise, a necessidade de se buscar uma abordagem metodológica

e conceitualmente embasada. Por essa razão, a abordagem de grande parte do trabalho é feita

2 Deve-se fazer a ressalva de que o espaço de suposto consenso criado no âmbito dos Juizados Especiais Criminais

não se revelou como verdadeiro espaço dialogal. Tal discussão, aliás, já fora exaustivamente feita por diversos

autores, a exemplo das seguintes obras: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (Org.). Novos

Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; e KARAM, Maria Lúcia.

Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2004; dentre outras. Sobre a necessária distinção entre os mecanismos pretensamente consensuais

criados pelos Juizados Criminais e a Justiça Restaurativa, este mesmo pesquisador já publicou o seguinte trabalho:

CARAPIÁ RIOS, Lucas P. Uma contraposição entre os sistemas de negociação de pena e a Justiça

Restaurativa: ensaio para manutenção de um Processo Penal Garantista. In: Justiça Restaurativa: Um Sistema

Jurídico Penal mais Humano e Democrático. Salvador: UFBA, 2014, v. 1, p. 217-238 (texto também disponível

em: https://www.academia.edu)

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sob as concepções metodológicas de Thomas Kuhn, e sua análise acerca da “estrutura das

revoluções científicas”.

Diante dessa provocação inicial de crise e cotejo entre teorias, é que surge a seguinte questão:

A Justiça Restaurativa se apresenta metodologicamente como uma revolução científica, nos

termos em que estruturada por Thomas Khun, apta à construção de um novo paradigma de

humanização do processo orientando para a solução dos conflitos de caráter criminal?

Para tanto, são abordadas, inicialmente, as premissas conceituais e a dinâmica da teoria de

Thomas Kuhn. Em momento posterior, estabelece-se um panorama geral de preceitos trazidos

pela Justiça Restaurativa para, ao final, promover um cotejo de nível crítico e problematizador,

sob o enfoque da estrutura das revoluções científicas, entre algumas deficiências do processo

penal em relação às demandas do Estado contemporâneo e a restauratividade como proposta de

paradigma diverso e realizador de uma ampliação da dimensão de preservação dos direitos

humanos.

1. THOMAS KUHN: O MARCO METODOLÓGICO

Como primeira etapa da tarefa de identificar se os preceitos trazidos às ciências criminais

pela Justiça Restaurativa promovem uma transformação paradigmática no âmbito do Direito

Processual Penal, deve-se traçar um marco semântico e metodológico acerca de noções como

“ciência”, “anomalia”, “revolução” e “paradigma”, considerando que tais premissas marcarão

todo o contexto problematizador dessa investigação. Assim, de plano importa destacar a escolha

das concepções trazidas pelo filósofo Thomas Kuhn como marco metodológico que estruturará

o percurso seguido pela pesquisa.

Numa perspectiva geral, em sua obra “A estrutura das Revoluções” (1998), posicionada no

campo da filosofia da ciência, Thomas Kuhn rechaça o ideal naturalista e de afastamento do

pesquisador do seu objeto de pesquisa como forma de tornar objetiva a ciência. Refuta, aliás, a

própria noção racional de objetividade da ciência. Ao contrário, Kuhn apresenta um enfoque de

relatividade e historicismo para demonstrar que a ciência não é meramente experimental e

objetiva, mas construída subjetivamente, tendo por referências aspectos psicológicos e

sociológicos do grupo em determinados limites espacial e temporal. Essa visão fica evidenciada

no seguinte trecho da obra: “Se não se tem o poder de considerar os eventos retrospectivamente

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torna-se difícil encontrar outro critério que revele tão claramente que um campo de estudos

tornou-se ciência” (1998, pg. 42). Nessa ótica, a ciência não é entendida como um mero teste

de adequação das teorias à realidade, mesmo porque a verdade é tratada como relacional e

interna ao próprio paradigma.

1.1 DEFINIÇÕES E CONCEITOS ESSENCIAIS:

Conforme antecipado, pois, para os fins instrumentais deste primeiro labor, de cunho

metodológico, serão tratados mais especificamente alguns conceitos importantes da obra do

recorrido autor.

1.1.1 Ciência normal:

Pelo que se pode extrair do pensamento de Thomas Kuhn, resta evidente que a ciência tratada

por ele como normal é aquela que ocupa a maior parte do labor dos pesquisadores. Isso porque

se materializa em pesquisas consolidadas em formulações científicas anteriores por meio das

quais o paradigma adotado é aperfeiçoado e utilizado como modelo para a solução dos

problemas que o autor chama de quebra-cabeças. Essas formulações científicas que embasam

e constituem o paradigma “são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade

científica3 específica, proporcionando os fundamentos para a sua prática posterior” (1998, pg.

