kritsch, raquel - soberania - a construção de um conceito

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SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

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USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitor: Prof. Dr. Adolpho José MelfiVice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITASPresidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

VENDAS

LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel.: (011) 3091-3728/3796

HUMANITAS-DISTRIBUIÇÃO

Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTelefax: (011) 3091-4589e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.br/humanitas

Humanitas FFLCH/USP – maio 2002

FFLCH/USP

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

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ISBN 85-7506-063-5

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K92 Kritsch, RaquelSoberania: a construção de um conceito / Raquel Kritsch. -

São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

572p.

Originalmente apresentada como Tese (Doutorado – Departa-mento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universidade de São Paulo, 2000).

ISBN 85-7506-063-5

1. Estado (Política) 2. Igreja e Estado 3. Soberania 4. TeoriaPolítica Medieval I. Título

CDD 320.157 320.9

Copyright © 2002 by Raquel Kritsch

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright.

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi – CRB 3608

Editor ResponsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação Editorial e CapaMª. Helena G. Rodrigues – MTb 28.840

Diagramação e Projeto GráficoSelma Mª. Consoli Jacintho – MTb 28.839

RevisãoSimone D’Alevedo

HUMANITAS FFLCH/USP

e-mail: [email protected]: 3091-4593

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Este trabalho, agora transformado em livro, foi apresentado comotese de doutorado junto ao Departamento de Ciência Política da Fa-culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade deSão Paulo, em dezembro de 2000.

Como toda longa pesquisa, envolveu inúmeras pessoas. Agrade-ço a todos que, direta ou indiretamente, apoiaram e colaborarampara este trabalho. De modo especial, contudo, nomeio:

Oliveiros S. Ferreira,Rolf N. Kuntz,Cicero Romão de Araújo.Não poderia deixar de retribuir ainda o apoio e a seriedade dos

professores que compuseram a banca: Luís Alberto de Boni, Mariadas Graças M. do Nascimento, Renato Lessa e Gabriel Cohn, cujoscomentários muito enriqueceram a revisão do trabalho. E a JoséAntonio C. R. de Souza, que tanto estimulou esta publicação.

Minha gratidão também aos professores e colegas do Grupo deTeoria Política, marca indelével em minha memória e em minha for-mação.

Aos amigos Adrián, Alberto, Floriano, Lena, Márcio e Paula peloauxílio e o incentivo. E, do outro lado do Atlântico, a Claus, Manfrede Saulo.

Ao Ricardo pelo zelo das letras.Ao time da Humanitas, o esforço e a dedicação.

A Alexandre e Rebeca, o exercício da tolerância e a fraternidade.À Consuelo, a memória de dias felizes.A José Roberto e Iracema, Rui e Dália, o apoio incondicional.A Johanna e Josef Hofbauer, o apreço.Ao Andreas, o muito.

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Prefácio: A gênese de um conceito (Newton Bignotto)......... 13

Introdução: Os nomes e as coisas .................................... 19

Capítulo 1: A Questão das Investiduras e seus desdobra-

mentos ..................................................................... 49

I. Antecedentes históricos ................................................ 51

II. Códigos e espadas........................................................ 701. Os fundamentos da reforma eclesiástica ................ 752. A radicalização do partido gregoriano ..................... 853. Regnum e sacerdotium: os fundamentos da dis-

puta pelo poder supremo ...................................... 93III. Poder e Direito: império e papado no século XII .......... 110

Capítulo 2: O longo século XII ........................................ 129

I. Uma introdução ao Século do Renascimento ............ 131

II. O surgimento da Universidade ................................. 138

III. O direito romano e o direito canônico ....................... 148IV. As traduções e o fomento da filosofia natural ............ 155

1. Árabes, judeus e gregos pós-helênicos: aherança do Ocidente medieval ............................. 159

2. A cristandade latina e o naturalismo político ........ 169V. O desenvolvimento da burocracia e o surgimento

da Comuna ............................................................. 182

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Capítulo 3: A política em transformação ......................... 199

I. O século XIII e o declínio do feudalismo .................... 201II. A construção da teoria hierocrática do poder ............ 206

III. O corpus aristotélico dos latinos ............................... 2311. Filosofia natural e a base da investigação cientí-

fica .................................................................... 2322. Ética e a constituição do justo ............................. 2363. Da primazia do bem comum: a especificidade

da política .......................................................... 244

Capítulo 4: Tomás de Aquino, leitor e comentador dosantigos ...................................................................... 261

I. Os fundamentos aristotélicos da metafísica

tomista ................................................................... 263

II. A ética e o princípio da ação moral ........................... 285

III. Lei e Direito: a natureza mediada pela razão ............. 3011. Lei: uma ordenação hierárquica da razão com

vistas ao bem comum ......................................... 3032. Justiça: um critério de ordenação dos iguais

com vistas ao bem comum .................................. 323IV. A política do Doutor Angélico ................................... 333

Capítulo 5: A hora dos reis ............................................ 367

I. Desenvolvimentos do processo de centralizaçãomonárquica ............................................................ 371

II. Bonifácio VIII e Filipe, o Belo: princípios em

disputa ................................................................... 383

III. Egídio Romano e as raízes do absolutismo mo-

nárquico ................................................................. 392

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1. Do poder do príncipe eclesiástico .......................... 3992. Dominium e coerção: o dom de Deus e o pró-

prio dos homens ................................................. 4033. Da plenitude de poder e da jurisdição do go-

verno eclesiástico ................................................ 429IV. João Quidort e os princípios da monarquia cons-

titucional ................................................................ 4361. Da força da palavra e o poder das armas .............. 4392. Dominium e jurisdição: o bem privado e a jus-

tiça comum ........................................................ 4573. O poder político humanizado ............................... 474

Final: O poder sem pecado ............................................. 493

I. Marsílio de Pádua e a supremacia da comunida-

de política.................................................................. 496

II. Guilherme de Ockham, o indivíduo e os direitos

humanos ................................................................... 511III. A herança e o inventário .......................................... 534

Apêndice ....................................................................... 537

“Prólogo” de Tomás de Aquino à Política

de Aristóteles (Tradução) ............................................ 539

Liber primus (Prolugus), de Tomás de Aquino (texto latino) 545

Bibliografia ................................................................... 547

Fontes primárias ..................................................... 549Fontes secundárias ................................................. 552

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À minha avó

Jeanette Martha Josefine Anna Kritsch

(In memoriam)

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Newton Bignotto

Prof. Dr. Adjunto do Depto. de Filosofia

da Universidade Federal de Minas Gerais

O conceito de soberania é com freqüência associadopelos historiadores da filosofia política ao nome de Jean Bodin.Ao formular a idéia de que a soberania é “a potência absolutae perpétua de uma república”,1 ele abriu um campo de inves-tigação que seria trilhado por uma boa parte dos autores,que mais tarde iriam se ocupar com a questão da origem edos fundamentos do poder. A partir do momento em que ocaráter humano da legislação tornou-se evidente, passou-sea buscar as maneiras de assegurar sua estabilidade e suaduração, num mundo que não podia mais contar com a cer-teza da emanação divina das formas de dominação. A apostade Bodin num soberano absoluto, no entanto, não resolveu oproblema posto pela afirmação de um poder inteiramenteapoiado em raízes seculares. O pensador francês sabia que opríncipe, que formula leis e exige obediência, está ele mesmosujeito às leis da natureza e aos comandos divinos. Encon-trar os limites da soberania e definir sua relação com a cren-ça dos homens no poder transcendente de Deus passou aser um desafio para quase todos os pensadores que iriam seocupar da matéria depois dele. Em Bodin o termo soberano

1 BODIN, Jean. Les six livres de la République. Livre I, chapitre VIII.

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alcança uma conotação definitiva, que ressoa até hoje no vo-cabulário da filosofia e da ciência política.

Hobbes foi um dos que ajudaram a explorar as terrasdescobertas pelo jurista francês. Buscando constituir uma ciên-cia da política baseada na razão e na descrição correta danatureza humana, ele soube como poucos analisar os víncu-los que unem o medo original dos homens e a demanda porsegurança que está, segundo ele, na raiz da constituição dosEstados. Nessa ótica, o soberano se estabelece por consenti-mento mútuo pelo claro desejo de todos de fugir da instabili-dade imposta pela natureza aos que vivem isolados. Com opensador inglês, o tema se vincula a discussões filosóficas queainda não estavam presentes em Bodin. Ao se apoiar sobreum estudo da natureza humana para encontrar os funda-mentos do contrato social, Hobbes forja uma compreensão davida política que acaba em definitivo com a idéia de que opoder temporal possa encontrar seus fundamentos em umaordem transcendente. Seria longo enumerar todos os pensa-dores que iriam fazer da soberania, tal como com-preendida pelos dois autores, a pedra de toque de suas inves-tigações sobre a natureza da política. Sob o manto das discus-sões sobre o contrato social se abrigaram quase todos os quese dispuseram a investigar as raízes temporais do poder. Se apreocupação com a religião segue habitando o coração da filo-sofia moderna, a idéia de que “todo poder vem de Deus” per-deu sua capacidade explicativa, deixando uma lacuna a serpreenchida com uma visão laica do mundo político.

As considerações anteriores, que refletem uma visão co-mum entre os historiadores, podem induzir o leitor a acreditarque o estudo da gênese do conceito de soberania na moderni-dade não pode seguir outro caminho além do sugerido. Defato, não há como negar a posição de destaque ocupada pelasobras dos pensadores que citamos e o fato de que o tema docontrato social, tal como elaborado por eles, écentral no pensamento político moderno. Apesar dessas evi-dências, alguns historiadores, menos convencidos pela ar-

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gumentação dos que asseguram que uma importante ruptu-ra ocorreu no século XV, passaram a rastrear no passadomedieval uma série de discussões e debates que parecemcolocar em questão a tese afirmada do surgimento do concei-to de soberania com Bodin. Dentre eles, devemos destacarWalter Ullmann que numa série de livros e artigos procuroudemonstrar que ao longo de toda a Idade Média encontramosnos juristas e em muitos filósofos discussões que não apenasjá colocam o problema da origem das leis do ponto de vistade um fundamento humano, mas ainda ajudaram a tornarcorrente o uso de termos como “soberano”, na mesma acepçãoque será adotada pelos modernos.

Se fôssemos obrigados a tomar partido nessa discus-são nos veríamos na embaraçosa condição de quem deve optarentre duas hipóteses que parecem razoáveis. Escolhendo aprimeira via, deixaríamos de lado o resultado de pesquisasacuradas e sérias, para afirmar o primado da idéia de ruptu-ra na história das idéias. Nesse caso, não se trata de dizerque as pesquisas dos medievistas são inúteis, mas simples-mente que a arqueologia de uma idéia, baseada na descober-ta de proximidades de significados, não é o caminho adequadopara encontrar as raízes de um conceito. Dizendo de outraforma, isso corresponde a afirmar que apesar da filiação deBodin aos debates jurídicos dos bartolistas, há em suas tesesalgo que as diferenciam inteiramente dos antigos juristas.Nessa lógica, basear-se em fontes antigas, e mesmo citá-las otempo todo, não garante continuidade entre hipóteses. Se defato há continuidade, ela não explica a concepção de sobera-nia moderna tal como formulada por vários autores.

Na segunda via, a pesquisa minuciosa de textos nosquais o termo “soberano” aparece, aliada a outras estraté-gias investigativas, parece conduzir a uma afirmação da ori-gem medieval do conceito de soberania, ao lado da progressivaafirmação dos Estados nacionais e da desmontagem das ve-lhas categorias, que haviam assegurado a estrutura de justi-

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ficação da respublica christiana. Nesse caso, não há porquefalar em ruptura na modernidade, mas sim em finalização deum processo do qual é possível conhecer os passos funda-mentais, muitas vezes em detalhes. Para os defensores dessatese fica sempre o desafio de mostrar de que maneira a mo-dernidade veio a se diferenciar do período anterior e de apon-tar as razões pelas quais a idéia de uma ruptura com opassado, pelo menos no plano conceitual, deve ser tratadacomo uma mera quimera de historiadores. No entanto, nãohá como negar que nessa chave os vínculos com o passadoesclarecem muitas dúvidas, que permanecem quando o in-vestigador se dedica a afirmar o caráter de novidade das te-ses de Bodin.

O trabalho de Raquel Kritsch proporciona ao leitor arara oportunidade de freqüentar a querela entre “modernos”e “medievais” sem forçá-lo a adotar uma tese radical sobre aquestão. Como observa a autora, o conceito de soberaniaconheceu uma longa gestação e é o processo dessa gestaçãoque lhe interessa em primeiro lugar. Ora, no lugar de buscaro fio único que teria servido de guia para o tecido do proble-ma ao longo dos muitos debates que povoaram a Idade Mé-dia sobre o tema da origem e do fundamento do podertemporal, o estudo de Raquel se emprega em desfazer o equí-voco dos que acreditam chegar a uma única solução. Apoia-do em evidências textuais, o livro vai montando um mosaicoque, sem ser uma coleção desconexa de peças, não pode serconhecido a partir de um único ponto de vista.

Ao longo do livro, o leitor vai sendo apresentado nãoapenas a textos teóricos e filosóficos, mas a uma série dedocumentos, que atestam a maneira como disputas entre oPapado e o Império impulsionaram os defensores dos doispoderes a buscar novas armas em campos variados do sa-ber. Em particular, a autora, no rastro das teses de Ullmann,mostra com clareza a importância do Direito como campo decombate entre os poderes. Regnum e Sacerdotium compuse-

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ram um campo de batalhas no qual as escaramuças forammais freqüentes que as guerras abertas. Ao golpe de decretose bulas, os problemas foram se delineando e a idéia de sobe-rania se construindo.

Mas o leitor que espera uma demonstração linear ecausal de como se chegou a Bodin deixará de lado a riquezado estudo que examina. Raquel Kritsch é herdeira de umséculo que viu transformar a face das análises sobre a IdadeMédia. Servindo-se do resultado da pesquisa de autores comoLe Goff, Kantorowicz, Nederman e de tantos outros, ela apre-senta as principais discussões em vínculo estreito com a in-tricada história política medieval. Sem pretender escrever umaanálise global do período que examina, a autora nãodesconsidera nunca o fato de que o debate de idéias no pe-ríodo medieval tem, sobretudo no tocante aos temas políti-cos, uma grande peculiaridade. Misturar textos jurídicos,decretos e textos filosóficos é parte de uma estratégia de alar-gamento do campo de compreensão do problema que exami-na. Dessa maneira talvez ela abdique de conclusões maisperemptórias, mas conserva todo o frescor do tema que in-vestiga.

Talvez pudéssemos retirar como uma lição preciosa doestudo da gênese de um conceito como o de soberania, o fatode que, para encontrarmos uma afirmação precisa tanto danovidade quanto da continuidade de um conceito, somosobrigados a esquecer a complexa articulação entre a produ-ção teórica e a vida política. Dessa maneira, tomando comoreferência apenas textos pertencentes a um dado gênero lite-rário, podemos chegar a conclusões mais restritivas e, numcerto sentido, mais definitivas. O preço que se paga nessecaso, no entanto, ao conceder uma excessiva autonomia àhistória das idéias, é o de perder a riqueza da articulaçãoentre o debate teórico e os embates políticos. Investigar idéiasdo passado e suas articulações com as disputas terrenas doshomens faz sentido porque nos ajuda a pensar nossas pró-

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prias mazelas e a ligação que nossas pesquisas conceituaisentretêm com nossa vida no seio de uma comunidade políti-ca. Ao se mostrar que o conceito de soberania não pode serdeduzido de um único processo de gestação, não se chega aoresultado de que é impossível falar da gênese de um concei-to. Ao contrário, a investigação detalhada dos muitos cami-nhos que levaram dos autores medievais a Bodin e a Hobbesrealiza um notável alargamento de uma questão que estálonge de interessar somente aos especialistas.

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O vocábulo stato pode até ter sido introduzido na lite-ratura política por Maquiavel, como sugerem Meinecke,1

Hermann Heller2 e outros. E talvez não haja antes dele quemtenha escrito de modo tão franco sobre a lógica do poder.Mas a história da noção de razão de Estado e dos termos aela associados começa bem antes: remonta no mínimo à dis-puta pelas Investiduras, caracterizada pelo confronto entreImperium e Sacerdotium e sua aspiração de universalidade. Adefesa de uma comunidade universal cristã na obra de Joãode Salisbury, por exemplo, não constituía somente a expres-são de uma doutrina. Era também a resposta eclesiástica auma nova realidade: um poder secular que afirmava sua ju-risdição sobre um território, em oposição tanto aos podereslocais quanto às pretensões de ingerência da Igreja.

Essa nova realidade não se configurou ao mesmo tem-po nem por um processo único em toda a Europa.3 No casoinglês, internamente a Coroa se afirmou contra os barões e,no exterior, contra a Igreja. No continente, as forças em con-fronto eram quatro: as monarquias nascentes, o Império, opapado e os poderes locais. O conflito era simultaneamentejurídico e político. Político, porque envolvia não só uma re-distribuição de poder, mas também a entrada de novos ato-res. Jurídico, porque os confrontos principais quase nunca,ou nunca, eram explicitados diretamente como problemas

1 MEINECKE, Fr. Machiavellism. London: Westview, 1984.2 HELLER, H. Teoría del Estado. México: Fondo de Cultura Económica,

1987.3 Cf. por exemplo a obra clássica de ELIAS, N. O processo civilizador. Rio

de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2, esp. p. 87-131.

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de poder, mas como questões de jurisdição e de legitimi-dade.

Os novos atores eram, entre outros: 1) a troupe do Es-tado (rei, ministros, burocratas, juízes, coletores de impostosetc.); 2) os elementos urbanos emergentes (artesãos e suascorporações de ofício, comerciantes, prestadores de serviçosetc.); 3) uma intelectualidade que, embora dividida partida-riamente e, portanto, dependente quase sempre ou da Igrejaou da espada, passava a constituir um fator de poder, iden-tificado cada vez mais com a burocracia estatal; 4) os gruposenvolvidos nos movimentos heréticos ou de oposição às dou-trinas religiosas dominantes, em geral oriundos das cama-das inferiores e muitas vezes participantes de desordens esublevações.

A luta se desenvolvia não só no plano da ação direta,mas também no das idéias. Participavam da disputa juris-tas, teólogos, filósofos e, muitas vezes, pessoas com todasessas qualificações. A eles competia determinar os funda-mentos do direito de cada parte e, portanto, a legitimidadedas pretensões em conflito. Nessa discussão se construíamos alicerces legais e ideológicos de um novo sistema de podere, ao mesmo tempo, se determinava sua extensão.

Os conflitos só apareciam, é óbvio, quando um novopoder tinha peso suficiente para questionar a ordem numcerto momento. Esse era o fato político em sua versão maiscrua. Mas o novo poder tentava afirmar-se não apenas pelaforça. Pretendia sobretudo ser reconhecido como portadorde um direito ou, mais precisamente, como legítimo detentorde uma jurisdição. Esse era o fato jurídico em sua descriçãomais simples. Mas não havia historicamente, nesse caso, umfato apenas político ou apenas jurídico: o político se manifes-tava na forma de uma reivindicação legal. Quando Maquiavelescreveu, já não precisou cuidar de questões legais. Ele já sereferia à lei como um dado político e social. O trabalho de

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construção já havia sido realizado: no século XVI, o Estado,como entidade juridicamente definida, era um fato plena-mente desenvolvido, não uma novidade.

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Caberia aqui indagar: a partir de que momento entãose pode falar em Estado, em sentido compatível com a noçãomoderna? A palavra compatível, nesse caso, é uma restriçãoimportante. Trata-se de saber não a data de nascimento doEstado moderno, seja qual for sua descrição tipológica, masde identificar um movimento histórico bem determinado. “Nãotenhamos medo de fazer mau uso da palavra Estado paraesses séculos que não a conheceram”, escreve Francesco Ca-lasso.4 Não se trata somente de afastar, como inútil, o escrú-pulo defendido, por exemplo, por Hermann Heller.5 Muitomais do que isso: trata-se de conferir a ênfase necessária aomovimento da história, sem se deixar limitar por uma classi-ficação tipológica.

Reconhecer esses processos de transformação que cons-tituíram a base do Estado moderno e de seus principais atri-butos, entre os quais a noção de soberania, é o objetivo destetrabalho. Esse movimento ocorreu segundo ritmos diferen-tes em diferentes locais (na Inglaterra e no continente, paratomar uma distinção bem visível). E os arranjos de poder não

4 CALASSO, F. Gli ordinamenti giuridici del rinascimento medievale. Milão:Giuffrè, 1965. p. 237.

5 Cf. HELLER, op. cit., p. 142 e seguintes. Heller utiliza a definição weberianade Estado para analisar a Idade Média e nela buscar, sem as devidasmediações histórico-teóricas, algo que obviamente não poderia estar lá.Sua maior dificuldade, no entanto, é não ter percebido que boa partedas questões políticas medievais se apresentava como formulações decaráter jurídico – daí a sua pouca visibilidade para aqueles que tenta-ram localizá-las por meio de conceitos cristalizados da ciência política.

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se deram da mesma forma em toda parte. No entanto, é pos-sível mostrar, em todos os casos, características comuns deum processo de reordenação política. Essa reordenação foiconstitutiva do que hoje chamamos Estado. A ordem gestadapor esse processo é o que aqui se designa como compatívelcom a noção moderna.

O problema, portanto, é procurar entender – e localizarcorretamente nos diferentes momentos históricos – uma rea-lidade que se constituía à sombra da ideologia da communitashumanitatis do Império e da Igreja. Essa communitas corres-pondia à totalidade dos cristãos e dos cives Romani imperii.Os dois conjuntos podiam se corresponder perfeitamente emtermos ideológicos. “Na ideologia medieval do Imperiumchristianorum”, explica Calasso, “todos os que acreditavamem Cristo eram cidadãos do Império, isto é, eram cristãos eromanos; e vice-versa”.6 O fiel e o cidadão do império consti-tuíam faces da mesma pessoa: o cristão era “romano” e vice-versa. Império e Igreja eram co-extensivos em suas pretensõesde domínio.

A observação de seus respectivos códigos legais, istoé, as regras subsumidas sob o ius civile e ius canonicum,garantia uma convivência pouco conflituosa entre as duasinstituições. Eram, idealmente, duas competênciasnormativas convergentes e não competitivas. Sua unidadese expressava no aforisma “extra ecclesiam non est imperium”,porque fora da Igreja não existia poder ordenado por Deus.Historicamente, no entanto, imperadores e papas disputa-ram, às vezes com muito sangue vertido, o poder em todasas suas formas, temporais e espirituais. Também essa dis-puta entre Regnum e Sacerdotium servia para fecundar opensamento político e jurídico, especialmente entre os sé-culos XII e XIV, mas dela não resultaria, senão de forma

6 CALASSO, op. cit., p. 241-2.

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indireta, a destruição da idéia de uma comunidade univer-sal dos cristãos.

Essa noção estava muito firme, como objeto de fé, notempo do “fatigoso nascimento dos assim chamados Estadosnacionais”, lembra Calasso, ao relacionar, numa longa lista,as unidades políticas em formação em toda a Europa desdepelo menos o século XI.7

Enquanto a Europa, particularmente entre os séculos XIIe XIII, era trabalhada pelo incessante movimento dos po-vos que emergiam em busca de seu lugar, dentro e forada jurisdição direta do Império Romano-Germânico, nocampo da ciência jurídica abria caminho um novo princí-pio, destinado a interpretar por séculos o mundo novoque estava por surgir. Esse princípio veio logo encerradonuma fórmula que assim soou: “rex superiorem nonrecognoscens in regno suo est imperator”, e que significa-va o seguinte: o rei, que não reconhece poder acima de si,

7 “Na península Ibérica, depois da vitória definitiva das armas cristãssobre os muçulmanos, nascem o reino de Aragão e o de Portugal; con-solidam-se como Estados fortes, mas através de uma história inteira-mente diversa, o reino de França e o de Inglaterra – o primeiro, com apressão da monarquia sobre as classes feudais e por meio da exaltaçãodo elemento citadino; o segundo, com a coalizão triunfante das váriasclasses sociais contra a monarquia –; no coração da Europa, o reino daAlemanha, com a prevalência dos grandes feudatários, acentua cadavez mais uma política nacionalista, enquanto um novo Estado dele sedestaca, a Áustria; ao norte, afirmam-se os Estados escandinavos, compredomínio do reino da Dinamarca; surgem os reinos da Lituânia, daPolônia, da Rússia; enquanto ao sul a Hungria, a Sérvia, a Croácia, aBulgária, a Romênia, a Albânia se consolidam como Estados. São orde-namentos políticos novos ou em renovação, que se erguem sobre umfundo turbulento de lutas gigantescas, nas quais os povos europeus seempenharam freqüentemente contra forças extra-européias (dos mu-çulmanos no sul aos mongóis no leste). E, como organismos jovens, nãoquerem sentir-se ligados pelas amarras de ideologias tradicionais, em-bora, note-se bem, como Estados cristãos, vinculados à Igreja de Roma,não possam, pela estrutura mesma do mundo medieval, ignorá-las”. In:CALASSO, op. cit., p. 243.

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tem, no âmbito do próprio reino, os mesmos poderes quetem o imperador sobre todo o Império.8

A reconstituição dos passos por meio dos quais ocorriaa maturação dessas novas idéias, seja no trabalho dos juris-tas, seja no dos teólogos, é fundamental para compreender aformação da concepção de uma ratio specifica do Estado, emnossos dias freqüentemente resumida no termo soberania.Essa é a tarefa central a ser empreendida neste trabalho.Quando se entende este processo, pode-se fazer a crítica daopinião corrente que nega haver a Idade Média conhecido oconceito de Estado e também o de soberania. Segundo essaopinião, as duas idéias só se afirmaram no século XVI, com otriunfo do absolutismo, isto é, das condições de poder descri-tas teoricamente por Jean Bodin.

Os tempos modernos – e aqui se está assumindo a po-sição também defendida por Calasso – preencheram a pala-vra soberania de uma substância que, como “fatalmentesucede às fórmulas definitórias”, foi-se petrificando e assu-mindo o peso de um dogma, um “verbum mysticum”, desti-nado a cobrir alguma coisa que na realidade se haviadistanciado sempre mais das consciências. Fazer a históriade um dogma, alerta Calasso, implica dissolvê-lo.

Trata-se sobretudo de um erro de perspectiva: o medievonão conhece o dogma da soberania, pelo simples fato deque este é uma criação da época moderna; se colocamos,ao invés, o problema em termos modernos, o seu esforçoconsistiu sobretudo na consumação do velho invólucroque, como se viu, havia incubado a nova idéia.9

Calasso não usa essa imagem, mas poderia bem ser-vir-se dela: o processo por ele descrito é análogo ao desenvol-vimento de uma larva até a destruição do casulo.

8 Ibid., p. 244.9 Ibid., p. 257 – grifo meu.

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É a insuficiência dessa noção de processo que dificul-ta o tratamento das noções de Estado e de soberania nocapítulo de Heller, “Supostos históricos do Estado atual”.10

O texto contém referências históricas, mas permanece pre-so a uma perspectiva tipológica que se revela dogmática.Por isso, o autor acaba tratando exemplos históricos impor-tantes, como os da Sicília e da Inglaterra, quase como casosexcepcionais, desvios da norma, dados que não desmentema communis opinio. Talvez o problema esteja no fato de que,enquanto Weber utiliza material histórico para construir umtipo, Heller, movido por uma inspiração declaradamenteweberiana, parta de um tipo (do Estado) e de um conceitocristalizado (o de soberania) para examinar a história políti-ca medieval.

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Mas Heller certamente não é o único autor a se enredarnesse tipo de armadilha. Tampouco é esse o único equívocoque pode ser encontrado nas abordagens de historiadores ecientistas políticos. Hinsley, por exemplo, especialista em re-lações internacionais e autor de um livro conhecido sobre aquestão de soberania,11 merece crítica semelhante. Emborabastante sensível aos fluxos históricos, ele vincula a recons-trução da noção a uma fórmula moderna: “a afirmação doconceito de soberania”, escreve,

só teria lugar com a completa autonomização da noçãocomo categoria reguladora da relação entre governante ecomunidade política. Antes que o conceito aparecesse emsua plenitude, foi preciso consolidar o Estado, indepen-dentizá-lo dos laços com concepções de mundo divinas e

10 Cf. HELLER, op. cit., p. 141-54.11 HINSLEY, F. H. Sovereignty. Cambridge: University Press, 1986.

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naturais – bem como o conceito de soberania –, e “libertá-lo” da idéia do monarca legislador absoluto, para que pu-desse mostrar sua verdadeira face.12

Isso implica a constituição de um sistema de relaçõesinternacionais entre Estados autônomos.

Se essas relações são verdadeiras, argumenta ele, qua-tro coisas devem se seguir:

o conceito de soberania não será encontrado em socieda-des que não tenham Estado. O conceito, longe de aparecercom as formas do Estado, não surgirá até que um proces-so subseqüente de integração ou conciliação tenha sidoefetivado entre um Estado e sua comunidade. Ter-se-á in-falivelmente lutado na superfície, por outro lado, quando eonde quer que esse processo tenha avançado apenas atéum certo ponto. E depois, uma vez aparecido esse concei-to em qualquer sociedade, seu desenvolvimento posteriorserá vinculado por último a transformações posterioresnas relações entre a sociedade e seu governo.

E, depois de fornecer a receita, propõe: “Precisamosagora voltar à história da teoria política para descobrir seessas expectativas foram preenchidas”.13

O equívoco não poderia ter sido explicitado de formamais clara. Vícios como esse podem ser encontrados em abun-dância nas formulações a respeito de noções como soberaniae Estado.14 Mais do que meros enganos conceituais, no en-

12 “A teoria da soberania”, define Hinsley adiante, “não é uma justificaçãoabsolutista do poder político, mas sim uma justificação ‘constitucional’do poder político absoluto”. In: HINSLEY, op. cit., p. 107.

13 Ibid., p. 22.14 Crítica semelhante pode ser feita ao trabalho recente do cientista políti-

co sueco Jens Bartelson. Para dar conta da formação do conceito desoberania, ele o vincula logicamente à construção de um âmbito externo(ou internacional), em oposição ao interno. Ou seja, define soberaniacomo uma derivação lógica da constituição de uma ordem internacio-nal. Parte de uma relação localizada no presente – a existência de uma

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tanto, as leituras e interpretações históricas são fruto dasidéias, tendências e aparatos conceituais disponíveis em cadaépoca. Ao invés de apontar este ou aquele culpado, contudo,a opção feita aqui foi a de procurar um caminho de recons-trução histórica e teórica que evite perpetuar raciocínios ana-crônicos ou ainda a tentação de petrificar a história.

Também merece atenção um outro ponto: noções comosoberania e Estado moderno não podem e não devem ser uti-lizadas de modo intercambiável. Ora por falta de rigorconceitual, ora por convergências históricas, muitos autoressucumbem à tentação de tratá-las como um único fenômeno.A intenção deste trabalho, ao contrário, é tentar reconstituir aformação conceitual e histórica dessas duas noções diversasnum contexto específico: em fins da Idade Média, sem procu-rar transpor suas definições ou funções para o mundo moder-no. De modo bastante grosseiro, pode-se afirmar que um novosistema de poder estava sendo gestado na Europa desde oséculo XI. Esse sistema desenvolveria características próprias,como se mostrará adiante, até se consolidar numa forma re-trospectivamente denominada Estado moderno.

A noção de soberania, por sua vez, aparece como umconceito em transformação desde pelo menos a difusão

ordem política internacional, baseada em Estados nacionais soberanos– para buscá-la num passado remoto no qual ela obviamente não poderia estar. Isso o obriga a afirmar que o conceito só se consolida, tal comoo conhecemos modernamente, com o advento dos Estados nacionaissoberanos. Segundo ele, soberania só terá realidade de fato quando ascondições do conhecimento permitirem que seja pensada como uma cons-trução puramente humana, expressão do poder criativo dos homens. Eessas condições, diz Bartelson, serão alcançadas apenas com as trans-formações possibilitadas pelo Iluminismo no século XVIII. Somente comas sintetizações de Kant, Rousseau e Hegel, afirma o autor, torna-sepossível concretizar a idéia de um sistema internacional e de Estadosnacionais, condições epistemológicas do uso moderno do conceito desoberania. Cf. BARTELSON, J. A genealogy of sovereignty. Cambridge:University Press, 1995. (esp. p. 236 et seq.)

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ideológica e prática do cristianismo na Europa, a partir doséculo X. Num primeiro momento, esse fenômeno que viria aser nomeado soberania indicava mais a atribuição da funçãode “comissário de Deus” a este ou aquele agente. Isto é, adeterminação de quem fazia cumprir a lei em nome de Deusnesta ou naquela esfera de governo em circunstâncias deter-minadas. A Questão das Investiduras, por exemplo, giravaem torno do problema de quem teria poder para nomear osbispos e investir o clero. Nesse momento, o problema da so-berania se colocava não apenas para o imperador ou para opapa, mas para todos os poderes que pretendiam obter asupremacia nas querelas em questão. E, de modo um poucodiferente do que ocorreria com a noção de Estado moderno,soberania, nesse sentido, não era incompatível com a idéiade uma comunidade universal cristã.

Foi apenas num momento posterior, com os acrésci-mos políticos e conceituais gerados pela recuperação do di-reito romano e dos escritos dos antigos – em especial os deAristóteles –, pela síntese de Tomás de Aquino e pelas trans-formações em curso no Ocidente latino, sobretudo nos sécu-los XII e XIII, que se tornou possível pensar a capacidade decriar e impor a lei – fosse em nome de um legislador divino ouhumano – como um atributo do conceito que seria sintetiza-do na idéia de soberania.15 A decisão de Filipe, o Belo, de

15 HINSLEY, por exemplo, inicia sua reconstrução do conceito de sobera-nia – entendida como um conceito aplicado pelos homens, uma quali-dade que eles atribuem ou ainda uma reivindicação que elescontrapõem ao poder político que eles ou outros homens exercem –remetendo-se à polis grega, passando depois pela Roma antiga, pelomedievo e pelos modernos até chegar nos usos contemporâneos. Éclaro que essa reconstrução não se fundamenta propriamente na exis-tência da palavra soberania, mas nos seus vários nomes e nos signifi-cados que assumiu ao longo dos séculos até chegar a nós. Este oprincípio útil a reter: o de que as idéias têm sempre uma história, estatambém em constante transformação.

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taxar o clero francês, independentemente de seus laços coma Igreja de Roma, ilustra bem a nova dimensão do problema:tratava-se agora de impor uma lei num determinado territó-rio como afirmação de uma vontade humana suprema.

Somente depois de adquirir esse segundo sentido é quea noção de soberania pôde ser diretamente associada ao nas-cente Estado moderno: foi a partir daí que o poder de criaçãoe imposição da lei por um legislador passou a transformar-semais e mais num atributo de uma formação de poder territorialespecífica, definida em termos cada vez mais leigos e inde-pendente de normas e concepções divinas e universalistas.Quando essa “união” conceitual e prática passa a ter lugar, ahistória desses dois conceitos se entrelaça de tal modo quese torna difícil percebê-los como duas entidades teórica ehistoricamente distintas, como dois movimentos temporaisdiferenciados que – numa quase fusão – se encontram porum certo período e em determinado lugar na história.

E, como conceitos temporalmente definidos, ambosseguiram se desenvolvendo ao longo dos séculos, adicionan-do e subtraindo características e alterando sua semântica, oque os tornaria ora menos, ora mais diferenciáveis. Essa se-paração entre as duas noções é provavelmente bem mais ní-tida hoje do que foi para Beaumanoir e seus contemporâ-neos.16 Em fins da Idade Média, contudo, é quase impossível

16 Apenas como exemplo ilustrativo: quando voltamos a atenção para o queestá ocorrendo hoje no mundo, e sobretudo na Europa, torna-se bastan-te perceptível que, com o acirramento da internacionalização, os concei-tos básicos da ciência política estão se redefinindo e gestando novasrealidades. A criação da União Européia, por exemplo, e de um Parla-mento europeu que legisla e decide em questões específicas acima dos“Estados nacionais”, impondo a cada Estado particular normas e san-ções válidas para todos, vem mostrar que o locus, a natureza e, portanto,a definição da noção de soberania estão passando por profundas trans-formações conceituais e empíricas – o que não implica necessariamentea “morte” do conceito, mas sim sua reformulação em termos novos.

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falar de um desses conceitos sem ter de mencionar ou consi-derar o outro, o que pode obscurecer bastante a clarezaconceitual.

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De modo semelhante à noção de Estado moderno – epor vezes confundindo-se com ela –, também o conceito desoberania teve uma gênese demorada: resultou de um pro-cesso de transformação jurídica e política, do qual emergiuum novo mapeamento do poder e das lealdades na Europa.Nesse processo, não só se afirmava uma nova formação depoder, como também se desenvolvia um discurso jurídico epolítico adequado aos novos conflitos e à nova realidade.17 Aformação do conceito, portanto, não ocorria paralelamente àhistória política: era parte dela.

A mudança não se deu ao mesmo tempo nem com amesma velocidade em toda a Europa. A consolidação daautoridade real, a centralização administrativa e a burocra-tização das funções públicas ocorreram mais cedo na Ingla-terra do que na maior parte do continente. A influência doImpério, assim como a da Igreja, se exercia de forma desi-

17 João Carlos Brum Torres aponta com clareza o vínculo entre as duasordens de fatos, a reordenação do poder e a construção doutrinária: “Aidéia de soberania é resultante doutrinária, mas também instrumento,de um longo processo de concentração e centralização do poder, emcuja dinâmica se integram, como linhas de força decisivas, sua fixaçãoe centralização geográficas, o afastamento do príncipe das redes devassalagem medieval e, sobretudo, a consolidação do poder real tantofrente às grandes figuras da alta nobreza, quanto, no plano exter-no, frente às pretensões temporais do papado [...]. Portanto, que o reiseja efetivamente imperator in regno suo, não reconhecendo nenhumpoder terreno superior em todas as questões políticas, esta a proprieda-de fundamental da soberania e também o primeiro pré-requisito da con-cepção moderna do poder estatal”. In: TORRES, João Carlos Brum. Figurasdo Estado moderno. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 47.

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gual nas várias regiões. Na França, por exemplo, a figura doimperador praticamente não tinha relevância no início doséculo XIV, embora a literatura política da época, com fre-qüência, se referisse ao Império como paradigma do podersecular.

Por trás de toda essa diversidade, alguns elementoscomuns permitem falar num processo geral de transforma-ção. Três desses elementos são apontados por Joseph Strayer– que em seu livro concentra a atenção no desenvolvimentoinstitucional do Estado moderno – como essenciais à consti-tuição do Estado, a partir das formações medievais: 1) o apa-recimento de unidades políticas persistentes no tempo egeograficamente estáveis; 2) o desenvolvimento de institui-ções duradouras e impessoais; 3) o surgimento de consensosobre a necessidade de uma autoridade suprema e a aceita-ção pelos súditos dessa autoridade como objeto da lealdadebásica.18

Segundo Strayer, os Estados europeus surgidos depoisde 1100 combinaram com êxito certas características dosimpérios antigos, como a vastidão e o poder, e das cidades-estado, marcadas por um razoável grau de integração entreos súditos e por um sentimento de identidade comum. Porvolta do ano 1000, depois de grandes migrações, guerrasmúltiplas e intensa fragmentação do poder, ainda era difícilencontrar na Europa algo parecido com um Estado.

A partir do fim do século XI, porém, novas condiçõescomeçaram a marcar a vida política e social. Strayer indica,em primeiro lugar, a difusão do cristianismo: segundo ele, “aEuropa ocidental só passou a ser realmente cristã nos finaisdo século X”.19 A Igreja não só compartilhava alguns dos atri-

18 Cf. STRAYER, J. As origens medievais do Estado moderno. Lisboa: Gradiva,s. d., p. 22 et. seq.

19 Ibid., p. 21.

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butos do Estado nascente, como instituições duradouras euma teoria do “poder supremo” papal, mas também influen-ciava diretamente a política secular, pelo envolvimento doclero nos negócios públicos e pela atribuição, aos governan-tes, da obrigação de garantir a paz e a justiça entre os súdi-tos. Exigências desse tipo impunham o desenvolvimento deinstituições judiciais e administrativas.

O segundo fator apontado é a estabilização da Europadepois de um longo período de migrações, invasões e con-quistas. “Pelo simples fato de se manterem de pé, algunsreinos e principados começaram a adquirir solidez. Certospovos, ocupando determinadas áreas, permaneceram, du-rante séculos, integrados num mesmo conjunto político.”20

Com a estabilização, surgiam condições para a implantaçãode padrões mais sólidos de segurança interna e externa, fun-dados em instituições judiciais e financeiras mais eficazes,mais complexas e crescentemente centralizadas. As atribui-ções públicas tendiam a especializar-se e a diferenciar-se,portanto, das funções costumeiras da comunidade.

Foram transformações lentas, acompanhadas e reforça-das pelo aumento da produção agrícola, do comércio e dasatividades urbanas. No fim do século XIII, segundo Strayer, aterceira condição estava consolidada, com os sentimentos delealdade à Igreja, à comunidade e à família ultrapassados pelosentimento de lealdade ao Estado nascente, principalmentena Inglaterra. Não que as lealdades e interesses anteriormentedominantes tivessem desaparecido ou perdido importância. Ofato significativo é que se passava a pensar com um novo qua-dro de referências. Esse quadro se impunha mesmo nas rebe-liões: não se lutava mais contra a instituição materializada nogoverno central, mas para mudar os padrões de governo e paraobter dos tribunais a proteção desejada.

20 Ibid., p. 22.

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Se essas mudanças ocorreram a partir da estabilizaçãoda Europa, seu desenvolvimento, no entanto, não foi pacífi-co. O conflito, como lembra Calasso, nem sempre assumia aforma de contestação aberta, pelos reis, da concepção tradi-cional da comunidade cristã universal. Tampouco se mani-festava, sempre, como negação da autoridade imperial. Nemera preciso. No século XIII, o poder efetivo do imperador pou-co significava nos principais reinos em formação. E a Igrejase encarregou, sempre que pôde, de pôr em xeque esse poderonde ele era mais significativo.

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A conformação desse novo sistema de poder estatal tevecomo contrapartida a constituição de uma nova ordem jurí-dica. Essa ordem redefinia os vínculos de comando e obe-diência, constituía unidades políticas como áreas de jurisdiçãoexclusiva e estabelecia, entre essas unidades, relações deigualdade num sentido preciso: forte ou fraca, pequena ougrande, nenhuma se reconhecia como subordinada à outra.A generalização dessa idéia viria fundar a ordem internacio-nal. Se o sistema de relações entre Estados era o reino daforça, como pensaria Hobbes, ou se era também um univer-so legal em sentido próprio, como sustentariam os teóricos dobellum iustum (Grotius, Pufendorf etc.), não cabe aqui discu-tir.

O importante é reter que o sistema se construía combase em determinadas pretensões jurídicas dos detentoresdo poder territorial. De um lado, essas pretensões excluíamtoda interferência nos assuntos do reino. Constituía-se umaoposição legal entre o interno e o externo, em sentido radical-mente novo. De outro, passava-se a agir em nome de umanova categoria de interesses. João Quidort já mencionava,em seu livro Sobre o poder régio e papal, no início do século

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XIV, a possibilidade de o príncipe agir na defesa de interes-ses do reino:

Se fizer [o que é indicado anteriormente] em proveitopróprio ou de seu país [terrae], faz o que lhe é permiti-do, embora por conseqüência surjam danos a tercei-ros, pois a cada um é permitido fazer uso de seu direito.[...] E, mesmo que o príncipe tome tal medida com aintenção de prejudicar, mesmo assim lhe é lícito, seprevir com argumentos prováveis ou evidentes que opapa se tornou seu inimigo ou que convocou os prela-dos para com eles planejar algo contra o príncipe ou oreino. É lícito ao príncipe repelir o abuso do gládio es-piritual como o puder, mesmo se usando para tanto ogládio material, principalmente quando o abuso dogládio espiritual se converte em um mal para a repú-blica [rei publicae], cujo cuidado incumbe ao rei. Emcaso contrário, não haveria razão para este levar ogládio.21

Pode parecer curioso João Quidort utilizar, nesse mo-mento, argumentos originários do direito privado. Ele se re-feria ao uso das águas, numa propriedade, com prejuízo paraos vizinhos. Pode um homem elevar as águas ou desviá-laspor outros canais, impedindo a irrigação de terras alheias?“Diz a lei que lhe é permitida tal ação”, respondia, “pois estáusando de seu direito, embora outros venham a ser prejudi-cados” (idem).

Há dois pontos de especial significado nesse raciocínio.O primeiro é a analogia, estabelecida por João Quidort, entrepropriedades particulares e potências. As relações entre po-tências eram equiparadas, juridicamente, às relações entreunidades individuais de direito, num sentido muito próximoàquele encontrado nas teorias contratualistas. Em lingua-

21 QUIDORT, Jean. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989.p. 123-4.

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gem moderna, pode-se afirmar sem muitas reservas que JoãoQuidort tratava as questões de direito público internacionalcomo questões de direito privado: pensava os Estados comounidades individuais.22 O segundo ponto é o reconhecimen-to do interesse próprio como fonte absoluta de direito. Assimcomo o agricultor tinha o direito de usar as águas de suabica segundo lhe parecesse melhor, mesmo com prejuízo dosvizinhos, podia o príncipe tomar as medidas que julgassenecessárias, “mesmo com a intenção de prejudicar”, na defe-sa própria ou de seu reino.

Note-se a diferença entre duas questões: uma é o direi-to absoluto de agir, outra é a obrigação do príncipe de defen-der a república (“cujo cuidado incumbe ao rei”). A segundanoção era parte da tradição medieval: o governante eraminister, ou seja, servidor da lei. A primeira fazia parte deuma idéia em formação: a dos Estados (regna, res publicaeetc.) como sujeitos de interesses que se antepunham, pordireito, a quaisquer outros. A novidade aqui consistia emconceber na figura do Estado o portador de um direito abso-luto e incondicional, isto é, pensar o Estado como detentorde direitos indiscutíveis, de modo análogo ao direito de pro-priedade. Essa seria, na forma acabada, a mais radical con-cepção moderna da soberania de cada potência em face dasdemais.

Esse novo desenho das relações de poder é ao mesmotempo uma construção e uma descoberta. Construção, por-que correspondia a planos e a ambições dos atores envolvi-dos. Descoberta, porque nenhuma virtù permitiria projetarcom exatidão o formato do novo mundo. Com essa perspecti-va, não é preciso eliminar a intencionalidade da ação política

22 Sua noção de direito era construída a partir da anterioridade do direitoindividual em relação ao direito público – tradição herdada em boa par-te do direito romano.

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nem ler a história atribuindo aos agentes, de forma retros-pectiva, uma consciência que não poderiam ter. Assumidoesse ponto, fica mais fácil mostrar em que consiste este tra-balho. Estudar a formação do conceito que viria a ser nome-ado soberania liga-se, sobretudo a partir do século XIII, àtarefa de examinar a construção de um novo sistema de po-der, que se expressaria de maneira mais acabada no sistemaestatal moderno. Se essa construção é também uma desco-berta, o quadro conceitual correspondente se compõe, damesma forma, ao longo de um caminho desconhecido paraquem o percorre.

Essa concepção explica tanto os cuidados quanto apa-rentes licenças que poderão surgir no texto. O cuidado prin-cipal é não buscar, no processo formador, nem o Estado comoo conhecemos a partir do século XVI nem uma teoria da so-berania tal como a sistematizada por Bodin ou por Hobbes.É inútil, neste caso, trabalhar com imagens prontas e tiposcristalizados e separados da história. Portanto, não se vaitomar, por exemplo, a definição weberiana de Estado e per-correr a história, como um catálogo, em busca do que sepossa enquadrar no molde.

Também não se entrará numa pesquisa filológica. Oobjetivo não é examinar textos antigos em busca de palavrascomo stato e souverain e discutir seu sentido preciso, embo-ra esse exercício seja de grande importância para a históriadas idéias políticas. Tratar da gênese do Estado e da noçãode soberania, isto é, da formação de uma ordem política queteria na definição moderna de soberania talvez a sua maisimportante representação ideológica e jurídica envolve emprimeiro lugar tarefas de outra natureza. O objeto “Estado”ou “Estado em formação” pode ser designado por muitosnomes (regnum, por exemplo). Da mesma forma, os atributosdo poder supremo são indicáveis por muitas palavras dife-rentes do termo soberania (plenitudo potestatis, entre outros).

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Isso sugere uma escolha metodológica. O caminho maisadequado parece ser o do exame de como as idéias e institui-ções políticas mais correntes chegaram a ser o que são aolongo de um mesmo devir histórico. De um mesmo devir,porque as doutrinas políticas e jurídicas não são somentereflexões acerca do mundo. São também parte dos fatos polí-ticos. Os principais juristas e pensadores políticos do períodoestavam engajados nos grandes conflitos. Suas melhores pro-duções correspondiam, antes de tudo, a artefatos destinadosà luta política.

O princípio de continuidade tem, portanto, importân-cia crucial para entender como certas idéias – neste caso, asque marcaram o período medieval – originaram, lenta e gra-dativamente, nossas formas de pensar a vida política e o in-teresse público. Para os fins deste trabalho, portanto, seráindispensável considerar tanto a história dos fatos políticosquanto a história das idéias políticas –23 estas freqüentemen-te revestidas como formulações de caráter jurídico.

23 O que se tentará aqui é não cair na ortodoxia daqueles que insistemser o contexto (fatores econômicos, políticos e religiosos) o determi-nante do sentido de qualquer texto dado, privilegiando com isso a“moldura” em que se inserem os fatos; mas deve-se evitar ainda aortodoxia oposta: aquela que insiste na autonomia do texto em si comoa única chave necessária para a sua compreensão, deixando de re-constituir fatos históricos que podem explicar as preocupações de umautor. Como aponta Quentin Skinner, “[...] It must follow that in orderto be said to have understood any statement made in the past, it cannotbe enough to grasp what was said, or even to grasp that the meaning ofwhat was said may have changed. It cannot in consequence be enoughto study either what the statement meant, or even what its context maybe alleged to show about what it must have meant. The further pointwhich must still be grasped for any given statement is how what wassaid was meant, and thus what relations there may have been betweenvarious different statements even within the same general context”. In:TULLY, J. (Ed.). Meaning and context. Cambridge: University Press, 1988.p. 29 e p. 62.

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Mais importante, portanto, é identificar claramente aspretensões e os valores em jogo nas disputas de poder. Aquestão da soberania é constituída justamente no cruza-mento desses confrontos políticos, que se dão entre: 1) oimpério e o papado; 2) o império e os poderes estatais nas-centes; 3) o papado e esses poderes estatais; 4) estes pode-res e a nobreza. Também é relevante, naturalmente, o panode fundo das mudanças econômicas e sociais. Há uma rela-ção de mão dupla entre os fatos da “base” – a urbanização,o crescimento do comércio, a formação de corporações, asrevoltas no campo e na cidade etc. – e a redefinição dasforças políticas e das instituições. O “povo” passa a ocupar,por exemplo, um lugar de crescente importância no discur-so dos teólogos políticos, a ponto de, a partir do século XIV,haver espaço para noções democratizantes nas doutrinassobre a organização eclesial – como, por exemplo, a teoriado poder ascendente.24 Torna-se cada vez mais difícil man-ter a teoria de um mundo social ordenado de cima parabaixo.

Os novos conflitos, principalmente a partir da Questãodas Investiduras, deram origem a uma extensa literatura ju-rídica, política e artística. O apogeu desse movimento ocor-reu entre os séculos XII e XIV. Grande parte da produção,talvez a mais conhecida, tratava do conflito sobre os poderesdo papado (sacerdotium) e os do império (imperium ou reg-num). Curiosamente, alguns dos textos mais notáveis apare-ceriam quando o império já pouco significava. No século XIV,quando entraram no debate figuras como Guilherme deOckham e Marsílio de Pádua, a influência do imperador eramuito limitada, e o poder dos reis, em contraste, cada diamais sólido. Era como se os confrontos entre papado e impé-

24 Entre os vários autores que tratam essa questão, destaca-se a contri-buição esclarecedora de Walter Ullmann. Cf. ULLMANN, W. Historia delpensamiento político en la Edad Media. Barcelona: Ariel, 1983.

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rio compusessem o cenário para a consagração de um novopoder, o do Estado moderno.

Em alguns dos textos mais ricos do século XIV, o poderreal aparecia como um dado, enquanto o do imperador e odo papa eram objetos de discussão. Bom exemplo é o capítu-lo final do Brevilóquio sobre o principado tirânico, de Guilher-me de Ockham. Nessa passagem, o não reconhecimento pelosreis da França de um superior em assuntos temporais eramencionado como um argumento, isto é, como um fato forade disputa e reconhecido pela própria Igreja.25 O assunto emdebate era outro: a pretensão do papa de estender seus po-deres sobre o imperador.

Faltava pouco, nesse momento, para a pulverização daidéia de comunidade cristã universal. Como indica FrancescoCalasso, essa noção se mantinha sobretudo como uma mol-dura ideológica do debate político, uma moldura, porém, cadavez menos importante. Mas o poder real, muito mais concre-to que o imperial no século XIV, só se consolidaria no decor-rer de uma história de disputas com a Igreja e com o império,em que os reis enfrentariam cada adversário separadamen-te.

No caso inglês, por exemplo, o confronto com o impérioera desnecessário. Restava, como rival, o poder do clero.Quando o rei Henrique II resolveu intervir no foro eclesiásti-co, a lealdade dos homens influentes estava definida. ThomasBecket só aceitara a decisão do Parlamento de Westminstercom uma restrição: “salvo ordine nostro et iure Ecclesiae”.Henrique II recuou por um momento, e em seguida o Parla-mento especificava, em 16 artigos, as restrições. Becket acei-ta, muda de idéia e foge para a França.

25 Cf. OCKHAM, G. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Petrópolis: Vozes,1988. p. 184.

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Significativamente, partiu do papa Alexandre III a ten-tativa de entendimento. A resistência de Becket acabaria sedando quase à margem da política oficial pontifícia. Ao re-conciliar-se com Henrique II, ele manteve a cláusula: “salvohonore Dei”. O rei, aparentemente, se dispôs à convivência.Historiadores descrevem o assassínio do arcebispo quasecomo um mal-entendido ou fruto de intriga. Henrique II, in-citado por intrigantes, teria deixado escapar a famosa frase:“Não há ninguém capaz de vingar a honra do rei contra essesacerdote?”.

Quatro cavaleiros decidiram executar o serviço. A mor-te de Becket no templo foi descrita por João de Salisburycomo um martírio.26 O mesmo Alexandre III que tentara aconciliação com Henrique II canonizou Becket, em 1173, trêsanos depois de sua morte. Acidente ou não, o fim da históriaparece evidente. O poder do rei se impunha ao resistente, e aIgreja fazia da vítima um santo. Que outro desfecho seriamais emblemático? Hobbes poderia ter feito essa pergunta.

Os confrontos de Roberto de Nápoles com o impera-dor e de Filipe, o Belo, com o papa são especialmente inte-ressantes por seus desdobramentos jurídicos. A controvérsiaentre Bonifácio VIII e Filipe, o Belo, começou quando o reifrancês decidiu tributar o clero. A medida foi contestadapelo papa na bula Clericis laicos, em 1296. Bonifácio decla-rou ilegal a taxação e proibiu o clero de pagar impostos semexpressa autorização papal. Recuou, depois, ao descobrir oapoio encontrado por Filipe, mesmo entre os padres, emtorno de questões de interesse francês. A essa sucedeu umapolêmica sobre o direito da Coroa de prender e julgar umbispo acusado de traição. A crise terminou com a morte dopapa, pouco depois de um grupo mandado pelo rei tentarlevá-lo preso. A história ficou por isso mesmo, e “os papas

26 Cf. SALISBURY, John of. Policraticus. Madrid: Editora Nacional, 1984.

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que se seguiram não conseguiram reavivar nenhum inte-resse pelo caso”.27

Bastaria esse desfecho para tornar esse conflito extre-mamente importante como episódio de afirmação do poderreal. Mas a história interessa também pelo desenvolvimentodo debate suscitado pela questão fiscal. A defesa das preten-sões reais aparecia em tratados escritos por ministros do reie por professores da Universidade de Paris, estes protegidospelo anonimato. Um texto especialmente interessante men-cionado com freqüência por especialistas é a Discussão entreum clérigo e um cavaleiro. Segundo o cavaleiro, Jesus nuncadera ao papa os poderes por este pretendidos. Sendo apenasum governante espiritual, sem domínio, não cabia ao papaditar leis.28 Mas é sobretudo nos tratados de Egídio Romanoe Jõao Quidort que a riqueza das conseqüências desse episó-dio para a literatura política se tornaria mais evidente.

Em 1312, Roberto, o Sábio, resistiu às forças do impe-rador Henrique VII, quando este estava em campanha naItália. Foi, então, acusado de traição, com o argumento dehaver incitado os toscanos e lombardos a rebelar-se contraas forças imperiais e expulsar a administração germânica donorte da Itália. O rei siciliano foi citado, recusou-se a compa-recer perante o tribunal imperial de Pisa e foi condenado porcrime de lesa-majestade.

Como o reino de Nápoles era, nominalmente, feudo dopapado, Roberto levou o caso ao papa. Este consultou váriosjuristas eminentes. Em 1313, Clemente V editou o decretopapal Pastoralis cura, aderindo oficialmente ao ponto de vis-ta segundo o qual o rei era soberano em seu território e nãopodia ser citado ante o tribunal de nenhum outro rei nemante o do imperador. Como rei, não poderia cometer alta trai-ção contra outro rei, por não ser súdito.

27 STRAYER, op. cit., p. 60.28 Cf. ULLMANN, op. cit., p. 149.

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Esse decreto é considerado por inúmeros autores a pri-meira expressão legal do conceito de soberania territorial.Negava a universalidade do poder do imperador, na qual opapado sempre havia insistido com especial interesse. O im-perador só exercia, segundo o documento, um poderterritorialmente limitado. Para muitos juristas, tanto acadê-micos, como os da Universidade de Bolonha, quanto profis-sionais, a idéia era bem familiar desde pelo menos o séculoXIII.

Com uma certa licença poética, Calasso constata: “Len-tamente, a venerada ideologia universalista cedia à vida”. Aidéia do dominus mundi passava agora a ser reconhecidanaquela plenitudo potestatis que o rei exercia no seu reino eque era igual àquela do imperator in Imperio. A nova concep-ção da plenitudo potestatis dos reis em seus reinos, afirmaCalasso, viria fundamentar a concepção de uma ratio specificado Estado, que nos modernos resulta na palavra soberania.29

Revela-se aqui plenamente o valor puramente paradigmáticodo Império. Na fórmula de Alan e Azzone se reconhece fa-cilmente duas proposições: 1) o desconhecimento de qual-quer superior por parte dos reis livres; 2) a atribuição aqualquer um deles, in regno suo, da plenitudo potestatisexercida pelo imperador in mundo.

No final do século XIII a palavra souverain já aparecianos escritos jurídicos. A referência mais freqüente é ao fran-cês Filipe de Beaumanoir – que escreveu por volta de 1283 –, autor do primeiro texto conhecido em que aparece a palavrasoberano (souverain). Em seus escritos, a noção era vincula-da tanto à idéia moderna de função governamental quanto àde jurisdição:

Verdade é que o rei é soberano acima de todos e tem, deseu direito, a guarda geral de todo o seu reino, pelo que

29 CALASSO, op. cit., p. 256-7.

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ele pode estabelecer tudo que lhe aprouver para o provei-to comum, e o que ele estabelece deve ser seguido [...]. E,como ele é soberano acima de todos, nós o nomeamos aofalar de alguma soberania que lhe pertença.30

Todas as propriedades mais importantes do poder so-berano, tal como concebido nas modernas teorias do Estado,já apareciam nessa passagem de Beaumanoir: o domíniodefinido (“seu reino”), o poder legislativo amplo (“estabelecertudo que lhe aprouver para o proveito comum”), o carátervinculante das normas (“o que ele estabelece deve ser segui-do”), o uso da força como parte da função (“a guarda geral detodo o reino”), a supremacia da autoridade (“soberano acimade todos”) e, o que é especialmente significativo, a idéia deuma legitimidade independente de qualquer outro poder (“tem,de seu direito”).

A noção de gubernatio já não bastava, obviamente, paradar conta dos elementos apontados nesse texto. A palavra podeter continuado em uso, mas tornava-se cada vez mais pobrediante dos desenvolvimentos políticos e jurídicos ocorridos aolongo dos séculos XIII a XV. Novas noções tornavam-se neces-sárias para dar conta dos novos fatos. Seja polemizando, sejarefletindo sobre o espetáculo da política, os filósofos e os juris-tas do final da Idade Média tentaram refazer o quadroconceitual. Muito já estava feito quando Maquiavel e Bodinproduziram seus tratados sobre as questões do Estado e dasoberania. Nem os teóricos anteriores trataram apenas do quedeve ser, desconhecendo a facticidade das coisas, nem foramcegos diante dos atributos do poder soberano.

30 No original francês: “Voirs est que li rois est souverains par dessus touset a de son droit la general garde de tou son royaume, par quoi il puet fereteus establissemens comme il li plest pour le commun pourfit, et ce qu’ilestablist doit estree tenu [...]. Et pour ce qu’il est souverains par desseurtous, nous le nommons quant nous parlons d’aucune souveraineté qui ali appartient”. In: BEAUMANOIR, Ph. Coutumes de Beauvaisis. Paris: J.Picard, 1970. v. II, p. 23-4.

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Uma descrição dos conflitos de maior conseqüência nosséculos XII a XIV, na Europa, envolveria, como se viu, nomínimo os seguintes elementos: 1) as pretensões de domíniotemporal do papa, do imperador e dos reis; 2) a superposiçãoou separação das normas eclesiásticas e seculares; 3) a hie-rarquização das normas temporais (por exemplo: relação entredireito costumeiro regional e normas gerais ditadas por ou-tras esferas de poder); 4) a divisão das funções judiciárias.

Todas essas questões podiam ser entendidas como dis-putas de jurisdição. Tratava-se de saber quem julgava e quempunia delitos civis ou violações de normas religiosas, o que jáimplicava a distinção entre duas ordens normativas e duasclasses de autoridade. Tratava-se ainda de estabelecer a ex-tensão de poderes, como, por exemplo, o de tributar. O fradeera subordinado apenas ao papa ou era também súdito dorei e, portanto, pessoa tributável? Ou de esclarecer em nomede quê, ou de quem, se julgava esta ou aquela causa judiciale a que instância cabia a setença definitiva. Esses problemasconduziram, nos séculos XIII e XIV, a uma posição nova – etambém mais clara – do tema da jurisdição territorial.

Os poderes de legislar, de mudar a lei, de resolver comoúltima instância e de controlar o uso da violência constituemo que os autores modernos nomearam soberania. Se todosaqueles conflitos de jurisdição ocorressem de forma desarti-culada, seria abusivo vinculá-los à formação da idéia de po-der soberano; mas também não se poderia tratá-los comoaspectos da constituição do Estado. Ou, dito de outra forma:as grandes unidades políticas européias, bem desenvolvidasno século XVI, teriam de ser vistas como resultantes de umasérie de atos desconexos. Uma coisa é reconhecer processosque ultrapassam a intenção dos atores. Outra é negligenciar,ou desvalorizar, a articulação dos comportamentos intencio-nais.

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Parece mais razoável a combinação de duas perspecti-vas: nem fazer da história o produto de um plano nem redu-zi-la a retalhos inteiramente desligados das intenções dosatores. Os reis, os papas e imperadores, com certeza, nãotinham desenhada na mente, com todos os traços, a imagemdo mundo que estavam construindo. Mas tinham, certamen-te, uma visão organizada de suas ambições e dos objetos emdisputa. Quando Filipe, o Belo, rei da França, se opôs aopapa Bonifácio VIII por uma questão tributária, o que se dis-cutia era, claramente, o seu direito de cobrar impostos numdado território, com base numa lei de seu reino, com uso desua força e com exclusão de qualquer outra autoridade.

Aceitos esses pontos, falar em Estado (como objeto emformação) e em soberania (ponto de convergência dos gran-des conflitos de jurisdição) deixa de ser um anacronismo.Poderá soar como licença, ocasionalmente, porém autoriza-da por toda a argumentação apresentada até aqui. MarcelDavid afasta sem muita dificuldade a objeção do anacronis-mo. Depois de examinar o uso dos termos soberano e sobe-rania nos séculos XIII e XIV, ele põe na mesa um argumentomuito mais importante: nos séculos XII e XIII,

três das noções expressas em francês pela palavra sobe-rania já existem, simplesmente adaptadas à estruturada sociedade política do tempo. Duas delas, autoridadesuprema e recusa de toda ingerência de um superior nonível de uma potência reconhecida como legítima, se ex-primem pela mesma palavra: auctoritas. Quanto à potên-cia pública, é a palavra latina a partir da qual ela seformou, potestas, que habitualmente serve para exprimi-la. Assim, o pensamento político dessa época soube fazerdo vocabulário um uso mais judicioso do que a partir doséculo XVI.31

31 DAVID, Marcel. La souveraineté et les limites juridiques du pouvoirmonarchique du IXe au XVe siècle. Paris, Dalloz, 1954. p. 14. Além detudo, diz também Marcel David, “a história e a lógica não se opõem aque as idéias inerentes ao termo soberania tenham sido já extraídas,

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Como explica Alessandro Passerin D’Entrèves,

o que importa não é a falta de um claro conceito de Esta-do no pensamento medieval, e sim o surgimento gradualde uma noção que dele se avizinha sempre mais, a noçãode que, entre as múltiplas formas de associação huma-nas há uma dotada de um poder particular: um poderque administra, legifera, julga e tributa, não em virtudeda simples posse da força material ou das qualidadespessoais de um chefe, mas em nome de um complexo denormas que, justamente porque pertinentes ao status reipublicae, são normas de direito público, não de direitoprivado. [...] À respublica christiana, organização ao mes-mo tempo política e religiosa de todo o mundo cristão,terminará por substituir um novo tipo de organização,mais restrita, mas também mais definida e de carátercada vez mais “leigo”, a civitas e o regnum.32

simplesmente expressas no latim da época, com ajuda de um vocabulá-rio original que pôde muito bem permanecer sem grande influência so-bre aquele que utilizamos em francês” (idem, p. 17).

32 D’ENTRÈVES, Alessandro Passerin. La dottrina dello Stato. Torino: G.Giappichelli, 1962. p. 139.

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O objetivo desta seção é apontar alguns eventos im-portantes ocorridos durante o período da chamada Alta IdadeMédia,1 que serão retomados ou mesmo exercerão influên-cia direta para o curso das idéias no período aqui estudado– os séculos XI a XIV. Alguns desses episódios históricos,como, por exemplo, a conversão de Constantino ou a for-mação do papado no Ocidente, serão reinterpretados e/ouutilizados para sustentar práticas políticas bastante con-cretas, muitas vezes bem distantes do contexto específicono qual ocorreram. Tais episódios deverão servir ainda parailuminar um pouco a história da formação dessa unidadeterritorial hoje denominada Europa, a partir do ocaso dosromanos, e sua fragilidade diante dos grandes impérios daépoca, como o Bizantino ou os poderosos califados muçul-manos.

1 Chamarei de Alta Idade Média, neste trabalho, o período que vai atéo final do século X; e de Baixa Idade Média o período que compreen-de os séculos XI e XV. Como alerta o historiador Jônatas BatistaNeto, uma periodização mais rigorosa “reserva apenas aos séculosXIV a XV essa denominação”. Muitos chamam de “Idade Média cen-tral” o período entre os séculos XI e XIII – entre eles, Batista Neto.Mas não entrarei aqui num tal debate. Para os fins deste trabalho,essa seria uma discussão inútil, pois a questão não é objeto imediatodas reflexões aqui empreendidas: o desenvolvimento da argumenta-ção não depende de critérios precisos de periodização histórica. Cf.BATISTA NETO, J. História da Baixa Idade Média (1066-1453). São Pau-lo: Ática, 1989. p. 8-9.

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A queda da cidade de Ravena,2 e com ela de boa partedo território que havia constituído até então o Império Roma-no do Ocidente, em mãos do chefe sírio Odoacro, em 476,significou o fim da política romana no setor ocidental. A vitó-ria de Odoacro – fiel a Zenon, o augusto do Oriente, somadaà instalação das populações germânicas em reinos bárbaros,principalmente na Europa central, punha uma pedra sobrea hegemonia romana na região: “os latinos acabaram daí emdiante ou como massas submetidas ou como um complexode grupos cultos que colaboraram com o poder dos bárba-ros”.3

No plano institucional, portanto, só havia espaço parauma política inspirada nas necessidades desses povos bár-baros e suas formas de organização social. Duas transfor-mações gerais merecem destaque: a substituição do sistematributário e financeiro romano pelo novo sistema de presta-ção de serviços; e o retorno à economia natural. A Igreja, pornão estar diretamente envolvida com o extinto império, aca-bou preservada e não participou de sua ruína. Pelo contrá-rio: converteu-se numa instituição autônoma, com umprincípio de unidade e órgãos de autoridade próprios. Essa

2 Desde o ano de 402-3, com o imperador Honório, a cidade de Ravenahavia se tornado a sede da residência do imperador, por ocupar umaposição estratégica para a defesa imperial contra os ataques bárbarosao norte. Tornou-se assim a capital do Império Romano do Ocidente.Em 476, caiu em poder do chefe bárbaro Odoacro e, em 493, passou aodomínio do ostrogodo Teodorico, tendo-se tornado capital da Itáliaostrogoda. Em 540, foi transformada em exarcado imperial, agora emmãos dos bizantinos, passando a ser a capital da Itália e transforman-do-se no centro de toda atividade administrativa italiana. Era também oprincipal porto de entrada para os bizantinos. Depois do século VIII,Veneza passou a tomar o lugar de Ravena como o principal porto doMar Adriático. In: LOYN, H. R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1991. p. 312.

3 SAITTA, A. Guía crítica de la historia medieval. México: Fondo de CulturaEconómica, 1989. p. 61.

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Ecclesia, lembra Saitta, “estava em condições de ser simulta-neamente a herdeira e a representante da antiga cultura ro-mana e mestra e guia dos novos povos bárbaros”.4

A Igreja, contudo, passaria por um longo processo deordenação interna, no qual teriam lugar: o incremento daorganização episcopal, em curso desde o século I d.C.; a pro-gressiva cristianização de camadas sociais cada vez maisamplas; e o aumento da influência eclesiástica sobre os bár-baros, por meio da sua progressiva conversão ao catolicismo– que promoveu ainda a “romanização” desses povos –, for-jando as bases para uma nova civilização romano-medieval.Os reis bárbaros aderiam à fé católica, mas não abdicavamde seus poderes temporais. Lentamente, os católicos se so-brepuseram aos arianos5 no território europeu.

No século VI, embora se tenham erguido igrejas locaisindependentes de Roma na Gália, Espanha e África, algu-mas transformações foram fundamentais para a afirmaçãoda superioridade da autoridade do pontífice sobre o poderdos reis. Uma delas foi o surgimento do monaquismobeneditino, por volta de 520, que aplicou à instituição mo-nástica os princípios romanos da ordem e da lei. Também foirelevante a progressiva separação de Roma do predomíniocesaropapista6 de Bizâncio.

O Império Bizantino, o grande centro político da época,precisava concentrar suas forças para conter a expansão dos

4 Ibid., p. 65.5 Cristãos visigodos e ostrogodos que acreditavam não ser Pai e Filho, na

Trindade, compostos da mesma substância.6 A noção de cesaropapismo tem origem na figura clássica do imperador

teocrático romano, que detinha o controle da Igreja e do Estado e eracultuado como uma divindade. O conceito acabou se transformandonuma denominação para a teoria de governo segundo a qual os poderestemporais do rex e os poderes espirituais se combinam e são exercidospor um único governante leigo, como no caso dos imperadores bizantinos.Cf. LOYN, op. cit., p. 87.

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povos do Oriente, entre os quais os belicosos mongóis, mili-tarmente muito mais poderosos e ameaçadores do que astribos germânicas. A preocupação com a defesa da fronteiraoriental de Bizâncio acabou resultando num maior espaçopara os bárbaros no Ocidente. Com a guerra gótico-grega(535-53), caía por terra a unidade territorial da península,pondo fim ao fiscalismo bizantino na região: estavam abertasas portas às pretensões expansionistas do pontífice de Ravena.

Gregório Magno (590-604),7 primeiro pontífice da Igre-ja latina, “foi na verdade o último grande romano e o primei-ro representante da civilização cristã-ocidental”. A ele se devea codificação da liturgia utilizada até hoje e também a intro-dução do canto gregoriano nos cultos. Além disso, foi umsevero regulador da vida disciplinar da Igreja e guardião datradição dogmática.8 Consolidou a estrutura da Igreja Cató-lica, reforçando a instituição episcopal e subordinando-lhe opróprio monasticismo, que até então tinha muitas vezes cer-ta autonomia em relação às organizações eclesiásticas. Comele também a Igreja enriquecera:

Ao morrer, em 604, Gregório deixava já firme e bem cons-truída a base sobre a qual o papado medieval edificariasua própria existência: primazia e raio de ação ecumênico;poder moral indiscutível que não rejeita seus deveres noplano político-mundano; e, finalmente, uma conspícuariqueza econômica para o cumprimento de sua missão.9

Essa evolução terá como epicentro o século VIII. Comoresultado da crise européia – que remonta ao expansionismo

7 As datas assim mencionadas referem-se ao período em que o cargo foiexercido, do início do mandato ao seu término, em geral coincidentecom a data da morte de seu ocupante, seja ele papa, rei ou imperador.Essa forma de indicação já constitui hoje um padrão utilizado interna-cionalmente e será adotado aqui ao longo de todo o texto.

8 Doutrina que afirma a existência de verdades ou princípios corretosque se pode comprovar serem indiscutíveis.

9 SAITTA, op. cit., p. 70 e 72.

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árabe do século VII, com a revolução religiosa de Maomé (571-632), e à ruptura da unidade da costa mediterrânea, com aconseqüente destruição da atividade comercial –, tinha inícioum período em que passava a predominar uma economiapuramente agrícola, de tipo latifundiário, baseada na grandepropriedade rural, o feudo. O centro da civilização ocidentalse movia em direção ao norte – e se manteria por muito tem-po entre o Sena e o Reno.

Outros fatores também intervieram nessa crise. Entreeles, deve-se mencionar: o problema da deterioração das re-lações religiosas entre Roma e Bizâncio (por exemplo, a GuerraIconoclasta, 726-87); uma séria crise política, agravada como assassinato do éxarchos de Ravena e com o desapareci-mento, em Roma, do dux (chefe) bizantino (727) – episódioque causou problemas, na sucessão papal, entre aristocra-tas armados e clérigos munidos de milícias rurais; a ameaçadireta contra a autonomia pontifícia, representada peloexpansionismo longobardo; e o amadurecimento das refor-mas introduzidas pelo papa Gregório Magno (590-604), queestendiam o poder do bispo de Ravena sobre todo o Ocidentecristão.10

Dois fatos – relevantes para a constituição do papadolatino como instituição governamental – acompanharam essaevolução: a inserção da atividade missionária no esquemaorganizativo episcopal de Roma; e a constituição do papadocomo um poder político propriamente dito, por meio da for-mação de um Estado pontifício. A justificação da posse serialogo forjada por meio da falsificação da famosa Doação deConstantino. Além disso, o dinamismo da monarquia fran-cesa, que constituía um obstáculo à ascensão do papado, foiposto em xeque com a deposição do último rei merovíngio e aaliança entre o papado e a nova dinastia carolíngia de CarlosMartel, que conduzira ao trono Pepino, o Grande, em 751. A

10 Ibid., p. 73-5.

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partir daí, a espada francesa e a tiara pontíficia se converte-riam nos supremos reguladores do Ocidente cristão, que len-tamente passava a se diferenciar do “outro” – o perigomuçulmano.11

A expansão do Império Carolíngio sob Carlos Magno,coroado em 800, passou a abarcar um vasto mosaico de po-vos escassamente amalgamados. A íntima união entre Impé-rio e Igreja Católica, argumenta Saitta, alimentava um idealestreitamente ligado à essência do novo império: nele a idéiamesma de poder supremo era inseparável da noção do cum-primento de uma missão religiosa, à qual se vinculavam tan-to as batalhas militares de Carlos Magno quanto a suaconvicção de ser o chefe da Igreja, já que o catolicismo sótinha vingado de fato nos territórios conquistados pelas ar-mas.

Essa ligação umbilical entre Império e Papado culmi-nou nos séculos X e XI. Mas os abusos e intromissões dosumo pontífice em disputas políticas de caráter pouco sagra-do conduziram a uma gradativa deterioração dessa relação.O predomínio imperial sobre o papado, contudo, só seria pôstoem xeque quando da Questão das Investiduras e seus resul-tados, assinados na Concordata de Worms, em 1122. O mo-vimento de reforma da Igreja, que começava a tomar corpo ealterava a configuração política da Europa, era apoiado pelanova dinastia sálica.12 Mas o complexo de “Estados” surgi-dos dos povos germânicos diferia – e muito – dos seusantecessores romanos, pois fundavam-se em outras bases:seu eficiente aparato burocrático, por exemplo, não era “as-

11 Ibid., p. 77.12 Dinastia oriunda dos sálios, tribo de francos que viviam originariamen-

te às margens do Rio Issel e terminaria por ocupar o território germânico.Na acepção latina mais antiga, o termo remete aos 12 sacerdotes deMarte responsáveis pela guarda dos escudos sagrados que protegiam aantiga Roma.

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salariado”, como em Roma, e sim vivia do produto dos im-postos e concessões de terra. Mais importante ainda: o vín-culo fundamental com o Império era o da fidelidade pessoalao imperador, base do sistema feudal medieval.

* * *

Já no mundo árabe-muçulmano, os primeiros impera-dores bizantinos promoveram a separação entre Roma e oOriente por meio de uma helenização cada vez mais intensa.No século VI, Justiniano I (527-65) – “o último grande impe-rador romano e o primeiro bizantino” – tentou reconstituir a“totalidade” do antigo Império Romano. Dois pontos merece-ram especial atenção desse governante: a idéia de um impé-rio uno e a difusão do cristianismo. “Subordinou a esse fim”,lembra Steven Wilson, “toda a sua política imperial, admi-nistrativa, fiscal, econômica e religiosa, enquanto a grandecodificação do direito romano, o Corpus Iuris Civilis, forneceua estrutura legal unitária para todo o espectro de poderes eprerrogativas imperiais exercidos por Justiniano”.13

Mas a era – e a obra – de Justiniano14 não demoroumuito a ruir, sob o peso dos ataques persas e, ao norte, dareordenação de povos que teve lugar ao longo do Danúbio (es-

13 LOYN, op. cit., p. 227.14 O feito mais significativo de Justiniano I para a história do pensamento

político foi provavelmente a reunião de uma coleção de leis e textosjurídicos da antiga Roma, que ficou conhecida como o Codex Justinianus,o Código de Justiniano. O Código era formado de quatro partes: o CodexConstitutionum (527-34), coletânea de antigas leis romanas compiladasem dez livros; o Digesto (530-3), formado por cinqüenta livros com cita-ções de juristas romanos; os Institutas (533), compêndio elementar deinstituições jurídicas para estudantes de direito; e as Novellae (514-65):uma coleção de todas as leis promulgadas por ele, esta última a únicaobra escrita em grego. O Codex Constitutionum e o Digesto foram reuni-dos no Corpus Iuris Civilis, que logo se tornou a grande referência me-dieval sobre direito romano.

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lavos, búlgaros, kazares, avares). Além disso, ao sul e a lesteo novo Império Árabe-Muçulmano florescia, agora converti-do a uma nova religião: o islamismo. O regime de Bizânciotentou o quanto pôde impedir a eliminação dos pequenosproprietários, cultivadores diretos da terra. Mas pouco a poucoo latifúndio foi conquistando também as novas terras do Ori-ente e fundando as bases do “feudalismo medieval”, sob asquais as usurpações dos barões diante dos poderes impe-riais e religiosos se imporiam por volta do século X.15

Nas vizinhanças do Império Bizantino, entretanto, umEstado árabe, adaptado a uma “ideologia” árabe – que deve-ria abarcar, além de muçulmanos, beduínos e nômades –,começou a se tornar realidade com o líder reliogioso Maomé(570-632). Os princípios norteadores desse novo sistema depoder foram expostos doutrinariamente no Corão (e na Suna).Depois da morte do guia político e espiritual, surgiu na pe-nínsula a instituição do califado eletivo, modelo que repercu-tiria mais tarde nas sucessões dinásticas do Ocidente. OImpério Árabe-Muçulmano, sustentado agora na lei islâmica,expandiu-se e passou a anexar novos territórios na Europa.

Cientes de sua pouca experiência político-administra-tiva em terras ocidentais, os governantes árabes procuravammanter seu domínio sob as regiões anexadas sem contudoeliminar ou substituir as instituições locais. Um bom exem-plo dessa política pode ser encontrado na ocupação daEspanha e do sul de Portugal. Os territórios conquistadoseram considerados províncias do império. Os cristãos eramvistos como súditos de segunda classe. Todos os documen-tos oficiais eram redigidos em grego, e a lei islâmica era aregra de direito público. Mas a conversão à fé islâmica nãoera obrigatória aos povos conquistados, nem se mexeu noregime de propriedade, que continuou sendo estatal.16

15 Cf. SAITTA, op. cit., p. 104.16 Ibid., p. 110 et seq.

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O Império Bizantino, influenciado sobretudo pelos po-vos do Oriente, trouxe para a sua religião – hoje denominadacatolicismo ortodoxo – o culto à imagem, fortemente rejeitadopelos católicos da Europa e, agora, mais radicalmente ainda,evitado pelos povos árabe-muçulmanos. Esse choque deu ori-gem à Guerra Iconoclasta, com grandes perdas para Bizâncio.Os árabe-muçulmanos impunham-se cada vez mais diantedo poderio bizantino. Com a dinastia macedônica, que ascen-deu ao poder com Basílio I (867-86), Bizâncio recuperaria par-te do esplendor e atravessaria a virada do milênio rivalizandoo alcance de sua civilização com a Bagdá muçulmana. Nessadisputa, não havia ainda lugar de destaque para a Europalatina, pobre, fragmentada e imersa em lutas intestinas.

Desde Justiniano, Bizâncio já não conhecera mais talextensão, abarcando agora também os eslavos convertidos aocristianismo. Mas, depois de Basílio II (976-1025), recomeçoua decadência de Bizâncio para o resto de sua história: o cho-que com a Europa, marcado sobretudo pelo início das Cruza-das, alteraria definitivamente a configuração de poder noOcidente latino. Também o Império Muçulmano vivia seumomento de glória e, juntamente com Bizâncio, depois da vi-rada do milênio, conheceria a crise que determinaria seu fim.

Paralelamente, a Europa central vivia um momento de“reordenação étnica”. A partir de povos turcos (sobretudo doskazares, que permaneceram na costa do Mar Negro e ali fun-daram um poderoso império), cresceu o acesso, entre os sé-culos XI e XIII, dos nômades da estepe na direção do Ocidenteeuropeu. Os eslavos “desceram” literalmente em direção àEuropa. Em poucos séculos, seu peso se faria sentir de nortea sul, por meio da migração dos povos.17 Nasciam nessemomento os Estados eslavos da Europa.

17 O avanço desses povos se deu fora da zona “iluminada” por textos gre-gos ou latinos, de modo que quase não há registros destes movimentos.

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O feudalismo pôde se desenvolver, sobretudo na Euro-pa ocidental e central, à margem do intenso comércio fomen-tado pelos árabes, em boa medida em razão da não-interven-ção direta dos muçulmanos nos costumes e tradições dospovos conquistados. O fenômeno feudal, que ganhou forçano território europeu a partir do século VIII, teve origem naFrança merovíngia e carolíngia, embora seus elementos cons-tituintes fossem muito mais antigos – já havia manifestaçõesisoladas destes elementos na Itália, por exemplo.

De modo geral, caracterizava-se por ser uma nova for-ma de organização simultaneamente política, econômica esocial, e que tinha como base a divisão do poder supremo, opredomínio do campo sobre a cidade, e uma rígida distinçãoentre as camadas dos senhores e a dos servos e vassalos.Juridicamente, manifestava-se num complexo de instituiçõesorganizadas em torno da relação de vassalagem, que tinhacomo centro o feudo.18 Esse novo modelo significou “a com-pleta desaparição do conceito romano de Estado, substituí-do pelo vínculo pessoal e hierárquico das pessoas”.19

No século X, à desordem política da Europa somavam-se ainda um progressivo empobrecimento econômico e umagrave desintegração do complexo social, devida em parte àrepetição do fenômeno migratório. A situação política come-çou a melhorar apenas com a ascensão da dinastia saxã – de

Pouco se sabe sobre a sua primeira forma de organização social e polí-tica. Cf. SAITTA, op. cit., p. 115.

18 O feudo, de maneira genérica, era constituído de três elementos: o be-nefício, concessão de terras pelo rei ou pelo senhor; a vassalagem: ofavorecido declarava-se vassus (seu, no sentido de posse) do senhor; e aimunidade: transferência ao vassalo, nos limites do feudo, dos poderespolíticos desfrutados pelo senhor. O benefício (precarium – propriedadeconcedida como um empréstimo de um superior) e a imunidade tinhamsido utilizados também no Império Romano. Já a vassalagem (comitatus– séquito formado de servos) era de origem germânica.

19 SAITTA, op. cit., p. 134-5.

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Oto I e seus sucessores –, que, para superar essa desorgani-zação feudal, entre outras coisas, introduziu por volta de 950o feudalismo na própria Igreja, criando a figura do bispo-conde. Logo depois, o Ocidente também viveria o floresci-mento do ano mil.

A partir do século XI, aprofundou-se o modelo feudal,que conheceria seu auge ao longo do movimento das primei-ras Cruzadas.20 A instituição eclesiástica, em especial oPapado, tentava desde o século IX impor-se como força mo-ral e política alternativa aos poderes existentes. Os primeirossinais do desenvolvimento de uma ideologia eclesial própria– e da valorização da Ecclesia como fator de poder – já come-çavam a aparecer. Mas o percurso que consolidaria a institu-cionalização do Papado como organismo de governo só tevelugar no decorrer de um longo processo histórico permeadopor infindáveis conflitos entre códigos e espadas, cujo dese-nho mais bem acabado estaria disponível nas formulaçõesdo fim do século XIII.

* * *

Antes de tornar-se um poder capaz de desafiar a tradi-ção e a ancestralidade do Império, entretanto, a Igreja sofre-ria transformações profundas que modificariam seu caráterinicial. Entre o seu fortalecimento como órgão espiritual e areivindicação de poder supremo pelo bispo de Roma, a insti-tuição eclesiástica percorreria um longo e conturbado cami-nho, do qual a batalha entre regnum e sacerdotium constituiu

20 Três fatores contribuíram fortemente para o sucesso das Cruzadas: aintrodução do feudalismo entre os povos eslavos convertidos ao cristia-nismo; o aumento do prestígio da Igreja e do Papado; e o interesse das“repúblicas marítimas” italianas em expandir-se na direção do Oriente.Com a vitória da Primeira Cruzada (1095-99), o feudalismo penetroutambém no Oriente. Ibid., p. 140-1.

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provavelmente um dos aspectos mais importantes para odesenvolvimento das idéias políticas que fundamentariamnoções centrais da ciência política, como Estado e soberania.

Walter Ullmann, num de seus livros mais conhecidossobre o pensamento político medieval, oferece uma descriçãopitoresca dos eventos que envolveram a constituição e a con-solidação da organização eclesiástica, sobretudo a partir doséculo IX. Com a restauração do império, promovida porCarlos Magno,21 os princípios teocráticos, base do poder real,ganharam um novo impulso. Na tentativa de moralizar o rei-no – e, dentro dele, a Igreja Católica, então corrompida e as-solada por todo tipo de desordem –, imperadores e reisapoiaram e promoveram a reforma eclesial, cobrando da ins-tituição um novo padrão de conduta e de organização. Asreformas introduzidas no foro eclesiástico foram tão profun-das que acabariam por gerar uma instituição com indepen-dência suficiente para reivindicar uma visão do mundo debase hierocrática.

Conta Ullmann que o pontífice Estêvão IV (816-7), pro-curando concretizar a idéia papal de criar um “imperadordos romanos”, partiu em viagem à França, onde coroou pes-soalmente Luís I, filho de Carlos Magno, em 816. Na cerimô-nia, ofereceu-lhe a coroa de Justiniano e ungiu-o com osóleos sagrados. A partir daí, explica, a cerimônia de coroa-mento e a sagração pelo papa passariam a fazer parte de umúnico ato litúrgico: o primeiro imitava os imperadores de Bi-zâncio, enquanto a unção, nessa forma de cerimonial, era deorigem bárbara e significava ter recebido o rei a graça deCristo, passando a ser sua “imagem” ou “figura”. A sagraçãotambém fazia parte do ritual de posse dos bispos. A diferen-ça, contudo, estava no fato de que a unção real não tinha

21 Carlos Magno, filho de Pepino, o Grande, foi rei franco entre 768-814 eimperador entre 800-14, ano de sua morte.

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caráter indelével, enquanto a dos bispos os encarregava do“cuidado das almas”.

Na coroação seguinte – do filho de Luís I, Lotário I, tor-nado co-imperador por seu pai –, o papa já não mais se des-locou até a França para o ato: convidou Lotário a Roma pararealizar o coroamento, que ocorreu no altar-mor da Igreja deSão Pedro – onde se perpetuaria desde então. Outro detalhesignificativo, conta Ullmann, foi o fato de Lotário ter recebidodas mãos do papa, durante a cerimônia, uma espada, sím-bolo da força física: o imperador passava a receber agora sua“força” das mãos do pontífice e teria assim o dever de protegê-lo.

Era o início de uma inversão de posições: o impériopassava a ser agora o “braço armado” da Igreja de Roma. Afrase de São Paulo – “o príncipe não deve empunhar a espadasem causa” – ganhava um sentido prático: a razão paraempunhá-la era agora “descarregar sua ira contra os malva-dos”. Em que consistia essa maldade e como erradicá-la erauma definição que cabia àqueles que estivessem qualificadospara determiná-la: neste caso, ao sumo sacerdote. Agobardode Lyon, que escreveu no século IX, contava que o significadoconcreto atribuído à espada era “o submetimento dos reinosbárbaros para que abraçassem a fé e ampliassem as frontei-ras do reino da fé”.22

Setenta e cinco anos mais tarde, quando da coroação deCarlos VIII pelo papa João VIII (872-82), o pontífice deixouclaro que o monarca havia sido chamado, eleito e confirmadopor ele. E que seria nomeado imperador dos romanos “porprivilégio da sé apostólica”. Havia-se dado uma notável trans-posição do pensamento político abstrato para o plano legal,como observa Ullmann. Ao longo do século IX, os imperadoresadotaram exatamente o mesmo raciocínio e ponto de vista do

22 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 73-4.