29).

Assim, a concepção de ciência normal de Kuhn pressupõe a existência de determinado grupo

de pesquisadores comprometidos e em consenso com os padrões da prática científica, isto é,

“para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada” (1998, págs. 30-31).

Como desdobramento, observa-se que a ciência normal é responsável pelo aprofundamento a

3 No posfácio da obra, publicado quase sete anos após a sua primeira edição, Thomas Kuhn explica que o conceito

de comunidade científica está relacionado com o próprio paradigma, na proporção em que aquela se define como

o conjunto de “homens que partilham um paradigma” (1998, pg. 219).

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articulação do conhecimento em torno do paradigma, ampliando a eficácia deste na tarefa de

oferecer resposta ao fatos e fenômenos.

Uma vez estabelecido o paradigma, a ciência normal produz relevante “operação de

limpeza” (1998, pg. 44), apta a promover uma depuração desse novo modelo e sua consequente

consolidação. Assim, segundo o autor, não seria tarefa da ciência normal revelar novas espécies

de fenômenos, senão a de articulação dos fenômenos e teorias que já se apresentam, implícita

ou explicitamente, no interior do paradigma. Tal constatação não inferioriza o trabalho dos

pesquisadores do campo não revolucionário. Ao revés, esse labor de desenvolvimento e

articulação das ideias constantes do paradigma, operado através da ciência normal, é tratado

por Thomas Kuhn como uma tarefa científica permanente e de extrema relevância para a

solução dos problemas que não foram resolvidos de plano pelo próprio evento revolucionário

de criação daquele modelo.

Embora mais distantes da delimitação do presente texto, vale destacar que, aliado ao objetivo

maior4 já mencionado, explica o autor que o papel da ciência normal seria, ainda, o de promover

a “determinação dos fatos significativos” e a “harmonização” desses fatos com a teoria (1998,

pg. 55).

1.1.2 Paradigma:

Como já se pôde perceber, o conceito de paradigma revela-se crucial para o entendimento

de todo o trabalho de Thomas Kuhn. Tamanha é a sua relevância, que Kuhn apenas admite a

invalidade de um paradigma quando este é substituído por um alternativo:

Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir, simultaneamente, aceitar

outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos

os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua. (1998,

pg. 108)

4 O de articular, aprofundar e desenvolver o paradigma.

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Igualmente já restou evidenciado que o conceito de paradigma está intimamente associado

ao de ciência normal. Isso porque o autor é recorrente em afirmar que “o paradigma define a

ciência” (1998, pg. 55). Mais especificamente, na concepção de Kuhn, o paradigma delimita e

regula o conhecimento científico, sendo formado pelos seguintes elementos: leis e pressupostos

teóricos fundamentais; regras de aplicação dessas leis à realidade; regras para a utilização de

instrumentos científicos; princípios metafísicos e filosóficos; regras metodológicas gerais.

De maneira mais clara, em posfácio, Kuhn esclarece (1998, pg. 218) que o termo paradigma

é utilizado por ele com dois sentidos diferentes: “de um lado indica toda a constelação de

crenças, valores partilhados pelos membros de uma comunidade determinada”. Esse foi o

significado abordado até aqui. Noutra senda, também se poderá compreender por paradigma

“as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem

substituir regras explícitas como base para a solução dos resultantes quebra-cabeças das

ciências normais”.

1.1.3 Quebra-cabeças e Anomalias:

Thomas Kuhn define os quebra-cabeças como problemas intrigantes que se colocam à frente

e reclamam solução por parte dos paradigmas. Trata-se de uma “categoria particular de

problemas que servem para testar nossa engenhosidade ou habilidade na (sua) resolução” (1998,

pg. 59). Não deixa de ressalvar, entretanto, que “os problemas realmente importantes em geral

não são quebra-cabeças (veja-se o exemplo da cura do câncer ou o estabelecimento de uma paz

duradoura), em grande parte porque talvez não tenham nenhuma solução possível” (1998, pg.

60).

A anomalia, por sua vez, constitui uma falha de funcionamento do paradigma, podendo

provocar alguns diferentes resultados e sempre tendo como pressuposto que a pesquisa baseada

em um paradigma deve estar sujeita e possuir instrumentos capazes de provocar modificações

no modelo. “A consciência da anomalia é o reconhecimento de que, de alguma maneira, a

natureza violou as expectativas paradigmáticas que governavam a ciência normal” (1998, pg.

78).

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No aparato vocabular de Kuhn, as anomalias são o “contra-exemplo” (1998, pg. 107) dos

paradigmas, que podem conduzir a sua mudança de maneira construtiva, hipótese em que quase

sempre se comportará como um quebra-cabeça da ciência normal.

Por outro lado, as anomalias podem ser a fonte de uma crise (1998, pg. 110), embora,

ratifique-se, nem todas elas sejam suficientes para tanto. Nesse caso, “quando uma anomalia

parece ser algo mais do que um novo quebra-cabeça da ciência normal, é sinal de que se iniciou

a transição para a crise e para a ciência extraordinária. A própria anomalia passa a ser mais

comumente reconhecida como tal para os cientistas” (1998, págs. 113-114).

A persistência das anomalias, pois, além de suscitarem a crise promovem uma postura

desconstrutiva em relação ao paradigma, que passa a ser ameaçado por uma pesquisa cujas

descobertas produzam novas espécies de fenômenos. Para Kuhn, as descobertas das quais

surgem novas espécies de fenômenos possuem três características básicas:

consciência prévia da anomalia, emergência gradual e simultânea de um

reconhecimento tanto no plano conceitual como no plano da observação e

a consequente mudança das categorias e procedimentos paradigmáticos –

mudança muitas vezes acompanhada por resistência. (1998, pg. 89)

Nesse estágio, a situação de crise começa a se instalar, diante da insuficiência do paradigma

para solucionar adequadamente as falhas então expostas. O período de crise, pois, produz

terreno fértil para a mudança de postura dos cientistas, como veremos, tornando-se o prenúncio

da alteração de foco na produção da ciência.

1.1.4 Crise:

A crise se inaugura gradativamente e por razões variadas, provocando uma “proliferação de

versões do paradigma (que) enfraquece as regras de resolução dos quebra-cabeças da ciência

normal, de tal modo que (pode) acabar permitindo a emergência de um novo paradigma” (1998,

pg. 110). Nesse sentido, Kuhn revela que no início de toda crise observa-se o “obscurecimento

de um paradigma e o consequente relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal”

(1998, pg. 115).

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A persistência das anomalias, característica conformadora da crise, segundo Thomas Kuhn,

definitivamente ameaça o estado de ciência normal. A solução para esses problemas

persistentes, contudo, muitas vezes acaba sendo parcial ou totalmente antecipada por algum

pesquisador, num momento em que a ciência correspondente não se encontrava em crise e,

justamente em virtude esse ambiente normal, tal solução acaba sendo ignorada (1998, pg. 103).

A atividade da pesquisa nos períodos de crise aproxima-se de uma atividade pré-

paradigmática, mas ainda com pontos de divergência menores e menos claramente definidos.

Por conseguinte, em suas consequências, as crises podem conduzir a três eventos:

Algumas vezes a ciência normal acaba revelando-se capaz de tratar do

problema que provoca crise, apesar do desespero daqueles que o viam

como o fim do paradigma existente. Em outras ocasiões o problema resiste

até mesmo a novas abordagens aparentemente radicais. Nesse caso, os

cientistas podem concluir que nenhuma solução para o problema poderá

surgir no estado atual da área de estudo. O problema recebe então um rótulo

e é posto de lado para ser resolvido por uma futura geração que disponha

de instrumentos mais elaborados. Ou, finalmente, o caso que mais nos

interessa: uma crise pode terminar com a emergência de um novo

candidato a paradigma e com a subsequente batalha por sua aceitação.

(1998, págs. 115-116)

Assim, a consequência final mais instigante da crise para a ciência e que melhor se adequa

ao objetivo do presente trabalho é justamente essa última, na medida em que estimula no

pesquisador uma postura de incerteza fértil para geração de novas estruturas de pensamento.

Tal desconforto, por si só, já se mostra de fundamental relevo para que a ciência passe à sua

etapa “extraordinária”, abandonando a aparente calmaria e fazendo-se ser submetida a uma

revisão dos seus próprios termos, ainda que não se alcance o estágio da revolução e completa

troca de paradigma, o que, nesse contexto, parece ter menor importância. Essa revolução,

todavia, também pode ocorrer num processo de crise, conforme observa Thomas Kuhn:

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir

uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo

cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes

uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios,

reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais

elementares do paradigma, bem como muitos dos seus métodos e

aplicações. (1998, pg. 116)

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No Direito, em geral, e conforme se buscará apontar ao final, a crise parece começar em

meio externo em relação à ciência5. É que a anomalia, como inadequação no vínculo entre a

teoria e a “natureza”, poderia não partir de dentro da própria ciência do Direito, mas de fora

dela, na medida em que as relações e interações sociais produzem seus próprios problemas que,

no final das contas, serão o objeto de estudo da maioria das ciências jurídicas.