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papado, segundo o qual o “verdadeiro Império Romano” sópoderia ser obtido com a concessão do papa, “rebaixando comisso o imperador do Oriente à categoria de mero governantegrego: a universalidade do poder e o domínio estavam reserva-dos ao verdadeiro imperador dos romanos, coroado pelopapa”.23 Nesse momento, era ao imperador bizantino cesaro-papista que a Igreja do Ocidente tentava impor-se.

A passagem da pura ideologia política à prática foi acom-panhada de algumas produções literárias, como a do biblio-tecário Anastácio (c. 860), para quem o papa era o vigário deDeus que distribuía o poder sobre a terra, na qualidade de“porteiro de céu”. A amplitude dos poderes de São Pedro paraatar e desatar na terra afirmava-se sem ambigüidades: o su-premo poder jurisdicional dentro da sociedade cristã passa-ra a residir na pessoa do pontífice. Sob o papa Nicolau I(858-67), essas teses espalharam-se e alargaram-se: à con-gregação de todos os cristãos – presidida pelo papa e deixadaa seu governo – Nicolau I denominou “sociedade de todos oscrentes”, cujas leis eram ditadas pelo herdeiro de São Pedro.Ao imperador se concedia poder quando se lhe outorgava odireito de usar a espada.

Baseado em tais considerações, Nicolau I forneceu aosprincípes instruções muito concretas acerca de seus deve-res, entre eles o do extermínio das heresias. Os reis estariamsubmetidos ao papa. E, portanto, não lhes era permitido jul-gar seus mestres nem servir a dois senhores, como afirmavao Evangelho.24 O princípio formulado a partir dessa afirma-ção – e este é um ponto relevante – era o da imunidade ecle-siástica diante dos poderes seculares e reais: na “sociedadedos crentes”, as leis eclesiais deveriam ter sempre preemi-nência sobre aquelas ditadas pelos príncipes.

23 Ibid., p. 75.24 Cf. Mateus 6: 24; Lucas 16: 13. In: A Bíblia. São Paulo: Loyola, 1995.

Todas as citações do Livro Sagrado foram retiradas dessa edição.

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As leis seculares podiam existir, mas tinham carátersubsidiário: valiam sempre que não houvesse uma disposi-ção canônica específica sobre a matéria e não contradisses-sem os princípios de direito eclesiástico.25 E a função dasleis, afirmava Nicolau, era alcançar a “ordenação” social. Por-tanto, se um rei ditasse leis que se afastassem desse esque-ma jurisdicional ou contrariassem as finalidades de umasociedade cristã, ele deveria ser desobedecido. Essa resistên-cia, contudo, deveria ser aprovada – só e tão-somente – poraqueles qualificados a pronunciar-se a esse respeito.

Adriano II (867-72), sucessor de Nicolau I, sustentavaque os decretos papais materializavam a idéia de justiça, da-do que esta era a base da lei. O pontífice defendeu ainda queera da sua competência decretar a exclusão de qualquer cris-tão da sociedade dos crentes, incluindo os reis, pois a estabi-lidade de um reino dependia do fato de o rei cumprir seusdeveres como um governante cristão. O conteúdo da justiçasó podia ser definido por aqueles qualificados para tal: osque tinham “os sentidos e a mente de Jesus Cristo”, comoafirmara no século VII o papa Gregório II. Acima de tudo,impunha-se “o princípio da divisão do trabalho, segundo aqual cada pessoa ocupante de um cargo, fosse rei, imperadorou bispo, devia limitar-se ao desempenho exclusivo daquelasfunções que lhe tinham sido atribuídas”.26

O rei tornava-se minister (servidor): devia governar comeqüidade e justiça, ainda que o conteúdo do justo não pu-desse ser definido por ele, mas apenas pelo clero. A sustenta-ção legal dessa posição remontava em geral ao argumento deIsidoro de Sevilha (c. 560-636), que dizia ser a função do reimeramente auxiliar, já que consistia em difundir pela forçadas armas a palavra dos sacerdotes. Esse era o principal

25 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 77.26 Ibid., p. 78.

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aspecto da função ministerial do rei. As teorias hierocráticas– que pregavam a supremacia da autoridade papal sobre osdemais poderes – ganhavam agora mais e mais espaço, di-fundindo-se entre os reis cristãos. Tais decretos papais, jus-tamente porque não estavam em desacordo com a maioriadas leis costumeiras vigentes, não causavam, nesse momen-to, conflitos de interesses relevantes.27 Mas essa convivênciaharmoniosa duraria pouco.

Os reis ainda podiam possuir igrejas em seus territó-rios e a elas destinar seus bens por meio de doações. Osfilhos de reis e nobres que não encontravam espaço nas su-cessões de suas casas eram enviados para a Igreja, o queassegurava a manutenção de laços de fidelidade entre os se-nhores e o clero local. O senhor leigo controlava, inclusive, oscargos de bispos e abades, pois tinha poderes para designá-los: a chamada investidura do clero no cargo e a concessãode seus benefícios (regalia)28 pelo senhor.

Esses poderes dos senhores leigos não tardaram a seralvo de críticas dos religiosos mais radicais. A Igreja, comoinstituição consagrada a Deus, não podia ser objeto de tran-sação legal: devia ser retirada do domínio dos senhores laicos,que passariam a ser seus patronos e protetores, mas semdireito de dispor dela nem de seus pertences.29 Um tal passo,

27 Esse descompasso traria conseqüências graves apenas no século XI,quando o império voltaria a reivindicar, em vão, sua supremacia sobreo papado.

28 Plural de regalis [rex], adjetivo neutro, que significa “real”, “relativo à rea-leza”; “de ou pertencente a um rei ou monarca real”. In: GLARE, P. G. W.(Ed.). Oxford Latin dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1982. Ao longoda Idade Média, sobretudo na interpretação cesaropapista, o vocábulodeu origem à noção de “regalismo”: doutrina que sustentava a interven-ção do chefe de Estado em assuntos religiosos. A palavra regalia passoupara o português a partir da versão espanhola regalía, que quer dizer“direito próprio do rei”, ou ainda “privilégio”, “prerrogativa”. Essa “insti-tuição” medieval constituiria a raiz do conflito pela investidura.

29 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 81.

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contudo, só seria dado no século XII, com o fim da Questãodas Investiduras. Constituía, nesse momento, apenas umadas reivindicações de uma ala reformista minoritária da ins-tituição eclesiástica.

Mas a transformação no papel do governante tempo-ral operada pelos pontífices não se deu à revelia do podersecular. O caráter sagrado conferido aos imperadores pelaunção do papa interessava também aos monarcas, pois oscolocava acima do povo: cada governante passava a ser qua-lificado como Rex gratia dei. Ou seja, com a unção, os reisrecebiam diretamente de Deus o benefício de estar acimado povo para nele mandar e para governá-lo. A figura dochefe político distanciava-se mais e mais da forma de gover-no típica dos povos bárbaros, na qual o rei era eleito direta-mente pelos membros da tribo.

A unção pelo papa não apenas distinguia o monarcado resto dos mortais, como também evidenciava a legitimi-dade de seu governo, sancionado pela divindade. Todo po-der, tanto do clero quanto dos monarcas, provinha de Deusdiretamente aos seus representantes, sem intermediações.Essa era a base da doutrina do poder que afirmava o cará-ter divino do rei e do Santo Padre: o povo nada tinha a vercom a concessão divina da graça.30 Essa teoria seria usadamais tarde para sustentar tanto as pretensões de suprema-cia da monarquia papal quanto aquelas dos monarcas ab-solutos, como ocorreria em França.

O governo do rex era exercido sobre o povo, o que re-forçava a designação deste como majestas, denominação deorigem romana tardia: maior do que qualquer indivíduo deseu reino – de onde foi refinada a noção, conhecida na épo-ca, de crime de “lesa-majestade”. A coroação acentuava asuperioridade do rei, que se tornava “supremo” dentro de

30 Ibid., p. 84.

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seu reino. O governante passava a ser assim persona eccle-siastica, cujo poder se baseava na observância das regrascanônicas. Não havia uma ideologia real capaz de fazer fren-te às pretensões do papado.31

Mas a Igreja, apesar de influente sobre os poderes se-culares do Ocidente latino, teria ainda de enfrentar por di-versas vezes as pretensões de conquista de Roma e outrosterritórios ao norte da Europa pelos imperadores bizantinos.Para fazer frente ao Império do Oriente, o bispado de Romaprecisava da figura do imperador romano. O imperadorgermânico Oto I (936-73), em estreito acordo com o papaJoão XII (955-63), dispôs-se a defender o pontificado romanodos ataques bizantinos em troca da nomeação de ImperadorRomano do Ocidente. O argumento legal contra Bizâncio re-pousava na afirmação de que o bispo de Roma desempenha-va um papel constitucional na criação do imperador doOcidente – por meio da unção e coroamento do governante,em contraste com o patriarca bizantino, cujo papel na coroa-ção era o de mera testemunha. Nascia assim o Sacro ImpérioRomano do Ocidente.

A criação eclesiástica do imperador do Ocidente nãotardaria a voltar-se contra o próprio papado. O imperadorgermânico Oto III assumiu o Codex de Justiniano como averdadeira origem romana do império e, por duvidar da Doa-ção de Constantino, renovou a transmissão de Roma ao papaSilvestre II (999-1003), em 1001. Roma tomava o lugar deBizâncio e passava a ser denominada “cidade real”, a cabeçado mundo. Pela reiteração da concessão, o papa passava agoraa ser beneficiário do imperador, invertendo a posição até en-tão sustentada pela Igreja.

31 Na concepção hierocrática, o rei estava sujeito às normas sacerdotais,pois não era suficientemente qualificado para ditar normas gerais evinculantes que afetassem diretamente a estrutura básica da socieda-de cristã.

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O golpe era dirigido tanto contra Bizâncio como contra opapado, que agora paradoxalmente havia descido, emvirtude da ideologia do Império Romano criada pelo pró-prio papado, a uma situação não muito distinta da dopatriarca de Constantinopla.32

E, justamente porque eram cristãos, os imperadorespassaram a promover reformas na instituição eclesiástica,o que acabou colocando a Igreja totalmente sob seu contro-le. Na tentativa de construir uma cristandade poderosa euniversal, o Império forçava o papado a se renovar e a refor-mar-se completamente, destituindo governantes e nomean-do novos pontífices. Os substitutos escolhidos pelo impera-dor Henrique III (1039-56), partidários fanáticos da causahierocrática, colaboraram para a reforma substancial daEcclesia – interesse comum que dividiam com os imperado-res. Mas a morte prematura de Henrique dar-lhes-ia a chancede tornar a inverter o estado de coisas em poucas décadas.A própria Igreja assumia agora o comando das reformas erumava em direção à consolidação teórica e prática da dou-trina hierocrática.

Essa teoria política da supremacia da autoridade papaldesenvolvida pela Igreja na Baixa Idade Média, lembram Souzae Barbosa, combinava fontes legais tão distintas quanto odireito romano, a filosofia neoplatônica e as Escrituras.33 Aênfase era atribuída na maioria das vezes à palavra divina.Do Novo Testamento retirou-se o argumento de que São Pe-dro teria sido escolhido por Cristo para chefiar a Igreja e, aomesmo tempo, cuidar de todos os fiéis:

Eu, eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificareia minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão

32 ULLMANN, op. cit., p. 95.33 SOUZA, J. A. C. R.; BARBOSA, João Morais. O reino de Deus e o reino dos

homens. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

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contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, e o queligares na terra ficará ligado nos céus; e tudo o que desli-gares na terra ficará desligado nos céus.34

O papado lutava, nesse momento, sobretudo paraconfirmar a sua plenitudo potestatis in spiritualibus. O ne-oplatonismo forneceria ao clero uma base sólida para essareivindicação: o postulado de que as realidades superiorescontêm em si as inferiores permitia ao papa defender que,dada sua superioridade espiritual, seu poder preexistia aopoder temporal, este “ligado à materialidade das necessi-dades concretas da vida humana em sociedade”.35 O milê-nio apenas começara: as pretensões eclesiásticasalargar-se-iam e tomariam novos rumos ao longo dos sé-culos seguintes. No embate entre império e papado, que seestenderia até o final do medievo, seriam fortalecidos tan-to os argumentos em favor da primazia do poder secularquanto aqueles em defesa da plenitude do poder do papa.Nesse processo, novos atores políticos seriam forjados euma nova realidade de poder seria gestada. É essa histó-ria, fundamental para a compreensão do desenvolvimentodo pensamento político no Ocidente, que se pretende con-tar agora.

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O historiador francês Jacques Le Goff destaca, num deseus numerosos trabalhos, alguns acontecimentos relevan-tes que marcaram a história européia entre os séculos XI eXII. O primeiro desses episódios foi o rompimento do bispode Roma com o patriarca de Constantinopla em 1054. A ques-

34 Mateus 16: 18-9; e Mateus 18: 18. In: A Bíblia, op. cit., p. 1216.35 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 15.

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tão imediata girou em torno da adequação – ou não – à fécristã do uso de fermento na confecção da hóstia. Para alémdo problema de natureza sacramental, a disputa punha emrelevo a autonomia crescente da Igreja do Ocidente em rela-ção ao império do Oriente.36 A contenda marcaria definitiva-mente o afastamento entre as duas Igrejas, matéria que já searrastava desde o século VI.

Em 1059, já no contexto de uma reforma inicial da Ec-clesia, teve lugar o primeiro Concílio de Latrão, no qual foipromulgado um decreto que reservava a eleição do papa aoscardeais, retirando do pontificado as pressões vindas dos lei-gos. O decreto constituiu o embrião do conflito entre o impé-rio e o papado, que teria na Questão das Investiduras a suaprimeira expressão. Nesse momento, contudo, a Igreja deRoma ainda era pobre, se comparada ao esplendor de Bi-zâncio. O grego era a língua predominante entre os eruditos,embora o latim ganhasse cada vez mais espaço. Com as tra-duções de textos árabes e gregos para o latim, sobretudo apartir do século XII, a Ecclesia passaria a dispor de um arse-nal mais amplo de idéias e conceitos que permitiriam sofisti-car muito o antigo legado romano e entendê-lo sob nova luz.

Foi ainda nesse período que ocorreu a revolução eco-nômica que mudaria a face da Europa ocidental. Para MarcBloch, a base dessa transformação – e seu principal pivô –foram as migrações que ocorreram no período e povoaram osrincões mais distantes do então desconhecido – e desabitado– território europeu. Essas mudanças aconteceram entre 1050e 1250 – período que o autor denominou “segunda idade feu-dal”. O efeito mais importante desse intenso fluxo de povoa-mento foi a aproximação entre os grupos humanos, que pôsfim aos espaços vazios em território europeu.37 Com isso,

36 LE GOFF, Jacques. La Baja Edad Media. México: Siglo Veintiuno, 1985.37 BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 86 et seq.

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cresciam as ligações entre os povoados e também as vias deacesso, permitindo a criação de novas rotas de comércio emterritório europeu.

Ao lado de pestes, fome e muita destruição, o século XIno Ocidente foi também fecundo em invenções e aconteci-mentos. Além da explosão demográfica vivida no período,merecem registro ainda as novas transformações e as desco-bertas tecnológicas que possibilitaram, na virada do século,a chamada “revolução agrícola”. Também foram relevantesos desenvolvimentos artesanais e industriais, que termina-ram por duplicar o progresso agrícola. Os excedentes demo-gráficos e econômicos impulsionaram o crescimento e aformação de centros de consumo: as cidades – ou burgos –que começavam a nascer ao redor das fortalezas.

Do ponto de vista da organização social, a sociedadedo ano mil era tripartida. Pode-se falar, de modo geral, emtrês categorias sociais que a espelhavam: o clero, os cava-leiros e os camponeses. Esses três elementos constituíam aestrutura básica do mundo feudal no Ocidente. O clero po-dia ainda ser subdividido entre clérigos e monges (categoriada época carolíngia); a aristocracia feudal era representadapelos senhores (os guerreiros ou cavaleiros), e tinha carátermilitar (comandava os vassalos),38 por fim, entre a massade trabalhadores figuram os camponeses (servos e homenslivres).39

38 A casta superior da aristocracia militar e agrícola era formada pela “no-breza de sangue”, que detinha o direito de jurisdição suprema(Hochgerichtsbarkeit): era o juiz nos casos criminais mais graves. Logoabaixo dessa nobreza, vinham os cavaleiros, que ocupavam as funçõesmilitares, oriundos também de famílias aristocráticas ou ricas. É preci-so incluir nessa categoria fidalga ainda a figura dos “ministeriais”: ho-mens que representavam uma nobreza de serviços, muitas vezes deorigem servil.

39 Cf. LE GOFF, op. cit., p. 19.

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Nem todas as forças políticas que se beneficiaram des-sas transformações ocorridas ao longo do século XI cami-nhavam na mesma direção. O período que vai de meados doséculo XI ao fim do século XII foi marcado, sobretudo nonível político, por infindáveis conflitos entre duas forças teo-ricamente complementares, regnum e sacerdotium, mas queamiúde se alternavam nos campos de batalha. “O impulsouniversal que anima a cristandade ocidental parece favore-cer a unidade e, com efeito, vê-se que as duas potências quesimbolizam essa unidade passam a ocupar o centro da cenapolítica: o império e o papado.”40 Unidos ou não, seria emtorno dos interesses desses dois atores que se desenvolve-riam as novas idéias políticas.

As Cruzadas foram a empresa militar comum dessasforças e acabou se impondo a quase todos os reinos e prínci-pes cristãos. Durante todo o período das “guerras santas”, quese estendeu de 1098 a 1400,41 o império e o papado lutarampelo dominium mundi, pela direção dos eventos.42 A preten-são de domínio universal dos dois poderes foi sem dúvidaum dos fatores que impediram a unificação política da cris-

40 Ibid., p. 77.41 O auge do movimento dos cruzados, contudo, pode ser localizado entre

a Terceira Cruzada (1188) e a primeira metade do século XIII (c. 1250),período em que atraiu leigos de inúmeras camadas sociais interessadosem tomar parte nessa atividade devocional à época deveras popular.

42 Bizâncio havia resolvido esse problema de forma diferente: o imperadorbizantino reunia em sua pessoa tanto o poder espiritual quanto o tempo-ral; e o patriarca da Igreja era subordinado ao seu poder. A essa confi-guração do poder se denominou cesaropapismo. Alguns autores falamainda numa teocracia régia. O Ocidente, por sua vez, não havia definidocom clareza as relações entre ambos os domínios. Diferentemente deBizâncio, os imperadores ocidentais tinham seus domínios em territó-rios geograficamente distintos dos dos papas: no reino franco e, maistarde, na Germânia. Já os pontífices haviam se instalado desde o séculoVIII em Roma e detinham à sua volta um domínio territorial diretamen-te submetido ao seu poder temporal: o Patrimônio de São Pedro.

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tandade. A luta entre sacerdotium e império no Ocidente cris-tão mesclava reivindicações temporais e espirituais de am-bas as partes. Os conflitos crescentes entre os leigos (bellatores)e o clérigos (oratores) ameaçavam a unidade da cristandade.“A cristandade unida sob uma dupla cabeça”, escreve Le Goff,“vai converter-se em seguida no puro sonho que Dante aca-lentará em fins do século XIII”.43

O impulso de expansão desordenada que se manifesta-va em todas as partes da Europa ocidental propiciava a for-mação de unidades populacionais pequenas, de escala localou regional, centradas na figura dos barões e nobres locais,favorecendo uma certa atomização política. Esse movimentoocorria paralelamente àquele que defendia o fortalecimentode uma cristandade universal guiada pelo imperador e pelosumo sacerdote. Entre esses dois pólos, começava a se tor-nar perceptível o surgimento de uma formação de poder al-ternativa, na qual chefes de um outro tipo iam lentamentecolhendo triunfos: os reis e seus reinos.

A natureza da autoridade dos reis era dupla, explica LeGoff:

de um lado, é um poder religioso que tem sua origem nadupla herança das chefaturas bárbaras e das monarquiasorientais [...] que o cristianismo consagrou com a suaunção; de outro lado, é um poder político superior: o da“res publica”, o Estado, o “poder do Estado”, legado pelatradição greco-romana. As insígnias do poder monárqui-co diante das insígnias imperiais e pontíficias [...] quemanifestam o poder universal, simbolizam o duplo cará-ter (coroa, cetro) que se afirma à margem do sacro.44

Mas até o poder monárquico emergir de fato como fatorpolítico principal, dois poderes ainda predominantes se en-

43 LE GOFF, op. cit., p. 77-8.44 Ibid., p. 78.

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frentariam ao longo dos séculos e, nessa batalha, ajudariama forjar os fundamentos de uma doutrina do poder supremocapaz de sustentar-se – e isto é importante reter – indepen-dentemente da reivindicação de universalidade da cristan-dade. Como se deu essa transformação? É uma longa história.O importante, contudo, é tentar contá-la.

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Ao desenvolvimento de uma ideologia eclesiástica dasupremacia papal correspondeu uma não menos poderosasistematização leiga de conceitos e noções oriundas do anti-go Império Romano, cujo objetivo inicial era reforçar as ba-ses do poder teocrático do império – tanto perante as preten-sões de Bizâncio quanto diante dos poderes locais. Depois darestauração tentada por Carlos Magno, no início do séculoIX, o âmbito da dominação temporal passou a ser ampla-mente igualado à pessoa do imperador: ele não apenas re-presentava os súditos, mas também incorporava em sua fi-gura o povo e a espada.45

A casa real aparecia como o centro da ordem política.Para pensar de forma adequada as estruturas políticas doséculo IX, recorda Struve, não era necessário um conceitoabstrato de Estado: na Alta Idade Média – marcada por umpensamento holístico – não se concebia uma separação rígi-da entre as esferas política e religiosa. Também nas antigasteocracias romanas e bizantinas esses dois âmbitos não ha-viam sido tratados de forma autônoma. As áreas de domina-ção temporal e espiritual, denominadas na terminologia

45 STRUVE, Tilman. Regnum und sacerdotium. In: FETSCHER, I.; MÜNKLER, H.(Hrsg.). Mittelalter: Von Anfängen des Islams bis zur Reformation. PipersHandbuch der politischen Ideen, v. 2. München: Piper Verlag, 1993.p. 189-235.

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medieval pelos vocábulos regnum e sacerdotium, estavamincluídas numa ordem que as englobava: a da Ecclesia, quereunia toda a cristandade.

A relação entre regnum e sacerdotium era definida emanalogia com a relação de subordinação que supostamenteexistia entre a alma e o corpo. A lei era a alma que governavao corpo da comunidade dos cristãos.46 Dizia-se que apenaspor meio da lei um corpo público podia viver, desenvolver-see alcançar sua finalidade. Essa concepção da alma – na quala Igreja aparecia como a executora da idéia cristã de justiçaque governava o corpo social – e do corpo – associado aosleigos – expressava sobretudo a idéia do governo de um orga-nismo público e corporado por meio da lei.47

A partir da identificação da Ecclesia com o corpo deCristo (corpus Christi), era possível elevar a totalidade dasrelações sociais a um nível de abstração que fornecia clarezasuficiente para ser compreendido pelos contemporâneos.Durante os primeiros séculos da Idade Média, a Bíblia, aPatrística e alguns poucos textos dos autores moralistas lati-nos constituíam o principal fundamento para as concepçõesde domínio e sociedade. Somente os clérigos eram considera-dos seus intérpretes legítimos, já que apenas eles dispunhamda formação necessária para lê-los – além de serem os úni-cos a poder se apoiar na autoridade de um cargo para co-mentá-los.

46 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 99.47 Apenas no decorrer das mudanças iniciadas por volta de meados do

século XI – que coincidiram com a chamada Questão das Investiduras –a realeza e o sacerdócio começaram a dissociar-se e a se desenvolver nadireção de corporações diferentes. O exemplo do organismo sugeria nãoapenas a idéia de uma liderança homogênea, mas apontava ainda parao princípio da divisão do trabalho segundo as funções. Isso, de um lado,fortalecia a regra monárquica na Idade Média; de outro, fomentava acompreensão da inter-relação de todos os membros, incluindo os maishumildes, para o bem do todo. Cf. STRUVE, op. cit., p. 189-90.

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À esfera temporal-estatal não se atribuía finalidade al-guma apenas nela fundamentada.48 Estava muito mais inte-grada na ordem de salvação geral da Igreja, sua única fontede legitimação até então. O domínio temporal assumia, se-gundo essa concepção, o caráter de um encargo (ministerium).O monarca aparecia como um encarregado de Deus (ministerDei) e era responsável pela correta execução de sua funçãodiante do Senhor. A integração da esfera temporal no contex-to mais amplo da Ecclesia possibilitou e marcou um primeiropasso no rumo de uma compreensão mais abstrata das rela-ções políticas e socias.49

A formação de uma doutrina eclesiástica específica dosacerdotium, contudo, desenvolver-se-ia apenas lentamente.Esse progresso foi acentuado com o movimento de reformaocorrido no século XI – sobretudo em virtude das demandasgeradas pelo grupo reformista de Roma, ligado ao papa LeãoIX (1049-54), ao qual pertenciam personalidades como oarquidiácono Hildebrando – futuro papa Gregório VII – e ocardeal Humberto da Silva Candida. Em seu pontificado, LeãoIX tomou providências severas contra a simonia (venda ilíci-ta de bens e cargos sagrados) e a investidura leiga e sancio-nou um código que normatizava o comportamento moral ereligioso do clero e dos fiéis. Estabeleceu ainda o caráter eletivodo papado, reconheceu ordens sagradas e proibiu a comer-cialização de ofícios eclesiáticos, além de ter privado o clerodo porte de armas.50

48 Como será mostrado adiante, apenas ao longo da recepção de Aristóte-les, entre meados do século XII e XIII, acompanhada da recuperação dafilosofia natural estóica e daquela desenvolvida pelos árabes a partirdos gregos, tornou-se possível conceber uma fundamentação naturalda comunidade política.

49 Cf. STRUVE, op. cit., p. 192.50 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 19 – cf. também as determinações de

Leão IX no Sínodo de Reims.

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O historiador inglês Ian Stuart Robinson – especialistaem questões religiosas dos séculos XI e XII – faz uma distin-ção útil entre o que considera dois movimentos de reformada Igreja, ocorridos entre 1073 e 1198: o primeiro foi aqueleinaugurado por Gregório VII, no Concílio Romano de 1074-5,e que ficou conhecido como a “reforma gregoriana” do séculoXI tardio. Essa reforma “começou sob os auspícios imperiaisem meados do século e foi dedicada à erradicação da simoniae do casamento clerical na Igreja”. Nessa fase, a simonia,51

bem mais do que o nicolaísmo, era considerada a primeira emais poderosa das heresias da Igreja cristã.

O segundo movimento teve lugar com a introdução donovo programa de reforma pelo papa Inocêncio II, em 1130,no Concílio de Clermont. Esse programa foi sendo elaboradoem sucessivos encontros e ganhou uma forma mais acabadano Terceiro Concílio de Latrão, de 1179, sob o papa Alexan-dre III. Dizia respeito não à liberdade da Igreja – batalha deGregório VII, que o conduziu a um confronto direto com opoder secular –, mas à disciplina do clero e ao inculcamentodos padrões cristãos entre os leigos. “Foi no interesse da re-forma”, argumenta Robinson, “que o governo papal tornou-se mais eficiente e que os procedimentos papais judiciais foramtornados mais efetivos”.52

Em meio aos esforços para o fortalecimento da reivin-dicação papal de liderança máxima na comunidade dos cris-tãos, um documento ganhou significado especial: a Doação

51 Robinson lembra que, inicialmente, a simonia era definida como a ven-da de uma ordenação sacerdotal por um bispo. O termo foi mais tardeexpandido, passando a recobrir todo o tráfico de coisas sagradas. Noséculo XI, era mais freqüentemente usado para designar a venda docargo de bispo ou abade pelo governante secular. Cf. ROBINSON, I. S. Thepapacy (1073-1198): continuity and innovation. Cambridge: UniversityPress, 1996. p. IX.

52 Ibid., p. IX.

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de Constantino (Constitutum Constantini), da qual era possí-vel derivar diretamente a posição eminente do sumo pontífi-ce, e sua jurisdição sobre Roma e sobre os territórios do Estadoeclesiástico53 (Patrimonium Petri). Tratava-se de um documen-to falsificado entre meados do século VIII e IX pela chancela-ria papal e se ligava à lenda de Silvestre surgida no século V,nele extensamente narrada.

Segundo a Doação, o imperador Constantino (305-37)teria deixado para o papa Silvestre I (314-37) e seus sucesso-res o palácio de Latrão, em agradecimento pela cura milagro-sa54 e por sua conversão. Além disso, teria concedido umasérie de privilégios e honrarias imperiais ao papa, entre asquais o direito de portar os trajes e usar as insígnias do po-der imperial (o diadema, o cetro e a espada). Teriam sidoentregues também ao Estado pontifício as honras e os privi-légios do Senado. Finalmente, teria sido cedido ao pontífice odireito de domínio sobre a cidade de Roma e sobre as provín-cias da Itália, enquanto o próprio imperador teria transferidosua residência para a parte leste do reino, na direção de Bi-zâncio.55

O motivo imediato para o surgimento da Doação é atéhoje desconhecido e fomenta inúmeras especulações entre

53 As inúmeras versões da Doação podem ser encontradas em: FUHRMAN,Horst (Hg.). Das ‘Constitutum Constantini’ (Konstantinische Schenkung) –Text. Fontes Iuris Gemanici Antiqui, v. X. Hannover: HahnscheBuchhandlung, 1968.

54 O imperador, depois de ter sido curado de lepra por Silvestre I, “porgratidão, entregou-lhe o governo do Império do Ocidente e da cidade deRoma, retirando-se para Constantinopla”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit.,p. 68.

55 O argumento da Igreja para justificar o ato de Constantino era o de quenão seria justo nem adequado que o imperador temporal tivesse algumtipo de poder no âmbito onde a liderança do sacerdócio e a “cabeça dareligião cristã” tivessem sido instituídas pelo imperador celeste. Cf.STRUVE, op. cit., p. 213-4.

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os especialistas. Durante a Alta Idade Média, quando surgiu,o documento não exerceu influência relevante sobre a políti-ca papal. Mas, na época da reforma eclesiástica, a Doaçãopassou a integrar os decretos “pseudo-isidorianos”,56 não maisverdadeiros, passando a fazer parte da coleção de documen-tos canônicos. Os juristas da Igreja, os canonistas, passa-vam a dispor assim de novos argumentos para sustentar areivindicação de supremacia do papado, como a igualdadede posição entre o papa e o imperador, e seu poder sobre oterritório do Estado eclesiástico, de onde derivavam seus di-reitos temporais. Daí seguia-se a sua preeminência diantedos dominadores temporais do Ocidente, bem como, de modogeral, sua veneração como cabeça da cristandade (caputEcclesiae).

Nesse processo, o imperador Constantino foi transfor-mado em exemplo para o dominador cristão: da sua genero-sidade para com o bispo de Roma era possível derivar aobrigação do imperador de obedecer e se submeter a SãoPedro e ao seu representante na terra, o sumo pontífice. ADoação – recusada por alguns governantes seculares comofalsificação – sobreviveu como apoio ideológico à posiçãoeclesial durante a disputa entre o regnum e o sacerdotium,que dominou o período final da Idade Média.57 No contextoda formação – e defesa – de uma doutrina própria da Igreja, aDoação era importante, mas não bastava como fundamentodo poder papal, pois nela a posição de poder atribuída ao

56 A falsificação das decretais “pseudo-isidorianas” também fortaleceu aposição dos bispos. Segundo essas normas, os julgamentos sinodiaispassavam a requerer a confirmação do pontífice, a quem se podia ape-lar a qualquer momento. Houve uma valorização significativa da posi-ção papal: apenas ao bispo de Roma cabia agora a jurisdição sobre osdemais bispos. Ele convocava sínodos cujas resoluções ganhavam for-ça legal apenas por meio da sua confirmação.

57 Apenas em 1440, com o humanista Lorenzo de Valla, ela foi definitiva-mente decretada como falsa.

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pontífice pela transferência baseava-se no fundo numa con-cessão imperial, e não numa transmissão divina.58

As questões em torno da reforma da Igreja tinham con-seqüências práticas: a partir da afirmação de que a liderançada cristandade cabia apenas ao sumo sacerdote, deveria serretirada ou diminuída tanto quanto possível a influência dosleigos sobre a Ecclesia. Bispos e clérigos de maneira geraldeviam ser excluídos da jurisdição real: não deveriam estarsubmetidos a nenhum juiz temporal. Também os atos tem-porais que infringissem as prescrições eclesiásticas deveriamser vistos como inválidos. Em contrapartida, a jurisdição es-piritual deveria ser estendida para âmbitos temporais. Esseera, em linhas gerais, o programa de governo que algumaslideranças eclesiásticas, nesse momento ainda não tão signi-ficativas, se propunham a cumprir.

Da experiência da Roma antiga parecia ter sobrevividoa idéia de que a aplicação de um sistema monárquico degoverno requeria um firme controle dos cargos subalternos.Num governo de tipo papal, isso significava o controle doepiscopado, sem o qual nem o pontífice nem o imperadorpodiam exercer efetivamente seus poderes políticos – esta,aliás, a raiz do conflito pela investidura. A subordinação po-lítica, isto é, jurisdicional, do clero ao papa se originou emetapas59 e culminou com a designação significativa de “bis-pos pela graça de Deus e da Santa Sé” (episcopus Dei etapostolicae sedis gratia).60 A implantação de um controle maiseficaz por parte do papado sobre o clero supunha a regula-

58 Cf. STRUVE, op. cit., p. 214. Contra a validade da Doação, também nãotardaria a ser levantado o argumento, familiar aos juristas civilistas, deque uma tal transmissão feria os princípios do direito público imperialromano.

59 Começou com o juramento episcopal que os bispos tinham de prestarao pontífice e com as visitas regulares que deviam render-lhe.

60 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 104.

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mentação – em moldes constitucionais – da relação entre bis-pos e papas.

O auge desse desenvolvimento foi a afirmação do princí-pio de que o bispo recebia do papa o seu poder para governara diocese. A sua suspensão ou deposição, portanto, passava aser da alçada exclusiva do pontífice. Inicialmente, a novidadefoi ferozmente combatida pelo episcopado, pois os bispos equi-paravam a identidade de suas funções sacramentais às dopapa, apoiados na passagem de Mateus.61 A posição do epis-copado não foi vencida, mas terminou relegada a segundo pla-no a partir do século XII.62 A concepção do papado, portanto,baseava-se na visão de que os poderes políticos do episcopadoderivavam dos poderes do sumo sacerdote, que possuía pleni-tude de poder da qual os bispos apenas participavam.63

Os textos do “Pseudo-Isidoro” também serviam à mes-ma causa: transformavam reivindicações hierocráticas aber-tas ou latentes em decretos papais concretos. Atribuía-se aospapas dos primeiros séculos cristãos uma posição que narealidade nem eles nem seus sucessores jamais detiveram.64

Era clara a tendência de orientar toda a constituição da Igre-

61 “Em verdade eu vo-lo declaro: tudo o que ligardes na terra será ligadono céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Eu vosdeclaro ainda: se dois dentre vós, na terra, se puserem de acordo parapedir seja o que for, isto lhes será concedido por meu Pai que está noscéus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu Nome, eu estouno meio deles”. In: Mateus, 18: 18-20. In: A Bíblia, op. cit., p. 1216.

62 Ela tornaria a reaparecer em meados do século XIV, sob a forma dochamado “conciliarismo”.

63 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 104-5.64 Souza e Barbosa observam que, mais tarde, o mandato petrino será

ampliado, e será defendida, p. ex., por Bonifácio VIII, a tese de que opapa, na condição de vigário de Cristo e sucessor e herdeiro de SãoPedro é o “monarca do mundo” de facto et de iure entre os cristãos, eapenas de iure entre os infiéis. A alusão às chaves será ainda o argu-mento papal para a reivindicação de sua superioridade sobre o impera-dor. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 14.

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ja na direção do papado como centro legal, organizatório eideal da cristandade. As frases “pseudo-isidorianas” foramamplamente assimilidas nas compilações de direito eclesiás-tico – que nessa época surgiam em grande número. A tesehierocrática ganhava assim uma base firme.

Poucos meses depois de sua entronização, o papaNicolau II (1058-61) emitiu, no Sínodo de Latrão, em abril de1059, um decreto eleitoral que regulamentava as futuras elei-ções papais. Segundo o documento, a escolha de um novopapa passava a ser apenas da alçada de bispos e cardeais –que teriam direito de voto –, enquanto ao resto do clero e aopovo de Roma cabia o direito à aclamação. Em princípio, opapa deveria pertencer ao clero romano. Somente caso nãose encontrasse nenhum candidato adequado, poder-se-ia ele-ger um clérigo de outra proveniência. Caso fosse impossívelrealizar uma eleição papal em Roma sem obstáculos, dever-se-ia poder realizá-la também num outro lugar. O eleito de-veria estar imediatamente investido de todos os poderes docargo, mesmo quando circunstâncias externas impedissemou atrasassem sua entronização. No chamado “parágrafo dorei”, assegurava-se que os direitos do rei alemão e futuroimperador e seus sucessores – que receberiam seus direitosda cadeira apostólica – deveriam permanecer intocados.

Em primeiro plano estavam, portanto, as exigências dacidade de Roma. No interesse da liberdade e independênciada Igreja, a nobreza romana – que no ano anterior havia ex-pulsado os reformistas de Roma e instituído um candidatopróprio, Benedito X – deveria ser, no futuro, excluída de todapossibilidade de influir na eleição papal. A escolha tornava-se tarefa apenas de um círculo restrito de eleitores65 espiri-tuais. O decreto não tocava, contudo, na posição do reinogermânico, que tinha o direito de atuação conjunta – deriva-

65 Desse núcleo desenvolver-se-ia, aliás, o Colégio de Cardeais.

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do do patriciado do rei alemão e do imperador – na institui-ção de um novo papa. Mas introduzia uma mudança sutil:nomeava esse direito imperial um privilégio honorífico, tor-nando-o dependente da concessão pontifícia. Expressava-seassim aquele pensamento hierárquico, segundo o qual a elei-ção do pontífice – e todos os assuntos eclesiásticos – deveriaser apenas da alçada da autoridade espiritual.66

Além dos esforços na direção de uma delimitação maisclara entre regnum e sacerdotium por parte do papado, cha-mava atenção ainda a posição de liderança que pretendiaassumir a Igreja romana dentro da cristandade. As sançõesdefinidas no Sínodo de Latrão contra a simonia, o casamentode padres (nicolaísmo) e os excessos de propriedades da Igre-ja comprovavam a determinação dos reformistas eclesiásti-cos de transformar suas reivindicações programáticas empráticas concretas de jurisdição eclesiástica. O sínodo roma-no, contudo, não recusava o direito de investidura pelo reialemão de bispos e abades.

No tempo em que Gregório VII ascendeu ao trono deRoma, o papado havia concluído que a causa mais forte dasimonia era o controle imperial sobre cargos e nomeaçõeseclesiásticas, característico da cristandade ocidental do sé-culo XI. Bispos e abades eram usualmente eleitos na presen-ça do monarca e deviam prestar-lhe homenagem feudal.Também recebiam dele a investidura de seu cargo e a pro-priedade a ele ligada (regalias). A reforma gregoriana consti-tuía, portanto, uma tentativa de acabar com esse controlesecular dos ofícios eclesiásticos e com a resultante subordi-nação do sacerdotium ao poder do regnum. O objetivo dosreformadores era, nas palavras de Gregório VII, “arrebatar [aIgreja] da opressão servil, ou melhor, da escravidão tirânica,e restituir-lhe sua antiga liberdade”.67

66 Cf. STRUVE, op. cit., p. 216-7.67 Cf. ROBINSON, op. cit., p. IX-X.

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Sob o pontificado de Gregório VII (1073-85), a doutrinahierocrática desenvolvida no círculo dos reformistas ganhouum significado prático. As idéias fundamentais do sumo sa-cerdote ganharam forma programática nas diretrizespontifícias do ano 1075, integradas aos registros administra-tivos eclesiais sob o nome de Dictatus papae.68 Com elas veioclaramente à tona a tendência de acentuar – por meio dofortalecimento da jurisprudência eclesiástica – a preeminên-cia da Igreja romana tanto no âmbito eclesial interno comoentre os representantes do poder temporal.69 logo a reivindi-cação de domínio universal seria levantada pela cadeira apos-tólica.

A luta pelo controle das espadas temporal e espiritualenvolvia bem mais do que meras ideologias: tratava-se so-bretudo de determinar o dominus mundi e conseqüentemen-te a amplitude de seu poder sobre interesses bastanteconcretos e palpáveis – e muitas vezes conflitantes. O meiode garanti-lo, este sim, passava por reivindicações de cunhoideológico. E, nesse momento, o que importava era decidir

68 Um trecho do documento traduzido pode ser encontrado em SOUZA &BARBOSA, Documento 8, op. cit., p. 47-8.

69 Cabe aqui uma advertência: o que se está afirmando é a existência,nesse período, de uma tendência ao predomínio da concepçãohierocrática do mundo e da política. A ascensão dessa doutrina políti-ca, contudo, se daria de forma gradual, com avanços e retrocessos tan-to conceituais quanto práticos. A teoria da supremacia papal constituía,nesse momento, a base de apenas uma das várias concepções quesustentavam as pretensões em conflito. Essa visão tendia, sem dúvida,a tornar-se a interpretação preponderante, como se verificaria dois sé-culos mais tarde. Ou seja, os poderes em disputa lutariam ainda du-rante muito tempo até que essa vertente interpretativa do mundopudesse se afirmar como uma doutrina predominante. E importa lem-brar: sem que jamais tivesse sido hegemônica ou consensual ao mesmotempo para toda a cristandade.

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qual dos dois poderes, realeza ou sacerdócio, estava maisapto a reivindicar o ofício (officium) de “comissário de Deus” naterra. O grande tema era, portanto, o da distribuição de juris-dições em sentido estrito: os poderes reivindicavam menos odireito de legislar do que a atribuição de quem faz cumprir a leiem nome de Deus nesta ou naquela esfera de governo.70

No que dizia respeito a questões de fé – este ponto, sim,bastante consensual –, cabia apenas à Igreja de Roma – à qualse atestava ainda a infalibilidade – a instância decisória. Edisto Gregório VII se valeu imensamente. O papa, a quem seatribuía a santidade do cargo derivada dos merecimentos deSão Pedro, não podia ser julgado por ninguém, insistia ele. Nadoutrina hierocrática, do ponto de vista genérico, era o sumosacerdote – investido de autoridade moral e divina – quemdecidia sobre os interesses da comunidade, na qualidade de“juiz ordinário”, pois detinha o saber necessário e específicosobre quando se impunha a legislação. Da mesma forma, tam-bém no âmbito da jurisdição eclesiástica, apenas o pontíficedevia ter o direito de investir os bispos nos seus cargos: a eleconcedia-se até o poder de destituir os ausentes.

O incremento da importância do bispo romano manifes-tava-se também no fato de que lhe era permitido introduzirnovas leis segundo as necessidades. Apenas ao papa deviam-se reservar os privilégios de honras imperiais, tais como o por-te de insígnias imperiais, a recitação de seu nome durante aeucaristia e o beijo no pé pelos príncipes. Sua primazia sobreo poder temporal era atestada pelo fato de poder destituir oimperador e desvincular os vassalos do juramento de fidelida-de quando julgasse o monarca não “adequado” ao exercício dafunção.71

70 A fonte da lei ainda não constituía objeto de discussão, pois apenasDeus era o legislador supremo.

71 Robinson reclama ser essa noção um dos mais importantes passos paraa constituição de um pensamento político papal. Gregório VII, baseadoapenas na autoridade pontíficia, utilizou-a pela primeira vez na deposi-

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Tal separação entre os poderes temporal e espiritual,como lembram Souza e Barbosa, não era nova: remontava àdoutrina do papa Gelásio I (492-6) que, tentando frear o ce-saropapismo bizantino, escreveu ao imperador de BizâncioAnastácio I (419-518) uma carta na qual expunha algunsdos pilares fundamentais do problema das relações entre ospoderes. Entre as afirmações relevantes estavam as de que:1) o papa possuía a auctoritas, enquanto o imperador e osreis detinham a potestas; 2) ao primeiro cabia – juntamentecom seus ministros eclesiásticos – a salvação dos seres hu-manos: sua missão tinha caráter espiritual e transcendente.Aos demais competia propiciar, neste mundo, o bem-estarde seus súditos; 3) a missão dos sacerdotes era mais rele-vante do que a dos governantes temporais, o que lhes confe-ria uma posição de superioridade moral; 4) e o mais relevante:as esferas de atuação próprias do espiritual e do temporaleram distintas entre si.72

A teoria gelasiana das duas espadas, baseada na coe-xistência de direitos iguais entre regnum e sacerdotium, so-freria na doutrina gregoriana uma reinterpretação no sentidohierocrático. Entre regnum e sacerdotium existiria, de acordocom a interpretação de Gregório VII, uma diferença funda-mental quanto à origem e aos objetivos: enquanto o domíniotemporal teria sua origem na arrogância humana (superbia)– que podia até ser vista como obra do demônio – e ansiavaapenas a vaidade, o sacerdotium, fundado diretamente na

ção e excomunhão de Henrique IV: um de seus argumentos foi justa-mente o da “inadequação” do imperador à sua tarefa. A noção da idoneitas(adequação) do governante secular ao seu cargo, idéia central do pensa-mento político gregoriano, foi incorporada mais tarde ao Decretum, deGraciano, como parte das leis canônicas. O autor lembra, contudo, que,à exceção de Lotário III, imperador associado ao partido papal, nenhumgovernante secular alemão abraçou esse conceito gregoriano. Cf.ROBINSON, op. cit., p. 315.

72 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 16.

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investidura divina, empenhar-se-ia em atingir a vida eterna.Mesmo o grau de investidura eclesial mais baixo, sustentavao pontífice, ainda estaria muito acima daquele dos reis e dosimperadores do mundo, em virtude do poder sacramentalatribuído ao sacerdócio.73

Os esforços de reforma, intimamente associados à pes-soa de Gregório VII, visavam no fundo a restringir a Igreja auma comunidade de clérigos hierarquicamente estruturada– com o papa no topo –, em oposição à esfera dos leigos.Dessa perspectiva, a reivindicação de liberdade da Igreja (li-bertas Ecclesiae) em relação aos grilhões terrenos, comentaStruve, foi reinterpretada pelos reformistas como “domínioda Igreja sobre o mundo” (idem). Nessa concepção, o domi-nador temporal aparecia como um leigo, destituído de suaposição sacral e submetido ao poder de correção espiritual.Isto é, tinha sua figura restringida a um mero laico que exer-cia seu domínio apenas enquanto ocupante de um cargo(officium) dentro da Igreja.

Essa visão do papado tinha como uma de suas bases aidéia de que a exclusão do temporal da jurisdição pontifícianão apenas era contraditória ao caráter onicompreensivo dospoderes de São Pedro para atar e desatar, mas também àprópria essência do cristianismo. Dentro do esquema gover-nativo do papado, nem o temporal nem seu governante po-diam gozar de uma posição autônoma, independente eautogeradora. Tudo constituía um meio para atingir um fimúltimo, Deus. O sumo sacerdote era o senhor único da co-munidade dos cristãos. A unidade do corpo requeria a uni-dade do governo, que se manifestava na primazia do sumosacerdote como “sentinela” (speculator) de todas as matériasque concerniam diretamente ao bem-estar da comunidade.74

73 Cf. STRUVE, op. cit., p. 222.74 A plenitude de poderes do papa se concebia completamente no terreno

jurídico: em primeiro plano permaneciam o cargo e as leis, e os decretos

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A gradação hierárquica dos cargos assegurava a ordeme o trabalho pacífico de a toda comunidade. Essa ordem semanteria enquanto todos e cada um dos membros da comu-nidade se mantivessem nos limites das funções para as quaisforam designados. O princípio da divisão do trabalho consti-tuía um elemento vital desta concepção. A suprema autori-dade, por estar acima da comunidade dos crentes, desempe-nhava suas funções diretivas como um timoneiro (gubernator).De modo semelhante, uma aplicação conseqüente desse pro-grama político do papado exigia a pretensão de controlar osgovernantes seculares – o imperador de forma diferente dosdemais reis, por ser aquele o “braço armado” da Ecclesia.75

O conflito entre regnum e sacerdotium – que se tornouiminente com a intransigência das reivindicações do movi-mento reformista eclesial – manifestou-se abertamente nadisputa pela investidura, a cerimônia de posse que investia oreligioso com as insígnias do cargo. No confronto, que durougerações, o tema da investidura, isto é, da legitimidade domonarca medieval para empossar bispos e abades, foi so-mente o estopim do conflito. O que estava de fato em jogo erasobretudo a definição da posição e da função do dominadorcristão dentro da comunidade universal da Ecclesia. Com areivindicação de liderança da cristandade pelo papado re-

dele emanados. A validade de um decreto em nada dependia da pessoado pontífice. A idéia subjacente era a de que nenhum papa sucedia aseu predecessor em suas funções papais, mas sucedia a São Pedrodiretamente e sem intermediários. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 97 ep. 102.

75 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 104. Essa seria a base da teoria das duasespadas de Bernardo de Claraval, desenvolvida pouco depois, segundoa qual o papa tinha poder de iure sobre as espadas temporal e espiri-tual, mas cedia a primeira ao imperador, que, na qualidade de braçoarmado da Igreja, sustentava essa espada por ordem do papa. Uma vezcorado, o imperador passava a ter o poder de facto sobre o gládio mate-rial.

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formista, colocava-se o problema de quem deveria ser, nofuturo, a cabeça (caput) na Ecclesia – esta entendida comocorpo orgânico. Isto é, qual dos dois poderes deveria chefiá-la.76

O problema tornou-se ainda mais agudo quando a Igrejapassou a pôr em dúvida o caráter sagrado da realeza, propa-gando a idéia de uma associação entre poder temporal e con-dição leiga. O movimento reformista questionava os própriosfundamentos da ordem de dominação teocrática, predomi-nante na Alta Idade Média. A instituição eclesiástica cami-nhava agora na direção de uma corporação – além de religiosa– também juridicamente fechada, na qual a idéia da Igrejacoincidia, conceitualmente, cada vez mais com aquela dacomunidade dos clérigos. A realeza, uma autoridade funda-da apenas na tradição e no costume, parecia despreparadapara responder aos reformistas hierocráticos e precisaria dealgum tempo até produzir códigos adequados para o enfren-tamento das novas reivindicações eclesiásticas. Enquanto issonão ocorria, valia-se da espada, que, de todo modo, era suaespecialidade.

A Questão das Investiduras foi bastante longa e envol-veu avanços e retrocessos em ambas as posições.77 A respos-ta de Henrique IV – rei alemão e imperador dos romanos – às

76 O medievalista alemão Gerd Tellenbach resumiu esta disputa de ma-neira clara e precisa: segundo ele, a batalha entre realeza e sacerdócioconstituía um problema de dois poderes fundados por Deus. E a grandedisputa da época era a de decidir se um deveria se submeter ao outro,ou se deviam ser considerados dois poderes independentes, tal comohavia proposto Gelásio I. “Estas duas alternativas”, diz ele, “têm sidofreqüentemente subsumidas nos termos monismo e dualismo”. In:TELLENBACH, G. The church in western Europe from the tenth to the earlytwelfth century. Cambridge: University Press, 1996. p. 352.

77 Uma discussão bastante detalhada dos episódios que envolveram a dis-puta pela investidura de bispos e abades pode ser encontrada emTELLENBACH, op. cit., p. 185-303.

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medidas de Gregório VII foi dada num sínodo por ele convo-cado, em Worms, no ano de 1076: com os votos de 24 bisposalemães e dois italianos, o papa foi deposto. O pontífice res-pondeu negando ao imperador o direito de exercer o poderna Germânia e na Itália e ordenou a todos os cristãos que lhenegassem obediência – desde o século IV (394) não ocorriamais excomunhão na Igreja. O imperador ficava impedido,entre outras coisas, de receber os sacramentos.

Além disso, Gregório VII passou a apoiar as pretensõesde Rodolfo da Suábia ao trono alemão, como forma de pres-sionar o imperador a arrepender-se.78 Como o descontenta-mento de bispos e nobres dentro do reino germânico aumen-tasse, Henrique IV – numa estratégia para ganhar tempo eadesão – dirigiu-se à Canossa e solicitou ao papa sua absol-vição. Depois de cumprir três dias de penitência à porta docastelo, sob o rigor do inverno europeu, o imperador foi ab-solvido pelo pontífice, em janeiro de 1077. Henrique, contu-do, para vencer os inimigos no reino, recorreu novamente àinvestidura e à simonia. Resultado: em março de 1080, elefoi novamente excomungado pelo papa.

À nova expulsão, Henrique IV respondeu com a eleiçãodo antipapa,79 Clemente III (1080-1100). Gregório recorreu

78 Um ponto que merece destaque nesse conflito entre o império e o sacer-dócio – lembrado freqüentemente por especialistas – é o fato de que opapa Gregório VII, inicialmente, não pretendia uma confrontação. Pelocontrário: o pontífice alimentava a esperança de conseguir envolverHenrique IV no movimento de reforma da Igreja. Por isso também esta-va disposto a reconhecer o imperador como o “chefe dos leigos” (laicorumcaput), mantendo ao mesmo tempo o respeito à primazia do poder dosclérigos no âmbito temporal. Somente depois do conflito aberto entre arealeza e o papado, em fins de 1075 e início de 1076 – ao longo do qualHenrique IV foi ameaçado de excomunhão e banido da Igreja por Gregó-rio VII –, a preeminência do sacerdócio elevou-se ao nível programático.

79 O segundo grande tema do livro de Robinson trata justamente das ci-sões vividas pela Igreja entre 1073 e 1198. Três cismas dominaram,

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aos nômades (vindos sobretudo das estepes) da Itália meri-dional para defendê-lo. Em 1084, Henrique se apoderou deRoma e fez coroar Clemente III. No ano seguinte, Gregóriomorreu em Salerno, quando deixava o exílio no castelo nor-mando de Sant’Angelo. Seu sucessor, Urbano II (1088-99),comandou a reação, apoiando os inimigos de Henrique IV.Em 1094, entrou novamente em Roma. No ano seguinte, opontífice lançava a Primeira Cruzada e, como chefe da cris-tandade, convocava-a para um empreendimento coletivo doqual o imperador excomungado estava excluído – e tambémos reis de França e Inglaterra.

Com a morte de Urbano II, o conflito continuou, agorasob o comando de Pascoal II (1099-1118), a quem só interes-sava a independência do clero. O pontífice chegou a propor,na Concordata de Sutri, que a Igreja abandonasse a posse dasregalia –80 tese que, é claro, não vingou. O imperador agoraera Henrique V (1106-25), herdeiro de Henrique IV – seu paihavia morrido pouco antes numa batalha nos campos da Itá-lia. Henrique V recusou o acordo de Sutri, encarcerou o papae obrigou-o a reconhecer a investidura leiga para os bispos. Aconcessão forçada, contudo, foi logo depois anulada.

Em 1122, depois de muita relutância – e já sob o pon-tificado de um outro papa, Calixto II (1119-24) –, o impera-

segundo o autor, o papado nesse período: o do antipapa Clemente III(1080-1100) e seus sucesores, que durou até 1121; o cisma de AnacletoII (1130-8); e o dos antipapas Vítor IV (1159-64), Pascoal III (1164-8) eCalixto III (1168-78). Cada um desses antipapas, recorda Robinson, foisustentado por um governante secular suficientemente poderoso paraexpulsar o papa legal de Roma em direção ao exílio: Clemente III peloimperador Henrique IV; Anacleto II pelo rei Rogério da Sicília; e Vítor IVe seus sucessores pelo imperador Frederico I da dinastia dosHohenstaufen. Cf. ROBINSON, op. cit., p. X-XI.

80 Propunha o pontífice renunciar à posse de grandes feudos. Em troca,ficaria restrita à Igreja a liberdade de eleger bispos e também a investi-dura no cargo.

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dor Henrique V pôs fim às negociações, assinando a Concor-data de Worms. Segundo o tratado, o imperador renunciavaà investidura mediante o báculo e o anel, mas conservava odireito de vigilância sobre as eleições eclesiais no reino ale-mão, reservando-se ainda o poder de decidir eleições contes-tadas. Conservou também o direito de conceder a investidurados bens temporais (regalia) mediante o cetro, podendo fazê-lo, em território alemão, entre a eleição e a consagração dosescolhidos.

Na Itália e na Borgonha as eleições episcopais eramlivres e, por isso, o bispo só precisava prestar juramento defidelidade ao imperador seis meses depois da consagração.Entre as conseqüências relevantes da disputa estavam a li-bertação da Igreja do cesaropapismo germânico e o reforçodo prestígio e da autoridade moral da instituição papal. “Arenúncia à investidura com anel e bastão – alcançada cedoou tarde em toda parte – foi um sucesso para o movimentoem direção a uma demarcação mais nítida da influência lei-ga dentro da Igreja, pois tornou claro que os direitos resi-duais dos leigos não eram de natureza espiritual.”81

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Se a contenda foi árdua na prática, mais acirrada ain-da foi a disputa no campo das idéias. A literatura que seproduziu para a defesa das pretensões de ambos os ladosnão foi tão inovadora como aquela que surgiria como resul-tado do confronto entre Filipe, o Belo, rei da França, e o papaBonifácio VIII, na aurora do século XIV. Mas, sem dúvida,fazia avançar a construção conceitual.

81 TELLENBACH, op. cit., p. 286.

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Os textos de disputa tinham, de modo geral, caráterpanfletário e dispunham-se em duas trincheiras: aqueles quedefendiam a posição imperial; e os que sustentavam as pre-tensões eclesiásticas. Parte desses documentos, de difícil aces-so, foi reunida séculos depois sob o nome Libelli de lite econstitui hoje a principal fonte para o estudo da história dopensamento político no período. É o desenrolar desse deba-te, em suas linhas gerais, que se pretende reconstruir agora.

A realeza sálica, em oposição às pretensões hierocráti-cas do papado, esforçava-se para enfatizar a noção do “reipela graça de Deus” (rex gratia Dei): Henrique IV opunha re-petidamente ao pontífice o fato de não ter recebido sua honradeste, mas diretamente de Deus. Diferentemente das idéiasdo círculo influenciado pelo pensamento gregoriano, direcio-nadas para uma rígida submissão do poder temporal, levan-tava-se entre os defensores da realeza, inicialmente, apenasa reivindicação de igualar as esferas do regnum e do sacerdo-tium.

Essa posição foi defendida de forma eficaz num mani-festo propagandístico de Henrique IV, de autoria do notárioimperial Gottschalk de Aachen, em 1076.82 Nele foi usado

82 Por constituírem textos de difícil acesso – e quase sempre inexistentesem bibliotecas brasileiras, à exceção da compilação eclesiástica reunidasob a denominação Patrologia latina –, a citação de escritos dos autoresda época seguiu aqui dois critérios básicos: 1) o recurso às fontes primá-rias sempre que possível; 2) a referência completa das fontes secundáriasquando o original não pôde ser conferido. Boa parte dos textos que com-põem os Libelli de lite aqui citados foi retirada da conhecida obra de refe-rência, os Monumenta Germaniae Historica (MGH), editada editada por E.Dümmler et al. Societas Aperiendis Fontibus Rerum Germanicarum MediiAevi. Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1891. Os inúmeros volu-mes dos MGH subdividem-se em cinco grandes grupos: Scriptores; Leges;Diplomata; Epistolae; e Antiquitates. Os textos de disputa aqui utilizadosforam aqueles constantes nos volumes referentes aos Scriptores,intitulados: Libelli de lite imperatorum et pontificum, saeculis XI. et XII.conscripti. Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1891 e 1892. t. I e II.

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pela primeira vez, conta Struve, a imagem das duas espadascomo designação direta de regnum e sacerdotium.83 O autor,que também compunha sermões e sentenças, sustentava aexistência de uma dualidade (dualitas) entre regnum e sacer-dotium e defendia enfaticamente a coexistência de direitos evalores iguais por parte dos dois poderes, cuja validade po-dia ser reivindicada para todos os reinos cristãos.

Segundo Gottschalk, a corporação eclesiástica – sim-bolizada pela espada espiritual – devia exortar os vassalos aobedecer o monarca, que governava no lugar de Deus. Aopoder real – identificado à espada temporal – cabia proteger acristandade dos ataques inimigos tanto interna quanto ex-ternamente. A relação dos poderes entre si devia orientar-sesegundo o princípio do respeito e do reconhecimento mú-tuos.84 A competência do príncipe secular limitar-se-ia aoâmbito temporal. Mas nesse âmbito seu poder era ilimita-do.85 Não se esclarecia nessa abordagem, contudo, a proble-mática da delimitação das áreas de competência que deveriamcaber a cada um dos poderes, regnum e sacerdotium.

83 Cf. STRUVE, op. cit., p. 224.84 Sua posição baseava-se na passagem de Mateus: “E ele lhes disse: ‘Quan-

do eu vos enviei sem bolsa, nem alforje, nem sandálias, algo vos faltou?’Eles responderam: ‘Não, nada’. Ele lhes disse: ‘Agora, porém, quem ti-ver uma bolsa, tome-a; da mesma maneira quem tiver um alforje; eaquele que não tiver espada venda o manto para comprar uma. Pois euvos declaro, é preciso que se cumpra em mim este texto da Escritura:Eles o contaram entre os criminosos. E, de fato, o que me concerne vai secumprir’. – ‘Senhor, disseram eles, eis aqui duas espadas’. Ele lhes res-pondeu: ‘Basta’.” In: Mt. 22: 35-8. In: A Bíblia, op. cit., p. 1299.

85 Cf. ERDMANN, C. (Ed.). Die Briefe Heinrichs IV. Freiherr vom Stein-Ge-dächtnisausgabe, n. 12, Darmstadt: 1963, p. 5-28. Ed. bilíngüe de Franz-Joseph Schmale, retirada de MGH Deutsches Mittelalter. Stuttgart: 1937.t. I. Para o debate na época, cf. ANTON, Hans H. Beobachtungen zurheinrizianischen Publizistik: Die Defensio Heinrici IV. regis. In: Historio-graphia mediaevalis. Darmstadt: 1988. p. 149-67.

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A realeza sálica reivindicava assim nada menos do quea autonomia da esfera estatal-temporal. De outro lado, a de-fesa dessa posição, baseada no argumento gelasiano da in-dependência das duas espadas, temporal e espiritual, deixavaaberta a possibilidade de uma reinterpretação, pelos oposi-tores, no sentido de retirar o poder espiritual do âmbito dedominação do imperador, rompendo com o modelo cesaro-papista de Bizâncio e aquele da antiga teocracia régia dosgregos e romanos. Essa muito provavelmente não tinha sidoa intenção imediata do notário, partidário das forças impe-riais. Mas essa conseqüência lógica não tardaria a ser tiradapelos defensores do pontífice. De toda maneira, essa diferen-ciação estabelecida por Gottschalk de Aachen significava umprimeiro passo na direção do desenvolvimento de uma esferade poder autônoma e secular.

A renovação das sanções contra Henrique IV, em 1080,conduziu a um debate sobre os fundamentos da relação en-tre o poder temporal e a corporação dos clérigos. No centroestavam dois temas estreitamente inter-relacionados: a ques-tão da legitimidade do papa na destituição do rei alemão; e adesvinculação dos vassalos do rei do juramento de fidelidadeao imperador. O tema era complexo, pois Henrique IV era aomesmo tempo rei alemão e imperador dos romanos. A dis-cussão materializou-se nos chamados textos de disputa dasInvestiduras (Libelli de lite), marcando os primeiros testemu-nhos de uma publicística na Idade Média.

Bernoldo de Constança, monge de S. Blasien e Scha-ffhausen, teólogo e canonista suábio, saiu em defesa das te-ses gregorianas. Em numerosos tratados e escritos litúrgicos,ele opinou a respeito de questões contemporâneas como asimonia e o nicolaísmo e tratou também de questões dogmá-ticas. Num de seus tratados, o De solutione sacramentorum(c. 1085), Bernoldo se posicionou claramente contra as pre-tensões teocráticas do rei germânico e imperador do Ociden-

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te. Para ele, a Igreja era uma instituição de salvação hierar-quicamente estruturada, em cujo topo estava o papa. Poressa razão, sustentava ele, o primado da cadeira papal nãoconhecia limitações. Suas decisões, conseqüentemente, nãodeviam ser questionadas por quaisquer das partes.86

Uma investigação sobre a legitimidade do banimentode Henrique IV, tal como havia sido reivindicado pelos segui-dores do monarca, constituiria assim uma exigência desca-bida. Para Bernoldo, era fato inquestionável que ao sacerdo-tium cabia a primazia sobre o regnum. Pois a dominaçãotemporal, dizia, era uma criação humana (humana inventio)e, como tal, não podia – diferentemente da corporação ecle-siástica – reivindicar para si a investidura divina. Tambémpor isso não havia dúvidas de que cabia ao papado, em virtu-de de sua autoridade, o papel de árbitro na disputa pelo tro-no alemão. O critério fundamental para julgar o governantetemporal repousava não apenas na sua disposição de empe-nhar-se em favor dos assuntos da Igreja, mas sobretudo nasua obediência à cadeira pontifícia.87

Também Manegoldo de Lautenbach, religioso que vi-veu na Bavária e morreu na Alsácia entre 1103 e 1119, foium defensor árduo do partido papal. Foram de sua autoriadois textos divulgados no período, o Contra Wolfelmum, noqual discute os perigos do avanço da filosofia natural e aquerela da investidura, e Liber ad Geberhardum, obra naqual ataca os juristas imperiais e também o imperador.Manegoldo compartilhava da concepção gregoriana, segun-

86 Cf. PERTZ, G. H. (Ed.). Chronicon. In: MGH Scriptores. Hannover: ImpensisBibliopolii Hahniani, 1844. t. V, p. 385-467 (esp. crônicas dos anos1080 e 1085).

87 A fim de acentuar essa submissão, Bernoldo fez no documento longoselogios ao anti-rei Rodolfo da Suábia por sua defesa dos militantes dopartido gregoriano. Consta que Rodolfo os teria caracterizado como mi-litantes incansáveis da Igreja e “soldados de São Pedro” (miles sanctiPetri). Cf. STRUVE, op. cit., p. 226.

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do a qual a dominação temporal devia ser entendida comouma obra humana. Suas restrições ao poder temporal leva-ram-no à conclusão de que a realeza seria, em princípio,dispensável – diferentemente do corpo ecelesiástico, insubs-tituível para a vida cristã. No âmbito em que aceitava a do-minação real, contudo, enquanto instituição imposta pelopecado original dos homens, atribuía-lhe em primeiro lugaruma tarefa defensiva: a proteção dos vassalos contra ata-ques violentos, a defesa dos seguidores da lei e a rejeiçãoaos malfeitores.88

A idéia da adequação ao cargo (officium) já havia forneci-do um fundamento teórico para intervir contra um governan-te que não cumprisse com suas obrigações diante da Igreja edo povo. No contexto de sua “teoria do contrato” – que, é claro,nada tinha que ver com o pensamento da moderna “soberaniado povo” –, ele entendia a autoridade do príncipe secular comoum ofício cedido pelo povo e delimitado no tempo. Caso o go-vernante infringisse seus deveres de dominador, como asse-gurar o bem comum e proteger os súditos, ele romperia ocontrato (pactum) que o ligava aos vassalos, de maneira queestes estariam liberados de toda obrigação para com o senhore poderiam – e isto era a conseqüência prática importante –submeter-se a um outro rei.

Para justificar essa posição, Manegoldo recorreu à me-táfora tradicional – conhecida do populacho – do pastor desuínos que esquecia de cumprir suas obrigações e, por cau-sa de seus erros, tinha sido expulso de seu ofício pela comu-nidade.89 Ele diferenciava assim com clareza entre o cargotransferido pelo povo e a pessoa de cada um dos detento-

88 Cf. FRANCKE, K. (Ed.). Contra Wolfelmum libro. In: MGH Libelli de lite. t. I,p. 300-8 (esp. p. 306, c. 23.13-35).

89 STRUVE, op. cit., p. 226. A menção original pode ser encontrada tambémem FRANCKE, K. (Ed.). Liber ad Gebehardum. In: MGH Libelli de lite. t. I,p. 309-430 (cf. esp. c. 30).

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res.90 A teoria de Manegoldo em favor da possibilidade dedestituir um governante injusto era, porém, menos determi-nada por idéias solidamente fundadas em códigos legais doque pela prática medieval do direito de resistência, herdadadas tribos germânicas.91 De qualquer forma, já era visívelque o conceito gregoriano da idoneitas do dominador tempo-ral fazia escola.

Contra as reivindicações de liderança levantadas pelaIgreja, os defensores da casa sálica reforçaram a idéia dalegalidade do regnum, sua antiguidade e sua concordânciacom a tradição. O escolástico Wenrich de Trier, em sua defe-sa da concepção teocrática de governo, assumiu a causa doimperador. A realeza (regnum) era para ele um poder instituí-do por Deus, ao qual o próprio papa devia obediência.92 Sus-tentava a defesa da posição real no princípio da antiguidade

90 O argumento aparece na mesma passagem mencionada na nota derodapé n. 88. Essa distinção entre o cargo e a pessoa de seu detentorganharia argumentos mais sólidos ao longo do século XII e, no séculoXIII, já constituiria uma premissa da discussão a respeito da política eda função pública do governante. A esse respeito, cf. KANTOROWICZ, E. H.The king’s two bodies. New Jersey: Princeton University Press, 1957.

91 Trata-se aqui sobretudo da prática de resistência herdada dos reinosbárbaros. De acordo com o direito costumeiro das tribos germânicas, opovo podia depor o governante caso discordasse de suas práticas.

92 Esse argumento podia ser confirmado, lembrava Wenrich, por meio daleitura das Escrituras quando propõe: “seculares hystorias revolvamus”.E escrevia: “‘Arma militiae nostrae non sunt carnalia’, sed spiritualia. [...]Summus pontifex oboedientiam se regibus debere protestatur et asserit,ea debiti necessitate ad ea, quae mentis iudicio ipse reprobat, pro temporetoleranda aliquando descendit, quae tamen ipsa quantum sibi displiceant,adepta oportunitate, salva in omnibus principis reverentia, aperteinnotescit. Unde cum legem de militibus ad conversionem minimerecipiendis imperator promulgari iussisset, legem quidem latam quamDeo adversari videbat, statim exhorruit, sed tamen illam ex iussioneprincipis ad omnium notitiam ipse, qui eam inprobabat, insinuare, nondistulit”. In: FRANCKE, K. (Ed.). Epistola. In: MGH Libelli de lite. t. I,p. 291, c. 4.

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do reino: desde o início do mundo teriam existido reis. A ên-fase recaía na legitimidade divina do reinado sálico: o impe-rador, na qualidade de “ungido do Senhor”, não podia sim-plesmente ser destituído como um mero detentor dependentede um cargo. Além disso, a prática da investidura pelo reialemão justificava-se totalmente, segundo ele, pela tradiçãodo direito canônico, pela Bíblia e pelos escritos dos patriar-cas da Igreja.

Segundo ele, o pontífice procedera de maneira apres-sada no conflito das investiduras. Como vários outros con-temporâneos, Wenrich não pretendia negar uma certavalidade às idéias dos reformistas acerca da investidura deleigos. Nem mesmo o imperador havia sido contrário às re-formas: havia um consenso geral a respeito do fato de queera preciso recuperar a credibilidade moral do papado, aba-lada pela corrupção e pela fragilidade da instituição ao longoda Alta Idade Média.93 Sua crítica dirigia-se ao conteúdo dasreformas: elas estariam sendo determinadas mais por inte-resses político-partidários do que por reflexões religiosas pro-fundas. A postura moderada de Wenrich de Trier ante a Igreja– que, aliás, retratava também a visão de grande parte doepiscopado fiel à realeza – poderia ser resumida em seu fa-moso comentário: para consertar uma fissura na parede, nãose deveriam abalar as bases de toda uma casa.94

93 “Non est novum, regiam dignitatem indignari in eos, quos vident in sesacrilega temeritate insurgere; non est novum, homines secularesseculariter sapere et agere. Novum est autem et omnibus retro seculisinauditum, pontifices regna gentium tam facile velle dividere, nomenregum, inter ipsa mundi initia repertum, a Deo postea stabilitum, repenti-na factione elidere, cristos Domini quotiens libuerit plebeia sorte sicutvillicos mutare, regno patrum suorum decedere iussos, nisi confestimadquiverint, anathemate damnare”. In: FRANCKE, op. cit., p. 290, c.4.

94 No original: “Sed non ita, inquiunt, scissuram parietis convenit resarciri,ut totum domus fundamentum inde contigat labefactari”. In: FRANCKE, op.cit., p. 288, c.3.

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Um avanço mais substancial na defesa da posição im-perial, entretanto, deveu-se aos escritos de Pedro Crasso. Ojurista italiano, em seu Defensio Henrici IV. regis (1084), abriuuma nova perspectiva argumentativa ao recorrer ao antigodireito romano – que na Itália nunca havia desaparecido porcompleto –, em especial ao Codex de Justiniano, para funda-mentar a posição da casa sálica. Para Crasso, o mundo divi-dia-se em duas esferas de direito (duplices leges), indepen-dentes entre si e originadas de Deus: o direito canônico parao âmbito espiritual; e as “leis sagradas” (sacratissimae leges)do direito romano para o âmbito temporal.95

Ao sustentar o direito como categoria fundamental paraa ordenação da comunidade humana, Crasso tornava a letraum ideal característico do período medieval, aquele danomocracia. Uma vida sem leis igualava-se, em seu raciocí-nio, à existência dos animais irracionais.96 Em sua concep-ção, tanto as leis de maneira geral quanto a dominaçãotemporal eram derivadas diretamente de Deus. Nessa pers-pectiva, a esfera secular era retirada do âmbito do poder pa-pal. Em sua defesa do império, o autor recorreu tanto àargumentação tradicional – retirada do texto bíblico Epístola

95 “Tum illa omni mora remota sic est exorsa: ‘Quoniam conditor rerum inrebus, quas condidit, nihil homine carius habuit, duplices ei contulitleges quibus fluctivagam compesceret mentem ac se ipsum agnosceretconditorisque sui mandata servaret; sed harum unam per apostolossuccessoresque eorum ecclesiasticis assignavit viris, alteram vero perimperatores et reges saecularibus distribuit hominibus, beato Augustinohuic rei testimonium perhibente: ‘Ipsa’, inquit, ‘iura humana perimperatores et reges seculi Deus distribuit humano generi’”. In:HEINEMANN, Lothar von (Ed.). Defensio Henrici IV. regis. In: MGH Libellide lite. t. I, p. 438, c. 4. Uma passagem do documento está traduzidapara o português e pode ser encontrada em SOUZA & BARBOSA, op. cit.,p. 61-2.

96 “Abolitis enim legibus, nonne parum vivere a brutis animalibusredarguimur?”. In: HEINEMANN, op. cit., p. 445, c. 7.

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aos romanos –97 quanto à noção do dominador enquanto “ima-gem de Deus” (imago Dei) de Ambrósio.

Para justificar o governo de Henrique IV, Pedro Crassosustentou tanto a hereditariedade da realeza e do império –que existiria desde tempos imemoriais – quanto a continui-dade da dominação dentro da casa sálica. Recorrendo ao di-reito romano de bens e de família, comentava que HenriqueIV seria o detentor legal do poder tanto no sentido jurídico,devido ao direito de herança, quanto no sentido material, de-vido à posse factual das coisas (“...Nonne Henricus rex iure etcorpore possidet regnum?...”) (cf. c. 6.33-34). Ao assumir odireito romano de majestade da Lex Iulia (I. 4,18,3) – segun-do a qual qualquer ataque contra o imperador e seu Estadodeveria ser punido como um crime merecedor de pena capi-tal –,98 Crasso reforçou a posição do rei.

A causa do imperador ganhava assim uma sustenta-ção expressiva: com base na continuidade – sem ruptura –do direito romano, Henrique IV era igualado aos imperado-res romanos. Como o direito de majestade dizia respeito nãoapenas à pessoa do governante, mas também ao bem co-mum (respublica) de maneira genérica, como um bem quemerecia ser protegido, sustentava-se a idéia de um conceitode Estado para além da pessoa do monarca. Embora a recor-rência ao direito romano em Pedro Crasso servisse para for-talecer sobretudo o princípio monárquico, a retomada dessecorpo legal apontava para um desenvolvimento futuro: a cons-

97 “Seja todo homem submisso às autoridades que exercem o poder, poisnão há autoridade a não ser por Deus e as que existem são estabeleci-das por ele. Assim, aquele que se opõe à autoridade se revolta contra aordem querida por Deus, e os rebeldes atrairão a condenação sobre simesmos”. In: Romanos, 13: 1-2. In: A Bíblia, op. cit., p. 1396.

98 “Item in libro Institutionum ita: ‘Lex Iulia maiestatis, quae in eos, qui con-tra imparatorem vel rempublicam aliquid moliti sunt, suum vigoremextendit, cuius poena animae amissionem sustinet, et memoria noxii postmortem damnatur’”. In: HEINEMANN, op. cit., p. 452, c. 7.

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trução de uma área de dominação temporal como corporaçãojuridicamente fechada, baseada numa lei genericamente vá-lida para todos.

O Anônimo Normando (também conhecido como Anô-nimo de York), que escreveu provavelmente em Rouen porvolta de 1100, autor de cerca de trinta tratados,99 foi respon-sável por uma ruptura radical com a interpretação tradicio-nal da doutrina gelasiana dos dois poderes – incluindo suareinterpretação hierocrática pelos gregorianos. Aos esforços– provindos dos reformistas – de dessacralização da figura dogovernante temporal, o Anônimo Normando contrapunha,em seu texto De consecratione pontificum et regum, a tese darealeza, segundo a qual a sacralidade do cargo teria origemimediatamente de Deus.100 O ponto de partida de sua argu-mentação era a constatação de que o rei – de forma seme-lhante aos clérigos – participava, por meio da unção, danatureza divina de Cristo,101 e sofria assim uma espécie dedeificatio.

99 Os textos podem ser encontrados em: PELLENS, K. (Ed.). Die Texte desNormannischen Anonymus, Veröffentlichungen des Instituts fürEuropäische Geschichte Mainz. Wiesbaden: 1966, n. 42. Parte do textoaqui utilizado, o De consecratione pontificum et regum, foi traduzida porSOUZA & BARBOSA.

100 “Os Pontífices não ignoram que o poder dos reis sobre todos os homenslhes foi conferido do alto e que Deus lhes concedeu exercer um domínionão apenas sobre os leigos e os soldados, mas ainda sobre os seussacerdotes. [...] O fato de os monarcas estabelecerem leis para a prote-ção da Igreja e velarem por ela não é contrário à justiça, porque [...] elesdetêm um poder sacrossanto inclusive sobre os Pontífices do Senhor,bem como exercem o governo eclesiástico”. In: SOUZA & BARBOSA, Docu-mento 14, op. cit., p. 88.

101 “[...] de modo que os reis, ao serem ungidos, recebem o poder de Deuspara governá-la, confirmá-la na justiça e julgamento, e administrá-lasegundo o estatuído pela lei cristã, pois eles reinam na Igreja, que é opovo de Deus, e exercem essa missão juntamente com Cristo”. Ibid.,p. 88.

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Essa forma de participação era conseqüência de umefeito de graça divina. As relações entre o poder temporal e ainstituição eclesiástica, segundo o Anônimo Normando, orien-tavam-se pela respectiva relação com Cristo – o único “rei esacerdote” (rex et sacerdos) verdadeiro e perfeito, como já haviaconstatado Agostinho. Enquanto o primeiro participava danatureza superior da realeza de Cristo, o sacerdote partici-pava apenas da sua natureza humana inferior. Essa dedu-ção teológica resultava, conseqüentemente, para o AnônimoNormando, na primazia do regnum sobre o sacerdotium noâmbito temporal.102

Ao imperador, continuava o Normando, era concedido– na qualidade de “sacerdote supremo” (summus pontifex), deacordo com a prática da instituição eclesiástica estatal con-stantina – o direito de convocar concílios e decidir em assun-tos de fé. Por causa da honrosa reputação desfrutada peloimpério em virtude da sacralidade do cargo atribuída pelaunção, o mesmo direito valia para a investidura de sacerdo-tes: os bispos recebiam do governante temporal, mediante oato da investidura, o poder do cargo sobre o povo eclesiásticoe o poder de dispor sobre os bens da Igreja.103

102 “O sacerdote desempenha um ministério proveniente da natureza infe-rior de Jesus, a humana; o rei, pelo contrário, desempenha uma funçãode origem naturalmente superior, a divina. [...] Alguns julgam que o reie o seu poder é maior e mais importante do que o sacerdote e a suaautoridade, no respeitante à missão que desempenham junto ao povo.[...] É por isso que afirmam que a dignidade real institui a sacerdotal eesta deve ser-lhe submissa, e tal fato não contraria a justiça divina,porque o mesmo acontece com Jesus Cristo”. Ibid., p. 88-9.

103 “Os Sumos Pontífices estão subordinados tanto aos reis quanto a JesusCristo e prestam-lhes homenagem, porque sabem perfeitamente que,mediante os reis, é Ele que reina e exerce o seu domínio sobre todos [...].Não é um leigo que concede a investidura, mas um monarca, o cristo doSenhor, co-reinando pela graça divina com Ele, ungido do Senhor pornatureza, e como esses dois cristos reinam juntamente, ambos conce-dem simultaneamente o que é necessário ao seu reino [...] além disso, o

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Segundo o Anônimo, a investidura executada pelo mo-narca não se referia à posição sacramental e à função dobispo, mas apenas a suas competências de dominação tem-poral (regalia). Ele não deixava dúvidas, porém, de que o go-vernante investia o clero não como leigo, mas como adminis-trador da própria divindade. Embora sua argumentaçãoparecesse repousar mais numa tentativa de recuperação doantigo modelo teocrático dos césares romanos, ao rejeitar avisão dualista clássica, baseada na relação entre alma e cor-po, segundo a qual o domínio material englobava apenas oscorpos, enquanto o domínio sacerdotal englobava as almasdos homens, o Normando contribuía com um passo decisivoem direção à autonomia do governo temporal: seu argumen-to não tardaria a ser desenvolvido.

Em oposição à linha de argumentação defendida pelaIgreja para justificar sua preeminência, o Anônimo enfatizavaque as almas não podiam ser governadas sem os respectivoscorpos, nem os corpos sem as almas. No interesse da unida-de do governo, portanto, impunha-se o direito do rex de dis-por sobre a Igreja. A idéia da realeza divina centrada em Cristoganhava com o Normando uma projeção expressiva. Não ha-via ainda no horizonte, é claro, a menor possibilidade de pen-sar uma monarquia absoluta nos moldes daquelas quesurgiriam séculos depois no continente europeu. O desen-volvimento caminhava muito mais na direção de uma dife-renciação dos poderes. Mas já se podiam entrever indícios deuma tendência à – e material teórico para a defesa da – cen-tralização do poder nas mãos de um único governante supre-mo. Se esse poder deveria caber ao papa ou ao imperador,era o que se debatia neste momento.

bispo recebe juridicamente do rei as suas possessões; e não só isso,mas também a missão de guardar a Igreja e o direito de governar o povode Deus”. Ibid., p. 89.

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Por meio da separação conceitual entre, de um lado, oofício espiritual (spiritualia) e, de outro, os bens temporais e osprivilégios ligados ao cargo (temporalia), preparava-se a solu-ção para o problema das investiduras. O notável nessa inter-pretação, comenta Struve, não foi tanto a distinção entre spiri-tualia e temporalia, mas sim a incorporação das últimas àordem temporal de direito104 (ius humanum) – associação queencontrava em Agostinho uma base sólida. Essa diferencia-ção, relevante para o desenvolvimento das idéias políticas, foiintroduzida e fundamentada nos textos de publicistas e cano-nistas importantes da virada do século. Faltava pouco para ofim da querela pela investidura.

O canonista francês Ivo de Chartres, sobretudo na suacoletânea de cânones escritos entre 1097 e 1115, explicavaque cabia ao imperador, como “cabeça do povo” (caput populi),dispor sobre as temporalia. A investidura de leigos, porém,constituía, segundo ele, uma intromissão indevida do podertemporal na esfera de direito da Igreja – ingerência que, nointeresse da liberdade evangélica, deveria ser impedida. Obispo de Chartres acreditava, contudo, que a harmonia dacristandade unida na Ecclesia dependia da concórdia (con-cordia) – que deveria ser alcançada a qualquer custo – entreregnum e sacerdotium.

Essa sua crença constituía um ponto decisivo para odesenvolvimento de suas posições: importante era a açãoconjunta harmoniosa dos membros do corpus Christi. Ivo deChartres procurava uma solução ponderada para o conflito,sem intransigências de nenhuma parte. Isso o levou a sus-tentar que a investidura, quando despojada de caráter sa-cramental, não significava uma ofensa contra a lei divina (lexaeterna) e, por isso, não devia ser entendida necessariamen-te como uma heresia: podia – e devia – ser tolerada em casos

104 Cf. STRUVE, op. cit., p. 232.

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excepcionais (dispensatio) para manter a paz interna e autilitas comum.105

Também o publicista imperial Wido de Ferrara, no seutexto em defesa do antipapa Clemente III, De schismateHildebrandi (1086), já havia defendido a investidura imperialcomo um empréstimo temporal. Ele distinguia conceitual-mente entre o cargo episcopal, atribuído à esfera dos spiri-tualia, e o complexo de bens recebidos e de direitos ligados aele, para o qual usava a designação “regalias” (regalia). Comoesse conjunto era concedido pelo poder temporal, eles per-tenciam aos assuntos seculares (saecularia). As regalias eramdefinidas, assim, como aqueles direitos que cabiam ao gover-nante secular, independentemente de qualquer outra autori-dade. Dado que esses privilégios eram cedidos à Igreja comodireitos reais genuínos – por meio do ato da investidura –apenas para a utilização temporária e limitada, cada trocano cargo episcopal tornava necessária uma nova investidurareal.106

Sigisberto de Gembloux, autor de um tratado muitodivulgado sobre a investidura dos bispos (Tractatus deinvestitura episcoporum, de 1109), sustentava que o juramentode fidelidade (sacramentum) e a homenagem feudal (hominium)tinham o caráter de atos compensatórios pelo recebimentodas regalias. Embora seguisse a doutrina gelasiana tradicio-nal da independência dos dois poderes, o autor concordavacom os partidários do imperador a respeito do fato de quecabia ao governante temporal a investidura dos bispos.107 E

105 Cf. SACKUR, Ernestus (Ed.). Epistolae ad litem investiturarum spectantes.In: MGH Libelli de lite. t. II, p. 640-57 (esp. p. 60, 106, 171, 236, 238).

106 Cf. WILMANS, R.; DÜMMLER, E. (Ed.). De schismate Hildebrandi. In: MGHLibelli de lite. t. I, p. 529-67 (esp. p. 560-67).

107 “[...] et investituras episcoporum eis determinavit, ut non consecreturepiscopus, qui per regem vel imperatorem non introierit pure et integre,exceptis quos papa Romanus investire et consecrare debet ex antiquo

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adicionava um argumento importante: em razão do direitocostumeiro108 (antiqua consuetudo). Para sustentar sua posi-ção, apoiava-se nos privilégios de investidura de Adriano I(772-95) (in: Hadrianum) e Leão VIII (963-65) (in: Privilegiumminus), falsificados na virada do século XI para o XII porcírculos fiéis ao imperador da Itália.

Tal como seu contemporâneo Wido de Osnabrück, Si-gisberto chamava atenção para o fato de que a Igreja devia asua riqueza à generosidade dos reis e do imperador e debeatos leigos.109 Todos os pertences da instituição eclesiás-tica – posse de bens, ganhos e direito sobre um território –foram subsumidos em sua argumentação sob o conceito deregalia. Ao governante temporal, como cabeça do povo, ca-bia o direito de investidura dos bispos.110 O autor avançoumais um passo ao conceder também ao rei o direito deentronização, sem com isso atribuir à investidura um cará-ter espiritual (cf. Tractatus, p. 501). Uma solução viável aoproblema das investiduras ganhava terreno: com base nosdireitos de feudo, se tornava possível sustentar a separação –teoricamente preparada na publicística da época – entre ospoderes espirituais e temporais, conferindo estes últimos à

dono regum et imperatorum cum aliis que vocantur regalia, id est a regibuset imperatoribus pontificibus Romanis data in fundis et reditibus. In hacconcessione continentur regales abbatie, prepositure. In: BERNHEIM, E. (Ed.).Tractatus de investidura episcoporum. In: MGH Libelli de lite. t. II,p. 498.

108 “Ex hoc, prout sunt consuetudines in regnis per orbem terrarum, deepiscopis investiendis servanda sunt antiqua iura”. In: BERNHEIM, op. cit.,p. 502.

109 “[...] [reges et imperatores], a quibus – et etiam a devotis laicis et feminis– fundi et mobilia ecclisiis Dei in orbe terrarum provenerunt sibique tute-las et defensiones rerum ecclesiasticarum retinuerunt contra tyrannos etraptores”. In: BERNHEIM, ibid., p. 500.

110 “[...] ut rex, qui est unus in populo et caput populi, investiat et intronizetepiscopum et contra irruptionem hostium sciat, cui civitatem suam credat,cum ius suum in domum illorum transtulerit!”. In: BERNHEIM, ibid., p. 502.

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competência do direito secular. Era o fim da querela entreos dois poderes.