Com efeito, pode-se entender que a anomalia surge fora do Direito e, por conseguinte,

também externamente se desenvolve a crise que, ao desencadear um estado de pesquisa

extraordinária, pode promover uma revolução na própria ciência, com consequente alteração

de algum paradigma.

1.1.5 Pesquisa extraordinária e Revolução Científica:

A pesquisa extraordinária tende a ser preparatória de um novo paradigma, ainda que este não

seja criado. Algumas vezes, entretanto, “a forma do novo paradigma prefigura-se na estrutura

que a pesquisa extraordinária deu à anomalia” (1998, pg. 121). A atividade de pesquisa

extraordinária é desencadeada a partir do momento em que os pesquisadores são confrontados

com anomalias ou crises, oportunidade em que passam a adotar uma atitude diferente com

relação aos paradigmas existentes, transformando-se, na mesma proporção, a natureza das

pesquisas a partir de então realizadas. Seguindo os padrões de Thomas Kuhn:

A proliferação de articulações concorrentes, a disposição de tentar

qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à

Filosofia e ao debate sobre os fundamentos, são sintomas de uma transição

da pesquisa normal para a extraordinária. A noção de ciência normal

depende mais desses fatores do que da existência das revoluções. (1998,

pg. 123).

Em suma, a pesquisa extraordinária pressupõe a adoção de uma postura diversa daquela

tradicionalmente adotada na ciência normal, constituindo-se num caminho necessário para a

provocação de alterações paradigmáticas que busquem oferecer soluções mais adequadas aos

5 Talvez tenha sido essa a leitura feita por Kuhn quando utilizou a expressão “necessidade social exterior” (1998,

pg. 39).

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problemas apresentados e que não poderiam ter sido alcançadas pela adoção integral do

paradigma em crise. Essa postura, pois, pode levar ao reconhecimento da necessidade de

substituição do próprio paradigma, oportunidade em que seria premente a ocorrência de uma

revolução científica.

Noutra senda, de modo bastante objetivo Thomas Kuhn assevera que as “revoluções

científicas são episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais

antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior” (1998,

pg. 125). O “sentimento de funcionamento defeituoso” provocado pelas anomalias e, conforme

sua persistência, a eclosão de uma crise, são os pré-requisitos para as revoluções científicas.

A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de

insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga

escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da

ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo

fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os

resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para

uma busca de novas regras (1998, pg. 95).

É interessante perceber que, uma vez estabelecido esse novo paradigma, retornar-se-ia a um

período de “ciência normal”, em que os pesquisadores trabalhariam sob a luz daquelas ideias e

buscando utiliza-las para solucionar problemas e enigmas diversos, atitudes que também

serviriam para consolidar esse paradigma então posto.

1.2 A DINÂMICA DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA:

Em apertada síntese, pode-se dizer que a teoria apresentada por Thomas Kuhn se apresenta

da seguinte forma: um paradigma, que define e regula o trabalho científico, ou parte dele, em

determinada área de investigação, após se consolidar, dá ensejo a um período de pesquisa

produto da ciência normal. Nesse período, a atividade científica não busca contrariar o

paradigma, senão que utiliza os seus ensinamentos para solucionar problemas, por vezes

denominados quebra-cabeças, e, com isso, acaba por estruturar e aprofundar a aplicação do

paradigma já posto.

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Nalgumas oportunidades, entretanto, os pesquisadores se deparam com anomalias que, de

maneira recorrente, resistem a serem resolvidas pelo paradigma vigente, reclamando solução

diversa e, à medida que se amontoam, configurando uma crise. Diante desse período de crise,

a discussão das anomalias e uma atitude de pesquisa diferente começa a surgir, partindo do

pressuposto da insuficiência do paradigma e buscando a criação de um modelo mais adequado

à solução demandada.

Esse seria, pois, o período de ciência extraordinária, pós-ciência normal e pré-paradigmático,

por meio do qual, eventualmente, pode surgir um novo paradigma.Quando esse novo

paradigma, que de maneira gradual vai sendo discutido pela comunidade científica, é

amplamente aceito, pode-se falar em revolução científica. Em seguida à consolidação desse

novo paradigma retornar-se-ia ao período de ciência normal, completando-se o ciclo proposto

por Thomas Kuhn como estrutural das revoluções da ciência.

2. DELINEAMENTOS NECESSÁRIOS SOBRE A JUSTIÇA RESTAURATIVA NUM

PANORAMA DE AMPLIAÇÃO DA DIMENSÃO HUMANA:

Possui razoável consenso entre autores que tratam da Justiça Restaurativa a ideia de que não

se pode reduzir o entendimento do tema numa essência conceitual simples. O signo da Justiça,

por si só, remete a concepções plurais que não poderiam deixar de integrar as preocupações de

estudo em torno da Justiça Restaurativa. Todavia, alguma delimitação é necessária para fins

instrumentais. De acordo com Leonardo Sica (2007, p. 10), “mais do que uma teoria, a Justiça

Restaurativa é um conjunto de práticas em busca de uma teoria”, que tem como precedentes

históricos os mecanismos de diversion (diversificação ou derivação) e os movimentos

descarcerizantes da década de 70 na América do Norte.

De maneira ampla, ações que se dirijam à solução do conflito criminal por meio da reparação

do dano causado pelo crime, com participação ativa dos atores envolvidos, podem ser

consideradas práticas restaurativas, que se adequarão a um ou outro modelo de Justiça

Restaurativa conforme suas peculiaridades. Em relação ao sistema de Justiça tradicional, altera-

se, principalmente, o foco de visão: deixa-se de centrar as discussões em torno do crime e da

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dogmática conceitual do mesmo para ter como preocupação principal a resolução do conflito

que envolve autor e vítima e afeta a comunidade.

Assim, diante do objetivo preponderante de pacificação, comumente utiliza-se a mediação6

como técnica de resolução dos conflitos interpessoais e pauta-se na busca pela diminuição da

violência do sistema penal tradicional. Essa busca por menores níveis de violência atende a um

preceito de fundamental e constante preocupação no Estado Democrático de Direito, que se

revela na centralidade dos Direitos Humanos como mote do sistema jurídico. O autor já

mencionado (2007, p. 185) assevera que “o crime não pode ser visto como uma ordem para

punir, mas como um sinal para movimentação dos mecanismos penais, incluindo os não

punitivos”.

Howard Zehr (2012, p. 34), por seu turno, indica que os objetivos buscados pelo ideal

restaurativo não configuram algo totalmente novo, na medida em que já se verificavam em

comunidades primitivas (índios, tribos africanas...), embora a configuração atual da Justiça

Restaurativa possua precedentes nos idos de 1970, no Canadá e EUA. Zehr destaca como pilares

da Justiça Restaurativa a preocupação com o dano sofrido pelo ofendido, bem como o

vivenciado pela comunidade e pelo ofensor, a obrigação de corrigir o mencionado dano e, por

fim, o engajamento daqueles que possuem “legítimo interesse no caso e em sua solução”. O

autor parte de uma perspectiva segundo a qual a Justiça Restaurativa abandona o projeto

meramente retributivo para se preocupar justamente com as necessidades que não estão sendo

atendidas por esse sistema penal tradicional, especialmente no que diz respeito à necessidade

de maior participação da vítima na resolução do conflito.

É importante destacar que a Justiça Restaurativa busca se inserir no âmbito da política

criminal, como opção de resposta pretensamente mais qualificada ao conflito, compreendendo

melhor o problema sob a ótica da relação entre os sujeitos e buscando, ao invés da mera

retribuição ao crime, oferecer uma resposta pacificadora que atenda aos interesses da vítima,

implique o ofensor em sua reponsabilidade reparadora e insira a comunidade no contexto da

reparação, sem descuidar da preservação de direitos e garantias fundamentais.

6 Não se pode olvidar que há, por outro lado, diversas ressalvas acerca da utilização da mediação como ferramenta

eficaz na condução dos acordos restaurativos.

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É cediço que um dos principais pilares do movimento de Justiça Restaurativa no mundo tem

sido a colocação da vítima como uma das figuras centrais na solução do conflito. De acordo

com Guilherme Câmara (2008, p. 38), a partir da Idade Média a gradativa sub-rogação do jus

puniendi fez com que a vítima fosse subtraída do conflito, dando lugar à vontade punitiva (e

também de perdão) dos “monarcas de Emergentes Estados Nacionais”. Com efeito, a resposta

dada ao problema passou a ter um caráter funcional de demonstração de poder e reafirmação

da força do soberano. Tal alheamento da vítima perpetua-se, segundo aponta Câmara (2008, p.