Na Concordata de Worms, Henrique V abriu mão daconcessão de posse com anel e bastão e garantiu a eleiçãocanônica livre e a investidura. Em troca, o papa Calixto II (1119-24) concedeu ao imperador que, dentro do reino alemão, aeleição dos bispos e abades ocorresse na presença do monar-ca. Caso houvesse uma eleição ambígua, o imperador deveriadecidir a favor do “partido mais sensato” (sanior pars). No lu-gar da investidura no sentido comum, foi previsto que o eleitodeveria receber as regalias, na Alemanha, antes da cerimôniade posse; na Itália e na Borgonha, em um prazo de seis mesesdepois de empossado. Desse modo, mantinha-se a influênciado rei sobre a ocupação de bispados e abadias dentro do reinoalemão.111

Ficou acertado ainda que o clero tinha de cumprir comos deveres – isto é, a homenagem feudal e o juramento defidelidade, além das obrigações a eles ligadas – surgidos apartir do empréstimo das regalias pelo imperador, segundo odireito do regnum. A Concordata de Worms que, aliás, não foiintegrada nas grandes compilações de direito eclesiástico,caracterizou-se nitidamente pela marca do acordo: os doispoderes cediam em nome da restauração da paz na cristan-dade dividida. No conflito pela disputa das investiduras – etambém como reflexo da “Humilhação de Canossa” – a reale-

111 Apesar da aparente vitória experimentada pelo papado, lembra GerdTellenbach, a conduta dos bispos individuais em seus cargos nos as-suntos do dia-a-dia “continuou sendo ainda fortemente determinadapelos poderes locais prevalecentes – seus colegas episcopais, o rei e suacorte, barões locais – tanto quanto pelo papa distante e seu aparatocurial e legados de funcionamento intermitente”. Isto é, as idéias e aprática da maior parte dos leigos e prelados estavam ainda impregna-das dos valores e instituições de caráter feudal. Cf. TELLENBACH, op. cit.,p. 349.

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za medieval perdeu muito da sua investidura sagrada origi-nária. Na prática, contudo, isso pouco alterava a configura-ção de poder local: a fragilidade institucional do papado esua dificuldade de enfrentar a força das armas em terrasdistantes impediam maior eficácia no cumprimento do acor-do. Mas era indiscutível a sua vitória moral.

Depois das regulamentações do acordo, as competên-cias do imperador – inicialmente não divididas – foram res-tringidas à esfera das temporalia. A obrigação de responderàs reivindicações de poder hierocráticas levou os partidáriosdo governante secular a recorrer com maior ênfase à antigatradição romana do império, mas sobretudo ao direito roma-no, intrinsecamente a ele ligado. Como uma instituição pu-ramente temporal, fundada por leigos para leigos, o impériofornecia à realeza um fundamento de idéias totalmente novoe independente da doutrina eclesiástica. Estavam criadas,pelo menos no plano teórico, as precondições para aautonomização da esfera temporal.

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Os desenvolvimentos ocorridos no interior da cristanda-de e da Igreja alteram a configuração da sociedade européiadurante o século XII. Apesar de finda a disputa pela investidu-ra, novas lutas ferrenhas entre o papado e o império pela pre-tensão de universalidade de seus representantes máximos – e,portanto, pelo domínio da cristandade – ainda ocorreriam. Asquerelas entre os dois poderes foram responsáveis por boaparte dos problemas políticos ocorridos em seus territórios, aAlemanha e a Itália. Os avanços no pensamento político –embora talvez modestos da nossa perspectiva – foram contu-do bastante relevantes para a época.

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A recuperação do antigo direito romano, nesse período,combinou-se de maneira excepcionalmente fértil com a ondade novidades intelectuais e iniciativas artísticas: conhecedo-res denominam – não sem razão – o conjunto de inovações etransformações do período de o Renascimento do Século XII.No âmbito religioso, propagaram-se as ordens monásticas e oculto ao ideal de pobreza, que exerceu forte influência sobre ainstituição eclesiástica sobretudo a partir de 1100. Tambémcresceu o movimento econômico dentro da Igreja, sobretudonas áreas próximas das cidades. No campo, predominavam oscistercienses, cultivadores da vida eremítica.

Os eventos políticos também seguiam seu curso, alte-rando e simultaneamente sendo modificados pelos novos ven-tos. Depois do acordo realizado na Concordata de Worms, opartido gregoriano se fortaleceu. Trinta anos de paz se segui-ram. Quando Henrique V morreu, em 1125, sem deixar her-deiros, a cúria papal tratou de providenciar sua sucessão,afastando da disputa seu sobrinho Frederico II de Staufen,duque da Suábia. Contra ele, a cúria romana apoiou Lotáriode Supplinburg, duque da Saxônia e inimigo da casa sálicadesde a rebelião de Henrique IV contra o papado.

Lotário III, depois de eleito imperador, garantiu algumasliberdades ao sacerdotium e renunciou a dois direitos acorda-dos em Worms: abriu mão da presença nas eleições eclesiais etambém de conferir as regalia antes da consagração – renún-cias que na prática não foram sempre cumpridas. Com o cis-ma de 1130, o apoio de Lotário III às posições do pontíficeparecia confirmar a nova política papal: a restauração do im-perador ao papel de defensor do papado. Com a morte deLotário, seu filho Conrado III foi nomeado imperador e seguiu,de modo geral, a mesma linha de conduta do pai.

Essas décadas foram marcadas por uma contribuiçãoque faria escola no pensamento jurídico: o Decretum (ouConcordantia discordantium canonum), de Graciano. O docu-mento, uma coleção formada de decretos papais e imperiais,

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escritos dos Santos Padres, leis romanas etc., continha ma-terial suficiente para sustentar tanto a afirmação da inde-pendência das duas espadas quanto a doutrina gregorianada subordinação da espada temporal à espiritual. A enormecompilação do mestre Graciano de Bolonha – que rapida-mente se tornaria a grande referência para o estudo do direi-to canônico e serviria de base para o Corpus Iuris Canonici –continha, entre outras, duas afirmações que teriam desdo-bramentos relevantes para o pensamento político: a de queuma concepção apostólica guardaria sempre a pureza da fécatólica; e a de que príncipes cristãos deviam auxiliar a Igrejaromana no cumprimento desta função.112

Do poder temporal, a instituição eclesiástica esperavaque suprimisse “aqueles que perturbam a paz da Ecclesia”:se eles desdenhassem fazê-lo, seriam excluídos da comunhão.Príncipes seculares, portanto, deviam estar preparados paraconduzir uma guerra santa contra os inimigos da fé, quandoinstigada pela Igreja romana. Fundamentava-se assim a teo-ria da “perseguição justa”, desenvolvida pelos canonistasgregorianos – ancestral tanto da idéia de Cruzada quantodas medidas coercitivas contra heréticos desenvolvidas noséculo XII.

Um ponto merece destaque: o comentário feito por Ber-nardo de Claraval (1090-154), abade borgonhense deClairvaux, também conhecido como São Bernardo. Quandoo papa Inocêncio II (1130-43) foi expulso de Roma, no cismade 1130, Bernardo declarou que os papas expelidos eram“geralmente expulsos da cidade e aceitos pelo mundo”.Robinson chama atenção para o fato de que, apesar dos cis-mas e das expulsões dos pontífices de sua base romana, os“papas legais” acabaram vitoriosos porque “foram aceitos pelomundo”. Mas eles tiveram primeiro de persuadir príncipes e

112 Cf. ROBINSON, op. cit., p. 318.

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religiosos da legitimidade de sua causa pelo Ocidente afora.Esses esforços de persuasão acabaram projetando o papadopara o mundo além de Roma.

Outras forças, além dos cismas, também contribuírampara levar os papas para fora dos limites romanos: a cidadehavia-se tornado perigosa por causa da hostilidade do populusromano ao pontífice. A independência papal nos séculos XI eXII foi ainda ameaçada pelas ambições das famílias nobres.“Depois de 1143”, escreve Robinson,

a ameaça foi intensificada pela fundação de uma Comu-na romana que reclamava jurisdição sobre a cidade. Ospapas mantinham sua liberdade de ação criando um sis-tema de governo que os tornou independentes dos roma-nos, por meio da exploração de recursos dos territóriospapais (“o Patrimônio de São Pedro”) e por meio de suaaliança com príncipes ocidentais.113

Essa projeção do sacerdotium, contudo, esteve intrin-secamente ligada às suas infindáveis disputas com os defen-sores do imperium, que resistiam com todas as armas àreivindicação de plenitude do poder pelo trono pontifício.

***

Diferentemente de Conrado III e seu pai, a eleição dorei alemão Frederico III, da dinastia dos Hohenstaufen, du-

113 ROBINSON, op. cit., p. IX. O sucesso dessa emancipação dos pontífices,constata Robinson, pode ser percebido no número de pontífices originá-rios de Roma no período: dos 19 papas que governaram entre 1073 e1198, apenas 5 eram romanos (Gregório VII, Inocêncio II, Anastácio IV,Clemente III e Celestino II). Os demais pontífices provinham do sul daItália (3), da Itália central e do norte (8), da França (2), e um da Inglater-ra. Essa “internacionalização” da Ecclesia seria ainda mais fortementesentida na composição do Colégio de Cardeais, a mais importante insti-tuição no governo papal do século XII.

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que da Suábia e imperador Frederico I, o Barba-Ruiva, emmarço de 1152, não contou nem com o apoio nem com apresença da cúria papal. Frederico apenas anunciou sua elei-ção e fez-se coroar imperador sem a presença do pontíficenem de prelados. Também não aguardou a confirmação daautoridade espiritual para assumir o trono. Tal como osStaufen que o antecederam, Frederico I recusava-se a su-cumbir à pressão do gládio espiritual: com base na tradiçãoimperial romana, argumentava ter recebido o império direta-mente de Deus, não do papa.

Também a sua posição privilegiada – era bem aceitopelos dois partidos alemães fortes, os Staufen e os Welf –permitia-lhe abrir mão de qualquer sanção adicional. O papaEugênio III (1145-53) enviou, três meses depois, uma cartaao imperador, manifestando sua aprovação e boa vontadepara com o eleito, mas em nenhum trecho usou a palavraconfirmação. O pontífice e o imperador, por meio de seus le-gados, selaram uma aliança entre os dois poderes, fixada noTratado de Constança, em 1153. Esse acordo definia sobre-tudo os deveres do imperador na Itália: comprometia-se aproteger a honra do papado e a não fazer a paz com os roma-nos nem com o rei da Sicília sem o consentimento do sumosacerdote.

Em troca, receberia a coroa imperial, o que lhe permi-tia restaurar as regalia de São Pedro – da competência dopoder temporal. Ambos comprometiam-se ainda a não fazeralianças nem concessão de terras ao rei bizantino. O pactodurou até a morte de Eugênio III (1153) e de seu sucessorAnastácio IV, que também logo faleceu. O seu lugar foi ocu-pado por Adriano IV (1154-59). Cada novo pontífice recebiapressões de vários lados, mas especialmente dos romanos edo rei da Sicília.

A Comuna romana erguia-se contra o papado, por meiode líderes eloqüentes como Arnoldo de Brescia. No reino

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siciliano, o sucessor de Rogério II, Guilherme I, tinha assu-mido o título de rei sem a permissão de seu senhor feudal, opapa. Quando Adriano se recusou a reconhecê-lo como rex,em 1155, seu exército passou a atacar o Patrimônio de SãoPedro. Frederico I, que desde 1154 avançava sobre o reinoitaliano, alcançou Roma em junho de 1155: levava como tro-féu ao pontífice o prisioneiro Arnoldo de Brescia, que entre-gou ao prefeito de Roma para execução.114

No mesmo mês, no campo de Sutri, Frederico I e Adri-ano IV encontraram-se: o imperador era agora oficialmentecoroado. As duas versões do episódio eram bastante diver-gentes, como mostravam tanto os documentos do papa quantoas cartas do imperador relatando o ocorrido. A versão ger-mânica falava de um quadro de harmonia entre a duas auto-ridades e enfatizava a boa vontade de Frederico em cooperarcom o pontífice – como conta a carta de Frederico ao seu tio,o bispo Oto de Freising.115 Já a versão eclesiástica descreviauma situação tensa causada pela má vontade de Fredericoem respeitar a honra do papado.

As duas versões tinham intenções polêmicas, argumentaRobinson: a alemã ocultava a falha do imperador em preen-cher os termos do Tratado de Constança, que envolvia prote-ger o papado da Comuna romana e do rei siciliano; a versãopontifícia pretendia culpar Frederico pela deterioração darelação entre papado e império – acentuada no fim do ponti-ficado de Adriano. Toda a disputa, entretanto, girava em tor-no de um dado prévio: apesar de Lotário III ter consentido emser chamado “vassalo do papa”, toda linhagem imperial não

114 Cf. ROBINSON, op. cit., p. 462-3.115 Um minucioso estudo sobre o período – que trata sobretudo da vida e

obra do bispo bávaro Oto de Freising, tio e conselheiro de Frederico I –pode ser encontrado no gigantesco trabalho de: BARBER, Malcolm. Thetwo cities: medieval Europe 1050-1320. London, New York: Routledge,1993.

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o admitia. Frederico recusava-se a aceitar a posição de merostratoris116 officium do prelado.

Além do fato de Frederico não ter cumprido rigorosa-mente as cláusulas do Tratado de Constança, também o papatomou medidas para proteger-se de seus inimigos, o que, emúltima instância, envolvia uma quebra do pacto por parte docadeira pontifícia. O imperador e sua tropa retornaram à Ale-manha,117 em 1155, sem ter restabelecido a autoridade pa-pal sobre Roma e sobre o território da Igreja: não tinham sidosubjugados nem a Comuna romana nem o rei siciliano.

A vitória de Guilherme I da Sicília sobre o papado noano seguinte causou perdas ao Patrimônio de São Pedro. Alémdisso, o rei avançou sobre as terras do sul da Itália. Poucodepois, na Concordata de Benevento (1156), o rei confirmoua suserania pontifícia sobre o reino da Sicília. Um ano maistarde, o rei siciliano selou um acordo com o imperador deBizâncio, Manuel I Comnenus, segundo o qual este reconhe-cia a titularidade de Guilherme sobre o reino da Sicília e so-bre o sul da Itália.

Tanto o tratado quanto a concordata pareciam à corteimperial um ataque direto contra o imperador. O cape-lão imperial, Godofredo de Viterbo, reclamou que Adriano IVteria rompido o Tratado de Constança não uma, mas duasvezes, fazendo a paz com os normandos e com Bizâncio. “Opapa desejava ser tido como inimigo de César” ,118 escrevia ocapelão. Era razão mais do que suficiente para considerardesfeito o acordo entre o papa e o imperador germânico.

116 Stratoris: aqui no sentido de “serviçal”; também “a domestic servantperforming the duties of groom or the like; a personal aide or equerry”. Cf.GLARE, op. cit.

117 O retorno do imperador deveu-se sobretudo ao fato de que havia tensõese suspeitas de desagregação interna de suas tropas, de modo que suaavaliação o impedia de conduzir uma guerra em tais circunstâncias.

118 ROBINSON, op. cit., p. 465.

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Apesar das tentativas pontifícias de ganhar aliados naAlemanha, não havia partido contra Frederico I em territóriogermânico no momento em que estourou a querela entre opapa e o imperador. A disputa começou por causa da con-cessão pelo papa do controle sobre a Igreja sueca a Esquil deLund, que – a caminho de casa – foi preso e detido por briga-das imperiais na Borgonha. O papa apelou às armas do im-perador para libertá-lo e enviá-lo com segurança de volta àSuécia. Frederico não respondeu à carta do pontífice, pois oconcorrente dinamarquês de Esquil tinha sido conduzido aotrono por vontade do próprio Barba-Ruiva em 1152.119

Meses depois, Esquil foi libertado e voltou ao reino su-eco. As cobranças de ambas as partes, contudo, acirraram-se.120 O caso estendeu-se ainda mais com uma carta do papa,enviada a Frederico na dieta de Besançon, em setembro de1157. No documento – lido e traduzido na reunião pelo influ-ente chanceler Reinaldo de Dassel –, o papa lembrava aogovernante temporal que este não estava cumprindo os com-promissos de “honra e dignidade” a ele conferidos quando dacoroação. E que o imperador não devia mostrar ingratidãopara com aqueles de cujas mãos recebera os beneficia e quelhe teriam “concedido” a dignidade imperial.121

A interpretação de que Frederico teria recebido a coroaimperial com feudo (pro beneficio) do sumo pontífice causou

119 Tratava-se do rei Swein Grathe, da Dinamarca, que apoiava as preten-sões do rival de Esquil ao trono sueco, Knut Magnusson.

120 Há muita polêmica histórica sobre o assunto: se o seqüestro de Eskil foipremeditado pelo papa para provocar Frederico; ou se Eskil estava usan-do a sua proximidade com o papado para frustrar as reivindicaçõeslegítimas de um bispo imperial leal, e assim fazer oposição à influênciaimperial na Dinamarca.

121 Dizia a carta de Adriano IV a Frederico I: “[...] Deves, portanto, gloriosís-simo filho, recordar quão graciosa e alegremente, no ano passado, aSacrossanta Igreja Romana te recebeu e com quanto afeto ela te tratou,com que plenitude de dignidade e de honra te revestiu, e como conce-

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confusão e tumulto entre os barões, legados e autoridadespresentes. O imperador, em sua resposta irada, rejeitou anoção de que o império fosse um feudo do papado, e acusouo pontífice de desonrar os alemães e o Império. Argumentavaque o Sacro Império (Sacrum Imperium) lhe tinha sido conce-dido por Deus e, por isso, não dependia do papado.122 Adrianoretrucou dizendo que a carta tinha sido traduzida de manei-ra equivocada: quando escrevera “concedendo-te a coroa”,quisera apenas dizer que teria “colocado a coroa em sua ca-beça”.123 Seja por erro de interpretação, seja pelo uso de umvocabulário feudal oriundo das concepções políticas de Gre-gório VII, o fato é que as disputas entre os dois poderes seagravaram.124

dendo-te muito graciosamente a distinção da coroa imperial, se empe-nhou em te conservar no seu regaço fertilíssimo, no ápice da tua subli-midade, certa de não ter nada que viesse a causar [sic] o mais pequenodescontentamento à tua vontade real”. In: SOUZA & BARBBOSA, Documen-to 19, op. cit., p. 93 – grifo meu.

122 Respondera Frederico I em circular aos bispos do império: “Tendo emvista que, pela eleição dos príncipes, recebemos o reino e o Impériosomente de Deus, o qual, por meio da Paixão de Cristo, seu Filho, sub-meteu este Orbe ao governo das duas espadas necessárias, e conside-rando, paralelamente, que o Apóstolo Pedro ensina a todos a seguintedoutrina: ‘Temei a Deus e honrai o Rei’, aqueles que afirmam termosrecebido a coroa imperial através do Senhor Papa, ao modo de benefí-cio, contradizem a instituição divina, bem como o ensinamento do bem-aventurado Pedro, e por isso devem ser considerados mentirosos”. In:SOUZA & BARBOSA, Documento 20, op. cit., p. 95.

123 Cf. ROBINSON, op. cit, p. 470.124 “Não se pode propriamente entender quão insolúvel era a tensão entre

reis e papas se se falha em reconhecer o fato de que ambos os ladosviam sua legitimação divina como indisputável e como um componenteindispensável de sua dignidade”, escreve Gerd Tellenbach. Enquantoexistisse uma monarquia cristã, prossegue, uma relação direta entreregnum e Deus continuaria a ser afirmada em face de todas as tentati-

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Frederico havia decidido dar novo sopro à política im-perial. Para isso, determinou na dieta de Roncaglia, em 1158,a restauração do controle imperial sobre o reino da Itália.Mas Adriano continuava negociando com os interesses ita-lianos, sobretudo com as cidades lombardas, que resistiamaos decretos imperiais de Roncaglia. E tudo indicava, já an-tes de sua morte, que a aliança papal-alemã tinha chegadoao fim. Com a morte de Adriano, em 1159, foi eleito papa ocardeal italiano Rolando, líder do “partido antigermânico si-ciliano” – cujas origens remontam ao acordo de Benevento de1156 –, sob o nome de Alexandre III (1159-81).

Com o endurecimento e o incremento da disputa entreregnum e sacerdotium até dentro da própria Igreja, FredericoI, incitado e militarmente sustentado por Reinaldo de Dassel,passou a sustentar um antipapa, Vítor IV (1159-64) – e seussucessores –, agregando os cardeais contrários à hegemoniasiciliana na cúria papal. O argumento formal em prol dosantipapas era o de que o Tratado de Constança deveria sermantido e cumprido. Os romanos, em sua luta contra o pon-tífice oficial, também apoiaram Vítor IV. O papa legal Alexan-dre III, depois de passar uma semana no castelo deSant’Angelo, foi obrigado a fugir de Roma.

Depois de várias tentativas – inúteis – de solucionar oconflito com o bispo de Roma por meio de concílios, FredericoI decidiu atacar Milão – sede das cidades lombardas resis-tentes –, destruindo-a. Isso assustou as cidades do norte,que passaram a adotar uma posição defensiva em relação aoimpério. O plano imperial agora era atacar a Sicília. Enquan-to isso, o papa Alexandre III tentava governar o que haviasobrado da instituição pontifícia baseado no território fran-

vas de rejeitá-la. No fundo, argumenta o autor, a igualdade de todos ospríncipes seculares em sua relação com Deus foi a base para a idéia erealidade do Estado soberano. Cf. TELLENBACH, op. cit., p. 350.

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cês, sob a proteção de Luís VII e do rei inglês Henrique II esuas Igrejas.

O contra-argumento de Alexandre III tinha clara inspi-ração na antiga “disputa pela investidura”. O imperador eseu antipapa, escreveu, não recearam “cortar a túnicainconsútil de Cristo-Deus”,125 isto é, despedaçar a unidadeda Igreja. Em 1159, Vítor IV foi excomungado. Seis mesesdepois, em março de 1160, Frederico I também foi expulsoda Igreja. Pesava contra o imperador a acusação de que pre-tendia sujeitar a Igreja de Deus às suas leis – e também reise príncipes de várias regiões – por meio do controle de ambasas espadas: a material e a espiritual.

Alexandre III argumentava que, se Frederico fosse bem-sucedido na tentativa de impor à Igreja seu antipapa, tornar-se-ia impossível prevenir a extensão de seus domínios sobreoutros governantes seculares. E esse era, verdadeiro ou não,um argumento de peso. A Igreja ainda declarou nulos e evi-táveis todos os seus atos até que a paz fosse refeita. Liberoutambém os seus vassalos do juramento de fidelidade e proi-biu-os de oferecer-lhe ajuda ou conselho.

Com a morte de Vítor IV, em 1164, Frederico I, ao invésde abrir negociações com o papado, logo apoiou seu suces-sor, Pascoal III (1164-68), eleito pelos cardeais rebeldes. Aslutas continuaram, com vai-e-vem de cada lado, até a recon-ciliação entre o papa Alexandre III e o Barba-Ruiva, ocorridaem Veneza, em julho de 1177. Segundo o acordado no trata-do de paz, o imperador renunciava ao antipapa, reconheciaAlexandre como pontífice católico e lhe prestaria “a devidareverência”, devendo fazer o mesmo “quanto aos seus suces-sores entronizados canonicamente”.126

125 A passagem consta da carta de Alexandre III aos lombardos, parcial-mente traduzida em SOUZA & BARBOSA, Documento 24, op. cit., p. 102.

126 Cf. o “Tratado de paz entre Frederico I e Alexandre III”, traduzido emSOUZA & BARBOSA, Documento 23, op. cit., p. 99-102.

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Os cardeais, por sua vez, absolviam-no da sentença deexcomunhão e o readmitiam na unidade católica. Embora odocumento imperial, confirmando a Paz de Veneza, pudesseser interpretado por muitos como mais uma vitória do sacer-dotium sobre o regnum, o texto restituía aos Staufen a noçãode Sacrum Imperium e se comprometia com a manutençãoda paz no Império romano. E isso era o que no fundo deseja-vam ambos os partidos em disputa.

Durante o terceiro cisma, que durou de 1159 a 1178,Alexandre III evitou a linguagem gregoriana tanto da deposi-ção quanto da superioridade papal sobre a imperial. O “inci-dente” ocorrido em Besançon – provocado pelo papa AdrianoIV ao reavivar a noção gregoriana de que o imperador eramero vassalo do papa – foi a última aparição, durante o sécu-lo XII, da teoria da supremacia papal sobre o império. A ênfa-se havia sido posta agora não mais sobre a autoridade dopapa de maneira absoluta, mas sobre os crimes que o impe-rador teria praticado e que o levaram a ser excomungado.

Ou seja, Frederico I fora excomungado não porque ti-vesse desobedecido ao papa – essa havia sido a ofensa deHenrique IV – , mas porque se mostrou “um violento perse-guidor da Igreja”. Seus súditos foram absolvidos da fidelida-de feudal não porque ele foi deposto pelo papa, mas porque,ao perseguir a Igreja, cessou de preencher a principal funçãode seu officium: já não era mais “o advogado e defensor daIgreja”. E, por isso, “devia ser chamado tirano, em vez deimperador”.127

O imperador, por sua vez, fundamentara suas reivindi-cações, durante a querela, com base em dois argumentos depeso. Recorrera à história para reclamar a anterioridade doimpério em relação à Igreja: por ser o primeiro uma institui-ção mais antiga, a Ecclesia não poderia ter autoridade sobre

127 Cf. ROBINSON, op. cit., p. 480-1.

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ele. E, com base no direito imperial romano – cujo estudo oBarba-Ruiva fizera questão de fomentar, sobretudo na Esco-la de Bolonha –, afirmara serem o reino e o império seus porgraça apenas de Deus (gratia Dei) e por meio da eleição dospríncipes.

Um minucioso estudo de M. Pacaut sobre Alexandre IIIsugere que os pronunciamentos do pontífice sobre a liberda-de da Igreja, sobre a preeminência espiritual do sumo sacer-dote e sobre o papel do governante secular tiveram comofonte principal o Decretum, do mestre Graciano.128 Emboraos escritos de Graciano devessem muito à argumentação uti-lizada por Gregório VII e seus intérpretes do fim do século XI,Alexandre III não concordava com a idéia da supremacia dopapa em assuntos seculares: preferia a concepção gelasianada independência dos dois poderes, com funções distintas.129

Sua preferência, contudo, não impediu que, na última déca-da do século XII, o Decretum viesse a se tornar o livro oficialde direito canônico da cúria papal, consultado em todas asmatérias e dificuldades.

A sobrevivência de Alexandre III no período em que es-teve exilado, insiste Robinson, dependeu da ajuda dos reissicilianos Guilherme I e II, do magnânimo Henrique II daInglaterra, mas sobretudo de Luís VII da França. Todos essesreis, constata, tal como Frederico I, insistiam que seu reinotinha sido “decretado sobre a terra pelo rei dos reis”. Duranteo cisma, Alexandre III – vulnerável e necessitado – nunca

128 PACAUT, Marcel. Alexandre III. Paris: J. Vrin, 1956. p. 320 et seq.129 Robinson sugere que parte do tom moderado adotado pelo papado ante

o poder secular durante o cisma deveu-se à presença de importantescanonistas na cúria durante a briga em questão e à sua forte herança:os estudos canônicos baseados no Decretum. Mas o resto da explica-ção, argumenta o autor, pode certamente ser encontrada no fato de quea cúria papal necessitava urgentemente de apoio financeiro e políticodos governantes seculares. Cf. ROBINSON, op. cit., p. 482.

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esteve em posição de afirmar a primazia do papa em assun-tos seculares, nem o direito papal de depor reis desobedien-tes, pois o pontífice dependia completamente de seus aliadosseculares.130

Além disso, o pontífice jamais pretendera realmenteimiscuir-se nas eleições reais. Os reis, nesse momento, nãoconstituíam uma ameaça concreta nem ao regnum nem aosacerdotium. Os poderes por eles detidos ainda não conflita-vam com a reivindicação de supremacia das duas autorida-des que de fato contavam nesse período. Diferentemente doimperador, os reis raramente haviam sido coroados pelo bis-po de Roma, o que os impedia de reclamar o compartilhamentode uma ordem divina. Mas seu apoio à causa papal termina-va por valorizá-los como “protetores” da Ecclesia. E, nesseperíodo de consolidação do papado como centro organizadorda instituição eclesiástica, sua ajuda tinha sido inestimável.

Durante o exílio, Alexandre III residira na corte do reinormando em Terracini e Agnani. Depois, na França, migrouda proteção e residência do duque de Aquitânia para a docapeto da cidadela de Paris; e mais tarde para a proteção doconde D’Anjou. Finalmente, estabeleceu-se no território capetode Sens. Por volta de 1165 retornou a Roma, mas logo tevede fugir novamente: em 1167 fora instaurado o novo antipapaPascoal III (1164-68). Alexandre morou depois disso em vá-rios reinos da Itália. Pôde retornar a Roma apenas após a Pazde Veneza (1177). A vulnerabilidade do pontífice, portanto,contribuía inegavelmente para torná-lo cauteloso e desejosode um compromisso.

No dia seguinte à sua absolvição pelo papa, Frederico Iconcordou com a efetivação da cerimônia de “confirmação docargo” (stratoris officium) – aquela que tinha hesitado em rea-lizar em 1155, sob Adriano IV. A solenidade não implicava a

130 Ibid., p. 484.

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dependência feudal do imperador ao papa, mas o reconheci-mento pelo governante secular do título do sumo pontífice esua rejeição do antipapa. Um mês depois Frederico I partici-pava de um concílio papal em que foram excomungados to-dos os cismáticos que se recusaram a reconciliar-se com aIgreja – incluído o último antipapa, Calixto III (1168-77), quepassou a chefiar uma abadia.

Apesar dos atritos entre o imperador e as cidadeslombardas de Itália, aliadas do papa, as relações entre reg-num e sacerdotium foram de relativa paz, mesmo depois damorte de Alexandre III, em 1181. Seus sucessores foram par-tidários moderados da causa alexandrina e colaboraram paraa manutenção da paz entre os dois poderes. Grande impor-tância para eles tinha adquirido a Paz de Constança, assina-da em 1183 entre as cidades lombardas e o imperador, sob opontificado de Lúcio III (1181-5). Seu resultado prático – equase imediato – foi a transformação das cidades lombardasde liga hostil em súditos leais ao imperador.

Frederico renunciou às medidas governamentais intro-duzidas na dieta de Constança em 1158 e reconheceu o di-reito de autogoverno às cidades italianas – reclamado sobre-tudo pelas Comunas que se fortaleciam. Em troca, elas lhepagariam um tributo anual e reconheceriam a suserania doimperador. Também estava garantida a paz com a Sicília,não apenas pelos esforços do papa, mas também pelo casa-mento do filho de Frederico I, Henrique VI, com a filha do reiRogério II, Constança. Lúcio III foi sucedido por Urbano III(1185-7). Seu pontificado testemunhou a última querela daIgreja com Frederico Barba-Ruiva.

O conflito com o milanês Urbano III, cuja família haviasido vítima da dizimação da cidade por Frederico I em 1162,foi motivado mais por razões pessoais do que por disputaspolítico-ideológicas. A uma provocação do papa, o Barba-Ruiva reagiu duramente, fazendo casar-se seu filho, Henri-

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que VI, e Constança da Sicília na catedral de Milão. Ele pró-prio coroou o filho co-imperador, numa cerimônia realizadapelo patriarca de Aquiléia. Frederico ameaçava com isso odireito do bispo de Roma à transmissão da dignidade impe-rial.

O papa, em resposta, mobilizou as cidades lombardascontra o imperador, rompendo a Paz de Constança. As forçasimperiais invadiram então o Patrimônio de São Pedro, sob ocomando de Henrique VI. O papa, assediado, fugiu. Os con-flitos e querelas aumentaram ainda mais. O pontífice decidiuentão viajar de Verona a Veneza, onde excomungaria o impe-rador. Mas não passou de Ferrara, onde morreu numa noitede outubro de 1187. O chanceler e cardeal Alberto de Morrafoi então eleito papa, sob o nome de Gregório VIII (1187). Suamissão era restaurar a paz entre império e papado, indispen-sável também para as pretensões do novo pontífice, reformara Ecclesia e lançar uma cruzada em ultramar. O acordo esta-va prestes a ser selado quando Gregório faleceu, em 1187,depois de apenas 57 dias de pontificado.

Sucedeu-o o bispo-cardeal da Palestrina, agora Clemen-te III (1187-91). A paz foi finalmente assinada em abril de 1189,em Estrasburgo. Em troca da promessa de coroação de seufilho, Henrique VI, como imperador, Frederico I restabelecia oPatrimônio de São Pedro ao domínio do papa. O imperador,contudo, não abriu mão do controle da Igreja alemã: pelo con-trário, garantiu-o em mais uma vitória contra as pretensõesdo papado de libertar a Igreja no território germânico. Era opreço a ser pago pela Ecclesia, mais interessada no lançamen-to bem-sucedido da Terceira Cruzada: em maio de 1189,Frederico I lançou-se na Cruzada contra Saladino – era o pri-meiro imperador reinante a participar de uma guerra santapapal. E dela nunca mais retornou: afogou-se quando cruza-va o rio Salef, na Sicília, em junho de 1190.

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Henrique VI, seu filho e sucessor, se encontrava a ca-minho de Roma para a cerimônia de coroação quando Cle-mente III morreu, em abril de 1191. Dado o novo cenárioepiscopal – o Colégio de Cardeais fora ampliado de 19 para 31membros votantes – e os vários interesses em jogo, entre eleso medo de o reino da Sicília vir a ser anexado ao Impériogermânico, o nome escolhido para a sucessão papal foi cuida-dosamente pensado: elegeu-se o mais velho dos cardeais, oromano Jacinto Bobo, nomeado Celestino III (1191-8), de modoa evitar um novo cisma. O cardeal já havia demonstrado serhábil negociador, além de agradar à – agora numerosa – baseromana da cúria.

Um dia depois de consagrado, Celestino III coroou Hen-rique VI imperador e Constança imperatriz, ainda em abrilde 1191. O ato mais relevante de seu pontificado, porém, foia restauração do domínio papal sobre a cidade de Roma,após 45 anos de batalha com a Comuna romana. HenriqueVI ainda precisou enfrentar mais três anos de lutas até podertomar posse do reino, o que ocorreu no Natal de 1194, quan-do foi coroado rei siciliano. A coroação foi assegurada pelofilho que nasceu logo depois, o futuro imperador Frederico II.

A morte prematura de Henrique VI, em 1197, pôs o pro-blema da sucessão – que o monarca pretendia tornar heredi-tária – em primeiro plano, justamente no momento em que ogovernante enfrentava uma rebelião de parte da nobrezasiciliana, conspirada também com o papa. A questão era com-plexa, pois envolvia diretamente o papado: o reino da Sicíliaera considerado nominalmente feudo papal. Em seu testa-mento – que muitas fontes defendem ter sido falsificado –, eleteria instruído a imperatriz e seu filho “a conferir ao papa e àIgreja romana todos os direitos dos reis da Sicília aos quaiseles tinham por costume”,131 incluindo a homenagem e afeudalidade recusadas por Henrique pouco antes.

131 Cf. ROBINSON, op. cit, p. 521.

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No que dizia respeito ao regnum, seu filho deveria serreconhecido imperador pelo sumo pontífice, que, em troca,recuperava as possessões ocupadas militarmente por Henri-que na região de Roma e a disputada herança de Matilde,132

até então pendente. Meses depois morria também CelestinoIII. Para o seu lugar foi eleito o cardeal Lotário de Segni, fu-turo Inocêncio III (1198-216). Ganhava força agora a novacorrente hierocrática, que depois de quarenta anos de práti-ca dualista e moderada, voltava a inflamar os ânimos dosreligiosos: era o retorno das idéias de Gregório VII – com to-dos os poderes que ele havia reivindicado para a supremaciada espada espiritual. “A unidade dos cristãos parecia maislonge do que nunca. O novo pontífice, contudo, tentaria umavez mais agrupar sob a direção do papado – como havia de-sejado cem anos antes o papa Urbano II – a cristandade divi-dida.”133

132 Matilde, condessa da Toscana, foi uma ferrenha defensora da causapapal gregoriana durante a querela da investidura. Foi no seu casteloem Canossa que aconteceu a penitência e a conseqüente absolvição doimperador Henrique IV em 1077. Por volta de 1110, Matilde submeteu-se ao governo do sucessor, Henrique V, tornando-o herdeiro de suasterras antes prometidas à Santa Sé. Ao morrer, doou todos os seusbens à Ecclesia, fato que foi motivo de longa controvérsia entre impérioe papado e que só agora teria solução. Cf. LOYN, op. cit., p. 254.

133 LE GOFF, op. cit., p. 116.

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O incessante conflito entre regnum e sacerdotium pelapretensão de supremacia dentro da comunidade cristã foiacrescido, sobretudo ao longo do século XII, de elementosnovos que forneceram munição às duas partes. Conhecidocomo o Renascimento do Século XII, o período foi marcadopor eventos e transformações importantes que influencia-riam não apenas o desenvolvimento do pensamento políti-co, mas também toda a concepção de mundo do Ocidentecristão.

Esses acontecimentos, indispensáveis para uma ade-quada compreensão da época, forjariam um respeitável ar-senal teórico e prático que seria apropriado por velhos e novosatores sociais de maneiras diversas e, por vezes, opostas.1

Entre as principais mudanças podem-se apontar o surgimentodas universidades, a recuperação do direito romano, as tra-duções de obras gregas e árabes para o latim e o incrementodas Comunas, elementos especialmente relevantes para odesenvolvimento das idéias e das instituições políticas noOcidente. Compreender esse movimento, portanto, é acom-panhar o processo por meio do qual as modernas concep-ções políticas chegaram a ser o que são – esse o objetivoprimeiro deste trabalho. Passemos então a elas.

1 A emergência da figura do rei e a reinterpretação da velha fórmula dorex in regno suo imperator est, por exemplo, ganham maior inteligibili-dade quando analisadas nesse novo contexto.

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Depois do intenso período de reformas dentro da Igre-ja,2 iniciadas pelo papa Gregório VII um século antes, novasformas de vida leigas e religiosas passaram a ser objeto daspreocupações dos habitantes da cristandade ocidental noséculo XII. A significativa diversificação de modos de vida,instituições e ordens – umas de caráter mais religioso, ou-tras mais leigas – redefiniu laços e obrigações para homens emulheres. As batalhas recentes em prol da reforma da Ecclesiativeram como conseqüência o fortalecimento da distinção,que depois se desenvolveria em separação clara, entre osâmbitos temporal e espiritual.3 “A formação de novas ordensreligiosas e de novas Comunas urbanas, a multiplicação dediferentes tipos de produtores e comerciantes, assim comode funcionários administrativos especializados, levou a umalargamento e a um novo emprego das “imagens” recebidas

2 Recentemente, os estudiosos da Idade Média têm dividido o período emquatro subperíodos, que representariam fases distintas do pensamentoe da ação: o primeiro, que iria de 1040 a 1070, diria respeito mais àreforma moral do clero, especialmente em relação à simonia e ao celiba-to; o segundo, que cobriria o período entre 1070 e 1100, é particular-mente associado aos papas Gregório VII e Urbano II e se concentrariana liberdade da Igreja em relação ao controle leigo e à supremacia dopapa dentro da Igreja; o terceiro momento, de 1100 a 1130, teria sidoum período de transição que assistiu tanto ao fim da querela das inves-tiduras quanto à crescente ênfase no monasticismo; e, por fim, o pe-ríodo que vai de 1130 a 1160, no qual teria sido marcante a intensadedicação à natureza da vida religiosa e à reforma pessoal de todos oscristãos. Cf. CONSTABLE, Giles. The reformation of the twelfth century,Cambridge: University Press, 1996. p. 4.

3 Num dos textos do Decreto, de 1140, p. ex., Graciano de Bolonha defen-dia a existência de dois tipos de cristãos: os clérigos, que seriam osverdadeiros reis e não podiam ser forçados a qualquer tipo de ação pornenhum poder secular; depois os leigos, que cultivavam a terra, casa-vam-se e a quem os clérigos deviam conduzir em direção à verdade (cf.Decreto, causa 12, q. I, c. 7).

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dos canais de poder e da relativa importância e distinção dospapéis na sociedade.”4

Esse movimento era acompanhado de uma progressi-va tensão entre tendências – competitivas – a favor da sacra-lização e da secularização na definição dos postos e funções.Crescia o número de funcionários e burocratas a serviço tan-to das coroas quanto do papado. Particularmente o ideal dacavalaria encontrava-se agora influenciado em ambas as di-reções, como se podia constatar no desenvolvimento dos ri-tuais cavalheirescos de consagração.

No início do século XII, entretanto, não havia ainda,como lembra Giles Constable, uma distinção clara entre umrenascimento secular e uma reforma religiosa, ou mesmo nasatitudes de clérigos e leigos diante da reforma.5 Entre estesúltimos, aliás, era possível encontrar alguns dos mais firmesapoiadores da reforma eclesiástica, como o fora um séculoantes o imperador Henrique IV. O período foi marcado aindapor um enorme fomento da história social da Igreja. Atitudese instituições tradicionais foram alargadas ao máximo a fimde acomodar novas formas de vida e novos sentimentos. Erauma época de experimentos, iniciativas, flexibilidade e tole-rância tanto para com os novos empreendimentos quantopara com as novas idéias.

Uma preocupação comum à época era a da naturezada vida religiosa e do ideal de perfeição pessoal. Um conjuntode valores e de modos de vida, expresso em várias institui-

4 Cf. LUSCOMBE, D. E.; EVANS, G. R. The twefth-century renaissance. In:BURNS, J. H. (Ed.). Medieval political thought (c.350-c.1450). Cambridge:University Press, 1991. p. 308.

5 Na introdução, Constable esclarece que utilizará a palavra renascimentopara se referir ao período em questão no livro, com o intuito de transmi-tir o sentido contemporâneo do termo reforma, que era, segundo ele, oque a palavra renascimento significava na concepção de mundo do ho-mem que vivia no século XII. Cf. CONSTABLE, op. cit., p. 3.

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ções, estava no coração do movimento de reforma, que podiaser vista como um esforço de “monastizar” primeiro o clero,impondo-lhe um padrão de vida antes reservado aos mon-ges, e depois o mundo todo. Religião era, na época, explicaConstable, um modo de vida, uma conversatio ou ordo, e nãoum sistema de crenças. E um religiosus era o homem queconduzia uma vida religiosa, que podia ser um regularis ouum claustralis, caso habitasse um mosteiro.

Embora soe hoje algo estranho, a vida ascética adota-da na época por monges e religiosos voltados cada vez maispara a vida monacal, fosse ela eremítica, penitente, deperegrinagem ou ainda de dedicação exclusiva aos desejosdo Senhor, não era aceita com facilidade dentro da Igreja.Homens cujo comportamento se assemelhava ao da vida dossantos não cabiam facilmente nas instituições eclesiásticasestabelecidas.6 Por essa razão também, proliferavam novascasas e ordens religiosas pela cristandade afora, dentro dasquais era possível viver de acordo com ideais e práticas pró-prios. Também a vida eremítica ganhava numerosos adep-tos. Mas a instituição eclesial ganhava importância crescentenão apenas entre religiosos, como também entre a popula-ção européia, fato que pode ser percebido quando se analisaa adoção de nomes cristãos e de santos para os recém-nasci-dos.7

6 A mais séria crítica feita durante o século XII aos cluniacenses e seusseguidores – sobretudo por monges cistercienses – dizia respeito ao fatode os primeiros desejarem ser “não monges, mas senhores [lords]”. Aprática de referir-se a monges e cânones regulares como dominus, con-ta Constable, teve início no século XII e persistiu sobretudo nas ordensbeneditinas, mesmo contra a reação de outros círculos monásticos. Ibid.,p. 28-9.

7 Constable mostra que, entre os séculos XI e XIV, cresceu vertiginosa-mente o número de crianças que recebiam nomes cristãos ou inspira-dos nos santos da Igreja. Entre os séculos XI e XII, p. ex., o número denomes cristãos cresceu 16,5% na região do Lorraine, 12% no condado

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Quando se examina o pensamento político do séculoXII, portanto, é preciso levar em consideração a diversifica-ção de ordens e instituições na sociedade. Mas não apenas amultiplicação das fundações monásticas fornecera estruturae material humano mais apto a pensar as novas realidadessociais. Também o crescimento das escolas urbanas passoua contribuir para a formação de mão-de-obra qualificada,capaz de discutir os trabalhos disponíveis de autoridadesintelectuais. Na Bíblia, nos textos dos “Pais da Igreja” e nosescritos clássicos dos pagãos, havia uma abundância de re-flexões sobre a meta da vida humana e sobre o governo dasociedade. E esse legado do pensamento era vigorosamentedisseminado por uma audiência cada vez mais ampla e maisletrada.8

Essa renovação de quadros repercutiu diretamente nomovimento de revisão dos clássicos: com esses novos profis-sionais da escrita, tornava-se possível empreender a recupe-ração do legado greco-romano, transmitido à cristandade pelosmuçulmanos, principalmente por meio da Espanha. Entre1120 e 1160, por exemplo, foram realizadas as primeiras tra-duções do árabe para o latim, sob o predomínio intelectualde João de Sevilha. Elas abarcavam sobretudo temas comoastronomia, astrologia, meteorologia e matemática. Em 1141,uma visita feita pelo monge cluniacense Pedro, o Venerável,à Espanha estreitou os laços intelectuais entre tradutoresárabes e latinos: surgia assim a versão latina do Corão.9

de Vendôme, 34,8% na Normandia, e 43,2% na Picardia do século XIII.Os dados, contudo, avisa Constable, nos induzem a pensar que nomescristãos foram adotados nos quatro cantos da Europa. Mesmo tendorepresentado “um triunfo da religião sobre a barbárie ou sobre a confor-midade social, ou ainda sobre o tribalismo medieval” dos primeiros sé-culos, alerta, é difícil dizer quanto esse raciocínio pode ser verdadeirono atual estágio da pesquisa. Ibid., p. 40 et seq.

8 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 310.9 Cf. LE GOFF, op. cit., p. 147-8.

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Em 1180, sobretudo com o “toledense” Gerardo deCremona, cresceu o interesse dos latinos pelas obras cientí-ficas e filosóficas de Aristóteles. O legado árabe ao Ocidente,argumenta Jacques Le Goff, manifestou-se, mais do que numconteúdo científico, principalmente numa “espiritualidade”,num método, que se traduzia na observação e na experiên-cia: significava o esforço por uma verdade controlada e de-monstrada pela primazia da razão.10 No fim do século XII,um certo espírito “enciclopedista” e a especialização daque-las que viriam a ser chamadas “artes liberais” e da ciênciauniam-se no humanismo nascente: a cultura urbana inte-lectualizada firmava suas bases sobretudo nas universida-des que emergiam.11

O primeiro campo a ser afetado por esse Renascimentofoi provavelmente o jurídico: a lei romana passou aos poucosa substituir as normas costumeiras tribais na maior parteda Europa. Esses costumes raras vezes tinham sido reuni-dos e alterados conscientemente. Duas influências contri-buíram para mudar a situação: em boa parte da Itália – ondeos reis alemães estiveram sempre muito presentes – sobrevi-veu a lei romana; a outra influência, também italiana, re-monta ao pontificado de Gregório VII, no qual foramproduzidas numerosas leis canônicas, destiladas e compila-das depois por Graciano no Decretum (1140).

Whitton chama atenção para um ponto de extrema re-levância no que respeita à importância adquirida pelas esco-las de direito e suas produções, que logo engrossariam osarsenais dos vários poderes em disputa. “Sua tentativa [de

10 Pedro Abelardo, filósofo e teólogo que viveu entre 1079 e 1142, é comu-mente apontado como o primeiro expoente dessa luta. Sua contribuiçãomais conhecida foram talvez os argumentos que desenvolveu, pela apli-cação da dialética, sobre a intenção dos atos como explicação para apa-rentes contradições contidas nas afirmações da Bíblia.

11 Cf. LE GOFF, op. cit., p. 149-52.

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Graciano] de reconciliar precedentes contraditórios, identifi-cando os princípios subjacentes e estendendo-os aos casosanálogos”, escreve ele, “indicava do modo mais claro possívelque o precedente não fazia a lei, embora pudesse ajudar ajustificá-la. A feitura das leis eclesiásticas era reservada aopapado, e a legislação editada por ele começava a encorajaros poderes seculares a fazer o mesmo”.12 Os contornos doque viria a ser a figura do soberano legibus solutus – quemais tarde se associaria à noção da lei como produto davoluntas princepis – começavam a se configurar.

Isto é, enquanto a produção de normas e códigos legaisfora atribuição exclusiva do imperador romano, não houvegrandes conflitos de jurisdição e a tradição se manteve. Masquando também o papado em ascensão passou a editar de-cretos vinculantes para toda cristandade, com base no mo-delo adotado – e pela Igreja preservado – dos antigos impera-dores romanos, os nascentes reinos europeus não tardarama perceber a utilidade de uma tal função nas disputas depoder e também passaram a reclamar para si o direito delegislar e decidir em matérias relativas ao bem comum. Des-sa forma, num primeiro momento, os diferentes poderes pro-curaram formular suas pretensões de supremacia em ter-mos jurídicos. Por essa razão, à época os conflitos de poderfreqüentemente apareciam, de maneira imediata, como con-flitos de jurisdição.

A recuperação e transformação do exemplo romano,contudo, não se limitou à esfera do direito: alcançou em maiorou menor escala todos os âmbitos do pensamento e da arte.Eventos presentes ou passados eram encaixados no contex-to dos eventos gerais, remontando à Criação. A moldura divi-

12 WHITTON, David. The society of Northern Europe in the High Middle Ages900-1200. In: HOLMES, G. (Ed.). The Oxford history of medieval Europe.Oxford: University Press, 1991. p. 143 – grifos meus.

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na incluía Roma. Também os historiadores romanos passa-ram a influenciar seus sucessores: a história passava a serescrita agora em termos de feitos dos grandes homens. Suasações deveriam ser avaliadas do ponto de vista do benefícioque haviam trazido para a res publica. A exigência de racio-nalidade tendia a minimizar o efeito das explicações sobre-naturais.

Esse novo “método” de interpretação da realidade, alia-do à recuperação e valorização de textos de filosofia naturaltraduzidos do grego – em especial os escritos aristotélicos –do árabe e do hebraico, oferecia ao pensamento científicouma alternativa de fato: começava a ser levada a sério a pos-sibilidade da existência de uma ordem natural das coisas naqual Deus não intervinha diretamente. Como isso podia serafirmado sem limitar a onipotência divina era uma questão aser resolvida e estava ainda sendo debatida. Mas não haviadúvida de que São Tomás e seus antecessores procurariamrespostas para o recente problema.

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As condições contextuais do século XII foram enorme-mente alteradas principalmente a partir de uma transforma-ção institucional que teve conseqüências nítidas para todasas áreas do conhecimento, e também para teoria política: afundação das universidades. O incremento da rede de esco-las, já perceptível desde o fim do século XI, constituía o em-brião de uma nova forma de vivência do exercício da ciência,que vingaria sobretudo a partir do século XIII: a universidadeeuropéia, com autonomia corporativa.

A universidade surgiu apenas no decorrer de um pro-cesso complexo e demorado. Mas onde ela aparecia, lá setransformavam de maneira fundamental as condições do tra-

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balho teórico.13 Esse novo dado institucional e social que len-tamente se impunha constituía os primórdios das “corpora-ções de artes e ofícios” que iriam marcar fortemente os sécu-los finais da Baixa Idade Média. Também cresceram, com osnovos centros de saber, as possibilidades metodológicas nasvárias ciências, fato que diversificou e transformou o hori-zonte reflexivo.

Às vezes trabalhavam na sistematização de seus res-pectivos livros de direito – no mesmo local e ao mesmo tempo– tanto juristas decretistas, ocupados do direito canônico,quanto legistas. Introduzia-se na Europa uma nova época: aera da cultura científica do direito. Os textos eram escritosmajoritariamente em latim, tal como na Alta Idade Média.Mas era agora o latim das universidades. Mesmo com todasas diferenças e oposições, os escritos exprimiam, não restadúvida, as expectativas e ambições, os interesses e horizon-tes daquele grupo de pessoas que os produziam, os liam e osutilizavam – daquela “aristocracia letrada”, como se conven-cionou chamar desde Dempf. Cada vez mais, esses letradospodiam ser percebidos como uma camada própria em quasetoda a Europa ocidental.

Um ponto relevante merece ser lembrado: a educaçãoantiga e medieval dizia respeito não apenas ao treino da mente,mas ocupava-se também do comportamento. Por isso, eratarefa das escolas, ao menos num nível elementar, adequaros homens educados ao céu e ajudá-los a viver aquela boavida na terra, esta última a preocupação comum aos teólo-gos e pensadores políticos. Assim, a ação humana correta e aerrada eram tratadas em dois campos: nas adjacênciasterrenas – ética – que conduziam ao divino – teologia. A “boavida” era em primeiro lugar aquela conduzida de maneira

13 Cf. MIETHKE, Jürgen. Der Weltanspruch des Papstes im späterenMittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 351.

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virtuosa. A vida do homem bom era vivida no amor a Deus eno amor ao seu vizinho como a si mesmo. “Esta era a prima-vera e a direção do relacionamento social, e a chave do bomcomportamento como súdito ou cidadão.”14

Os textos latinos eram utilizados basicamente de doismodos: num nível mais elementar, como “livros de exercícios”,entre os quais estavam as fábulas de Esopo e Aviano, algunsdísticos etc.; num nível mais avançado, Cícero fornecia ma-terial para idéias sobre amizade e dever,15 provocando deba-tes e sua adaptação ao contexto cristão. Outra idéia tomadade empréstimo era a afirmação ciceroniana, repetida de Pla-tão, de que não nascemos para nós mesmos sozinhos,16 queos cristãos iriam interpretar em termos do amor a Deus e anossos vizinhos. Cícero era lido juntamente com outros mo-ralistas, como Sêneca etc.

O uso feito desses autores clássicos, contudo, não seestendia ainda à sua reflexão filosófica como um todo, masrestringia-se freqüentemente à utilização como fonte de ex-certos e frases. Essa “seleção” evitava o confronto entre valo-res cristãos e pagãos e terminava enfatizando mais seuspontos de concordância e similaridade. O ideal de vida vir-

14 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 310.15 Os deveres podiam ser classificados em dois tipos: aqueles absolutos e

ligados ao bem supremo; e aqueles menos elevados, que diziam respei-to às regras concretas por meio das quais a vida prática era regulada –uma divisão não muito distante daquela noção dos cristãos monásti-cos, que separava a vida ativa da contemplativa.

16 “Mas porque, como escreveu admiravelmente Platão, não nascemos ape-nas para nós, e a pátria reivindica parte de nosso nascimento e os ami-gos outra; e, como querem os estóicos, todas as coisas geradas na terrao foram para uso dos homens, a fim de que entre si se ajudassem, nissodevemos tomar a natureza por guia: dividimos ao meio as utilidadescomuns pela troca de favores, dando e recebendo; e, ora pelas artes, orapelo trabalho, ora pela competência, unamos a sociedade dos homensentre os homens” (I.VII, 22). In: CÍCERO. Dos deveres. Trad. de AngélicaChiapeta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 14.

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tuosa conduzido nos escritos clássicos era tanto privadoquanto público. O indivíduo não podia ser verdadeiramen-te virtuoso a menos que fosse também um bom cidadão.Uma tal noção não era inteiramente contrária aos ideaiscristãos. Mas adequava-se a eles apenas e somente se ocidadão em questão fosse também o cidadão do céu, isto é,se o indivíduo fosse considerado partícipe do Corpo de Cris-to.17

Os escritos de Cícero forneciam ainda material paraum desenvolvimento recente: o renascimento das cidades,sobretudo na região do norte da Itália. Aí as aglomeraçõesurbanas tornaram-se civitates, isto é, comunidades autogo-vernadas com base nos princípios do direito civil estabeleci-do e aplicado dentro da própria cidade-república. No DeOfficiis, Cícero tinha apresentado o homem como um sernaturalmente social e cívico. E por serem os homens dotadosde razão e de capacidade de comunicação, eles eram natu-ralmente conduzidos para um tipo específico de associaçãoou comunidade.18

A associação humana, assim, estava de acordo com anatureza. Nem toda união de seres humanos, entretanto,constituía um povo. Mas onde havia o consentimento à lei eum acordo acerca das vantagens da associação, um populustinha sido constituído, ensinava Cícero no Da república.19

17 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 312.18 “Parece, contudo, que devemos antes investigar quais princípios da

natureza são próprios da comunidade e da sociedade humana. E o pri-meiro é o que notamos no concerto universal do gênero humano. Seuvínculo é a razão e a palavra que, ensinando, aprendendo, comunican-do, discutindo e julgando conciliam entre si os homens e agrupam-nosem uma comunidade natural” (I.XVI.50). In: CÍCERO, op. cit., p. 28.

19 “É pois, prosseguiu o Africano, a República coisa do povo, consideran-do, tal não todos os homens de qualquer modo congregados, mas areunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utili-dade comum. Pois bem: a primeira causa dessa agregação de uns ho-

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Tais idéias eram conhecidas, se não por outras razões, aomenos por já terem sido objeto de discussão de “Pais da Igre-ja”, como Santo Agostinho e Isidoro de Sevilha. Quando otexto da Política de Aristóteles, a respeito da naturalidade dapolis, se tornou disponível no Ocidente, na segunda metadedo século XIII, ele serviu para reforçar uma posição já fami-liar, oriunda de Cícero e da lei romana. A idéia estóica de queos homens e as coisas eram regulados pela lei natural en-controu respaldo, no século XII, entre os que definiam ascivitates como uniões de pessoas que partilhavam uma visãocomum de justiça.20

No século XII, houve muitos escritores que enfatizarampontos comuns à filosofia pagã e à doutrina cristã. PedroAbelardo (1079-1142), por exemplo, dizia que os ensinamen-tos dos antigos filósofos sobre o status rei publicae e sobre aconduta dos seus cidadãos não se opunham às Escrituras.Os preceitos morais evangélicos, sustentava, eram equiva-lentes à reforma da lei natural seguida pelos filósofos. Seusensinamentos sobre a vida ativa – o modo correto de gover-nar e de viver nas cidades – eram tão vigorosos quanto seusensinamentos sobre a vida virtuosa. Seguindo a tradição pla-tônica, Abelardo acreditava que os filósofos tinham conduzi-do os governantes das cidades a estabelecer a posse comunal

mens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto desociabilidade em todos inato: a espécie humana não nasceu para o iso-lamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo naabundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum” (I.XXV).In: CÍCERO. Da república. Trad. de A. Cisneiros. São Paulo: Abril Cultu-ral, 1973. p. 155.

20 Adelardo de Bath (1090-150), p. ex., afirmava que os homens, por meiode seu próprio bom senso, punham de lado a vida conduzida sem oapoio da lei e eram atraídos para a vida na civitas e para a aceitação deuma justiça comunal. Cf. ADELARD OF BATH. De eodem et diverso. Ed. (H.Willner. (Beiträge zur geschichte der Philosophie des Mittelalters 4/1).Münster: Aschendorf, 1903. p. 19.

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da maneira observada nos “Atos dos apóstolos”,21 mais tardesustentada por monges cristãos.

Assim como o compartilhamento das esposas na Anti-güidade contribuíra para o bem da vida comunal, afirmavaAbelardo, igualmente o governo da res publica devia tenderem direção à communis utilitas, e os governantes de umaverdadeira civitas deviam seguir a lei do amor. De Cícero,Abelardo utilizava a definição da civitas como um conciliumou coetus hominum iure sociatus. E de Platão tomava em-prestado o encorajamento dos governantes para amar e ser-vir seu povo. A vida civil, portanto, já havia se tornado objetode reflexão antes mesmo da entrada de Aristóteles.22

A doutrina da lei natural, entretanto, era familiar aosmedievais não apenas de Cícero, mas remontava a São Pauloem sua “Epístola aos romanos”,23 ao primeiro capítulo doDigesto, e ao 5° livro das Etimologias, de Isidoro de Sevilha.Graciano de Bolonha, no Decreto, seguia Isidoro ao definir alei natural como aquela lei comum a todas as nações – en-contrada em todas as terras mais por causa do instinto na-

21 “A multidão daqueles que tinham abraçado a fé tinha um só coração euma só alma e ninguém considerava como propriedade sua algum bemseu; pelo contrário, punham tudo em comum”. In: Atos dos apóstolos,4: 32. In: A Bíblia, op. cit., p. 1345.

22 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 314.23 “Todos os que pecaram sem a lei perecerão também sem a lei; todos os

que pecaram sob o regime da lei serão julgados pela lei. Não são, comefeito, os que escutam a lei que são justos diante de Deus; justificadosserão aqueles que a põem em prática. Quando pagãos, sem ter lei, fa-zem naturalmente o que a lei ordena, eles próprios fazem as vezes de leipara si mesmos, eles que não têm lei. Mostram que a obra exigida pelalei está inscrita em seu coração; a sua consciência dá igualmente teste-munho disso, assim como os seus julgamentos interiores que sucessi-vamente os acusam e os defendem. É o que aparecerá no dia em que,segundo o meu Evangelho, Deus julgará por Jesus Cristo o comporta-mento oculto dos homens.” In: Epístola aos romanos, 2: 12-6. In: ABíblia, op. cit., p. 1385.

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tural imutável dos homens do que em razão de qualquer pro-mulgação positiva.24 E ia além, adaptando a lei natural aopreceito divino básico do amor ao semelhante:

A humanidade é regida por duas coisas: pelas leis natu-rais e pelos costumes. Lei natural é aquela que está con-tida nas Escrituras, segundo a qual cada um é obrigadoa fazer para outro como quer que seja feito para si mes-mo, e proibido de fazer a outro o que não deseja que sejafeito a si mesmo.25

A definição de Graciano integrava assim a doutrina clás-sica à cristã.

Moralistas e filósofos clássicos inculcaram desse modoideais de comportamento pessoal e social. Os fatos e as lendassobre história antiga ofereciam inspiração para a reforma po-lítica e para a restauração. Entre 1144 e 1155, a Comunaromana invocou diretamente o passado clássico com o objeti-vo de restaurar o modelo governamental da Roma antiga, quan-do das disputas tanto contra o império quanto contra o papado.Também durante a reconstrução da monarquia germânica,depois da querela pelas investiduras, procurou-se reforçar a“romanidade” do império. Frederico I, o Barba-Ruiva, tinhacomo objetivo uma reformatio do Império Romano, segundoele, sagrado, independente do papado e governado de acordocom as leis do Código de Justiniano e com os costumesgermânicos. Sua autoridade legislativa sustentava-se na lexregia, e não na aprovação do papado.26

24 Nos termos de Isidoro: “Ius naturale [est] commune omnium nationum, etquod ubique instinctu naturae, non constitutione aliqua habetur” (5.4).In: ISIDORO DE SEVILHA. Etymologiarum sive originum. Ed. W. M. Lindsay.Oxford: University Press, 1989 (repr. 1929). t. I.

25 GRACIANO, Concordia discordantium canonum, D.I. In: LUSCOMBE & EVANS,op. cit., p. 314.

26 Ibid., p. 315.

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Num tal contexto de fermentação intelectual, portanto,não é de admirar que as universidades tenham logo conquis-tado tamanha relevância institucional. Edward Grant, espe-cialista em filosofia da ciência, procura mostrar em obrarecente que, ao contrário do que afirmam correntes influen-tes de interpretação científica, as “descobertas” e avançosdos cientistas modernos, sobretudo a partir do século XVII,têm raízes profundas no pensamento medieval. Mais que isso,argumenta ele, muitos dos desenvolvimentos científicos nãopoderiam ter ocorrido na Europa ocidental no século XVII seo nível da ciência e da filosofia natural tivesse permanecido oque era na primeira metade do século XII, sem as traduçõesda ciência greco-arábica e sua adoção nas universidadesnascentes.

Segundo Grant, três precondições foram cruciais parao desenvolvimento da ciência moderna: 1) a tradução de obrasgreco-arábicas sobre ciência e filosofia natural para o latim;2) a formação da universidade medieval; 3) a emergência dosfilósofos teológico-naturalistas.27 As traduções greco-arábi-cas para o latim, como é de conhecimento comum, ocorre-ram sobretudo durante os séculos XII e XIII. Boa parte dessesucesso, aliás, deveu-se aos árabes, que já haviam traduzidodo grego as obras mais relevantes para o avanço científicoque se verificaria mais tarde no Ocidente.

A segunda precondição foi a formação da universidademedieval, com sua estrutura corporativa e atividades varia-das. Nada no mundo chinês, islâmico ou na Índia, nem mes-mo no mundo antigo, diz Grant, foi comparável à instituiçãoda universidade medieval.28 Esta tornou-se possível porquea evolução da sociedade medieval tardia, tão dividida entre

27 Cf. GRANT, Edward. The foundations of modern science in the Middle Ages.Cambridge: University Press, 1996. p. 171.

28 Ibid., p. 172.

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as duas espadas, temporal e espiritual, permitia a existênciaseparada da Igreja e do Estado. As traduções viabilizavam àsuniversidades emergentes a adoção de um extenso currícu-lo, composto inicialmente das ciências matemáticas, lógica efilosofia natural. A incorporação de inúmeros tratados tra-duzidos, tanto de origem grega quanto de cientistas árabes ejudeus, permitiria a institucionalização da ciência e da filo-sofia natural nas escolas.

O currículo estabelecido para as disciplinas nas uni-versidades medievais a partir dessas traduções manteve-sepor cerca de 450 a 500 anos. Cursos de lógica, filosofia natu-ral, geometria, aritmética, música e astronomia constituíamos objetos de estudo para o bacharelado e mestrado na facul-dade de artes, a maior e mais tradicional das quatro grandesfaculdades – as outras eram a medicina, a teologia e o direito– em qualquer grande universidade. Pela primeira vez na his-tória, uma instituição havia sido criada para o ensino de ciên-cia, filosofia natural e lógica. Também era a primeira vez quese instituía um curso extenso de quatro a seis anos de edu-cação superior, fundamentado num currículo científico bási-co no qual a filosofia natural era o seu mais importantecomponente.29

Com a multiplicação das universidades a partir do sé-culo XIII, o mesmo currículo de filosofia lógico-científico-na-tural disseminou-se por toda a Europa, chegando a pontostão remotos quanto o leste da Polônia. A base desse currículoeram os textos aristotélicos sobre ciência e filosofia natural eos comentários produzidos por árabes e judeus a partir de-les.30 Tanto as faculdades de artes, voltadas para o estudo

29 Cf. MIETHKE, op. cit., p. 351-7; cf. tb. GRANT, ibid., p.172-3.30 Um tal currículo, contudo, lembra Grant, certamente não teria sido

implementado sem o consentimento tácito tanto da esfera espiritualquanto da temporal: as duas instâncias concederam às universidadespoderes extensos o bastante para que determinassem seu próprio cur

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da filosofia natural e da razão, quanto as de teologia, espe-cializadas em religião e revelação, adotaram prontamente emseus currículos as traduções de obras pagãs e, em especial,as de Aristóteles. Afinal, a cristandade já desfrutava de algu-ma familiaridade com o pensamento pagão havia tempos.Nesse momento, era relativamente consensual que nada ti-nham a temer estudando-o.31

A terceira precondição, o aparecimento de uma classede filósofos teológico-naturalistas, isto é, de indivíduos nãoapenas treinados em teologia, mas também previamente for-mados em artes ou nalgum equivalente, colocava à disposi-ção profissionais bastante qualificados para o exercício dopensar. Esses intelectuais não apenas eram formados emartes seculares – e este é um ponto importante –, mas aindaconsideravam essencial o estudo da filosofia natural para aelucidação da teologia.32 Os teólogos desfrutavam de um graurazoável de liberdade intelectual para lidar com problemascomplexos como o poder absoluto de Deus ou a aplicação daciência e filosofia natural à exegese sagrada. Essas reflexõeseram iluminadas, já desde o século XI, por um dos aconteci-mentos importantes do período, que de certo modo acompa-nhou o desenvolvimento da filosofia natural nas universida-des: a retomada e o estudo sistemático do antigo direitoromano.

rículo, para regularem-se e para estebelecerem critérios relativos aosníveis de seus estudantes e de seus docentes. Cf. GRANT, op. cit., p. 173.

31 Se os teólogos das universidades logo cedo tivessem declarado o pensa-mento aristotélico incompatível com a fé cristã, como de fato ocorrerano mundo islâmico, os textos pagãos certamente não teriam se dissemi-nado nas universidades européias, nem poderiam ter permanecido emseus currículos oficiais. E, de todo modo, os ganhos provenientes dessetipo de conhecimento revelavam-se bastante superiores às eventuaisperdas que dele decorressem: parecia útil a todos os atores e poderes.

32 Era comum exigir que o estudante que desejasse se matricular no cur-so de teologia tivesse diploma da faculdade de artes.

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O restabelecimento da jurisprudência, no final do sé-culo XI e início do XII, deu-se concomitantemente com a re-tomada das leis romanas que, mais tarde, influenciariamtambém outros corpos legais: primeiro a lei canônica eclesi-ástica, e depois as leis costumeiras feudais e locais, além danova lei da corte real inglesa. As noções romanas de res pu-blica e de lex ganharam destaque cada vez maior ao longo doséculo XII, sobretudo com a tentativa de Frederico I, o Barba-Ruiva, de restaurar o ideal do império. Um de seus atos maisimportantes para a jurisprudência da época foi a incorpora-ção dos decretos de Roncaglia, que remontavam à Questãodas Investiduras, ao Corpus Iuris Civilis.33

Também a redescoberta do Digesto, de Justiniano (c.1070), contribuiu para fomentar ainda mais um reavivamentodo estudo e da prática do direito civil romano. Os glosadorescivilistas do Digesto, seguidores de Irnério de Bolonha – res-ponsável pela separação, ocorrida por volta de 1080, do es-tudo do direito das demais artes –, haviam recriado a ciênciaracional do direito. No século XII, tanto a chancelaria impe-rial, que havia adotado a terminologia legal romana, quantoa chancelaria real ou ainda os notários do continente propa-gavam a nova jurisprudência como instrumento para solu-cionar as necessidades práticas de juízes e juristas. Os novosensinamentos penetraram com rapidez a Europa, e tambéma Ecclesia, passando a ser divulgados tanto por leigos e bu-rocratas imperiais quanto por canonistas, como o chancelerpapal Aimeric e Graciano de Bolonha.

Era em primeiro lugar a jurisprudência que forjava, aolado da teologia, os novos impulsos. O direito canônico tor-

33 O Corpus Iuris Civilis reunia duas grandes obras principais: o Digesto(ou Pandectas) e o Codex que, por sua vez, também abrigavam outroslivros de direito (cf. n. 14, cap.1).

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nou-se, ao longo do século XII, uma disciplina própria, refor-çada sobretudo pela compilação de cânones empreendida porGraciano, o Decretum. Os juristas da Igreja viam-se confron-tados, no seu trabalho cotidiano, com as conseqüências prá-ticas de reivindicações eclesiásticas como a da Doação deConstantino. Já os especialistas que seguiam o direito româ-nico – os legistas – tinham um espectro de textos da Antigüi-dade que havia ficado por muito tempo no esquecimento e osconfrontava com teoremas e concepções em parte despreza-dos – e de qualquer modo anacrônicos para a Idade Média.Assim, os jurisconsultos de ambos os direitos estavam espe-cialmente preparados para se empenhar no trabalho teóricoe nas questões políticas.34

Era nos enfrentamentos concretos entre prelados ecle-siásticos e governantes temporais pela pretensão de supre-macia, porém, que os juristas encontravam cada vez maisseu espaço. A ciência do direito, e nela sobretudo a canonís-tica, penetrava na Igreja não apenas em termos teóricos.Juntamente com o Decretum (1140), do mestre Graciano deBolonha, os canonistas eram os responsáveis pela reuniãodo novo direito que provinha da cúria pontifícia na forma dedecisões e decretos papais. Esse material tinha de ser junta-do, ordenado, comentado e trabalhado de forma científica.Sua ordenação requeria portanto formação específica.

Aos chamados decretistas – juristas que se preocupa-ram sobretudo com o Decretum – somavam-se cada vez maisos decretalistas – juristas que se preocupavam com as decre-tais do papa e sua compilação e seguiam o mesmo método dosdecretistas. Os jurisconsultos ocupados dessas tarefas acaba-ram formulando para a Igreja um direito constitucional ecle-

34 Essas novas ciências ocidentais da universidade, relata Miethke, tinhamgrande apoio social e político: a jurisprudência, p. ex., era subsumida,desde o século XII, junto com a medicina, sob as ciências consideradaslucrativas (scientiae lucrativae). Cf. MIETHKE, op. cit., p. 356-7.

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siástico que não estava, necessariamente, interessado na po-sição central do papa, mas que se orientava cada vez mais emdireção a ela. O conjunto de documentos compilados peloscanonistas integrariam, com o Decretum, o código normativocanônico, o Corpus Iuris Canonici.

A regulamentação das ordens religiosas, dos clérigos edo exercício de seu cargo, do direito de matrimônio e daspenitências eclesiásticas, entre outras, constituíam todasquestões que tinham de ser esclarecidas de acordo, simulta-neamente, com a tradição legada e com as decisões tomadasem tempos recentes na cúria romana. A resposta dada deve-ria ser capaz de resistir diante do tribunal.35 Mas o direitocanônico, como meio de regulamentação, era tão eficaz que ajuridificação parecia irresistível, sugere Miethke. O númerodas decretais papais, que correspondiam na maioria das ve-zes a uma requisição junto à cúria, aumentou ainda no sé-culo XII de forma antigamente inimaginável.36

A política promovida por alguns papas, pela cúria, pe-los bispos e por governantes leigos não era de forma algumaapenas mera aplicação de “concepções teóricas”, mesmo quese confiasse cada vez mais no debate letrado para a percep-ção dos problemas e para a formulação de suas soluções. Adisputa entre o papado e o poder temporal levou a Igreja eseus peritos eclesiásticos a uma elaboração cada vez maisprecisa de como a instituição eclesial deveria ser organizadaenquanto corporação religiosa, de como eram nela distribuí-das as competências e a que tipo de exigências a liderançada Igreja podia obrigar os seus fiéis.

35 O princípio da não-contradição era um dos problemas do desenvolvi-mento do direito que qualquer sistema com normas legais fixadas pelaescrita tinha de resolver. Mas aqui se apresentavam com uma urgênciaespecial, uma vez que os cânones de direito já eram em parte muitovelhos e ultrapassados e, mesmo assim, reivindicavam validade.

36 Cf. MIETHKE, op. cit., p. 358.

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A partir do século XII, também foram realizadas leitu-ras e comentários mais sistemáticos da Bíblia, que passavaagora a ser estudada fora dos mosteiros, numa busca metó-dica de textos que pudessem esclarecer questões de teologiaespeculativa e de reforma moral. O livro sagrado parecia atéentão ter pouco a esclarecer sobre questões políticas comple-xas como a relação entre regnum et sacerdotium.37 Em mea-dos do século, contudo, os ensinamentos bíblicos passarama ser lidos sob nova luz e aplicados a matérias relativas aopensamento político: São Paulo forneceu talvez o mais im-portante argumento bíblico relativo ao dever dos cristãos dese submeterem a um poder secular, pois, diz o texto sagrado,o governante é instituído por Deus.38

Algumas alegorias políticas já tinham sido desenvolvi-das durante a reforma gregoriana do século XI. A metáforamais influente foi provavelmente a interpretação patrísticadas duas espadas, um dos símbolos habituais da autoridadepolítica. Mas o poder eclesiástico era descrito ainda por umasérie de motivos como a palavra (verbum), a cruz, as chaves

37 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 316.38 “Seja todo homem submisso às autoridades que exercem o poder, pois

não há autoridade a não ser por Deus e as que existem são estabeleci-das por ele. Assim, aquele que se opõe à autoridade se revolta contra aordem querida por Deus, e os rebeldes atrairão a condenação sobre simesmos. Com efeito, os magistrados não são temíveis quando se faz obem, mas quando se faz o mal. Queres não ter de temer a autoridade?Faze o bem e receberás os seus elogios, pois ela está a serviço de Deuspara te incitar ao bem. Mas se fazes o mal, então teme. Pois não é emvão que ela traz a espada: castigando, está a serviço de Deus para ma-nifestar a sua cólera para com o malfeitor. Por isso é necessário subme-ter-se, não somente por temor da cólera, mas também por motivo deconsciência. Este é também o motivo pelo qual pagais impostos: os queos recebem são encarregados por Deus de se dedicarem a este ofício.Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto, as taxas, o temor, o respei-to, a cada um o que lhe deveis”. In: Epístola aos romanos, 13: 1-7. In: ABíblia, op. cit., p. 1397.

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de São Pedro, a mitra e o bastão. Ao final do século XII, osreformadores da Ecclesia já tratavam os aspectos legaisda reforma, baseados em estudos bíblicos, de uma perspec-tiva cada vez menos sobrenatural.

O teólogo parisiense Pedro, o Cantador, por exemplo,condenou a prática do julgamento por meio da tortura, pois,segundo ele, constituía uma demanda flagrante por uma in-tervenção miraculosa para um juízo de Deus.39 A reafirmaçãodo veto ao uso de provações pelos religiosos, ratificada nocânone 18 do Concílio de Latrão em 1215, refletia sem dúvi-da a poderosa influência dos ensinamentos de Pedro. Masespelhava também um amplo movimento na direção da ado-ção de procedimentos legais mais racionalizados. A própriaEcclesia contribuía, desse modo, para a secularização e aburocratização de métodos e critérios legais que, direta ouindiretamente, se refletiam no âmbito do poder político.

Ao lado da Bíblia, em termos de autoridade, estavamos escritos dos “Pais da Igreja”, dentre os quais se destaca-vam Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha, Bernardo deClaraval, entre outros. Além de ter sido um agente importan-te na promoção das leis da antiga Roma, a Ecclesia haviapassado agora a sistematizar seus próprios cânones inter-pretativos em corpos jurídicos mais ou menos coerentes.Papas juristas importantes, como Inocêncio III e IV, contri-buiriam para o surgimento de um complexo de concepçõessobre direito canônico que ganhava autoridade. A Igreja eraentendida cada vez mais como uma corporação juridicamen-te constituída, cujas relações de direito centravam-se com-pletamente no seu bispo supremo, o papa. A instituiçãoeclesiástica, como organização legal, ganhava, além disso,um caráter cada vez mais paradigmático e modelar para ou-tras áreas.

39 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 322.

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A visão de que o papa tinha de ser reconhecido como otopo e o centro do sistema foi ganhando importância central.Colaboravam para esse movimento de concentração do po-der a adoção de conceitos legais como plenitudo potestatis, opleno poder do cargo máximo – cargo no qual se preenchiatoda a competência eclesiástica. O título de successor Petriperderia, no século XIII, em grande parte, seu significado ini-cial: o de justificar a posição do cargo. A supremacia do bispode Roma aparecia na liberdade de que gozavam os pontíficespara alterar as leis ditadas por qualquer de seus predecesso-res: nenhum papa podia, na qualidade de detentor do cargo,obrigar seu sucessor.

A partir do fim do século XII, com o pontificado de Ino-cêncio III (1198-215), o sumo sacerdote passou a monopoli-zar para si a denominação vicarius Christi, que antes podiaser reivindicada por qualquer padre em virtude de sua admi-nistração sacramental. Em toda a Igreja impôs-se a concep-ção de que apenas no uso do título restrito ao papa – e apenasnesse uso – a alta reivindicação que lhe cabia tinha umabase adequada: somente nele estava a soma e a expressão detodas as competências.40 O título transferia, assim, a abran-gência desse poder pleno do Cristo como “pessoa de Deus”ao papa.

40 Em virtude de sua função súpera dentro da comunidade, recorda Ull-mann, o pontífice reclamaria mais adiante o direito de declarar nulosou inválidos os tratados entre os reis; de revogar leis seculares, como aCarta Magna; de decretar censuras eclesiásticas contra aqueles quecobrassem tributos ou cotas injustas em pontes e rios; de ordenar aosreis o envio de forças armadas em auxílio de outro monarca ou contraos pagãos e hereges; de confirmar os territórios obtidos por conquistamilitar como possessões legítimas; de obrigar às partes beligerantes ocessar-fogo e estabelecer conversações de paz; de obrigar a populaçãode um reino – mediante a mera proibição ou com ameaças de excomu-nhão – a negar obediência a seu rei etc. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p.109.

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O vicariato de Cristo na pessoa do papa, observa Ull-mann, fazia dele o ponto de intersecção entre o céu e a terra:“as chaves do reino dos céus” haviam-se convertido nas “cha-ves da lei”. Por ser Deus o autor de todas e cada uma dascoisas que existem sobre a face da terra, Inocêncio IV (1243-54) declarou que todas e cada uma das criaturas humanas –e não apenas os cristãos – estavam sujeitos ao governo dopapa, que, afirmavam os canonistas, era o monarca univer-sal de iure, embora não de facto. Como era monarca sobre acomunidade dos crentes, o papa pretendia que suas leis al-cançassem a tudo e a todos.41

A reivindicação de universalidade pelo pontífice logo iriaimpor-se aos opositores curiais e, em especial, ao imperador.Por um longo período o papado permaneceria, na prática,sozinho no cenário jurídico com a sua reivindicação de uni-versalidade. Entretanto, a lacuna que seria aberta – por voltade meados do século XIII – pelo enfraquecimento da posiçãodo imperador não havia sido de forma alguma preenchidapor um papado “vencedor”. Ao contrário: logo entrariam emcena novas forças, os reinos nacionais europeus em proces-so de consolidação, que à época estavam paulatinamente ga-nhando forma.42 “Do ponto de vista histórico”, escreve Ull-mann, “não se pode esquecer que esses conceitos – como ode soberania, de lei, de súdito, de obediência etc. – foramgestados em um contexto exclusivamente eclesiástico”.43

A teoria jurídica da monarquia papal sobre o povo cris-tão – e assim, de forma indireta, sobre o mundo – não seriatão cedo abandonada. Pelo contrário: os princípios por elacolocados podiam ser transferidos com um esforço relativa-mente pequeno para as corporações fundamentadas no go-

41 Ibid., 1983, p. 101.42 Cf. MIETHKE, op. cit., p. 359.43 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 110.

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verno temporal. A Igreja se constituiria assim, entre os sécu-los XI e XIII, num paradigma extremamente poderoso para opensamento e para a teoria política. Um paradigma que aca-baria servindo – totalmente contra as próprias reivindicações– de modelo, teórico e jurídico, para a autonomização do âm-bito da dominação política secular. E esse movimento esteveintrinsecamente ligado ao progresso da jurisprudência, disci-plina que contribuiria de forma nada marginal para o desen-volvimento da teoria política para muito além da Idade Média.44

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É muito freqüente encontrar, entre os autores que tra-tam da Idade Média, a afirmação de que teria havido, porvolta de 1250, uma “revolução aristotélica” – causada sobre-tudo pelas traduções da Ética e da Política de Aristóteles –que marcaria a ruptura entre a Idade Média e o período mo-derno. Alguns especialistas de área, como C. Nederman, D.Luscombe e G. Evans, já chamaram a atenção para esse “des-vio de interpretação”, que leva a compartimentar a históriaem “blocos” demarcados, com início e fim. A leitura susten-tada pelos partidários da “revolução aristotélica” é “um dosmais acalentados cânones interpretativos da historiografiaintelectual medieval”, escreve Nederman.45

Entre eles, podem-se mencionar alguns nomes de peso,como Q. Skinner, W. Ullmann e M. Wilks. Ullmann, por exem-plo, inicia um capítulo sobre a recuperação aristotélica nosseguintes termos:

44 Cf. MIETHKE, op. cit., p. 360.45 Cf. NEDERMAN, Cary J. Aristotelianism and the origins of “Political Science”

in the twelfth century. Journal of the History of Ideas, v. 52, p. 180,april-june 1991.

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A influência de Aristóteles da segunda metade do séculoXIII para frente forjou uma transmutação no pensamen-to que equivale a uma revolução conceitual. De fato e emteoria, o alude aristotélico no século XIII marca o divisorde águas entre a Idade Média e o período moderno.46

Ou ainda Wilks:

O que ele [o pensador leigo do século XIII] precisava nãoera mais uma teoria da correta distribuição do poder,mas uma concepção totalmente nova de sociedade; e estasó podia ocorrer quando uma revolução filosófica tivessetido lugar. Essa revolução ocorreu durante o século XIII,com a redescoberta de muitos dos trabalhos perdidos deAristóteles.47

A adoção irrestrita dessa posição traz alguns proble-mas. Os estudos historiográficos mais recentes permitem afir-mar, por exemplo, que a Ética já estava disponível em latimdesde pelo menos 1100, ou seja, 150 anos antes. Isso signi-fica dizer que vários dos conceitos aristotélicos, como o devirtude (aretê), já eram conhecidos e utilizados desde pelomenos o início do século XII. Sua influência pode ser avalia-da em textos como o Policraticus (1159), de João de Salis-bury, entre outros. Já muito antes da metade do século XIII,portanto, noções centrais do sistema moral aristotélico havi-am entrado em circulação, ou na forma de fragmentos e tra-duções indiretas, ou ainda por meio de fontes indiretas comoCícero e Boécio (480-524).

Também não constituía novidade a idéia da naturaliza-ção da sociedade política. Ao contrário do que se afirmou

46 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 152.47 Cf. WILKS. M. The problem of sovereignty in the Later Middle Ages.

Cambridge: University Press, 1964. p. 84; cf. tb. SKINNER, Q. As funda-ções do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1996. p. 617.

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durante décadas, também o “naturalismo político” – a dou-trina que sustentava emergir a associação política diretamentedas exigências da natureza humana, e não da inspiração di-vina – não foi introduzido pela recuperação da Política deAristóteles. A noção já era bastante conhecida das leiturasde autores latinos como Cícero, Sêneca e outros moralistas,em cujos trabalhos se podiam encontrar apreciações consi-deráveis sobre a naturalidade das associações humanas.Nesse sentido, é possível sustentar que o naturalismo políti-co aristotélico serviu mais para complementar do que parasuplantar tradições de pensamento preexistentes. Há muitomais continuidade do que ruptura nos processos históricos.E muito mais acúmulo do que revolução na produção doconhecimento. Isso é o que se pretende mostrar aqui.

Outro tema relevante que vinha ganhando espaço nastransformações em curso era o da independência de certasesferas do conhecimento. Não apenas a jurisprudência e ateologia se tornavam autônomas como campos legítimos deinvestigação científica, como também a ciência da política eoutras tantas artes refinavam conceitualmente seus objetos.Em textos medievais de inícios e meados do século XII, já erapossível encontrar relatos precisos sobre o lugar da políticadentro do sistema geral do conhecimento humano.48 A au-sência de um corpus filosófico sistematizado não impedia quepensadores do período se dedicassem ao exame da política,como aliás já vinha ocorrendo desde a disputa pela investi-dura. Entre esses autores, havia nomes importantes comoHugo de São Vítor, Guilherme de Conches, Domênico Gun-disalvi e João de Salisbury.

48 “Muitos autores do século XII não só perceberam que a política era umassunto separado e distinto de investigação”, escreve Nederman, “mastambém tentaram por vezes especular de modo mais genérico sobre aprópria natureza do campo político, sobre o propósito e função da polí-tica, e sobre a relação entre a política e outras formas de conhecimento‘prático’”. Cf. NEDERMAN, op. cit., 1991, p. 182.

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O processo de transmissão e difusão das idéias aristo-télicas ocorria, portanto, de forma vagarosa, e somente aospoucos foi conquistando espaço nos círculos intelectualiza-dos, em companhia de outros pensadores ilustres.49 O uni-verso das idéias disponíveis era grande e variado. O que sebuscava eram soluções adequadas para problemas contem-porâneos. E isso vários desses autores forneciam, inclusiveAristóteles. Suas idéias eram adotadas aqui e acolá, muitasvezes sem menção à fonte, ao estilo dos medievais, e dessemodo penetravam a reflexão e o dia-a-dia dos homens deletras. Assim, ao contrário do que sugerem autores impor-tantes como Tierney50 ou Canning,51 o progresso da ciência,e com ele a autonomia da política, resultava de um lento edemorado processo de absorção e adaptação de autores “clás-sicos” à realidade medieval.

Esse mundo cristão era, nesse momento, um corpo emtransformação, recebendo influxos de vários lados. A exten-

49 Além disso, outros mestres da Antigüidade, como Platão, Hipócrates,Pitágoras etc., estavam sendo traduzidos para o latim, bem como pen-sadores árabes de peso como Al-Farabi e Ibn Sina (Avicena), ilustrescomentadores dos filósofos antigos.

50 “A Política, um dos últimos trabalhos de Aristóteles a ser traduzido”,escreve Tierney, “abriu um mundo novo de pensamento para o homemmedieval. Mostrou-lhes que a teoria política não precisava ser um meroramo da jurisprudência: ela poderia ser uma ciência autônoma comrazão própria, um campo próprio de estudos para filósofos”. In: TIERNEY,B. Religion, law, and the growth of constitutional thought (1150-1650).Cambridge: University Press, 1982. p. 29.

51 “A principal inovação do pensamento político medieval tardio”, diz Canning,“foi o desenvolvimento da idéia de Estado secular como um produto danatureza política do homem. Esse conceito foi adquirido por meio daredescoberta da Política e da Ética de Aristóteles. Aristóteles forneceuuma teoria pronta [ready-made] da política e do Estado, cuja existênciase dá em uma dimensão puramente natural e mundana [this-worldly].De fato, a idéia mesma de ciência política como uma disciplina autônomae a noção do político como uma categoria da atividade e relação humanasforam o produto dessa nova visão”. In: CANNING, J. P. Introduction: politics,institutions and ideas. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 360.

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são dos laços políticos da cristandade latina durante a épocadas Cruzadas havia tornado a sociedade européia mais com-plexa e mais unificada. No século XII, como jamais ocorreraantes, conviviam, na região do Mediterrâneo, e em especialna Península Ibérica, correntes de pensamento tão diversascomo as de origens grega, islâmica, judaica e católica. Osfilósofos islâmicos, por exemplo, possuíam um leque abran-gente de trabalhos de Aristóteles e de seus comentadores,assim como de Platão e Galeno, todos em versões arábicas.Tinham, além disso, reflexões próprias que não devem sersubestimadas quando se que dar conta do pensamento polí-tico europeu na Idade Média.

No século XII, sob o predomínio do almorávida IbnRushd (Averróis), ocorria um amplo restabelecimento do pen-samento grego, especialmente do aristotélico. Estudiosos la-tinos espanhóis já haviam desenvolvido um interesse consi-derável pelos ensinamentos arábicos. Essas obras forneciamextenso material para debate teórico e prático. A vida intelec-tual da Europa cristã estava sendo profundamente afetada,nos séculos XII e XIII, pela recepção contínua das traduçõespara o latim de textos científicos e filosóficos de origemislâmica, grega e judaica. Nada era desperdiçado. No finalda Idade Média, a cristandade ocidental disporia de umalonga tradição de uso do pensamento pagão em benefíciopróprio.