42), mesmo após as revoluções humanitárias do Século XVIII, quando esse distanciamento do

ofendido passa a ser um mecanismo protetor do acusado, tratado como fundamental para

impedir o retorno dos tempos de vingança privada.

No campo do Direito Processual Penal, esse fator preventivo, de acusação pública e

obrigatória como forma de revelar impessoalidade e óbice à realização da vingança da vítima,

possui um poder de generalização que se espraia por grande parte das construções teóricas dos

institutos processuais, funcionando como verdadeiro paradigma. Conforme se verá, na medida

em que a ciência penal vai se apropriando dessa visão de resposta não calcada numa punição

previamente escolhida, mas que se preocupe com a solução do conflito e, por consequência,

promova um maior empoderamento das pessoas envolvidas7, a manutenção imutável do

paradigma referido alhures para o direito processual penal faz com que este perca

gradativamente a sua capacidade de se relacionar com o direito penal, instalando-se, pois, uma

crise de instrumentalidade do primeiro para com o segundo.

Ao que parece, as mudanças de referencial8 e de protagonistas9 revelam uma alteração

estrutural tão profunda no modelo penal que talvez reclamem, ao menos, a inauguração de uma

via de pesquisa extraordinária, tanto no campo do direito material, como no âmbito processual,

preocupação focal deste trabalho.

7 Em especial, da vítima, considerando o déficit de sua participação na persecução criminal, conforme destacado

no plano histórico imediatamente anterior. 8 Foco principal na solução do conflito, ao invés da cega punição com base em medidas previamente escolhidas e

que não levam em consideração as peculiaridades do conflito. 9 Que passa a tratar a relação intersubjetiva e, portanto, as pessoas envolvidas no conflito como o centro da solução

do problema.

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3. INSUFICIÊNCIAS DO PROCESSO PENAL, CRISE PARADIGMÁTICA E

RESTAURATIVIDADE COMO “CANDIDATA A NOVO PARADIGMA”:

Diante da constatação de afastamento do direito processual contemporâneo e a respectiva

insuficiência de alguns dos seus paradigmas à nova “lente” trazida pela Justiça Restaurativa,

retorna-se à questão central deste texto, que é saber se está ocorrendo uma revolução na

epistemologia do processo penal diante da necessidade de revisão humanística dos seus

institutos.

Ao tratar dos modelos de Estado, Lênio Streck e Luis Bolzan de Morais (2014, pg. 105-124)

aduzem que o Estado contemporâneo passa por um processo de crise de várias ordens, desde a

conceitual, passando pela estrutural, assim como a institucional, funcional e política. Nesse

contexto, valendo-se das lições de Jacques Chevallier (O Estado Pós Moderno, 2009), analisam

que “o Estado passa por uma reconfiguração dos seus aparelhos”, atribuindo isso a variados

fatores:

Dentre eles, é possível destacar a globalização, a interdependência e a

rivalização com outros fatores. Tal situação conduz a uma inevitável

redefinição das funções estatais, chegando à fragmentação, diante do

surgimento de poderes policêntricos de intervenção e regulação, da

reconfiguração territorial e da segmentação de estruturas que, ao contrário

do que vinha ocorrendo ao longo do século XX, agora, põe em pauta uma

diversificação crescente dos seus elementos constitutivos, ao invés de

multiplicar a sua atuação (2014, p. 125).

A partir desse cenário de crise, aparentemente externo ao Direito, Streck e Bolzan

concordam que a influência nas ciências jurídicas é inevitável, de modo que a sua revisão se

iniciaria pela “ruptura do monismo e do protagonismo exclusivista estatal”, que reclamaria o

ressurgimento de um “direito plural” e que se constrói em bases de “cooperação e coordenação,

grupos de interesse, participação cidadã”, culminando num “caráter menos prescritivo” (2014,

pg. 125).

Esse modelo de Direito, entretanto, não se adequa aos paradigmas dominantes do processo

penal que, por seu turno, está calcado numa perspectiva quase que exclusivista de exercício de

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poder pelo Estado e, no sentido de limitar o poder de punir, se ocupa da criação de estruturas

que visem garantir o alheamento da vítima e a obrigatoriedade da persecução formal, com

destaque para o formalismo. O foco central do processo, pois, passa a ser a criação de um

arcabouço que venha a legitimar uma eventual resposta punitiva a ser aplicada pelo Estado Juiz.

Mas e se essa resposta não for punitiva?

Promovendo o confronto, verifica-se que a necessidade de um novo modelo de Estado,

apontada por Lênio Streck e Luis Bolzan, decorre de uma crise que afeta diretamente o Direito

Penal e, por conseguinte, o Processo Penal, como ciências. A anomalia de inadequação e falta

de legitimidade das respostas estatais para a solução dos conflitos criminais parece evidente, tal

a persistência desses fenômenos na contemporaneidade. Ela se origina externamente, chega ao

Direito Penal e é transportada ao processo pela “ponte” da instrumentalidade. O período de

crise, também no Direito, como já apontado por muitos, já coloca em xeque alguns paradigmas

fundantes, tendo em vista calcar-se exatamente num modelo centralizador e prescritivo de

respostas penais.

Esse cenário de crise, pois, tornou-se terreno fértil à eclosão da Justiça Restaurativa, como

um modelo mais plural, que rompe com o “protagonismo exclusivista estatal”, apresentando

maior participação e empoderamento das pessoas envolvidas no conflito (sempre de maneira

regulada e tendo no Estado a figura de um controlador da legalidade / preservação dos direitos

fundamentais) como forma de obter-se um processo mais consentâneo com as demandas

contemporâneas, especialmente de preservação dos direitos humanos. O deslocamento da

posição do Estado e a inclusão do elemento dialógico e construtivo em substituição ao padrão

meramente adversarial, tende a uma mudança paradigmática na medida em que se opõe ao

modelo anterior, o que parece caminhar na direção de um progresso revolucionário (referenciar

Kuhn), ainda que parcial.

Resta investigar se, conforme as designações de Thomas Kuhn, ainda estar-se-ia na fase de

ciência normal das teorias do processo penal, na etapa de pesquisa extraordinária ou no

progresso que se sucede ao “período extraordinário da ciência”, em cuja revolução

paradigmática seria necessária. Certamente o objetivo deste texto não é oferecer resposta

definitiva a esse questionamento que, com absoluta certeza, requer uma investigação mais

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profunda acerca das posições da comunidade científica do direito processual penal, o que não

caberia no propósito e extensão do trabalho.

É induvidoso, contudo, que a Justiça Restaurativa aponta problemas estruturais e de

adequação do modelo de resposta estatal aos conflitos criminais, tendo a contemporaneidade e

necessária preservação dos direitos humanos como referências, de modo que, se quer o processo

continuar sendo instrumento inafastável de aplicação do direito penal, essa ciência também

precisa se reinventar, “olhar” para as suas próprias insuficiências e reconhecer a própria crise,

firmando as bases pelas quais a sua eventual revolução deva caminhar10.

No aspecto do papel do Estado em relação à persecução penal, não se pode considerar a

ocorrência de um mero progresso acumulativo, senão uma ruptura que demanda a criação de

novas estruturas conceituais e procedimentais. Por isso, entende-se que a Justiça Restaurativa

impulsiona o direito processual penal para uma fase de “ciência extraordinária”, promovendo a

sua aproximação ao fastígio revolucionário.

A atitude de alguns autores de simplesmente negarem a imersão de institutos diversos como

etapas que só poderiam se colocar fora do processo penal, parece ser uma postura típica de

ciência normal e, portanto, inadequada ao momento de crise que vivem as ciências criminais,

como já se viu, em função da vertiginosa mudança em relação aos padrões tradicionais da

modernidade.

Nesse sentido, a técnica do “pré”, regularmente utilizada como forma de dizer que aquele

procedimento ou instituto faz parte de uma etapa anterior ao processo, em geral, configura uma

negação deliberada e não reflexiva do momento de crise, que tem como consequência o

afastamento do direito processual penal da aplicação do direito material, culminando numa

inevitável e gradativa perda da sua função instrumental.

O que se propõe com o presente trabalho é que o Direito Processual Penal precisa ultrapassar

as barreiras da ciência normal e assumir uma postura extraordinária, preparatória, no sentido de

revisar algumas das suas teorias na direção de provocar maior empoderamento das partes;

colocação da vítima, ao lado do acusado, numa posição de protagonismo; criação das estruturas

10 Por exemplo, evitando oportunismos totalitários, de maneira a garantir que os direitos fundamentais do acusado

e o próprio sistema de garantias não seja vulnerado pela necessária restruturação de demais paradigmas.