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Um dos pontos ainda hoje pouquíssimo explorados porestudiosos das idéias políticas é a contribuição do pensa-mento de origem islâmica à cristandade ocidental na BaixaIdade Média. Sabe-se pouco a respeito desse encontro demundos, e o material é, entre nós, escasso, quando não des-

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conhecido. Mas um dos temas que as pesquisas recentesrevelaram tem interesse imediato para a reconstrução queaqui se empreende. Trata-se da relação de cada uma dessasconcepções de mundo, cristã ocidental e islâmica, com seusfundamentos teológicos e científicos, isto é, do modo comocada uma relacionava ciência e religião.

No mundo árabe, predominavam basicamente dois ti-pos de ciência: a islâmica, baseada no Corão e nas leis etradições islâmicas (sobretudo a sharia); e as “estrangeiras”ou pré-islâmicas, que envolviam ciência antiga grega e filoso-fia natural. As ciências estrangeiras foram traduzidas para oárabe principalmente nos séculos IX e X. A filosofia naturaldos gregos foi largamente utilizada para defender e explicar oCorão e suas doutrinas, apesar das reivindicações de auto-suficiência do livro sagrado pelos religiosos. Os teólogos mu-çulmanos encarregados de promover a harmonização entrerazão e fé, denominados mutakallimun, usavam seu conheci-mento de filosofia antiga para criticá-la. Afirmar que a filoso-fia grega era necessária para a defesa do Corão podia serentendido até como blasfêmia.52

Boa parte dos teólogos muçulmanos estava convencidade que a lógica e a filosofia natural antigas – sobretudo aaristotélica – eram incompatíveis com seu livro sagrado. Umdos pontos de conflito era a explicação da criação do mundono Corão, contrária à de Aristóteles: para o Filósofo, a eterni-dade do mundo – que não teria início nem fim – era umaverdade essencial da sua filosofia natural. Por afirmaçõescomo essa, a filosofia grega era vista com suspeita no mundoislâmico e raramente era discutida em público. Muitos doscientistas muçulmanos e filósofos naturais conhecidos, en-tre eles Ibn Sina (Avicena), eram patrocinados pela realeza enão ensinavam nas escolas. Sem o apoio de um senhor po-

52 Cf. GRANT, op. cit., p. 177-8.

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deroso e forte, esses estudiosos terminavam sujeitos a de-núncias e ataques de líderes religiosos locais que podiamofender-se com a propagação das idéias pagãs.53

Diferentemente da cristandade ocidental, a filosofia nomundo islâmico jamais se tornou uma disciplina indepen-dente. Havia fortes barreiras à disseminação sobretudo dosensinamentos de filsofia natural. Pois uma disciplina coloca-da com freqüência em oposição ao Corão não podia ter umvalor significativo para o crente. Seu estudo nunca foi insti-tucionalizado no Islão. Se a cristandade foi disseminada len-tamente, permitindo séculos de ajustamento ao mundo pagão,já a religião do Islão era transmitida com velocidade notável:em cerca de cem anos expandiu-se sobre vastas áreas, en-volvendo povos diversos, da África à Ásia. A religião muçul-mana, ao contrário da cristandade, jamais viveu qualquerperíodo de ajustamento aos ensinamentos da filosofia pagã.

Enquanto a cristandade havia nascido dentro do Impé-rio Romano e da civilização mediterrânea, além de ter estadonuma posição subordinada dentro desse império por muitosséculos, o Islão nasceu fora do raio de influência do ImpérioRomano e nunca esteve numa posição subordinada a outrasreligiões e outros governos. O Islão, diferentemente do Oci-dente cristão, não teve de se acomodar numa cultura maisampla nem de aceitar os ensinamentos gregos, que conti-nuaram sendo vistos como estranhos e potencialmente peri-gosos para a fé islâmica. No Islão, à exceção dos mutakallimun

53 A lógica, p. ex., era freqüentemente caracterizada como matéria não-teológica. Filósofos e cientistas não deviam estudar para a sua própriasatisfação, mas para servir à religião. Logo, seu estudo não era reco-mendado. Aritmética e astronomia eram aceitas, p. ex., porque eramvistas como indispensáveis à fé: a primeira como instrumento para divi-dir heranças; a segunda para obter valores para os fenômenos astronô-micos, essenciais para a determinação das horas em que deveriam serfeitas as cinco orações diárias. Cf. GRANT, op. cit., p. 179.

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e de figuras ocasionais como Al-Ghazali (1058-111), filósofosnaturais eram normalmente distinguidos dos teólogos. Filo-sofia natural era matéria para ser pensada privada e silen-ciosamente. E, de maneira mais segura ainda, sob a proteçãode um rei poderoso.54

Dentro da cristandade ocidental, ao contrário, quasetodos os teólogos profissionais eram também filósofos natu-rais, fato devido em boa medida à estrutura da universidademedieval no Ocidente. A atitude favorável da cristandade oci-dental em face da filosofia natural, contudo, não derivou ape-nas do contato prolongado, ao longo dos séculos, com opensamento pagão, e de uma acomodação a ele. Apesar desuspeitos, os ensinamentos greco-romanos não eram tidoscomo inimigos da fé cristã, e sua utilidade potencial foi reco-nhecida logo cedo.

Embora muitos homens da Ecclesia tenham proclama-do a sua superioridade em relação ao governo terreno, comoSanto Agostinho, a Igreja Católica reconheceu e aceitou aseparação entre os gládios material e espiritual, seja na for-ma de regnum et sacerdotium, seja na divisão entre os pode-res temporal e espiritual, cisão que permitiu o desenvolvi-mento de uma filosofia natural secularmente orientada. NoIslão medieval, pelo contrário, um governo propriamente se-cular inexistia: Igreja e Estado eram uma única coisa. A fun-ção do Estado era garantir o bem-estar da religião muçulma-na de modo que todos os que viviam dentro deste Estadopudessem ser bons, isto é, muçulmanos praticantes.

Como a Igreja ocidental via com bons olhos a ciência,as autoridades seculares também puderam adotar uma abor-dagem positiva desta. Religiões estritamente unitárias, comoo judaísmo e islamismo, não precisam de assistência metafí-sica nem de aparatos para expor a essência de Deus, embo-

54 Ibid., p.182.

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ra, é claro, sempre apareçam problemas que requerem al-gum grau de explicação filosófica. Mas os teólogos islâmicos,de fato, desencorajavam análises do Corão e evitavam o de-senvolvimento de uma teologia especulativa.55 Mesmo den-tro desse quadro complexo, contudo, o pensamentopolítico-filosófico árabe desenvolveu uma abordagem própriaque teria repercussões no Ocidente cristão, sobretudo noperíodo em que o domínio árabe no sul da Península Ibéricaexperimentava seu auge.

O pensamento político árabe era fortemente marcadopela influência platônica, que se tornou ainda mais forte de-pois de Al-Farabi (950). Durante o período clássico da filoso-fia islâmica (séculos X a XII), a filosofia política não foi atividademarginal, e sim predominante. Tratava-se, contudo, de umafilosofia política que servia sobretudo aos propósitos religio-sos. No Falasifa, o respeitado compêndio de filosofia, a idéiaplatônica do rei-filósofo e legislador fora assimilada à noçãodo profeta num Estado religioso ideal. Os pensadoresislâmicos incorporavam as idéias políticas gregas e transfor-mavam-nas em parte integral de seus próprios ensinamen-tos gerais.56

Al-Farabi, por exemplo, entendia o “objeto” do que sepode denominar ciência política, em termos da caracteriza-ção de diferentes tipos de Estados e governantes, com basena investigação das causas da felicidade (que no Ocidenteequivaleria ao papel do “bem comum”) e dos meios de alcançá-la pelo exercício do governo virtuoso sobre a cidade ou na-ção. Ele investigou os elementos que compunham a comuni-dade islâmica – os legisladores, a lei, os diferentes tipos deEstados – e sustentou que as funções da profecia, da legisla-ção, da filosofia e da dominação não se diferenciavam. Por

55 Ibid., p. 184.56 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 330.

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isso, deveriam estar unidas numa pessoa, um califa ideal,que seria simultaneamente profeta-legislador e rei-filósofo.57

Al-Farabi explorou ainda questões fundamentais sobrea relação e a harmonia entre filosofia, revelação e lei huma-na; estabeleceu o lugar da ciência política nas sociedadescom religião profética revelada e objetivos espirituais;pesquisou a filosofia e o pensamento político da Grécia anti-ga, especialmente o de Platão. Refletiu sobre a jihad ou guer-ra santa; propôs a analogia entre o Estado e o corpo humano.Mas não havia traduções latinas da obra de Al-Farabi dispo-níveis na Europa medieval: A enumeração das ciências, porexemplo, de sua autoria, foi traduzida para o latim porDomênico Gundisalvi apenas por volta de 1150. E uma tra-dução completa da obra só surgiu em 1175, com o toledenseGerardo de Cremona.

A mais forte influência islâmica sobre a recepção deAristóteles no Ocidente latino, entretanto, foi provavelmenteIbn Rushd (1126-98), de Córdoba, que viveu a maior partede sua vida na Espanha dos almorávidas e em Marrakesh eera conhecido entre os latinos pelo nome de Averróis. A in-fluência de sua monumental tentativa de recuperar a filoso-fia aristotélica teve vida breve no Islão. Com a sua morte ecom o declínio da influência de Al-Farabi, poucas cópias daversão arábe dos trabalhos de Ibn Rushd sobreviveram e fi-caram conhecidas. Mas seus comentários sobre Aristótelestornaram-se uma parte importante do pensamento judaico-cristão.

Em termos de doutrina política, Ibn Rushd era um se-guidor de Platão: estudou com simpatia o Estado ideal platô-

57 Criava assim uma teologia política na qual religião e filosofia se encon-travam. Também enfatizava o papel ativo que os filósofos deveriam de-sempenhar em negócios legais e políticos. E sonhava, como Dante maistarde, com uma sociedade universal baseada na fé comum e organiza-da sob um único governante: o profeta-filósofo.

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nico, acrescentando apenas que, para ele, esse Estado idealera o islâmico e teria tido origem com o profeta-legislador.Quando, no século XIII, os escolásticos latinos encontraramos comentários de Ibn Rushd sobre Aristóteles, estavam bemmais interessados em seus trabalhos sobre filosofia natural,física e metafísica do que em sua ética. Por isso, seu pensa-mento político acabou não tendo no Ocidente divulgação tãoampla como outras partes de sua obra. A entrada triunfantede Aristóteles no Ocidente latino, lembram Luscombe e Evans,e a descoberta de que o Filósofo não era apenas um merológico, mas também um filósofo natural e moral, deveu-seinicialmente aos árabes.58

Também os judeus participaram desse período fecun-do de convivência intelectual experimentado na Espanhamuçulmana. O representante mais significativo dessa cor-rente de pensamento talvez seja o pensador judaico MoisésMaimônides, nascido em Córdoba em 1135 e morto em 1204,também ele um discípulo da teoria política de Platão e Al-Farabi. Maimônides sustentava que o homem dependia deum Estado para sua perfeição e felicidade. Numa sociedadeem que se vive de acordo com a religião revelada, dizia, oprofeta assume a função política de governante e feitor da lei.Os profetas bíblicos deveriam ser vistos como filósofos dota-dos de qualidades especiais de imaginação, e a comunidadereligiosa deveria ser considerada um Estado ideal.

Como Al-Farabi, Maimônides incluía o estudo da filo-sofia e da religião na lista das ciências. Em seu Millot ha-Higgayon XIV, depois de distinguir – como Aristóteles – entrefilosofia prática e teórica, ele traçava o escopo do estudo daética, da economia e da política. E ainda introduzia um quar-to tipo de filosofia prática, que denominava “o governo dagrande religião ou das outras religiões”, que correspondia à

58 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 334.

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lei religiosa tanto islâmica quanto judaica.59 Filósofos árabesocidentais que escreviam na Espanha ou no Magreb, fossemislâmicos ou judeus, geralmente atribuíam alto valor aos es-critos de Aristóteles.

Para Maimônides, o Filósofo representava “o extremodo intelecto humano, se excetuarmos aqueles que recebe-ram inspiração divina”. Entender Aristóteles deveria ser amais alta ambição de um homem que raciocinava. No Guiados perplexos, Maimônides tentava mostrar que, corretamenteinterpretados, não há incompatibilidade entre os ensinamen-tos éticos e metafísicos de Aristóteles e os textos do Talmudee a Escritura. Quando os pensadores latinos tiveram acessoaos seus textos, impressionou-os não tanto o seu débito paracom a filosofia política ou prática de Al-Farabi, e sim suaadesão à doutrina aristotélica.60

A parte oriental do Império Romano, por sua vez, de-senvolveu um ramo da cristandade consideravelmente dife-rente da sua contrapartida ocidental. No início, a parte oriental– bizantina – e a ocidental – latina – formavam um Estadounificado, o Império Romano. Dentro desse império unifica-do, que sobreviveu até o século V d.C., a cristandade eraessencialmente una. Com o passar do tempo, o Império Ro-mano dividiu-se em duas unidades distintas e até mesmorivais. Por volta do ano 800, o império já se encontrava defato dividido entre Ocidente e Oriente. O rompimento mani-festou-se também lingüisticamente: enquanto no leste a lín-gua oficial era o grego, no oeste era o latim.

Essa divisão aparecia também na religião: a cristanda-de rachou-se em duas facções rivais, a Igreja Católica no oes-te, e a Igreja Ortodoxa Grega no leste. Diferiam, é claro, nouso da linguagem litúrgica, sendo o latim utilizado no Oci-

59 Ibid., p. 332.60 Ibid., p. 333.

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dente e o grego no Oriente. O clero oriental tinha permissãopara contrair matrimônio, o ocidental não. Na Sagrada Eu-caristia, ou missa, clérigos orientais usavam pão sem fer-mento, enquanto os católicos do Ocidente serviam pão comfermento. Na Igreja do Oriente, leigos podiam ser nomeadospatriarcas.61

A diferença mais importante entre as duas institui-ções, contudo, remonta ao início do século VI, quando aIgreja Católica alterou o “Credo de Nicene”, de 325 a.C. En-quanto a Igreja Ortodoxa declarava formalmente que o Es-pírito Santo provinha apenas “do Pai”, a Igreja do Ocidenteadicionou as palavras “e do Filho”. Declarava-se assim queo Espírito Santo provinha agora do Pai e do Filho, uma rei-vindicação que a Igreja Grega considerava objetável, porquepoderia levar à afirmação de que o Espírito Santo derivavade dois deuses distintos. A formação de duas Igrejas já erauma realidade, portanto, muito antes de 1054, quando le-gados papais, numa missão a Constantinopla, excomunga-ram o patriarca e seus aliados, que, por sua vez, condenaramos enviados papais.

Em contraste com Bizâncio, que era essencialmente umEstado teocrático, a cristandade ocidental admitia uma dife-renciação acentuada entre regnum e sacerdotium. No mundobizantino, o imperador era considerado o vice-rei de Deus eum líder sagrado. Nenhum debate significativo sobre os mé-ritos e poderes relativos de autoridades seculares versus es-pirituais ocorreu no Oriente, como acontecera no Ocidente.O imperador bizantino não só tomava todas as decisões se-culares de forma autocrática, mas ainda exercia um controlequase total sobre a administração da Igreja Grega: entre ou-tras coisas, ele podia nomear e depor os patriarcas. Em algu-

61 Durante o curso do Império Bizantino, essa prática – desconhecida doOcidente – foi utilizada 13 vezes na seleção dos 122 patriarcas deConstantinopla.

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mas ocasiões, os imperadores tentaram até mesmo modifi-car alguns dogmas da Igreja e os sacramentos, embora nun-ca de maneira bem-sucedida.62

Também a constante iminência da guerra fazia de Bi-zâncio um caso especial: as forças do império estavam cons-tantemente em guerra, defendendo um território cada vezmenor que durou mais de mil anos. Mesmo assim, Bizâncioexperimentou, em meio às disputas nos campos de batalha,um grande “renascimento intelectual” durante seus dois úl-timos séculos de existência. De modo geral, contudo, é possí-vel concordar com Runciman quando chama a atenção parao fato de que Teodoro Metochite, em seu Miscellaneaphilosophica et historica, provavelmente falava pela maioriados filósofos gregos ao declarar que “os grandes homens dopassado haviam falado tudo de modo tão perfeito que nãonos deixaram nada a dizer”.63 Essa atitude contrastava coma dos islâmicos e latinos do Ocidente, que também respeita-vam os antigos, mas estavam sempre preparados para ir alémdeles e adicionar algo à soma total do conhecimento.

Além disso, em Bizâncio, filosofia natural e ciência eramatividades reservadas a uma minúscula camada de homensleigos. Ao que tudo indica, a intelectualidade bizantina pare-cia ser formalista e pouco inovadora. De toda maneira, recor-da Grant, é relevante e apropriado reconhecer que o signifi-cado intelectual concreto dos bizantinos repousa napreservação e transmissão da tradição científica grega. Poressa contri-buição incalculável, os bizantinos foram corre-tamente chamados os “bibliotecários do mundo” na IdadeMédia européia.64 Sem eles, não resta dúvida, a história doIslão e a do Ocidente teria sido outra.

62 Cf. GRANT, op. cit., p. 187.63 Cf. RUNCIMAN, S. The last Byzantine renaissance. Cambridge: University

Press, 1970. p. 94.64 Cf. GRANT, op. cit., p. 191.

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Mas como essa herança foi apropriada pela cristanda-de ocidental? Os filósofos naturais medievais estavam inte-ressados nos modos pelos quais se podia conhecer e abordara natureza. Ou seja, naquilo que poderia ser chamado hojede “método científico”. Procuravam explicar como se chegavaà compreensão da natureza. A entrada, na segunda metadedo século XIII, da tradução latina do texto da Política de Aris-tóteles ocorreu depois que suas idéias sobre filosofia naturaltinham passado a ser correntes no Ocidente.

Mesmo antes das traduções dos escritos aristotélicos,em circulação desde pelo menos um século antes, teólogos ejuristas já enxergavam a natureza como um poder normativo,capaz de ditar leis aos homens. Alguns escritores do séculoXII já haviam construído doutrinas nas quais a ação das for-ças naturais e da lei natural tinham um papel central. Boaparte dessa influência tivera como base o acesso recente aantigos textos de medicina, astrologia, magia e alquimia, tra-duzidos de autores como Ptolomeu, Albumasar, Ibn Sina(Avicena), Al-Farabi e outros.

A ordem natural não era vista pelos estudiosos de en-tão como conflitante com a ordenação divina do mundo. “Na-tureza” era com freqüência um sinônimo para “Deus”.Graciano de Bolonha, por exemplo, igualava a lei natural àdivina. Guilherme de Conches acreditava que os trabalhosda criação deviam ser explicados pela razão e por causasnaturais, e não milagrosa ou alegoricamente. A ordem gover-naria o mundo – e por ordem “ele entendia a ordenação na-tural estabelecida por Deus”.65 A idéia de que a naturezaconstituía um poder criativo, com propósito, tinha sido assi-milada dos escritos estóicos da Antiguidade. Textos de

65 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 335.

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Macróbio e Platão deram origem ao interesse pela idéia deque o homem, como um microcosmo, refletia a estrutura domacrocosmo.66

Da tradução do Timeu, também de Platão, por Calcídioderivava a distinção entre ius naturale e ius positivum no pen-samento legal, inicialmente promovida por escolásticos fran-ceses como Guilherme de Conches,67 Hugo de São Vítor ePedro Abelardo,68 assim como por canonistas do século XII.Essa diferenciação, entre outras coisas, apontava na direçãoda perspectiva de que muitas leis passavam a valer por meiode promulgação positiva, como sugere a própria etimologiado conceito.69 A proposição de que as leis eram feitas pordecisões humanas conscientes tornara-se mais prontamen-te justificável no tempo em que a coletânea de leis romanasde Justiniano passou a estar disponível para estudo. Isto é,na época em que a legislação recente, tanto eclesiástica quantosecular, estava rapidamente se tornando uma atividade fun-damental e corriqueira.

Alan de Lille, filósofo-poeta, e também seu contempo-râneo Bernardo Silvestre de Tours ofereciam ricas visões

66 A capacidade humana de controlar a natureza passaria a ser aindamais valorizada com o desenvolvimento de técnicas agrícolas, de cons-trução, de guerra, de navegação e de comércio.

67 “Et est positiva [iustitia]”, escrevia Guilherme de Conches no seu Comen-tários ao “Timeu” de Platão, “quae est ab hominibus inventa ut suspensio[...]. Naturalis vero quae non est homine inventa ut parentum dilectio etsimilia”. In: WASZINK, J. A. (Ed.). Plato. Timaeus a Calcidio translatus com-mentarioque instructus. (Corpus platonicum Medii Aevi. Ed. Klibansky.Londinii: in aedibus Instituti Warburgiani). Leiden: Brill, 1962. p. 59.

68 “Ius quippe aliud naturale, aliud positivum dicitur [...]”. E positiva, escla-recia ele adiante, é aquela justiça que “ab hominibus institutum”. In:ABELARDO, Pedro. Dialogus inter philosophum, iudaeum et christianum.Ed. T. R. Friedrich. Sttutgart: Frommann Verlag, 1970. p. 124-55.

69 A palavra “positiva” relaciona-se ao verbo “pôr”, em latim “ponere” –“legem ponere”, “lex posita”, “lex positiva”.

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evocativas. Ambos viam o mundo material como tendo sidooriginalmente um estado caótico, carecendo de dignidade eforma. Mas a natureza, segundo eles, moldava e informavaesplendidamente o mundo da matéria. A “Senhora Nature-za”, sustentava Alan, constituía um instrumento da provi-dência – o vigário de Deus na terra – e encarregava-se daprodução das coisas viventes. Era um livro no qual se podialer que o homem tinha sido moldado à semelhança do mun-do. E o mundo era uma “máquina” criada em bom estadopela razão divina. A imagem do cosmo consistia numa mag-nífica unidade obediente a Deus, que se estendia do céu àterra, tendo a natureza como sua mediadora.70

O pensamento ocidental latino, portanto, apropriava-se dos e desenvolvia os acréscimos recentes oriundos dastraduções do grego, árabe e hebraico, muito antes mesmo deter à disposição a totalidade do corpus aristotélico, o que sóocorreria no final do século XIII, com a contribuição de Gui-lherme de Moerbecke. Essa organização sistemática do co-nhecimento, que parecia dominar os pensadores ocidentaisdo século XII, conduzia recorrentemente ao debate sobre aclassificação das disciplinas que compunham a filosofia ou“as ciências”.

Dois modelos básicos para o arranjo do conhecimentohumano estavam disponíveis à época. Uma primeira aborda-gem, derivada da leitura agostiniana de Platão, dividia a filo-sofia em três campos de conhecimento: a ética (ciência damoral), que pertenceria ao reino da ação; a física (ciência danatureza), que pertenceria ao reino da contemplação; e alógica (ciência da razão que distingue o verdadeiro do falso),

70 Cf. LILLE, Alan de. De planctu naturae. Ed. N. M. Häring. Studi medievali,série 3ª, n. 19, 1978, p. 797-879. Cf. tb. LUSCOMBE & EVANS, op. cit.,p. 337.

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que pertenceria a ambos os reinos, contemplação e ação,71

com maior inclinação para o primeiro. Agostinho construíaa disciplina “prática” da ação moral em termos familiares:ela dizia respeito ao fim apropriado da ação individual, àvirtude pessoal.72 Nessa vertente não há menção ao campopolítico. Essa divisão foi amplamente divulgada, durante aIdade Média, não apenas pelas próprias obras de Agosti-nho, mas também pelo famoso tratado Etimologias, de Isidorode Sevilha.73

Uma segunda estrutura classificatória, igualmente po-pular, podia ser identificada numa outra tradição. Essa con-cepção, derivada diretamente de Aristóteles, também come-çava com a distinção entre a investigação “contemplativa”(dedicada à busca da verdade pura) e a “ativa” ou disciplinas“práticas” (visando à conduta correta da vida).74 Nesse mo-delo, o conhecimento de tópicos como a física, matemática emetafísica (ou teologia) situava-se no campo da teoria, isto é,

71 “A [sabedoria ou ciência] ativa tem em mira organizar a vida, isto é,estabelecer costumes; a contemplativa pretende considerar as causasda natureza e a verdade pura”. E em seguida: “Uma [filosofia] é a morale diz respeito principalmente à ação; a outra, a natural, compete à con-templação; a terceira, a racional, distingue o verdadeiro do falso. Embo-ra necessária a ambas, ou seja, à ação e à contemplação, esta de modoprimordial postula o conhecimento da verdade”. In: AGOSTINHO, Santo. Acidade de Deus. Rio de Janeiro: Vozes, 1990. v. 1, p. 305.

72 “A última parte, a moral, chamada em grego ethiké, trata do bem supre-mo. Se lhe atribuímos tudo quanto fazemos, se o apetecemos por elemesmo e não por outro e se o conseguimos, não necessitamos buscaroutra coisa [senão aquilo] que nos faça felizes”. E adiante: “Basta, nomomento, dizer que Platão estabeleceu que o fim do bem é viver deacordo com a virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece eimita Deus, e que tal é a única fonte de sua felicidade”. In: AGOSTINHO, op.cit., p. 310-1.

73 Cf. ISIDORO DE SEVILHA, op. cit., 2.24.3-4.74 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de L. Vallandro e G. Bornheim,

1177a. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 201-2.

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da contemplação; e a ética, economia e política pertenciam àpráxis, ou ação prática.75 O método de classificação aristoté-lico, diferentemente do platônico-agostiniano, abraçava ex-plicitamente o conceito de política como um objeto próprio edistinto da investigação filosófica.76

Os autores medievais tinham apenas raramente, ao quetudo indica, acesso direto a tais textos de Aristóteles, so-bretudoàqueles nos quais afirmava a independência do político. Mastinham em mãos inúmeras fontes intermediárias, bastantedivulgadas na Idade Média, como o Comentário sobre o “Isagoge”de Porfírio, de Boécio77 (480-524), as Instituições, deCassiodoro78 (c.490-580), e as Etimologias, de Isidoro de Sevi-lha79 (c.560-636). As formas de categorização do conhecimen-to filosófico de Aristóteles haviam se tornado, por meio dessesautores, um assunto familiar no aprendizado medieval.

75 As categorias do conhecimento prático, mesmo inter-relacionadas, eramclaramente delimitadas: a arte da política, p. ex., não derivava direta-mente da virtude individual nem era simplesmente uma extensão dashabilidades exigidas para a administração eficiente da casa. Cf. ARISTOTLE.The politics, 1252a7-23. Ed. S. Everson. Cambridge: University Press,1996. p. 11.

76 Para Aristóteles, a Política era a “ciência mestra do bem”, o campo pri-vilegiado de estudo dentro da esfera do conhecimento prático. Cf. ARIS-TÓTELES, op. cit., 1099b, 1992, p. 28.

77 BOÉCIO, romano que viveu em Atenas e Alexandria, era profundo conhe-cedor da obra de Platão e Aristóteles e pretendia traduzir o corpus parao latim, mas morreu sem levar a cabo seu projeto. Sua influência entreos pensadores medievais, no entanto, foi imensa, e seu uso do métodoaristotélico bastante divulgado durante a Alta Idade Média. Cf. BOÉCIO,Anício M. T. Severino. In Isagogen Porphyrii commenta. Ed. S. Brant.New York: Johnson, 1966. v. 86 (1.3). (Corpus scriptorum ecclesiasticorumLatinorum; 48. Repr. d. Ausgate Vindobonae, 1906).

78 Cf. CASSIODORUS. Institutiones, 2.3.7. Ed. R. Mynors. Oxford: UniversityPress, 1977.

79 Depois da divisão clássica entre as filosofias “inspectiva” e “actualis”,compunham a segunda as ciências “moralis, dispensativa et civilis”. Cf.ISIDORO DE SEVILHA, op. cit., 2.24.10 e 2.24.16.

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O monge Hugo de São Vítor, por exemplo, em seu Di-dascalion (1120), sustentava, usando a distinção aristotéli-ca, a divisão das ciências em quatro reinos: contemplativo,prático, lógico e mecânico. São Vítor reconhecia que a dife-rença entre a política e as outras formas de conhecimentoprático era de natureza qualitativa: enquanto a ética tratavadas virtudes, do ponto de vista do indivíduo, e a economiadas circunstâncias materiais da manutenção da casa, a polí-tica se ocupava de seu próprio fim especial, o bem da esferapública. Por isso, explicava ele, o estudo da política requeriaprincípios diferentes e chegava a conclusões diversas daque-las das “ciências” da moralidade ou da administração do-méstica: a política consistia numa esfera de conhecimentoprópria e, por isso, requeria uma investigação específica.80

Guilherme de Conches (c.1080-1154), seguidor e con-temporâneo de São Vítor, utilizava no seu comentário ao Timeude Platão a mesma tipologia de Aristóteles. Mas conferia novadimensão a essa classificação ao igualar a polis à civitas.Explicitava assim a conexão, assumida por São Vítor, entre a“ciência política” e o governo das cidades. Se a polis era idên-tica à civitas, e o termo político era derivado de polis, argu-mentava Guilherme, daí se concluía que o estudo da políticadevia se ocupar especialmente de formas urbanas da comu-nidade. Sustentava ainda uma hierarquia definida para o

80 Aristóteles insistia que a polis constituía a mais alta forma de organiza-ção humana. Os pensadores medievais, mesmo confrontados com apredominância de arranjos políticos geograficamente muito mais am-plos, como reinos e impérios, com freqüência ignoravam esseensinamento do Filósofo e tentavam aplicar as conclusões de Aristóte-les sobre “corpos urbanos” pequenos e autogovernados às instituiçõesda monarquia medieval. São Vítor, diferentemente dos demais, seguiumais de perto as teses aristotélicas, defendendo que o conhecimentogerado pela ciência política era útil especialmente no governo das co-munidades urbanas. Cf. SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalion.Washington:C. H. Buttimer, 1933. p. 131 et seq.

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estudo das esferas do conhecimento. Devia-se ascender, ge-nericamente falando, dos campos práticos de investigaçãoao terreno contemplativo, e não o oposto.

Também havia, segundo Guilherme, uma hierarquiaentre as próprias disciplinas práticas:

um homem deve ser instruído primeiro em assuntosmorais por meio da ética; depois na administração deseus negócios familiares por meio da economia; e, porfim, no governo [gubernatio] das coisas por meio da po-lítica. E então, quando tiver sido treinado nessas maté-rias até a perfeição, ele deve seguir para a contempla-ção.81

O raciocínio era estritamente aristotélico. Essa orde-nação do reino do conhecimento prático reproduzia a insis-tência aristotélica de que a política era a ciência supremado bem, subsumindo todas as outras ciências práticas sobsi, já que seus fins eram superiores aos da ética e da econo-mia.

Outros autores medievais tentaram estender a aplica-ção das categorias aristotélicas da política para além da di-mensão estritamente urbana, adaptando-a ao contextomedieval. O mestre parisiense de teologia Godofredo de SãoVítor, por exemplo, em seu Microcosmus, do fim do séculoXII, explicava – depois de identificar os três tipos de conheci-mento prático – que

por meio do primeiro [ética], todo mundo está preparadopara uma relação social adequada, instruindo-os [os ho-mens] admiravelmente em ações externas; por meio dosegundo [economia], a manutenção da casa é bem orde-nada aos olhos dos homens que estão fora dela; pelo ter-

81 CONCHES, Guilherme de. In Boethium de Trinitate. In: JOURDAIN, C. (Ed.).Notices et extraits des manuscrits de la Bibliothèque Nationale. Paris: n.20, 1862, p. 74.

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ceiro [política], um povo submetido é louvavelmente mol-dado por seu príncipe, como uma árvore que dá frutos foifeita para crescer em nossa terra.82

Também o De divisione philosophiae, escrito por voltade 1150, de autoria do andaluz Domênico Gundisalvi, suge-ria um profundo conhecimento das idéias de Aristóteles aolongo do medievo. Gundisalvi, mais conhecido por suas tra-duções de textos gregos e árabes, também utilizava a distin-ção clássica entre conhecimento prático e teórico, e identificavao primeiro à ciência do que deveria ser feito para atingir obem dos homens. Na esfera prática, diferenciava entre ética,economia e política: enquanto a ética respeitava à relaçãoentre ação individual e disposições pessoais, e a economiatratava da disciplina, cuidado e instrução dentro da unidadefamiliar, a política buscava regular as ações propriamenteditas e visava à humanidade como um todo.

Numa passagem do trabalho, Gundisalvi proclamavaque o conhecimento da política pelos governantes constituíaa garantia última da bondade e felicidade humanas. A boavida na terra e a possibilidade de uma vida eterna depoisdela dependeriam da existência de uma ordem política. Olegislador devia ser uma espécie de educador moral e religio-so, dedicado à promoção da virtude e da fé entre os membrosdo corpo civil. A implicação dessa visão era a de que a ciênciada política, ciência mestra do bem, subordinaria a si a ética ea economia, pois estas últimas só se realizariam onde exis-

82 O valor da ciência do político estaria assim na postulação de novas dou-trinas para a promoção do bem público. E o estudo da política constituía,segundo Godofredo, o instrumento mais adequado por meio do qual osmonarcas podiam comandar a lealdade de seus súditos e melhorar ascondições existentes em seus reinos. Cf. DELHAYE, P. L’enseignement de laphilosophie morale au XIIe siècle. Medieval Studies, v. II, p. 77-99 (esp.p. 95-6), 1949.

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tisse uma comunidade política bem governada. A ciência dogoverno das cidades, por dizer respeito à ordenação das rela-ções entre seus habitantes, era chamada razão civil ou polí-tica, e constituía a garantia última da felicidade e bondadehumanas.83

A política, tornava-se claro, tinha passado a desfrutarde um lugar fixo como tópico de discussão filosófica a partirde inícios do século XII. As categorias aristotélicas, dissemi-nadas até então no pensamento da época, e sobretudo a dis-tinção entre as ciências, podiam ter sua influência avaliadaem textos como o Policraticus (1159), de João de Salisbury.84

Sem explicitar a divisão aristotélica entre as ciências, Salis-bury sustentava que as questões políticas – este um dos pon-tos centrais de sua obra – deviam ser tratadas como um camposeparado de investigação, sem confundirem-se com maté-rias morais ou teológicas, mesmo que existisse uma interco-nexão entre elas.

83 Embora provavelmente não conhecesse o texto da Política de Aristóte-les, Gundisalvi o mencionava: afirmava estarem contidas nele as basesda “ciência civil” da qual estava tratando, fato que apenas ratifica asuspeita de que tais textos de Aristóteles, apesar de não estarem dispo-níveis em traduções latinas, eram conhecidos nos meios intelectuais. Eque algumas de suas idéias básicas circulavam, direta ou indiretamen-te, desde os primórdios da Idade Média. Cf. GUNDISALVI, D. De divisionephilosophiae. Munique: L. Baur, 1903. p. 11-6 e p. 134-9.

84 João de Salisbury, um dos homens mais ilustrados de seu tempo, faziauso amplo de fontes antigas em seus textos. No Policraticus, reportou-semais aos textos clássicos do que às Escrituras e à Patrística para sus-tentar sua argumentação. Sua obra consistiu num tratado vasto e des-conexo que forneceu material para uma variada gama de interpretações,por vezes opostas. Luscombe e Evans assim avaliam seu livro maisconhecido: “Pretende oferecer uma teoria do Estado e ser uma enciclo-pédia histórico-literária, assim como um trabalho didático de filosofia euma dissertação sobre a relação entre lei e natureza”. É na verdade umtrabalho sui generis numa época em que se faziam muitos experimen-tos com gêneros literários. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 325-6.

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O Estado era caracterizado, em seu livro, como um fe-nômeno diretamente social, parte da ordem natural, e assimcomo um organismo suscetível a disfunções, como a tirania.Apesar de se encontrar, como homem político, em meio acontrovérsias significativas, como a que ocorreu entre o reiinglês Henrique II e o arcebispo de Canterbury Thomas Becket,João de Salisbury estava pouco envolvido em disputas obje-tivas e com os trabalhos dos contemporâneos sobre o gover-no e suas instituições: seu interesse imediato concentrava-se,sobretudo no Policraticus, em assuntos como o comporta-mento pessoal e a moralidade nas cortes.85 O objetivo daobra era fornecer um espelho para os governantes e seussúditos que os auxiliasse na correção de imperfeições moraispor meio de instruções filosóficas e exemplos de justiça.

O problema da tirania ocupou boa parte de suas refle-xões políticas. Por justificar o tiranicídio, João de Salisburytem sido apontado freqüentemente como o pensador que teriaressuscitado os valores republicanos romanos.86 Vale lembrar

85 A pouca disposição de João de Salisbury de analisar as tarefas concre-tas de governo podia ser explicada pelo fato de que o Policraticus nãotencionava ser um tratado estritamente político, mas pretendia oferecerum programa moral e político abrangente para guiar cortesãos e seusgovernantes na direção de um conhecimento correto das letras, da filo-sofia e do direito, e evitar o erro, e principalmente o modo de vida, dosepicuristas (cf. VIII: 25). Salisbury, comentam Evans & Luscombe, diri-gia-se ao que era mais relevante no mundo angevino de governo, noqual a vis et voluntas do governante (ou sua ira et malevolentia) eram osfatores principais num sistema de domínio pessoal. Cf. LUSCOMBE & EVANS,op. cit., p. 327.

86 Por recorrer tão extensamente a ensinamentos morais e políticos clássi-cos e à história, João de Salisbury tem sido apontado como o responsávelpela secularização do pensamento político medieval e pelo abandono dateologia política tradicional. Em suas reflexões sobre o microcosmo e omacrocosmo, e sobre a lei positiva e a lei natural, entretanto, ele ecoavatanto os transmissores pagãos da filosofia platônica (Cícero, Sêneca etc.)quanto o direito romano, duas grandes influências em seu pensamento.

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que o direito de resistir ao tirano constituía, em seu pensa-mento, apenas um último recurso, pois, como ele mesmo su-geria, a justiça seria feita por Deus.87 Embora a figura do tiranorefletisse fatos contemporâneos, como as disputas entre pa-pas e imperadores pela pretensão de supremacia dentro dacristandade, João de Salisbury a utilizava mais como umaespécie de figura literária e como contrapeso para pôr em rele-vo a figura do bom príncipe, este sim modelo de justiça.88

O termo política em sua linguagem era claramente uti-lizado para denotar a comunidade política secular, na qualos indivíduos se associavam uns aos outros de acordo comas leis humanas e as normas temporais. Era próprio daque-les que lidavam com os assuntos políticos, dizia ele, viver deacordo com a lei.89 A política, para João de Salisbury, sereferia essencialmente à presença e manutenção dos laçoshumanos na terra. Assuntos políticos, portanto, pertenciamao melhor e mais apropriado método para organizar institui-ções comunais, a ciência civil.

87 Depois de descrever muitos exemplos de tiranos clássicos, João de Sa-lisbury concluía: “De todas estas fontes, tornar-se-á logo evidente queadular tiranos tem sido com freqüência permitido, assim como enganá-los, e que tem sido honroso matá-los se eles não podem ser contidos deoutro modo” (VIII:18). Nos capítulos seguintes, contudo, passa a des-crever detalhadamente como Deus teria castigado muitos dos tiranosque oprimiram seus povos, sem a necessidade da intervenção humana(cf. VIII: 20,21,22). Cf. SALISBURY, J. Policraticus. Ed. e trad. Cary J.Nederman. Cambridge: University Press, 1995. p. 203-16.

88 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 328-9.89 “Por isso, Crisipo afirmou que a lei tem poder sobre todos os assuntos

divinos e humanos, razão pela qual ela preside todos os bens e todos osmales e é governante e guia das coisas assim também como dos ho-mens. [...] É apropriado para todos os que habitam a comunidade dosassuntos políticos viver de acordo com ela [a lei]. Todos estão, por estarazão, sujeitos a impedimentos, pela necessidade de que se cumpramas leis, a menos que alguém talvez imagine ter licença para fazer o mal”(IV: 2). In: SALISBURY, op. cit., p. 30.

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Isso o levava ainda a constatar que a investigação políti-ca não constituía um monopólio da sociedade cristã. Aceitavaque a crença numa “justiça política” – que envolvia a corretatarefa de distribuir responsabilidades e recompensas dentroda comunidade civil, assim como assegurar que cada um agissepara o bem do todo – não consistia num privilégio exclusivodos fiéis: era possível constituir-se como matéria de qualquerpovo, até dos pagãos, podendo existir independentemente docontexto religioso. A política, em seu pensamento, já era por-tanto um empreendimento fundamentalmente secular (cf.Policraticus, VII: 22). Essa idéia pode ser bem ilustrada na suaadoção da famosa imagem do organismo, de Plutarco, simul-taneamente para identificar e descrever a cooperação entre aspartes funcionais do corpo público.90 Uma metáfora que logofaria escola no pensamento ocidental.

90 “Pois a república, tal como Plutarco a declara, é uma espécie de corpodotado de vida pelo dom da graça divina, dirigido pelo ditame da eqüi-dade suprema e governado por uma espécie de arranjo da razão. [...]Assim, o lugar da cabeça na república é ocupado por um príncipe sujei-to apenas a Deus e àqueles que agem em Seu lugar na terra, do mesmomodo como no corpo humano a cabeça é estimulada e governada pelaalma. O lugar do coração é ocupado pelo senado, do qual procedem osprincípios dos atos bons e maus. As tarefas dos ouvidos, olhos e bocassão reivindicadas pelos juízes e governadores de províncias. As mãoscorrespondem aos oficiais e soldados. Aqueles que assistem o príncipede modo estável são comparáveis aos flancos. Tesoureiros e notários(eu falo não daqueles que supervisionam prisioneiros, mas dos encarre-gados do erário real) se assemelham à forma do estômago e dos intesti-nos; estes, se acumulam com avidez desmesurada e retêm com excessivoempenho o que acumularam, engendram enfermidades tão inumerá-veis e incuráveis que a sua infecção ameaça destruir o corpo todo. Alémdisso, os pés coincidem com os camponeses, eternamente pregados aosolo. Para eles, é especialmente necessária a atenção da cabeça, já quetropeçam mais freqüentemente em dificuldades enquanto caminhamsobre a terra em subserviência corporal; e àqueles que erguem, susten-tam e movem para frente a massa do corpo inteiro é justamente devidaproteção e apoio. Retire do corpo mais saudável a ajuda dos pés, e elenão poderá prosseguir por suas próprias forças, e sim tentará rastejarvergonhosa, inútil e repugnantemente sobre suas mãos ou senão serámovido com o auxílio de bestas” (V: II). In: SALISBURY, op. cit., p. 66-7.

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Para João de Salisbury, os bons governantes, fossemleigos ou eclesiásticos, deviam – a fim de não se tornaremtiranos – observar o que as leis determinavam e ter sempre oobjetivo de “proporcionar a todos os membros da comunida-de os bens materias e espirituais” de que necessitassem. Sa-lisbury afirmava ainda a independência dos dois poderes,temporal e espiritual, nas suas esferas próprias de ação: porserem distintos, um não devia interferir de modo algum nacompetência do outro, e deviam respeitar os direitos e privi-légios que cabiam a cada uma das instâncias, regnum e sa-cerdotium (cf. IV: 3; VI: 8,9).

O poder eclesiástico, contudo, gozaria de uma “autori-dade e dignidade moralmente superiores ao poder temporal”pelo fato de sua missão específica ser mais relevante. Poresta razão, as leis editadas pelos potentados seculares deve-riam estar em consonância não apenas com as disposiçõesdivinas, mas também com as canônicas, na função de braçoarmado da Igreja.91 O reino da política constituía, para Salis-bury, o âmbito no qual se tomavam as decisões sobre o bemda totalidade em relação às capacidades e necessidades desuas partes. Mas – e isto importa aqui – seus argumentos ecategorias para a análise dos fatos políticos, e também paraa de outras esferas do conhecimento humano, partiam depremissas já bastante “naturalizadas”, com alto grau de in-dependência em relação a uma vontade divina.

Aristóteles foi assim, sem dúvida, uma influência pri-mária na formação dos argumentos centrais da tradiçãomedieval da teoria política.92 Mas apenas a tradução de suaPolítica – e isto foi o que se tentou demostrar até aqui por

91 Cf. SOUZA, J. A. C. R.; BARBOSA, João Morais. O reino de Deus e o reino doshomens. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 86-7.

92 A “descoberta” recente de que a política constituía uma categoria im-portante da análise filosófica durante o século XII, constata Nederman,em parte desafia e em parte confirma as abordagens convencionais so-

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meio da reconstrução de linhas gerais do pensamento políti-co gerado ao longo do século XII – não pode ser vista como oato revolucionário que viria modificar a compreensão da épocasobre o assunto, ponto em que se concorda com Nederman,Luscombe e Evans, Grant e outros.

Pelo contrário: quando, na metade do século XIII, Gui-lherme de Mörbeck traduziu o texto para o latim, as idéias deAristóteles não puseram em xeque as crenças comuns a res-peito da vida pública, e sim mais reforçaram e elabororam aconcepção de política e seu estudo, que se tornou, a partir de1260, matéria tradicional e incontroversa. Justamente pornão ter sido uma fonte de contendas insuperáveis, a Políticade Aristóteles, embora provocasse polêmica, pôde ser rapi-damente assimilada e aplicada por autores medievais dasmais diversas correntes intelectuais e inclinações políticas,como Tomás de Aquino, Egídio Romano ou Marsílio de Pádua,entre muitos outros.

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Outras transformações de peso ocorridas no século XII– importantes para o desenvolvimento posterior tanto da teo-ria da soberania quanto dos nascentes Estados territoriais –foram o incremento da rede de aparatos burocráticos naEuropa e o surgimento das Comunas. Esses elementos, reu-

bre teoria política medieval. Não se pode negar, diz ele, que a emergên-cia da base conceitual e lingüística dos blocos constitutivos da teoriapolítica durante a Idade Média tenha um débito profundo com as fontesaristotélicas. Mas, uma vez disseminadas e aceitas as premissas aristo-télicas, sustenta Nederman, teve início o debate teórico sobre matériaspolíticas puramente temporais, gerando alguns dos pilares filosóficospara a idéia do Estado secular. Cf. NEDERMAN, op. cit., 1991, p. 193.

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nidos aos demais já tratados, certamente concorreram paraa aceleração do processo de desagregação feudal no conti-nente europeu, abrindo espaço para novas reivindicaçõessociais e políticas.

A burocracia real de origem romana, vale lembrar, nun-ca desaparecera por completo na Inglaterra. Sua reintroduçãono século XII, portanto, ligava-se mais aos povos do conti-nente, muito mais marcados pelas instituições do direito feu-dal. Essa burocracia agora em processo de expansão em todaEuropa era composta de um quadro regular de funcionários,nomeados para executar tarefas administrativas específicase para levar a cabo os propósitos políticos no dia-a-dia dosnegócios públicos. Esse pessoal era livremente nomeado,demissível e assalariado, além de não exercer outro cargo nofeudo e operar tanto local quanto nacionalmente.

Um escritório central, mais tarde denominado chance-laria, já existira na Inglaterra desde os tempos anglo-saxônicos. Também os governantes normandos, que a partirde 1066 passaram a ter seu órgão administrativo no territó-rio, deram continuidade a essa prática. No século XII a di-mensão da chancelaria real inglesa, que dispunha, entreoutras coisas, de efêmeros mandatos judiciais em matériafiscal, judicial e outros negócios governamentais, já era bas-tante considerável: algo em torno de 48 escribas estavamligados à função sob o governo dos reis ingleses Henrique I eHenrique II.93 Já na França essa burocracia era muito me-nos desenvolvida e só ganharia corpo com o reinado de FilipeAugusto e Luís IX, no século XIII, os quais incentivaram aformação de um quadro permanente de servidores.

Também no que se referia à administração central dofisco, a situação inglesa era bem mais adiantada do que a doresto do continente. O Tesouro, em Winchester, data com

93 Cf. VAN CAENEGEM, R. Government, law and society. In: BURNS, op. cit.,1991, p. 189.

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certeza de antes de 1066. Durante o reinado de Henrique I, o“ministério das finanças” começara a funcionar como umescritório de contabilidade central. A documentação tributá-ria mais antiga são provavelmente os Pipe Rolls, os primeirosdocumentos fiscais oficiais, datados de 1130.94 A adminis-tração local era bastante desenvolvida sobretudo em razãoda preservação, pelos reis normandos, da função do xerife,oriunda dos anglo-saxônicos. Em Flandres, por exemplo, tam-bém havia representantes locais bastante independentes, oscastelães (castellani, burggraven), e também os notários,oriundos da Germânia.

Na França, inicialmente figuraram entre os servidoreslocais os prebostos (prèvôts) e também os bailios (baillis), re-presentantes populares diretos da Coroa.95 A importânciacrescente das funções ligadas à execução da justiça, aindamais acentuada no século XII, exigia um controle cada vezmais centralizado das decisões, reduzindo o poder dos notá-veis locais.96 O fortalecimento desse elemento monárquicofoi um fenômeno comum a várias terras, mas assumiu for-

94 Dados legais referentes às terras da Coroa e dos grandes proprietárioslocais, leigos ou eclesiásticos, p. ex., já haviam sido reunidos décadasantes no livro de cadastramento iniciado em 1086 por Guilherme I. Areunião desses dados seria denominada, no século XII, Domesday Book.O documento era composto de dois extensos volumes contendo nãoapenas informações detalhadas a respeito das terras e seus proprietá-rios, como também dados sobre o campesinato de cada condado e so-bre os recursos naturais disponíveis à comunidade, como quantidadede moinhos, áreas florestais e pesqueiras etc., além de outros itens deinteresse da Coroa. Para um aprofundamento do assunto, cf. FLEMING,Robin. Domesday Book and the Law. Cambridge: University Press, 1998.

95 Para uma análise detalhada da situação francesa, cf. LEMARIGNIER, J.-F.La France médiévale: instituitions et société. Ed. G. Duby. Paris: LibrarieArmand Colin, 1970.

96 O status das cortes locais inglesas foi sendo lentamente reduzido pormeio da possibilidade de transferência dos casos para cortes mais ele-vadas, em nível nacional.

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mas muito diversas. O exemplo mais famoso é novamente ocaso inglês, em que uma rede de cortes reais com considerá-vel competência em primeira instância fez nascer uma leinacional, comum a todo o reino, a Common Law, aplicadanas cortes reais. A possibilidade de qualquer homem oumulher livre dar início a um processo na corte real – mesmocontra algum personagem poderoso do cenário local – e obterum julgamento investido da autoridade real significava, semdúvida, um considerável freio no poder dos lordes, criandoainda uma ligação especial e direta entre o povo e o monar-ca.97

Também os reis locais passaram aos poucos a produzirleis, em forma de ordenações, estatutos, decretos etc. Na con-fecção desses documentos era utilizada a linguagem e a ter-minologia imperial, oriunda do direito romano. Em decretosde 1140 editados pelo tribunal superior de Ariano, por exem-plo, para a defesa das posições do monarca siciliano, o tomjá era ditado com as seguintes palavras: “desejamos e orde-namos que recebais estas sanções fiel e ardorosamente”.98 Orei proclamava sua vontade; os vassalos e outros súditosdeveriam cumpri-la. Nos primeiros estágios desse desenvol-vimento, os assuntos mais freqüentes limitavam-se a maté-rias criminais, fiscais e feudais. O leque de abrangência sóseria ampliado mais tarde, com a consolidação das funçõesreais.

A legislação constituía, assim, um elemento politicamenteimportante para a afirmação da posição suprema do gover-nante. Essa nova realidade era percebida de maneira cada vezmais clara pelos vários poderes em disputa. Como a funçãoprimeira do governante temporal consistia em garantir a paz ea segurança de seus súditos, e para isso era preciso dispor de

97 Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 191.98 CARAVALE, M. Il regno normano di Sicilia. Ius nostrum, Roma, Giuffrè,

v. 10, p. 96, 1966.

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meios financeiros, matérias fiscais e criminais ocupavam lu-gar de destaque entre as leis do período.99 O exemplo, que setornava a cada dia mais freqüente, da produção de leis porpapas e pela cúria romana com certeza encorajava e serviade inspiração às monarquias nascentes. E o pano de fundoda nova produção legal era o direito imperial romano. O pri-meiro tratado sobre a Common Law, o de Glanvill, explicavaque o poder régio (regia potestas) precisava ser dotado de leisassim como de armas.100 A noção da união entre força e di-reito como base da autoridade política já constituía, nessemomento, uma realidade.

Outro ponto fundamental para o desenvolvimento polí-tico do Ocidente foi a emergência, no início do século XII, deuma nova forma de associação humana, estranha à realida-de feudal medieval. Tratava-se das cidades autônomas, asComunas, surgidas sobretudo no norte da Itália e na regiãode Flandres, cuja expansão, entretanto, atingiria boa partedo território europeu. No século XIII, as Comunas já haviamse tornado uma realidade bastante visível e constituíam umdesafio à antiga ordem. Seu surgimento alteraria visivelmen-te as estruturas feudais vigentes e promoveria avanços bas-tante concretos, tanto no pensamento político medieval quantona nova configuração das cidades emergentes.

Sem dúvida, a disputa pela investidura um século an-tes e o início do movimento das Cruzadas – fatores que jáhaviam colaborado para a aceleração do processo de desa-gregação do mundo feudal – influíram na afirmação dessenovo tipo de associação comunal que predominou na Euro-pa entre os séculos XIII e XIV. Nesse período, as Comunas,

99 Outros dois aspectos legislativos relevantes eram a lei feudal, que ga-rantia a proteção dos legítimos locatários e herdeiros, e as questões dejurisdição.

100 Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 194.

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cujo germe residia nas transformações econômicas ocorri-das desde o século XI, pipocaram incessantemente em todaa Europa. O incremento do comércio e, conseqüentemente,das trocas monetárias, tinha recolocado a Europa nos anti-gos caminhos romanos e nos rios navegáveis (Itália e Flandres),e tinha seu núcleo agora nas cidades, nas quais se concen-travam os mercados e centros de trocas.

Em oposição ao campo, surgia nas comunidades cita-dinas uma camada de comerciantes e artesãos não mais sujei-tos aos vínculos feudais e servis: “os ares da cidade”, diziaum ditado popular da época, “tornavam as pessoas livres”. Aevolução urbana levou os citadinos a criar associações decaráter corporativo, de modo a assegurar melhor seus inte-resses e realizar com maior segurança suas atividades. Esseprocesso era completamente novo – não havia similares nemna tradição germânica nem na romana – e assumia formasextremamente variadas.101 Em algumas zonas, a separaçãoentre campo e cidade foi mais acentuada do que em outras(por exemplo, na Inglaterra, França e Itália).

Uma característica comum a essas Comunas era o fatode constituírem uma coniuratio,102 isto é, uma associaçãoprivada que, por meio de um pacto interno, vinculava todosos membros da Comuna, e tinha caráter voluntário: só obri-gava os que aderiam a ela espontaneamente. No início, essaestrutura não chegava a coincidir com o ordenamento jurídi-co da cidade, o que evitava choques diretos com a organiza-

101 De forma geral, contudo, podiam-se distinguir três tipos de Comunas:1) a Comuna urbana, que se desenvolvia à sombra do poder dos bispos;2) a Comuna do condado, que derivava do castelo feudal; e 3) a Comunarural: associação de pequenos agricultores livres que passavam a seopor aos grandes proprietários e liberavam-se dos vínculos econômicose jurídicos que os ligavam aos senhores feudais. Cf. SAITTA, op. cit.,p. 142-3.

102 Literalmente, uma “reunião de conjurados”, de pessoas que juraramconjuntamente.

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ção pública feudal, episcopal ou imperial. A corporaçãocomunal, porém, rapidamente se expandiria a ponto de coin-cidir com a própria civitas. A cidade-república, inicialmentedominada pela aristocracia urbana, passaria, ao longo doséculo XIII, a ser governada por funcionários estrangeiros, ospodestà.

No século XII, ocorreram desenvolvimentos econômi-cos e mercantis excepcionais. O crescimento das redes demercadores, dos pequenos proprietários e artesãos superou,no período, a renda gerada pela antiga nobreza feudal. Opoder das cidades passava agora a ser assegurado tambémpelas recém-criadas “corporações” ou “artes” que, por meiode associações econômico-profissionais, garantiam os direi-tos de seus membros no mercado. Essas organizações termi-naram por regular toda a produção manufatureira e indus-trial. Essa nova camada empreendedora logo se chocaria comas associações da nobreza, que detinham o controle da justi-ça local. A solução encontrada para evitar a disputa de fac-ções foi entregar as funções judicias e a administração dascidades aos podestà, magistrados que vinham de terras es-trangeiras e eram nomeados anualmente.103

Paralelamente ao desenvolvimento das Comunas, co-meçaram a emergir, no fim do século XII, os novos Estadosmediterrâneos, militar e comercialmente em franco alarga-mento: vivia-se a agonia do milenar Império Bizantino e aexpansão do Ocidente. Em 1204, Constantinopla era con-quistada pelos guerreiros da Quarta Cruzada. A ajuda das“repúblicas marítimas” italianas na defesa de Bizâncio enfra-quecera ainda mais a posição bizantina: o Oriente fora obri-gado a criar condições cada vez mais favoráveis para Veneza,em prejuízo próprio. Era o fim das gloriosas Cruzadas, quehaviam se convertido em instrumentos de conquistas políti-

103 Cf. SAITTA, op. cit., p. 146.

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cas –104 objetivo oposto à intenção religiosa que as tinha ins-pirado.

Com o início do século XIII, tinha lugar no territórioeuropeu uma lenta transformação do mundo feudal e de suaexpressão política. Os vassalos e as cidades autônomas po-diam ser utilizados tanto para colaborar com os príncipesquanto para resistir a eles. Por isso, os domínios mais sóli-dos tendiam a ser não os mais vastos, e sim aqueles commaior equilíbrio entre o governo central e os diferentes pode-res locais. “No mundo europeu”, escreve Saitta, “em lugar daunidade [da cristandade] buscada em vão, vinha se forman-do uma pluralidade de organismos políticos e sociais”:Comunas, senhorios, principados, grandes unidades nacio-nais. “Essa pluralidade ocupa lugar proeminente na históriaeuropéia, e substitui as duas forças universais que, além domais, estiveram sempre muito longe da dominação exclusi-va.”105

Juristas civilistas e canonistas procuravam mais umamoldura teórica na qual encaixar essas comunidades citadi-nas do que uma explicação para sua emergência. Isso levouas primeiras gerações de juristas do norte da Itália a defen-der, muitas vezes até contra os seus interesses, a causa doimperador dos Staufen contra as reivindicações citadinas epontifícias.106 Pois, na tradição do direito imperial romano, a

104 A última Cruzada (a Oitava, de 1270) teve como protagonistas o impera-dor Frederico II e o rei Luís IX, da França: tornara-se claro que o gover-nante podia servir-se agora de novos recursos oferecidos pelo progressoeconômico e cultural, tanto para fazer prosperar a paz dentro de seupróprio reino quanto para saciar sua sede de conquistas.

105 SAITTA, op. cit., p. 156 – grifos meus.106 O poder imperial se via ameaçado diante do florescimento das Comunas,

sobretudo na Itália. Frederico I, o Barba-Ruiva, foi o primeiro a lançarmão das armas para impor seu domínio sobre as cidades-repúblicasitalianas. Depois de longas batalhas, firmou-se em 1183 a Paz de

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civitas era apenas uma unidade administrativa integrada aoregnum, com direitos comunais próprios pouco definidos.

Do ponto de vista de sua organização política, a cidadedesenvolveu, na forma da Comuna, um princípio de oposi-ção a formas de dominação hierarquicamente estruturadasda sociedade feudal: sua organização saía grandemente doâmbito do feudo. Por outro lado, mesmo as formas constitu-cionais citadinas mais independentes – isto é, aquelas maisprivilegiadas, como as formadas pela Liga Lombarda do nor-te da Itália ou as cidades livres alemãs – reconheciam a su-premacia do imperador e delegavam poderes ao regnum. Essaarticulação política fazia com que as cidades fossem vistaspelos contemporâneos como partes integrantes do podermonárquico imperial. Na Escola de Bolonha, o Corpus IurisCivilis, de Justiniano, o direito imperial por excelência, for-necia matéria-prima sobretudo para a solução de conflitosno âmbito do direito privado.

Nos primeiros contatos com a restauração do império,promovida sobretudo por Frederico I, já havia ficado claroque o direito romano, na qualidade de direito imperial, deviaser tomado como base para tratar o problema da legitimida-de da dominação. Os letrados em direito do norte da Itáliativeram um papel importante, por exemplo, na Reunião deNotáveis (Reichstag) de Roncaglia, em 1158. Nela, a causaimediata do imperador, a nova regulamentação dos direitosdo regnum sobre o norte da Itália – que nesse meio tempotinha-se transformado quase totalmente num mundo deComunas citadinas – ganhou fundamento legal. Entre os te-mas relevantes decididos no encontro estavam: a outorga àComuna de poderes de jurisdição do imperador e o conse-

Constança, segundo a qual as Comunas se submetiam por juramentoao poder do imperador e à investidura dos cônsules pelo império, masmantinham reconhecidos (e em vigor) seus direitos régios já conquista-dos.

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qüente recebimento da investidura de todos os portadores decargo nas cidades; e o poder de jurisdição e banimento peloimperador.

Com isso, o poder político das Comunas, baseado nojuramento da corporação dos burgueses, isto é, dos habitan-tes do burgo, foi integrado ao âmbito de dominação da reale-za e depois reunido em formas de direito feudal: os detentoresde cargos públicos citadinos, denominados com a noção le-gal romana magistratus, recebiam o privilégio da execuçãoda justiça e do banimento diretamente do imperador. Naqualidade de portadores do poder judicial, eram chamadosde iudices: sob este termo – com exceção dos portadores decargos tradicionais da alta nobreza, o conde e o visconde –podiam ser compreendidos, entre outros, os cônsules citadi-nos eleitos e os podestà investidos. O imperador proclamavaassim o monopólio da distribuição de todo poder do cargo,107

conferindo um sentido prático à velha máxima romana: Omnispotestas a principe.

Essa subordinação constitucional da Comuna ao reg-num só seria alterada no decorrer de um processo longo edemorado. Em Bolonha, por exemplo, a situação mudou ape-nas depois de os doutores em direito terem sido incluídos,sobretudo como conselheiros, na vida constitucional dasComunas citadinas. A partir daí, teve início uma tendência àvalorização do direito costumeiro, que logo se sedimentariatambém na jurisdição da cidade, o Estatuto. Contra os ve-lhos juristas, favoráveis ao imperador, erguia-se uma novacrítica. Mesmo o acordo que selara a paz, duramente con-quistada, entre a Liga Lombarda e o imperador, em Constança(1183), já havia sido objeto de discussão política. No docu-mento, as civitates tinham sido reconhecidas como portado-ras de direito.

107 Cf. DILCHER, Gerhard. Comuna e cidadania como idéia política na cidademedieval. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 331.

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O direito costumeiro (consuetudo) lhes fora concedidocomo base para o exercício do direito supremo sobre o terri-tório (regalia), e com isso também a eleição dos cônsules. Oprivilégio de investir no cargo, porém, ainda tinha de ocorrerpor meio do imperador, ao qual se prestava também o jura-mento de fidelidade. Todos os juramentos continham a pro-messa de lealdade ao poder do princeps, que, seguindo aconcepção medieval, não era ilimitado, e sim baseava-se nodireito e no costume e incluía o direito de resistência. Foijustamente a esse direito que as cidades lombardas apela-ram nas lutas contra o exercício “tirânico” do poder pelosStaufen.108

A antiga constituição municipal romana sobreviveraapenas em poucas passagens da coletânea do Corpus IurisCivilis. Mas o pensamento escolástico agora fornecia umasaída que tendia a dominar a jurisprudência: buscava-se umaretomada de conceitos genéricos (universalia), por meio dosquais se tornava possível uma harmonização entre textosconflitantes e sua aplicação prática. A noção de universitas109

como expressão da unidade humana – idéia pouco desenvol-vida no direito romano e recuperada agora pelos canonistas– era tida como adequada para todas as formações corpora-tivas, desde a universitas da cristandade até as das guildas ecorporações de ofício, passando ainda pela universitasmagistrorum et scolarium.

108 O conflito entre Frederico I e as cidades lombardas teve especial impor-tância no desenvolvimento da jurisprudência civilista, pois os respecti-vos documentos legais, das Leis de Roncaglia até a Paz de Constança,foram anexados como leis imperiais ao Corpus Iuris Civilis. Com isso,continuaram presentes no trabalho da glosa jurídica, nos comentáriose na formação conceitual e teórica ao longo de toda Idade Média.

109 Na acepção básica, “universalidade” ou “totalidade”. Vocábulo formadode “unus” + “versus” (part. pass. de “verto”), contendo a idéia de conver-ter, transformar em todo, em algo uno.

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Assim, a civitas podia também ser concebida como uni-versitas, já que o seu nome apontava para a totalidade doscidadãos (cives). A cidade concreta, como local murado, dife-rentemente, era designada com a antiga palavra romana urbs.O desenvolvimento legal do conceito de universitas na juris-prudência acabaria assim ultrapassando em muito as refle-xões iniciais do direito romano e passaria a servir tambémpara as estruturas corporativas da sociedade medieval, emespecial à realidade da Comuna citadina. Entre os séculosXII e XIV, os glosadores,110 sobretudo os civilistas, haviamproduzido inúmeros tratados sobre a posição da universitasno processo jurídico e sua responsabilidade penal nos diver-sos âmbitos legais. O problema de quem podia agir em nomeda universitas – aqui então a cidade – e da maneira de agir dequem tinha domínio sobre ela não tardou a ser levantado.

Isto é, passava a fazer parte do debate o problema darepresentação jurídica do governo da cidade e sua legitimi-dade. Aos glosadores parecia óbvio que o seu representantedevia ser, ao mesmo tempo, a cabeça – rector (condutor) oupraeses (o que preside, presidente) – da universitas. E, comotal, teria também competências no âmbito do direito público.Para os canonistas, o princípio era transmissível de formasimples para as agremiações espirituais. Do mesmo modo,valia para as universidades que estavam surgindo comouniões de estudantes e docentes. Questões antes laterais,como a representação estamental em corporações represen-tativas, tornavam-se agora relevantes.

Um pouco mais tarde, emergiria ainda o problema daformação da vontade dessa universitas, vinculada pelos ca-nonistas à voluntas da maioria. A elaboração do problema

110 Juristas que se ocupavam das glosas, curtas explicações de trechosimportantes do direito romano. Em 1224, essas glosas foram compila-das por Acursius sob o nome de Glossa ordinaria, e ainda no século XVIeram divulgadas em textos impressos.

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impunha a delimitação do âmbito corporativo comunal antea totalidade das relações jurídicas de cada um de seus mem-bros. Mais uma vez, o problema da circunscrição dos âmbi-tos público e privado era levantado, agora a partir da Comuna.Questões fundamentais do Estado constitucional moderno,como a formação de uma vontade política com a participaçãodos cidadãos e a proteção jurídica de cada um contra o poderpolítico assim formado, recorda Dilcher, eram tematizadasnesse momento em seu cerne.111

O trabalho dos legistas e canonistas contribuiu paraque características centrais das diversas corporações fossemelaboradas e reconhecidas em muitos aspectos como sendodo mesmo gênero. Isso valia para aproximações como a queocorreu entre a noção romana de universitas e as cognatassocietas e collegium. Não havia também diferenças importan-tes entre os termos communitas e commune, utilizados paradesignar a Comuna citadina, e a palavra corpus, freqüente-mente usada pelos canonistas. A associação desses elemen-tos permitia afirmar o surgimento de uma doutrina corporativae pensar uma doutrina estatal medieval geral, que mostravao caminho à concepção dogmática da pessoa jurídica do sé-culo XIX.

Esse trabalho de elaboração conceitual manifestou-sena teoria política em documentos legais de direito urbano,nos quais populus, reunião do povo, Comuna e cidade eramentendidas como relações paralelas e cambiantes, além deligarem-se a uma teoria do bem-estar comum, dentro da qual

111 No âmbito da conceituação jurídica, porém, surgiam limitações com-plexas: como explicar uma maioria constituída de pessoas, mas queaparecia como uma pluralidade de seres isolados (universitas ut universi)?E onde deveria ser projetada uma unidade colocada sobre a pluralida-de, numa corporação ou pessoa jurídica? Pois apenas esses passos pos-sibilitariam o reconhecimento do princípio da maioria. Um caminho seesboçava: a população das cidades já era tratada pelos glosadores qua-se como uma ficção jurídica. Cf. DILCHER, op. cit., p. 334.

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podiam ser encontradas expressões como “communis statuscivitas”. Esse desenvolvimento de uma “teoria da corporação”para além da concepção inicialmente predominantemente doâmbito do direito privado acelerava-se à medida que os juris-tas de ambos os lados se posicionavam acerca de questõesde legitimidade e de poder de jurisdição.112

A idéia de governo que nascia do poder supremo, apon-tada especialmente em relação ao rei da França, mas quenão excluía o exemplo das Comunas, voltava as atençõespara a legitimidade de uma dominação autônoma que desvi-ava do direito romano. Esta caminhava paralelamente à maiorintegração de noções antigas como populus, res publica, reg-num etc., à semântica jurídica e política. Da leitura aristoté-lica do século XIII seriam retiradas ainda as idéias de politiae civitas (no sentido de cidadania). Tais conceitos foram in-corporados à reflexão dos juristas acerca da fundamentaçãodo poder jurisdicional. A lex regia romana reaparecia paradefinir o direito e sua transposição ao princeps, freqüente-mente associado ao rex.

Nas comunidades citadinas, afirmava-se tanto a pri-mazia do direito costumeiro quanto do direito estatutáriocomunal frente ao direito imperial. Ao mesmo tempo, ficavaclaro que nem a doutrina aristotélica da polis nem a concep-ção romana do Estado imperial aplicavam-se totalmente aoscenários medievais: era preciso desenvolver noções que me-lhor se aplicassem à realidade. A hierarquia da organizaçãosocial ampliava-se em relação a Aristóteles: para além donível doméstico e do da aldeia, que antecediam a polis, dis-tinguia-se agora no medievo entre cidades pequenas(municipium), a cidade maior (civitas), o reino mais extenso(regnum, provincia) e o império (Imperium Romanum).

112 Ibid., p. 336.

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A designação res publica, que inicialmente couberaapenas à cidade de Roma e ao Império Romano, referia-seagora a todas as corporações citadas. E, por dizerem respeitoao comum, podiam deter também, em diferentes graus, di-reitos de jurisdição e de legislação autônomos.113 Criava-seassim um instrumental jurídico capaz de fazer a ponte entrea semântica do rex da antigüidade romana e as estruturasde dominação de fato das novas unidades de poder emergen-tes. O discurso teórico, entretanto, mantinha-se dentro doslimites da escolástica, referindo-se a todo o espectro conceitualda universitas. Isto é, à totalidade da Ecclesia e do regnumsobre as cidades e sobre as corporações e irmandades detodo tipo.

Os autores do período, geralmente engajados nos con-flitos de poder, oscilavam entre favorecer a incorporação des-sas novas entidades num ordenamento de dominaçãohierarquizado e fundamentá-las num direito autônomo. Nessemovimento estavam sendo gestadas duas noções que teriamcomo base o segundo caminho: a idéia de soberania e o con-ceito de Estado moderno. Mas esse desenvolvimento ocorria,curiosamente, a partir de um refinamento conceitual da pri-meira posição, na forma da doutrina de poder hierocrática,que se tornava a cada dia mais concreta dentro da Eclesia.Esse passo seria dado somente no fim do século XIII, iníciodo XIV, quando a sistematização filosófica dos novos elemen-tos e idéias surgidos nos séculos XI e XII ganharia formamoderna e mais adequada à realidade do fim do medievo.

Em virtude dos desenvolvimentos ocorridos até então,já havia sinais evidentes, no fim do século XII, do declínio

113 Isso valia de forma irrestrita para a cidade (civitas superiorem nonrecognoscens); de forma mais delimitada, devido à transposição do di-reito costumeiro, para a Comuna da cidade (civitas); e com restriçõesainda maiores para uma pequena cidade necessariamente dependente(municipium).

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feudal. Em toda parte, formas modernas de organização po-lítica estavam brotando e os velhos arranjos feudais torna-vam-se cada vez mais irrelevantes. Os novos reinos emergen-tes eram baseados menos em laços pessoais que sujeitavamos líderes locais ao governante do que na lealdade dos súdi-tos à Coroa. Esta seria mencionada provavelmente pela pri-meira vez de maneira abstrata numa carta real. Nela o reiLuís VII, que partira para a Segunda Cruzada (1147), lem-brava aos súditos que deviam lealdade à “Coroa”, mesmo naausência do rei.114

Os cavaleiros, guerreiros detentores de feudos, e a basesocial do feudalismo, estavam perdendo rapidamente suaimportância. Os monarcas haviam encontrado uma formamais adequada, e menos onerosa, para a defesa dos interes-ses do reino: passaram a empregar mercenários, recriaramas antigas forças camponesas não-profissionais e fomenta-ram a formação de milícias urbanas. O que restou depois dofeudalismo ter sido destituído de seu significado institucio-nal e militar foi uma forma particular de posse da terra, es-sencialmente não muito diferente da propriedade, mas regu-lada por leis de herança peculiares, como a primogenitura.Nesse contexto, novas formas de organização social, muitomais sofisticadas e complexas, tomavam corpo. E com elasnovos sistemas de poder, entre os quais um fadado a se ex-pandir, sob diferentes formas constitucionais, por toda Eu-ropa: o Estado territorial moderno.

114 A afirmação aparece numa carta real de 1147, escrita por Suger, o po-deroso abade de Saint-Denis, que foi regente durante a ausência do rei.Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 206-7; cf. tb. LOYN, op. cit., p. 339.

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O século XIII pode ser considerado o período no qual oincremento da prosperidade econômica na Europa medievalatingiu seu auge. A diminuição da fome não se deu apenaspelo desenvolvimento do comércio de grãos, mas deveu-setambém ao aumento das superfícies cultivadas e da produ-ção. A colonização germânica em direção ao leste viveu seuapogeu entre 1210-20 e 1300. O crescimento dos lucros acom-panhava o aumento das terras cultivadas. Ao mesmo tempo,ocorria uma especialização dos cultivos em determinadasregiões. O progresso técnico era acompanhado de um novoincremento nas práticas agrícolas. Nesse período, surgiramna Inglaterra e na França os primeiros tratados especializadosde economia agrícola do medievo.1

Em termos de desenvolvimento industrial, o setor têx-til, sobretudo o de tecidos de valor, crescia e se transformavacom o surgimento de novas técnicas e invenções (tear hori-zontal com pedais, torno de fiar). O crescimento dessa indús-tria têxtil foi lento e avançou mais no noroeste da Europa,

1 Essa expansão econômica foi acompanhada de um avanço do equipa-mento técnico: passava-se a utilizar agora a força hidráulica na lavou-ra. Vários instrumentos, como o “carnet” (espécie de carretilha utilizadana construção) e o “gato” (máquina para elevar fardos) foram aperfei-çoados. A pedra substituiu as antigas construções de madeira e o ferropassou a ser utilizado em larga escala na Europa. Também foram aper-feiçoadas as técnicas de extração de sal. Acentuava-se ainda a produ-ção de artigos de luxo e de produtos de alta qualidade. Cf. LE GOFF, op.cit., p. 177.

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especialmente em Flandres e na Itália setentrional e central.“Em 1297”, contabiliza Le Goff, “segundo uma petição doParlamento a Eduardo I, as rendas obtidas de lá [noroeste daEuropa] pelos ingleses eram equivalentes à metade de toda aterra; e segundo outra avaliação o valor da lã inglesa expor-tada equivalia às rendas anuais de 100.000 camponeses”.2

Também a indústria da seda floresceu no território europeu,trazida inicialmente por gregos que se instalaram em Palermo.

O uso do papel, aprendido dos muçulmanos da Espanhae da Sicília no século XII, propagou-se pela Europa ao longodo século XIII. O comércio terrestre conhecia seu ápice com osurgimento de novos meios de transporte e sobretudo de novasrotas e caminhos. O comércio marítimo também se ampliavacom o uso da bússola e dos timões. Surgiam os primeirosmapas marinhos europeus. O tamanho das embarcaçõestambém aumentara para que as cargas transportadas pu-dessem ser incrementadas. A legislação comercial acompa-nhava esses progressos da navegação, concretizando-se emdois códigos usados em Veneza em meados do século XIII: ode Jacepo Tiepolo, de 1235; e o de Raniero de Zeno, de 1255.

Também nos grandes centros comerciais urbanos co-meçava a ser esboçada uma legislação comercial que poucoa pouco se tornava oficial.3 As feiras foram dotadas de regrasextremamente sofisticadas que regulavam as relações de tro-ca dos mercadores e lhes asseguravam a estada no local. Ogrande fenômeno econômico do século XIII talvez tenha sidoo retrocesso da economia em espécie ante a economia mone-tária, evidenciada pelo aparecimento da figura do mercador.O crescimento da massa monetária em circulação na cris-tandade podia ser comprovado pelo incremento da atividade

2 Ibid., p. 182.3 “Durante todo o século XIII”, escreve Le Goff, “pode-se encontrar em

todos os campos essa característica da preocupação com a institucio-nalização, com a regulamentação e a ordem”. Ibid., p. 188.

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mineradora. A penetração dessa economia monetária no cam-po era visível no aumento das dívidas que os camponesespassaram a contrair.4 Também as rendas senhoriais em pro-duto eram agora cobradas em dinheiro.

O endividamento se dava tanto por empréstimos feitospor citadinos quanto pela pressão dos senhores, que tendiama se converter cada vez mais em rentistas do solo. Aos poucoso dinheiro disponível tornou-se insuficiente para cumprir oscontratos baseados em quantidades e valores mais elevados.Introduziu-se nessa época o “gros de prata”. Por volta de 1252,reaparecia em Gênova e Florença o “florim” de ouro; na Fran-ça, o “escudo” de ouro (1269); e em Veneza o “ducado” (1284).O “dinar” muçulmano entrava nesse momento em crise e jánão seria mais por muito tempo a moeda geral da cristandade.Na maior parte dos territórios cristãos, tanto nos Estadosmonárquicos quanto nas comunidades urbanas, o poder pú-blico se consolidava à custa do poder senhorial da aristocraciaque começava a perder prestígio e fortuna.5

A partir de meados do século XIII, o endividamento e aalienação de bens e de terras aumentaram e tornaram-seespecialmente problemático, sobretudo para a pequena no-

4 Na maior parte da Europa, essas novidades produziram um incrementoprogressivo e generalizado do endividamento dos camponeses, pois es-tes não conseguiam pagar todos os tributos devidos nem honrar oscompromissos assumidos com as parcerias. Internamente, ocampesinato se diferenciava produzindo uma camada de camponesesenriquecidos e bem-sucedidos (os “kulaks”) e, por oposição, uma cate-goria de servos pobres dominados pela proteção desses proprietáriosmais afortunados. Cf. LE GOFF, op. cit., p. 203.

5 Lentamente, a aristocracia tanto da grande quanto da pequena nobrezacavaleiresca empobrecia. Com o progresso da economia monetária, oscustos cada vez maiores dos armamentos e da vida cavaleiresca, dosprodutos de luxo que invadiam as feiras e mercados e os gastos com aconstrução de castelos e fortalezas de pedra, além dos gastos excepcio-nais com as Cruzadas, acabaram por empobrecer tanto nobres quantocavaleiros.

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breza, que passou a vender paulatinamente a sua herança.A aristocracia militar e latifundiária conseguiu manter e atémelhorar sua posição à custa dos senhores mais fracos queempobreciam. Tendiam, porém, a fechar-se como camadasocial, de modo a assegurar jurídica, política e economica-mente o resto de seu poderio. A nobreza de fato tornava-seagora a nobreza de direito, isto é, uma nobreza de sangueque se afirmava em marcas hereditárias: os brasões. Tam-bém a nomeação dos cavaleiros ficava menos acessível: sópoderia tornar-se um gentil-homem aquele cujo pai já tives-se sido cavaleiro: a sociedade feudal estratificava-se segundonovas condições e regras.

O encerramento da nobreza nessa “casta” e a alta taxade mortalidade conduziam à extinção ainda mais rápida delinhagens. Colocar os herdeiros em maior número possíveldentro da Igreja para evitar a repartição do patrimônio pas-sou a ser uma prática corrente. Ao defender a proibição da“degradação”, do exercício de uma atividade lucrativa, con-tudo, a nobreza preparava a sua extinção econômica. Aindapor cima, essa nobreza era impedida pelos burgueses urba-nos corporados de exercer alguma arte mecânica ou o co-mércio. A manutenção de seu status isolava assim a nobrezadas transformações econômicas. Em fins do século XIII, essaaristocracia voltaria a abrir-se, admitindo em suas casas efamílias burgueses enriquecidos.

O auge urbano no século XIII foi impelido também poruma onda demográfica ascendente. A população européia,entre 1200 e 1300, passou de 61 milhões para 73 milhões dehabitantes. A aceleração demográfica quase dobrou em Fran-ça, Alemanha e Inglaterra. Ao mesmo tempo que contribuíapara o crescimento das cidades, já que o campo estava satu-rado, esse aumento demográfico gerava também, pelo incre-mento da demanda, uma elevação dos preços dos produtosagrícolas, encarecendo ainda mais o custo de vida da popu-

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lação. A espinha dorsal da sociedade urbana, no século XIII,era constituída pela emergente burguesia das corporaçõescitadinas.6

Também o clima intelectual se transformava: a lei ro-mana e os desenvolvimentos de filosofia natural forneciaminstrumentos novos para a análise social e para uma novaabordagem política. Cada vez mais, a comunidade políticaera a res publica, e o princeps, seu primeiro magistrado. Aemergência desses poderes urbanos alterava a realidade so-cial, reduzindo a importância relativa da nobreza rural e dacavalaria. A sociedade européia passava a ser formada nãoapenas por cavaleiros e camponeses, mas também por umarica e bem-educada burguesia e por uma burocracia peque-na, mas em franca expansão.

A abundância de dinheiro e o incremento das taxaçõesmostravam que a concessão da terra estava se tornando ob-soleta como técnica de gratificação de soldados. Mercenárioseram mais fáceis de tratar, de recrutar e de demitir. E, seessa forma de recrutamento parecia ser um rebaixamentopara os cavaleiros associados às formas mais tradicionais, ofeudo mercantil oferecia a solução perfeita: o vassalo recebiaagora, em vez de um feudo de terra, uma remuneração regu-lar. O feudo não era alienável nem era mais hereditário, oque garantia aos reis uma margem ampla de flexibilidade e

6 Um pequeno número de famílias urbanas formava agora o “patriciadolocal”, controlando as principais fontes de poder social e político. Esse“patriciado” era formado basicamente de três grupos: os mercadores, osministeriais e os proprietários de terras livres. Esses patrícios forma-riam agora as assembléias políticas que governariam as cidades. “Osabusos desta camada de mercadores ricos donos das cidades eram taisque justificavam, como em França por exemplo, a intromissão do poderreal nas finanças urbanas, finanças estas que eles saqueavam e arrui-navam, curvando com impostos e taxações o povo baixo”. In: LE GOFF,op. cit., p. 208.

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assegurava a dependência do locatário, já que tirá-lo das ter-ras e cortar seu pagamento tinha se tornado mais fácil.7

A emergência dos Estados modernos eliminaria boaparte das normas e valores feudais. Mesmo assim, em nos-sas modernas instituições políticas sobreviveria ao menosum elemento que remontava diretamente a essas origens feu-dais: a noção de que a relação entre governantes e cidadãosse baseava no contrato mútuo, o que significava terem osgovernos direitos e deveres, e ser legítima a resistênciaaos governantes ilícitos que quebrassem esse contrato. O rei,fosse majestoso ou ungido, era também um senhor feudalque tinha relações contratuais com seus homens e, por ex-tensão, com a nação. Mas até que se chegasse no Estadoterritorial moderno, algumas transformações políticas fun-damentais ainda teriam lugar, a principal delas a disputapelo poder último de fazer cumprir a justiça, isto é, nos ter-mos dos medievais, pelo “vicariato de Cristo” na terra.

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Do ponto de vista do desenvolvimento das idéias políti-cas, o século XIII marcava a consolidação da tendência, exis-tente na Ecclesia desde a reforma gregoriana, ao fortalecimentodo poder papal, que agora passaria a reivindicar, com mais oumenos coerência, a supremacia e o controle das duas espa-das: a espiritual e a temporal. O pontífice reclamaria a jurisdi-ção de facto e de iure sobre a comunidade cristã. A afirmaçãodesse pensamento hierocrático – que culminaria um séculodepois na defesa de uma espécie de “monarquia papal absolu-ta” por Egídio Romano – deu-se de forma gradual e nem sem-

7 Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 208.

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pre clara. Na tentativa de se impor ao regnum, cuja figuramáxima era o imperador, a Igreja selava alianças com reis epoderosos locais e, com isso, os fortalecia indiretamente.

Mas o fato realmente importante era o de que, nessadisputa, a Ecclesia, ao tentar legitimar política e juridica-mente essa aspiração de se constituir como um poder supre-mo, capaz de regular toda a cristandade, acabou refinando oaparato conceitual disponível. Ao procurar definir em baseslegais a figura e a função de seu representante maior, o sumopontífice, a corporação religiosa criou preceitos jurídicos epolíticos que consolidaram a idéia da soberania – noção queseria rapidamente apropriada por um novo conjunto de inte-resses e pretensões que entravam em cena, o dos Estadosterritorias nascentes. Antes que esse movimento se tornasserealidade, contudo, as disputas entre regnum e sacerdotiumpela pretensão de supremacia ganhariam ainda alguns acrés-cimos teóricos e práticos, como se verá a seguir.

A eleição do cardeal Lotário de Segni para o papado,em 1198, marcaria um novo avanço nas pretensões hiero-cráticas da Ecclesia. Sob o nome de Inocêncio III (1198-216),o novo pontífice, aluno brilhante e discípulo de Hugucião emBolonha, assumiu o posto em meio à contenda – até entãonão completamente resolvida – com o império, chefiado pelofilho de Frederico I, o Barba-Ruiva, o príncipe herdeiro Hen-rique VI. Embora a morte prematura de Henrique tivesse pro-porcionado um período de trégua entre os dois poderes,Inocêncio III empenhava-se em fundamentar melhor as pre-tensões pontifícias. Concentrou esforços na tentativa de mos-trar a superioridade do poder sacerdotal sobre o imperial,afirmação contestada por muitos poderosos, entre eles o im-perador bizantino Aleixo III (1195-203).8

8 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 105. O livro oferece, no terceiro capítulo,“Hierocracia e teocracia no século XIII”, um excelente resumo dos acon-tecimentos e dos desenvolvimentos hierocráticos no período.

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Numa decretal – Solitae – dirigida ao imperador, Ino-cêncio III fizera uma defesa cuidadosa da primazia do sacer-dócio sobre os poderes temporais e obtivera, em resposta, acontestação do governante grego. Aleixo III apoiava-se – parafundamentar sua tese da primazia da esfera temporal sobrea espiritual – na “1ª epístola de São Pedro”, que conclamavatodos os fiéis a se submeter às autoridades constituídas, umavez que elas existiam para castigar os maus e recompensaros bons, segundo a vontade do Senhor.9

Em resposta a Aleixo, Inocêncio III argumentou que,mesmo tendo os reis mandado nos sacerdotes, como conta oAntigo Testamento, agora era diferente. Pois, na época doNovo Testamento, o Cristo, Sumo Sacerdote da Nova Alian-ça, que redimiu os homens por meio de sua paixão e morte,teria deixado na terra um vigário – Pedro e seus sucessores –para prosseguir a tarefa que havia começado.10 O sacerdo-tium teria assim, segundo a decretal pontifícia, a função desalvar as almas, “bem mais relevante, pela sua finalidade etranscendência, do que a desempenhada pelo poder régio;

9 “Sede submissos a qualquer instituição humana por causa do Senhor:quer ao rei, porque é o soberano, quer aos governadores, delegados porele para punir os malfeitores e louvar as pessoas de bem. Porque a vonta-de de Deus é que, praticando o bem, façais calar a ignorância dos insen-satos. Comportai-vos como homens livres, sem usar da liberdade comovéu para vossa maldade, mas procedendo como servos de Deus. Honraitodos os homens, amai vossos irmãos, temei a Deus e honrai ao rei”. In:1ª epístola de São Pedro, 2: 13-17. In: A Bíblia, op. cit., p. 1495-6.

10 No documento original: “No entanto, o que foi legal na época do AntigoTestamento, agora sob o Novo Testamento é diferente, pois Cristo, quese fez sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedeque, ofe-receu-se como hóstia a Deus Pai sobre o altar da Cruz. Por sua morte,ele redimiu o gênero humano e realizou isto na condição de sacerdote,não como rei, e principalmente o que diz concerne à missão daqueleque é o sucessor do Apóstolo Pedro e Vigário de Jesus Cristo”. INOCÊNCIO

III. Solitae. In: SOUZA & BARBOSA, Decretal Solitae de Inocêncio III a AleixoIII de Constantinopla (Documento 27), op. cit., p. 130.

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daí outrora, os reis terem exercido um poder supremo e ex-clusivo sobre toda a sociedade”.11

Mais adiante, no § 4 da Solitae, Inocêncio III recorria ao“Gênesis”12 para sustentar seu ponto de vista:

Deus fez, portanto, duas grandes luminárias na abóbadacelestial, isto é, na Igreja Universal, quer dizer, Ele insti-tuiu duas grandes dignidades, que são a autoridadepontifícia e o poder real. Mas a que dirige os dias [o sol],isto é, as coisas espirituais, é maior, e a que preside ànoite [a lua], pelo contrário, é menor, a fim de que se saibaquão grande é a diferença que existe entre os pontífices eos reis, à semelhança do que se passa com o sol e a lua.13

No § 6 acrescentava mais um argumento: a conhecidaconcessão de Cristo a São Pedro, pedra fundadora da Igreja,a quem caberia o poder de ligar e desligar no céu e na terra.14

Como já expressaram adequadamente Souza & Barbosa:

A Igreja é, portanto, a única sociedade a se ter em conta,pois dela, mediante o batismo, fazem parte todos os fiéis,e, por isso mesmo, tem de ser governada por uma só cabe-ça que, de acordo com o Evangelho, é o Papa. Trata-se, naverdade, de um organismo espiritual com uma dimensãotemporal subsidiária, não de um corpo bipartido, “quase

11 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 106.12 “Deus disse: ‘Que haja luminares no firmamento do céu para separar o

dia da noite, que eles sirvam de sinal tanto para as festas como para osdias e os anos, e que sirvam de luminares no firmamento do céu parailuminar a terra’. Assim aconteceu. Deus fez dois grandes luminares, ogrande luminar para presidir o dia, o pequeno para presidir a noite, e asestrelas. Deus os estabeleceu no firmamento do céu para iluminar aterra, para presidir o dia e a noite e separar a luz da treva. Deus viu queisto era bom”. In: Gênesis, 1: 14-18. In: A Bíblia, op. cit., p. 11.

13 INOCÊNCIO III. Solitae. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 27, op. cit.,p. 130.

14 Trata-se da passagem de Mateus 16: 18-19. cf. tb. Mateus 18: 18. In: ABíblia, op. cit., p. 1213 e p. 1216.

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um monstro”, para empregarmos a comparação usual en-tre os medievais. O único objetivo desta comunidade uni-versal dos fiéis reside em alcançar a salvação eterna.15

Longe de terminada, a contenda entre a Igreja e o Im-pério pelos respectivos âmbitos de jurisdição seguia adiante.Inocêncio III, na bula Venerabilem, de 1202, lembrava os prín-cipes eleitores germânicos de que eles de fato escolhiam li-vremente o seu monarca, mas que era apenas por meio daunção e coroação pelo papa – ou por seus devidos represen-tantes – que o imperador seria sagrado. Lembrava ainda queo papa Leão III (795-816) havia feito a translatio imperii dosgregos para os germânicos, na pessoa de Carlos Magno (800-14), no Natal de 800, pois naquela ocasião os bizantinos eramgovernados por uma mulher, Irene. Desse modo, declaravaInocêncio, o Império ficara sob a auctoritas do bispo de Romae devia ser entendido como um beneficium eclesial outorgadopelas regras do direito canônico. O imperador seria, portan-to, beneficiário (vassalo) da Igreja e teria a obrigação dedefendê-la.

Inocêncio III havia assim completado a inversão histó-rica referente aos primórdios da relação entre regnum e sa-cerdotium, tal como registrada no século IX e descrita por W.Ullmann.16 A matéria reabria também uma velha ferida, dei-xada aberta desde a morte de Henrique VI, em 1197, cujoherdeiro era ainda uma criança.17 Pela primeira vez na com-plexa história desses dois poderes, o pontífice reivindicava

15 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 107.16 Cf. Capítulo 1, p. 67-9.17 Depois da morte de Henrique VI, as disputas internas no reino germânico

passaram a girar em torno de dois grupos poderosos e seus respectivospríncipes: o de Filipe de Staufen e seu rival, Oto, duque de Brunswick.O conflito, que já causara inúmeras mortes e a destruição de váriascidades e feudos, parecia insolúvel, pois a legislação eleitoral germânicanada previa em tais casos.

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caber o exame quanto à aptidão e ao caráter do candidato aotrono imperial “ao seu consagrante, isto é, o próprio Papa,adaptando para a esfera das relações entre o Império e oPapado uma prática usual e institucionalizada no tocante àconfirmação dos bispos eleitos pelos cabidos diocesanos, efe-tuada ou pela Metropolita ou pelo Santo Padre.”18

Nos termos do pontífice, no § 4:

Mas, por outro lado, os príncipes devem reconhecer edecerto reconhecem que a autoridade e o direito paraexaminar a pessoa eleita rei e que será promovida aoImpério nos compete, visto que nós a ungimos, coroamose consagramos. Pois é normal e regularmente observadoque o exame da pessoa compete àquele que lhe vai imporas mãos. Por conseguinte, se os príncipes, em consensoou em desacordo entre si, escolherem como reis umapessoa sacrílega ou excomungada, um tirano ou um idiota,ou um herege ou um pagão, nós deveremos ungir, consa-grar e coroar tal pessoa? Decerto que não!19

E, mais adiante, no § 6:

É evidente ainda que, numa eleição, quando os votosdos príncipes estão divididos, após uma advertência eum intervalo conveniente, podemos favorecer um dospostulantes, considerando-se que posteriormente umdeles virá a ser ungido, coroado e consagrado por nós, eaconteceu freqüentemente que ambos nos pediram quefizéssemos isso. Assim, que brilhem o exemplo e o direi-to. (idem)

Oitenta anos mais tarde, invertia-se em favor do papadoo direito de resolver eleições contestadas, concedido ao impe-

18 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 108.19 INOCÊNCIO III. Venerabilem. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 28, op. cit.,

p. 131.

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rador Henrique V pelo papa Calixto II no documento da Con-cordata de Worms, em 1122.

A adoção dessa postura pelo papado sustentava-se naidéia de que a Igreja constituía a causa eficiente do império ede seu poder e que o imperador era um advocatus et protectorEcclesiae. Inocêncio também avançava na construção dospilares de uma teoria hierocrática do poder, conferindo à Igrejao papel de sede última – de acordo com seus próprios crité-rios políticos e morais – de legitimação do poder temporal.Estava definitivamente estabelecida, ao menos na teoria, aprimazia do sacerdotium sobre o regnum na função de juizsupremo, fosse em assuntos espirituais ou seculares. Daquipara frente, os papas reivindicariam o direito de só trataremalguém como imperador depois de sua eleição para o cargoter sido sancionada pela Ecclesia.20

No mesmo ano, 1202, Inocêncio III, respondendo à so-licitação do conde Guilherme de Montpellier, que desejavaver reconhecidos e legitimados pelo papa seus filhos bastar-dos, a fim de que pudessem se tornar seus legítimos herdei-ros, reafirmou na decretal Per venerabilem os princípiospolíticos defendidos no documento dirigido aos príncipes elei-tores alemães. Inocêncio rebateu cuidadosamente os argu-mentos do conde, afirmando que a Igreja teria, sim, o direitode legitimá-los ou não, mesmo sendo esse um assunto tem-poral, em razão da superioridade do espírito sobre a matéria.Pois era natural que “a autoridade competente para legiti-mar na esfera superior também o fosse na inferior”, isto é, seo papa decidia em assuntos espirituais, também lhe era líci-to determinar em matérias temporais.

Guilherme reclamava o reconhecimento dos herdeiroscom base no caso precedente do rei francês, Filipe Augusto(1180-223), cujos filhos com Inês de Meran haviam sido re-

20 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 108.

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conhecidos como legítimos pelo mesmo papa pouco antes.Inocêncio III explicou ao conde que ao rei dos francos o pedi-do fora concedido em virtude de não reconhecer o rex supe-rior algum na esfera temporal. Por isso, Filipe recorrera àautoridade pontifícia, sem que seu ato lesasse o direito deoutros, o que já não cabia ao conde, subordinado legalmentepelos laços de vassalagem ao rei.

Nos termos de Inocêncio:

[...] Além disso, como o rei Filipe não reconhece de modonenhum ter superior no âmbito temporal, sem nisso le-sar o direito de outrem, pôde sujeitar-se e [de fato] sub-meteu-se à nossa jurisdição, quando talvez parecesse aalguém que ele poderia ter legitimado por si próprio, nãocomo pai em relação aos seus filhos, mas na condição dePríncipe para com os súditos. Tu, no entanto, és conhe-cido como súdito de outrem. Daí que não pudesses sujei-tar-te nesse aspecto, sem prejudicares assim o direitoalheio, a menos que te autorizassem a fazê-lo, e aindanão gozas da autoridade para teres o direito de dispensarem tal questão.

Movidos por essas razões e baseando-nos, tanto no Anti-go, como no Novo Testamento, atendemos à solicitaçãode Filipe, tendo em mente ainda que, não só no Patrimônioda Igreja exercemos pleno direito temporal, mas tambémnoutras regiões, dadas certas circunstâncias, exercemoscasualmente a jurisdição na esfera secular. Com isso nãotencionamos prejudicar um direito de outrem, ou usur-par um poder que nos seja indevido, visto não ignorar-mos a resposta que Cristo oferece no Evangelho: Dai aCésar o que é de César e a Deus o que é de Deus.

E arrematava mais adiante:

Paulo, com o fito de explicar o que é a plenitude de poder,escrevendo aos Coríntios, diz o seguinte: Não sabeis quejulgaremos os anjos, quanto mais as coisas do mundo?Ora, as incumbências seculares costumam ser regular-mente executadas por quem exerce o poder temporal. Às

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vezes, porém, e em circunstâncias excepcionais, por ou-trem.21

Para sustentar sua argumentação, Inocêncio apoiou-se no “Deuteronômio”,22 associando-o à passagem de Mateusrelativa ao mandato e primado petrinos. Com Inocêncio III, ateoria hierocrática que crescia dentro da Igreja acrescentavaem seus fundamentos argumentos extraídos de uma leituramais pragmática tanto do Antigo quanto do Novo Testamen-to. Além de um novo uso da Escritura, Inocêncio consolidavaa esfera de atuação e legislação da Ecclesia, tornando in-questionáveis suas decisões no foro espiritual e ampliandoseu raio de ação para assuntos temporais ligados a matériasde fé, como heresias, paganismo, “razão de pecado” e outrostemas controversos. Isto é, afirmava sua plenitudo potestatisnão mais apenas no âmbito espiritual, mas agora também intemporalibus.

O século XIII foi marcado ainda pela construção e soli-dificação de um novo campo de direito, que se oporia ao ius

21 INOCÊNCIO III. Per Venerabilem. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 29, op.cit., p. 134-6.

22 “Se for muito difícil para ti julgar da natureza de um caso de sanguederramado, litígio ou ferimentos – questões levadas ao tribunal de tuacidade –, pôr-te-ás a caminho para subir ao lugar que o Senhor, teuDeus, tiver escolhido. Irás procurar os sacerdotes levitas e o juiz queestiver em função naquele dia; e os consultarás e eles te comunicarão asentença. Procederás conforme a sentença que te houverem comunica-do no lugar que o Senhor tiver escolhido, e cuidarás de pôr em práticatodas as suas instruções. Segundo a instrução que te tiverem dado esegundo a sentença que tiverem pronunciado, procederás, sem te des-viares da palavra que te tiverem comunicado nem para a direita, nempara a esquerda. Mas o homem que tiver agido com presunção, semescutar o sacerdote que lá estiver oficiando em honra do Senhor, teuDeus, e sem escutar o juiz, este morrerá. Extirparás o mal de Israel.Todo o povo ouvirá falar do caso, temerá, e não se tornarão mais pre-sunçosos”. In: Deuteronômio, 17: 8-13. In: A Bíblia, p. 224.

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antiquum (1150-200), baseado sobretudo nas compilaçõesfeitas por Graciano no Decretum e em comentários e glosas.Novas reflexões, assim como novos cânones e decretais, pas-saram a ser incluídos num novo corpo jurídico de direitocanônico, denominado ius novum (1200-34), organizado pe-lo canonista Raimundo de Peñaforte: os Cinco livros dasdecretais. Com a incorporação desses documentos eclesiás-ticos recentes, perspectivas novas se abriam à reflexão tantodos teóricos da Igreja quanto dos juristas civilistas, que ago-ra se viam confrontados com novos textos e interpretaçõesdas quais tinham também de dar conta.

Para os canonistas mais moderados, o poder eclesiásti-co podia intervir em assuntos temporais apenas em casosexcepcionais.23 Já a corrente mais extremada defendia nãoapenas a intervenção ocasional dos moderados, mas aindaassegurava ser o pontífice o detentor “dos dois gládios”, aqueleque conferia o poder temporal ao príncipe mais adequado.Segundo estes canonistas, o papa tinha o direito de intervirem assuntos seculares, mesmo fora do Patrimônio de SãoPedro, legislando e julgando em outros casos: quando se tra-tasse de causas conexas, ligadas a um dos sacramentos; decausas anexas, ou de algo anexo à esfera espiritual, como aruptura de um tratado de paz celebrado entre príncipes cris-tãos sob juramento; quando as autoridades seculares negli-genciassem o bem-estar material e espititual de seus súditos;quando um crime considerado pecado fosse denunciado aotribunal eclesiástico.

23 Os casos em que podia se dar essa intervenção eram: “quando o Impé-rio estivesse vacante e não fosse possível recorrer a uma instância su-perior; quando os juízes seculares fossem suspeitos de parcialidade;quando as causas fossem ambíguas e os juízes não estivessem segu-ros quanto à maneira de as julgar; e ratione peccati”. In: SOUZA & BARBO-SA, op. cit., p. 114.

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“Tudo conduzia para a consideração de que uma mes-ma comunidade com duas cabeças era uma espécie de mons-tro (quasi monstrum)”, resumem Souza e Barbosa.

E o primado do espiritual sobre o material, conjugadoaqui com o imperativo neoplatônico de redução damultiplicidade (dos reinos temporais) à unidade (do po-der papal) viria a impor o Sumo Pontífice como chefe únicoda Ecclesia-Christianitas, vendo-se no Imperador o sim-ples braço armado da Igreja, para sua defesa e advoca-cia.24

Embora o papado ainda não dispusesse de uma teoriaorganizada da supremacia do poder espiritual sobre o tem-poral, como aquela que seria oferecida um século depois pelocanonista Egídio Romano, por exemplo, os elementos neces-sários à reivindicação da plenitude de poder pelo pontífice jáestavam colocados. Não havia mais dúvidas de que o papaconstituía a única autoridade legítima para decidir em as-suntos religiosos. A pretensão agora era mostrar que suaauctoritas se estendia também à esfera da dominação tem-poral. Papas, reis e imperadores pareciam cada vez mais dis-tantes da paz e da pretendida unidade dos cristãos.

Inocêncio III foi também o tutor de Frederico II (1212-50), filho do imperador Henrique VI e de Constança da Sicília,e neto do Barba-Ruiva. Criado sob os cuidados do pontífice,Frederico foi sagrado por ele imperador em 1215. Em troca,prometia abdicar do trono da Sicília em favor de seu filhoConrado. Com a morte do pontífice um ano mais tarde, con-tudo, Frederico não cumpriu o prometido. Na qualidade derei siciliano e imperador germânico, os Hohenstaufen cerca-vam agora o Patrimônio de São Pedro tanto ao sul quanto ao

24 Ibid., p. 116.

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norte, ameaçando assim os reinos italianos e a própria su-premacia do papado sobre a Santa Sé. Além disso, Fredericoprometera a dois papas organizar uma Cruzada contra osturcos seljúcidas, que haviam retirado aos latinos a TerraSanta e impediam suas peregrinações ao local.

Em vez da luta pelas armas, Frederico II negociou umtratado com o sultão do Egito, Malik el Kamil, em 1229, com-prometendo-se a ajudá-lo contra o sultão de Damasco e aimpedir os ataques de príncipes ocidentais a seus territórios.Em troca, Malik lhe assegurava a posse do reino de Jerusa-lém – recebido por ele como dote de casamento com a filha deJoão de Brienne –, além da liberdade de trânsito para osperegrinos cristãos. Tais acontecimentos, somados às inú-meras promessas não cumpridas de realizar Cruzadas emnome da Ecclesia, levaram o então papa Gregório IX (1227-41) a excomungá-lo. O imperador, em represália, passou aperseguir religiosos, a confiscar os bens eclesiásticos em seusterritórios e, em 1239, tentou conquistar Roma, com o obje-tivo de capturar o pontífice.

Gregório IX, para sustentar sua posição, reintroduziuno debate sobre os dois poderes o tema da Doação deConstantino.25 De acordo com a explicação de Gregório, oimperador Constantino julgara inoportuno conceder ao pon-tífice apenas o governo das almas e, por isso, lhe teria conce-dido também jurisdição em assuntos temporais.26 O paparessaltava o status do doador afirmando que Constantinoera detentor plenipotenciário da supremacia imperial exercidasobre seu território e que, portanto, a doação constituía umasua legítima decisão. Mencionava ainda o consensus dos en-

25 Cf. Capítulo 1, p. 79-81.26 “Constantino, julgando oportuno que o Vigário de Cristo não devesse

governar apenas as almas e os eclesiásticos, reconheceu que ele tinhade ampliar sua jurisdição sobre os corpos e os bens materiais de todasas pessoas”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 118.

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volvidos em favor da decisão.27 Tais idéias do pontífice eramresultado não só de seus conhecimentos acerca do direitoromano e canônico, mas também do espaço político cada vezmais amplo reclamado pela emergente burguesia dasComunas e cidades italianas, ferrenha adversária das pre-tensões e do centralismo imperiais.

Já os partidários do imperador defendiam que Deus,ao estabelecer os dois poderes, assim o fizera para que cadaqual governasse os seres humanos em seus campos específi-cos de atuação, a fim de obter com maior facilidade a realiza-ção de seus fins.28 Para Frederico II, os dois poderes tinhama mesma origem divina e, por isso, estavam em pé de igual-dade. Não negava, contudo, que o poder sacerdotal desfru-tasse de maior dignidade, dada sua finalidade transcendente.Mas a felicidade última, a vida eterna, dizia ele, jamais seriaalcançada sem que o regnum, por meio de seu titular, pro-porcionasse à comunidade humana a ordem, a justiça e apaz, condições necessárias para a felicidade terrena. Paratanto, eram fundamentais o respeito às leis e a reta execuçãoda justiça, cuja transgressão pelos homens gerava sofrimen-to, como aquele que havia resultado do pecado original.29

27 “Em segundo lugar, Gregório IX destacou enfaticamente a importânciada aquiescência dos senadores, dos romanos e de todos os habitantesdo Império àquela medida tomada pelo Imperador, querendo insinuarque o consenso popular era uma garantia da legitimidade do ato dedoação”. Ibid., p. 118-9.

28 “Ambas [as luminárias, sol e lua] deviam completar-se mutuamente,mas cada uma delas tinha de proceder de tal modo no cumprimento desua função que não atrapalhasse a outra [...]. Semelhantemente, a Pro-vidência também quis que neste mundo houvesse dois governos, o sa-cerdotal e o imperial, para que o homem, que tinha sido dividido emdois componentes, fosse moderado por dois governos”. In: FREDERICO II.Documento 33. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 139.

29 Segundo Frederico, “respeitar a justiça equivalia a prestar uma home-nagem a Deus. Tal respeito consubstanciava-se no cumprimento rigo-roso das leis, explicitação da própria justiça e espelho visível da justiça

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Frederico reforçava assim a velha máxima medievalsegundo a qual a lex facit regem. O imperador, detentor daautoridade suprema neste mundo, tinha portanto o dever deintervir pessoalmente em qualquer questão sempre que adesordem se manifestasse, ou ainda por meio de seus ofi-ciais, leigos ou religiosos, a fim de restabelecer a ordem e,deste modo, a justiça. E porque ungido com óleos divinos, oimperador era o mais apto para discernir o justo do injusto e,assim, fazer prevalecer o interesse comum sobre as aspira-ções individuais. Nenhum outro homem tinha competênciapara reivindicar o direito de interferir em seu âmbito de atua-ção, nem mesmo para oferecer sugestões.

Considerava-se a lex animata in terris, assim como seuguardião e executor. Embora tivesse sido criado – ironica-mente, e talvez até por isso – sob os cuidados de um pontífi-ce, ele não admitia que seu poder proviesse do papa ou atémesmo de Cristo: derivava direta e exclusivamente de Deus.Afirmava ainda que a intromissão do papa na esfera tempo-ral era a maior causadora da desordem no mundo, emboranão deprezasse nem ignorasse o papel relevante exercido pelossacerdotes, que conduziam os homens para a salvação eter-na, por meio da pregação do Evangelho, cujo alcance social epolítico não devia ser desprezado.

A base dessas reivindicações de Frederico assentava-se em boa medida no Decretum, no qual se afirmava que aautoridade suprema do imperador era indivisível e inaliená-vel, pois o imperador era a legalidade e a justiça personifica-

eterna. Ademais, aplicando ao mundo os princípios de causalidade e denecessidade, constatava-se que os males da humanidade tinham porcausa última a transgressão da justiça; o mal passou a dominar o mun-do quando os nossos primeiros pais, movidos pelo orgulho, violaram aordem do Criador. Portanto, o desrespeito pela justiça gerava uma de-sordem que, pelo sofrimento dela emanado, era a antítese da felicida-de”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 120.

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das (lex animata). Toda criatura humana estaria sujeita àsua vontade. Mas não só os juristas leigos lhe atribuíam talpoder. Até mesmo alguns canonistas reconheciam ao impe-rador essa supremacia universal. João Teutônico, de Bolo-nha, por exemplo, sugeriu numa de suas glosas que oimperador deteria, em princípio, a supremacia sobre o uni-verso e seria dominus mundi, com autoridade jurisdicionalsobre todo rei, a menos que um rei provasse estar isento dasuserania do imperador.30

Mas seria contudo a distinção entre independência defacto e de iure, introduzida por Bernardo Compostelano Anti-go, que daria consistência jurídica à causa pontifícia, bemcomo, mais tarde, à real. Expressava-se na fórmula de queos reinos eram dependentes do império na sua estruturapolítica e jurídica, mas de facto podiam não reconhecer asuperioridade imperial. Essa distinção entre “dependênciade iure” e “não-reconhecimento de fato” facilitava o trabalhodos juristas que tinham de explicar a decretal de InocêncioIII, de 1202, na qual sustentava não reconhecer o rei francoum superior no âmbito temporal. Fortalecia também aquelesque desejavam banir o domínio universal do imperador. Ouseja, o argumento era relevante para as pretensões tanto dosreis quanto dos papas.31

Com a eleição de Inocêncio IV (1243-54), Frederico II,que havia sido excomungado e se encontrava em conflitoaberto com o papado, foi chamado pelo novo pontífice para a

30 Cf. ULLMANN, Walter. The development of the medieval idea of sovereignty.The English Historical Review, v. 64, n. 250, p. 3, jan. de 1949.

31 Em França, cuja situação era muito peculiar, apenas a minoria dosjuristas reconhecia nestes termos a distinção entre independência defato e de direito. A maioria dos franceses tendia a defender a “indepen-dência de fato e de direito” do rei francês. Esta segunda opinião foi a queprevaleceu na França, como se veria mais tarde. Cf. ULLMANN, op. cit.,1949, p. 5.

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mesa de negociação. O imperador deveria justificar-se juntoà curia romana, mas negou-se a fazê-lo. Apesar das sucessi-vas tentativas de ambos os lados, não foi possível um acordoentre as duas autoridades. Finalmente, no Concílio de 1245,Inocêncio IV depôs Frederico, acusado de perjúrio, sacrilé-gio, de manter relações amistosas com os infiéis, de violar apaz entre papado e império, de ser omisso no cumprimentode seus deveres como minister Ecclesiae e “outros crimes”,conforme consta na “Sentença de deposição do ImperadorFrederico”.32

O imperador, em resposta, escreveu e divulgou em todaa cristandade a Encyclica contra depositionis sententiam, naqual se defendia. Inocêncio IV respondeu então, na bula pa-pal Aeger cui lenia, a cada uma das críticas feitas por FredericoII. Segundo especialistas, esse pode ser considerado talvez omais enfático documento de Inocêncio IV em favor dahierocracia.33 Nela o pontífice afirmava ser o sumo sacerdoteo vigário terreno de Cristo – “Rei dos reis” – e o sucessor deSão Pedro. Nessa condição teria recebido do filho de Deusuma generatis legatio, que lhe conferiria jurisdição plena so-bre todos os homens, inclusive sobre os governantes terre-nos, o que lhe permitia dar ordens quando e a quemdesejasse.34 Apesar de todas as acusações que lhe pesavam,

32 Cf. INOCÊNCIO IV. Sentença de deposição do imperador Frederico. In: SOU-ZA & BARBOSA, Documento 34, op. cit., p. 140-4.

33 Cf. PACAUT, M. La théocracie. Paris: Desclée, 1989. p. 30.34 Transcreveu-se aqui parte da bula, traduzida por SOUZA & BARBOSA, de-

vido à relevância atribuída por inúmeros especialistas ao documento:“[...] Na verdade, exercemos uma delegação geral sobre a terra, a qualfoi recebida do Rei dos reis. Entende-se, relativamente a ela, que nin-guém nem quaisquer assuntos ou negócios devem estar isentos do seucontrole. Tal delegação abarca amplamente o universo, porque foi enun-ciada no gênero neutro, pois o Senhor atribuiu ao Príncipe dos Apósto-los e, na sua pessoa, a nós mesmos, a plenitude do poder, tanto paraligar como para desligar tudo do que está sobre a face da terra. Daí o

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Frederico manteve-se no trono até a morte, em 1250. Poucoantes de morrer, enviou a toda a cristandade uma carta naqual declarava a intenção de o pontífice assassiná-lo.

Os sacerdotes do Antigo Testamento, argumentava Ino-cêncio IV, teriam recebido de Deus semelhante poder, fato quelhes tinha permitido depor os maus governantes de Israel. Comoresumem, de maneira acurada, Souza & Barbosa:

Assim também, o Sumo Pontífice na Nova Aliança podiaagir casualiter, quando os príncipes seculares ratione

Apóstolo dos Gentios, ao querer comprovar que tal plenitude de podernão devia ter limites, afirmar: ‘Não sabeis que julgaremos os Anjos?Quanto mais as coisas deste mundo?’ [...][...] Lemos na Escritura, a respeito desse poder, que um bom número dePontífices da Antiga Aliança o exerceram graças à autoridade divinaque lhes foi concedida ao deporem do trono real muitos monarcas quese tinham tornado indignos de governar. Portanto, daí resulta que oPapa pode exercer, ao menos casualmente, o seu julgamento pontifíciosobre qualquer cristão, seja ele quem for, principalmente se não houveroutra pessoa capaz de reparar a falta cometida pelo mesmo ou nãoqueira fazer justiça e, sobretudo, em razão do pecado [...].De fato, o Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Deus e homem verdadei-ro, agindo também como autêntico rei e sacerdote, segundo a ordem deMelquisedeque, igualmente revelou de modo claro aos homens, ora usan-do a honorabilidade da sua majestade real, ora exercendo perante osmesmos a dignidade pontifícia, recebidas do Pai, que estabeleceu na SéApostólica uma monarquia não apenas sacerdotal, mas também real,ao confiar ao bem-aventurado Pedro e aos seus sucessores as rédeasdos impérios celeste e terreste, como se pode notar de modo evidenteem razão da pluralidade das chaves, de maneira que através de umarecebemos o poder sobre a terra e as questões seculares e, pela outra,no céu e a respeito dos assuntos espirituais, a fim de que se entendaque o Vigário de Cristo obteve o direito de julgar. [...]Portanto, se o poder está potencialmente incluído no seu interior, eletorna-se ativo quando é transferido ao príncipe. Com efeito, aquele ritopelo qual o Sumo Pontífice apresenta a espada embainhada a César,que por ele, Pontífice, vai ser coroado, demonstra-o claramente, pois oImperador, após a receber, a retira da bainha e brandindo-a, comprovaque recebeu da Igreja o direito de usá-la [...]”. Cf. INOCÊNCIO IV. Aeger cuilenia. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 144-5.

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peccati deixassem de cumprir com seus deveres para comDeus e a Igreja, pois Cristo, obedecendo ao desígnio daProvidência, estabeleceu na Sé Apostólica um principadosacerdotal e real, visto Ele ser simultaneamente Sacer-dote e Rei. É por esse motivo que as chaves para abrir efechar o reino dos céus e as espadas para ferir e cortarespiritual e temporalmente se encontram na posse daIgreja e só o Papa, na condição de chefe máximo daEcclesia-Christianitas, pode confiar as funções secularesaos príncipes, porque fora da Igreja não existe poder legí-timo.35

O canonista Guido de Baysio, por exemplo, iria esten-der a fórmula papal a um princípio jurídico: o de que o rexdetinha em seu reino os mesmos poderes que imperador emseus domínios, conferindo novo fundamento à conhecida má-xima romana do rex in regno suo imperator est. O rei, portan-to, desfrutaria em seu território do mesmo status jurídico epolítico que o imperador em seu império e teria poder supre-mo sobre todos os que habitavam o reino. Idéia semelhantedefendia Guilherme Durando, em sua obra sobre o crime delesa-majestade, na qual se perguntava se os barões, ao seinsurgirem contra o rei da França, estariam cometendo cri-me de lesa-majetade. À questão Durando respondia positiva-mente, alegando que “o rex francorum era princeps em seureino”. A noção do rei como majestas, tal como afirmaria Bodinséculos mais tarde, ganhava assim os primeiros adeptos.36

Inocêncio IV, seguindo a trilha de seu antecessor, de-fendia não apenas a independência de fato e de direito do reidos francos em relação ao imperador, mas também susten-tava que os reis detinham o poder de criar tabeliões públicos,

35 “A cerimônia da outorga da espada, efetuada pelo Papa ao Imperador”,completam, “comprova muito bem que ele é um minister sacerdotis eque o Império de jure et de facto está subordinado ao Papado”. In: SOUZA

& BARBOSA, op. cit., p. 123.36 Cf. ULLMANN, op. cit., 1949, p. 9-10.

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como o podia fazer o próprio papa. Outra questão intima-mente ligada à disputa pela supremacia era a da possibilida-de – ou não – de apelação ao imperador de uma sentença dorei. Segundo Durando, uma sentença do rei francês erainapelável. Mas no resto da cristandade, completava ele, oimperador era o dominus mundi, e, por isso, a apelação erapossível em outros reinos. O debate, portanto, avançava nadireção de uma negação da supremacia universal do impera-dor in temporalibus. Cinqüenta anos mais tarde, quando daquerela entre o rei francês e o pontífice, a plenitude de poderdo rei franco em seu território já constituía matéria indiscu-tível, fosse em relação ao papa ou ao imperador.

Nesse momento, contudo, a causa papal ainda ganha-va reforço. Henrique Bartolomeu de Susa, o Ostiense, porexemplo, sustentava que a primazia do sacerdotium sobre oregnum era apoiada também pelo direito civil romano. A Doa-ção de Constantino não constituía apenas um fato verídico,mas era também um documento autêntico que confirmava aexistência de uma só cabeça à frente da cristandade e repa-rava um abuso cometido por imperadores pagãos que faziamuso de um poder ilegítimo. Constantino, por inspiração divi-na, apenas tinha se limitado a devolver a São Silvestre umpoder que de direito já lhe pertencia, dado que era vigário doFilho de Deus sobre toda a terra. Por fim, o Ostiense definiaainda os casos em que o pontífice teria o direito de intervir nogoverno secular: quando sua interferência fosse requerida enão prejudicasse o direito de outrem; quando se fazia justiçaem favor dos oprimidos; quando um suserano tratava ou jul-gava injustamente o seu vassalo; e nas cidades onde nãohavia um juiz secular.37

A teoria gelasiana da independência das duas espadascontinuaria a ser defendida ao longo do século XIII, mas sus-

37 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 126.

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tentada agora na preeminência moral do poder espiritualsobre o temporal. De maneira geral, não havia discordânciaquanto à afirmação de que aos sacerdotes cabia zelar pelabem-aventurança dos fiéis e conduzi-los à vida eterna. E aosreis cabia zelar pelo bem-estar material de seus súditos, pro-movendo, coordenando e executando a justiça, punindo osmalfeitores e libertando pela espada os oprimidos. Sob essepano de fundo repousavam posições políticas e concepçõesde mundo as mais diversas, como aquelas encontradas nasobras de inúmeros pensadores ilustres do século XIII, deAlberto Magno a Tomás de Aquino. Uma bipartição que nãosobreviveria por muito tempo ante as tendências de centrali-zação do poder presentes em toda parte, fosse na Ecclesia ouno regnum.

É possível assegurar com alguma convicção, portanto,que as questões vinculadas à noção de soberania eram si-multaneamente políticas e jurídicas. Eram políticas porqueenvolviam a construção de um sistema de poder, fosse elehierocrático ou estatal. A imagem do rex in regno suo imperatorest – que viria a ser muito em breve reivindicada pelos gover-nantes dos Estados territoriais emergentes – evocava, aomesmo tempo, a concentração do comando territorial (rela-ções internas) e a pretensão de independência em face depotências externas, fossem elas os não-cristãos ou os territó-rios vizinhos. E jurídicas porque todas as pretensões eramapresentadas como legais.

O que se refazia, nesse período, não era apenas umaconstelação de forças, mas toda uma ordem normativa. Umadas faces mais importantes da produção cultural, entre osséculos XII e XIV, foi indubitavelmente a reflexão jurídica.Armados com a disciplina fornecida pelo redescoberto direitoromano, os juristas não se limitaram a recuperar conceitos.Repensaram o direito costumeiro, as instituições tradicio-nais, ordenaram e codificaram as normas comuns e cons-

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truíram respostas para problemas novos. No campo interna-cional, por exemplo, a criatividade de Sassoferrato é conheci-da por trabalhos como a determinação de águas territoriais.

A noção de soberania era forjada, portanto, não porautores distanciados do mundo e recolhidos ao trabalho aca-dêmico. Era uma idéia construída polemicamente, num pro-cesso em que se misturavam o interesse no conflito imediatoe a reflexão abstrata. A idéia nascente de soberania podia sercaptada em suas diferentes funções: 1) como direito reivindi-cado e, portanto, objeto de controvérsia jurídica; 2) como atri-buto do poder, qualidade política que se manifestava,simultaneamente, como suprema autoridade interna e comoautonomia externa.

Esquematicamente, a construção da idéia de sobera-nia ocorria em dois momentos. No primeiro, o grande temaera a distribuição das jurisdições num sentido restrito. Tra-tava-se de saber sobretudo quem fazia cumprir as leis. Issoenvolvia tanto a questão do domínio territorial quanto a divi-são da autoridade entre as esferas temporal e espiritual. Aautoridade era principalmente judiciária. No segundo, emer-giria o problema do poder legislativo, tal como entendidomodernamente, a começar dos “clássicos”. Jurisdição, a par-tir daí, passaria a incluir também o direito de criar, de mu-dar e de revogar normas. A imagem de um legislador legibussolutus, oriunda do direito romano, já reaparecera emglosadores como o italiano Azzone e o inglês Alan, no fim doséculo XII.

Depois da redescoberta do Digesto, de Justiniano, osjuristas ocuparam-se em examinar a fonte da autoridade le-gislativa na comunidade e a relação entre o monarca e a ve-lha lei. Um dos problemas relevantes era conciliar a autoridadelegislativa do princeps – que agora substituía o imperador doantigo Estado romano – com o poder do costume legal. Azzoneafirmava que o costume mantinha, fazia, ab-rogava e inter-

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pretava a lei. Muitos legistas entendiam, assentados na tra-dição medieval da filosofia natural, que a produção de umanova lei era função natural da sociedade. Havia também pon-tos de vista diferentes, como os de alguns civilistas, que defi-niam a lei como vontade do príncipe, promulgada por razõesjustas e necessárias e temperada pelo costume.38

A idéia da lei como expressão de uma vontade sobera-na, fonte única de validade da norma civil, só se cristalizaria,no entanto, com alguma lentidão. A noção do princeps legibussolutus deve ser entendida de forma variável entre as primei-ras grandes discussões, no século XI, e sua tradução radicalna obra hobbesiana. De modo esquemático, seria possíveldescrever esse desenvolvimento como um percurso entre doisextremos. Num deles, a lei (natural, divina, costumeira,estatuída ou positiva) se sobrepunha totalmente ao príncipe(lex facit regem). No outro, a vontade soberana era fonte cria-dora, tansformadora e revogadora da lei (auctoritas, nonveritas, facit legem).

Como todo esquematismo, esse deve ser consideradocom reserva, porque o voluntarismo já apareceria no séculoXIV e a noção de uma ordem anterior e superior à vontadeainda seria visível na literatura política moderna. Mas aquela

38 Black recorda como os textos do direito romano foram utilizados paraatender a múltiplos interesses. A lei romana era “mais específica sobrea extensão dos poderes à disposição de um princeps ou imperator”, masdeles se apropriaram os canonistas para expressar a autoridade papal.“Então, os legistas seculares, trabalhando em meios nacionais ou lo-cais, mas empregando a linguagem da lei imperial romana, começarama aplicá-la, firmemente, a todas as monarquias seculares existentes naEuropa, começando pela França e pelo reino da Sicília. Isso acompa-nhou uma ampla adoção da linguagem imperial por reis e duques, queimplicava que os poderes atribuídos ao imperador romano pertenciampropriamente a todo governante vis-à-vis seus próprios súditos (rex estimperator in regno suo)”. In: BLACK, Antony. Political thought in Europe1250-1450. Cambridge: University Press, 1992. p. 139.

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ressalva, a da evolução, é indispensável. Ela acentua a idéiade um processo formador. Desse modo, legitima a pretensãode falar em Estado territorial moderno e em soberania, naIdade Média, desde que se saiba que não se trata nem do fatonem do conceito nas formas plenamente amadurecidas.

Nas várias universidades, o desenvolvimento da juris-prudência e da reflexão jurídico-política respondia, com fre-qüência, a interesses opostos e, no entanto, com resultadosconvergentes. Alguns aspectos desse desenvolvimento podemsurpreender. A formulação mais radical da idéia de poderabsoluto pertenceu, provavelmente, aos canonistas. Acabouincorporada, porém, pelos mais severos defensores do podersecular, imperial ou do reino.

A idéia de que a vontade do soberano, e não a justiça,constituía o elemento essencial da lei foi posta por um cano-nista do século XIII, Laurêncio Hispano, contra uma das maisfirmes tradições da política medieval. Separando a vontadedo príncipe do conteúdo da lei, Hispano tornava a lei plena-mente caracterizável sem referência à moralidade ou a qual-quer conceito transcendente de justiça. Esse é um exemplode como, aos poucos, delineava-se a noção da vontade(auctoritas) como fonte da lei.

Embora a idéia do predomínio da norma (e da justiça)tenha permanecido como ideologia dominante no século XIII,a questão das relações entre o príncipe e a lei já vinha sendorevista desde o século XII, como se tentou demonstrar. Nofinal deste, os canonistas já utilizavam o termo ius positivumpara indicar a lei promulgada pelo legislador humano, comoindica, entre outros, Pennington.39 Desde meados daquele

39 Pennington chama atenção para a dificuldade de interpretar a relaçãoentre príncipe e lei a partir da tradição romana. Justiniano tanto susten-tara a idéia de um poder imperial absoluto (Digesto), quanto defendera anoção de um imperador que legisla mas deve subordinar-se à lei (DignaVox, cod. I.14.4), como os governantes constitucionais. Cf. PENNINGTON,

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século, quando o Decretum de Graciano havia determinadoàs escolas o estudo da lei canônica, havia-se intensificado oesforço de refinamento conceitual.

Ao indicar a vontade do príncipe como fonte da lei, se-parando lei e justiça e, portanto, vontade legisladora e razão,Laurêncio Hispano abria uma perspectiva nova para aconcepção do poder. No entanto, mesmo o exercício “não ra-zoável” do poder teria de ser legal. Outros canonistas o acom-panhavam, distinguindo a autoridade do príncipe da “mora-lidade” da lei. Mas, ao mesmo tempo, enfatizavam a obrigaçãodo príncipe de se sujeitar à norma por ele estatuída. Danterefletia essa concepção ao fazer do monarca (o imperador, nasua proposta política) um legislador e um servo da lei.40

Embora os canonistas tenham mantido essa idéia de gover-no legal (apesar do poder de mudar ou revogar a lei), elescontribuíram de modo significativo, não importa o alcancede sua intenção, para aliviar a noção de plenitudo potestatisdos entraves da moralidade, da razão e dos antigos costu-mes.

Pennington lembra que os canonistas utilizaram essasidéias para estabelecer os limites constitucionais da autori-dade papal. O alcance dessa autoridade era definido pelanoção de plenitudo potestatis, que em pouco tempo seria ado-tada também para descrever o poder legítimo – pouco depoisdenominado soberano – da monarquia secular. O própriopapado, em alguns momentos, contribuiu para fortalecerjuridicamente as pretensões dos reis. Um bom exemplo dissoera a declaração, já mencionada, do papa Inocêncio III, em1202, de que o rei da França não reconhecia superior emquestões temporais. Ele deixara, com isso, um problema para

K. Law, legislative authority and theories of government, 1150-1300.In: BURNS, op. cit., 1991, p. 424-53.

40 ALIGHIERI, Dante. Monarchia. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1988.Livro I, XII, p. 195.

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os canonistas, que se empenharam em esclarecer o assunto.Segundo alguns, os reis não estariam sujeitos de facto aoimperador, mas sim de iure, enquanto outros afirmavam acompleta independência do rei em relação ao Império.

Tal como Hispano, também o Ostiense, partidário dacausa papal, terminou desenvolvendo a noção de plenitudopotestatis, contribuindo para o refinamento do conceito. Tam-bém segundo ele, a vontade do princeps – em sua concepçãoo pontífice, como se viu – era a fonte da lei. Não se limitavapelo rigor da razão e da moralidade, e, sob certas circunstân-cias, o monarca poderia violar os preceitos de justiça. Dadostodos esses pontos, conclui Pennington, estavam presentesos elementos necessários para pensar o que mais tarde sechamou razão de Estado.41

Entre 1150 e 1300, legistas e glosadores fixaram asprincipais teorias a respeito da auctoritas do príncipe. Al-guns deles mantinham a ênfase na supremacia da lei, even-tualmente confundida com a supremacia da comunidade.Outros acentuavam, já, a idéia do príncipe legislador. De modogeral, porém, não se negava a idéia do governo fundado nobem público. Desses dois modelos seria possível derivar, comalguns acertos, tanto as doutrinas da monarquia absolutaquanto a do governo constitucional.

Grande parte dessas noções que lentamente se desen-volviam e ganhavam refinamento conceitual já era conhecidados autores medievais. Do mesmo modo, parte das noçõesaristotélicas acerca da filosofia natural e da política já circu-lava pela Europa, antes mesmo da completa tradução de suasobras, o que só ocorreria na segunda metade do século XIII.Mas o material que se tornou disponível depois de realizadasas traduções latinas do que havia sobrado da obra do Filóso-fo podia ser agora muito mais bem ordenado, a partir de uma

41 Cf. PENNINGTON, op. cit., p. 436.

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leitura sistemática de seus inúmeros textos e dos de outrostantos autores antigos, gregos, árabes e judeus, agora dispo-níveis.

Com as restrições já discutidas no capítulo anterior,pode-se dizer que apenas depois da tradução dos últimostextos de Aristóteles – entre eles a Política, que ganhou umaversão latina por volta de 1263 –, foi possível fazer uma re-construção organizada de seu pensamento, possibilitandoassim um novo uso e uma nova sistematização do materialdisponível. Tornava-se necessária a construção de uma filo-sofia que oferecesse instrumentos mais adequados para asuperação dos impasses – teóricos e práticos – nos quais seencontrava mergulhada a cristandade. Afinal, a polis de Aris-tóteles não era parte do mundo medieval latino. E tanto To-más de Aquino quanto seus predecessores tinham ciênciadisso.

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Os livros de Aristóteles sobre a ordem da naturezaformavam a base da filosofia natural nas universidades me-dievais. Eles forneciam um fundamento adequado e siste-mático para a especulação a respeito da idéia de naturezano contexto do pensamento político, assim como no da me-tafísica e da ciência. Era por meio deles que se pensava aestrutura e a operação do cosmo. Pelo uso de suas assun-ções, de seus princípios demonstráveis e aparentementeauto-evidentes, a leitura de Aristóteles impôs um forte sen-so de ordem e coerência sobre um mundo até então inten-samente povoado por alegorias, epítetos e metáforas.42 Equais eram essas idéias?

42 Cf. GRANT, op. cit., p. 54.

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Um dos pilares fundamentais de toda a construçãoaristotélica repousava na asserção de que o mundo era eter-no: não teria tido nem início nem fim. O universo físico,como explicava Aristóteles em Dos céus, era espacialmentefinito, mas temporalmente infinito. Ou seja, o mundo cons-tituía uma vasta, porém limitada, esfera que existia semprincípio e continuaria existindo sem fim, idéia que se opu-nha frontalmente à da criação divina do orbe.43 Se o mundoaristotélico era eterno e, por isso, suspeito aos medievais, ainsistência no seu caráter único, entretanto, o colocava ple-namente de acordo com as sagradas escrituras das três gran-des religiões. Segundo o Filósofo, o universo era uma grandeesfera finita para além da qual nada poderia existir. Todamatéria existente estava nele contida, dentro dessa imensaesfera.44

43 A idéia de que a matéria poderia ter um começo parecia impossível aosgregos antigos. Sem um começo, portanto, o mundo não poderia tersido criado: esta asserção opunha o Filósofo aos teólogos das grandesreligiões monoteístas (judaísmo, cristinianismo, islamismo). Por essarazão, a questão da eternidade do mundo constituía um dos temas maiscomplexos, para os teólogos do Ocidente medieval no século XIII, a res-peito de filosofia natural e teologia. Cf. GRANT, op. cit., p. 54.

44 Um corpo constituía sempre, para Aristóteles, a superfície mais ínti-ma de outro corpo imediatamente circundante que estava em contatodireto com o corpo contido. Um lugar era algo, um espaço, no qual umcorpo deveria estar presente. De modo similar, um vazio constituíaalgo em que a existência de um corpo era possível, embora não atual.Finalmente, tempo era a medida de movimento. Sem corpo, não pode-ria haver movimento e, por isso, não poderia haver tempo. De ondeAristóteles concluía que toda a existência repousava dentro de nossocosmo, e coisa alguma além dele. Cf. ARISTOTLE. On the heavens(I:268b11-268b26). Trad. de J. L. Stocks. In: BARNES, Jonathan (Ed.).Aristotle: the complete works. The Revised Oxford Translation. NewJersey: Princeton University Press, 1991. v. I e II, p. 448. Todas ascitações oriundas de edições inglesas foram retiradas desta versão daobra completa de Aristóteles.

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Esse mundo dividia-se, segundo ele, em duas circunfe-rências radicalmente diferentes: uma terrestre, que se esten-dia do centro da terra até a esfera lunar; e outra celeste, queenvolvia tudo o que existia entre a lua e as estrelas fixas.45

Boa parte da filosofia natural de Aristóteles constituía umatentativa de identificar e explicar os princípios de transfor-mação na região terrestre.46 Natureza, no reino terrestre, nadamais era do que um termo coletivo para a totalidade dos cor-pos existentes, compostos de forma e matéria.47 Aristótelesatribuía assim aos corpos terrestres o poder de agir de acor-do com suas capacidades naturais. Este raciocínio lhe per-mitia supor causações secundárias: os corpos eram capazesde ação, e com isso de efeitos, sobre outros corpos.48

Aristóteles tinha uma concepção teleológica da nature-za. Isto é, explicava todos os fenômenos que ocorriam nomundo por meio de suas causas finais. As causas finais,

45 Na região terrestre, a observação e a experiência tornavam óbvio que amudança era incessante, enquanto na região celeste a transformaçãonão existia.

46 Aristóteles distinguia basicamente três tipos de transformações quepodiam ser promovidas pelo movimento das quatro causas fundamen-tais: 1) mudança qualitativa, como quando a cor de uma folha se alterado verde para o marrom na mesma matéria subjacente; 2) mudança dequantidade, como quando um corpo cresce ou diminui, retendo suaidentidade de outra maneira; e 3) mudança de lugar, quando um corpose move de um lugar para outro. Localizava ainda um outro tipo demudança que, contudo, não implicava movimento: a mudança substan-cial, onde uma forma suplanta a outra na matéria subjacente, comoquando o fogo reduzia um tronco a cinzas (cf. Physics, V:225a37-225b16).

47 Cada um desses corpos pertencia a uma espécie própria e possuía aspropriedades e as características – isto é, a forma – dela. Se desimpedi-do, agiria em conformidade com essas propriedades.

48 Aristóteles acreditava que cada efeito era produzido por quatro causasagindo simultaneamente: uma causa material, ou a coisa a partir daqual algo era feito; uma causa formal, ou a estrutura básica a ser im-posta sobre algo; uma causa eficiente, ou o agente de uma ação; e umacausa final, ou o propósito pelo qual a ação era empreendida.

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portanto, não eram menos importantes para explicar os pro-dutos da habilidade humana. A explicação em termos decausas finais constituía, para o Filósofo, a explicação emtermos do “bem”: as causas finais eram causas primeirasporque equivaliam à descrição da coisa. Ou seja, os patos,pelo fato de nadarem, exemplificava, tinham as patas pal-milhadas. Então era bom – para os patos – ter patas palmi-lhadas, pois ser nadador era parte da essência de um pato.E uma descrição adequada do que era ser um pato requeriauma referência ao nadar. As causas finais, portanto, não seimpunham à natureza por meio de considerações teóricas,e sim eram concebidas como se fossem observadas na na-tureza.49

Uma explicação teleológica era, portanto, uma explica-ção que recorria a objetivos ou causas finais. Por vezes, ateleologia de Aristóteles se resumia no lema: “a natureza nadafaz em vão”. Isto é, o comportamento natural e sua estruturadevem ter causas finais, já que a natureza nada produzia emvão: fazia o melhor que podia em cada circunstância. Se as“artes eram imitações da natureza”, então também podia havercausas finais nos produtos da habilidade humana. Em vá-rias passagens, Aristóteles falava da natureza como o artíficeinteligente do mundo natural. Para isso, recorria à noção defunção: associava a explicação “com o objetivo de” à função,e via função na natureza. “A natureza nada faz em vão” cons-tituía sem dúvida um princípio regulador fundamental dainvestigação científica para Aristóteles: a captação da funçãoera crucial para a compreensão da natureza.50

As ciências, portanto, se diferenciavam pelos objetivospráticos que cada uma delas perseguia. Tal como descreviana Metafísica, o conhecimento era dividido em três tipos prin-

49 Cf. ARISTOTLE. Parts of animals (694a22-694b12). Trad. de W. Olgle. In:BARNES, op. cit., 1991, p. 1081.

50 Cf. BARNES, Jonathan. Aristóteles. Madrid: Cátedra, 1987. p. 128.

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cipais: 1) as ciências teóricas ou contemplativas, que diziamrespeito ao conhecimento, e tinham como objetivo a buscada verdade, contendo a maior parte do conhecimento huma-no (teologia, matemática, física); 2) as ciências práticas, quetratavam da ação e atuação humanas em diversas circuns-tâncias (ética, política, economia); e 3) as ciências produti-vas, que lidavam com a feitura de objetos úteis, isto é,ocupavam-se da produção das coisas (agricultura, engenha-ria, arte).

O conhecimento teórico ou contemplativo subdividia-se em três espécies de filosofias ou ciências teóricas: A) ateologia (ou metafísica), que considerava as coisas ou subs-tâncias puras que existiam independentemente de qualquerrelação com a matéria e eram imutáveis,51 B) a matemática,que também tratava das coisas imutáveis, mas só daquelasque eram abstraídas dos corpos físicos e, por isso, não ti-nham existência separada, tais como números e figuras geo-métricas; e C) a física,52 que tratava das coisas que nãosomente desfrutavam de uma existência autônoma, mas eramtambém mutáveis e tinham uma fonte inata de movimento edescanso, e, portanto, aplicável tanto a corpos animadosquanto inanimados. A ciência suprema entre todas, segundoAristóteles, era aquela que tratava das “substâncias imutá-veis”, divinas, e consistia no estudo teórico dos primeirosprincípios e causas das coisas.53

51 “O seu nome”, explica Ross, “deve-se ao fato de a primeira dessas subs-tâncias puras ser Deus”. In: ROSS, Sir David. Aristóteles. Lisboa: DomQuixote, 1987. p. 71.

52 Do grego, physiké, que se traduz como “ciência natural”.53 “Therefore, if all thought is either practical or productive or theoretical

[...]. There must, then, be three theoretical philosophies, mathematics,natural science, and theology, since it is obvious that if the divine ispresent anywhere, it is present in things of this sort. And the highestscience must deal with the highest genus, so that the theoretical sci-ences are superior to the other sciences, and this to the other theoretical

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O objetivo da investigação científica era servir de ins-trumento para a sistematização do conhecimento de cadamatéria. Partindo dessa concepção, Aristóteles percorria umlongo caminho no qual tentava dar conta de uma visão domundo. Assim como a teologia era a ciência superior entre asformas de investigação teóricas, no ramo das ciências práti-cas esse papel cabia ao conhecimento da política, a ciênciasuprema entre todas, que subordinava as demais. Essa ciên-cia prática aristotélica também se subdividia em três partes:o estudo da ética ou das questões morais pensadas a partirdo indivíduo; a economia, que dizia respeito à administraçãoda ordem doméstica; e a política propriamente dita, ou o es-tudo da organização civil dos grupos humanos, que supu-nha a ética, já que a justiça coletiva emergia da qualidademoral da ações individuais.

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A ética, dizia o Filósofo, se ocupava das formas de exce-lência moral, as quais eram produzidas e destruídas pelasmesmas causas e pelos mesmos meios:

pelos atos que praticamos em nossas relações com oshomens nos tornamos justos ou injustos; pelo que faze-mos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou daousadia, nos tornamos valentes ou covardes. [...] Numapalavra: as diferenças de caráter nascem de atividadessemelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade

sciences. [...] if there is no substance other than those which are formedby nature, natural science will be the first science; but if there is animmovable substance, the science of this must be prior and must befirst philosophy, and universal in this way, because it is first. And it willbelong to this to consider being qua being – both what it is and theattributes which belong to it qua being.” In: ARISTOTLE. Methaphisics(VI:1025b19-1026a33). Trad. de W. D. Ross. In: BARNES, op. cit., 1991,p. 1619.

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dos atos que praticamos, porquanto da sua diferença sepode aquilatar a diferença de caracteres.54

Por essa razão, Aristóteles podia afirmar que a investi-gação no campo da ética pretendia conhecer como os ho-mens se tornavam bons e, conseqüentemente, justos. Poisas ações determinavam a natureza das disposições moraiscriadas. O princípio geral a ser presumido era o de que seagiria segundo uma regra justa.

Sua intenção era, portanto, estabelecer uma teoria daconduta que se detivesse nas regras gerais, e não nos casosparticulares – que, como ele avisava, variavam de acordo comas circunstâncias em que ocorriam. Um médico, exemplifica-va, devia tratar cada paciente de acordo com as suas neces-sidades e condições, não podendo prescrever sempre o mesmotratamento para todos. Da mesma forma que o vigor e a saú-de, a excelência moral era constituída de modo a ser destruídapelo excesso e pela deficiência: “a temperança e a coragem,pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, e preservadaspela mediana [mesotes]” (Ética, 1104b). No meio-termo, por-tanto, repousava a suprema virtude. Na Ética,55 portanto, aquestão do bem era tratada do ponto de vista do indivíduo:consistia numa discussão sobre o tipo de caráter – aretê56 –que os homens “bons” deveriam cultivar a fim de atingir o“bem viver” – eudaimonia.57

54 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de L. Vallandro e G. Bornheim, 1103b.São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 267-8.

55 Do grego, ethika, que quer dizer “questões relacionadas ao caráter”. Porconsistir num conhecimento prático, assim como a política, a finalidadeda ética era afetar a ação.

56 Em grego, aretê, significa algo como “bondade”, “excelência” ou ainda“virtude”. Optou-se aqui pela tradução de Barnes, que utiliza o conceito“excelência” para designá-la. Cf. BARNES, op. cit., 1987, p. 130 et seq.

57 A palavra grega eudaimonia, geralmente traduzida por “felicidade”, émais bem expressa pela idéia de “atividade em concordância com aexcelência”, “boa vida” ou ainda “bem-estar”, “bem viver”.

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A excelência moral, continuava, relaciona-se com o de-leite e com o sofrimento: “é por causa do prazer que pratica-mos más ações, e por causa da dor que nos abstemos deações nobres” (1104b). E explicava adiante: “Essa é tambéma razão por que tanto a virtude como a ciência política giramsempre em torno de prazeres e dores, de vez que o homemque lhes der bom uso será bom e o que lhes der mau uso serámau” (1105a). Como o bem constituía o fim de toda ação eindagação, ele consistia no fim último ao qual todas as coi-sas, humanas ou naturais, visavam. Este bem, escrevia ele,era o objeto da ciência “mais imperativa e predominante so-bre tudo”, a ciência da política.58 A Ética – ou o estudo decomo um único homem atingia a finalidade suprema da suaexistência, o bem – era anunciada portanto como uma espé-cie de preâmbulo ao estudo de como uma ou várias cidadesatingiam esse mesmo fim, isto é, o estudo da política.

O mais alto bem que poderia levar à ação era, portanto,segundo Aristóteles, a eudaimonia, ou o “bem viver”, comu-mente identificada – até mesmo pelas pessoas mais qualifi-cadas – à felicidade. As divergências, explicava, se davam emtorno do que realmente seria esse “bem viver”, para uns oprazer ou a riqueza, para outros a saúde ou as honrarias.59 A

58 “Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legislasobre o que devemos e sobre o que não devemos fazer, a finalidade dessaciência deve abranger a das outras, de modo que essa finalidade será obem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para oindivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e maiscompleto, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a penaatingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estados. Tais são, por conseguin-te, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciênciapolítica numa das acepções do termo” (Ética, 1094b – grifos meus).

59 Aristóteles admitia que virtudes como honra, prazer, razão e outraseram escolhidas porque se acreditava poder atingir por meio delas afelicidade (eudaimonia), o único fim supremo da ação. Eudaimonia significava a boa vida e, como tal, era composta, e não simples. Honra,

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virtude por meio da qual se podia atingir esse fim era a aretê,a excelência moral. Ser eudaimon equivalia a florescer, fazerda própria vida um êxito. Sua filosofia ética se traduzia nabusca dessa eudaimonia. Pois, assegurava Aristóteles, todosdesejavam florescer ou fazer as coisas bem. E todas as nos-sas ações, na medida em que eram racionais, dirigiam-se aessa finalidade última.60 Por essa razão ele podia dizer que aeudaimonia constituía uma “certa atividade da alma em con-cordância com a excelência” (1099b).

O que se dizia do indivíduo, explicava o Filósofo, condi-zia com tudo o que valia a respeito da cidade. Isto é, “que oobjetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciênciadedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãossejam bons e capazes de ações nobres” (1099b). O floresci-mento humano, portanto, ou fazer as coisas certas de ummodo excelente ou bom, requeria o exercício de certas facul-dades que definiam a vida.61 Assim, um homem que as exer-cia ou cultivava mal não estava fazendo de sua vida um êxito.

prazer e o resto podiam ser partes da boa vida porque constituíam valo-res intrínsecos. Para conduzir uma vida feliz, era necessário reconhecertanto as coisas que tinham valor quanto unificar sua busca num todocoerente. Isso requeria o exercício do que Aristóteles chamava dephronesis, “sabedoria prática”, isto é, de uma “disposição racional paraagir em relação aos bens humanos” (1097a-b). Cf. BARNES, J. Introdu-ção. In: ARISTOTLE. The politics. The politics and the constitution of Athens.Ed. S. Everson, Cambridge: University Press, 1996. p. xxviii-xxix.

60 Cf. BARNES, op. cit., 1987, p. 131.61 Aristóteles distinguia entre duas excelências: 1) a do caráter, entre as

quais se encontravam as chamadas virtudes morais (como a generosi-dade e a equanimidade), e também aquelas disposições a respeito de simesmo (como um grau adequado de ostentação e de engenho); e 2) a dointelecto, que incluía coisas como o conhecimento, o bom juízo, a “sabe-doria prática”. Esta requeria experiência e tempo e devia tanto seu nas-cimento quanto crescimento à instrução. Já a primeira, a excelênciamoral, era produto do hábito e nada tinha que ver com a natureza: anatureza nos dava apenas a capacidade de recebê-la; mas essa capaci-dade se aperfeiçoava com o hábito, tal como as artes (cf. Ética, 1103a).

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“Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisla-dores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhesincutem. Esse é o propósito de todo legislador, e quem nãologra tal desiderato falha no desempenho de sua missão. Nis-so, precisamente, reside a diferença entre as boas e as másconstituições” (1103b).

A excelência moral, portanto, que se caracterizava porconstituir um meio-termo entre duas deficiências morais – oexcesso e a falta – e visava às situações intermediárias nasemoções e nas ações, só podia ser atingida no meio-termo, oqual, admitia ele, era muito difícil se alcançar. Para atingi-lo,era preciso primeiro evitar seu extremo mais contrário, pois,de dois extremos, dizia, um induzia mais ao erro e outromenos. Se não era possível atingir o objetivo mais desejável,devia-se escolher então o menor dos males. E aconselhava:“em todas as coisas o agradável e o prazer é aquilo de quemais devemos defender-nos, pois não podemos julgá-lo comimparcialidade. A atitude a tomar em face do prazer é, por-tanto, a dos anciãos do povo para com Helena [...]; porque, senão dermos ouvidos ao prazer, corremos menos perigo deerrar. Em resumo, é procedendo dessa forma que teremosmais probabilidades de acertar com o meio-termo” (1109b).

O estudo desse meio-termo, quando aplicado às no-ções de justiça e injustiça, constituía peça fundamental paraa investigação da ciência que tratava a política. A palavrainjusto, segundo ele, aplicava-se tanto às pessoas que infrin-giam a lei quanto àquelas iníquas e ambiciosas, que deseja-vam mais do que aquilo a que tinham direito. Por oposição,as pessoas que cumpriam a lei e aquelas que eram corretasdeviam ser consideradas justas.62 De onde concluía que to-dos os atos conformes à lei eram, num certo sentido, justos.Pois as leis, em seus preceitos, visavam ao interesse comum

62 “O justo é, portanto”, escrevia, “o respeitador da lei e o probo, e o injustoé o homem sem lei e ímprobo” (1129a).

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de todas as pessoas.63 Por isso, devia-se nomear justos aquelesatos que tendiam “a produzir e a preservar, para a sociedadepolítica, a felicidade e os elementos que a compõem” (1129b).

A lei era aquilo que determinava como se devia agir,impondo a prática de certos atos e restringindo outros. Essaconcepção lhe permitia dizer que a justiça era

a virtude [aretê] completa no pleno sentido do termo porser o exercício atual da virtude completa. É completa por-que aquele que a possui pode exercer sua virtude não sósobre si mesmo, mas também sobre o seu próximo. (1130a)

E era no exercício do poder que o homem se revelava,constatava o Filósofo, “pois necessariamente quem governaestá em relação com outros homens e é um membro da so-ciedade” (1130a). Pela mesma razão, entre todas as formasde excelência moral, somente a justiça constituía o “bem dosoutros”. Excelência moral e justiça, portanto, podiam ser tra-tadas como equivalentes, embora tivessem essências dife-rentes.64 A injustiça, por sua vez, associava-se geralmente aoexercício de uma deficiência moral em relação ao próximo.

Justiça, definia Aristóteles, consistia naquela qualida-de que nos permitia dizer estar uma pessoa predisposta afazer, por sua própria escolha, aquilo que fosse justo.65 Nosentido político, o justo se apresentava entre

63 U. Charpa chama a atenção para um ponto interessante: ao comentar opapel da ação justa em Aristóteles, o autor observa que ela não tinhaseu fundamento nem nos costumes dos ancestrais nem em qualquerbase divina: era um produto exclusivamente humano. Pois caracteriza-va-se, segundo o Filósofo, pelo fato de permitir uma reconstruçãoargumentativa do que deveria ser o “bom direito”, o justo de cada pes-soa. Cf. CHARPA, Ulrich. Aristoteles. Frankfurt am Main: Campus Verlag,1991. p. 96.

64 “Aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como uma deter-minada disposição de caráter e em si mesmo, é virtude” (1130a).

65 “E justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica,por escolha própria, o que é justo, e que distribui, seja entre si mesmo

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homens que vivem em comum tendo em vista a auto-sufi-ciência, homens que são livres e iguais, quer proporcio-nalmente, quer aritmeticamente, de modo que entre osque não preenchem esta condição não existe justiça políti-ca [...]. Com efeito, a justiça existe apenas entre homenscujas relações mútuas são governadas pela lei; e a lei exis-te para os homens entre os quais há injustiça, pois a jus-tiça legal é a discriminação do justo e do injusto. (1134a)

Ao governante cabia, portanto, na qualidade de guardiãoda justiça comum, agir de acordo com as leis.66

Por estarem consubstanciadas na lei, a justiça e a injus-tiça existiam entre as pessoas cujas relações eram natural-mente regidas por meio da lei. Quer dizer, pessoas quealternadamente participavam do governo e eram governadas.Uma parte da justiça política era natural, outra legal: “naturalaquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existeem razão de pensarem os homens deste ou daquele modo;legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depoisque foi estabelecida” (1134b7). Ou seja, havia coisas que eramtais por natureza e outras que não eram naturais, e sim legaise convencionais. Agir justamente significava escolher volunta-riamente o justo, com base na excelência moral.

e um outro, seja entre outros dois, não de maneira a dar mais do queconvém a si mesmo e menos ao seu próximo (e inversamente no relativoao que não convém), mas de maneira a dar o que é igual de acordo coma proporção; e da mesma forma quando se trata de distribuir entreduas outras pessoas. A injustiça, por outro lado, guarda uma relaçãosemelhante com o injusto, que é excesso e deficiência, contrários à pro-porção, do útil ou do nocivo” (1134a).

66 E completava adiante: “Aí está por que não permitimos que um homemgoverne, mas o princípio racional [a lei], pois que um homem o faz no seupróprio interesse e converte-se num tirano. O magistrado, por outrolado, é um protetor da justiça e, por conseguinte, também da igualdade.E visto supor-se que ele não possua mais do que a sua parte, se é justo[...], ele deve, portanto, ser recompensado, e sua recompensa é a honrae o privilégio; mas aqueles que não se contentam com essas coisas tor-nam-se tiranos” (1134a-b).

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A vida feliz, dizia Aristóteles, era aquela que estava emconformidade com a aretê e requeria diligência. O caráter deuma pessoa, portanto, devia estar previamente provido dealguma afinidade com a excelência moral, amando o nobre edetestando o aviltante. Assim, para ser boa, uma pessoa de-via ser acostumada e exercitada, durante toda vida, em ativi-dades concordantes com a excelência moral, abstendo-se depraticar ações más.67 Esse objetivo podia ser alcançado sem-pre que as pessoas vivessem de acordo com a reta razão numsistema correto dotado de poder coercitivo. Era a lei, e não aautoridade paterna, esclarecia Aristóteles, que tinha o poderde compulsão, constituindo ao mesmo tempo uma normaoriginada de um tipo de sabedoria e razão prática. Por isso, omais correto era tratar questões de educação e de trabalhocomo tarefas públicas (1180a).

As pessoas executariam melhor essa tarefa, explicava,se se tornassem capazes de legislar.

Porque o controle público é evidentemente exercido pelasleis, e o bom controle por boas leis. Que sejam escritas ounão, parece não vir ao caso, nem tampouco que sejam leisprovendo à educação de indivíduos ou de grupos – assimcomo isso também não importa no caso da música, daginástica e de outras ocupações semelhantes. (1180b)

Era por isso que estudar como se constituíam as leis, esobretudo as boas leis, os tipos de influências que construíam

67 “[...] pois levar uma vida temperante e esforçada não seduz a maioriadas pessoas, especialmente quando são jovens. Por essa razão, tanto amaneira de criá-los como as suas ocupações deveriam ser fixadas pelalei; pois essas coisas deixam de ser penosas quando se tornaram habi-tuais. Mas não basta, certamente, que recebam a criação e os cuidadosadequados quando são jovens; já que mesmo em adultos devem praticá-las e estar habituados a elas, precisamos de leis que cubram tambémessa idade e, de modo geral, a vida inteira; porque a maioria das pesso-as obedece mais à necessidade do que aos argumentos, e aos castigosmais do que ao sentimento nobre” (1180a).

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e destruíam os Estados, as boas e as más constituições esuas causas etc., era imprescindível para a construção daboa polis e da boa vida – e tarefa do estudo da arte e ciênciada política.68 A justiça, fundamento de toda vida coletiva, porconstituir uma relação, não podia ser praticada por indiví-duos isoladamente. Tampouco podiam as excelências huma-nas ser exercidas por eremitas.

O homem, esclarecia Aristóteles, era por natureza umanimal civil (zoon politikon).69 Essa afirmação derivava de suateoria da natureza humana, segundo a qual os animais pro-priamente sociais eram todos aqueles que exerciam algumaatividade particular comum, como as abelhas, os homens,as formigas etc. Ou seja, não bastava serem animais gregários:era preciso que repartissem também um objetivo comum. Ea particularidade dos seres humanos residia no fato de, dife-rentemente dos outros animais sociais e gregários, discerni-rem entre o bem e o mal, o justo e o injusto. Participar dessascoisas era o que caracterizava “uma família e um Estado”.Comunidade e Estado não eram ligações artificiais impostasao homem natural: constituíam manifestações da próprianatureza humana. E isso era o que ele pretendia demonstrarna Política.

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Mas, afinal, o que significava conhecer a política? Al-cançar a compreensão de algo, dizia Aristóteles, era ser ca-

68 “Após estudar essas coisas”, escrevia o Filósofo, “teremos uma perspec-tiva mais ampla, dentro da qual talvez possamos distinguir qual é amelhor constituição, como deve ser ordenada cada uma e que leis ecostumes lhe convém utilizar a fim de ser a melhor possível” (1181b).

69 O termo abrangia, em grego, tanto a dimensão propriamente políticaquanto a social.

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paz de fornecer certas explicações básicas para o objeto emquestão: qual era sua forma, de que era feito e para que ser-via. No caso de um Estado, definia ele, sua forma era a cons-tituição de que dispunha; sua matéria, os seus cidadãos; eseu propósito, o bem-estar destes. A investigação política,entretanto, diferentemente da física, por exemplo, não cons-tituía apenas uma “ciência” (episteme), mas também uma“arte” (techne).70 Isto é, embora tivesse princípios gerais defuncionamento, tinha também de ser praticada, como a mú-sica, pois somente a experiência – ou a sabedoria prática –podia fornecer “obras de arte” como as boas leis.

Assim, o pensador político devia considerar não ape-nas o melhor governo e de que tipo ele devia ser para maisconcordar com as aspirações de seus cidadãos, mas precisa-va saber também qual seria o melhor tipo de Estado em cir-cunstâncias particulares, quando estas não eram ideais. Oobjetivo do estudioso da política, portanto, era produzir umtipo de Estado que tornasse seus membros capazes de al-cançar a eudaimonia. Para isso, precisava conhecer como osEstados funcionavam e, em particular, as causas de sua ge-ração, preservação e destruição. Sem esse conhecimento, elenão seria capaz de produzir estruturas constitucionais quepermitissem a um Estado criado sobreviver. Para dar contadesse programa de pesquisa, Aristóteles explicava que todapolis71 era uma espécie de comunidade. Como toda comuni-

70 Cf. ARISTÓTELES. Ética (1180b-1181a). Na Ética, esclarece Barnes, umatechne era definida como uma “disposição produtiva envolvendo umresultado verdadeiro” (1140a10). Isto é, adquirir a arte política equiva-lia a obter uma disposição para produzir algo. A aquisição dessa dispo-sição era o resultado do processo de entendimento da relevância doobjeto, razão pela qual uma arte envolvia a posse de um resultado ver-dadeiro. O cientista político, portanto, precisava dar conta de seu obje-to, o Estado, conhecer seu significado e sobretudo seu propósito. Cf.BARNES, op. cit., 1996, p. xxxii.

71 O termo “polis” designava a cidade-Estado grega, que se caracterizavacomo uma unidade política autônoma e auto-suficiente, voltada para a

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dade se formava com vistas a algum bem – fim de todas asações praticadas pelos seres humanos –, então a mais im-portante delas, que incluía as demais, era a polis ou a comu-nidade política.

Para examinar como se davam a relação de mando e oselementos que compunham a polis, Aristóteles dizia que erapreciso primeiro decompor o conjunto até chegar a seuselementos mais simples.72 (1252a), critério fundante de seumétodo explicativo. Assim procedendo, concluía que os ele-mentos básicos da menor unidade existente, a família, eramo senhor, a mulher e o escravo.73 A comunidade de váriasfamílias formava um povoado, constituído para a satisfaçãode algo mais do que as simples necessidades diárias. À co-munidade que se constituía a partir de diversos povoados e

satisfação das necessidades e interesses dos seus membros, os cida-dãos. Muitos são os vocábulos utilizados para expressá-la: é freqüenteencontrar a noção traduzida por “cidade”, “Estado”, “cidade-Estado”,“comunidade política”, entre outras. Neste texto, a palavra grega serámantida. Onde houver citações de outros autores, será mantido o vocá-bulo empregado pelo tradutor para designá-la.

72 As citações da Política aqui constantes foram retiradas de duas edições,uma brasileira: ARISTÓTELES. Política. Trad. de Mário da Gama Kury.Brasília: Editora da UnB, 1988; e outra inglesa: ARISTOTLE. The politics.Ed. S. Everson. Cambridge: University Press, 1996. A indicação daspassagens, contudo, continuará obedecendo ao sistema internacional,constante em quase todas as traduções contemporâneas.

73 Como unidades naturais, o senhor e a mulher se uniam para a perpetu-ação da espécie. E da união entre um comandante e um comandadonaturais (senhor e escravo) – união que visava à preservação recíproca– resultava a satisfação das necessidades diárias de uma casa. De ondedecorria que todos os membros dessa unidade básica compartilhavamdos mesmos interesses (1252b). A função do chefe da família sedesmembrava nas partes correspondentes aos elementos que a forma-vam: a relação matrimonial, a de paternidade e a de posse. Os benseram um dos elementos constituintes da família, e “a arte de enrique-cer” fazia parte da função do chefe, já que os bens, entre os quais esta-vam os escravos, constituíam um instrumento para assegurar a vida(1254a).

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se unia num único grupo completo grande o bastante paraser auto-suficiente, ele chamava polis. Além de assegurar avida de seus membros, a polis era constituída para lhes pro-porcionar uma vida melhor – a “boa vida” ou eudaimonia – econstituía o estágio final do desenvolvimento natural da uni-dade primeira, a família (1253a).

Como se podia afirmar a naturalidade da polis? O serhumano, explicava o Filósofo, era um animal naturalmentecivil, a quem a natureza, que nada fazia em vão, concedeu odom da fala. E um homem que, por alguma razão, não fizes-se parte da polis, seria um monstro, dizia, ou um super-ho-mem acima da humanidade. Pois o homem era um animalnaturalmente gregário. Em comparação com outros animais,sua característica específica residia no fato de que apenas eletinha o senso do bem e do mal, do justo e do injusto, e outrasqualidades morais (1252b-1253a). A associação de seres vi-ventes com tais sentimentos constituía unidades comuns,como a família e a polis.74 A justiça era, portanto, o laço queunia os homens em uma polis, pois a administração da jus-tiça, isto é, a determinação do justo, constituía o princípioordenador de uma sociedade política (1253a35).

Em todas as coisas compostas, continuava, semprehaveria alguém para mandar e outro para obedecer. Essaparticularidade dos seres humanos decorria da filosofia na-tural como um todo, pois, “mesmo em coisas que não têmvida, há um princípio dominante, como no caso da harmoniamusical” (1254a). Um ser vivo, prosseguia, era constituídode alma e corpo: a primeira era por natureza dominante; oúltimo, dominado. Mas era apenas no homem, que possuía omais perfeito estado de ambos, que se podia distinguir a na-tureza do comando do senhor e o do legislador. Em todas as

74 Mas avisava: quando destituído de excelência, isto é, das qualidadesmorais que produziam o bem, o homem tornava-se o mais impiedoso eselvagem dos animais (1253a15).

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criaturas viventes era observável uma regra despótica e ou-tra constitucional: assim, a alma governava o corpo com umaregra despótica, enquanto o intelecto regia os apetites pormeio de uma regra constitucional e real (1254b).

Aquele que fosse suscetível de pertencer a outrem eraescravo por natureza. Por isso, só participava da razão até oponto de apreender essa participação, mas não ia além. Aautoridade de um senhor sobre os escravos, portanto, nãoera comparável à autoridade do governante sobre seus súdi-tos. Pois nem todas as formas de mando eram iguais: haviaum tipo de autoridade aplicável sobre os homens natural-mente livres, que diferia daquela aplicável aos escravos.75 Aautoridade do chefe de família era de tipo patriarcal, já quecada família era governada por um chefe. Já a autoridadeespecificamente política, aquela característica da polis, eraexercida sobre homens livres e iguais (1255b).

Uma das marcas distintivas dessa comunidade políti-ca, que era mais do que uma coleção de aldeias, consistia nofato de dispor de uma constituição resultante de deliberaçãoe escolha. Nesse sentido, era mais um artifício do que umanatureza. Mesmo sendo matéria de deliberação, argumenta-va o Filósofo, o Estado não deixava de ser natural, pois cons-tituía o objetivo último (telos) do processo de desenvolvimentosocial, cuja raiz era natural – assim como o fim da larva eratornar-se borboleta. Ou seja, o Estado plenamente constituí-do era natural. Mas devia ser mantido pelos homens, isto é,

75 Mas havia, por natureza, vários tipos de comandantes e comandados,já que o homem livre comandava o escravo diferentemente do modocomo comandava a fêmea e a criança. Todos possuíam as várias partesda alma, mas de formas diferentes: o escravo não detinha a faculdadeda deliberação; a mulher a tinha, mas sem autoridade plena; e a crian-ça também, mas ainda em formação. “Deve-se necessariamente suporque o mesmo ocorra quanto às excelências [ou qualidades morais]: to-dos devem partilhá-las, mas apenas de maneira e no nível exigido decada um para o cumprimento de sua função” (1260a).

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por cidadãos que escolhiam e deliberavam, de modo a pre-servar ao máximo o fim para o qual existia, o bem da comu-nidade. Sua degeneração ou corrupção seria mais ou menosrápida de acordo com a capacidade de seus membros de cul-tivar a forma constitucional mais adequada ao seu Estado.76

O que determinava os atributos de uma polis era, por-tanto, a forma de sua constituição (1276b). Como essa polis– objeto da atividade do estadista ou legislador – era umaespécie de reunião de cidadãos sob um mesmo governo, es-crevia Aristóteles, qualquer alteração na forma desse gover-no modificava também a configuração de sua estrutura. Oscidadãos podiam diferir entre si, mas repartiam, todos, umapreocupação: a segurança da comunidade que habitavam. Ese a comunidade equivalia à sua constituição, então a exce-lência do cidadão deveria relacionar-se à excelência da cons-tituição da qual ele participava. Como havia várias formas degoverno (ou constituições), não podia existir apenas uma ex-celência que fosse a única perfeita de um bom cidadão: abondade do cidadão não era uma só, pois a polis era consti-tuída de pessoas dissímiles (1277a).77

76 A natureza de uma substância era para o Filósofo um princípio internode mudança. Por isso ele podia dizer que o Estado era natural: porqueconstituía o fim do processo de desenvolvimento social. Aqui ele estavaapenas aplicando sua explicação geral da transformação natural à teo-ria do Estado. A idéia de fim era teleológica: a transformação naturalnão seria propriamente explicada a menos que seu propósito se tornas-se claro. O telos não era o ponto no qual o processo de crescimentoterminava, e sim era o ponto que justificava todo o processo. Cf. BARNES,op. cit., 1996, p. xxi-xxiii.

77 Como toda polis era composta de uma multidão de cidadãos (em núme-ro suficiente para assegurar sua independência), era preciso investigarprimeiro a natureza do cidadão, e o tipo de pessoa que devia ser assimdenominada. O cidadão no sentido estrito, afirmava, tinha como carac-terística especial dividir a administração da justiça e o exercício dasfunções públicas. Isto é, participava das funções deliberativa e judicialnuma comunidade. Mas essa definição de cidadão, alertava Aristóteles,

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Se havia diversos tipos de cidadãos, era lógico que exis-tissem várias formas de governo. Uma constituição era defi-nida pelo ordenamento dos magistrados de uma cidade – istoé, das diversas funções de governo –, especialmente do maiordeles. O governo exercia em toda parte a supremacia na polis,e a constituição era o próprio governo. Nas democracias, porexemplo, dizia ele, o povo detinha o poder supremo.78 Já numaoligarquia apenas uns poucos e numa monarquia apenasum homem ou uma família. Daí serem as formas constitu-cionais diversas (1278a-b). A forma de governo de uma polisera definida, portanto, segundo o tipo de ordenamento dopoder: se era exercido por um (monarquia), por poucos (aris-tocracia) ou por uma multidão (governo constitucional).79 Porisso, podia afirmar que constituição e governo eram dois vo-cábulos que tinham o mesmo significado.

Os homens eram, por natureza, animais políticos e ten-diam à vida em sociedade por repartirem interesses comuns,os quais permitiam a cada um deles alcançar um certo nívelde bem-estar. Esse era certamente “o fim principal tanto dos

aplicava-se especificamente a uma politéia. O cidadão seria diferentesob cada forma particular de constituição da polis (1275a-b).

78 A melhor forma de governo, argumentava Aristóteles, parecia ser aque-la na qual a maioria dos cidadãos exercia o poder supremo. Pois, embo-ra os integrantes da maioria pudessem, isoladamente, não ser bons,quando reunidos eram em geral melhores do que os poucos individual-mente bons. Ou seja, porque cada indivíduo, entre os muitos, “tem umaporção de excelência e de sabedoria prática, e quando eles se reúnem écomo se de alguma maneira se tornassem um só homem, o qual temmuitos pés, e mãos, e sentidos; assim também ocorre em relação ao seucaráter [ou faculdades morais] e pensamento [ou intelecto]”. Mas nemsempre a superioridade coletiva da maioria excedia em excelência ospoucos homens: por isso, havia várias formas de governo que visavamao bem comum (1281b).

79 As perversões dessas formas, prosseguia, eram respectivamente a tira-nia (que visava apenas ao interesse do monarca), a oligarquia (que visa-va ao interesse dos ricos) e a democracia (que perseguia somente ointeresse dos pobres) (1279a-b).

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indivíduos quanto do Estado” (1278b). Uma polis, portanto,era formada não apenas para assegurar a vida, mas tambémpara proporcionar a boa vida (eudaimonia). Por isso, ela cons-tituía mais do que uma mera reunião de pessoas num lugarcomum, com o objetivo de evitar ofensas recíprocas e trocarprodutos. Embora fossem pré-requisitos para a sua existên-cia, esses fins não bastavam para constituir uma polis, quedevia ser perfeita e auto-suficiente. Suas instituições eram osinstrumentos que a conduziam para seu fim. E, por ser essamaneira de viver feliz e enobrecedora, a sociedade políticadevia existir para a prática de ações nobres (1281a).

Tanto as instituições quanto as ações nobres reque-riam definições do “justo e do injusto”. Embora a capacidadepara adquirir esse senso fosse de fato natural e inata, expli-cava o Filósofo, conferir-lhe efetividade requeria a participa-ção num agrupamento cujo “princípio fundamental deordenação” era a administração da justiça. Apenas os sereshumanos, assegurava ele, partilhavam tanto as relações so-ciais quanto a habilidade para regular seu comportamentosegundo a virtude. O melhor governo, portanto, seria aquelecujos membros estivessem mais bem equipados para sabercomo preencher o propósito do Estado: permitir aos cida-dãos alcançar a eudaimonia. Mas, quer o governo estivessenas mãos de uma pessoa, de poucas ou muitas, sua funçãoera sempre a mesma. O crucial não era quem governava,mas que se governasse de maneira justa. Isto é, de acordocom o interesse comum.

Para assegurar a justiça, esclarecia o Filósofo, os ho-mens procuravam um instrumento: a lei (1287b). E as leis,que regulavam a vida de uma polis, seriam boas ou más, jus-tas ou injustas, segundo a forma do governo. As leis tinhamde ser adaptadas às diferentes constituições, de acordo com anatureza de cada uma delas.80 Quando isso acontecia, as for-

80 “Um povo capaz por natureza de produzir uma estirpe excelente nasqualidades necessárias ao comando político é um povo feito para a mo-

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mas verdadeiras de governo deveriam necessariamente terleis justas, e as formas degeneradas de governo teriam leisinjustas. Uma constituição era pervertida quando os gover-nantes legislavam mais em seu próprio interesse do que nointeresse dos cidadãos como um todo, o que constituía injus-tiça. Em todas as ciências e artes, continuava ele, o fim eraum bem; e o bem supremo e mais elevado entre todos era aciência política,81 cujo fim era a justiça comum – ou, dito deoutro modo, o interesse comum (1282b).

Ou seja, segundo Aristóteles, as comunidades políticasapareciam sob formas diferentes. A polis, especificamente,constituía uma reunião de cidadãos. E um cidadão se definiamelhor “por sua participação nas funções judiciais e encar-gos políticos”. Os assuntos de um Estado deviam, sempreque possível, ser geridos diretamente pelos cidadãos, cadaqual membro da assembléia ou corpo deliberativo da nação.

narquia; um povo cujos componentes se sujeitam, como homens livres,a ser governados por homens cujas qualidades os credenciam para ocomando político é feito para a aristocracia, e o povo feito para o gover-no constitucional é aquele entre cujos componentes existe uma maioriacombativa, constituída de homens capazes de mandar e obedeceralternadamente sob uma lei que distribui as funções de governo entreos homens de posses de acordo com seus méritos” (1288a).

81 “It would seem to belong to the most authoritative art and that which ismost truly the master art. And politics appears to be of this nature; for itis this that ordains which of the sciences should be studied in a state,and which each class of citizens should learn and up to what point theyshould learn them; and we see even the most highly esteemed of capacitiesto fall under this, e.g. strategy, economics, rhetoric; now, since politicsuses the rest of the sciences, and since, again, it legislates as to what weare to do and what we are to abstain from, the end of this science mustinclude those of the others, so that this end must be the good for man. Foreven if the end is the same for a single man and for a state, that of thestate seems at all events something greater and more complete both toattain and to preserve; for though it is worth while to attain the end merelyfor one man, it is finer and more godlike to attain it for a nation or for city-states. These, then, are the ends at which our inquiry, being concernedwith politics, aims” (1094a18-1094b11).

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O poder político detido por um cidadão variava de acordocom o tipo de constituição de que desfrutava a sua cidade: asdiferentes constituições confiavam a pessoas ou instituiçõesdiversas a autoridade de legislar e de determinar a política degoverno.

Uma polis, qualquer que fosse a sua constituição, de-via ser auto-suficiente e conseguir alcançar o objetivo para oqual existia: a “boa vida”. A meta do Estado, o bem viver,identificava-se portanto à eudaimonia, a meta dos indiví-duos.82 Esse objetivo da polis vinculava-se a outro ideal ele-vado: a liberdade, “princípio fundamental das constituições”,pois só um indivíduo livre era capaz de escolher e deliberar.Essa liberdade, contudo, era limitada aos cidadãos, catego-ria que excluía mulheres, crianças e escravos. O Estado de-via regular de diversas formas a vida de seus membros, jáque “todos os cidadãos pertenciam ao Estado”.83 Como cabiaao Estado fomentar a “boa vida”, este podia, com o objetivode melhorar a condição dos homens, intervir devidamenteem qualquer aspecto da existência humana e obrigar os seussúditos a tudo que os tornasse “felizes”.

O bom governante, portanto, tinha de ser capaz de res-peitar as circunstâncias particulares de seu povo, sem igno-rar as diversas constituições nem as possíveis combinaçõesentre elas. O mesmo discernimento político, dizia, iria permi-tir a um homem conhecer as melhores leis, e aquelas apro-priadas às diferentes formas de governo. Pois as leis eram – etinham de ser – moldadas com vistas à constituição, e não o

82 As cidades-Estados, que eram entidades naturais, tinham, como ou-tros objetos da natureza, uma meta ou fim: a teleologia era um traçonão apenas da filosofia natural de Aristóteles, mas também de sua teo-ria política. Cf. BARNES, op. cit., 1987, p. 135-7.

83 “Neither must we suppose that anyone of the citizens belongs to himself,for they all belong to the state, and are each of them a part of the state,and the care of each part is inseparable from the care of the whole”(1337a30).

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contrário. A forma de governo era a organização das funçõesdentro de uma polis e determinava o que devia ser o corpogovernante e qual o fim de cada comunidade.84 As leis, con-tudo, alertava, não deviam ser confundidas com os princí-pios da constituição: elas eram as regras segundo as quaisos magistrados deviam administrar a polis e proceder contraos ofensores. O legislador devia, portanto, conhecer as dife-rentes espécies de leis e formas de governo (1289a).85

As formas “puras” de governo, definia o Filósofo, eram:a monarquia, a mais extraordinária de todas quando visavaao interesse comum, mas que passava a ser a pior entre to-das quando degenerava em tirania; a aristocracia, que, quandocorrompida em oligarquia, seguia-se à tirania em matéria demau governo; e o governo constitucional, que, quando per-vertido, apresentava o desvio mais moderado: a democracia(1289b). Partindo dessas formas puras, inúmeras formasmistas podiam ser construídas, combinando elementos va-riados. E a razão para a existência de várias formas constitu-cionais repousava na diversidade que compunha a polis,formada de camadas sociais diversas. Aristóteles localizavaduas classes fundamentais numa comunidade política: ricose pobres. As demais oscilavam entre esses dois pólos.86 A

84 E eram necessárias tantas formas constitucionais quantos eram osmodos de ordenamento das funções numa comunidade política (1290a).

85 Toda forma de governo era composta de três partes que deviam sempreser conhecidas pelo bom legislador: a deliberação dos assuntos públi-cos; as funções públicas; e o poder judicial. O elemento deliberativodetinha autoridade em matéria de guerra e paz e de fazer e desfazeralianças; aprovava leis, infligia a morte, exilava, confiscava, elegia ma-gistrados e auditava suas contas (1298a).

86 Mas, de fato, as várias polis eram constituídas basicamente de oito par-tes: a massa dos agricultores, a classe dos artesãos, a comercial (quecomprava e vendia), a dos trabalhadores braçais, a dos defensores dacidade na guerra (militares), aquela encarregada de administrar a justi-ça, a dos ricos (que eram contribuintes) e, por fim, a dos servidorespúblicos e dos administradores (1291a-b).

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predominância de cada uma dessas partes era o que deter-minava a forma de governo.

Depois de discutir detalhadamente algumas de suasvariações, Aristóteles concluía que a tirania era a menos cons-titucional das formas de governo. E a mais devastadora entreas tiranias, especificava, era a monarquia absoluta, pois nelaa lei se submetia à vontade do monarca e visava aos seusinteresses particulares.87 Seguindo um princípio básico desua filosofia natural, Aristóteles aplicava à política a tendên-cia à virtude do meio-termo. A moderação, dizia ele, era ge-ralmente tida como o melhor, pois na posição intermediáriaera mais fácil obedecer à razão do que nos extremos, nosquais se tendia ou à não-obediência ou ao governo despóti-co.88 Por isso, afirmava, uma polis composta de cidadãos declasse média era necessariamente mais bem constituída noque dizia respeito aos seus elementos (1295a-b).89

Embora a condição média fosse a mais desejável, co-nhecer a melhor forma de governo para uma determinada

87 “E a regra da lei, argumenta-se, é preferível àquela de qualquer indiví-duo. Segundo o mesmo princípio, mesmo que fosse melhor ter certosindivíduos a governar, eles devem ser apenas nomeados guardiões eservidores da lei. Pois [...] é injusto dar autoridade a um único homemquando todos são iguais” (1287a).