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e procedimentos para que seja possível trazer para dentro do processo uma etapa de mediação

vítima ofensor, apta a produzir efeitos concretos e viabilizar o oferecimento de respostas

diversas das previamente estabelecidas pelo Estado, mas sob sua rigorosa fiscalização e

controle de legalidade / constitucionalidade, desde que estas sejam mais adequadas à solução

do conflito. Como resultado, acredita-se, haverá natural ampliação da dimensão humana e dos

comandos da democracia no processo penal brasileiro.

De maneira não exaustiva, o que se propõe é a internalização, nas “entranhas” do processo

criminal, do preceito da “restauratividade”, apto a oferecer um padrão dialógico e plural, como

“candidato a paradigma” e não apenas a sua colocação como etapa extra / supra / exo / pré-

processual. Isso provocará uma revolução científica? Ainda é cedo para se saber, ou mesmo

desejar. Mas uma ambiente de reflexão pré revolucionário, esse sim, precisa ser instaurado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A crise gerada por um constante questionamento das regras no Estado contemporâneo ou

“pós moderno”11 tem afetado de maneira muito mais evidente a ciência do Direito Penal e, por

consequência, tem criado um déficit de instrumentalidade para com a ciência do Direito

Processual Penal.

Padrões de diálogo, participação da vítima e foco na solução do conflito são alguns dos

preceitos que precisam ser transportados para o processo penal, especialmente ampliando a sua

dimensão humana e interferindo diretamente no patamar das relações processuais. Esse

panorama aponta para uma via adequada de “contemporaneização” do processo penal,

acrescentando-lhe os signos de comunidade, participação, corresponsabilidade.

O movimento constitucionalista moderno consolidou, de maneira absolutamente necessária

e pertinente, a modificação daquele processo liberal e individualista com a introdução da

necessidade inafastável de respeito às garantias fundamentais do acusado como limite à

11 Durante todo o texto tem-se preferido adotar a expressão “contemporâneo”, como forma de tentar evitar a

discussão acerca de os tempos atuais serem mais uma etapa da modernidade ou um período que já pode ser tido

como de “pós modernidade”.

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legislação. Ainda resta carente o processo, entretanto, de um padrão que perceba a pacificação

social como consequência da resolução dos conflitos criminais. Os ideais iluministas não são

suficientes à implementação de um processo penal contemporâneo que, há muito, não tem

alcançado o protagonismo necessário para continuar sendo um instrumento limitador de

aplicação do direito penal.

O modelo de Estado Liberal Burguês sofreu um processo de desgaste e, atacado por sua

própria insuficiência para atender ao cenário político econômico do Pós Guerra, precisou alterar

algumas de suas estruturas principais, dando espaço a um Estado Social e de Bem Estar. Nesse

mesmo caminho, com o fortalecimento do constitucionalismo no pós guerra, também o modelo

de processo penal impregnou-se acertadamente do discurso de proteção e garantias do acusado

como barreira ao exercício do poder punitivo do Estado, tendo nesse labor o seu principal foco

de ação.

As propostas trazidas pela Justiça Restaurativa não promovem uma revolução, tampouco

uma mudança de paradigma no âmbito do direito processual penal, mesmo porque ainda há

muito a se discutir sobre o tema. Mas não se pode negar que a restauratividade é um preceito

que se estabelece com forte apelo de adequação contemporânea e sua influência no modelo

processual hodiernamente adotado é tão certa quanto a noção de instrumentalidade desta ciência

em relação ao direito material.

A consolidação do paradigma depende de ampla aceitação na comunidade científica, traço

que reforça a constatação, portanto, de que ainda não se pode falar de novo paradigma.

Considerando a concepção estruturalista de Kuhn, esses elementos formadores da crise (de viés

econômico e com reflexos na postura do Estado diante dos conflitos que se lhe apresentem),

aparentemente exteriores à ciência do direito processual, promovem uma gradativa perda de

suficiência do modelo liberal de processo, impulsionando a criação de novas estruturas que

tendam à revolução científica da disciplina. É bem verdade que parece não ter sido alcançado

o momento próprio da revolução, considerando a extensão de sobreposição paradigmática

pensada por Kuhn, tampouco se pode prever qual o resultado final de uma revolução ou mesmo

se ela virá. Mas é possível antever algumas alterações que, já postas, forçam uma reflexão sobre

as estruturas “normais” do processo penal contemporâneo e a sua função como ciência

instrumental, deslocando o pesquisador da sua “zona de conforto” científica para o labor da

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pesquisa extraordinária. É necessário adotar a perspectiva do cientista em crise, porque,

queiramos ou não, a nossa ciência já está imersa nela e a ampliação da dimensão humana e

intersubjetiva no jogo processual é providência que se impõe.

REFERÊNCIAS

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