88 Os governantes, embora não precisassem sempre governar segundo asnormas escritas, deviam estar imbuídos do princípio geral existente nalei. Pois a lei, diferentemente da alma humana, lembrava o Filósofo, nãoestava sujeita às paixões humanas, sendo-lhe por isso superior (1286b).

89 Essa era também a classe de cidadãos mais segura, esclarecia, pois nãocobiçavam, como os pobres, os bens alheios, nem eram objeto da cobiçade terceiros; e, dado que não tramavam contra outros, nem outros con-tra eles, passavam pela vida de maneira segura (1295b). A condiçãomédia da polis era claramente a melhor também por outra razão: ondea classe média era numerosa, dizia, havia menos probabilidade de exis-tir facções e partidos. Também por isso as democracias eram mais se-guras e duradouras do que as oligarquias. Pois tinham uma classe médiamais numerosa e, com isso, uma maior porção do governo (1295b-1296a).

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polis, insistia Aristóteles, implicava decidir primeiro qual eraa forma de vida mais desejável. Para chegar a um consensosobre ela, argumentava, era preciso começar falando da feli-cidade. Todo homem feliz, dizia, possuía três tipos de bens:os exteriores, os do corpo e os da alma (1323a). Os homensadquiriam e preservavam os bens exteriores graças às suasexcelências (ou qualidades morais). A felicidade, consistisseela no prazer ou na excelência, ou em ambos, era mais co-mumente encontrada entre aqueles mais cultivados em suasmentes e em seu caráter, e que detinham somente uma por-ção moderada de bens exteriores (1323b).

A felicidade de cada um era assim proporcional à suaexcelência e sabedoria e à sua conduta moral e sensatez.Conseqüentemente, podia-se demonstrar que a polis feliz eraaquela na qual os cidadãos agiam corretamente; e eles nãopodiam agir de modo reto sem executar ações corretas. Enem o indivíduo nem o Estado podiam agir corretamente semexcelência e sabedoria. Portanto, a melhor vida, tanto paraos indivíduos quanto para a polis, era a vida da excelência,quando esta detinha bens externos o suficiente para a práti-ca de ações (moralmente) boas (1324a).

A felicidade da polis era assim a mesma de cada ho-mem, pois, se os indivíduos eram virtuosos em razão de suasexcelências, ou qualidades morais, também a cidade moral-mente mais excelente seria a mais feliz (1324a). E o bomlegislador, esclarecia, devia examinar como os Estados e os“tipos” de homens e comunidades podiam participar da boavida e da felicidade a ser alcançada. Pois a felicidade, definiaAristóteles, como a política, era atividade. E as ações daspessoas justas e sábias conduziam à realização de muitasdas coisas nobres. Por isso, se existia uma pessoa superior anós em excelência e em capacidade, capaz de praticar as me-lhores ações, esta era a que se devia seguir e obedecer, desdeque desfrutasse tanto de capacidade para a ação quanto de

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excelência moral. Pois ser bem-sucedido constituía o objeti-vo da felicidade. E o sucesso era fundamentalmente umaatividade, uma forma de ação (1235b).

Quais eram então as bases para a constituição de umapolis que estivesse em concordância com nossos desejos?,perguntava o Filósofo. E respondia: como outros artesãos, oestadista ou legislador também precisava ter os materiasadequados à sua função. O primeiro desses materiais reque-ridos pelo estadista era a população: era preciso considerarqual devia ser o número e a característica dos cidadãos. Umapolis constituída de poucos habitantes não poderia ser auto-suficiente; mas também não seria fácil dotá-la de um gover-no constitucional se fosse muito grande e numerosa. Pois alei era ordem, e boa lei era boa ordem. Uma multidão muitonumerosa não podia ser mantida em boa ordem (1326a). Umapolis, portanto, só passava a existir quando atingia um nú-mero suficientemente grande de habitantes para a realizaçãoda boa vida na comunidade política.

Já as qualidades naturais da população de cidadãos,constatava o Filósofo, podiam ser de vários tipos, cabendo acada qual formas diferentes de governo. Havia povos inteli-gentes e inventivos, mas que careciam de coragem, vivendopor isso escravizados, como os nativos da Ásia. Outros ti-nham excesso de coragem, mas lhes faltava inteligência ehabilidade, como no caso dos povos dos lugares frios. Outrosainda, como os helênicos, participavam de ambas as carac-terísticas e, por isso, conservavam-se livres e tinham as me-lhores instituições políticas. Mas, quando comparados entresi, também os povos helênicos apresentavam certa diversi-dade. Aqueles povos que o legislador poderia conduzir maisfacilmente à excelência deviam ser considerados tanto inteli-gentes quanto corajosos (1328a).

As terras, continuava, deviam pertencer aos proprietá-rios de armas e aos detentores do direito de tomar parte no

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governo. Mas, embora a terra devesse ser propriedade pri-vada, advogava Aristóteles, seu uso devia ser comum, orga-nizado por meio de um consenso amistoso no qual nenhumcidadão fosse privado dos meios de subsistência. Para isso,as terras deviam ser divididas em duas partes: uma públi-ca, para uso comum; e outra privada (1330a). Desse con-junto de atributos decorria que algumas característicasdeviam ser preexistentes à formação de uma polis – como apopulação – e outras deviam ser supridas pelo legislador –como a distribuição da propriedade. Ou seja, a boa polis eraproduto tanto da ciência da política quanto de um certoacaso (1132a).

Como o estadista tinha a tarefa de tornar os cidadãosaptos para a felicidade, era preciso que soubesse neles de-senvolver aquelas qualidades morais que nos levavam achamá-los de bons.90 Como a alma dos homens dividia-senuma parte racional e noutra irracional, explicava Aristóte-les, o estadista devia legislar tendo isso em vista, e assimconsiderar as partes da alma e suas funções e, acima detudo, o melhor e o fim.91 Por isso, a educação devia ser ne-cessariamente uma só e a mesma para todos. E devia serpública, não privada. Pois o aprendizado das coisas que eramde interesse comum devia ser igual para todos. Como o cui-dado das partes era inseparável do cuidado do todo, a educa-

90 Três coisas tornavam os homens bons e excelentes: a natureza, poisnasciam com certas qualidades de corpo e alma; o hábito, que os guia-va; e a razão, faculdade exclusiva dos seres humanos, a qual permitiadistinguir o justo do injusto. A harmonização dessas três característi-cas proporcionava a felicidade (1332a).

91 “O mesmo princípio se aplica aos modos de vida e à escolha das ocupa-ções”, escrevia ele, “pois um homem deve ser capaz de dedicar-se aosnegócios e à guerra, mas ainda mais capaz de viver em paz e no lazer;ele deve fazer o que é necessário e útil, mas deve preferir o ótimo. Estedeve ser o escopo quanto à educação dos cidadãos, seja em sua infân-cia, seja mais tarde, quando se torna imperativo instruí-los” (1333a-b).

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ção constituía um assunto de Estado e devia ser regulamen-tada por lei (1337a).

Mas, antes de ter cidadãos deste ou daquele tipo, por-tanto, uma polis tinha de ser dotada de uma constituição.Isto é, tinha de ser unificada sob um governo. Pois ser umcidadão era ser um membro de alguma polis particular.92 Apolis era, portanto, anterior aos seus cidadãos, do mesmomodo que “o todo precedia necessariamente a parte”. Esseraciocínio lhe permitia sustentar que o Estado era “anteriorpor natureza à família e ao indivíduo” (1253a18-19). E exata-mente porque o Estado constituía aquele todo que precediaas partes, era uma sua tarefa, e não dos pais, cuidar da ins-trução das crianças. Pois a “negligência na educação fere aconstituição” (1137a12).

Ou seja, para além da naturalidade, a manutenção dacomunidade política dependia também da ação reguladora.Essa era uma idéia que iria inspirar fortemente tanto os pen-sadores políticos medievais quanto os modernos. Nas pala-vras de Aristóteles:

E por isso só podemos desejar ser nossa polis constituídade maneira tal que seja abençoada com os bens de quedispõe a fortuna (pois reconhecemos seu poder); excelên-cia e bondade no Estado, entretanto, não constituem umamatéria do acaso, mas o resultado de conhecimento eescolha (1332a).93

92 Era isso, aliás, o que explicava que aquele que era cidadão num governoconstitucional amiúde não podia ser considerado tal numa oligarquia(1275a3-5).

93 Optou-se aqui pela tradução da versão inglesa. Consta da versão brasi-leira: “Por isto devemos desejar que a organização da cidade seja bene-ficiada com aquelas qualidades das quais a sorte é a senhora(reconhecemos que ela exerce este domínio); mas não é por obra dasorte que a cidade age de acordo com as qualidades morais, e sim daciência e da premeditação” (1132a).

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Era esse conjunto de idéias, sistematizadas de manei-ra extremamente coerente, que passava a estar agora inte-gralmente disponível – e não mais apenas de forma indiretaou em fragmentos – aos pensadores ocidentais latinos. Omaterial não apenas permitia a revisão e ordenação das lei-turas feitas ao longo de toda a Idade Média, mas tambémfornecia, como conjunto, um sistema de pensamento maisadequado ao caminho de naturalização e secularização dasidéias e argumentos em curso desde pelo menos meados doséculo XI.

Mas era preciso também acomodar o Aristóteles gregoà realidade medieval do burgo. E mais complicado ainda:adaptá-lo ao imaginário medieval, profundamente marcadopela presença e pela crença inquestionável na existência deum Deus supremo, ordenador do natural e do sobrenatural.Esse trabalho de reinterpretação – que já vinha sendo reali-zado tanto por teólogos como por juristas e filósofos naturais– ganharia nova síntese na obra do dominicano Tomás deAquino, que, por ter tido à disposição não somente tradu-ções completas do que havia restado da obra do Filósofo,mas ainda boa parte da produção científica e teológica daépoca, pôde conferir a esse material nova roupagem e adequá-lo aos cânones da época.

Essa nova síntese, embora viesse de dentro dos murosda Ecclesia, não deixava contudo de contribuir de modo fun-damental para a secularização e naturalização do pensamen-to, fosse no raciocínio dos homens comuns, fosse naqueledos teóricos da política, disciplina cujas categorias básicasencontravam-se em franco processo de autonomização. Anatureza passava, paulatinamente, a se impor como media-dora entre o divino e o humano. Tornava-se a instância queoperava as ações, relegando a idéia de Deus a um papel cadavez mais abstrato. Isso era o que se podia perceber, por exem-plo, nos trabalhos de Alberto Magno ou de Tomás de Aquino,dois profundos conhecedores da filosofia grega.

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O grande feito de Tomás de Aquino, escreve Ullmann,foi realizar uma síntese entre a filosofia pagã aristotélica e acosmologia cristã, despojando a primeira daqueles elemen-tos inaceitáveis a um crente.1 Pode haver, é claro, algum exa-gero na formulação. Mas a ordenação conceitual produzidapor Tomás de Aquino, que incluía não apenas autores pa-gãos como Aristóteles, mas também as Escrituras e boa par-te da tradição medieval cristã acumulada ao longo dos sécu-los, permitiria pôr num novo patamar de fundamentaçãofilosófica os vários desenvolvimentos ocorridos até então noscampos da filosofia natural, do pensamento político, da ju-risprudência e da própria teologia. Mais do que cristianizaros antigos, Tomás de Aquino conferiu à filosofia clássica greco-romana uma nova roupagem, apropriando-a aqui, transfor-mando-a acolá, à moda dos mais respeitáveis pensadoresmedievais.

A grande identificação, entretanto, é comumente asso-ciada à filosofia aristotélica: é muito freqüente entre os co-mentadores a designação “aristotélico-tomista” paracaracterizar a filosofia produzida pelo Aquinate. Sem entrarno mérito desse debate – o que nos conduziria muito alémdos propósitos imediatos deste trabalho, a discussão das ca-tegorias propriamente políticas –, cabe talvez, no entanto,

1 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 167.

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mostrar de maneira cuidadosa alguns pontos relevantes emque esses estes dois corpos filosóficos se aproximam e sedistanciam. À primeira vista, a doutrina do Doutor Angélicoparece excessivamente próxima da do seu mestre grego. Mashá entre elas diferenças fundamentais.2

De maneira genérica, podem-se apontar primeiro algu-mas semelhanças mais evidentes: Tomás de Aquino utilizavaa lógica formal aristotélica. Ambos os pensadores raciocina-vam em termos de atualidade e potencialidade; de causasfinal, eficiente, material e formal; da divisão do pensamentocientífico entre teórico (ou especulativo), prático e produtivo.Também para os dois o objetivo supremo do esforço humanoera a contemplação intelectual. A livre escolha constituía,em ambos, a origem da ação moral. Distinguiam ainda omaterial do imaterial, a sensação da cognição, o temporal doeterno, o corpo da alma. Ambos fundavam todo conhecimen-to humano naturalmente atingível nas coisas sensíveis exte-riores. Os dois entendiam a cognição como um modo de ser,no qual aquele que conhecia e a coisa conhecida eram uma ea mesma coisa no que dizia respeito à realidade da cognição.

Todos esses princípios são, de maneira geral, reconhe-cíveis tanto em Tomás de Aquino quanto em Aristóteles. Es-sas coincidências básicas, alerta Owens, foram suficiente-mente impressionantes para ocasionar uma ampla aceitaçãodas duas filosofias como similares. “Mas quando se procuraa correspondência entre pontos específicos de ambas as dou-trinas acaba-se tropeçando em sérias dificuldades.” A me-lhor maneira de resolvê-las, entretanto, não é evitando-as,como fazem muitos autores quando rotulam uma proposi-ção de “aristotélico-tomista”, sugere o comentador, mas simprocurando compreendê-las a partir das premissas de cada

2 Cf. o ensaio de OWENS, J. Aristóteles e Aquino. In: KRETZMANN, N.; STUMP,E. (Ed.). The Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: UniversityPress, 1995. p. 38-59.

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pensador.3 O aviso é, com certeza, útil para evitar a simplifi-cação nebulosa e merece atenção.

Para Aristóteles, por exemplo, ser e essência eram idên-ticos em cada caso particular. Quando muito, podia existiruma diferenciação conceitual entre eles, embora fosse maisvantajoso para propósitos práticos enxergá-los como idênti-cos.4 Ser e essência eram conhecidos por meio da mesmaatividade intelectual. Já Tomás de Aquino reivindicava ex-plicitamente a existência de uma distinção real, em todas ascriaturas, entre a coisa e o seu esse: ser e essência (ouqüididade) seriam conhecidos por atos intelectuais radical-mente diferentes.5 Essa distinção era o ponto nevrálgico dadiferenciação tomista entre Deus e as criaturas.6

3 Cf. OWENS, op. cit., p. 38-9.4 “If, now, being and unity are the same and are one thing in the sense that

they are implied in one another as principle and cause are, not in thesense that they are explained by the same formula [...]; for one man anda man are the same thing and existent man and a man are the samething, and the doubling of the words in ‘one man’ and ‘one existent man’does not give any new meaning (it is clear that they are not separatedeither in coming to be or in ceasing to be); and similarly with ‘one’, so thatit is obvious that the addition in these cases means the same thing, andunity is nothing apart from being; and if, further, the essence of eachthing is one in no merely accidental way, and similarly is from its verynature something that is: – all this being so, there must be exactly asmany species of being as of unity”. In: ARISTOTLE. Metaphysics (l. IV,1003b23). Trad. de D. Ross. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 1585.

5 “In the thing there are both the quiddity of the thing and its being. So inthe intellect there is a double activity corresponding to those two. Oneactivity, which is called ‘formation’ by the philosophers, is that by whichthe intellect apprehends the quiddities of things, and which is also calledby the Philosopher in De Anima III ‘the understanding of indivisibles’.But the other activity comprehends the thing’s being, by compounding anaffirmation”. In: AQUINO. Scriptum super libros Sententiarum, l. I, stç. 38,I.3. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p. 58.

6 Constituía também a base para a demonstração de uma diferença realentre natureza e faculdades nas criaturas. Por isso, era essencial para a

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Um outro ponto merece atenção: a metafísica de Aris-tóteles partia da afirmação da eternidade dos processos cós-micos e da esfera celeste para então passar às substânciasseparadas (ou seres espirituais) e imóveis como causas fi-nais. Se essa substância separada era única ou uma plura-lidade parecia não ter relevância para o Filósofo: era umassunto que deixava para os astrônomos. O próprio Tomásde Aquino alertava seus leitores para a firme crença aristo-télica na eternidade do movimento cósmico e do tempo.7 Oproblema residia no fato de que a posição aristotélica nãopermitia considerar a criação do mundo, que para o Filóso-fo teria existido desde todo o sempre. Não havia menção,em Aristóteles, de uma causalidade eficiente da parte desubstâncias separadas, espirituais: cada qual estava cons-ciente apenas de si mesma e era incapaz de produzir qual-quer realidade fora de si.

Essa perspectiva apontava para uma diferença radicalentre o pensamento filosófico de ambos – o que não impediao Aquinate de utilizar amplamente o vocabulário do mestregrego. O sentido atribuído por cada um a esses termos econceitos podia ser bastante diferente num e noutro corpus.

prova da indestrutibilidade da alma humana, em contraste com o cará-ter perecível da alma em outros animais e plantas. Cf. OWENS, op. cit.,p. 39.

7 Tomás de Aquino comentava essa passagem de Aristóteles nos seguin-tes termos: “He concludes in this way last because of the question whichhe will next raise. From this reasoning, then, it is evident that here Aristotlefirmly thought and believed that motion must be eternal and also time;otherwise he would not have based his plan of investigating immaterialsubstances on this conviction”. In: AQUINO. Commentary on the Metaphysicsof Aristotle (In Libros Metaphysicorum), v. 2, l. 12, lição 5, stç. 2496.Trad. de J. P. Rowan. Library of Living Catholic Thought, Chicago: HenryRegnery Co., 1961. p. 878. Todas as edições em língua inglesa dos tra-balhos de Tomás de Aquino aqui citados foram retiradas da compilaçãofeita por GRYCZ, Czeslaw Jan; DEELY, J. The collected works of St. ThomasAquinas. Berkeley: University of California Press, 1985.

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É claro que, quando levamos em consideração os diferentescontextos e épocas em que viveram os dois pensadores, umtal uso dos conceitos torna-se compreensível. Afinal, não éde esperar que a noção de polis de um autor grego do séculoIV a.C. possa corresponder totalmente à noção de civitas deum pensador latino do século XIII. Ou que ambos pudessementender por “democracia” uma mesma realidade.8 Tais “equí-vocos” do raciocínio, justificava Tomás de Aquino, deviamser atribuídos ao fato de que Deus, no tempo em que escre-viam os antigos, ainda não havia se revelado aos homens.

A tradição medieval, de Agostinho a Pedro Lombardo,aceitava a afirmação agostiniana de que toda doutrina (oufilosofia) tratava ou de coisas ou de signos. No esquema deTomás de Aquino, as coisas deviam ser consideradas de acordocom o caminho de sua procedência de Deus como sua fontee retornando a ele como seu fim (salvação e expiação). Esseesquema de exitus e reditus, derivado do neoplatonismo, de-sempenhava um papel fundamental no pensamento de To-más de Aquino.9 A origem e o fim das coisas eram uma e amesma: o Deus criador. Como havia movimento no universo,e todas as coisas deveriam retornar ao seu princípio, a dinâ-mica da realidade tinha de ser um movimento circular(circulatio).

Como tudo o mais no orbe, também o movimento tinhauma causa, que deveria ser exterior ao ser que estava emmovimento. Pois a algo não era possível ser simultaneamen-te o princípio motor e a coisa movida. Um motor devia serimpulsionado por um outro motor, e assim por diante. Essasérie de causas, contudo, deveria ter um primeiro termo quecausaria todos os demais. Essa causa primeira era, para o

8 Cf. OWENS, op. cit., p. 40.9 Cf. AERTSEN, Jan A. A Filosofia de Aquino em sua perspectiva histórica.

In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p.12-37.

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Angélico, Deus. E o que se dizia da causa do movimento de-via ser estendido às causas em geral: nada podia ser causaeficiente de si mesmo. Desse modo, toda causa eficiente su-punha outra, e assim por diante.

Essas causas, contudo, não mantinham entre si umarelação acidental, alerta Gilson: pelo contrário, condiciona-vam-se segundo uma ordem determinada, de modo que cadacausa eficiente dava conta da seguinte.10 E a primeira causaeficiente, que impulsionava as causas intermediárias e ascausas finais, era Deus. Nesse raciocínio, portanto, aquiloque era necessário, o era justamente por ser necessário eexistir por si mesmo, não precisando de uma causa antece-dente para sua existência. O meramente possível ou contin-gente não continha em si mesmo a razão suficiente de suaexistência. Esse ser necessário por si, não contingente, eraDeus, que era para que todo resto pudesse ser. Existia umaverdade, um bem em si, um ente que era causa de todos osdemais seres, e que não podia ser outro senão Deus, causaprimeira de todas as coisas.

O ser das criaturas, portanto, era necessariamente di-ferente de sua essência (ou natureza): era conferido por Deus,como causa eficiente primeira, por meio da criação, conser-vação e concordância na atividade de cada ser criado. Essaoutorgância da existência por Deus se estendia aos mínimosdetalhes. Nessa leitura, a aplicação da filosofia aristotélica àesfera do sagrado não afetava a sublimidade da essência doobjeto divino. Mas Tomás de Aquino percorreu seu própriocaminho: leu no Livro Sagrado que o nome próprio de Deusera o ser – nome que distinguia a essência de Deus da essên-cia de todas as demais criaturas. O ser, portanto, não podiaproceder da natureza da própria coisa criada. Pois sem exis-tência não haveria criatura para produzi-lo.11 Na criação,

10 Cf. GILSON, Étienne. La filosofía en la Edad Media. Madrid: Gredos, 1989.p. 493.

11 Cf. OWENS, op. cit., p. 46-7.

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proclamada no “Gênesis”, nada havia antes para receber aexistência.12 Por isso, o ser das coisas criadas tinha de vir dealguma outra coisa: da causa eficiente primeira.

Esse raciocínio constituía um desenvolvimento razoá-vel em relação à noção de causalidade eficiente encontradano Estagirita: Tomás de Aquino continuava reconhecendo aforma aristotélica como causa do ser, mas só sob a atividadede uma causa eficiente. Nas palavras de Tomás de Aquino:“A existência, em si, resulta da forma da criatura, supostocontudo o influxo de Deus”.13 Isso tornava a causalidade efi-ciente anterior a todas as formas finitas.14 ela passava a atu-ar agora sobre a totalidade da coisa finita e se estendia àprodução tanto de matéria quanto de forma, por meio do atocriador, mais por conferir existência a algo do que por iniciaro movimento. Em Aristóteles, matéria se relacionava à formacomo potencialidade à realidade. Em Tomás de Aquino, todacoisa finita era vista como uma potencialidade para sua pró-pria existência.

12 “Quando Deus iniciou a criação do céu e da terra, a terra era deserta evazia, e havia treva na superfície do abismo”. In: Gênesis, 1: 1-2. In: ABíblia, op. cit., p. 11.

13 AQUINO. Suma teológica, I, I, q. 104, 1, ad 1. Ed. bilíngüe. Trad. de Ale-xandre Corrêa. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora,1980. v. I-XI, p.902. Todas as citações da Suma teológica foram retiradas dessa edição.As passagens estão indicadas segundo o padrão internacional de refe-rência, que enuncia o número do livro, parte, questão, artigo, solução e,quando for o caso, objeção e/ou réplica.

14 “That which is most imperfect should not be ascribed to God who is mostperfect. Now existence is most imperfect like primal matter: for just asprimal matter may be determined by any form, so being, inasmuch as itis most imperfect, may be determinated by all the proper predicaments.Therefore as primal matter is not in God, so neither should existence bean attribute of the divine substance”. In: AQUINO. On the power of God(Quaestiones disputatae de potentia), l. 3, q. 7, a. 2, obj. 9. Trad. dosEnglish Dominican Fathers. London: Burns, Oates and Washbourne,1932-4. p. 9.

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Para o Aquinate, o ser estava presente como essênciaapenas em Deus. Todas as outras coisas tinham de recebê-locomo uma atualidade que vinha de fora, de uma causa efi-ciente. Assim armado, Tomás de Aquino podia seguir a es-trutura do raciocínio aristotélico acerca das coisas sensíveisenquanto ato e potência até chegar a uma atualidade quenão dispunha de potencialidade alguma. Mas, enquanto paraAristóteles a realidade alcançada era a forma finita, para To-más de Aquino ela era a existência infinita. Essa diferençaemergia do modo pelo qual a atualidade era concebida nascoisas sensíveis: para o Filósofo, as coisas eram atuais pormeio de sua forma; para o Angélico, o composto de forma ematéria era tornado atual pela existência. Nesse sentido, exis-tência era a realidade máxima de cada coisa finita, e sempredistinta da essência da coisa.15

Por essa razão, somente em Deus a essência e a exis-tência podiam ser uma e a mesma coisa: “Ego sum qui sum”.16

No restante das coisas criadas, a essência ou natureza eradistinta da sua existência – que era recebida de Deus. Deusera, nessa perspectiva, o ato puro de existir, e não uma es-sência qualquer: aquilo que se chamava essência nos outrosseres era, em Deus, o ato mesmo de existir. E, por consistirno puro existir, Deus era a plenitude absoluta do ser, em siinfinita. Sendo Deus um ser infinito, nada podia lhe faltarque devesse adquirir e, portanto, nenhuma transformaçãoera concebível n’Ele: era imutável, eterno e perfeito.

O Estagirita não mostrava preocupação especial no quedizia respeito à existência como noção filosófica. Não havia,para ele, distinção real entre coisa e ser: ambos eram conhe-cidos pela mesma atividade mental. O ser de algo e o que eleera coincidiam. O problema da necessidade de um criadorpara fazer o mundo existir não se colocava. O movimento era

15 Cf. OWENS, op. cit., p. 48.16 Cf. Êxodo 3: 14. In: A Bíblia, op. cit., p. 72.

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o motor de tudo que havia no universo: a noção de causaeficiente mais explicava a origem do movimento do que lheconferia existência. Por ser imutável, a forma separada (ouespiritual) tinha em si e por si mesma a natureza do ser.Todas as outras coisas dependiam dela por meio de causali-dade final para sua permanência e, por conseqüência, para oseu ser. Neste sentido, a forma separada era a instância pri-mária do ser.17

Para Tomás de Aquino, a concepção do ser era profun-damente diferente. Como leitor da Sagrada Escritura, o An-gélico tinha de aceitar a afirmação nela contida de que Deuscriou o mundo, o céu e a terra. Na linguagem filosófica, issosignificava dizer que Deus era a primeira causa eficiente detodas as outras coisas. Isto é, Deus era a instância primeirado ser. Provinha de Deus a natureza à qual todos os outrosentes se referiam como seres. No “Êxodo” (3: 14), Deus reve-lara a Moisés o seu nome: “Eu sou aquele que é” (Ego sum quisum). Essa era, para o Aquinate, a “verdade sublime” que oscristãos conheciam sobre o ser, a própria natureza e nomede Deus.18

Em linguagem aristotélica, significava dizer que a ins-tância primária do ser era Deus, que havia sido revelado. Eque sua causalidade eficiente se estendia a todas as coisas

17 Cf. OWENS, op. cit., p. 45.18 “Nenhuma coisa cuja essência não é o seu ser”, escrevia Tomás de

Aquino, “é pela sua essência, mas o é pela participação de outro, isto é,do ser. O que é por participação de outro não pode ser o primeiro ente,porque aquilo de que uma coisa participa para poder ser lhe é anterior.Ora, Deus é o primeiro ente, ao qual nada é anterior. Logo a essência deDeus é o seu ser”. E acrescentava adiante, comentando a passagem do“Êxodo”: “O Senhor se deu a conhecer pelo seu nome próprio: Aqueleque é. Ora, todo nome é imposto para designar a natureza da essênciade uma coisa. Donde também concluir-se que o ser divino é a sua es-sência ou natureza”. In: AQUINO. Suma contra os gentios, I, 22. Trad. deD. Odilão Moura O. S. B. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1990. v. I.

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existentes: ele concordava, como causa primária, com todasas coisas feitas por suas criaturas e as conservava – todas –na existência. Embora esse ponto de vista não fosse, propria-mente falando, aristotélico, as noções do Filósofo eram sufi-cientemente flexíveis para se adaptarem ao conteúdo enri-quecido da revelação – ao menos para o Angélico. Deus erapor natureza esse: este o nome e natureza próprios a ele.Ninguém além d’Ele podia ter o ser como sua essência, jáque, segundo as Escrituras, deuses estranhos não deviamser tolerados. Filosoficamente, estava indicada a unicidadede Deus, a existência subsistente.19

A relação entre criatura e Criador, tal como propostapor Tomás de Aquino, era pensada em termos de “participa-ção”, conceito introduzido por Platão – e duramente criticadopor Aristóteles – para expressar a ligação entre as coisas sen-síveis e as formas. O Angélico descrevia os platonistas comoaqueles que queriam reduzir toda coisa composta a simples,a princípios abstratos. Essa, explicava Tomás de Aquino, eraa razão pela qual eles postulavam a existência de formas se-paradas ou ideais das coisas. E aplicavam essa abordagemnão apenas às espécies de coisas naturais, continuava, mastambém àquelas que eram mais comuns: bom, único e ser.Sustentavam que havia um princípio primeiro, o qual era aessência da bondade, da unidade e do ser – um princípio,dizia o Aquinate, que chamamos Deus. Outras coisas po-diam ser chamadas bom, único ou ser simplesmente porderivarem do primeiro princípio.20

19 Cf. OWENS, op. cit., p. 45-6.20 A discussão tomista a respeito da filosofia platônica pode ser encontrada,

entre outras passagens, no 3° artigo de seu tratado Das criaturas intelec-tuais. Cf. AQUINO. On spiritual creatures (Quaestiones disputatae despiritualibus creaturis), art. 3. Trad. de M. C. Fitzpatrick. Milwaukee:Marquette University Press, 1951. In: GRYCZ & DEELY, op. cit., p. 41 et seq.

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Tomás de Aquino rejeitava a aplicação do método pla-tônico subscrevendo a crítica aristotélica de que os platonistasprojetavam nosso modo abstrato de conhecimento no modode ser das coisas. Mas, em relação ao primeiro princípio emsi, reconhecia a legitimidade da abordagem platônica. A re-dução a princípios abstratos só era justificada no nível da-quilo que era mais simples: ser, único e bom. Essas proprie-dades gerais foram chamadas, na filosofia medieval,“transcendentais”, porque transcendiam as categorias aris-totélicas. O primeiro princípio “separado” (ou criatura espiri-tual) era, segundo o Angélico, o próprio ser: as outras coisasdele participavam ao existirem. Para ele, todas as coisas cria-das eram marcadas pela relação entre essência e esse. Ascoisas tinham recebido sua existência daquilo que era, elemesmo, o ser: Deus, causa primeira de todas as coisas. Arelação do resto das coisas existentes com essa causa que asantecedia e criava era, assim, a de participação no ser.

Tomás de Aquino precisava elaborar uma teoria daessência das “substâncias separadas” (ou criaturas espiri-tuais), tais como os anjos, para justificar a estrutura ontoló-gica que construíra para as substâncias finitas. Essa estruturanão podia consistir, como em Aristóteles, na composição deforma e matéria. Pois substâncias separadas, espirituais,embora fossem criaturas, eram separadas da matéria. E ape-sar de constituir formas puras, tais substâncias não tinhamsimplicidade completa. Pois recebiam o seu ser (esse) não desi mesmas, mas de outra coisa: segundo o Angélico, todas ascriaturas eram marcadas pela não-identidade de sua es-sência e seu esse.21

21 “E porque, ademais, tudo aquilo que tem ser vindo de outro reduz-seàquilo que existe por si, como a uma causa primeira, é necessário quehaja alguma coisa que seja a causa do ser a todas as demais, justamen-te porque tal coisa é tão-somente ser. Se assim não fosse, induzir-se-ia,nas causas, um processo ao infinito, visto que, como foi dito, toda coisaque não é somente ser, deve ter causa de seu ser. Logo, é evidente que

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Por acreditar na criação do mundo por Deus, o orbetinha, para Tomás de Aquino, um início. E o problema erasaber se o mundo poderia ter sempre existido. Aqui o Angé-lico se opunha a Boaventura e outros, que sustentavam sera idéia de uma “criação eterna” do mundo contraditória emseu conteúdo interno: a criação a partir do nada (ex nihilo)implicava necessariamente um começo temporal, argumen-tavam esses autores.22 De acordo com Tomás, entretanto,criação “do nada” significava serem as coisas causadas porDeus, em seu ser completo. Mas essa dependência ontoló-gica, contudo, não implicava necessariamente um início tem-poral: uma causa não necessariamente precedia seu efeitona duração, explicava, mas podia ser simultânea ao efeito.Uma criação eterna era, portanto, possível.23

Embora o mundo, para o Aquinate, pudesse ter umaduração eterna, explica Nascimento, ele dependia totalmente

a inteligência é forma e ser, e que recebe este ser do primeiro ente, queé somente ser. Este ente é a causa primeira, que é Deus”. In: AQUINO. Oente e a essência. Trad. de D. Odilão Moura. Rio Janeiro: Presença,1981. cap. 5, p. 81-2.

22 Tomás de Aquino punha a questão dos contemporâneos nos seguintestermos: “God can do in the creature whatever is not inconsistent with thenotion of a created thing: else he were not omnipotent. Now it is notinconsistent with the notion of a created thing, considered as made, thatit should always have existed, otherwise to say that creatures alwaysexisted would be the same as to say that they were not made, which isclearly false. For Augustine (De Civ. Dei xi, 4; x, 31) distinguishes twoopinions, one asserting that the world always existed in suchwise that itwas not made by God; the other stating that the world always was andthat nevertheless God made it. Therefore God can do this so that somethingmade by him should always have been”. In: AQUINO. On the power of God(Quaestiones disputatae de potentia), I, q. 3, a. 14, obj. 8. In: GRYCZ &DEELY, op. cit., p. 195.

23 Replicava o Angélico: “This argument proves nothing more than that tobe made and to be always are not incompatible considered in themselves:so that it considers that which is possible absolutely”. In: ibid., I, q. 3, a.14, p. 8.

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de Deus para ser.24 Por isso, tinha sido criado. O Angélicoacreditava que os argumentos do Filósofo a favor da eterni-dade do mundo eram pouco convincentes: podia-se advo-gar com igual probabilidade tanto a favor da tese de que omundo sempre existiu como a favor da tese de que o mundoteria começado a existir. Pois os argumentos aristotélicossobre essa questão não eram demonstrativos nem conclu-sivos, mas apenas prováveis. E, de fato, só saberíamos quea segunda hipótese era verdadeira se aderíssemos à fé bíbli-ca. Os antigos não haviam conhecido o Livro Sagrado e,portanto, não poderiam sabê-lo. Que o mundo teve um iní-cio, sustentava o Angélico, sabemos apenas pela revelaçãodivina.25

Em outras palavras: dado que Deus era o existir abso-luto e infinito, ele continha virtualmente o ser e as perfeiçõesde todas as criaturas. E o modo segundo o qual todo seremanava da causa primeira e universal chamava-se criação.Por isso, dizer que a criação provinha do totius esse significa-va afirmar que ela se dava a partir do nada (ex nihilo): Deuscriava, por um ato livre da vontade, todas as criaturas. Eessa relação entre criatura e Criador chamava-se, em Tomásde Aquino, participação. Esta expressava o laço que unia oser criado ao Criador, tornando inteligíveis a criação e a se-paração: participar era ter seu próprio ser e, ao mesmo tem-po, recebê-lo de outro ser. O universo, produto de umainteligência superior e de uma vontade livre, derivava assim

24 Cf. NASCIMENTO, C. A. R. Santo Tomás de Aquino: o boi mudo da Sicília.São Paulo: Educ, 1992. p. 49.

25 E solucionava: “It belongs to the notion of eternity to have no beginning ofduration: while it belongs to the notion of a created thing to have abeginning of its origin but not of duration: unless we take creationaccording to the teaching of faith” (grifos meus). In: AQUINO. On thepower of God (Quaestiones disputatae de potentia), l. 3, q. 3 a. 14, sol. 8.In: GRYCZ & DEELY, op. cit., p. 195.

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de Deus. E Deus nos manifestara sua vontade por meio darevelação, na qual se fundava a fé.26

Esse era um corte filosófico básico: significava dizer queo conhecimento humano da qüididade ou essência e o daexistência tinham duas origens radicalmente diferentes. Con-trariamente ao princípio aristotélico, para Tomás de Aquinoo ser de uma coisa e sua essência não eram entendidos pelamesma atividade intelectual. Saber o que uma coisa era ja-mais forneceria o conhecimento de sua existência, dizia.27

No procedimento do Angélico, o recebimento da existênciapelas coisas no mundo real originava-se, em última instân-cia, da existência que subsistia. E a existência subsistenteera a natureza ou qüididade de Deus.28 O existir, nesse sen-tido, era pressuposto pela e incluído na noção de Deus, talcomo era filosoficamente sustentada por Tomás de Aquino.Mas nenhum conjunto de raciocínios baseados no que ascoisas eram podia conduzir a qualquer conclusão a respeitoda existência subsistente.

26 Cf. GILSON, op. cit., p. 496-7.27 Essa era a razão pela qual a definição do que era Deus, para o Aquinate,

não podia servir como base de raciocínio para a sua existência numargumento ontológico: ele evitava assim ter de assumir a premissa doraciocínio de Anselmo, de que Deus existia de fato.

28 “5 – E como aquilo pelo que a coisa é constituída no próprio gênero ouespécie é também o que é significado pela definição que indica o que acoisa é (quid res est), disso se conclui a razão por que o nome da essên-cia foi mudado pelos filósofos para o nome de qüididade (quidditas). Éisto que o Filósofo freqüentemente denomina aquilo que era ser (quodquid erat esse), isto é, aquilo por meio do qual uma coisa tem o ser algo[...]. Além desses nomes, a essência é ainda designada por outro, o denatureza [...]. Segundo este sentido, por natureza denomina-se tudoaquilo que possa ser de algum modo apreendido pela inteligência. Ora,uma coisa não é inteligível senão pela sua definição e pela sua essência.E, assim, o Filósofo também afirma, no Livro V da Metafísica, que todasubstância é natureza”. In: AQUINO. O ente e a essência, op. cit., p. 64.

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Tomás de Aquino tinha assim de dar conta de duasformas de conhecimento, uma natural, outra revelada. Paratanto, adotou do mestre grego alguns pontos importantes desua teoria do conhecimento.29 O Angélico rejeitava a visão,corrente no medievo, de que o ser humano tinha idéias ina-tas. A base de todo conhecimento humano era para ele –como para Aristóteles – a experiência sensível: era natural aoser humano atingir o inteligível por meio dos objetos do sen-tido, porque nosso conhecimento se originava das sensações.O caminho para a cognição intelectiva, portanto, passava daapreensão sensorial para a abstração: o intelecto separava oconteúdo inteligível das imagens sensíveis.30

Tomás de Aquino rejeitava ainda a idéia agostiniana deque as criaturas humanas precisavam de iluminação divinapara atingir certo conhecimento: o intelecto humano, sus-tentava ele, dispunha de uma “luz natural” que era em simesma suficiente para o conhecimento das verdades.31 Aris-tóteles afirmava que todos os seres humanos desejavam pornatureza conhecer. Tomás de Aquino não apenas concorda-

29 Sobre esse assunto, cf. tb. WIPPEL, J. Thomas Aquinas’s derivation of theAristotelian categories (predicaments). Journal of the History of Philoso-phy, v. 25, n. 1, jan. 1987.

30 “[...] provendo Deus a todos, segundo a natureza de cada um, e sendonatural ao homem chegar pelos sensíveis aos inteligíveis – pois todo onosso conhecimento começa pelos sentidos – convenientemente, a Sa-grada Escritura nos transmite as coisas espirituais por comparaçõesmetafóricas com as corpóreas” (ST Ia, 1, 9).

31 “Ora, a forma do intelecto humano é o lume inteligível, suficiente, em simesmo, para conhecer certos inteligíveis, a saber aqueles cujo conheci-mento podemos obter por meio dos sensíveis. O que, porém, é superiorà sua capacidade o intelecto humano não pode conhecer senão fortale-cido pelo lume da graça [...], por ser acrescentado à natureza”. E maisadiante: “[...] para conhecer qualquer verdade o homem precisa do au-xílio de Deus que o move ao seu ato. Não precisa, porém, para conhecera verdade, em todos os casos, de nova iluminação acrescentada à ilumi-nação natural, mas só nos casos que lhe excedem o conhecimento na-tural” (ST I, II, 109, 1).

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va com a afirmação do Filósofo, como ainda fundamentavaaquilo que no Estagirita era mera asserção. O desejo naturalde conhecer, segundo o Aquinate, podia ser explicado: todacoisa desejava naturalmente sua perfeição. Algo era perfeitona medida em que fosse completamente atualizado – e nãoquando se encontrava num estado de potencialidade. O de-sejo de perfeição de uma coisa consistia no anseio de realiza-ção de suas potencialidades naturalmente essenciais.

O que tornava humano um ser era o fato de possuirintelecto. Por meio de seus poderes cognitivos, uma pessoatinha acesso a todas as coisas, mas apenas potencialmente.Seres humanos não detinham conhecimento inato da reali-dade: conhecimento constituía a atualização das potencia-lidades humanas naturais, a perfeição do ser humano. Essaera a razão pela qual os seres humanos desejavam natural-mente conhecer. Baseado nesse argumento, Tomás de Aquinoconcluía que todo conhecimento sistemático ou científico erabom. Pois no conhecimento consistia a perfeição do ser hu-mano como tal, o preenchimento de seus desejos naturais.

Por isso, para o Angélico, o desejo humano de conhecernão era, como defendia Agostinho, uma curiosidade vã. ParaAgostinho, curiosidade era a tentação de procurar conheci-mento em vista de seus próprios fins. Conhecimento deviater apenas um sentido instrumental: servir à salvação hu-mana e ser orientado para a fé. Deus e a alma humana, diziaAgostinho, eram as únicas coisas dignas de serem conheci-das. Já para Tomás de Aquino, o desejo de conhecer era na-tural: provinha da natureza humana e era direcionado paraa perfeição dos seres.

E a perfeição de cada criatura consistia, segundo oAquinate, na união de toda coisa ao seu princípio ou fonte.Por essa razão, podia-se afirmar que o movimento circularera, entre todos, o mais perfeito. Porque o seu término estavaunido ao seu começo. No caso dos seres humanos, essa uniãoao seu princípio se dava apenas por meio do intelecto. “Por

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isso, o ser humano deseja naturalmente conhecer”. A perfei-ção de um efeito consistia em retornar ao seu princípio. Aquilodo que as coisas derivavam vinha a ser o seu fim. Dessaperspectiva, fonte e objetivo, começo e fim eram idênticos.Deus, como criador, era a origem imediata de todas as coi-sas. E, porque era o ser mais perfeito, cada criatura natural-mente retornava para o seu princípio. O fim correspondiaassim ao começo.

Por essa razão, o fim último das coisas não podia seruma substância criada, mas unicamente Deus. No processode retorno das criaturas ao Criador, a criatura humana ocu-pava uma posição especial: apenas a natureza racional tinhaa capacidade de voltar “expressamente” à sua origem.32 Porisso, entre as substâncias materiais, somente os seres hu-manos eram capazes de alcançar Deus por meio da atividadeda razão. Esse retorno era promulgado no desejo humanonatural de conhecer. Conhecimento perfeito, dizia Tomás deAquino citando Aristóteles, era o conhecimento da causa pri-meira. E acrescentava: o motor de todas as coisas era Deus.Por isso, o fim último para os seres humanos consistia emconhecer Deus, a felicidade ou beatitude eterna.33

32 Deus constituía o princípio do qual procediam todas as coisas, e tam-bém o fim para o qual tendiam todas as criaturas. Nos seres inanima-dos, recorda Rassam, esse impulso se manifestava pelo apetite natural.Isto é, pelos movimentos próprios da natureza. Os seres vivos, por meioda captação dos bens particulares, participavam mais diretamente dabondade divina. Mas só os seres dotados de razão procuram Deus pormeio do conhecimento e do amor. “Assim o homem, graças ao seu inte-lecto e à sua vontade, tende diretamente para Deus, como Primeiroprincípio de todas as coisas”. In: RASSAM, Joseph. Tomás de Aquino.Lisboa: Edições 70, 1980. p. 46. Cf. tb. AQUINO, ST I, II, q. 1, a. 8.

33 “No entanto, é claramente manifesto que o fim de qualquer substânciaintelectual, mesmo ínfima, é conhecer a Deus. Com efeito, [...] o últimofim, para o qual tendem todos os entes, é Deus. Ora, o intelecto huma-no não obstante ser ínfimo na ordem das substâncias intelectuais, ésuperior a todas as coisas destituídas de intelecto. Se pois uma subs-

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A razão era assim, num certo sentido, indispensável àfé, lembra Rassam: se a razão só se efetivava “com o concur-so da graça e à luz da fé”, existia no entanto um conhecimen-to natural de Deus que era como que o preâmbulo da fé. “Sea fé é uma graça de Deus, é também um ato do homem. [...]Para que a fé em Deus, gratuita no dom que dela nos é feito,não seja uma operação cega e perfeitamente irracional”, ex-plica Rassam, “é preciso que a palavra de Deus tenha algumsentido para a razão. Não existe fé para um ser privado derazão, tal como não há conhecimento sobrenatural sem apossibilidade de um conhecimento natural”.34 Pois “a fé”, di-zia Tomás de Aquino, “implica o assentimento do intelectoàquilo que cremos” (ST II, II, 1, 4).

Ou, dito de outra maneira, se o universo tinha sidocriado por uma causa inteligente e perfeita, sua imperfeiçãonão podia ser imputada ao Criador. A criação supunha, des-de o primeiro momento, uma separação infinita entre Deus eas coisas criadas: nenhuma criatura recebia a plenitude daperfeição divina. Pois as perfeições só passavam de Deus paraas criaturas por meio de uma espécie de descendência, cujaordenação era o próprio arranjo do universo. Todas as cria-turas estavam nele dispostas segundo uma ordem hierár-quica de perfeição, que seguia dos mais perfeitos, os anjos,para os menos perfeitos, os corpos.

tância mais elevada não pode ter um fim mais elevado, será Deus o fimtambém do intelecto humano. Ora, todo ente inteligente alcança o seufim conhecendo-o. Logo, pela intelecção o intelecto humano atinge Deuscomo fim”. E adiante: “13. Com efeito, o fim último do homem, e de todasubstância intelectual, chama-se felicidade ou beatitude. É isto quetoda substância intelectual deseja como fim último e unicamente poristo mesmo. Logo, a beatitude e felicidade última de toda substânciaintelectual é conhecer a Deus”. In: AQUINO. Suma contra os gentios, III,25, op. cit., p. 419-20 e 422.

34 RASSAM, op. cit., p. 21-2.

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No topo da criação, portanto, estavam os anjos, seresnão-corpóreos e imateriais. Careciam, por isso, de um prin-cípio de individuação. Essa hierarquia descendente dos se-res marcava o homem: por ter alma, ele pertencia à espéciedos seres imateriais. Sua alma, contudo, não era uma inteli-gência pura, como nos anjos, e sim um simples intelecto. Aomesmo tempo, era também corpo: constituía um compostofísico que compartilhava da materialidade. O homem era as-sim composto de forma e matéria. Do ponto de vista da for-ma, por ser constituído de matéria, ocupava o último graudas criaturas inteligentes. Mas, por ter um corpo que parti-lhava de alma, era superior a todos os outros corpos: situa-va-se na linha divisória entre o reino das inteligências purase o dos corpos.

A função mais elevada do entendimento consistia naapreensão dos princípios primeiros, próximos de Deus. Maso ser humano só podia chegar a eles a partir das espéciesabstratas das coisas sensíveis. Explicar o conhecimento hu-mano, esclarece Gilson, era definir a colaboração que se es-tabelecia entre as coisas materiais, os sentidos e o entendi-mento.35 O elemento universal dos corpos era sua forma; oque os particularizava e individualizava, a sua matéria. Co-nhecer consistia em separar das coisas singulares o univer-sal que nelas estava contido: essa operação o Angélico deno-minava abstração. Era tarefa do intelecto cognitivo despojara abstração de toda a materialidade e particularidade quecarregava dos objetos sensíveis. O conhecimento podia noslevar à afirmação da existência de Deus, mas não nos permi-tia chegar jamais à sua essência. Não havia caminho diretopara o conhecimento de Deus: ele só era acessível aos ho-mens pela graça e pela revelação.

35 Cf. GILSON, op. cit., p. 498-9.

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No que respeitava à cognição intelectiva, dizia Tomásde Aquino, os seres humanos dependiam da experiência sen-sível. Conhecimento sistemático (ou científico) se estendiaapenas até os limites da cognição sensorial. Os sentidos for-neciam o material indispensável a partir do qual o intelectoabstraía o conteúdo inteligível. Disso seguia-se que as cria-turas humanas não podiam conhecer a essência de umasubstância que não fosse perceptível aos sentidos. Dessa for-ma, o único conhecimento possível de Deus ao alcance dosfilósofos era aquele baseado nos efeitos do Criador em nossomundo: o conhecimento da essência divina permanecia ve-dado aos seres humanos. Tomás de Aquino argumentava quenossa felicidade perfeita, o preenchimento de nosso desejonatural, só podia consistir na contemplação da essência deDeus, na visão de Deus (visio Dei). A completude da vidahumana, portanto, não podia ser alcançada pela filosofia:apenas pela revelação de Deus o cristão poderia ser libertadodessa sua angústia.

Essa concepção do conhecimento permitia a Tomás deAquino conceber a relação entre filosofia e teologia em ter-mos de continuidade e harmonia: a primeira era guiada pelaluz da razão natural; a segunda, pela luz da fé. Dizia o Angé-lico: “[...] a fé pressupõe o conhecimento natural, [assim como]a graça pressupõe a natureza, e a perfeição, o perfectível”36

(grifos meus). O conhecimento natural era portanto primeiroe fundamental, já que os dons da graça eram adicionados ànatureza.37 A filosofia não devia assim ser reduzida à teologia,

36 AQUINO, Suma teológica, I, Q. 2, A. 2, ad 1, op. cit., p. 18.37 Segundo a crença cristã, somente por meio da graça divina se podia

alcançar essa contemplação, e não apenas por meio do mero esforçohumano. Isso significava que o objetivo mais importante era promover oensinamento e o caráter da Igreja, e não as próprias convicções – o queera, aliás, o pecado da soberba. Nesse sentido, o trabalho de Tomás de

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pois tinha sua própria função a cumprir: dirigir os homens,no seu desejo natural de conhecer, para o fim último, a con-templação de Deus. E a fé, por sua vez, constituía a perfeiçãodo conhecimento natural: a graça, dizia o Angélico, não des-truía, e sim aperfeiçoava a natureza.38

Como comentava o próprio Angélico, a água da filosofianão devia ser misturada, e sim transformada no vinho dateologia.39 O conhecimento filosófico, portanto, era essencialao seu pensamento teológico. A força comprobatória do ra-ciocínio filosófico, argumentava Tomás de Aquino, tinha dese basear somente em fundamentos naturalmente acessíveisà mente humana. Nenhuma premissa revelada divinamentepodia ser usada para propósitos de demonstração em filoso-fia. Mas o que tinha sido revelado era em si bom, verdadeiro,existia e era caracterizado por outros numerosos traços na-turalmente conhecíveis. E podia ser objeto de estudo sob osaspectos naturalmente acessíveis à razão: era nesse sentidoque as verdades divinamente reveladas se tornavam um ob-jeto de estudo filosófico.40

Aquino era o de um teólogo, e não o de um filósofo. De todo modo, erainegável que uma formação filosófica acentuada, de base fundamental-mente aristotélica, permeava todo o seu trabalho teológico.

38 “Pois como a graça não tolhe [tollat], mas aperfeiçoa a natureza, importaque a razão humana preste serviços à fé, assim como a inclinação natu-ral da vontade está às ordens da caridade” (ST I, q. 1, 8, ad 2).

39 “So those who use the works of the philosophers in sacred doctrine, bybringing them into the service of faith, do not mix water with wine, butrather change water into wine”. In: AQUINO. Faith, reason and theology,Questions I-IV of the Commentary on Boethius’ De Trinitate (In LibrumBoeth. de Trinitate), q. 2, a. 3, rp. 5. Trad. de Armand Maurer. Toronto:Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1986. p. 51.

40 Não havia, para o Angélico, contradição entre crer e saber, diz Cassirer.Dado que a razão e a revelação eram duas expressões diferentes damesma verdade, a de Deus, não era possível desacordo entre elas. Sehouvesse qualquer discrepância, esta se deveria a causas subjetivas. Ecaberia à filosofia descobrir e afastar essas causas, pois a razão podia

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“Um filósofo”, explica Gilson,

argumenta sempre buscando na razão os princípios desua argumentação; um teólogo argumenta sempre bus-cando seus princípios primeiros na revelação [...]. Nem arazão – quando a usamos corretamente – nem a revela-ção – dado que tem sua origem em Deus – podem nosenganar. [...] a verdade da filosofia se ajustaria à verdadeda revelação por meio de uma cadeia ininterrupta de la-ços de união verdadeiros e inteligíveis, se nosso espíritopudesse compreender plenamente os dados da fé. Daíresulta que, sempre que uma conclusão filosófica con-tradiz o dogma, achamo-nos diante de um sinal corretode que tal conclusão é falsa.41

Este é, sem dúvida, um excelente resumo da relaçãoentre filosofia e teologia, tal como a concebia o Doutor Angé-lico.

Assim, na linguagem tomista, as coisas sensíveis eramconhecidas, do ponto de vista de suas essências, pela simplesapreensão ou conceitualização. Do ponto de vista do seu ser,eram compreendidas por meio de julgamento. O primeiro des-ses modos de conhecimento estava no reino estritamente filo-sófico: não era algo revelado divinamente, mas algo disponívelà razão humana por si só. O avanço de Tomás de Aquino aquiresidia na maneira de explicar como as questões da essência eda existência estavam relacionadas uma à outra: a existênciaera vista como a atualidade da essência, a atualidade de todasas atualidades e a perfeição de todas as perfeições.42

errar, mas a revelação era infalível. A razão, contudo, deveria confiarnas suas próprias forças. “Razão e revelação, portanto, tornavam-seesferas distintas: não podia existir mais confusão entre os reinos danatureza e o da graça”. Cada qual tinha agora seus objetos próprios eseus direitos. Cf. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Rio Janeiro: Zahar,1976. p. 129.

41 GILSON, op. cit., p. 491.42 Esse desenvolvimento puramente filosófico, argumenta Owens, não pro-

curava qualquer fonte revelada para suas noções de essência e existên-

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Nesse sentido, a função da crença religiosa era compa-rável ao papel atribuído por Aristóteles à dialética, que con-duzia aos primeiros princípios do raciocínio filosófico.43 elapermitia que se enxergassem os princípios, mas não entravanos procedimentos demonstrativos em si. Aristóteles, entre-tanto, enxergava a forma finita nas coisas sensíveis como arealidade suprema. Tomás de Aquino via a existência comoaquela realidade. Por causa de similaridades enganosas comoessas, as duas filosofias devem ser cuidadosamente mantidascomo distintas uma da outra, alerta Owens – apesar dosmuitos pontos de contato entre elas. Pois a filosofia do Esta-girita se fundava em essências sensíveis, enquanto a do Aqui-nate se baseava em existências sensíveis. Amontoá-las, dizOwens, é confundir seus procedimentos distintos e privarcada uma de sua vida característica.44

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Em seus trabalhos éticos, Aristóteles insistia na im-portância crucial do hábito para a “modelagem” do conheci-mento prático das pessoas: era por meio desse hábito que seadquiria os pontos de partida – ou primeiros princípios – dafilosofia moral. O restante do pensamento moral provinha

cia e suas inter-relações. Visava apenas às coisas sensíveis. Nessa vi-são, as essências eram conhecidas e universalizadas por meio daconceitualização, enquanto suas existências eram compreendidas emcada instância por meio de julgamento. Partindo desses aspectos, talcomo conhecidos nas coisas sensíveis, esse pensamento conduzia aoser infinitamente perfeito, que era a causa de toda e qualquer outraexistência. O raciocínio não se baseava em nada além daquilo que sepodia ver nas próprias coisas sensíveis. Cf. OWENS, op. cit., p. 55.

43 “[...] for dialectic is a process of criticism wherein lies the path to the prin-ciples of all inquiries”. In: ARISTOTLE. Topics, I, 2, 101b3-4. Trad. W. A.Pickard-Cambridge. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 168.

44 Cf. OWENS, op. cit., p. 57.

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desses primeiros princípios socialmente incutidos. Tambémno que dizia respeito ao conhecimento teórico ou especulati-vo, havia bons argumentos para crer que o hábito ou o cos-tume fossem fundamentais para o desenvolvimento dascriaturas humanas, além de serem relevantes para acumulatividade do saber: os seres, dizia Aristóteles, absorve-rão a instrução de acordo com os hábitos que adquirirem.45

Entre as fortes crenças aristotélicas estava a na eterni-dade do mundo, estranha aos pensadores cristãos medie-vais. O orbe encontrava-se diante dos olhos e sua existêncianão trazia problemas. Havia um amplo consenso sobre a tesede Parmênides de que coisa alguma poderia surgir a partirdo nada (ex nihilo). Por isso, os processos cósmicos não ti-nham começo temporal e jamais chegariam ao fim. A perpé-tua ascensão e queda das civilizações assegurava assim acontinuidade do treino moral requerido pela sabedoria práti-ca. A atividade humana como um todo era direcionada paraobjetivos últimos realizáveis neste mundo. A ênfase sobre afelicidade a ser alcançada na terra era predominante.46

45 “The effect which lectures produce on a hearer depends on his habits; forwe demand the language we are accustomed to, and that which is differentfrom this seems not in keeping but somewhat unintelligible and foreignbecause it is not customary. For the customary is more intelligible. Theforce of custom is shown by the laws, in whose case, with regard to thelegendary and childish elements in them, habit has more influence thanour knowledge about them. [...] Therefore one must be already trained toknow how to take each sort of argument, since it is absurd to seek at thesame time knowledge and the way of attaining knowledge; and neitheris easy to get”. In: ARISTOTLE. Methaphysics, l. 2, 994b32-995a14. In:BARNES, op. cit., 1991, p. 1572.

46 “A felicidade humana”, resume Owens, podia ser, segundo Aristóteles,“completamente atingida no tempo de vida sobre a terra por meio dacontemplação intelectual dos objetos mais elevados da mente; ou, numaversão secundária, pelo exercício das virtudes práticas que tornam essacontemplação possível”. In: OWENS, op. cit., p. 42.

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Já para os cristãos do medievo, o foco concentrava-sena promessa de felicidade eterna ao lado do Pai na vida postmortem. Fazia parte do imaginário cristão da época a idéia deque a felicidade humana residia na vida depois da morte. Oobjetivo realmente importante era o esforço de cada um nadireção de uma felicidade eterna na outra vida, de acordocom os ensinamentos da fé católica. O destino sobrenaturala ser atingido no outro mundo consistia, para Tomás deAquino, na contemplação intelectual – fim supremo da vidaterrena para Aristóteles. Essas premissas marcavam nãoapenas a metafísica tomista, mas também sua concepçãoética e política, fortemente consoante com aquela.

Segundo o Filósofo, ética e política eram modos inter-relacionados de conhecimento prático, asserção que Tomásde Aquino e boa parte dos medievais de seu tempo assu-miam. O estudo desses campos não tinha valor por si mes-mo, mas visava a algo mais: o aperfeiçoamento da açãohumana tanto na esfera coletiva (tarefa da política) quantona individual (tarefa própria da ética) – o que modernamentese denominou âmbitos público e privado. Esse objetivo exi-gia tanto algum tipo de teoria moral capaz de ensinar as pes-soas a desenvolver características que as conduzissem àexecução de atos virtuosos, quanto uma teoria do governo dacidade. E o instrumento capaz de promover esse aperfeiçoa-mento moral tanto dos habitantes como dos cidadãos era aidéia de legislação.

Para o Angélico, a doutrina moral, tivesse ela caráterfilosófico ou teológico, derivava da reflexão sobre as açõesexecutadas pelos agentes humanos. Tomás de Aquino sus-tentava que os atos levados a cabo pelos seres humanos cons-tituíam ações morais, razão pela qual o estudo a respeitodeles constituía uma doutrina moral. Mas seu exame reque-ria a distinção entre ações dos seres humanos (actioneshumanae) e atos do homem (actiones hominis). Assim, àque-

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las atividades que, embora atribuídas verdadeiramente aoshumanos, não podiam ser atribuídas apenas aos homens(comer, beber, dormir) – isto é, não eram atributos per se –,Tomás de Aquino negava o status de ações humanas. Ape-nas aquelas atividades executadas racional e voluntariamente,ou ainda que se ocupavam da vontade, contavam como pró-prias dos seres humanos. Pois os atos humanos tinham suaorigem na vontade e na razão (ou livre-arbítrio), faculdadeexclusiva dos seres humanos.47

Tomás, como seu mestre grego, dividia a filosofia práti-ca em três campos: ética, economia e política. Os atos huma-nos (humanae), dizia o Angélico seguindo o Filósofo,constituíam a ordem moral.48 Descrevia o objeto da filosofiamoral como a “atuação humana ordenada para um fim, ouainda o homem [ser humano], na medida em que ele é umagente atuando voluntariamente para um fim”. Toda açãopropriamente humana, portanto, conduzia à filosofia moral.A ação humana visava a um fim. E só se agia em considera-ção a um fim na medida em que se tinha uma razão para

47 “Das ações feitas pelo homem só se chamam propriamente humanas asque lhe são próprias enquanto homem. Ora, este difere das criaturasirracionais, por ser senhor dos seus atos. Por onde chamam-se propria-mente ações humanas [humanae] só aquelas de que o homem é senhor.Ora, senhor das suas ações o homem o é pela razão e pela vontade,sendo por isso o livre-arbítrio chamado a faculdade da vontade e darazão. Portanto, chamam-se ações propriamente humanas as proce-dentes da vontade deliberada; e se há outras que convêm ao homem,essas podem, por certo, chamar-se ações do homem [hominis actiones],mas não propriamente humanas [humanae], pois não procedem delecomo tal” (ST I, II, q. 1, 1).

48 “The order of voluntary actions pertains to the consideration of moralphilosophy. [...] it is proper to moral philosophy, to which our attention isat present directed, to consider human operations insofar as they areordered to one another and to an end”. In: AQUINO. Commentary on theNichomachean Ethics (CEN). (Sententia Libri Ethicorum. I, I, 3). Trad.de C. I. Litzinger. Library of Living Catholic Thought, Chicago: HenryRegnery Co., 1964. p. 7.

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agir. A ação tipicamente humana procederia, assim, do inte-lecto e da vontade. Isto é, o agente direcionaria a si mesmo,conscientemente, para um certo fim. E o faria livremente.49

Diferentemente dos atos de um homem, os atos huma-nos eram aqueles sobre os quais tínhamos domínio graças àrazão e à vontade. Nem todos os atos de um ser humano po-diam se tornar elementos de uma ação humana nesse senti-do. Mas aqueles que podiam nos mostravam a extensão damoral. Apenas na medida em que era levado a produzir algolivremente ou deixava algo ocorrer desimpedidamente, o serhumano se tornava responsável por isso. Só assim o agir doshomens podia ser levado em conta como um ato humano.Isolado do fim em razão do qual a ação era executada, esseuso de nossa liberdade era, para o Aquinate, ininteligível.

Para Aristóteles, havia um bem ou fim amplo, compre-ensivo e último em tudo o que os seres humanos faziam.Tomás de Aquino caminhava na mesma direção, mas o faziapor uma série de passos. O primeiro deles era a afirmação deque toda e qualquer ação humana visava a algo bom comoseu fim. Essa asserção era tomada como uma propriedadeda ação humana, a qual emanava da razão e da vontade. Aação só podia ser um ato humano por causa do objetivo queo agente tinha em mente quando a executava. Por isso, qual-quer ação individual caracterizava-se como um ato de umdeterminado tipo. E o tipo derivava de seu fim ou objetivo.

O segundo passo consistia em mostrar que se podiafalar de um fim superior em razão do qual um objetivo era

49 “3. I am talking about human operations, those springing from man’s willfollowing the order of reason. But if some operations are found in manthat are not subject to the will and reason, they are not properly calledhuman but natural, as clearly appears in operations of the vegetativesoul. These in no way fall under the consideration of moral philosophy.As the subject of natural philosophy is motion, or mobile being, so thesubject of moral philosophy is human action ordered to an end, or evenman, as he is an agent voluntarily acting for an end” (CEN I, I, 3).

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perseguido. Muitos tipos diferentes de atos podiam ser orde-nados para o mesmo fim remoto, como o do bem-estar físico(aquecer a casa no inverno, comer adequadamente etc.). Essaera a origem da noção de fim último: um objetivo ao qual osalvos das outras ações estariam subordinados. Distinguindoentre a ordem da intenção e a da execução, o Angélico avisa-va que em cada um desses casos era preciso visar a algoprimeiro ou último. Ao se tencionar um certo fim, tornavam-se claros na mente os passos que precisavam ser dados paraalcançá-lo. O objetivo último projetado ordenava o pensarpara o que devia ser feito. Assim também, do ponto de vistada seqüência de execução, davam-se passos cuja racionali-dade provinha do fim em vista.50

Daí decorria a pergunta: existiria algum objetivo últimoao qual os fins de todas as ações humanas deveriam estarsubordinados? Aristóteles afirmava que havia um fim últimoda vida humana a ser considerado em dois aspectos. Primei-ro, o de que os governantes procuravam regular o máximopossível as ações humanas numa comunidade em vista dobem comum de seus membros. E, porque era o bem comumde todos os cidadãos, ele podia coincidir com o fim último decada um deles isoladamente. Segundo, o de que havia umnome para esse bem compartilhado: felicidade ou bem viver(eudaimonia). Tudo o que fazemos, executamos para ser feli-zes. Pois a felicidade constituía o fim último da vida humana.

Tomás de Aquino certamente tinha o modelo de Aristó-teles em mente quando discutia essa questão, mas sua abor-dagem era diferente. Segundo o Angélico,

50 “Ora, há dupla ordem de fins: a da intenção e a da execução, e emambas é necessário haver algo de primordial. Pois o primordial, na or-dem da intenção, é como o princípio motor do apetite, o qual eliminadoo apetite por nada seria movido. E quanto à execução, é primordial oprincípio que faz a operação começar, subtraído o qual, nada começariaa operar nada. Ora, o princípio da intenção é o fim último; e o da execu-ção é o primeiro dos meios conducentes ao fim” (ST I, II, q. 1, 4).

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tudo quanto o homem deseja, há-de forçosamente dese-jar por causa do último fim. E isso ressalta de dupla ra-zão. – A primeira é que tudo quanto o homem deseja estácompreendido na noção de bem [sub ratione boni]. E senão é desejado como bem perfeito, que é o fim último, há-de necessariamente sê-lo como tendendo para esse bem;pois sempre o que é incoativo [começado] se ordena paraa própria consumação, como é patente tanto nas obrasda natureza como nas de arte. (ST I, II, I, 6)

Isto é, algo era visto como bom – e atraía a vontade – namedida em que constituía um componente do bem perfeito ecompleto do agente.

A afirmação tomista, explica McInerny, repousava emduas pressuposições: 1) a de que não se podia desejar algomau ou demoníaco, pois tais coisas constituíam o oposto dodesejável. Só podíamos desejar algo na medida em que o vía-mos como bom para nós, isto é, quando enxergávamos o terou fazer a coisa como preferível ao não tê-la ou não fazê-la; 2)a de que havia uma distinção entre a coisa almejada e a ra-zão para desejá-la, o aspecto sob o qual ela era procurada.As coisas que buscávamos eram inumeráveis. Mas cada umadelas era procurada por causa de seu bem, pois era vista sobo aspecto da bondade. Nosso bem era aquilo que nos preen-chia e completava. Assim, qualquer objeto da ação devia servisto ao menos como uma parte do nosso bem abrangente:por exemplo, come-se não apenas para agradar ao paladar,mas também para o bem-estar físico, o qual é parte do nossobem abrangente.51

Quando Tomás de Aquino afirmava que todos os agen-tes humanos procuravam o mesmo fim último, estava dizen-do que cada agente humano, o que quer que fizesse sob aafirmação de que o que fizera era bom, ele o fazia completan-do o tipo de agente que era. A noção de um bem humano

51 Cf. MCINERNY, Ralph. Ethics. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p. 200.

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estava assim implícita em qualquer ação humana. Quandoum agente executava um ato propriamente humano, podia-se dizer que a ação era empreendida sob a asserção implícitade que agir, nesse sentido, era perfectivo do agente (no senti-do de atingir um ato perfeito). Essa era a base da qual partiao Aquinate para afirmar que todos os agentes humanos per-seguiam, de fato, o mesmo fim último.52

Mas os seres humanos, percebia Tomás, estruturavamsuas vidas de maneiras diferentes: ordenavam seus dias eatividades de modos diversos. As sociedades humanas tam-bém diferiam em sua organização: uns viviam de modo mais“primitivo”, outros estavam mais próximos do ideal. As pes-soas, contudo, em suas ações individuais, podiam estar er-radas sobre o que era bom para elas, e podiam equivocar-sequanto aos fins últimos e subordinados que escolhiam parasi. Por isso, a felicidade consistia em atingir aquilo que ver-dadeiramente tornava efetiva a razão do bem (ratio boni). Dessemodo, Tomás de Aquino podia dar conta – e este é um pontorelevante que teria reflexos na sua concepção de sociedadepolítica – tanto de como as coisas teriam de ser quanto decomo elas de fato eram. Essa separação conceitual permitiriaum avanço notável das idéias políticas: a realidade humana,tal como era, deixava de ser mero fruto de um castigo impos-to pelo pecado original e tornava-se um objeto legítimo dainvestigação sobre o mundo terreno.

52 “11. [...] [all] things by a natural desire tend to good, not as knowing thegood, but because they are moved to it by something cognitive, that is,under the direction of the divine intellect in the way an arrow speedstowards a target by the aim of the archer. This very tendency to good isthe desiring of good. Hence, he says [o Filósofo], all beings desire goodinsofar as they tend to good. But there is not one good to which all tend;this will be explained later [...]. However, because nothing is good exceptinsofar as it is a likeness and participation of the highest good, the highestgood itself is in some way desired in every particular good. Thus it can besaid that the true good is what all desire” (CEN I, I, 7).

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Havia uma tal propensão ao fim último que nenhumagente humano podia fracassar em buscá-lo, pois ele se fun-dava na asserção verdadeira e auto-evidente de que nenhu-ma pessoa podia agir senão em razão daquilo que tomavacomo bom. Mas, assim como as criaturas humanas podiamse enganar sobre o bem numa instância particular de ação,também podiam estar erradas sobre o que constituía umobjetivo – supra-ordenado ou subordinado – digno de seusatos.53 O agente humano, explicava o Angélico seguindo Aris-tóteles, era precisamente aquele que executava as ações di-tas humanas em vista do bem. Quando se desejava determinarse algo ou alguém era bom, devia-se perguntar qual era asua função. Essa tinha sido a grande contribuição aristotéli-ca para a análise moral: dizia-se que um olho era bom se elecumpria a sua função de enxergar bem. O órgão era dito bompor executar bem a ação que lhe era própria.54

A atividade racional consistia, num sentido primário,naquela própria à faculdade da razão. Esta era subdivididanos usos teórico (ou especulativo) e prático da ratio. Numsegundo sentido, uma atividade podia ser chamada racional

53 Se por algum motivo as pessoas passavam a achar que não fazer A eramelhor do que fazê-lo, elas aprendiam que seu julgamento estava erra-do. Os seres humanos, necessariamente e de fato, desejavam o quepensavam ser bom para eles. E agora viam que fazer A não era bom. Equando havia discordância, esta não dizia respeito ao fato de que osseres humanos tinham de fazer o que os completava ou aperfeiçoava,mas sim discordavam a respeito de onde essa completude ou perfeiçãodevia ser buscada. Cf. MCINERNY, op. cit., p. 201-3.

54 Ou seja, o bem de uma ação era o fundamento da virtude. E a virtude dealgo consistia em exercer bem sua função natural ou tarefa própria. Oato humano só podia ser levado a cabo pelo agente humano, como noFilósofo. O que caracterizava o agir dos homens era a atividade racional– o ter domínio sobre as ações graças à razão e à vontade. E a virtudedessa atividade tornava o agente humano bom. Aqui, o Aquinate ape-nas aplicava ao agir humano os princípios derivados de sua metafísica,segundo a qual todas as coisas tendiam inevitavelmente para o seu fimúltimo, que era necessariamente bom.

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por se encontrar sob o domínio da razão, mesmo que fosseum ato de uma outra faculdade humana, como o apetite.55

Se havia um conjunto ordenado de tipos de atividades racio-nais, e se executar bem cada um desses tipos constituía umaforma distinta de virtude, seguia-se então que o bem huma-no consistia nos atos de uma pluralidade de virtudes.

Como o bem era objeto também do apetite,56 seguia-seque as disposições perfectivas da ação racional eram, no sen-tido participativo do termo, mais propriamente denomina-das virtudes.57 Pois as virtudes perfectivas do intelecto espe-culativo – a atividade humana característica por excelência –constituíam virtudes apenas num sentido aumentado e re-duzido do termo: a geometria podia aperfeiçoar nosso pensarsobre quantidades aumentadas. Mas chamar alguém de umbom geômetra não consistia numa avaliação dele como pes-soa. Pois, se geometria era uma virtude intelectiva, não eracontudo uma vontade moral.58

55 “Assim pois, para agirmos retamente é necessário, não só a razão estarbem disposta pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potên-cia apetitiva o estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim comoo apetite se distingue da razão, a virtude moral se distingue da intelec-tual. Logo, assim como o apetite é o princípio dos atos humanos en-quanto participa, de certo modo, da razão, assim o hábito moral realizaa noção de virtude humana na medida em que se conforma com a ra-zão” (ST I, II, 58, 2).

56 Sobre esse assunto, cf. GALLAGHER, D. Thomas Aquinas on will as rationalappetite”. Journal of the History of Philosophy, v. 29, n. 4, p. 559-84, oct.1991.

57 Tomás de Aquino distinguia três tipos de virtudes: as intelectuais, asmorais e as teologais. As virtudes intelectuais eram: inteligência, sabe-doria, ciência, técnica e discernimento. Consistiam virtudes morais: aprudência ou discernimento, justiça, coragem e moderação ou tempe-rança. Por fim, as virtudes teologais eram: a fé, a caridade e a esperan-ça. Cf. NASCIMENTO, op. cit., p. 74-6.

58 “A virtude humana é um hábito que aperfeiçoa o homem para obrarretamente. Ora, os atos humanos só têm dois princípios: o intelecto, ourazão, e o apetite; estes são os dois princípios motores no homem [...].

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McInerny aponta dois sentidos em que se deveria con-siderar a virtude: em sentido próprio e estrito, a virtude asse-gurava um firme e constante amor pelo bem. Envolvia assimessencialmente a vontade: o bem constituía o objeto e o amor,o ato da vontade. Num sentido secundário do termo, a virtu-de apenas dotava de uma capacidade, que podia ser usadade forma boa ou má, dependendo da disposição de nossavontade.59 Mas Tomás de Aquino dispensava duas virtudesintelectuais dessa limitação: a prudência e o intelecto. Virtu-des intelectuais, por poderem ser usadas de forma boa oumá, não eram virtudes no sentido pleno do termo. Apenas oshábitos que dispunham o apetite conferiam as duas coisas: acapacidade e a inclinação para usar bem essa capacidade.

A prudência (ou sabedoria prática) era uma virtude dointelecto prático, que, por se ligar também à razão, e dessemodo ao intelecto especulativo, se relacionava de forma es-pecial com as outras virtudes morais. Assim, o bem para umser humano era formado por uma pluralidade de virtudes oudisposições intelectuais e morais. Nenhuma virtude particu-lar poderia tornar o agente humano bom, pois o funciona-mento humano não era algo unívoco. Para ser moralmentebom, era preciso ser dotado de virtudes morais, as quais de-pendiam daquela disposição da razão prática que Tomás deAquino chamava de prudência. As virtudes morais permi-tiam a ordenação dos bens do apetite sensorial ao bem abran-gente do agente. E vontade ou apetite racional era matéria dajustiça.60

Por onde, toda virtude humana há-de forçosamente ser perfectiva deum desses dois princípios. Se o for do intelecto especulativo ou prático,a virtude será intelectual; e moral, se da parte apetitiva. Donde se con-clui que toda virtude humana ou é intelectual ou moral”. (ST, I, II,58, 3).

59 Cf. MCINERNY, op. cit., p. 203.60 “Não há dúvida que as virtudes morais podem existir sem certas virtu-

des intelectuais, como a sabedoria, a ciência e a arte; não o podem

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A virtude moral inclinava para o fim e permitia à pru-dência decidir de forma eficaz sobre os meios a serem esco-lhidos. O julgamento da prudência era conhecimento de umtipo diferente daquele expresso em princípios.61 O pensarprático (ou razão prática) principiava com o fim buscado evisava aos meios de atingi-lo, movendo-se dos meios remotosaos próximos, chegando por último ao que se podia fazeraqui e agora. Isso era o que significava para Tomás de Aquinoa ordem da intenção. Já a ordem da execução, de maneiraoposta, começava pelo ato que se podia executar aqui e agorapara depois passar ao alcance do fim.

A análise desses atos internos conduzia a uma relaçãoentre os atos do intelecto e os da vontade. As ações, na or-dem da intenção, diziam respeito ao fim: isto é, àquilo que amente concebia como bom e, portanto, como um objetivo aser perseguido. Ao considerar um objeto como bom, na or-dem da intenção, a mente procedia a três atos da vontade:

porém sem o intelecto e a prudência. Assim, não podem existir sem aprudência, por ser a virtude moral um hábito eletivo, i. é, que torna boaa escolha. Ora, para esta ser boa se exigem duas condições. A primeiraé haver a devida intenção do fim; e isto se dá pela virtude moral, queinclina a potência apetitiva ao bem conveniente com a razão, que é o fimdevido. A segunda é que nos sirvamos retamente dos meios, o que nãopode se dar senão pela razão, que aconselha retamente, no julgar e noordenar, o que pertence à prudência e às virtudes anexas [...]. Por onde,a virtude moral não pode existir sem a prudência. E, por conseqüência,sem o intelecto. Pois, por este é que conhecemos os princípios eviden-tes, tanto na ordem especulativa como na operativa. Por onde, assimcomo a razão reta, na ordem especulativa, enquanto procede de princí-pios naturalmente conhecidos, pressupõe o intelecto dos princípios,assim também a prudência, que é a razão reta dos atos” (ST I, II, 58, 4).

61 Às vezes, observa McInerny, Tomás de Aquino opunha conhecimentogeral ao tipo de conhecimento exigido pela prudência, descrevendo oprimeiro como conhecimento racional (per modum rationis) e o últimocomo conhecimento conatural (per modum connaturalitatis). Esse co-nhecimento da prudência pelo modo da inclinação natural equivalia àvirtude. Cf. MCINERNY, op. cit., p. 206.

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volição (pois acreditava-se que esse objeto preencheria nos-sas necessidades); prazer (pois pensar em obtê-lo nos agra-daria); e intenção (pois passaria a ser intencionado ou dese-jado, embora o caminho para tal ainda não fosse claro).Quando o ato interno passava a mover na direção da esco-lha dos meios, agora portanto na ordem da execução, ou-tros três atos da vontade se manifestavam: consenso, esco-lha e uso.62

Tomás de Aquino havia adotado um traço da filosofiaaristotélica quando afirmava existirem pontos de partida ouprincípios do pensar humano acessíveis a todos. Entendiacomo princípios aquelas verdades mínimas encravadas nocurso moral dos seres humanos. Os preceitos básicos damoralidade vinham à tona quando do confronto com outrosseres que pensavam de maneira diferente da nossa, pois tor-nava-se necessário explicar-lhes sobre que bases pensáva-mos a nós mesmos. O nome conferido pelo Aquinate aosprincípios subjacentes à prática moral e ao discurso que ti-nham implicação fora da reflexão era lei natural.

Por lei o Angélico entendia uma ordenação racional parao bem comum, promulgada por aquele a quem competia ogoverno da comunidade. O objetivo desse constrangimentode certas liberdades dos homens residia na preservação dobem comum dos cidadãos. Estas leis, agora com caráter ci-vil, funcionavam como guias para a ação e não podiam estarem conflito com verdades morais fundamentais, pois não eramuma matéria arbitrária. Os julgamentos morais emergiamno discurso como leis não-escritas. A mente compreendia osbens humanos como aqueles aos quais todos as pessoas eramnaturalmente inclinadas. A virtude, como uma segunda na-

62 Como geralmente podia haver uma pluralidade de meios atraentes pe-los quais podemos chegar ao fim desejado, o consenso sobre eles prece-deria a escolha. Cf. MCINERNY, op. cit., p. 207-8.

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tureza, constituía a perfeição de uma inclinação natural emdireção ao bem.63

Deste modo, o julgamento sobre bens aos quais os se-res humanos naturalmente se inclinavam formava os pontosde partida ou princípios do discurso moral. E o conjunto des-ses princípios morais constiuía o que Tomás denominava leinatural. Esses julgamentos primeiros não podiam ser recu-sados. Nesse sentido, eles se assemelhavam aos primeirosprincípios gerais da razão, os quais não podiam ser objeto dedemonstração. Na ordem moral, o equivalente desse princí-pio da não-contradição era a premissa básica de que “o bemdevia ser perseguido e o mal evitado”,64 fundamento de todajustiça. Inclinações naturais, portanto, eram necessariamenteaquelas que tínhamos: não podiam ser objeto de escolha. E aordem moral consistia em direcionar a mente para apersecução dos objetos das inclinações naturais, fazendo-obem.65

63 “Porque é próprio da virtude moral, que é um hábito eletivo, fazer umaeleição reta; e para isso não basta só a inclinação para o fim devido [...],mas é também preciso escolhermos diretamente os meios; e isto se re-aliza pela prudência, que aconselha, julga e preceitua sobre eles. Esemelhantemente, a prudência não a podemos ter sem que tenhamosas virtudes morais; pois ela é a razão reta do que devemos fazer, eprocede dos fins das ações, como de princípios, em relação aos quaisnos avimos retamente por meio das virtudes morais” (ST I, II, 65, 1).

64 “[...] o bem é o primeiro objeto da apreensão da razão prática, ordenadapara a ação; pois todo agente obra em vista de um fim que é, por essên-cia, um bem. Por onde, o primeiro princípio da razão prática é fundadona noção do bem, que assim se formula: o bem é o que todos desejam.Logo, o primeiro preceito da lei é: deve-se fazer e buscar o bem e evitar omal. E este é o fundamento de todos os outros preceitos da lei natural;de modo que tudo quanto a razão prática naturalmente apreende comobens humanos, e que deve ser feito ou evitado, pertence aos preceitosda lei da natureza” (ST I, II, 94, 2).

65 A capacidade de fazer julgamentos morais rápidos e corretos, lembraBoyle, tinha algumas condições. Uma delas era a consciência dos prin-cípios universais da lei natural, conhecidos por todos por meio de uma

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Lei natural segundo a concepção do Aquinate era, as-sim, uma teoria que tratava do raciocínio moral: existiamcertas verdades inegáveis sobre aquilo que podíamos e sobreo que não podíamos fazer. Essas verdades eram descritascomo princípios conhecidos por si. Todo agente humano ti-nha acesso a esses princípios fundamentais da lei natural. Ocomportamento dos homens, para Tomás de Aquino, eramarcado pelo pecado e pela perversidade. Mas a naturezanão havia sido destruída pelo vício: se assim fosse, a graçanada teria para o que se dirigir. “Embora a graça seja maiseficaz do que a natureza”, escrevia o Angélico, “a naturezacontudo é mais essencial ao homem, e portanto mais perma-nente” (ST I, II, 94, 6, ad 2).

Tomás de Aquino, de modo arguto, chamava a atençãopara o fato – muito útil à sua argumentação – de Aristótelesnão acreditar que a noção de fim último pudesse ser comple-tamente alcançada por agentes humanos. A felicidade hu-mana constituía, para a maioria dos homens, apenas umarealização imperfeita da noção de fim último: a muito poucosestaria reservado atingir o ideal da contemplação perfeita, acompleta eudaimonia.66 Esta idéia se traduzia, para Tomásde Aquino, numa distinção entre uma realização perfeita eimperfeita do fim último. Nesta interpretação, o ideal filosófi-co do mestre grego não conflitava com o cristão: ambos eramdoutrinas a respeito daquilo que realizava perfeitamente oideal humano da felicidade.

disposição racional que Tomás de Aquino denominava synderesis. Aoutra era uma base para valorar racionalmente as peculiaridades daspossibilidades concretas de ação que alguém enfrentava: a pessoa pre-cisava ser capaz de avaliar e controlar suas respostas emocionais àssingularidades das alternativas disponíveis para que suas ações esti-vessem de acordo com o que era bom. Ser totalmente racional na açãorequeria, portanto, prudência, virtude máxima da ação moral. Cf. BOYLE,J. Natural law and the Ethics of tradition. In: GEORGE, Robert (Ed.). Na-tural law theory. Oxford: Clarendon Press, 1995. p. 13-4.

66 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, l. 1, 10 (1101a14-21).

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A percepção pelo filósofo pagão de que nosso alcanceconceitual era superior à nossa compreensão prática forne-cia a base para que Tomás de Aquino pudesse falar de com-plementaridade – mais do que de oposição – entre o filosóficoe o teológico. Pelo contrário: o estudo da moral, fosse parafins religiosos ou práticos, pressupunha o conhecimento for-necido pela doutrina natural, e seria no fundo inconcebívelsem um forte grau de confiança nas realizações da filosofiacomo método do pensar. E o mesmo raciocínio valia para oestudo da política, a ciência suprema entre as que compu-nham o conhecimento prático.

“A estrutura do mundo moral”, escreve Cassirer comen-tando Tomás de Aquino, “é do mesmo tipo que a do mundofísico. Deus não é somente o criador do universo físico; é,primeiro e principalmente, o legislador, a fonte da lei moral.[...] Mas a ordem moral é uma ordem humana que só podeser levada a cabo por uma livre cooperação do homem. Nãolhe foi imposta por um poder super-humano; depende sim-plesmente de nossos atos livres”.

A ordem social – e neste ponto Tomás de Aquino seguiade perto o Filósofo – deveria derivar de um princípio empírico.“O Estado”, na visão do Angélico, sintetiza Cassirer,

nasce do instinto social do homem. É esse instinto queprimeiro leva à constituição da família, e, a partir daí, porum desenvolvimento constante, às outras formas maiscomplexas de comunidade. Contudo, não é necessárionem possível relacionar a origem do Estado com nehumfato sobrenatural. O instinto social é comum aos homense aos animais; mas no homem assume uma forma nova,[...] dependente de uma atividade livre e consciente. De-certo, Deus continua, num sentido, a ser causa do Esta-do; mas aqui, tal como no mundo físico, ele agesimplesmente como uma causa remota ou causa impulsi-va. Esse impulso original não liberta o homem da suaobrigação fundamental. Deve ele pelos seus próprios es-

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forços erguer uma ordem de direito e de justiça. É atra-vés dessa organização do mundo moral e do Estado queele prova a sua liberdade.67

Nessa concepção, a comunidade política terrena e aCidade de Deus passavam a se relacionar e completar-se.Como “a graça não destrói a natureza, e sim a aperfeiçoa”, osdois reinos estavam agora fundidos numa unidade perfeita.Nascimento conta que M-D. Chenu chamou essa segundaparte da Suma de teologia – que trata do movimento da cria-tura racional na direção d’Ele – de uma “ontologia da graça”.Pois nela Tomás de Aquino não fazia moral no sentido usualde estabelecer os limites do lícito e do ilícito: “sua preocupa-ção fundamental é descrever um organismo vivo que permiteao ser humano agir como tal e como cristão”.68 É justamenteessa separação entre homem e cristão e entre cristão e cida-dão que iria permitir o avanço de conceitos e noções laicasnas idéias políticas. Tomás de Aquino primeiro fundamentouessa separação no âmbito ético, ou seja, no campo da açãoindividual. E, somente num passo seguinte, estendeu-a aocampo da política, isto é, à ação coletiva. A explicação paraas diferenças repousava agora mais na natureza do que narevelação ou castigo divinos.

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Dois aspectos dessa ampla doutrina moral construídapor Tomás de Aquino merecem uma observação mais deta-

67 Cf. CASSIRER, op. cit., p. 132 – grifos meus. Vale a pena reter de seucomentário a idéia de que “não é necessário” relacionar a naturalidadeda comunidade política ao Criador. Pois isso era o que mostrariam embreve alguns dos leitores de Tomás de Aquino, como João Quidort ouDante, entre outros.

68 NASCIMENTO, op. cit., p. 79.

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lhada: as noções de lei e de direito. Pois, embora fizessemparte do movimento do seres humanos na direção de Deus,as duas idéias, tal como definidas e explicadas pelo Angélico,forneciam um elevado grau de compreensão a respeito desua visão da organização da vida coletiva na terra. Além dis-so, elas seriam a base dos avanços registrados nas idéiaspolíticas, proporcionando uma nova sustentação para a teo-ria da lei e do direito natural que se desenvolveria nos sécu-los seguintes. No Aquinate, a noção de lei vinculava-se a ummodo específico de conhecimento: aquele que se dava pormeio da razão humana.

Como já se viu, nenhuma verdade podia, do ponto devista da razão, ser contrária à fé. Do mesmo modo, nenhumaverdade da fé podia negar a natural. Embora a verdade fosseuma só, havia, segundo Tomás de Aquino, duas vias paraalcançá-la: a fé e a razão. Mas a razão, pelo fato de seus princí-pios operativos partirem das coisas sensíveis, não podia terpretensões à infalibilidade – já que os sentidos podiamfalhar. A fé consistia na obediência às palavras de Deus, masexigia, para o conhecimento de suas verdades, o intelecto.69

A razão, por sua vez, era de certo modo indispensável à fé: opoder de conhecer certas verdades concernentes a Deus erainerente à natureza da razão humana.70

A fé era simultaneamente uma graça divina e um atodo homem, pois a palavra de Deus tinha de fazer algum senti-

69 A fé garantia às verdades divinas, escreve Rassam, “o equilíbrio interiorsem o qual a natureza humana seria quase incapaz de usar correta-mente a razão. Efetivamente, longe de alienar a razão, a fé ajuda aencontrar a sua integridade natural”. Cf. RASSAM, op. cit., p. 21.

70 “Mas também, naquilo que de Deus pode ser investigado pela razãohumana, foi necessário ser o homem instruído pela revelação divina.Porque a verdade sobre Deus, exarada [investigata] pela razão, por pou-cos chegaria aos homens, depois de longo tempo e de mistura com muitoserros, se bem do conhecer essa verdade depende toda a salvação huma-na, que em Deus consiste” (ST I, q. 1, 1).

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do para a razão.71 Fé e saber, portanto, podiam existir numamesma pessoa, ao mesmo tempo, mas sob perspectivas di-ferentes (ST II, II, 1, 2), do mesmo modo que uma mesmarealidade era estudada por ciências diversas sob os seusdiferentes aspectos. Assim, a essência da razão não era alie-nada sob os auspícios da fé, pois seu triunfo consistia emconservar a razão ou a eficácia própria das suas leis. A auto-ridade da fé, por sua vez, era aumentada, e não diminuída,pela sustentação que encontrava na luz natural da razão.72

Era por meio do conhecimento das leis que a razão ou o inte-lecto humano podia apreender as verdades do intelecto di-vino.

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Isso era o que o Angélico mostrava ao responder àsquestões 90 a 108 da Suma teológica (I, II), as quais tratamda lei e compõem o livro comumente conhecido como o Tra-tado da Lei. Nele, como lembra o renomado medievalista SouzaNeto, Tomás de Aquino dizia que continuava abordando omesmo assunto, Deus, agora, porém, visto como princípioexterior que movia o homem na direção do bem,73 instruin-

71 A fé, portanto, não era contrária à razão, pois exigia a adesão do intelec-to: “a fé implica o assentimento do intelecto àquilo em que cremos” (STII, II, 1, 4).

72 “A perfeição do intelecto e da ciência excede o conhecimento da fé, porter maior clareza, não porém por ter mais certa a adesão. Pois toda acerteza do intelecto ou da ciência, enquanto dons, procede da certezada fé, assim como a do conhecimento, das conclusões, da certeza dosprincípios. Enquanto porém virtudes intelectuais, a ciência, a sapiênciae o intelecto se apóiam na luz natural da razão, que não tem a certezada palavra de Deus, em que se baseia a fé” (ST II, II, 5, 1).

73 SOUZA NETO, Francisco Benjamin. Introdução. In: AQUINO. Escritos políti-cos. Trad. de F. B. Souza Neto. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 9.

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do-o por meio da lei e ajudando-o por meio da graça.74 E opapel atribuído pelo Angélico à razão, no que respeitava à de-terminação da lei, era sem dúvida nada pequeno: como a leipreceituasse e proibisse, e ordenar era algo próprio da razão,concluía o Aquinate que “a lei é algo da razão” (TL I, II, 90, 1).

A lei, definia Tomás de Aquino, “é certa regra e medidados atos, segundo a qual é alguém inclinado a agir ou é afas-tado de certa ação”. Regra e medida dos atos humanos, arazão constituía primeiro princípio do agir dos homens. Poiscabia a ela ordenar para o fim, explicava o Angélico citandoAristóteles, que era o primeiro princípio do agir. “Com efeito,em cada gênero, o que é princípio, é medida e regra do referi-do gênero [...]. Donde seguir-se que a lei é algo pertinente àrazão” (TL I, II, 90, 1). Por meio da vontade de alguém,a razão ordenava para um fim. À razão, portanto, resumeSouza Neto, o Aquinate atribuía “a dignidade de mediadoraimanente de toda legislação, sem detrimento de seu princí-pio transcendente, Deus”.75

Quando definia lei como “um ordenamento da razão”,Tomás de Aquino tinha em mente um tipo específico de ra-zão, um raciocinar que era orientado para um fim: o Deuscriador. E sempre que alguém desejava um fim, a razão co-mandava o que devia ser feito para alcançá-lo (TL I, II, 90, 1).Esse comando racional não era um mero ato da vontade,pois seria puro arbítrio. Por isso, quando a lei romana dizia

74 “O princípio externo a inclinar para o mal é o Diabo”, escrevia Tomás deAquino logo no início, na introdução à questão 90. E “o princípio exter-no que move ao Bem”, continuava, “é Deus, que nos instrui mediante alei, auxilia mediante a graça. Donde deve-se discorrer primeiro sobrea lei e em seguida sobre a graça” (TL I, II, 90, 1). Especificamente no querespeita ao Tratado da lei (questões 90 a 97), foi usada aqui a ediçãorecentemente traduzida por Souza Neto, acima mencionada. As cita-ções retiradas dessa edição serão indicadas pela abreviação (TL), segui-da da codificação-padrão utilizada para a Suma teológica.

75 SOUZA NETO, op. cit., p. 9.

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que “a vontade do príncipe tinha força de lei”, devia-se enten-der que essa vontade tinha de ser guiada pela razão. “A von-tade concernente ao que é ordenado”, escrevia Tomás deAquino, “para que tenha a razão de lei, deve ser regulada porcerta razão. É neste sentido que se entende ter a vontade dopríncipe vigor e lei: de outro modo, ela seria mais iniqüidadedo que lei” (TL I, II, 90, 1, ad 3).

A lei, continuava,

pertence ao que é princípio dos atos humanos, por serregra e medida. Mas, como a razão é princípio dos atoshumanos, há algo inerente à própria razão que é o prin-cípio em relação a todo o restante [...]. Ora, o primeiroprincípio no que concerne ao operar, o qual compete àrazão prática, é o fim último. Por sua vez, o fim último davida humana é a felicidade ou beatitude [...]. Donde sernecessário que a lei vise sobretudo à ordenação para abeatitude. De resto, dado qualquer parte ordenar-se parao todo como o imperfeito ao perfeito e ser cada homemparte de uma comunidade perfeita, é necessário que a leivise à ordenação para a felicidade comum como o que lheé próprio. (TL I, II, 90, 2)

O objetivo da lei, portanto, dizia Tomás de Aquino, eraa ordenação para o bem comum. “Ora, ordenar algo para obem comum compete a toda a multidão ou a alguém a quemcabe gerir fazendo as vezes de toda a multidão. Portanto,estabelecer a lei pertence a toda a multidão ou à pessoa públi-ca à qual compete cuidar de toda a multidão”. Qualquer pes-soa privada, advertia, podia dar conselhos. “Mas se seu con-selho não é aceito, não tem força, o que deve possuir a lei,para induzir eficazmente à virtude”. Também aquele que go-vernava uma família podia ser autor de certos preceitos ouestatutos. Mas estes não tinham, em sentido estrito, razãode lei. “Esta força coativa tem a multidão ou a pessoa pública,à qual compete infligir as penas como se dirá adiante. Eis porque só a ela cabe legislar” (TL I, II, 90, 3 – grifos meus).

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Da leitura aristotélica, como se vê, Tomás de Aquinoadotou a noção de governo sobre homens livres, capazes dedirigirem a si mesmos. Fundamentava ainda o princípio darepresentação, ao atribuir ao povo (populus) a capacidadelegislativa: na multidão repousava a fonte última da autori-dade. Essas eram idéias que fariam escola no pensamentopolítico. A lei era imposta aos outros, continuava Tomás deAquino no artigo 4°, pelo modo da regra e da medida. Paraque a aplicação da lei obtivesse o vigor de obrigar, que lhe erapróprio, ela devia tornar-se conhecida por meio da promul-gação: “Donde ser a promulgação necessária para que a leivenha a ter o seu vigor”. E resumia: a lei “não é senão certaordenação da razão para o bem comum, promulgada poraquele a quem cabe cuidar da comunidade” (TL I, II, 90, 4).

Ou seja, a lei constituía apenas um

certo ditame da razão prática no príncipe, que governaalguma comunidade perfeita. Ora, é manifesto, supostoser o mundo regido pela divina providência, [...] que todaa comunidade do universo é governada pela razão divina.Assim pois, a própria razão do governo existente, em Deus,como príncipe do universo, compreende a razão de lei. Eporque a divina razão nada concebe a partir do tempo,mas é dotada de conceito eterno, [...] segue-se que tal leideve dizer-se eterna. (TL I, II, 91, 1)

Isto é, a primeira forma da lei era a lei eterna (lex aeter-na), da qual participavam as demais formas de lei, e basea-va-se na razão divina.

Segundo a hierarquia das leis, à lei eterna seguia-se alei natural (lex naturalis): todo ser participava “de algum mododa lei eterna, em razão de sua natureza”. Nesse sentido, cadaente era dotado de uma lei natural, escreve Souza Neto expli-cando Tomás de Aquino, que era para ele regra e medida e,como certa impressão da lei eterna, fazia com que se incli-nasse para seus próprios atos e fins. Essa participação ocor-

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ria de forma específica e diferenciada. No ser humano, “cria-tura racional, se eleva a uma verdadeira participação na pro-vidência, na medida em que cabe à razão ser providente parao homem e os demais entes”.76 Essa participação da lei eter-na na criatura racional constituía o que se chamava em sen-tido pleno lex naturalis77 e valia-se de uma luz própria à razão,que a levava ao discernimento natural do bem (TL I, II, 91, 2).

À lei natural, seguia-se naturalmente a lei humana (lexhumana), que era um ditame da razão prática e decorria dofato de seu procedimento guardar um certo paralelismo como da razão especulativa: ambas partiam de certos princípiosindemonstráveis para produzir as suas conclusões (esta dasdiversas ciências, aquela das disposições particulares). A leihumana, assumindo como princípios os preceitos da lei na-tural, “destes faz derivar disposições mais particulares, asquais, em seu conjunto, são chamadas de lei humanas, res-peitadas todas as condições inerentes à razão de lei”.78 Porversar sobre obras a realizar, pertencentes portanto à esferado singular e do contingente, a razão prática não procediacom o mesmo rigor e infabilibidade da razão especulativanas conclusões demonstrativas da ciência (TL I, II, 91, 3,ad 3).

A lei divina (lex divina) devia regular as relações entreDeus e homem pelo fato de ter o Criador se revelado às cria-turas e as ter chamado a participar de sua vida eterna. Ouseja, a vocação humana à beatitude constituía o fundamento

76 Ibid., p. 10.77 “[...] também os animais irracionais participam da razão eterna, como a

criatura racional, mas de um modo que lhes é próprio. Mas, comoa criatura racional dela participa intelectual e racionalmente, por estarazão a participação da lei eterna na criatura racional chama-se emsentido próprio lei: pois é a lei algo da razão [...]. Com efeito, na criaturairracional tal participação não se faz mediante a razão, donde não podedizer-se lei senão por semelhança” (TL I, II, 90, 2, ad 3).

78 SOUZA NETO, op. cit., p. 11.

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que exigia uma lei divina (o bem consistente na comunhãocom Deus). A lei humana, dizia Tomás de Aquino historiando,“não foi suficiente para coibir e ordenar os atos interiores,mas foi necessário que para isto sobreviesse a lei divina”. E,como “a lei humana não pode punir ou proibir todos os ma-les que se praticam, [...] para que nenhum mal permaneçasem proibição ou punição, foi necessário sobrevir a lei divi-na, pela qual são proibidos todos os pecados” (TL I, II, 91, 4).E à questão de haver – ou não – uma única lei divina, oAngélico respondia que, assim como o imperfeito caminhavapara o perfeito, também a lei antiga (Velho Testamento), queordenava para o bem comum terreno e sensível, se distin-guia da lei nova (Novo Testamento), que ordenava para o inte-ligível e celeste, sendo por isso dupla.79

Por ser universal, aquilo que se estabelecia na lei erafundamental para a compreensão das relações entre gover-nantes e governados. Tomás de Aquino afirmava, seguindo omestre grego, que era efeito da lei tornar os homens bons,fazendo-os obedientes àquele que governava nos termos porela prescritos. Se a lei visasse ao bem comum, ela tornavabom, na medida em que fosse observada, todo aquele que a

79 “[...] algo pode distinguir-se de dois modos”, escrevia Tomás: “como operfeito e o imperfeito dentro da mesma espécie [...]. É deste modo quea lei divina se distingue em lei antiga e lei nova. [...] em primeiro lugar,cabe à lei ordenar ao bem comum como a seu fim, [...] e este pode serduplo: o bem sensível e terreno e a tal bem ordenava diretamente a leiantiga: eis porque, em “Êxodo” 3: 8; 17, logo no princípio da lei, é o povochamado a conquistar o reino terreno dos cananeus; há, em seguida, obem inteligível e celeste e a este ordena a lei nova. [...] As promessas dascoisas temporais estão contidas no Antigo Testamento, eis porque cha-ma-se antigo; todavia, a promessa da vida eterna pertence ao Novo Tes-tamento. Cabe à lei, em segundo lugar, dirigir o saber humano segundoa ordem da justiça. [...] Em terceiro lugar, cabe à lei conduzir os homensàs observâncias dos preceitos. Isto fazia a lei antiga mediante o temordas penas; ao contrário, a lei nova o faz pelo Amor que é infundido emnossos corações pela graça do Cristo, que na lei nova é conferida, e nalei antiga era figurada” (TL I, II, 91, 5 – grifos meus).

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ela se sujeitava pura e simplesmente.80 Senão, tornava ohomem bom apenas na medida em que lhe incutia certa or-dem:

a lei tirânica, por não ser segundo a razão, não é lei purae simplesmente, mas antes certa perversão da lei. E, to-davia, na medida em que preserva algo da razão de lei,intenciona que os cidadãos sejam bons. Pois nada temda razão de lei senão na medida em que é o ditame dealguém que preside seus súditos e intenciona que os sú-ditos obedeçam bem à lei; nisto, são eles bons, não purae simplesmente, mas enquanto ordenados a tal regime.(TL I, II, 92, 1, ad 4)

Seu raciocínio aqui era estritamente aristotélico.

Os atos da lei eram quatro: ordenar, proibir, permitir epunir. A lei eterna, razão da sabedoria divina, fazia-se conhe-cer por sua irradiação. Isso assegurava a vigência da lei eter-na no âmbito de todas as criaturas inteligentes. E assim comotoda criatura participava do ser divino, assim também todoaquele que se movia recebia de Deus a moção preliminar e, aesse título, tinha nele sua lei eterna. Nas palavras de Tomásde Aquino:

80 “[...] a lei não é senão o ditame da razão naquele que preside e por quemsão governados os súditos. Ora, é virtude de qualquer súdito sujeitar-sebem àquele por quem é governado. [...] é próprio da lei induzir os súdi-tos à virtude que lhes é própria. Sendo, pois, a virtude ‘aquilo que fazbom o que a possui’, segue-se que é efeito próprio da lei fazer bonsaqueles aos quais é dada, de modo absoluto ou relativo. Assim, se aintenção de quem promulga a lei tende para o verdadeiro bem, que é obem comum regulado segundo a divina justiça, segue-se que pela lei oshomens se tornam bons pura e simplesmente. Se, porém, a intenção dolegislador for algo que não seja o bem pura e simplesmente, mas o quelhe é útil ou agradável, ou o que repugna à justiça divina, então a lei nãofaz os homens bons pura e simplesmente, mas de certo modo, ou seja,em conformidade com um tal regime. Dessa forma, encontra-se algumbem mesmo no que é por si mal, como se diz ser alguém um bom ladrãopor agir adequadamente para o seu fim” (TL I, II, 92, 1 – grifos meus).

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[...] a lei importa certa razão diretiva dos atos para osfins. Ora, em todos os motores ordenados é mister que aforça do motor segundo derive da força do motor primei-ro [...]. Donde divisarmos em todos os governantes o mes-mo, isto é, que a razão de governo deriva do primeiro aosegundo governante, como na cidade, a razão do que deveser executado mediante o preceito deriva do rei aos ad-ministradores inferiores.81 (TL I, II, 93, 3)

Só não estava sujeito à lei eterna, portanto, aquilo queera inerente à essência divina. Todo o restante lhe era sub-misso, fossem criaturas irracionais ou partícipes da razão.

Quanto à lei natural, o Aquinate esclarecia que ela nãoconstituía um “hábito”: “o que” alguém fazia diferia do “porque” o fazia. O hábito era aquilo “por que” uma pessoa agia.Entretanto, por estar habitualmente na razão, ela podia di-zer-se hábito, já que a razão nem sempre considerava a leinatural um ato. Essa lei natural continha um único princí-pio: a razão prática partia do bem, que era o que ela primeiroconcebia. Nele, a razão prática fundava o seu primeiro prin-cípio: o bem devia ser praticado e o mal evitado. E deste deri-vava os demais princípios ou leis. Essa derivação se perfaziasegundo a tríplice inclinação do homem: aquela que tinhaem comum com todas as substâncias; a que repartia com osanimais; e a que tinha como própria à natureza da razão,como a inclinação natural para o conhecimento de Deus epara a vida em sociedade (TL I, II, 94, 2).

A lei natural prescrevia os atos de todas as virtudes,pois pertencia a tal lei tudo aquilo para o que o homem natu-ralmente se inclinava. Contudo, nem todos os atos das virtu-

81 E adiante: “Sendo, pois, a lei eterna a razão de governo no supremogovernante, é necessário que todas as razões de governo inerentesaos governantes inferiores derivem da lei eterna. Ora, tais razões ine-rentes aos governantes inferiores são quaisquer outras leis, excetuadaa lei eterna. Donde todas as leis derivam da lei eterna na mesma medi-da em que participam da reta razão” (idem).

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des eram da lei de natureza: isto é, a lei de natureza nãoinclinava de imediato para as virtudes, pois alguns dos atosvirtuosos eram descobertos por meio de pesquisa da razão. Arazão contemplativa trabalhava com o rigor da lógica, partin-do de premissas fundadas em princípios ou neles consisten-tes, podendo chegar por isso sem falha às mais extremasconclusões. Já a razão prática, por operar com o contingen-te, era sempre a mesma para todos quanto aos princípioscomuns e quanto ao seu conhecimento.82 Mas podia falharem suas conclusões (quanto à retidão da ação prescrita e àsvezes até mesmo quanto ao conhecimento). Pois a força dapaixão ou de um mau costume podia depravar a razão.83

Podia então a lei natural ser mudada? Tomás de Aqui-no admitia que sim, e explicava os dois modos pelos quaisisso podia ocorrer: por acréscimo e por subtração. Mudá-lapara acrescentar, desde que visasse à utilidade da vida hu-mana, era sempre admissível.84 Já subtrair constituía umaexceção na aplicação da lei. No que respeitava aos primeirosprincípios, a lei de natureza não podia ser abolida nem su-primida do coração dos homens:

[...] quanto a tais princípios comuns, a lei natural de ne-nhum modo pode ser abolida do coração humano de for-

82 Cf. SOUZA NETO, op. cit., p. 14.83 “Assim, deve dizer-se que a lei da natureza, quanto aos primeiros prin-

cípios comuns, é a mesma em todos, tanto segundo a retidão, quantosegundo o conhecimento. [...] em poucos casos pode ela falhar, sejaquanto à retidão, por causa de alguns impedimentos [...] seja quanto aoconhecimento. Isto ocorre porque alguns têm a razão depravada pelapaixão, por um mal costume ou por uma disposição má da natureza,como p. ex. entre os antigos germanos o latrocínio não era reputadoiníquo, embora seja expressamente contra a lei da natureza” (TL I, II,94, 4).

84 “Dessa forma, nada proíbe ser a lei natural mudada, pois muito foiacrescentado à lei natural, tanto pela lei divina, quanto por leis huma-nas para utilidade da vida humana” (TL I, II, 94, 5).

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ma universal. É abolida, porém, em algo de operável, namedida em que a razão é impedida de aplicar o princípiogeral ao operável particular por óbice da concupiscênciaou de alguma outra paixão [...]. Quanto aos preceitos se-gundos, entretanto, pode ser a lei natural abolida dos co-rações dos homens, ou por força das más persuasões, domesmo modo que, no especulativo, ocorrem erros a res-peito das conclusões necessárias, ou ainda por causa dosmaus costumes e hábitos. (TL I, II, 94, 6)

Ao examinar a lei humana, Tomás de Aquino insistianão só na utilidade, mas também na necessidade de o ho-mem promulgar leis: assim como a natureza não dotou ohomem de todas as coisas necessárias à sua sobrevivência,deixando muito à incumbência da razão e das mãos, tam-bém no que respeitava à virtude dotou-o de certa aptidão,mas “deixou a perfeição nesta à incumbência de certa disci-plina”: à disciplina que obriga pelo medo da pena, a da lei.85

E, como era mais fácil encontrar uns poucos virtuosos parapromulgar as leis do que muitos para arbitrar com funda-mento na justiça, que era inerente às leis, Tomás de Aquinoconcluía que era necessário que “a lei determine o que deveser julgado e deixar pouquíssimos [casos] ao arbítrio dos ho-mens” (TL I, II, 95, 1, ad 2), confiando aos juízes apenasaquilo que não podia ser compreendido pela lei.

A lei humana, entretanto, derivava da lei natural. Euma lei só podia ser verdadeiramente denominada como talse fosse justa, tal como havia mostrado Agostinho.86 Doismodos de derivação da lei natural eram possíveis: o da con-clusão que se seguia ao princípio; e o da determinação do

85 Cf. SOUZA NETO, op. cit., p. 15.86 No âmbito humano, algo só se dizia justo “por ser reto segundo a regra

da razão. Ora, por sua vez, a primeira regra da razão é a lei da natureza[...]. Donde, toda lei humanamente imposta tanto tem razão de lei, quantoderiva da lei natural. Se, pois, em algo discorda da lei natural, já nãoserá lei, mas corrupção da lei” (TL I, II, 95, 2).

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que era geral.87 “Não matarás”, por exemplo, constituía umpreceito que derivava dos princípios gerais da lei da naturezasob a forma de conclusão. Pois prescrevia que “não se podiafazer mal a quem quer que fosse”. Já a pena a ser aplicada aalguém era uma lei que derivava segundo o modo da deter-minação, a partir do princípio de “que seja punido aqueleque peca”, prescrição que a lei natural deixara indeterminada.Aquilo que “pertence ao primeiro modo, está contido na leihumana não só como imposto por esta, mas tem tambémalgum vigor de lei natural. Mas o que pertence ao segundomodo, tem vigor tão-somente por força da lei humana” (TL I,II, 95, 2).

Quais eram então as condições dessa lei positiva? Aquio Angélico, seguindo Isidoro, reduzia a três todas as suascondições: 1) “ser congruente à religião”, enquanto propor-cionada à lei divina; 2) “ser adequada à disciplina”, quandoproporcionada pela lei de natureza; 3) “ser proveitosa à sal-vação pública”, enquanto proporcionada à utilidade huma-na.

Com efeito, a disciplina humana visa primeiro à ordemda razão, o que importa dizer-se ela “justa”. Visa em se-gundo lugar à faculdade dos “agentes” e deve, por isso,ser uma disciplina adequada a cada qual segundo a suapossibilidade, observada também a possibilidade da na-tureza [...]. Deve ser ela também conforme ao costumehumano: com efeito, o homem não pode viver isolado nasociedade, sem ajustar-se aos costumes dos demais. (TLI, II, 95, 3)

Assim, a lei humana derivava da natural e dava origema dois tipos de jurisprudência: o direito das gentes e o civil.

87 O primeiro modo era semelhante à demonstração a partir dos princí-pios, tal como nas ciências. O segundo era semelhante ao modo deacordo com o qual, nas artes, as formas gerais eram determinadas demaneira a se produzir certa obra singular.

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É, primeiro, da razão da lei humana ser derivada da leida natureza [...]. E segundo isto o direito positivo divide-se em direito das gentes e direito civil, segundo os doismodos pelos quais algo deriva da lei da natureza [...]. Poispertence ao direito das gentes o que deriva da lei da na-tureza como conclusões de princípios [...]. O que derivada lei da natureza segundo o modo de uma determinaçãoparticular pertence ao direito civil, consoante o qual cadacidade [civitas] determina o que a ela melhor se acomoda.(TL I, II, 95, 4)

“Em segundo lugar”, prosseguia o Angélico,

é da razão da lei humana ser ordenada para o bem co-mum da cidade. Em conformidade com isto, a lei huma-na pode ser dividida segundo a diversidade daqueles queprestam um serviço especial ao bem comum: assim, os sa-cerdotes, que oram pelo povo de Deus, os príncipes, quegovernam o povo, e os soldados, que lutam por sua defe-sa. (idem – grifos meus)

A mesma fórmula que aqui servia para indicar as fun-ções específicas de cada poder seria invocada, algumas dé-cadas depois, por alguns dos mais árduos defensores daautonomia do governante secular, contra a ingerência do bispode Roma em assuntos terrenos. Seus ecos ainda seriam ou-vidos em teóricos como Hobbes.

E continuava:

Em terceiro lugar é da razão da lei humana ser instituídapelo governante da comunidade da cidade [...]. E, quantoa isto, distinguem-se as leis humanas segundo os diver-sos regimes das cidades. Desses, o primeiro é, segundo oFilósofo (Política, III, 5), o reino, no qual a cidade é gover-nada por um só e neste caso que se fala e das constitui-ções dos príncipes. Um outro regime é a aristocracia, ouseja, o principado dos melhores e superiores, caso emque fala dos pareceres dos prudentes e das resoluções dosenado. Outro regime é ainda a oligarquia, o principado

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de uns poucos, ricos e poderosos; é a esta que se atribuio direito pretório, dito também honorário. Um outro regi-me é também o de todo o povo e este denomina-se demo-cracia [democratia]: são-lhe atribuídos os plebiscitos. Háainda um outro, o tirânico, de todo corrupto, do qual nãoderiva nenhuma lei. Há, enfim, um regime que é a mes-cla de todos estes, o qual é o melhor e dele deriva a lei queos maiores por nascimento sancionaram juntamente comas plebes. (idem)

“Em quarto lugar, pertence à razão da lei humana serdiretiva dos atos humanos. Em conformidade com isto, dis-tinguem-se as leis segundo a diversidade daquilo em vista doque são promulgadas” (idem). Para Tomás de Aquino, por-tanto, o melhor regime consistia naquele em que um era pre-ferido segundo a virtude e presidia a todos. Mas, sob suaautoridade, havia alguns que exerciam o principado virtuo-samente. Tal principado, porém, pertencia a todos, fosse por-que tais membros eram eleitos dentre todos, fosse porqueainda o eram por todos. Ou seja, o Aquinate, tal como seumestre grego, defendia um governo misto. Em tal politia, lem-bra Souza Neto, “salva-se o bem da unidade, assegurado pelapresidência de um único, mas também o da aristocracia, poiso principado é compartilhado por muitos, bem como o dademocracia, pois respeita-se o poder do povo, na medida emque dentre os populares podem ser eleitos os príncipes e aopovo pertence a eleição do príncipe.”88

Segundo Tomás de Aquino, a lei humana devia coibirapenas os vícios mais graves, pois a perfeição pressupunha ohábito da virtude, o que a lei não podia fazer:89 ela apenas

88 SOUZA NETO, op. cit., p. 19.89 “Ora, a lei humana impõe-se à multidão dos homens, cuja maior parte

é de homens não perfeitos na virtude. Eis porque não são proibidos pelalei humana todos os vícios dos quais os virtuosos se abstêm, mas só osmais graves, dos quais é possível abster-se a maior parte da multidão e

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tencionava induzir, gradualmente, todos os homens à virtu-de. A lei não preceituava os atos de todas as virtudes, massomente aqueles que podiam ordenar-se ao bem comum. Asleis humanas, quando eram justas, obrigavam no “foro deconsciência”, por derivarem da lei eterna.90 Todos estavamsujeitos à competência de quem promulgava a lei, do mesmomodo como o que era regulado estava sujeito à regra. O prín-cipe, por promulgar a lei, dela estava isento. Mas deviaobservá-la voluntariamente, pois estaria sujeito à sua forçadiretiva diante do juízo divino. Se o príncipe julgasse últil aobem de todos, era-lhe lícito agir contra a letra da lei. O con-senso de uma multidão livre, contudo, tinha maior poderque o príncipe, pois seu poder derivava daquela.

Nos termos de Tomás de Aquino:

[...] se diz ser o príncipe isento da lei quanto à força coativada lei, pois ninguém, em sentido próprio, é coagido por simesmo; ora, a lei só tem força coativa em razão do poderdo príncipe. [...]. Mas quanto à força diretiva da lei, está opríncipe sujeito à lei por sua própria vontade [...]. Segue-se, pois, não estar o príncipe isento da lei quanto ao vigor

sobretudo os que são em detrimento dos outros, sem cuja proibição asociedade humana não poderia conservar-se, como são proibidos porlei humana os homicídios, os furtos e outros semelhantes” (TL I, II, 96,2).

90 “Deve dizer-se que as leis humanamente impostas são justas ou injus-tas. Se justas, têm a força de obrigar no foro da consciência por causada lei eterna da qual derivam [...]. Nesses termos, as leis que, segundo adevida proporção, impõem encargos são justas e obrigam no foro daconsciência e são leis legais”. As leis injustas, continua adiante, “nãoobrigam no foro da consciência, a não ser, talvez, em vista de se evitar oescândalo ou a perturbação, causa também de o homem dever cederem seu direito [...]” (TL I, II, 96, 4). Pois às leis que impõem aos súditosum encargo injusto, explica o Angélico na réplica, “não se estende aordenação do poder divinamente concedido. Donde, não ser o homem,em tais casos, obrigado a obedecer à lei, se, como se disse, pode resistir-lhe sem escândalo ou maior prejuízo” (TL I, II, 96, 4, ad 3).

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diretivo desta perante o juízo de Deus, mas deve cumprira lei voluntariamente e não por coação. Está também opríncipe acima da lei na medida em que, se for isto van-tajoso, pode mudá-la e dela dispensar, segundo o tempoe o lugar. (TL I, II, 96, 3)

E acrescentava a seguir:se a observância literal da lei não constitui perigo ime-diato, ao qual seja necessário fazer frente, não é dacompetência de ninguém interpretar o que é útil ouinútil à cidade, mas isto cabe apenas aos príncipes,que têm a autoridade de dispensar da lei em vista detais casos [...] pois a necessidade não é sujeita à lei.(TL I, II, 96, 6)

Mudar a lei, entretanto, esclarecia Tomás de Aquino,era tarefa complexa e exigia cautela:

[...] a lei humana é corretamente mudada na medida emque por sua mudança se provê à utilidade comum. Con-tudo, a mudança da lei constitui em si mesma certo pre-juízo das salvaguardas comuns. [...] quando se muda alei, diminui o vigor coercitivo da mesma, na medida emque é abolido o costume. Eis porque nunca se deve mu-dar a lei humana a não ser quando, de um lado, se favo-rece tanto a salvaguarda comum, quanto de outro ladose derroga, o que ocorre, ou porque alguma utilidademáxima e evidentíssima provém do novo estatuto, ouporque é máxima a necessidade, seja por conter a lei cos-tumeira manifesta iniqüidade, seja por sua observânciaser sobremodo nociva. (TL I, II, 97, 2)

Tomás de Aquino estabelecia aí um paralelo – impor-tante – entre Deus e o príncipe, quando dizia que “[...] toda leiemana da razão e da vontade do legislador: a lei divina e anatural da vontade racional de Deus. Já a lei humana, davontade do homem regulada pela razão”. Como a razãoe a vontade do homem se modificavam ao longo do tempo,essas mudanças podiam se nos aparecer como um costume,

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e até adquirirem vigor de lei. “Pois quando algo se faz muitasvezes, parece provir de um deliberado juízo da razão. E, nes-ses termos, o costume possui vigor de lei, ab-roga a lei e é ointérprete das leis” (TL I, II, 97, 3).

E remover o costume da multidão, dizia Tomás deAquino, era tarefa árdua:

[...] deve dizer-se que a multidão, na qual se introduz ocostume, pode ser de dupla condição. Se é uma multidãolivre, que possa fazer a própria lei, maior é o consenso detoda a multidão quanto à observância de algo, que o cos-tume manifesta, do que a autoridade do príncipe, que nãotem poder de edificar a lei, a não ser enquanto age napessoa da multidão. Donde, ainda que as pessoas singu-lares não possam instaurar a lei, pode-o contudo todo opovo [populus]. (TL I, II, 97, 3, ad 3 – grifos meus)

A importância atribuída pelo Angélico à vontade do povocomo fator de consentimento político seria decisiva. Ao partirdessa perspectiva, o Aquinate recolocava num novo patamaro antigo princípio da representação: o governante passavaagora a “personificar” a comunidade política ou civitas. Tam-bém à questão da autoridade política uma nova base erafornecida: a noção de populus como fonte do poder.

E explicava adiante:

Eis porque aquele a quem cabe reger a multidão tem opoder de dispensar da lei humana, no que repousa sobresua autoridade, ou seja, que, quanto às pessoas e emcasos em que a lei é falha, dê a licença para que a lei nãoseja observada. Se, porém, sem esta razão, por mera von-tade, dá a licença, não será fiel na dispensa, ou será im-prudente; isto é, infiel, se não intenciona o bem comum,imprudente se ignora a razão de dispensar. [...] Ora, qual-quer homem está para a lei divina, como o está a pessoaprivada para a lei pública à qual está subordinada. Don-de, assim como na lei humana pública não pode dispen-sar a não ser aquele de quem a lei tira a autoridade ouaquele a quem o confiar, igualmente, nos preceitos do

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direito divino, que têm Deus por origem, ninguém podedispensar senão Deus ou alguém a quem este especial-mente o confiar. (TL I, II, 97, 4 e ad 3)

A partir da questão 98, Tomás passava a considerar asdiferenças entre a lei antiga e a lei nova e suas causas. Essaparte do Tratado da lei é geralmente pouco abordada, masimporta aqui sobretudo pela sua caracterização da noção depreceito. Iniciava a discussão definindo o objetivo da lei hu-mana: “Ora, como sabemos, um é o fim da lei humana, eoutro, o da divina. O fim da lei humana é a tranqüilidadetemporal da cidade. E esse fim a lei consegue coibindo osatos exteriores, excluindo os males capazes de perturbar apaz civil”. Essa tinha sido, segundo ele, a razão pela qualDeus havia instituído a lei antiga que, por meio de seus pre-ceitos rigorosos, deveria ordenar a convivência humana.91 Alei antiga, contudo, dizia Tomás de Aquino, obrigava apenaso povo judeu.92 Assim, entre a lei da natureza e a da graça,foi necessário ser dada a lei antiga (ST I, II, 98, 6).

O tipo de comunidade para a qual se ordenava a leihumana, a comunidade dos homens, diferia daquela para aqual se voltava a lei divina, a comunidade dos crentes.

91 Os preceitos do decálogo, expressos pela lei antiga contida no VelhoTestamento, exprimiam a intenção mesma de Deus legislador. “Pois, osda primeira tábua, que ordenam para ele, contêm a ordem mesma parao bem comum e final, que é Deus. E os da segunda, a ordem da justiçaa ser observada entre os homens, de modo que, p. ex., a ninguém se lhefaça o que se lhe não deve fazer, e a cada um lhe seja pago o devido” (STI, II, 100, 8). A partir dessa questão 98, voltaremos a utilizar a ediçãocompleta da Suma teológica (ST), acima citada, a qual contém a tradu-ção completa do assim chamado Tratado da lei.

92 “A lei antiga manifestava os preceitos da lei da natureza, acrescentan-do-lhes certos preceitos próprios. Por onde, todos estavam obrigados aobservar todos os preceitos da lei antiga, que também o eram da leinatural; não por serem daquela, mas por pertencerem a esta. Mas nin-guém, a não ser o povo judaico, estava obrigado a observar os preceitosque a lei antiga acrescentou” (ST I, II, 98, 5).

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Pois, a lei humana se ordena à comunidade civil, a[quela]constituída pelos homens entre si; e estes se ordenamuns para os outros pelos seus atos exteriores, com que seentrecomunicam. E essa comunicação pertence essen-cialmente à justiça, que é propriamente diretiva da co-munidade humana. Por onde, a lei humana só propõepreceitos referentes aos atos de justiça; e se ordenar ou-tros atos de virtude, não será senão enquanto se reves-tem da essência da justiça, como está claro no Filósofo.(ST I, II, 100, 2 – grifos meus)

Como certos preceitos de qualquer lei, em virtude deum ditame da razão, tinham força obrigatória pelo fato de arazão natural ditar que fosse tal ato praticado ou evitado,esses preceitos se chamavam morais, por fundarem na razãoos costumes humanos.

Se portanto forem determinados preceitos morais, porinstituição divina, relativos à ordenação do homem paraDeus, esses preceitos se chamarão cerimoniais. Se rela-tivos à ordenação dos homens uns para os outros, cha-mar-se-ão judiciais. Logo, dois fundamentos têm a razãodos preceitos judiciais: concernirem à ordenação dos ho-mens uns para os outros; e terem força obrigatória fun-dada, não só na razão, mas na instituição. (ST I, II,104, 1)

Com a instituição da lei nova, decorrente da vinda deCristo, estes preceitos teriam perdido a sua validade.93

93 “[...] os preceitos cerimoniais são figurativos, primariamente e em simesmos, como tendo sido principalmente instituídos para figurar osmistérios futuros de Cristo. Portanto, a observância mesmo deles pre-judica à verdade da fé, pela qual confessamos esses mistérios já seterem cumprido. Ao passo que os preceitos judiciais não foram institu-ídos para figurar, mas para dispor o estado do povo judeu, que se orde-nava para Cristo. Por onde, mudado o estado desse povo, com o adventode Cristo, os preceitos judiciais perderam a força obrigatória; pois a leiera um pedagogo conducente a Cristo, como diz o Apóstolo” (ST I, II,104, 3).

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E arrematava:

Ora, ao príncipe pertence não só ordenar sobre os lití-gios, mas também sobre os contratos voluntários dos ho-mens entre si, e de tudo o atinente à comunidade do povoe ao regime. Por onde, os preceitos judiciais não são so-mente os concernentes às lides judiciais, mas todos osque respeitam à ordenação mútua dos homens, sujeita àordenação do príncipe como juiz supremo. (ST I, II, 104,1, ad 1)

A justiça há de ser observada perpetuamente; mas a de-terminação do que é justo, por instituição humana oudivina, há de necessariamente variar segundo os diver-sos estados dos homens. (ST I, II, 104, 3, ad 1)

A lei, comparava o Aquinate, assemelhava-se a umaarte, cujo objetivo era instituir e ordenar a vida humana.

Ora, cada arte tem uma certa divisão nas suas regras.Portanto, toda lei deve conter uma certa divisão nos seuspreceitos; do contrário, a confusão viria aniquilar-lhe autilidade. Por onde devemos concluir que os preceitosjudiciais da lei antiga, que ordenavam os homens unspara os outros, comportam uma distinção fundada naordenação humana. Ora, em qualquer povo, podemosdescobrir quádrupla ordem. Uma, a dos chefes em rela-ção aos súditos; outra, a dos súditos entre si; a terceira,a dos indivíduos desse povo para com os estranhos; aquarta, a dos membros da sociedade doméstica, como ado pai para o filho, da esposa para o esposo, do senhorpara o escravo. (ST I, II, 104, 4)

Mas o que se devia entender então por populus? Paradefinir o conceito, Tomás de Aquino usava a citação de Túliopor Agostinho:

um “populus” é associação de muitos indivíduos, baseadano consenso jurídico e na utilidade comum. Por onde, anoção de povo implica uma comunhão de homens orde-nada por justos preceitos legais. Ora, há duas espéciesde comunhão entre os homens. Uma fundada na autori-

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dade do príncipe; outra, na vontade própria dos indiví-duos. E como cada um pode dispor do que lhe pertence,é necessário que, pela vontade do príncipe, a justiça seexerça entre seus súditos e penas sejam infligidas aosmalfeitores. Por outro lado, aos indivíduos lhes pertenceo que possuem; e portanto, por autoridade própria, po-dem dispor disso, uns em relação aos outros, por com-pra, venda, doação e modos semelhantes. (ST I, II, 105,2)

Ou seja, o Angélico distinguia aqui entre uma relaçãoque se baseava num acordo comum a respeito de certas re-gras de justiça, cuja garantia cabia ao princeps, e outra fun-dada nas trocas e acordos entre os particulares. Estavamapontados aqui os fundamentos e os elementos daquele pac-to que viria a constituir a teoria do contrato social.

E, por fim, por que a lei nova não havia sido dada desdeo princípio do mundo? As razões, respondia Tomás de Aquino,eram três:

A primeira é que, como já dissemos, a lei nova consisteprincipalmente na graça do Espírito Santo, que não deviaser dada abundantemente, antes de ter sido o gênero hu-mano livrado do pecado, depois de consumada a redençãode Cristo [...]. A segunda razão pode ser tirada da perfeiçãoda lei nova. Pois nada alcança imediatamente, desde aorigem, um estado perfeito senão depois de uma certa or-dem sucessiva no tempo. Assim, primeiro a criança, e de-pois o homem. [...] A terceira se funda em ser a lei nova alei da graça. Por onde, era primeiro necessário fosse o ho-mem abandonado a si mesmo, no regime da lei antiga,para que, caindo no pecado e conhecendo a sua fraqueza,reconhecesse a necessidade da graça. (ST I, II, 106, 3)

Assim, o Angélico fundava todas as diferenças entre alei nova e a velha nas idéias de perfeito e de imperfeito.94

94 “[...] a lei nova está para a antiga como o perfeito para o imperfeito. Ora,o perfeito completa o que falta ao imperfeito. E assim, a lei nova comple-ta a antiga, suprindo-a no que lhe faltava” (ST I, II, 107, 2).

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Ora, para praticar tais atos [virtuosos], os imperfeitos,ainda sem o hábito da virtude, agem de um modo, e deoutro os que já são perfeitos por esse hábito. [...] Por issoa lei antiga, dada para imperfeitos, i. é, que ainda nãotinham conseguido a graça espiritual, era chamada leido temor, porque levava à observância dos preceitos pelacominação de determinadas penas, e dela se diz que fa-zia certas promessas temporais. Os que têm virtude, po-rém, são levados a praticá-la por amor da mesma, e nãopor qualquer pena ou remuneração extrínseca. Por onde,a lei nova, que é a principal, por consistir na graça espi-ritual mesma, infundida nos corações, chama-se lei doamor. (ST I, II, 107, 1, ad 2)

Uma vez domesticadas as paixões pelo amor à virtudeensinado aos homens pelo filho de Deus que os redimira dopecado, os seres humanos podiam ser deixados à direção desuas consciências, agora capazes de determinar por si ospreceitos judiciais – e com isso a idéia geral de justiça – quedeviam lhes guiar.95

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Uma vez explicado o papel da lei no movimento dascriaturas em direção a Deus, o Aquinate podia então passar

95 Por essa razão o Senhor havia deixado a aplicação dos preceitos judi-ciais àqueles encarregados de dirigir os homens. “Os preceitos moraisdeviam absolutamente permanecer na lei nova, pois em si mesmos seincluem na essência da virtude. Enquanto que os preceitos judiciaisnão deviam necessariamente continuar, do modo pelo qual a lei osdeterminou, mas foram deixados ao arbítrio humano, que os determi-nassem de um ou de outro modo. [...] Quanto à observação dos precei-tos cerimoniais, ela desapareceu totalmente, com a aplicação da leinova” (ST I, II, 108, 3, ad 3), nada mais tendo sido observado sobre amatéria.

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à discussão sobre a justiça,96 que tinha como objeto o direito[ius], estabelecendo a diferença entre os conceitos.

Assim como o artista tem na mente o plano do que fazcom a sua arte, [...] assim também na mente preexisteuma idéia da obra justa que a razão determina, idéia queé como que a regra da prudência. E esta, quando redigidapor escrito, chama-se lei; pois a lei, segundo Isidoro, éuma “constituição escrita”. Por onde, a lei, propriamentefalando, não é o direito mesmo, mas, uma certa razão dodireito. (ST II, II, 57, 1, ad 2 – grifos meus)

Ou seja, a lei propunha as normas de ação humanas. Amoral e o direito as reconheciam e aplicavam às várias açõesdos homens.97

A justiça constituía o objeto de estudo das questões 57a 122 da Suma teológica (II, II). Para tratar o assunto, Tomásde Aquino dividiu esse bloco em três seções, conforme apon-ta Nascimento: 1ª) estudava as espécies de justiça propria-mente ditas: a comutativa, que regulava as relações entreparticulares; a distributiva, que ordenava as relações entre otodo social e o cidadão; e a geral ou legal, que organizava asrelações entre os particulares e o todo social; 2ª) estudava aspartes como integrantes da justiça, que considerava ser duas:fazer o bem e afastar-se do mal (q. 79); e 3ª) estudava asvirtudes anexas à justiça, em que estava em questão o rela-cionamento humano.98

Era próprio da justiça, escrevia Tomás de Aquino, or-denar os nossos atos que diziam respeito a outrem, pois a

96 As questões que tratam especificamente das noções de direito e justiçaestão contidas naquela parte da Suma teológica que se convencionouchamar de Tratado da justiça, o qual se estende das questões 57 a 122,II, II.

97 Cf. MOURA, D. Odilão. A doutrina do direito natural em Tomás de Aquino.In: DE BONI, L. A. (Org.). Idade Média: ética e política. Porto Alegre:EDIPUCRS, 1996. p. 223.

98 Cf. NASCIMENTO, op. cit., p. 78-9.

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justiça implicava uma certa igualdade. “Ora, a igualdadesupõe relação com outrem. Ao passo que as demais virtudesaperfeiçoam o homem só no referente a si próprio.” A virtu-de da justiça, diversamente, supõe a retidão na relação como outro.99

Por onde, chama-se justo o ato que, por assim dizer,implica a retidão da justiça, e no qual termina a ativi-dade desta, mesmo sem considerarmos de que modoela é feita pelo agente. Ao passo que, nas outras virtu-des, um ato não é considerado reto senão levando-seem conta o modo que o pratica o agente. E, por isso, ajustiça, especialmente e de preferência às outras virtu-des, tem o seu objeto em si mesmo determinado, e queé chamado justo. E este certamente é o direito. Poronde, é manifesto que o direito é o objeto da justiça.(ST II, II, 57, 1)

O que significava então ius? O direito, dizia Tomás,implicava uma obra que se adequava a outra por algum modode igualdade. Quando esse modo estava na natureza mesmada coisa, por exemplo, dar tanto para receber tanto, chama-va-se direito natural (ius naturale). Quando uma coisa seadequava a outra, fosse por conveção ou comum acordo par-ticular, como quando pessoas privadas firmavam entre si umpacto, ou convenção ou comum acordo público, como quan-do todo o povo consentia que uma coisa fosse tida como ade-quada à outra ou quando o princípe assim o ordenava, napessoa do representante do povo, chamava-se então direitopositivo (ius positivum). E a lei escrita continha e instituía o

99 “Assim, pois, a retidão nas obras das demais virtudes, para o que tendea operação da virtude, como seu objeto próprio, só é considerada relati-vamente ao agente. A retidão, porém, que implica a obra da justiça,além da relação com o agente, supõe relação com outrem. Pois, consi-deramos justa uma ação nossa, quando corresponde, segundo umacerta igualdade, a uma ação de outro; assim, a paga da recompensadevida por um serviço prestado” (ST II, III, 57, 1).

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direito positivo, conferindo-lhe a força da autoridade, desdeque não discordasse da lei natural.100

Ou seja, o direito natural era promulgado e instituídopor Deus, o qual possibilitava ao homem, por meio de suanatureza racional, conhecê-lo. Já o direito positivo, firmadopor convenção humana, era promulgado, anulado ou modifi-cado, se preciso fosse, pelo homem.101 A vontade humana,em razão de um consentimento comum, podia determinar ojusto em coisas que por si não repugnavam à justiça natural,tal como ocorria com o direito positivo.102

Ora, a matéria própria da justiça são os actos relativos aoutrem [...]. Por onde, o ato de justiça é determinado re-lativamente a sua matéria própria e ao seu objecto, quandose diz: dar a cada um o que lhe pertence; porque, como

100 Escrevia Tomás de Aquino noutra passagem: “Ora, de dois modos podeuma coisa ser justa: por sua própria natureza, e tal é o justo natural;ou, por uma convenção humana, e tal se chama direito positivo [...].Ora, as leis se escrevem para declarar o que é justo, num e noutrodesses sentidos. De maneiras diversas, porém. Pois, a lei escrita con-tém o direito natural, mas, não institui: porque não tira a sua força, dalei, senão, da natureza. Mas, o direito positivo a lei escrita o contém e oinstitui, dando-lhe a força da autoridade. Por onde, é necessário que ojuízo seja feito de acordo com a lei escrita; do contrário se desviaria oudo justo natural ou do justo positivo” (ST II, II, 60, 5).

101 Para compreender a doutrina do direito natural de Tomás de Aquino,avisa Moura, é preciso levar em conta sua premissa: “o reconhecimentoda existência de uma natureza humana essencialmente estruturadapor Deus e regida por preceitos dela originados, segundo disposiçãodivina. O direito natural, conseqüentemente, obedece a dois princípios:o divino, por ser participação da lei eterna pela qual o criador dirigetodas as coisas; e o humano, enquanto necessariamente vinculado àcriatura racional”. Cf. MOURA, op. cit., p. 225-6.

102 “Por isso, o Filósofo diz, que o justo legal é o que, ao princípio, pode serindiferentemente de um modo ou outro; mas, uma vez estabelecido, devepermanecer no que é. Mas, o que em si mesmo repugna ao direito natu-ral não pode a vontade humana torná-lo justo. Por exemplo, se estuísseque é lícito furtar ou adulterar” (ST II, II, 57, 2, ad 2).

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Isidoro diz, chama-se justo aquele que observa a justiça.[...]. E quem quisesse reduzir essa definição à sua formadevida, poderia dizer: a justiça é um hábito pelo qual, comvontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o quelhe pertence. (ST II, II, 58, 1)

Como nada podia ser igual a si mesmo, mas apenas aoutrem, e como era próprio da justiça retificar os atos huma-nos, então era necessário que essa relação com outrem exigidapela justiça dissesse respeito a agentes que podiam agir di-versamente. Por isso, a justiça que atribuía a cada parte dohomem o que lhe convinha, de maneira universal, era cha-mada metafórica.103 Era próprio da justiça tornar bons o atohumano virtuoso e o agente que o praticava. “Pois, os actoshumanos são bons por se sujeitarem à regra da razão, que osretifica. Por onde, a justiça, retificando as ações humanas, éclaro que as torna boas” (ST II, II, 58, 3). Isso permitia aTomás de Aquino dizer que o sujeito da justiça não era ointelecto ou a razão, o qual só constituía uma potência cogni-tiva, e sim o ato de vontade.104

103 “Por onde, a justiça propriamente dita exige diversidade de supostos e,portanto, não pode ser senão de um homem para com outro. Mas, porsemelhança, admitimos, num mesmo homem, diversos princípios ati-vos, como se fossem agentes diversos; assim, a razão, o irascível e oconcupiscível. Por onde, metaforicamente, dizemos que há justiça, nummesmo homem, quando a razão governa o irascível e o concupiscível equando estas potências obedecem à razão. E universalmente, quando acada parte do homem é atribuído o que lhe convém. Por isso, diz oFilósofo, que essa justiça é chamada metafórica” (ST II, II, 58, 2).

104 “[...] como somos considerados justos por agirmos retamente, e o prin-cípio próximo do agir é a potência apetitiva, necessariamente a justiçatem nalguma potência apetitiva o seu sujeito. Ora, há um duplo apetite,a saber: a vontade, que se funda na razão, e o sensitivo, conseqüente àapreensão sensível, que se divide em irascível e concupiscível [...]. Ora,dar a cada um o que lhe pertence não pode proceder do apetite sensiti-vo, porque a apreensão sensitiva não pode chegar até a consideração daproporcionabilidade entre uma coisa e outra, o que é próprio da razão.Por isso, a justiça não pode ter como sujeito o irascível ou o concupiscível,mas só a vontade” (ST II, II, 58, 4).

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A justiça, portanto, constituía uma virtude geral, poisordenava para o bem comum. E, como ordenar para o bemcomum cabia à lei, essa justiça era chamada justiça legal.Pois “por meio dela, o ser humano se harmoniza com a leique ordena os atos de todas as virtudes para o bem co-mum”.105 A justiça legal consistia assim, em sua essência,numa espécie de virtude particular cujo objeto era o bemcomum. Movia, por comando, todas as outras virtudes e, porisso, era denominada geral. Essa virtude se encontrava, comoprincipal e de maneira arquitetônica, no princeps; e, de ma-neira secundária e como ministra, nos súditos.

Nas palavras do Angélico:

Ora, por tudo o que é, a parte pertence ao todo; por onde,qualquer bem da parte se ordena ao bem do todo. Por-tanto, assim sendo, o bem de qualquer virtude, quer o daque ordena o homem para consigo mesmo, quer o da queo ordena a qualquer outra pessoa singular, é referível aobem comum, para o qual a justiça ordena. E, a esta luz,os actos de todas as virtudes podem pertencer à justiça,enquanto esta ordena o homem para o bem comum. Poronde, a justiça é considerada uma virtude geral. E comoo próprio da lei é ordenar o homem para o bem comum,[...] daí resulta que essa justiça geral [...] chama-se justi-ça legal, porque, obedecendo-lhe, o homem procede deacordo com a lei, ordenadora de todos os atos para o bemcomum. (ST II, II, 58, 5)

E acrescentava mais adiante: “E assim, está no chefe,como principal e arquitetonicamente; nos súditos, porém,secundariamente e como ministra” (ST II, II, 58, 6).106 Ao dis-

105 NASCIMENTO. A justiça geral em Tomás de Aquino. In: DE BONI, op. cit.,1996, p. 213.

106 No original: “Et, sic, est in principe principaliter et quasi architectonice; insubditis autem, secundario et quase ministrative”. Mais adiante, repetiaessa distinção nos seguintes termos: “A justiça, no chefe, é a virtudecomo que arquitetônica, quase a que ordena e manda o que é justo; nos

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cutir a perversão de um juízo usurpado, entretanto, Tomásde Aquino inseria a figura do príncipe na totalidade do seusistema a partir do princípio de que as coisas terrenas seordenavam do imperfeito ao perfeito, como já foi dito. Esseraciocínio o levava a afirmar que

o poder secular está sujeito ao espiritual, como o corpo àalma. Por onde, não é usurpado o juízo do prelado espiri-tual que se intromete com as coisas temporais, na medi-da em que o poder secular lhe está sujeito, ou que lhe sãoconfiadas coisas da alçada desse poder. (ST II, II, 60, 6,ad 3)

Esclarecido esse ponto, considerava então as demaisvirtudes morais, as quais regulavam principalmente as pai-xões. A justiça legal ordenava o homem imediatamente parao bem comum da cidade, mas não para o bem privado.107

“Pois uma é a noção do todo e outra a da parte”. Assim, cons-tituía matéria da virtude moral – que era definida pela razãoreta – tudo aquilo que podia ser retificado pela razão (ST, II,II, 58, 7 e 8). Tratava ainda do juízo e das partes da justiça, àqual dedicou uma longa seção.

Nascimento mostrou com notável clareza a distinçãoentre Tomás de Aquino e Aristóteles, no que respeitava àspartes integrantes da justiça. Para isso, usou um esquemadidático, que resume de maneira precisa as duas concepçõese que será reproduzido aqui. Nele pode-se ver como o Aqui-

súditos, porém, é virtude como que executiva e serviente. Por onde, ojuízo, implicado na definição do justo, é próprio da justiça, enquantoexistente, de modo principal, no chefe” (ST II, II, 60, 1, ad 4).

107 Enquanto a justiça e o direito visavam ao bem do outro, as outras virtu-des morais visavam ao bem do próprio homem. A diferenciação entredireito e moral, lembra Moura, vigorava não apenas no plano da socie-dade juridicamente estruturada dos povos civilizados, mas também entreos povos primitivos. “Por isso, jamais o direito positivo anulará o direitonatural”. Cf. MOURA, op. cit., p. 222.

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nate ampliou a noção aristotélica de justiça, definida da se-guinte maneira na Ética a Nicômaco, l. V:

| GERAL – idêntica ao conjunto das virtudes

JUSTIÇA | | DISTRIBUTIVA

| PARTICULAR |

| | COMUTATIVA

Este esquema, diz Nascimento, foi ocultamente trans-formado por Tomás de Aquino no seguinte:

| GERAL – idêntica ao conjunto das virtudes: toda

| virtude é uma forma de justeza ou retidão

| | GERAL (legal) – ordenação do homem

JUSTIÇA | | imediatamente ao bem comum;

| ESPECIAL |

| | PARTICULAR (cardeal) | DISTRIBUTIVA

| | – ordenação do homem |

| | a bens particulares | COMUTATIVA

Ou seja, o Aquinate incorporou uma forma particularde justiça, como explica Nascimento, que

tem por objeto o bem comum da coletividade e pode mo-bilizar em vista deste qualquer virtude que se ocupa deum bem que é parte deste bem comum. Essa caracteri-zação da justiça geral ou legal permite que ela seja rela-cionada coerentemente com a lei (“ordenação da razãoem vista do bem comum”) e com as funções da autorida-de e dos membros da coletividade.108

108 NASCIMENTO. A justiça geral em Tomás de Aquino. In: DE BONI, op. cit.,1996, p. 217.

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Assim, matar um malfeitor só seria lícito se esse ato seordenasse à salvação de toda comunidade. Como zelar pelacomunidade cabia ao governante, somente a ele competia aexecução da pena: fazê-lo

pertence só àquele que foi incumbido de zelar pela con-servação da comunidade, assim como ao médico perten-ce amputar um membro gangrenado, quando estiverincumbido de zelar pela conservação de todo o corpo dealguém. Ora, cuidar do bem comum pertence ao chefeinvestido da autoridade pública. Logo, só a eles é lícitomatar os malfeitores, e não aos particulares. (ST II, II,64, 3)

Tudo aquilo que era possuído em comum se fundavano direito natural, enquanto tudo o que se possuía em sepa-rado se fundava numa convenção humana e dizia respeitoao direito positivo (ST II, II, 66, 2, ad 1). As determinações dodireito humano, que era inferior, não podiam abolir asdo direito natural:

As disposições de direito humano não podem derrogar asdo direito natural ou do direito divino. Ora, pela ordemnatural, instituída pela providência divina, as coisas in-feriores são ordenadas à satisfação das necessidadeshumanas. Por onde, a divisão e a apropriação das coisaspermitidas pelo direito humano não obstam a que essascoisas se destinem a satisfazer às necessidades do ho-mem. E portanto as coisas que possuímos com supera-bundância são devidas, pelo direito natural, ao sustentodos pobres. (ST II, II, 66, 7)

Por fim, o bem, apenas como correlato da noção dedever, era propriamente objeto da justiça especial.

Se se trata do bem e do mal em geral, fazer aquele e evitareste é próprio a todas as virtudes. E, assim sendo, nãopodem fazer parte da justiça, salvo se esta for considera-da como a virtude total. [...]. Mas, a justiça, enquanto

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virtude especial, visa o bem considerado como um de-ver para com o próximo. E sendo assim, da justiça es-pecial é próprio fazer o bem, considerado como um deverrelativo ao próximo, e evitar o mal oposto, i. é, o quelhe é nocivo; ao passo que da justiça geral é própriofazer o bem, como um dever relativo à comunidade oua Deus, e evitar o mal oposto. (ST II, II, 79, 1)

E esclarecia em seguida:

E esses dois atos são considerados como partes inte-grantes da justiça geral ou da especial, porque ambosos exige a perfeição do ato de justiça. Pois, a esta per-tence estabelecer a igualdade nos atos relativos a ou-trem [...]. Porque ao mesmo princípio constitutivo deuma coisa compete também conservá-la. Ora, a igual-dade da justiça nós a constituímos fazendo o bem, i. é,dando a outrem o que lhe é devido; e conservamos aigualdade da justiça já constituída desviando-nos domal, i. é, não causando nenhum dano ao próximo.(idem)

A posse e o exercício dessa justiça legal proporciona-vam a amizade civil que, do mesmo modo que para Aristóte-les, fortalecia a solidariedade entre os membros da comuni-dade, fomentando a “boa vida”.

Mas e o direito divino, como se enquadrava nesse es-quema? Para o Angélico, não havia, propriamente falando,um direito divino.109 Pois o direito fundamentava-se “na igual-dade do que é devido pelo devedor com a satisfação exigidapelo outro [...]. Não havendo possibilidade de igualdade entreo homem e Deus, disto resulta a negação de um direito divi-no”. O direito natural concebido por Tomás de Aquino eraexclusivamente natural, explica Moura, prescindindo da re-velação. O pensamento tomista sobre o direito natural, con-

109 Cf. MOURA, op. cit., p. 231.

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clui, afastava-se da vinculação com a religião e se limitava aligá-lo a Deus como Criador.110

Talvez haja algum exagero nessa formulação. Pois, paraum católico fervoroso como era o Angélico, uma desvincula-ção entre as duas esferas, natural e sobrenatural, não secolocava. Mas é certo que, ao conferir um elevado grau deautonomia ao mundo natural, Tomás de Aquino preparavabases firmes e sólidas sobre as quais seus sucessores, estessim, o fariam. De todo modo, estavam dadas as condiçõesconceituais que permitiriam conceber o mundo natural – doqual faziam parte a polis e os assuntos políticos – indepen-dentemente da existência de um Deus criador. E tanto a suanoção de lei quanto a de justiça serviam para organizar esseorbe no qual os homens estavam naturalmente inseridos. Obrilho dos modernos, sem dúvida, deveu muito, neste ponto,aos pensadores medievais.

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Pode-se dizer, com algum grau de segurança, que oopúsculo De regno – ad regem Cypri e o texto Sententia libripoliticorum, ambos inacabados, constituem as duas únicasobras nas quais Tomás de Aquino tematizou de maneira di-reta a doutrina da política. O De regno – também conhecidocomo De regimine principum – foi escrito a pedido do rei deChipre, como fica claro pelo subtítulo. A parte atribuída aTomás de Aquino parece ter sido escrita entre 1265 e 1267.O trabalho foi concluído pelo discípulo e fiel amigo, Tolomeu

110 “E por isso a lei divina não se chama propriamente direito [ius], mas fas[o lícito divino], porque basta, para Deus, o cumprirmos com o quepodemos. Pois a justiça visa fazer com que o homem pague o seu débitopara com Deus, o quanto pode, sujeitando-se-lhe de toda sua alma” (STII, II, 57, 1, ad 3).

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de Luca, logo depois da sua morte. Também o Sententia libripoliticorum – divulgado sob o nome Comentários à “Política”de Aristóteles – ficou inacabado e foi concluído por outro dis-cípulo, Pedro de Alvérnia. Nos Comentários Tomás de Aquinotrabalhou de 1269 a 1272, chegando a abordar o início dolivro terceiro. Pouco depois foi acometido de uma maladiainexplicável que o levaria à morte prematura em 1274.

Já o Tratado da lei e o Tratado da justiça, comentadosna seção anterior, não devem ser tomados como obras pro-priamente políticas, embora forneçam uma boa idéia de comoo Angélico pensava e fundamentava o ideal de vida coletivaentre as criaturas humanas. Não se pode perder de vista queesses dois tratados foram escritos para compor a segundaparte da Suma teológica, cujo objetivo era explicar o movi-mento dos seres humanos na direção de Deus. Para desen-volver essa relação das criaturas com seu Criador, o Angéliconão precisava falar especificamente da política enquanto ciên-cia, mas apenas das formas de organização da vida coletivados agentes humanos, que, frisava ele, “podiam ser bastantediversas, segundo o lugar e o tempo”.

Mesmo os textos especificamente dirigidos à políticaconstituíam, de certo modo, apenas trabalhos parciais: o Deregno, opúsculo encomendado, tratava sobretudo do regimemonárquico e sua perversão, a tirania. O texto se inseria natradição dos “espelhos do príncipe”, em voga à época – umaespécie de manual do príncipe virtuoso.111 E os Comentáriosconstituíam um tipo de lectio sobre a obra política do mestregrego. Apesar disso, Tomás de Aquino escreveu para essecomentário um Prólogo bastante útil, no qual revelava e fun-damentava algumas de suas posições a respeito do tipo deconhecimento no qual consistiria a política, ciência que ti-nha como objeto imediato o estudo da civitas. É sem dúvida

111 O gênero seria popularizado dois séculos mais tarde com o “espelho”escrito por Maquiavel, O príncipe, dedicado a Lorenzo de Médici.

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por essa ausência de um corpo consistente de argumentaçãoa respeito da política que autores conceituados, como SouzaNeto, entre muitos outros, afirmam que, “em sua obra, nãoencontramos nenhum tratado sistemático de Filosofia Políti-ca”.112

Essa constatação não nos impede, contudo, de trataros textos mencionados como peças importantes para a com-preensão do que o Angélico concebia como sendo relativo àpolítica. E também não diminui a importância de sua sínteseconceitual para o desenvolvimento que ocorreria logo depoisem quase todos os campos do saber, inclusive no do pensa-mento político. A vigorosa base filosófica e analítica sintetiza-da pelo Aquinate – cuja paternidade contudo deve ser com-partilhada tanto com os mestres que o antecederam, comoAlberto Magno, quanto com os inúmeros discípulos influen-tes e talentosos que o sucederam –, serviria como matéria-prima para numerosas inovações, umas ainda por vir, comoas monarquias absolutas e o movimento de reforma da Igre-ja, outras já a caminho, como a noção de soberania e osdesenvolvimentos de filosofia natural. É essa contribuiçãoque se pretende aqui recuperar.

Paul Sigmund, outro estudioso do pensamento de To-más de Aquino, afirma que a concepção política do Angélicofoi importante por pelo menos três motivos:

1) porque reafirmava o valor da vida política, tal comodefendida em Aristóteles: Tomás de Aquino argumentava se-rem a política e a vida política atividades moralmente positi-vas, que estavam de acordo com a intenção de Deus em relaçãoao homem;

2) porque sua visão combinava as concepções feudal ehierárquica tradicional da estrutura da sociedade e da políti-

112 SOUZA NETO, op. cit., p. 8.

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ca à emergência de noções incipientemente igualitárias e co-munitariamente orientadas da ordenação social;

3) porque desenvolveu uma teoria da lei natural coe-rente e logicamente integrada, que continua sendo uma fon-te importante de normas legais, políticas e morais. Só porisso, escreve Sigmund, já se teria de considerá-lo parte dopatrimônio intelectual do Ocidente.113

Operando com a asserção básica “de que a graça nãocontradiz a natureza, e sim a aperfeiçoa”, o Aquinate combi-nou tradição, as Escrituras, práticas contemporâneas e mé-todos filosóficos para produzir uma síntese influente eduradoura na teoria legal. Um dos pontos centrais desse es-forço foi a sua adesão à noção aristotélica de teleologia oucausas finais. Essa idéia passou a ser, no pensamento doAngélico, a formulação do propósito de Deus na essência douniverso e da humanidade que Ele criara.

Não se pode esquecer que Tomás de Aquino era, emprimeiro lugar, um teólogo cristão que acreditava no pecadooriginal e na Criação divina. Contudo, diferentemente dosautores de linha agostiniana – para os quais o governo tem-poral tinha sua ratio no pecado original, lembram Souza eBarbosa –, para o Aquinate a justificação do governo seculartinha seu fundamento na “sociabilidade natural do homem”.Ao homem, um animal social e político, era natural o viverem comunidade. Pois somente por meio de sua razão indivi-dual o ser humano não alcançaria os objetivos que tinha emvista.114

A humanidade consistia numa comunidade com umfim último neste mundo: o bem comum. Esse objetivo impu-nha a necessidade da existência de um governante que con-duzisse para esse fim o corpo social e cada um de seus

113 Cf. SIGMUND, Paul E. Lei e política. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p. 217.114 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 128.

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membros. O rei e a comunidade humana constituíam ape-nas um meio para a fruição futura de Deus, fim último davida humana e felicidade por excelência. Embora não fosseotimista com relação à criação de uma comunidade políticaideal, o Angélico era bastante receptivo às possibilidades deuma engenharia institucional. Pois tinha noção da ampla va-riação das estruturas políticas das 158 constituições gregasestudadas por Aristóteles. Esse projeto de construção cabiaa uma ciência específica, afirmava Tomás de Aquino seguin-do o Filósofo: a ciência civil, cujo estatuto o autor definia no“Prólogo” aos Comentários sobre a “Política” de Aristóteles.

“Como ensina o Filósofo no livro II da Física”, escrevia oAngélico,

a arte imita a natureza. [...] Ora, o princípio das coisasque são feitas segundo a arte é o intelecto humano, quederiva segundo certa similitude do intelecto divino, o qualé o princípio das coisas naturais. Donde é necessário queas obras da arte imitem as obras da natureza, e aquelas[coisas] que existem segundo a arte imitem aquelas queexistem na natureza. [...] E por isso o intelecto humano,cujo lume inteligível é derivado do intelecto divino, temnecessariamente de se formar nas coisas que faz a partirdo exame das coisas que foram feitas naturalmente, paraque opere de maneira similar.115

A natureza, contudo, não executava as obras da arte.Por isso, podia apenas prover aos artistas certos princípiossegundo os quais eles deviam operar. Já a arte, continuavaTomás de Aquino, podia examinar as obras da natureza eusá-las para aperfeiçoar seu próprio trabalho. Por isso, as

115 Todas as passagens referentes a esse texto foram traduzidas de: AQUINO.Sententia libri politicorum (Comentários), l. 1, “Prólogo” (A 69) (minhatradução). In: AQUINO. Opera omnia (iussu Leonis XII P.M. edita). Roma:Ad Sancta Sabinae, 1971. t. 48. Uma tradução completa do “Prólogo”,acompanhada do original latino, pode ser encontrada no “Apêndice”deste trabalho.

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ciências que lidavam com as coisas feitas pelo homem cons-tituíam ciências práticas ou operativas, segundo a imitaçãoda natureza. Como a natureza em sua operação procedia dosimples ao composto, nas coisas que ocorriam pela operaçãoda natureza a mais complexa era perfeita e total, e constituíao fim das outras coisas, como se podia notar no caso de quais-quer todos em relação às suas partes. Assim também a razãohumana, dizia ele, procedia imperfeito ao perfeito.

A razão humana, que ordenava não apenas as coisasusadas pelos homens, mas também os próprios homens, osquais eram governados pela razão, procedia em cada caso dosimples ao complexo: por exemplo, os homens construíam onavio para seu uso a partir da madeira; ou, entre si, ordena-vam-se de modo a formar uma comunidade a partir da famí-lia. Entre essas comunidades existiam vários graus e ordens.A mais alta delas era a comunidade da cidade (communitascivitatis), a qual era ordenada para a satisfação de todas asnecessidades da vida humana, sendo por isso a mais perfei-ta. E porque as coisas usadas pelo homem eram ordenadascomo para o seu fim, o qual era superior aos demais, aqueletodo (totum) que constituía a civitas [cidade] era por isso ne-cessariamente superior a quaisquer outros “todos” que pu-dessem ser conhecidos e construídos pela razão humana.

De tudo o que fora dito, prosseguia Tomás de Aquino,quatro coisas podiam ser apreendidas. Primeiro, a necessi-dade dessa ciência (da política). Pois, para se chegar à perfei-ção da sabedoria humana, a filosofia, era preciso ensinaralgo sobre toda coisa que podia ser conhecida por meio darazão. Como aquele todo que constituía a civitas estava su-jeito a um certo julgamento da razão, era necessário, paracomplemento da filosofia, instituir uma disciplina que tra-tasse da civitas. E essa doutrina era chamada política, isto é,ciência civil (civilis scientia).

Segundo, podia-se inferir o gênero dessa ciência. Poisas ciências práticas se distinguiam das ciências especulati-

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vas: as últimas eram ordenadas exclusivamente para o co-nhecimento da verdade, enquanto as primeiras, por seremordenadas para alguma obra ou ato, tinham de ser compre-endidas sob a filosofia prática, na medida em que a civitasera um certo todo que a razão humana não apenas conhecia,mas também produzia.116 Era óbvio, dizia ele, que a ciênciapolítica, que se ocupava da ordenação dos homens, não esta-va compreendida sob as ciências que pertenciam ao fazer ouàs artes mecânicas, mas sim sob aquelas que pertenciam àação, que eram as ciências morais.

Terceiro, podiam-se inferir a dignidade e a ordem da ciên-cia política em relação às demais ciências práticas. A civitasera a mais importante das coisas que podiam ser constituídaspela razão humana, repetia o Aquinate. Pois todas as outrascomunidades humanas a ela se referiam. Se a ciência maisimportante era aquela que tratava do mais nobre e perfeito,então era necessário que, entre todas as ciências práticas, apolítica fosse a mais importante e arquitetônica em relação àsdemais, na medida em que dizia respeito ao bem último eperfeito nos assuntos humanos. E essa era a causa de o Filó-sofo dizer, no fim do livro X da Ética, esclarecia Tomás deAquino seguindo Aristóteles, que a filosofia que tratava dosassuntos humanos encontrava sua completude na política.

Quarto, do que foi dito, podiam-se deduzir o modo e aordem dessa ciência. Pois, como as ciências especulativas,

116 A razão produzia certas coisas, distinguia Tomás de Aquino, de doismodos: 1) pelo modo do fazer, caso no qual a operação se transformavaem matéria exterior, que pertencia propriamente às artes chamadasmecânicas, como a do forjador e do construtor de navio; 2) pelo mododa ação: neste caso, a operação permanecia dentro do agente, comoquando alguém deliberava, escolhia, desejava e executava outros atossimilares pertencentes à ciência moral. Nas palavras do Angélico: “[...] émanifesto que a ciência política, que considera a ordenação dos ho-mens, não está contida sob as ciências do fazer, que são as artes mecâ-nicas, mas sob a das ações, que são ciências morais”. In: AQUINO.Sententia, op. cit., A 69-70 (minha tradução).

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que consideravam algum todo, chegavam ao conhecimentodo todo pela manifestação de suas propriedades a partir deum exame de suas partes e seus princípios, assim tambémessa ciência examinava as partes e os princípios da civitas(principia et partes civitatis), e nos fornecia um conhecimentodeles pela manifestação de suas partes, das suas paixões edas suas operações. E porque era uma ciência prática, com-pletava, ela apontava ainda o modo como cada coisa podiachegar à sua realização, como era necessário em toda ciênciaprática.117

A exposição feita pelo Aquinate não deixava dúvidasquanto ao fato de que ele havia tomado de empréstimo domestre grego a concepção teleológica ou finalista da política.E também o seu status científico. Mas ia adiante quandodizia que esse fim último a ser alcançado por todas as coisasencontrava-se na esfera do sobrenatural, e não na terrena,como defendia o Estagirita. Isto é, como a razão humanarecebia seus princípios do intelecto divino, era preciso distin-guir entre o fim intrínseco da cidade, o “bem viver” ou a vidavirtuosa (eudaimonia), e um fim exterior a ela, a visão deDeus (visio Dei).

Se para Aristóteles a política era a ciência suprema en-tre todas as que se subordinavam ao saber prático, recordaGarcia-Cuadrado, para Tomás de Aquino ela constituía umfim último, mas numa ordem dada, já que a ciência do divinoera a ciência mestra a respeito do universo todo. O fim últi-mo da ciência política visava assim, na ordem natural, à or-denação dos homens em vista do bem viver. Mas essa “boa

117 Foi consultada ainda uma versão inglesa desse texto que, por motivostécnicos, não pôde ser aproveitada nesta tradução. Cf. Commentary onAristotle’s politics. Trad. de Ernest Fortin and Peter O’Neill. In: LERNER,Ralph (Ed.). Medieval political philosophy: a sourcebook. New York: FreePress of Glencoe, 1963.

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vida” era apenas o meio para atingir uma ordem superior, aordenação divina, que constituía a única perfeita e completa.Desse modo, a política não era a ciência do fim supremoabsoluto, e sim a ciência do meio supremo para alcançar ofim último.118

A política, portanto, era simultaneamente um fim últi-mo na ordem natural e um fim relativo no que dizia respeitoao fim supremo sobrenatural: constituía o meio mais ade-quado para a consecução do fim último primeiro, a visão deDeus. Nesse sentido, não havia em Tomás de Aquino umacontraposição entre o fim da cidade terrena e o da cidade deDeus. Pois era precisamente na cidade terrena que o homemdeveria se desenvolver em sua plenitude, de modo a estarapto para alcançar a beatitude celeste. Era por essa razãoque o Angélico podia afirmar sem constrangimentos ser aciência política principal e arquitetônica entre todas as quecompunham o conhecimento prático. Essa era uma inter-pretação bastante nova do “lugar” da política e faria escolano pensamento político que sucedeu o Aquinate.

Os princípios apontados por Tomás de Aquino consti-tuíam uma base bem diferente daquela da qual partiam oscristãos tradicionais, no que respeitava à concepção da polí-tica: para os Pais da Igreja e para os cristãos da Alta IdadeMédia, a vida política havia sido corrompida pela inclinaçãohereditária do homem ao mal. Política era, de modo geral,associada a formas corruptas e degeneradas de existência. Oregnum consistia para os cristãos medievais numa institui-ção coercitiva (“braço armado”) cujo objetivo era manter ummínimo de ordem num mundo pecaminoso. O governante,

118 Cf. GARCIA-CUADRADO, José Angel. Ética e política: Tomás de Aquino co-menta Aristóteles. REVISTA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DA

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA. As relações de poder no pensamento políticoda Baixa Idade Média. Homenagem a João Morais Barbosa. Lisboa:Universidade Nova Lisboa, v. I, 1994. p. 102.

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mesmo que fosse um cristão, podia apenas se esforçar paramoderar os impulsos do poder temporal humano e para im-por uma justiça mínima na cidade terrena, de modo a tornarviável aos futuros membros da cidade celeste a conquista desua recompensa eterna, a justiça perfeita ao lado de Deus.

Tomás de Aquino enfrentou essa tradição ao afirmar,seguindo os passos do Filósofo, que o homem era um animalnaturalmente orientado para a polis, isto é, um zoon politikon.E que a vida política constituía uma parte necessária para oseu completo desenvolvimento. Tomás ampliou a definiçãoaristotélica, traduzindo-a para o latim nas seguintes pala-vras: “É o homem, por natureza, um animal sociável [gregale]e civil” (De regno, 1, 2, 2).119 Um animal que usava a sua ra-zão e a faculdade da fala para cooperar na construção decomunidades políticas que respondiam às necessidades dogrupo e dos membros que a compunham. A comunidadepolítica, união de homens livres sob a direção de um gover-nante, visava à promoção do bem comum. Definido dessamaneira, o governar assumia uma conotação positiva e ga-nhava uma justificação moral.120

Para os homens que viviam no século XIII, é precisolembrar, o regnum não apenas constituía a melhor forma degoverno, mas era também a única que estava de acordo coma intenção divina – não está em discussão aqui se a espadatemporal deveria caber apenas ao imperador ou submeter-seao papa. Também para o Aquinate a monarquia era, de modoabsoluto, a melhor forma de governo, embora defendesse ogoverno misto. E justificava: quanto mais eficazmente um

119 No Sententia: “[...] ergo homo est naturaliter animal domesticum et civile”(Sententia A 79).

120 Sobre a contraposição das visões agostiniana e tomista a respeito dapolítica, conferir WEITHMAN, Paul J. Augustine and Aquinas on originalSin and the function of political authority. Journal of the History of Phi-losophy, v. 30, n. 3. p. 353-76, jul. 1992.

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governo alcançava a unidade, tanto mais útil ele era à comu-nidade. E quanto maior fosse a unidade dentro dele, tantomais eficaz ele seria. Relevante em seu raciocínio portantoera o princípio, o da unidade, que se seguia de sua concep-ção metafísica da unicidade de Deus. Por isso podia afirmarque o governo monárquico, dada a unidade do governante,constituía, entre todas as formas justas de governo, a maisapta para dirigir a comunidade política.121

O homem era, por natureza, um animal social e políti-co que, mais do que os outros animais, vivia em multidão pornão estar apto a satisfazer sozinho todas as suas necessida-des naturais.122 Diferentemente dos animais, que tinham dis-cernimento natural inato, o homem só dispunha doconhecimento natural, tendo de partir dos princípios primei-ros universais para atingir o conhecimento das coisas parti-culares necessárias à sua vida. Como um homem sozinhonão podia abarcar todas essas coisas, era necessário que vi-vesse em multidão, de modo a se ajudar mutuamente e divi-dir o saber que cabia a cada um. “Isto se patenteia com muita

121 “Ora, em todas as coisas ordenadas a algum fim, [...] é mister haveralgum dirigente, pelo qual se atinja diretamente o devido fim. [...] ora,tem o homem um fim, para o qual se ordenam toda a sua vida e ação,porquanto age pelo intelecto, que opera manifestamente em vista dofim. Acontece, porém, agirem os homens de modos diversos em vista dofim, o que a própria diversidade dos esforços e ações humanos paten-teia. Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim. Tem todohomem, dada naturalmente, a luz da razão, pela qual é dirigido ao fim,nos seus atos. E, se conviesse ao homem viver separadamente, [...] nãoprecisaria de quem o dirigisse para o fim”. In: AQUINO. De regno (DR), l. 1,cap.2, 2. In: AQUINO, Escritos políticos, op. cit., p. 126.

122 “Foi, porém, o homem criado sem a preparação de nada disso [dentes,chifres, velocidade para fuga] pela natureza, e, em lugar de tudo, coube-lhe a razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias mãos,todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cujacausa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si. Logo,é natural ao homem viver na sociedade de muitos” (DR 1, 2, 2).

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evidência no ser próprio do homem usar da linguagem, pelaqual pode exprimir totalmente a outrem o seu conceito” (DR1, 2, 3).

De onde Tomás de Aquino deduzia que, se era naturalao homem “o viver em sociedade de muitos, cumpre haja,entre os homens, algo pelo que seja governada a multidão”,um princípio diretivo que garantisse ao grupo, em meio atanta diversidade, o governo daquilo que era comum.123 Paraisso, era preciso que houvesse, em toda multidão, um regen-te capaz de assegurar que a comunidade alcançasse o fimpara o qual tinha sido constituída:124 o bem-estar coletivo.

Se, pois, a multidão dos livres é ordenada pelo governan-te ao bem comum da multidão, o regime será reto e justo,como aos livres convém. Se, contudo, o governo se orde-nar não ao bem comum da multidão, mas ao bem priva-do do governante, será injusto e perverso o governo. (DR1, 2, 5)

A um tal governante injusto chamar-se-ia tirano,

nome derivado de força, porque oprime pelo poder, aoinvés de governar pela justiça [...]. Fazendo-se [o regime

123 “Que, se houvera muitos homens e tratasse cada um do que lhe convi-esse, dispersar-se-ia a multidão em diversidade, caso também não hou-vesse algo cuidando do que pertence ao bem da multidão, assim comose corromperia o corpo do homem e de qualquer animal, se não existiraalguma potência regedora comum, visando ao bem comum de todos osmembros [...]. E, por certo, é razoável, pois não são idênticos o próprio eo comum. O que é próprio divide, e o comum une. Aos diversos corres-pondem causas diversas. Assim, importa existir, além do que move aobem particular de cada um, o que mova ao bem comum de muitos” (DR1, 2, 4).

124 “Assim como sucede em certas coisas ordenadas a um fim, andar direi-to ou não, também no governo da multidão se dá o reto e o não-reto.Uma coisa dirige-se retamente, quando vai para o fim conveniente; não-retamente, porém, quando vai para o fim não conveniente. Um, porém,é o fim conveniente à multidão dos livres, e outro à dos escravos [...]”(DR 1, 2, 5).

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iníquo], entretanto, não por um só, senão por vários, sebem que poucos, chama-se oligarquia, isto é, principadode poucos [...]. Se, porém, o regime iníquo se exerce pormuitos, nomeia-se democracia, quer dizer, poder do povo,sempre que o povo dos plebeus oprime os ricos pelo po-der da multidão [...]. Semelhantemente se há de tambémfazer distinção quanto ao regime justo. Se a administra-ção está com uma multidão, se lhe chama com o nomecomum de politia [...]. E, se administram poucos, masvirtuosos, chama-se aristocracia tal governo [...]. Perten-cendo, porém, a um só o governo justo, chama-se ele,propriamente, reii. (DR 1, 2, 6)

Aqui o Angélico repetia o mestre: sua divisão das for-mas de governo era rigorosamente aristotélica.

Rex, portanto, era aquele que presidia único, buscan-do o bem comum da multidão. E a sociedade da multidãoseria tanto mais perfeita quanto mais auto-suficiente fossepara suprir as necessidades da vida coletiva. A civitas era,entre todas, a associação mais perfeita. Também o desenvol-vimento da vida social seguia em Tomás de Aquino o esque-ma aristotélico: o núcleo básico era a família (domus), seguidapela aldeia (vicus) e depois pela cidade (civitas). A intenção dogovernante reto, escrevia ele, era buscar a salvação dos súdi-tos, do mesmo modo que competia ao piloto conduzir a nauem segurança até o porto. Como o bem da multidão associa-da era a conservação da unidade, útil à vida social, o intentodo governante devia ser por isso cuidar da unidade, isto é, dapaz. E o governo que melhor realizava essa unidade era aquelede um só: a monarquia.125

125 “Deve ser a intenção de qualquer governante o procurar a salvação da-quele cujo governo recebeu. [...] Ora, o bem e salvamento da multidãoconsorciada é conservar-lhe a unidade, dita paz, perdida a qual, perecea utilidade da vida social, uma vez que é onerosa a si mesma a multidãodissensiosa. Por conseguinte, o máximo intento do governante deve sero cuidar da unidade da paz. Nem é reto deliberar ele a não ser queproduza a paz na multidão a ele sujeita [...]. Realmente, ninguém deli-

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E, para sustentar sua argumentação, o Aquinate acres-centava:

Mais ainda: o mais bem ordenado é o natural; pois, emcada coisa, opera a natureza o melhor. E todo regimenatural é de um só. Assim, na multidão dos membros, háum primeiro que move, isto é, o coração; e, nas partes daalma, preside uma faculdade principal, que é a razão.Têm as abelhas um só rei, e em todo o universo há um sóDeus, criador e governador de tudo. E isto é razoável. Defato, toda multidão deriva de um só. Por onde, se as coi-sas de arte imitam as da natureza e tanto melhor é a obrade arte quanto mais busca a semelhança da que é danatureza, importa seja o melhor, na multidão humana, ogovernar-se por um só. (DR 1, 3, 9)

Recorria ainda à experiência para mostrar que o gover-no de muitos produzia o dissenso: um governo dos muitos,no qual o poder fosse compartilhado, degenerava com maisfreqüência num regime tirânico do que o governo de um sómonarca, a exemplo da república romana. E o que tornavainjusto um governo, “é o tratar-se, nele, do bem particular dogovernante, com menosprezo do bem comum da multidão.Logo, quanto mais se afasta do bem comum, tanto mais in-justo é o regime” (DR 1, 4, 11). De todas as formas de gover-no, a mais injusta era a tirania. Pois, assim como o bemproveniente de uma só causa era mais forte, a exemplo deDeus, também mais devastador era o mal que advinha deuma causa única.126

bera do fim que deve perseguir, mas sim do que se ordena ao fim [...].Assim, tanto mais útil será um regime, quanto mais eficaz for paraconservar a unidade da paz [...]. Ora, manifesto é poder melhor realizarunidade o que é de per si um só, que muitos, tal como a mais eficientecausa de calor é aquilo que de si mesmo é quente. Logo, é o governo deum só mais útil que o de muitos” (DR 1, 3, 8).

126 “É, pois, o governo do tirano o mais injusto. Semelhantemente se torna-rá evidente a quem considerar a ordem da divina providência, que tudo

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Até aqui, Tomás de Aquino seguia Aristóteles. Maisadiante, contudo, argumentava que, no governo de muitos,ocorria com mais freqüência o domínio da tirania: quandomuitos governavam, inúmeros ódios e dissensões eram des-pertados, permitindo a instauração de tiranias cruéis. Porisso, insistia, melhor era o governo de um só.127 E, quandoera preciso decidir entre dois governantes perigosos, devia-se escolher aquele do qual derivava mal menor. E justificavaadiante, recorrendo à experiência histórica:

se alguém considerar diligentemente, em todo o mundo,os fatos passados e os que ora se dão, há de achar terhavido mais tiranos nas terras governadas por muitos,do que nas governadas por um só. Se, portanto, a reale-za, que é o melhor governo de todos, pareça dever evitar-se por causa da tirania; e se a tirania costuma dar-se nãomenos, porém mais, no governo de muitos que no de um

dispõe pelo melhor. Pois, nas coisas, o bem provém duma única causaperfeita, congregando-se tudo aquilo que pode coadjuvar ao bem, en-quanto o mal, em particular, provém dos defeitos particulares [...]. Eassim é que, por modos vários, procede a feiúra de muitas causas, en-quanto a beleza por um só modo e de uma só causa perfeita. E assim sedá com todos os bens e males, como que por providência de Deus, a fimde que o bem proveniente de uma só causa seja mais forte, entretanto,o mal, proveniente de muitas causas, seja mais fraco. Releva, pois, queo governo justo seja de um só, para ser mais forte. Porque, caso seafaste da justiça, mais convém seja de muitos, que entre si se atrapa-lhem, para ser mais fraco. Entre os regimes injustos é, portanto, o maissuportável a democracia, e o pior, a tirania” (DR 1, 4, 11).

127 “Ora, da monarquia que em tirania se converte”, escrevia Tomás deAquino corrigindo o mestre, “segue-se menor mal do que do governo demuitos nobres, ao se corromper. Verdadeiramente, a dissensão que, omais das vezes, deriva do governo de muitos, contraria o bem da paz,que é o princípio na multidão social, bem esse que pela tirania não seperde, mas somente se impedem alguns dos bens dos homens particu-lares, salvo se há excesso de tirania, que se agrave contra toda a comu-nidade. Portanto, há de se decidir de preferência pelo governo de um sódo que pelo de muitos, se bem que de ambos decorram perigos” (DR 1,6, 15).

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só, resta simplesmente ser de mais conveniência viver sobum rei, do que sob o governo de muitos. (DR 1, 6, 15 e 16)

Convinha assim que se escolhesse para a função de reium homem com pouca probabilidade de se inclinar à tirania.E as instituições do reino deviam estar de tal forma estabeleci-das, que dificultassem ao rei a ocasião de se tornar um tirano.Se contudo uma tirania se instaurasse, e não fosse excessiva,convinha mais que fosse tolerada por certo tempo do que,

na oposição ao tirano, ficar-se emaranhado em muitosperigos mais graves do que a própria tirania. [...] Dá-se,por vezes, o caso de, quando a multidão expele o tirano,ajudada por alguém, este, apanhado o poder, assumir atirania e, temendo sofrer de outrem o que fez contra aquele,oprimir os súditos em mais grave servidão. (DR 1, 7, 18)

Mas, se fosse legalmente possível livrar-se do tirano,procedendo pela autoridade pública, devia então a multidãodestituí-lo.128 No caso de não se obter auxílio humano contrao tirano, restava então recorrer ao rei supremo, Deus.129

Tomás de Aquino recusava o governo teocrático tradi-cional por acreditar que este conferia ao monarca a plenitudopotestatis: ele não tinha de dar conta a ninguém de seus atosde governo e podia colocar-se acima das leis. Isto, para o

128 “[...] não se deve proceder contra a perversidade do tirano por iniciativaprivada, mas sim pela autoridade pública. Primeiro, porque, competin-do ao direito de qualquer multidão prover-se de rei, não injustamentepode ela destituir o rei instituído ou refrear-lhe o poder, se abusar tira-nicamente do poder real. Nem se há de julgar que tal multidão age cominfidelidade, destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetidoperpetuamente, porque mereceu não cumpram os súditos para com eleo pactuado, não se portando ele fielmente, no governo do povo, comoexige o dever do rei” (DR 1, 7, 20).

129 “Mas, para que o povo mereça conseguir de Deus este benefício, deveafastar-se dos pecados, por isso que, em punição do pecado, recebem osímpios o mando, por divina permissão [...]. Cumpre, por conseguinte,suprimir a culpa, a fim de que cesse a peste dos tiranos” (DR 1, 7, 21).

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Angélico, caracterizava a tirania, a mais repugnante das for-mas de governo. Um governo propriamente político existia,segundo ele, quando os poderes do governante estavam cir-cunscritos às leis da comunidade política ou civitas. Por isso,como lembra Ullmann, a defesa de um governo monárquicopor Tomás de Aquino não deve ser identificada à teocracia, jáque em seu modelo o governante estava sujeito às leis dacomunidade política natural e limitado à lei positiva.130 Defato, o rei de Tomás de Aquino era limitado tanto pelas leis epelo julgamento de Deus, num certo nível, quanto, em outronível, pelo povo, a quem cabia o direito de resistir-lhe quandoseu governo degenerasse em tirania.

O príncipe, instituído para realizar grandes obras, deviater grandeza de alma, e jamais aspirar à glória humana, poisessa aspiração o privava da primeira qualidade. Além do mais,o homem bom tinha o dever de desprezar a honra, a glória e osdemais bens temporais. E justificava pragmaticamente a suaoposição à tradição aristotélica:

O que, porém, transparece da intenção dos sábios douto-res é que não determinaram a honra e glória como prê-mio ao príncipe, como devendo dirigir-se principalmentepara elas a intenção do rei bom, mas sim como sendomais tolerável buscar ele a glória do que desejar o dinhei-ro ou seguir o prazer. [...] Tem a paixão da glória algumvestígio da virtude, ao menos enquanto procura a apro-vação dos bons e se recusa a desagradar-lhes. Uma vez,portanto, que poucos chegam à verdadeira virtude, é maissuportável, se for conduzido ao governo alguém que,embora só por temor do juízo dos homens, pelo menos seafasta dos males manifestos. (DR 1, 8, 24)

Apenas de Deus devia o rei esperar seu prêmio:

De fato, o servente espera do senhor a recompensa peloseu serviço; ora, o rei, governando o povo, é ministro de

130 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 170.

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Deus, na asserção do Apóstolo (Rm. 13: 1.4), de que “todopoder vem do Senhor Deus e o ministro de Deus é vingadoriroso contra aquele que faz o mal” [...]. Devem os reis, porisso, esperar de Deus a recompensa pelo seu governo. (DR1, 9, 25)

O prêmio da virtude, tal como estava escrito nas men-tes de todos os seres dotados de razão, era a felicidade, aqual constituía o bem perfeito. E, como nada havia nas coi-sas terrenas que pudesse aquietar o desejo, nada do que eraterreno podia fazer feliz ao rei.131 A perfeição final e o bemcompleto de qualquer criatura tendiam para aquele algo su-perior que lhes havia causado. E a única causa do espíritohumano era Deus, que o fizera à sua imagem e semelhan-ça.132

Por isso, todos aqueles que exercessem o ofício régio demaneira digna e louvável obteriam grau sublime e eminentede beatitude celeste. Pois se requeria maior virtude daqueleque governava a cidade ou o reino do que daquele que gover-nava apenas a si mesmo ou a sua família.133 Daí ser o prêmio

131 “Nada havendo de permanente nas coisas terrenas, nada há de terrenoque possa aquietar o desejo. Assim, nada do que é terreno pode fazerfeliz, para poder ser prêmio conveniente do rei” (DR 1, 9, 26).

132 “Até as próprias coisas corpóreas tornam-se melhores pela junção demelhores, e piores, se se misturam com piores. [...] Ora, estão abaixo doespírito humano todas as coisas terrenas: mas, a felicidade é a perfei-ção final e o bem completo do homem, a que desejam todos chegar;logo, nada há de terreno que ao homem possa fazer feliz; pelo que, nadade terreno é prêmio bastante do rei. [...] Com efeito, o desejo tido porqualquer coisa tende para o seu princípio pelo qual o seu ser foi causa-do. Ora, é causa do espírito humano somente Deus, que o faz à suaimagem. Logo, só Deus é quem pode aquietar o desejo do homem e fazê-lo feliz e ser recompensa conveniente ao rei” (DR 1, 9, 27).

133 “[...] se cabe à virtude tornar boa a obra do homem, parece próprio davirtude maior fazer com que se opere um bem maior. Ora, o bem damultidão é maior e mais divino que o de um só; por essa causa, tolera-se às vezes o mal de um só, se aproveita ao bem da multidão; por exem-plo, mata-se o ladrão, para dar paz à multidão. [...] E, se ao ofício do rei

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do rei a bem-aventurança. E, para não perderem a possibili-dade da beatitude celeste, os reis deviam governar diligente-mente e cuidar para não se tornarem tiranos. Pois os queabandonavam a justiça, privavam-se de tal prêmio.

Do amor do rei pelos seus súditos advinha a estabilida-de do governo. Pois, por ele, os súditos se expunham a qual-quer perigo. Por essa razão também, não era fácil perturbar osenhorio de um príncipe amado por seu povo. O domínio dostiranos, ao contrário, não podia durar muito por ser odioso àmultidão e se sustentar apenas no temor.134 Deus só permi-tia que tiranos governassem para punir os pecados dos seussúditos. Mas, aplacada a sua ira, Ele os depunha. Dois sécu-los mais tarde, Maquiavel pouco acrescentara à idéia do con-sentimento e adesão do povo como base da autoridade políticaestável e duradoura.

Como a arte imitava a natureza, e desta última rece-bíamos a capacidade de operar segundo a razão, daí decorriaque a função régia era derivada da forma de governo natural:havia, nas coisas naturais, o governo universal e o particu-lar. O universal competia a Deus, que tudo conhecia e podia.O particular, o microcosmo, achava-se no homem. Mas, comoa parte estava para o todo, também no microcosmo se verifi-cava a forma do governo universal. Como corpo e alma eramregidos pela razão, essa existia no homem na mesma propor-ção em que Deus estava para o universo. Do mesmo modo

pertence procurar diligentemente o bem da multidão, por isso mesmoao rei se deve maior prêmio pelo bom governo, do que ao súdito pelaação correta” (DR 1, 10, 29).

134 “Resta, portanto, que o governo do tirano só se sustente pelo temor,razão por que procuram, com toda intenção, fazer-se temidos pelos sú-ditos. O temor é, contudo, fundamento débil. Pois, os que se submetemsomente pelo temor, se ocorrer uma ocasião na qual possam esperarimpunidade, se insurgem contra os que presidem, tanto mais ardente-mente, quanto mais contra a vontade eram coagidos unicamente pelomedo. [...] Não pode, por conseguinte, ser de longa duração o domíniodo tirano” (DR 1, 11, 35).

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era a multidão mais bem governada pela razão de um só ho-mem.135

E, adiante, comparava a função do bom rei à de Deus,numa formulação que nada deixaria a desejar aos mais ardo-rosos defensores daquilo que viria a ser chamado de direitodivino dos reis: “Saiba, por conseguinte, o rei que recebeu es-tes múnus a fim de ser no reino como a alma no corpo e Deuspara o mundo. Se diligentemente observar isso, acender-se-ánele, por um lado, o zelo da justiça, ponderando ter sido des-tinado a exercer no reino o julgamento em lugar de Deus; poroutro lado, adquire, ao certo, a suavidade da mansidão e daclemência, considerando cada um dos subordinados ao seugoverno, como seus próprios membros” (DR 1, 13, 40). A me-táfora do corpo como representação do poder político, ampla-mente divulgada nos séculos XI e XII, ganhava aqui umdepositário concreto e indiscutível: o bom rei, que governavano reino como a alma no corpo.

Invocando a criação do mundo por Deus,136 Tomás deAquino estabelecia, por similitude de funções, a instituição doreino pelo príncipe.137

135 “Ora, na natureza das coisas, há o governo universal e o particular. Ouniversal é aquele segundo o qual tudo se sujeita ao governo de Deus,que com sua providência governa todas as coisas. O governo particular,muitíssimo semelhante ao divino, acha-se no homem, que por isso sechama microcosmo, porque nele se encontra a forma do governo uni-versal. [...] sendo o homem [...] animal naturalmente social, que vive emmultidão, acha-se nele a semelhança do governo divino, não somentequanto ao fato de que a razão governa as demais partes do homem, mastambém no ser a multidão regida pela razão de um só homem, o quecompete sobretudo à função régia” (DR 1, 13, 40).

136 “[...] duas obras de Deus no mundo se hão de considerar, em geral:uma, pela qual Ele cria o mundo; outra, pela qual governa o mundocriado. Estas duas operações, tem-nas a alma no corpo. Primeiro, comefeito, é o corpo formado pela virtude da alma; depois, é o corpo regidoe movido pela alma. Destas duas obras, a segunda é que pertence maispropriamente à função real” (DR 1, 14, 41).

137 “Ora, a razão da instituição do reino se há de coligir do exemplo dainstituição do mundo no qual se considera, em primeiro lugar, a produ-

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Assim como a fundação da cidade ou do reino deriva con-venientemente da forma da criação do mundo, assim tam-bém é do governo divino que se há de derivar a ordem dogoverno. [...] governar é conduzir convenientemente aodevido fim o que é governado. [...] Se, portanto, algumacoisa está ordenada a um fim exterior a ela, como o navioao porto, caberá ao ofício do governo, não só conservarperfeita a própria coisa, mas, além disso, conduzi-la aofim. (DR 1, 15, 43)

O fim último da multidão na terra era a boa vida se-gundo a virtude, meio pelo qual podia chegar à fruição divi-na, seu fim último no céu. Mas como essa visio Dei só podiaser atingida por meio da virtude divina, conduzir a esse fimúltimo cabia não ao regime humano, mas ao governo divi-no.138

Ficava claro, nessa concepção, quanto o Angélico haviaavançado em relação à formulação aristotélica: partindo dosmesmos princípios, estendia também ao sobrenatural a no-ção de governo, fornecendo assim munição para a revisão dateoria gelasiana das duas espadas, como faria pouco depois,por exemplo, Egídio Romano. Desse governo divino, conti-nuava ele, derivava o sacerdócio real:

ção das próprias coisas, depois a distinção ordenada das partes do mun-do” (DR 1, 14, 41).

138 Nas palavras de Tomás de Aquino: “Parece, no entanto, ser fim últimoda multidão congregada o viver segundo a virtude. Pois, para isto secongregam os homens: para em conjunto viverem bem, o que não pude-ra cada um, vivendo separadamente. Ora, boa é a vida segundo a virtu-de; portanto, a vida virtuosa é o fim da associação humana. [...] Vistoque, porém, o homem, vivendo segundo a virtude, é ordenado a um fimulterior, o qual consiste na fruição divina, como acima dissemos, cum-pre seja o mesmo o fim da multidão humana, como o de um só homem.Não é fim último da multidão associada viver segundo a virtude, massim, pela vida virtuosa chegar à fruição divina. [...] Como, porém, ohomem não consegue o fim da fruição divina por virtude humana, se-não divina, [...] conduzir àquele fim último não cabe ao governo huma-no, senão ao divino” (DR 1, 15, 45).

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A fim de ficar o espiritual distinto do terreno, foi, portan-to, cometido o ministério desse reino não a reis terrenos,mas a sacerdotes e, principalmente, ao Sumo Sacerdote,sucessor de Pedro, Vigário de Cristo, o Romano Pontífice,a quem importa serem sujeitos todos os reis dos povos cris-tãos, como ao próprio Senhor Jesus Cristo. Assim, pois,como já foi dito, a ele, a quem pertence o cuidado do fimúltimo, devem submeter-se aqueles a quem pertence o cui-dado dos fins antecedentes, a ser dirigidos por seu co-mando. (DR 1, 15, 46 – grifos meus)

Depois de fazer a defesa explícita da supremacia daespada espiritual sobre a temporal, entretanto, Tomás deAquino se via obrigado a explicar os argumentos dos defen-sores do regnum, que se apoiavam, entre outros, no AntigoTestamento, para afirmar a superioridade do imperador so-bre o sumo pontífice, e a antiguidade do reino em relação aosacerdócio. Deus havia prometido, na lei antiga, justificava oAquinate, bens terrenos ao povo religioso. Como o sacerdóciodos gentios e todo culto das coisas divinas se ordenavam àconquista de bens temporais, deviam os sacerdotes se sub-meter, naqueles tempos, ao rei, que a todos ordenava para obem comum da multidão.

Mas a vinda de Cristo, que instaurou a lei nova e redimiuos pecadores por meio da graça, criou um sacerdócio maisalto, “pelo qual os homens são levados aos bens celestes; daí,na Lei de Cristo [Novo Testamento], os reis deve[re]m estarsujeitos aos sacerdotes” (DR 15, 47). Essa formulação ofere-cia um argumento a mais – e de peso – aos defensores dosacerdotium. Saranyana observa num de seus textos que oDe regno estava “contaminado” pela doutrina guelfa ou pa-palista, surgida como um desenvolvimento unilateral da dou-trina gelasiana das duas espadas.139 Essa posição podia de

139 “Segundo os guelfos”, esclarece Saranyana, “toda autoridade, inclusiveaquela dos reis e imperador, deriva da autoridade do papa. Por isso,podem os pontífices depor os governantes, como havia ocorrido em 1245,

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fato ser encontrada não apenas no opúsculo, mas em váriosdos escritos do Angélico.

Na Suma teológica, por exemplo, quando o Aquinateconsiderava o domínio ou governo já existentes, admitia quegovernantes infiéis podiam governar justamente. Pois domí-nio e governo eram obras do direito humano, enquanto adistinção entre crentes e não-crentes constituía matéria dajurisdição divina. Como o direito divino não eliminava o hu-mano, o governo dos reis infiéis podia existir. Mas a Ecclesia,lembrava ele, por receber do próprio Deus sua autoridade,podia ou não eliminar esse domínio ou governo. Ou seja, aautonomia do governante temporal não era absoluta. Esseera, no fundo, o argumento clássico dos defensores da pri-mazia do sacerdotium sobre o regnum.

Nas palavras do Aquinate:

[...] devemos notar que o domínio e o governo [dominiumet praelatio] foram introduzidos por direito humano, aopasso que a distinção entre fiéis e infiéis é de direito divi-no. Ora, o direito divino, fundado na graça, não elimina odireito humano, fundado na natureza racional. Logo, adistinção entre fiéis e infiéis, em si mesma considerada,não elimina o domínio e o governo dos infiéis sobre osfiéis. Pode porém justamente, por sentença ou ordem daIgreja, que tem de Deus a sua autoridade, ser eliminadoesse direito de domínio ou governo. Porque os infiéis, comocastigo da sua infidelidade, merecem perder o governodos fiéis, transformados em filhos de Deus. Mas isto aIgreja faz umas vezes e, outras, não. (ST II, II, 60, 6, ad 3)

O pensamento de Tomás de Aquino acerca da relaçãoentre a Ecclesia e os poderes temporais nem sempre era muito

quando Inocêncio IV depôs Frederico II. Pois para os guelfos o papahavia recebido as duas espadas e delegava uma delas aos governantescivis, conservando o direito de lhes retirar tal poder quando consideras-sem oportuno em razão de causas graves”. Cf. SARANYANA, Josep-Ignasi.La ciencia politica de Tomás de Aquino. In: DE BONI, op. cit., 1996,p. 242.

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claro para quem toma os seus escritos isoladamente: na pas-sagem acima, ele defendia a supremacia papal sobre todosos governantes temporais,140 conferindo ao papa, inclusive,o poder de destituir aqueles governantes que não conside-rasse “adequados” ao cargo, de acordo com a boa tradiçãodos papas hierocráticos. Noutros lugares, contudo, ele asse-verava estar o governante civil isento e acima da lei, devendocontudo subordinar-se à sua força diretiva.141 À primeira vista,o Angélico parecia oscilar entre a defesa de uma autonomiado governante temporal em matérias concernentes ao bemcomum e a atruibuição ao papa, como representante máxi-mo de Deus, de uma supremacia moral que o colocava acimados poderes seculares e lhe permitia deles dispor como equando lhe conviesse.

Uma resposta para o problema talvez possa ser parci-almente encontrada no capítulo 16, do De regno, no qual oAquinate tentava explicar a diferença entre os fins últimos eos intermediários:

140 “O poder secular está sujeito ao espiritual, como o corpo à alma. Poronde, não é usurpado o juízo do prelado espiritual que se intrometecom as coisas temporais, na medida em que o poder secular lhe estásujeito, ou que lhe são confiadas coisas da alçada desse poder” (ST II, II,60, 6, ad 3).

141 “No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que se diz ser opríncipe isento da lei quanto à força coativa da lei, pois ninguém, emsentido próprio, é coagido por si mesmo; ora, a lei só tem força coativaem razão do poder do príncipe. Assim, pois, o príncipe diz-se isento dalei porque ninguém pode pronunciar contra ele um juízo condenatório,se vier a agir contra a lei [...]. Mas quanto à força diretiva da lei, está opríncipe sujeito à lei por sua própria vontade nos termos em que se diz[...] ‘Todo aquele que estatui um direito para outrem, deve usar o mes-mo direito’. [...] Segue-se, pois, não estar o príncipe isento da lei quantoao vigor diretivo desta perante o juízo de Deus, mas deve cumprir a leivoluntariamente e não por coação. Está também o príncipe acima da leina medida em que, se for isto vantajoso, pode mudá-la e dela dispensar,segundo o tempo e o lugar” (TL I, II, 96, 5, ad 3).

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Assim como à vida feliz que esperamos no céu se ordena,como ao fim, a vida pela qual os homens vivem bem aqui,igualmente se ordenam à boa vida da multidão, como aofim, quaisquer bens particulares que o homem procura[...]. Se, pois, como foi dito, quem cuida do fim últimodeve ter prioridade sobre os que têm o cuidado do que éordenado ao fim e dirigi-los pelo seu comando, do que vaidito se põe claro que o rei, assim como deve se sujeitar,como ao Senhor, ao governo que se administra pelo ofíciosacerdotal, assim também deve presidir a todos os ofí-cios humanos e ordená-los com o comando do seu gover-no. (DR 1, 16, 48)

Ou seja, assim como o ferreiro devia fazer bem a espa-da de modo que conviesse à luta e o construtor devia edificarbem a casa de modo que pudesse ser habitada com seguran-ça, assim também,

sendo a beatitude celeste fim da vida presentemente bemvivida, pertence à função régia, por essa razão, procuraro bem da vida da multidão, segundo convém à consecu-ção da beatitude celeste, isto é, preceituando o que leva àbem-aventurança celeste e interdizendo o contrário, den-tro do possível. (DR 1, 16, 48)

O caminho para a verdadeira beatitude se conhecia pelalei divina, explicava Tomás, cujo saber e ensinamento per-tenciam ao ofício dos sacerdotes.

Assim o monarca, depois de coroado, devia aplicar-seao esforço principal de governar instruído pela lei divina, “istoé, como viva bem a multidão a ele sujeita; esforço esse que sedivide em três partes: primeira, a instauração da boa vida namultidão a ele sujeita; segunda, a conservação dessa vida jáinstaurada; terceira, o melhoramento dessa vida conserva-da”. Para que um homem pudesse alcançar a boa vida, con-tinuava, duas coisas eram necessárias: 1) agir segundo avirtude, pois a virtude era aquilo pelo qual se vivia bem; 2) asuficiência dos bens corpóreos, cujo uso era necessário aoexercício das virtudes (DR, 1, 16, 49).

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Mas a unidade do homem constituía uma inclinaçãoda natureza, enquanto a unidade da multidão, a paz, deviaser buscada pela indústria do governante.

Assim, pois, três condições se exigem para instaurar aboa vida da multidão. Primeira, que a multidão se esta-beleça na unidade da paz. Segunda, ser essa multidão,unida pelo vínculo da paz, dirigida a proceder bem. [...]Terceira, requerer-se que, por indústria do dirigente, hajaabundância suficiente do necessário para o bem viver.Por onde, constituída a boa vida na multidão por obra dorei, segue-se que deva tratar da sua conservação. (DR 1,16, 49)

Três cuidados devia ter o rei para garantir tais objeti-vos: zelar para que os que sucediam àqueles que vinham afaltar conservassem o bem da multidão subordinada; des-viar os súditos, por meio de sanções e recompensas, da ini-qüidade e induzi-los a obras virtuosas; e, por fim, assegurara boa vida da multidão a ele sujeita contra os inimigos exter-nos. Para que o governante temporal pudesse dar conta detodas essas tarefas, portanto, era preciso conceder-lhe umrazoável grau de autonomia. E o Angélico, pragmático queera, sabia bem disso. Assim, desde que visassem ao bem dacomunidade, as decisões do governante dispunham não ape-nas de força coativa, mas eram ainda sustentadas pelo as-sentimento divino. Contudo, se o governante se opusesse à“razão do bem”, determinada em última instância pelo su-premo pontífice, cessava a legitimidade de seu governo, ago-ra transformado em tirania. E, se insistisse em conservarseu domínio, a “ira de Deus” se abateria sobre ele até quecapitulasse.

Dito de outro modo: pode-se afirmar, com alguma cer-teza, que, para Tomás de Aquino, a função de qualquer go-vernante devia ser a ordenação dos súditos à boa vida. Istovalia tanto para os governantes fiéis quanto para os infiéis.

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Até aqui, Tomás de Aquino era rigorosamente aristotélico: acomunidade humana reunida na civitas continha, na suanatureza, os princípios de sua operação. Mas o rei cristão,por ser instruído de acordo com a graça divina, e comparti-lhar assim um fim superior, tinha a obrigação de tornar essefim terreno, a boa vida da multidão, um meio exeqüível paraatingir a felicidade celeste ou beatitude eterna, fim último detoda e qualquer comunidade cristã.

Por essa razão, os governantes temporais da cristanda-de estavam sujeitos à autoridade última do sumo pontífice.Aos reis cristãos cabia buscar e manter a boa vida da comu-nidade humana, de acordo com as regras do direito natural edo ius humano. Quando esses governantes ultrapassavam a“reta razão” das leis e se tornavam injustos, cabia ao sumosacerdote, como instância moral máxima, alertá-los e, senecessário, puni-los, destituindo-os da função de governo.Isso significava que, na prática, o sucessor de Pedro podialegitimamente intervir em assuntos temporais em “razão dopecado”. Pois aquele que agia contra a justiça agia contraDeus e, por isso, merecia castigo.

Dessa perspectiva, a decisão do lícito e do ílicito era dacompetência de um só homem: o vigário de Cristo na terra eseu representante direto, o romano pontífice, como havia sidodeterminado pela lei nova. Somente a ele cabia definir tal“razão de pecado”. Pois ninguém conhecia melhor a lei divinado que o representante de Deus. Os governantes infiéis, deseu lado, deveriam ser “conquistados” pela cristandade, nomelhor espírito das Cruzadas. Aqueles pagãos que governa-vam justamente, acabariam conhecendo a verdade de Deus,pois a “reta razão” os levaria à apreensão das normas doSenhor, e seriam assim retirados de seu “estado primitivo nanatureza”. Já os infiéis que governavam injustamente expe-rimentariam, cedo ou tarde, a ira do Senhor, que lhes sub-trairia o poder: era justamente essa promessa que os cruzadosvinham tentando, com maior ou menor sucesso, cumprirhavia dois séculos.

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A idéia unitária, escreve Ullmann ao comentar as ba-ses da doutrina hierocrática, pressupunha também um man-do unitário para a corporação cristã, cuja cabeça era o papa,que se situava acima dos povos e nações, e de cuja jurisdiçãopoucas coisas ou pessoas escapavam. Aos olhos da Ecclesia,o governante temporal era designado pela divindade, que oreconhecia por intermédio do papa. E, se aquele governavacumprindo de fato a finalidade da Igreja, podia até chegar aser “a imagem da divindade”. A vontade do rei, nessa pers-pectiva, dependia da “lei de Deus”, dado ser a lei uma “dádi-va divina e imagem da vontade do Senhor”.142 Em Tomás deAquino essa idéia se expressava na noção de que a lei natu-ral era um “espelho da razão divina”. E, por derivação imper-feita, também a lei dos homens.

A lei, portanto, devia materializar a idéia de justiça.Mas o problema, como constata Ullmann, permanecia: namedida em que o princeps era a fonte da lei e a vontade dopríncipe proporcionava às leis seu caráter vinculante, nãohavia recurso constitucional legal para derrotar o tirano.143

Essa perspectiva, contudo, expressa apenas parte do proble-ma. Segundo o Aquinate, todas as associações humanas quevisavam a algum fim tinham como decorrência a criação deuma figura de autoridade. Do mesmo modo, o agrupamentonuma civitas exigia a instauração de um governante a quemcabia proporcionar à multidão a boa vida segundo a virtude,preparando-a para a felicidade eterna ao lado de Deus.144 Ouseja, a felicidade terrena constituía apenas uma felicidadeimperfeita, pois a perfeição estava na felicidade celeste aolado do Criador.

O mesmo raciocínio podia ser usado para explicar opapel do príncipe e sua relação com a lei positiva. Cabe an-

142 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 118.143 Ibid., p. 119.144 Sobre esse assunto, cf. STORCK, Alfredo C. O indivíduo e a ordem política

na dimensão da civitas. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 323-30.

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tes, contudo, uma observação ao comentário de Ullmann:para Tomás de Aquino, a tirania, em sentido absoluto, cons-tituía um regime incompatível com a lei.145 Pois baseava-seno puro arbítrio do governante, e não na razão: depô-lo erauma questão de justiça, e não de direito. Mas a lei positivaera, de fato, posta pelo governante, cujas disposições legaistinham caráter obrigatório. Ora, ao definir a polis como con-dição indispensável à plena realização do homem, Aristótelesse referia à essência do homem e à essência da polis, e não aoque caracterizava o homem e a polis em qualquer circuns-tância.

Embora o fim natural coincidisse, em Aristóteles, como bem, o discurso descritivo e o normativo não se mistura-vam. A teleologia explicava o movimento e a transformaçãocomo causados por finalidades naturais, constitutivas daessência dos seres. Assim, a árvore era a perfeição da semen-te porque, ao tornar-se árvore, a semente havia completado oseu ciclo de desenvolvimento. Mas nem toda planta se de-senvolvia por completo, nem todo coração bombeava o san-gue com a eficiência necessária, nem todo animal se tornavaadulto e nem todo grave realizava a condição de cair no rumodo centro do mundo. Isso não nos impedia de classificá-loscomo planta, coração, animal e grave. Tomás de Aquino faziao mesmo raciocínio quando afirmava que, nas coisas terrenas,tudo caminhava do imperfeito ao perfeito.

Da mesma forma, o próprio da lei era ser uma ordemracional e uma medida do justo; e o próprio do governanteera realizar o bem comum, na qualidade de instrumento dacomunidade política. Mas a sua imperfeição não os privavade sua natureza de lei e de governante. Por essa razão Tomásde Aquino podia afirmar sem problemas que

145 “Há ainda um outro [regime], o tirânico, de todo corrupto, do qual nãoderiva nenhuma lei” (TL I, II, 95, 4).

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é da razão da lei humana ser ordenada para o bem co-mum da cidade. Em conformidade com isto, a lei huma-na pode ser dividida segundo a diversidade daqueles queprestam um serviço especial ao bem comum: assim, ossacerdotes, que oram pelo povo de Deus, os príncipes,que governam o povo, e os soldados que lutam por suadefesa. (TL I, II, 95, 4)

E adiante:

Em terceiro lugar é da razão da lei humana ser instituídapelo governante da comunidade da cidade [...]. E, quantoa isto, distinguem-se as leis humanas segundo os diver-sos regimes das cidades. [...] Em quarto lugar, pertence àrazão da lei humana ser diretiva dos atos humanos. Emconformidade com isto, distinguem-se as leis segundo adiversidade daquilo em vista do que são promulgadas.(idem)

Mesmo na hipótese de condições constantes, porém, aalteração da lei podia convir, porque “à razão humana eranatural ascender gradualmente do imperfeito para o perfei-to”. O mesmo valia assim para a lei humana posta pelo go-vernante, a quem cabia, na ordem terrena, alterá-la,interpretá-la ou derrogá-la segundo sua conveniência.

Assim, por ser a comunidade política um produto na-tural e a Igreja um produto sobrenatural, a civitas nada maisera senão uma associação de homens, diferenciando-se daEcclesia, que consistia na associação dos crentes. Desse pontode vista, a comunidade política era uma entidade que diziarespeito apenas ao homem ou ao cidadão: suas origens e seufuncionamento nada tinham a ver com a autoria eclesiásti-ca. Sua finalidade era o bem viver de seus membros: consti-tuía um corpo político com fins morais, que devia levar emconta os hábitos e costumes dos seus componentes. E porser a civitas um produto da natureza, também as suas re-gras dela tinham de derivar: as leis da comunidade política

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constituíam os canais por meio dos quais a lei natural en-contrava uma expressão articulada.

O Angélico superava o abismo existente entre a nature-za e a graça divina, explica Ullmann, articulando o mundonatural ao sobrenatural. A lei natural, tal como a concebia,era dotada de eficácia natural. Pois podia atuar sem qual-quer revelação, graça ou ajuda divina: o homem podia che-gar a ela apenas por meio do uso da razão. No sistema tomista,escreve ele, a dicotomia entre graça e natureza cedeu lugar a“uma hierarquia de diferentes ordens, de modo que os doistermos em oposição se apresentavam como duas ordens decoisas situadas hierarquicamente em níveis distintos, o na-tural e o sobrenatural”.146 Os dois termos passavam a seapresentar agora como complementares, já que “a graça aper-feiçoava a natureza”.

Ao homem na esfera individual correspondia o cidadãona esfera pública. E ambos pertenciam à ordem natural terrena.O complemento no âmbito sobrenatural era o crente cristão esua congregação, a Igreja. Tanto a Ecclesia quanto a civitasconstituíam manifestações de uma ordenação divina, uma nonível do natural, outra no do sobrenatural. Esse dualismo co-locava a discussão sobre as duas espadas num novo patamar.A civitas, obra da natureza, estava, como tal, impregnada daordem divina. Por essa razão, Tomás de Aquino não podiacondenar os governos e povos infiéis. Pois, se a comunidadepolítica era uma entidade natural, esses governantes exerci-am legitimamente seu domínio. A fonte do poder e da autori-dade, comenta Ullmann, já não eram mais as chaves de Pedro,e sim a própria comunidade natural, ainda derivada, em To-más de Aquino, de Deus.147 Faltava pouco para que surgisse oindivíduo livre, portador de direitos inalienáveis.

146 ULLMANN, op. cit., p. 173-4.147 Ibid., p. 174-5.

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Wilks argumenta que, ao admitir a legitimidade do go-verno temporal numa época sacra, Tomás de Aquino davainício a um processo de secularização que iria, ao final, des-truir o poder ideológico e intelectual da Igreja Católica.148

Essa formulação talvez esteja hoje um pouco envelhecida: oprocesso de secularização do pensamento cristão e, com ele,o da política já vinha ocorrendo pelo menos desde o séculoXI. Foi paralelo, portanto, à consolidação política e jurídicada Ecclesia na Europa ocidental, e não oposto a ela. Mas écerto que, a partir de uma rica tradição de conhecimentoacumulada ao longo dos séculos precedentes, o Aquinatepudera sintetizar um novo aparato conceitual para pensaras transformações de seu tempo, fornecendo material para adefesa de pretensões e interesses tão variados quanto aque-les dos defensores de uma monarquia papal absoluta e os dogoverno constitucional, como se veria a seguir com EgídioRomano e João Quidort.

Aristóteles já havia fornecido uma justificação racionalpara o governo diferente daquela da revelação. A separaçãoconceitual entre mundo natural e sobrenatural operada porTomás de Aquino, embora, no seu pensamento, não visassejamais à independência total de uma esfera em relação à ou-tra, acabaria permitindo aos pósteros a interpretação de quea Igreja constituía apenas um corpo místico, como diria maistarde por exemplo Marsílio de Pádua. Tomás de Aquino re-punha com clareza a idéia de que os fatos políticos eramnaturais. Paulatinamente, a razão humana consolidava suajurisdição nas controvérsias políticas. Pouco faltava para quefossem cortados os laços entre Deus e natureza e surgisseuma teoria da lei natural suficientemente autônoma paraprescindir de qualquer noção cristã de divindade – ou, ao

148 Cf. WILKS, M. The problem of sovereignty in the Later Middle Ages.Cambridge: University Press, 1964. p. 118-48.

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menos, capaz de torná-la secundária e tão pouco funcionalque não conferisse ao papel do Deus criador mais do que umcaráter meramente figurativo.

Quando se levam em conta todas as ponderações feitasaqui, talvez não seja excessivo admitir o comentário de Lorcaa respeito de certos aspectos do pensamento político do Aqui-nate:

Reticente a toda idéia de Império universal, [Tomás deAquino] não só silencia aqui [no De regno], como em ou-tros escritos, a figura política do Imperador, como tam-bém observa com lucidez como o poder do príncipe temvigência unicamente dentro das fronteiras de seu Estadoou reino. O mosaico dos nascentes reinos europeus domedievo encontra assim uma acertada expressão jurídi-co-política.149

Feitas as devidas ressalvas, pode-se dizer que Tomásde Aquino tinha uma boa idéia do que significava a fórmula‘rex in regno suo imperator est’ quando escrevia: “Assim, osque são de uma cidade ou reino não estão submetidos às leisdo príncipe de outra cidade ou reino e nem ao seu domínio”(TL I, II, 96, 5). Filipe, o Belo, rei da França, deve ter lido commuita atenção essa passagem.

149 LORCA, Andrés Martínez. El concepto de “civitas” en la teoria política deTomás de Aquino. Veritas, Porto Alegre, n. 150, v. 38, p. 258, jun.1993.

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Com Tomás de Aquino, ficava bem estabelecido, por-tanto, um conjunto essencial de idéias que iriam moldar, nafilosofia política e na jurisprudência, a noção de soberania eoutros conceitos modernos. Muito do que ele produziu foihabilmente incorporado pelos polemistas do fim do séculoXIII e do início do XIV. João Quidort constituiu um bom exem-plo de como o aristotelismo, não só o dos árabes, mas sobre-tudo aquele recuperado pelos filósofos naturais latinos e porSanto Tomás, podia servir de arma nas grandes disputas daépoca.

Esse aristotelismo se mesclava, na herança tomista,com a noção de que o povo era a fonte imediata da autorida-de temporal. Todo poder vinha de Deus, mas não chegavadiretamente aos governantes, como defendiam os partidá-rios do regnum. Os governados passavam a constituir agorauma instância intermediária na transmissão do poder. Se opovo era livre e capaz de legislar, então o costume podia so-brepor-se à autoridade do chefe e derrubar a lei estabelecida.Se o povo não tinha essa liberdade, ainda assim convinha aochefe observar suas práticas e levá-las em conta ao cuidar dalei.

Esse ponto de vista ficou conhecido como “teoria dopoder ascendente”. Foi um dos dois grandes modelos delegitimação presentes nos debates políticos medievais. O ou-tro era o do poder “descendente”. Essas teses básicas apare-ciam, nas discussões, combinadas com outros critérios, comoo da anterioridade histórica do governo secular ou do gover-no eclesiástico. As duas teses coexistiram, com predominân-cia de uma ou de outra segundo a época.

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A teoria do poder ascendente era a mais antiga. Ull-mann, citando Tácito, lembra ter sido baseada nessa idéia aforma de governo das tribos germânicas. O povo elegia che-fes para a guerra e para outras funções públicas e o lídertinha apenas o poder concedido pela assembléia eleitoral.Era considerado representante da comunidade e responsá-vel perante a assembléia popular. Como conseqüência, exis-tia um direito de resistência ao governante. Isso explicava afacilidade com que se depunha e se afastava um rei, se, naopinião do povo, tivesse deixado de representar sua vontade.Segundo a concepção oposta, o poder residia originalmentenum ser supremo, identificado pelo cristianismo com a di-vindade. “Não há maior poder que o de Deus”, havia dito SãoPaulo. Donde a conclusão: todo poder na terra só podia serdelegado. Logo, a eleição pelo povo não constituía um requi-sito de legitimidade.

A doutrina do poder descendente, porém, tinha maisde uma versão. A rigor, a idéia de Deus como fonte do poderera funcional para mais de uma pretensão política:

1) na versão tradicional, mais útil aos papas, o suces-sor de São Pedro era o transmissor da autoridade concedidapor Deus. Esse era o sentido da sagração dos governantesseculares pelo papa;

2) numa versão alternativa, o poder era concedido porDeus diretamente aos governantes. Essa doutrina, cujas raízesremontavam à idéia da teocracia régia dos antigos, constitui-ria a base teológica do absolutismo nos séculos XVI e XVII,mas derivava, claramente, das pretensões dos imperadores edos defensores do regnum.

Mesmo na doutrina do poder ascendente a idéia da ori-gem divina era bastante importante, já que o poder era con-cedido por Deus ao povo e deste aos reis ou imperadores.Essa doutrina foi retomada por autores do século XIV e rea-pareceria, nos séculos XVI e XVII, como uma das armas do

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clero contra os monarcas absolutos, depois da Reforma. Eraa noção sustentada, por exemplo, por autores de inspiraçãotomista como Bellarmino e Suarez e contestada por Filmer. Amaioria dos conflitos de legitimidade, portanto, podia ocorrersem necessidade de recurso a uma teoria ascendente pura,que fizesse do povo a fonte absoluta do poder. Era mais fun-cional, ideologicamente, contestar as pretensões do papadosem negar a noção de Deus como fonte original do poder.

No fundo, a grande questão era identificar o primeirocomissário de Deus. A questão de quem representava Deus,como primeiro portador do poder na terra, estava posta an-tes mesmo de discutir o problema da autoridade legislativa.Enquanto se tomava a lei como dada, o sentido da autorida-de necessariamente tinha de ser vinculado à idéia de comis-são. Isto é, a autoridade seria um atributo daquele quepudesse fazer cumprir a lei, não em nome próprio, mas emnome do Legislador, que era Deus. Essa noção explica bem,aliás, a posição do Aquinate sobre a relação entre a Ecclesiae os governantes temporais. Quando se passou a discutir osentido e o alcance da lei humana, o significado da noção deautoridade se ampliou. Passaria a indicar não só a atribui-ção de impor uma ordem, mas também a de construí-la.

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Para enfrentar as grandes controvérsias do século XIV,os escritores políticos disporiam de um arsenal de idéiasamplamente renovado. De um lado, estavam os desenvolvi-mentos filosóficos forjados por Tomás de Aquino e seus con-temporâneos; de outro, o pensamento jurídico, enriquecidono século XIII pelos estudos do direito romano e pelas tenta-tivas de articular esse direito e as formas tradicionais de le-

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gislação. A idéia de uma jurisdição nacional, com o rei comoinstância superior de legislação e de justiça, acima dos ba-rões e das cortes locais, aparecia na década de 1270 nosescritos de Phillipe de Beaumanoir. Em seus Coutumes deBeauvaisis já se empregava a palavra souverain, para desig-nar dois níveis de autoridade.1 Por outro lado, existia todo oaparato filosófico e científico renovado com a recuperaçãodos pensadores antigos.

O aparecimento de estudiosos dos costumes, comoHenry de Bracton na Inglaterra e Beaumanoir na França,indicava mais do que um novo interesse teórico. Eles con-templavam o direito costumeiro, isto é, a variedade, a partirdo ponto de vista da unidade política e legal, a unidade doreino. Eram, em geral, profissionais treinados no direito ro-mano e recrutados para o serviço da Coroa. Quando Bractonescrevia o De legibus et consuetudinibus Angliae, entre 1220e 1230, o poder já estava centralizado, na Inglaterra. A ques-tão não era, mais, a afirmação da supremacia real. O juristainglês manteve a concepção do príncipe como subordinado àlei (lex facit regem): havia uma definição legal das funções eda autoridade reais, e, embora o rei não tivesse par no seureino, seu poder era constitucionalmente limitado. Havia entrelei e rei uma relação de mútua dependência: “atribua o reià lei”, escrevia Bracton, “aquilo que a lei lhe atribui, a saber,dominação e poder”.2

Para governar de modo reto, nos tempos de paz e deguerra, escrevia o jurista no início de seu livro, o rei necessi-tava de duas coisas, “a saber, armas e leis”. Leis, para ele,

1 BEAUMANOIR, Philippe de. Coutumes de Beauvaisis. Paris: J. Picard, 1970.v. 2, p. 1283.

2 No original: “attribuat rex legi, quod lex attribuit ei, videlicet dominationemet potestatem”. In: BRACTON, Henry de. De legibus et consuetudinibusAngliae. Ed. George E. Woodbine. New Haven: Yale University Press,1922. v. II, p. 33.

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eram não somente as normas escritas, mas também os cos-tumes: “Nela torna-se direito tudo aquilo que vem do não-escrito e que o uso comprovou”.3 O costume era entendidocomo uma espécie de “segunda natureza”, razão pela qualtinha força de lei. O costume, porém, seria corretamente cha-mado lei quando aprovado pelo consenso dos poderes doEstado ou tivesse sido anteriormente definido como justo pelopríncipe. Essa ressalva estabelecia uma relação bipolar en-tre a função de governo e a “base” social. O uso era a fonte dalei, mas a lei era a norma reconhecida como tal pelas institui-ções de governo (rei publicae). Hobbes desequilibraria aquelarelação bipolar, pondo toda a ênfase no reconhecimento comomarca da soberania.

A ênfase na legalidade fez da obra de Henry de Bractonuma referência fácil para o liberalismo e, mais geralmente,para o pensamento constitucionalista.4 O que interessa res-saltar neste momento era, no entanto, a idéia de unidadepolítica em contraste com a diversidade dos costumes. Usosdiferentes ganhavam um caráter comum como leges Anglica-nae. O elemento unificador era a instituição. Uma única or-dem jurídica englobava a Coroa, as funções públicas e oscostumes.

Também na França, no século XIII, a reflexão sobre odireito costumeiro acompanhara a afirmação do poder cen-tral. A Coroa não se opunha ao costume: continuava arespeitá-lo. Normas locais ainda seriam mantidas em vigordurante séculos. Mas a corte real iria assumindo, com am-plitude crescente, o papel de última instância judicial e, quan-do necessário, o de fonte primária da lei. Um dos aspectos

3 “In ea quidem ex non scripto ius venit quod usus comprobavit”. Ibid.,p. 19.

4 Locke mencionava o jurista medieval no capítulo 19 (“Da dissolução dogoverno”) do Segundo tratado sobre o governo, ao discutir as circuns-tâncias que justificavam a resistência ao governo.

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mais importantes do trabalho de Beaumanoir foi o examedas competências.

No condado de Clermont, onde ele era juiz, os senhoresfeudais tinham a jurisdição imediata. Acima desse nível es-tava a justiça do conde. Em vários casos podia-se passar donível local ao do condado: apelo por falta de direito, por falsojulgamento, por petição de um nobre, por se tratar de assun-to de interesse do rei, do conde ou do próprio juiz ou por setratar de questões relativas a tréguas.5 A jurisdição final eraa do rei, pois era “soberano acima de todos”.6 Morral lembraque é importante notar o uso feito por Beaumanoir da noçãode soberania: não se tratava ainda de uma designação exclu-siva da autoridade pública,7 como ocorreria mais tarde coma consolidação do Estado moderno, e sim de uma jurisdiçãoexercida nos moldes feudais e amparada tanto pelo direitocanônico quanto pelo costumeiro.8

Tanto na França quanto na Inglaterra, no século XIII, ocontrole real sobre as Igrejas do território já constituía a nor-ma, até porque o papa precisava do apoio dos reis locais parasustentar sua luta contra o império. Mesmo a taxação doclero local pelos monarcas era geralmente consentida pelopapa, apesar das disposições canônicas em contrário. A ex-tensão dos poderes também era diversa: tanto o papado quan-to o império tinham pretensões de domínio universal. Nesse

5 Cf. BEAUMANOIR, op. cit., §§ 295-308, p. 146-52.6 No original: “Voirs est que li rois est souverains par dessus tous et a de

son droit la general garde de tou son royaume, par quoi il puet fere teusestablissemens comme il li plest pour le commun pourfit, et ce qu’il establistdoit estree tenu [...]. Et pour ce qu’il est souverains par desseur tous, nousle nommons quant nous parlons d’aucune souveraineté qui a li appartient.”In: BEAUMANOIR, op. cit., § 1043, p. 23-4.

7 Cf. MORRAL, John D. Political thought in medieval times. Toronto: Medie-val Academy of America, 1980. p. 61.

8 Segundo Beaumanoir, “en tou les lieu la ou li rois n’est pas nommés,nous entendons de ceus qui tienent en baronie, car chascuns barons estsouverain en sa baronie”. In: BEAUMANOIR, op. cit., p. 23.

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ponto, não havia conflito imediato com os poderes locais (ba-rões, instâncias judiciais etc.) nem com os nascentes Esta-dos modernos.9 Um conflito aberto entre o poder real e osumo pontífice só ocorreria no final do século XIII, quandoFilipe, o Belo, rei da França, decidiu taxar o clero local àrevelia do bispo de Roma.

Ao longo do século XIII, ainda, o papado havia se con-centrado na defesa de uma política de centralização por meioda extensão de sua jurisdição, desenvolvendo-se amplamen-te como instituição legal e governamental. A longa tradiçãode pontífices com forte formação jurídica apontava para atransformação do papado num ofício legal sustentado empretensões monárquicas, no qual a cúria funcionava como asua corte: exercia funções executivas, financeiras, adminis-trativas e judiciais e já constituía, desde o século XII, prova-velmente o corpo governamental mais desenvolvido daEuropa.10 A partir do século XIII, o papado assegurou o direi-to de escolher os ocupantes dos cargos eclesiásticos maiselevados – prerrogativa antes compartilhada com o impera-dor e com os grandes senhores locais –, o que tornou aindamais eficaz o controle de Roma sobre o clero local.11

9 E, apesar das tentativas de controle sobre poderes reais por meio davassalagem papal, como por exemplo sobre o reino da Sicília, nominal-mente feudo do papado, a tentativa pontifícia de imiscuir-se nos assun-tos temporais raramente floresceu entre os governantes locais.

10 Um texto bastante instigante a respeito do desenvolvimento do papadocomo instituição de governo pode ser encontrado em: CANNING, J. A statelike any other? The fourteenth-century Papal Patrimony through theeyes of Roman Law Jurists. In: WODD, Diana (Ed.). The church andsovereignty (c. 590-1918) : essays in honour of Michael Wilks. Oxford:Basil Blackwell, 1991.

11 A partir de Clemente V (1304-14), também a concessão de patriarca-dos, arcebispados e bispados passou a ser direito exclusivo da SantaSé. Essa crescente intervenção pontifícia em assuntos temporais con-duziria a Igreja ao Grande Cisma, no qual o papado seria acusado deobscurecer a sua missão espiritual.

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Assim, quando se fala na emergência de Estados mo-dernos no final da Idade Média, o que se pretende afirmar é osurgimento de comunidades politicamente organizadas emterritórios específicos e definidos, dentro dos quais os gover-nos ou governantes haviam desenvolvido um controlejurisdicional interno e externo com maior ou menor grau deindependência, que variava de acordo com os arranjos locaise com a relação – nem sempre de completa submissão – decada uma dessas unidades com os dois “poderes universais”da Europa ocidental.

No Estado moderno, tal como definido por Hobbes, aautoridade soberana teria, em seu território, o monopólio dafeitura da lei e todos os cidadãos deveriam se sujeitar a ela.Mas até que se chegasse a essa formulação, as comunidadespolíticas que então emergiam teriam de se enfrentar com ins-tituições e diferentes esferas de governo que reivindicavamjurisdições competentes entre si (por exemplo, a feudal e aeclesiástica). O completo controle e subordinação das váriasesferas jurisdicionais ao poder secular era ainda incipiente.A mudança de rumo e a afirmação desse novo tipo de poder,entretanto, se tornavam a cada dia mais visíveis.

Também o sentimento de pertencer a um povo, com-ponente fundamental na noção de Estado moderno, na-quele sentido definido por Strayer, crescia com rapidez. Noséculo XIII, tanto a Universidade de Bolonha quanto a deParis passaram a ser consideradas instituições nacionais,fomentando ainda mais os laços de lealdade à Coroa. Ull-mann chama a atenção para um fato significativo: duranteboa parte da Idade Média, o imperador foi chamado deImperator romanorum; também os reis medievais eram as-sociados ao seu povo (Rex francorum, rex anglorum etc.). Apartir de fins do século XIII, início do XIV, essa denomina-ção – que entre os bispos e cardeais já remontava ao sécu-lo VII – passou a referir-se não mais ao povo sobre o qual a

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jurisdição era exercida, e sim ao território: rex angliae, rexfranciae etc.12

As leis e sua ordenação tornavam-se também matériaespecífica de um povo sobre determinado território, como podeser percebido no título da obra de Henry de Bracton. Essatransformação conduzia a uma negação da idéia de “impériouniversal”, noção fundante para a organização da sociedademedieval até então: “ser inglês” ou “ser francês” passava afazer sentido. Outro passo essencial para a construção deuma clara noção de poder político secular fora a autonomiacrescente da esfera da natureza. Para isso contribuíram nãoapenas os desenvolvimentos filosóficos, como aquele opera-do por Tomás de Aquino, mas também os avanços na juris-prudência, agora constituída de vários ramos. O estudo dalei canônica, por exemplo, era essencial tanto para elaboraras compilações legais oferecidas pelos decretos papais cadavez mais numerosos, como também para sofisticar os argu-mentos políticos e jurídicos das várias pretensões em con-flito.

Entre as inúmeras noções surgidas desses desenvolvi-mentos, pode-se apontar a de um Estado secular, produtoda natureza política do homem. O próprio conceito de natu-reza, recorda Canning, se alterava: passava a incluir a idéiade uma esfera autônoma, dotada de capacidade de desenvol-vimento, independente de Deus e de sua intervenção, mes-mo admitindo-se ainda ter sido Deus o criador do mundonatural. Para fins práticos, a vida política podia agora seranalisada dentro de uma dimensão civil puramente natu-ral.13 O reconhecimento de um âmbito político natural facili-

12 Cf. ULLMANN, W. Zur Entwicklung des Souveranitätsbegriffes imSpätmittelalter. In: Scholarship and politics in the Middle Ages. London:Variourom Reprints, 1978. p. 23.

13 Cf. CANNING, J. P. Introduction: politics, institutions, ideas. In: BURNS, op.cit., 1991, esp. p. 355-66.

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tava, entre outras coisas, uma distinção mais clara entreEcclesia – identificada cada vez mais com a esfera puramenteespiritual – e os poderes temporais, cuja natureza era essen-cialmente secular.

Falar numa jurisdição eclesiástica, portanto, só faziasentido quando a Igreja era entendida como instituição go-vernamental. Contudo, a adesão crescente à crença de que aEcclesia constituía um corpo místico dos fiéis unidos em co-munhão espiritual poria cada vez mais em xeque sua reivin-dicação de uma plenitudo potestatis no âmbito temporal.Marsílio de Pádua, por exemplo, afirmaria que apenas o “le-gislador humano” podia ter jurisdição em sentido pleno. Tam-bém contribuiriam para a compreensão da Igreja como corpounicamente espiritual movimentos religiosos como os dosfranciscanos, que defendiam a pobreza evangélica.14 Não sedeve, contudo, tirar conclusões precipitadas sobre a secula-rização do mundo em fins da Idade Média, alerta Canning.Idéias como a naturalização do poder político secular convi-viam e coexistiam com a noção de uma fonte divina do poder:alcançar o mundo divino para seus súditos, tal como haviaescrito Tomás de Aquino, continuava a ser um dever do go-vernante cristão.15

Foi ainda dos juristas, canonistas e civilistas, que vie-ram algumas das mais importantes fórmulas que sustenta-riam as pretensões de domínio e jurisdição territorial dasnascentes monarquias européias. No início do século XIII, ocanonista Azo já havia desenvolvido a conhecida máxima deque o rex in regno suo est imperator regni sui, fornecendoassim uma base jurídica à reivindicação de reconhecimentoda autoridade máxima do rei sobre seu território. A elabora-ção legal dessa autoridade real ganhou contornos ainda maisclaros com a fórmula canônica do rex qui superiorem non

14 Para um bom resumo desse assunto, cf. COLEMAN, Janet. Property andpoverty. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 607-48.

15 Cf. CANNING. Introduction. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 362-3.

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recognoscit, incorporada pelo papa Inocêncio III na decretalPer venerabilem16 (1202) e utilizada na defesa do rei da Fran-ça Filipe Augusto contra o imperador.

A combinação desses dois princípios, desenvolvida pe-los juristas franceses e napolitanos, passou a constituir onúcleo legal para a defesa da tese de que o rex era a autorida-de máxima em seu território.17 Exatamente porque o rei nadapodia desejar que não fosse racional e útil – dado que o fimúltimo de sua função consistia em assegurar o bem comumda comunidade –, sua vontade podia, em caso de necessida-de ou emergência, sobrepor-se à lei, como já afirmava a anti-ga máxima de Ulpiano (lex regia), constante também no Di-gesto, de Justiniano, e citada por Tomás de Aquino: Quodprincipi placuit, legis habet vigorem. A figura do rei ia lenta-mente sendo igualada à do princeps dos juristas romanos,fazendo emergir uma superioritas real, componente impor-tante da noção de soberania que então se construía.

Na França, por exemplo, a identificação do princepsperfeito com os sucessores de São Luís constituiu um ele-mento fundamental para a “sacralização” da figura do rex.Os publicistas reais e os defensores da Coroa se esforçarampara ligar – com sucesso – a idéia da “perfeição” do rei àemergente nação francesa. Também a desobediência ao rei,ou mesmo a insubmissão, passava a ser reprimida com cas-tigos cada vez menos morais ou espirituais, tornando-se maise mais um crime a ser punido neste mundo: passava a cons-

16 Na bula papal, Inocêncio III afirma: “quum rex [Francorum] ipsesuperiorem in temporalibus minime recognoscit” (In: Per venerabilem,X.4.17.13). Cf. tradução brasileira do documento em SOUZA & BARBOSA,op. cit., p. 134.

17 Bartolo de Sassoferrato, por exemplo, aplicaria esse último princípio àscidades-repúblicas italianas, as quais não reconheciam superior: “civitasquae superiorem non recognoscit”. E com isso concluiria: “civitas sibiprinceps”. Cf. CANNING, J. P. Law, sovereignty and corporation theory,1300-1450. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 471, nota 58.

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tituir o que os juristas iriam denominar “crime de lesa-ma-jestade”. O monarca francês passava a desfrutar agora demajestas. Nesse processo, concretizava-se também a idéiade que, em matéria de lei, não havia direito de apelação alémdo monarca.18

A consolidação dessa pessoa pública nos moldes agorarequeridos obrigava os juristas e pensadores políticos do pe-ríodo a rever os vínculos e as obrigações do monarca. Umdesses contextos óbvios aos quais se podia ligar a figura dorei era o da Coroa, que desde de meados do século XII passa-ra a ser associada ao reino como um todo. A diferenciaçãoentre as terras privadas do rei e aquelas do fisco (ou Coroa),por exemplo, passou a abranger todos aqueles bens, poderese direitos reais herdados, e devia ser passada em seu conjun-to para a próxima geração. Aos olhos dos juristas, a Coroaconstituía um conjunto de prerrogativas do rei – seus direi-tos jurisdicionais, poderes financeiros, assim como suas ter-ras e riquezas –, as quais deveriam ser mantidas intactascontra as reivindicações de qualquer outra parte ou mes-mo contra um possível excesso de liberalidade por parte dopróprio monarca.

Conta Dunbabin que uma lenda surgida por volta de1290 na França dizia terem se reunido em Montpellier osreis da cristandade para declarar que a prescrição contradireitos reais deveria ser declarada inválida. Também quais-quer alienações prévias feitas por governantes que tivessemcausado prejuízos aos direitos reais e às terras da Coroa de-

18 Embora a imagem do rei como autoridade suprema estivesse lentamen-te ganhando terreno, alerta Dunbabin, estava ainda bastante longe dedeter a força de que dispunha o soberano hobbesiano. Coagir nobres ebarões a mando do rei, por exemplo, poucas vezes era possível – e nemmesmo era usual. Em geral, o rei era obrigado a negociar em termosmuito menos favoráveis do que aqueles sugeridos pelos discursos deseus juristas. Cf. DUNBABIN, Jean. Government. In: BURNS, op. cit., 1991,p. 497.

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viam ser, do mesmo modo, anuladas. Verdadeira ou não, alenda oferecia um fundamento sobre o qual construir umanoção distintiva do poder real: o princípio imperial romanoda inalienabilidade da Coroa e seus bens.19 A associaçãodesses poderes reais àquela noção do que viria a ser chama-do “domínio público” servia assim para reforçar e consolidara estrutura dos emergentes Estados nacionais.

A aceitação do caráter público da autoridade real justi-ficava ainda a necessidade de constituição de uma burocra-cia real, capaz de auxiliar e dar suporte às decisões domonarca em cada estágio do processo político. Ou seja, fica-va claro que para governar bem (taxar, julgar, legislar etc.) osreis precisavam da ajuda de expertos. Pôr em relevo a utili-dade de governar com conselheiros, ministros e outras for-mas de compartilhamento do poder não apenas contribuíapara maior eficiência das atividades governamentais, comotambém era útil ainda para tornar constitucionais certospoderes monárquicos: determinadas regras de organizaçãoda vida coletiva deixavam de ser vistas como prerrogativasda pessoa do dominador e passavam a ser entendidas comoum atributo do cargo e, mais tarde, da instituição.

Também avançava velozmente, desde pelo menos mea-dos do século XII, a noção de que a autoridade última do rexrepousava no consentimento do povo, e não na figura doimperador. Os costumes e as instituições, expressões do con-sentimento popular, não requeriam autorização superior. Eo exercício desse consentimento pelo povo podia levar atémesmo ao não-reconhecimento de um superior, como ar-gumentaria Bartolo de Sassoferrato. Sassoferrato tinha emmente não o caso do rei inglês, mas a defesa da autonomiadas cidades-repúblicas italianas, expressa na sua conhecida

19 Quanto mais os juristas exaltavam os atributos legais da Coroa, alertaDunbabin, mais eles os subordinavam a ela, processo mais evidente nocaso inglês. Cf. DUNBABIN, ibid., p. 501.

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fórmula civitas quae superiorem non recognoscit. A emergên-cia de uma noção mais complexa tanto da cidade quanto doreino acabava fornecendo elementos para o desenvolvimentode uma teoria da corporação, cujas origens remontavam àmetáfora do corpo como organismo auto-suficiente formadopor seus membros.

Nessa perspectiva, o poder político secular – inicialmentea civitas, mas depois também os emergentes Estadosterritoriais – organizado em suas diferentes formas passavaa constituir um corpo composto de uma pluralidade de sereshumanos e, ao mesmo tempo, uma entidade unitária abstra-ta perceptível apenas por meio do intelecto. Esses compo-nentes humanos não constituíam meros indivíduos isolados,singulares, e sim homens corporados: isto é, homens unidosde uma maneira específica num todo corporativo – uma ima-gem que mais tarde ilustraria uma das mais conhecidas re-presentações do Estado moderno, o Leviathan hobbesiano.O dado novo, portanto, era o de que a civitas ou o reinoterritorialmente delimitado passavam a ser identificados auma entidade abstrata, distinta dos seus membros.

De um lado, enquanto corporação, essa entidade agiapor meio de seus membros físicos, os homens como tais. Deoutro lado, ela era tomada como imortal e, nesse sentido, deum modo distinto de seus componentes humanos, o que lhepermitia ser concebida como uma persona legal.20 A projeçãodessa ficção jurídica aos nascentes Estados territoriais, con-cebidos como entidades corporativas abstratas, permitiriadotá-los de uma personalidade legal. Ou seja, essas unida-des teritoriais, enquanto pessoas propriamente jurídicas,podiam ter existência legal e capacidades distintas daquelasde seus membros. Baldo de Ubaldis, por exemplo, associouessa entidade abstrata, capaz de agir e consentir por meio de

20 Cf. CANNING, J. P. Law, sovereignty and corporation theory, 1300-1450.In: BURNS, op. cit., 1991, p. 474-5.

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seus membros mortais organizados numa estrutura de con-selhos e funcionários eleitos, ao regnum, o qual podia seridentificado aos seus membros também na forma de umauniversitas.

Essa corporação perene instituía um ofício real imortale abstrato (ou uma dignitas) operado por cada indivíduo en-quanto governante. Nos termos de Baldo:

E a pessoa do rei é órgão e instrumento daquela pessoaintelectiva e pública; e a pessoa intelectiva e pública éaquela que de modo principal fundamenta a execução,porque maior atenção é conferida ao vigor do principal doque ao vigor do órgão.21

Ao rei passava a ser concedido assim agir em nome dossúditos, do ofício real e, em última instância, do próprio rei-no. Marsílio, por exemplo, iria aplicar essa idéia à sua noçãode “universitas civium”, que constituía para ele uma entidadecorporativa diferente dos cidadãos singulares.

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A consolidação da autoridade real constituía, dessaperspectiva, um processo tanto de força quanto de legitimação.De um lado, o rei mobilizava recursos militares e um discur-so jurídico adequado às suas pretensões. De outro, haviauma recomposição do quadro das lealdades, um dos fatores

21 “Et persona regis est organum et instrumentum illius personaeintellectualis et publicae; et illa persona intellectualis et publica est illaquae principaliter fundat actus, quia magis attenditur virtus principalisquam virtus organica” (Consilia, I.3.59, 1490, fol. 109v). In: CANNING, J.The political thought of Baldus de Ubaldis. Cambridge: University Press,1987. p. 216 e p. 268.

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fundamentais apontados por Strayer. Esses elementos, a for-ça, a autoridade legitimada internamente e o novo sentido delealdade se manifestaram plenamente no conflito entre FilipeIV, o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII.22 A reuniãodesses fatores torna esse caso especialmente significativoquando se pretende examinar a constituição das unidadesde poder características do mundo moderno.

A controvérsia entre Filipe, o Belo, e Bonifácio VIII foideflagrada com a taxação do clero francês pelo rei, contesta-da pelo papa na bula Clericis laicos, em 1296. O papa foiderrotado nessa disputa. Filipe acabou usando a força con-tra ele, mas esse não era o aspecto politicamente mais im-portante. Mais significativo foi o apoio obtido pelo rei não sóentre os súditos civis, mas também entre o clero. Os padresacabaram assumindo o comportamento de padres francesese aceitaram a tributação como justa. A defesa da posiçãopapal, no entanto, enriqueceria a literatura política. A sus-tentação da supremacia papal por Egídio Romano constituiuo último grande esforço de atribuir ao papa o controle dasduas espadas, a temporal e a espiritual.

A origem do confronto, recordam Souza e Barbosa, re-montava à disputa, que já ocorria desde 1294, entre Filipe IVe o rei inglês Eduardo I pelo controle dos territórios da Gas-conha, Flandres e outras regiões nominalmente sob a suse-rania do rei francês. Para financiar a guerra, os monarcaspassaram a exigir do clero o pagamento de imposto à Coroa,do qual estes eram isentos, de acordo com um cânone do IVConcílio de Latrão (1215). O pontífice inicialmente ignorou ofato, mas as constantes reclamações do clero francês leva-ram-no a promulgar, em 1296, a bula Clericis laicos, na qualproibia os prelados e as pessoas eclesiásticas – religiosas ou

22 Para uma análise pormenorizada do conflito, cf. PASSOS, J. A. M. B. Boni-fácio VIII e Filipe o Belo, de França, 1972. Tese (Doutorado) – Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

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seculares – de pagar qualquer tipo de contribuição ao rei sema expressa autorização da Santa Sé, sob pena de excomu-nhão.

O documento vedava ainda aos príncipes e seus auxi-liares qualquer tipo de taxação sobre o clero e suas proprie-dades. “Se esse procedimento continuasse a ocorrer”,comentam Souza e Barbosa, “o Papado ficaria numa situa-ção financeira delicada, pois seus projetos e obras pias denatureza diversa não poderiam ser levados a bom termo”.23

De fato, do ponto de vista do pontífice, usar os impostos cle-ricais para financiar uma guerra entre dois governantes cris-tãos era escandaloso: no raciocínio papal, esse dinheiropoderia ser, sem dúvida, mais bem empregado se fosse apli-cado numa Cruzada para a recuperação da Terra Santa.

Filipe IV, por sua vez, mais interessado na conservaçãodas terras francesas, respondeu ao papa proibindo a saídade qualquer soma em dinheiro e metais preciosos, como ouroe prata, do território franco, medida que causou enormesperdas para as rendas papais. Também expulsou os ban-queiros italianos sediados em seu reino, os quais eram res-ponsáveis pela arrecadação e transferência do óbolo de SãoPedro para Roma: com tais decisões, Filipe havia embargadoos dízimos cobrados pela Igreja de Roma e os benefícios ecle-siásticos existentes. Sucederam-se então avanços e recuosem ambas as posições. Filipe também mobilizou para suacausa importantes juristas franceses, especialistas em direi-to romano, e publicistas do reino, que trataram de incendiara disputa, produzindo documentos e panfletos anônimos emdefesa do monarca.24

23 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 151 et seq.24 Sobre o tema, cf. FINKE, Heinrich. Aus den Tagen Bonifaz VIII. Funde und

Forschungen. Münster, Druck und Verlag der AschendorffschenBuchhandlung, 1902. Reimpr. Roma: Ediz. Anastatica: Bardi Editore,1964.

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Esses juristas e assessores reais, em grande parte oriun-dos da burguesia local emergente, enfatizam Souza e Barbo-sa, tinham especial interesse na centralização do poder políticonas mãos do monarca, em razão de seus interesses econômi-cos, voltados sobretudo para a produção manufatureira, parao comércio e para as finanças. Pois, para essa camada, anobreza feudal e o clero constituíam graves entraves à ex-pansão de suas atividades.

Um dos caminhos para essa centralização do poder erasobrepor juridicamente os interesses nacionais aos departiculares tomados isoladamente ou em grupo. Nou-tras palavras, o direito do reino devia estar acima tantodos costumes e direitos feudais quanto do canônico. Esseprocesso começou com Filipe Augusto (1180-223), a quemInocêncio III (1198-1216) reconheceu, de acordo com oque o próprio monarca tinha afirmado, que em seu reinonão havia ninguém com autoridade superior à sua. SãoLuís (1226-70) prosseguiu na obra centralizadora de seuavô.25

A base principal da argumentação dos juristas france-ses, apoiados sobretudo no Código de Justiniano, e na Éticae na Política de Aristóteles, assentava-se no princípio, enun-ciado no Digesto, segundo o qual o rei devia ser princeps,fonte e origem de toda lei (Quod principi placuit, legis habetvigorem) e, como chefe da comunidade política, dispunha dosmeios apropriados para proteger o interesse, a honra, o beme a liberdade de todos os seus súditos. Dado que o poder realprovinha diretamente de Deus, sem o intermédio da Igreja,sustentavam os doutos com base no modelo do governanteteocrático romano, não podia haver limite ao poder do rexnem no âmbito judiciário nem em quaisquer outras questõesligadas ao governo das coisas temporais.

Como esse princípio havia sido aplicado até então ape-nas aos imperadores, os juristas franceses se esforçavam em

25 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 152.

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desvincular a França de uma subordinação ao Sacro ImpérioRomano Germânico. Ao mesmo tempo, adotaram o postula-do, agora já popular, de que o “rex in regno suo imperatorest”. Desse modo, o rei era colocado no vértice da pirâmidede poder existente no reino e, abaixo dele, estavam os barõese a alta nobreza local, também soberana em seus domínioscomo o rei no reino, tal como havia notado Beaumanoir trêsdécadas antes.

Uma outra frente de batalha adotada pelos propagan-distas e estudiosos da corte residia na denúncia de que opontífice procurava estender sua esfera de atuação a áreassobre as quais não tinha competência nem autoridade legíti-ma: aos assuntos seculares. Era preciso estabelecer uma claradelimitação da esfera específica de atuação do poder ecle-siástico, ao qual devia caber somente as atividades religio-sas. Para isso, uma das táticas amplamente utilizadas pelosdefensores do reino consistiu em ressaltar as característicasfundamentalmente terrenas, profanas e legais do poder se-cular, como ilustrava bem um documento anônimo da épo-ca, a Disputatio inter clericum et militem. O texto, segundoLewis, teria surgido na corte real francesa em 1296 ou 1297,como reação à bula papal Clericis laicos.26

Num dos diálogos, o religioso argumentava que o pon-tífice teria o direito de julgar questões acerca do pecado e da

26 Uma tradução acessível e cuidadosa do diálogo – que consiste numadisputa entre um soldado e um clérigo sobre o direito do rei francês detaxar o clero – pode ser encontrada em: LEWIS, Ewart. Medieval politicalideas. London: Routledge & Kegan Paul, 1954. v. 2, p. 567-4. Umaversão parcial traduzida para o português está disponível em SOUZA &BARBOSA, op. cit., p. 181-4. O texto original pode ser encontrado na ver-são – atribuída a Guilherme de Ockham – editada por GOLDAST, Melchior(Ed.). Monarchia sancti romani imperii. Reimpr. da ed. frankfurtiana de1614. Graz: Akademische Druck u. Verlaganstalt, 1960. v. 1, p. 13-8.Antes disso, há notícias do texto na edição de SACHARD, Simon. Dejurisdictione autoritate et praeeminentia imperiali ac potestate ecclesias-tica. Basel, 1566. p. 677-87.

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injustiça, por terem elas caráter teológico. O soldado rebatiaa afirmação insistindo na diferenciação das funções sacerdo-tais e temporais com o seguinte argumento: o fato de os sa-cerdotes possuírem a cognitio de peccato, dizia ele, não lhesdava competência pleno iure para proferir um iudicium acer-ca do que era justo e injusto. Por isso, os clérigos deveriamrestringir seu âmbito de atuação exclusivamente às trans-gressões ligadas aos preceitos morais e religiosos encontra-dos nos Dez Mandamentos. Ressaltava ainda, com base nasEscrituras, a anterioridade do reino em relação à Igreja, e ahumanidade de Cristo, cujo poder, enquanto homem, “nãoera deste mundo”.

E continuava o soldado adiante: como Pedro e seus su-cessores não haviam recebido poder ou jurisdição no âmbitosecular, os papas, ao se intrometerem em assuntos exclusi-vamente temporais, como a taxação dos súditos pelo rei, es-tariam cometendo um grave abuso e causando dano a todosos fiéis. O rei, argumentava o soldado, por governar paratodos dentro de seu reino, tinha a obrigação de proteger tam-bém o clero das ameaças e ataques de terceiros. Por isso,nada mais justo do que eles também contribuírem para adefesa do reino e de seus habitantes pagando impostos, comofazia o povo.27 O clero era assim igualado aos demais mem-bros da comunidade política e subordinado ao poder secu-lar, a quem cabia a guarda do reino e de seus súditos.28

Estabelecer taxas e cobrar impostos constituía umaprerrogativa do rei em território franco já desde o início do

27 Cf. SOUZA & BARBOSA, Documento 40, op. cit., p. 183.28 Avaliando o documento, Souza & Barbosa escrevem: “De fato, é o Rei e

as leges humanae que determinam o que é justo e injusto, de modo queapenas ele, monarca, soberano, legislador e juiz, pode em seu reinoestatuí-las e aplicá-las de acordo com as circunstâncias e necessidadesque se apresentarem. Compete-lhe ainda o direito de modificá-las ouaté mesmo revogá-las se for o caso, e todos os súditos, eclesiásticos ouleigos, têm o dever de respeitá-las”. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 156.

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século XIII.29 Esse direito o monarca o tinha em razão datuitio regni, isto é, da responsabilidade de assegurar os “inte-resses do reino” e sua defesa. Tais “necessidades” eram defi-nidas exclusivamente pelo monarca. Ullmann chama atençãopara o fato de que o princípio da utilitas publica tendia aadquirir, na França, um caráter monárquico que, na Ingla-terra, caberia à Common Law, e não ao rei. Esse traço cons-titucional era, segundo ele, um dos aspectos relevantes quediferenciariam a teocracia real francesa – na qual o vínculojurídico entre o monarca e a comunidade era tênue – da rea-leza feudal inglesa, que se caracterizava por uma estreitacolaboração entre o rei e os barões locais.30

Ao longo da querela houve avanços e recuos por partetanto do papa quanto do rei: em dezembro de 1297, atenden-do a um pedido do clero francês, que solicitava ao pontíficeautorização para pagar auxílio ao monarca, Bonifácio VIIIcedeu e permitiu então o pagamento de uma certa quantiaao rei, já que este se encontrava em disputa aberta com o reiinglês pela defesa do território franco. Dentro da Igreja, en-

29 A sustentação jurídica dessa prerrogativa era fornecida sobretudo peloDigesto, segundo o qual o estabelecimento de leis fiscais constituía umdireito do rei.

30 Ullmann mostra que o desenvolvimento constitucional francês diferiufundamentalmente do inglês: enquanto no primeiro caso o acento re-caía na realeza teocrática, no segundo a tônica estava na nobreza feu-dal: “Em Inglaterra, forçou-se o rei a se reduzir de fato ao seu marcofeudal, o que trouxe como conseqüência a cooperação no funcionamen-to do governo no que diz respeito aos ‘negotia regni’: este esforço con-junto constituía a realização prática do contratualismo feudal. Sobreesta base, o desenvolvimento posterior colocou a comunidade do reinoem primeiro plano, como órgão que assimilaria facilmente a idéia derepresentação sem repercussões violentas”. Como o direito era resulta-do dessa atividade conjunta, ele era comum ao rei e à comunidade doreino. Esse modelo impedia a instauração de qualquer forma “absolu-tista” de governo, como ocorreria na França. Cf. ULLMANN, W. Principiosde gobierno y política en la Edad Media. Madrid: Alianza Editorial, 1985.p. 210-1.

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tretanto, surgiam dissidências e disputas, principalmenteentre a família do pontífice, os Gaetani, e a de cardeais im-portantes, os irmãos Colonna, que acusavam o sumo sacer-dote de favorecimento ilícito aos seus familiares, denúnciasessas com ampla sustentação nos fatos. A cúpula da Igreja,que apoiava Bonifácio VIII, começou a rachar internamente,chegando à insurgência por parte de alguns dos membros dacúria romana contra o papa.

Filipe IV, por sua vez, como precisasse cada vez maisde dinheiro para as despesas de guerra, aumentou progres-sivamente a taxa cobrada dos clérigos sem a autorizaçãopapal, violando o acordo com o bispo de Roma, que decidiuentão revogar os privilégios fiscais concedidos à Coroa fran-cesa, proibindo o clero de pagar-lhe qualquer imposto. Con-vocou ainda os prelados de toda a cristandade para umareunião na qual se discutiria o assunto. Filipe IV, em respos-ta, proibiu os religiosos, em abril de 1302, de se ausentar doreino sem a expressa autorização real e incitou a opiniãopública francesa contra o papa e sua pretensão de jurisdiçãotemporal sobre o rei e sobre o povo francês. O conflito deinteresses e de posições irrompia agora com clareza, gerandouma literatura que procurava sustentar as duas pretensõesem conflito.

Entre os vários textos produzidos, dois são de especialsignificado para uma história do pensamento político: o Deecclesiastica potestate, escrito em 1302 por Egídio Romano,em defesa do sumo pontífice e da idéia de “monarquia pa-pal”; e o De regia potestate et papali, elaborado no fim domesmo ano por João Quidort, em defesa do rei francês e deuma monarquia de caráter constitucional, como se verá aseguir.

A última disputa entre os dois protagonistas foi prova-velmente a mais grave, mas também a mais significativa: Fi-lipe acusou o bispo francês Bernardo Saisset, partidário do

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papa, de traição e crime de lesa-mejestade e levou-o a julga-mento diante do tribunal régio, que o condenou e ordenousua prisão. A atitude do monarca era inaceitável para o pa-pado, já que segundo as leis canônicas um bispo não podiaser julgado numa corte leiga. Em resposta ao desafio real,Bonifácio VIII editou, em dezembro de 1302, a bula Auscultafili charissime, na qual advogava ser-lhe o rei franco subordi-nado e não dispor de autoridade para julgar pessoas ecle-siásticas.

Consta que o jurista real Pierre Flotte, ao receber a bula,destruiu-a e falsificou um novo documento, Deum time, noqual se afirmava explicitamente deter o pontífice jurisdiçãotemporal sobre o rei e sobre todos os súditos franceses. Flottee seus colegas, entre os quais o assessor do rei, Guilherme deNogaret, ordenaram aos funcionários da Coroa a divulgaçãoda falsa “bula” em todo o território, com o objetivo de voltar aopinião pública francesa contra o sumo pontífice. A querelaabarcava, de fato, duas visões conflitantes: para o rei fran-cês, não era possível exercer um controle adequado sobreseu território se não lhe fosse lícito, num caso de emergêncianacional, taxar seu clero ou levar um bispo local a julgamen-to. Para o papa, a autonomia da Igreja não poderia ser pre-servada se os governantes leigos pudessem taxar o clero oujulgar bispos em cortes reais quando bem entendessem.

Os conselheiros do rei reclamaram, pouco depois, umconcílio geral da Igreja, a fim de depor o bispo de Roma porheresia. O sumo sacerdote refugiou-se então no castelo deAnagni. Emissários do rei francês, sob o comando de Nogaret,foram enviados à fortaleza com ordens de deter o papa: eraagosto de 1303.31 O desfecho é conhecido e ilustra bem avitória das armas. Preso o pontífice, o apologista real, Pierre

31 Cf. MIETHKE, Jürgen. Der Weltanspruch des Papstes im späterenMittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 372 et seq.

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Flotte, respondendo aos protestos indignados de Bonifácio,teria dito: “O seu poder é verbal; o nosso, contudo, é real”.Dias depois, morria Bonifácio VIII, provavelmente em razãodos maus-tratos: começava a desmoronar o edifício construídopela política papal hierocrática. Sucedeu-o Benedito XI (1303-4), que faleceu logo em seguida. Diante da ameça de Filipe IVde proceder a um julgamento póstumo de Bonifácio no con-cílio geral, Clemente V (1304-14), o novo papa, anulou todasas medidas de seu predecessor contra o rei francês. Mas osfrutos dessa acirrada contenda haveriam de atravessar osséculos: nenhum escritor político podia mais ignorar a novaforça política que se afirmava na paisagem.

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A defesa da centralização do poder supremo nas mãosde um único governante constituía uma reivindicação que,sem dúvida, encontrava respaldo nos antigos textos pagãosagora disponíveis. Entretanto, uma das mais sólidas defesasda monarquia como a melhor forma de governo viria não deum defensor do reino, e sim de um árduo militante do parti-do eclesiástico: o canonista Egídio Romano. A obra de EgídioRomano, contudo, não constituía um elemento destoante napaisagem: era muito mais o resultado visível de um longoprocesso de consolidação e centralização do poder pontifício.A teoria egidiana, minuciosamente exposta em seu Sobre opoder eclesiástico,32 segundo a qual a Igreja subsumiria emsua plenitudo potestatis todos os poderes inferiores, seria

32 ROMANO, Egídio. Do poder eclesiástico (DPE). Ed. L. A. De Boni, Petrópolis:Vozes, 1989. As citações ao livro de Egídio Romano neste texto foramtodas retiradas dessa edição brasileira. Para consulta foi utilizada tam-bém a versão bilígüe (alemão-latim) produzida por R. Scholz.

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apropriada e amplamente adaptada aos interesses de umaformação política emergente, as monarquias absolutas euro-péias e seus defensores.33

A defesa da centralização do poder nas mãos de um únicogovernante não representava uma novidade, como já foi visto:os canonistas insistiam, desde pelo menos o século XII, queum corpo com duas cabeças constituía uma monstruosidade.E, embora o papado operasse teoricamente com o princípiogelasiano das duas espadas, alerta Watt, esse princípio dualista“era tão fundamentalmente condicionado por outro axioma, oda superioridade do poder espiritual, que acabava sendo, defato, substituído por uma visão unitária dos dois poderes”.Nessa lógica, continua Watt adiante, deixava de haver espaçopara uma autoridade leiga autônoma.34 E Egídio Romano ex-pressava com clareza essa concepção.

À primeira vista, escreve De Boni na introdução ao li-vro, Egídio Romano parece “reeditar” a antiga querela dasinvestiduras entre o papa e o imperador. Mas essa impres-são é enganosa, diz ele.

33 É curioso notar que o “espelho do príncipe” (De regimne principum) deEgídio Romano, escrito para o futuro rei francês, Filipe IV, o Belo, entre1277-9, quando o religioso trabalhou na corte real como preceptor doinfante, seria uma das obras – entre as do gênero – mais lidas e ampla-mente traduzidas de que se tem notícia, e haveria de inspirar inúmerospartidos em disputa. Miethke conta que dele restaram 284 manuscri-tos em latim, além de 78 manuscritos traduzidos para o vernáculo emdiversos idiomas. Mas não é nesse texto de juventude que se vai encon-trar a sua mais poderosa argumentação em favor da plenitude de poderdo papa em assuntos temporais, e sim no De ecclesiatica potestate,escrito em 1301-2. Deste seu texto, contabiliza Miethke, restaram ape-nas seis manuscritos. Cf. MIETHKE, op. cit., p. 373.

34 WATT, J. A. Spiritual and temporal powers. In: BURNS, op. cit., 1991, p.368 e 389. Também R. Stanka chama atenção para o fato de que areivindicação do controle das duas espadas por Bonifácio VIII mudarade foco, passando a se concentrar agora na superioridade da autorida-de espiritual sobre a temporal. Cf. STANKA, R. Die politische Philosophiedes Mittelalters, Band II. Viena: Verlag A. Sexl, 1957. p. 169 et seq.

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Os argumentos e os exemplos são os mesmos, mas omundo é outro: a questão posta não é mais a da relaçãoentre o papa e o imperador dentro de uma única cristan-dade; trata-se agora de definir qual a relação entre o po-der eclesiástico e o civil na constituição de novos estadossoberanos; é necessário redefinir competências entre aautoridade religiosa supranacional e as autoridades civisnacionais que neste momento se afirmam. Se as roupasdo De ecclesiastica potestate são velhas, estão puídas, ejá mesmo carcomidas pelas traças que estavam destruin-do a Idade Média, contudo não deixa de ser verdade queas longas questões sobre o poder, a soberania, o direitodos súditos, a propriedade etc. estavam abrindo cami-nho para o debate sobre o Estado moderno, e o renasci-mento.

Não deixa também de ser verdade”, arremata De Bonilembrando opiniões de Carlyle e Scholz, “que Egídio ‘compôso primeiro tratado completo sobre o absolutismo’”.35

Se Egídio tinha ou não uma noção clara das transfor-mações em curso não cabe aqui discutir. O que o DoctorFundatissimus parecia saber muito bem, contudo, era locali-zar o inimigo e o terreno no qual ele se movia. Ullmann alertapara o fato de que a teoria desenvolvida por Egídio Romanoem defesa da hierocracia, ao concentrar-se na idéia derenascimento pelo batismo como noção legal, isto é, na no-ção da graça como fundamento do direito, tornava claro seuobjetivo de conter o avanço do naturalismo político. Aregeneratio batismal defendida por ele servia, antes de maisnada, para reafirmar os vínculos que implicava: apenas oshomines renati, seguindo as normas da “vida nova” concedi-da pela autoridade divinamente instituída, tinham direito aodomínio e à propriedade legítimos. Nesse esquema, o elementohumano, no estado puramente natural, não tinha papel al-gum a desempenhar: o homem natural permanecia relegado

35 DE BONI. Introdução. In: DPE, p. 13.

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ao papel subordinado dentro do qual sempre se movera nacosmologia cristã.36

Essa consciência Egídio Romano, bom conhecedor deAristóteles e de Tomás de Aquino, certamente tinha: nascidonos arredores de Roma em meados do século XIII, de famíliasem posses, iniciou seus estudos em 1258, ingressando naOrdem dos Eremitas de Santo Agostinho. Logo foi enviado àUniversidade de Paris para prosseguir os estudos. Lá prova-velmente freqüentou as aulas de Tomás de Aquino e pôdeampliar seu contato com os escritos averroístas e aristotéli-cos.37 Envolveu-se nos debates acadêmicos que agitaram Parisà época, chegando a tomar a defesa do mestre por ocasiãodas condenações do bispo parisiense Estêvão Tempier.38 Comesse episódio, teve sua carreira interrompida e foi obrigado aregressar à Itália.

36 A secularização do pensamento e a naturalização da política, possibili-tada sobretudo pela recuperação dos antigos textos pagãos, argumentaUllamnn, tornavam desnecessária a autoridade pontifícia, e também afigura da Ecclesia, na condução dos assuntos terrenos. Cf. ULLMANN, DieBulle Unam sanctam: Rückblick und Ausblick, VI: p. 45-77. Cf. tb. ULL-MANN, Boniface VIII and his contemporary scholarship, VIII: p. 58-87. In:ULLMANN. W. Scholarship and politics in the Middle Ages. London: VariorumReprints, 1978. (Collected Studies).

37 Sobre a influência averroísta de Egídio, cf. MCALEER, G. J. Disputing theunity of the world: the importance of res and the influence of Averróis inGiles of Rome’s critique of Thomas Aquinas concerning the unity of theworld. Journal of the History of Philosophy, v. 36, n. 1, p. 29-55, jan.1998.

38 Essa censura eclesiástica, dirigida principalmente às teses averroístase aristotélicas, ficou conhecida como “As condenações de 1277”, quan-do Tempier censurou 219 proposições sustentadas pelos professoresda Faculdade de Artes. Várias dessas condenações ligavam-se, diretaou indiretamente, às teses desenvolvidas por Tomás de Aquino. Sobre otema, cf. DE BONI, L. A. As condenações de 1277: os limites do diálogoentre a filosofia e a teologia. In: DE BONI, L. A. (Org.). Lógica e linguagemna Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

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Retornando à França, pouco depois, foi convidado porFilipe III para ser preceptor de seu herdeiro, Filipe IV, futurorei francês. Para seu pupilo Egídio Romano escreveu, entre1277-9, o De regimine principum, no qual, seguindo Tomásde Aquino e Tolomeu de Luca, fazia a defesa da formamonárquica de governo. Em 1287, intelectual já influente eíntimo de figuras importantes como Benedito Gaetani, futu-ro papa Bonifácio VIII, Egídio tornou-se mestre em teologiapela Universidade de Paris e, em 1292, foi eleito superior-geral da sua ordem. Três anos mais tarde era nomeado porBonifácio VIII (1294-1303), com a aquiescência do rei franco,seu antigo aluno, arcebispo de Bourges e primaz da Aquitânia.

Nesse momento, as divergências entre o bispo de Romae o rei francês se acirravam e as acusações de ambas aspartes sucediam-se. Bonifácio VIII – que assumira o tronopontifício em meio à polêmica sobre a legalidade da renúnciade Celestino V (1294), seu antecessor,39 – não tardou a recor-rer ao auxílio, que se mostraria precioso, de seu protegido. Aseu pedido, Egídio comentava textos e produzia pareceresque serviam de suporte para as decisões papais.40 Tambémsob encomenda do pontífice – que nesse momento precisavade munição contra a decisão de Filipe IV de taxar o clerofrancês sem autorização papal –, o Doutor Fundatíssimo pro-duziu o De ecclesiastica potestate, escrito entre 1301 e 1302.O livro era dedicado a mostrar que, assim como ao espíritocabia comandar o corpo, competia à Igreja o direito de zelar,em última instância, não só pela salvação espiritual comotambém pela vida comunal dos homens. O texto de Egídio

39 Para uma descrição minuciosa dos eventos, cf. SOUZA, J. A. C. R. A elei-ção de Celestino V em 1294 e a crise da Igreja no final do século XIII.Veritas, Porto Alegre, v. 39, n. 155, p. 481-98, set. 1994.

40 Um resumo das obras de Egídio pode ser encontrado no verbete deMERLIN, N. Gilles de Rome. In: VACANT, A.; MANGENOT, E. Dictionnaire dethéologie catholique. Paris: Librarie Letouzey, 1920. p. 1358-66.

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Romano acabaria sendo usado pelo papa na confecção dabula Unam sanctam,41 de 1302.

Para a defesa de suas posições, o Doutor Fundatíssimo,profundo conhecedor das doutrinas tomista, averroísta, aris-totélica e agostiniana, utilizou toda a tradição de pensamen-to disponível à época: da Sagrada Escritura ao direitocanônico, passando por Hugo de São Vítor, Dionísio, Agosti-nho, Aristóteles etc., nada foi desperdiçado.42 A organizaçãodo poder temporal só aparece nessa obra de forma marginal.Mas não apenas está ausente como tema – dado que o objetoimediato do tratado era o poder eclesiático – como ainda,quando aparece, está subsumida na ordem de dominação daIgreja. Apesar do silêncio a respeito do poder secular aqui,pode-se apontar entre essa obra e seu “espelho do príncipe”,escrito duas décadas antes, um traço comum: a defesa da

41 Sobre este assunto, cf. BOER, Nicolas. A bula Unam sanctam de Bonifá-cio VIII sobre as relações entre a Igreja e o Estado. In: SOUZA, J. A. C. R.(Org.). Pensamento medieval. X Semana de Filosofia da UnB. São Paulo:Loyola, 1983. p. 125-44. Para uma comparação entre o texto da bula eas passagens de Egídio, confere a “Introdução” de De Boni ao livro deEgídio Romano citada acima, p. 26-28, notas a) e b). Uma tradução dodocumento pode ser encontrada em SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 202-4.Cf. tb. a versão integral inglesa, que contém ainda vários outros docu-mentos do período, em HENDERSON, Ernest F. (Ed.). Selected historicaldocuments of the Middle Ages. Repr. of 1892. New York: AMS Press,1968. p. 435-7.

42 Richard Scholz, o grande tradutor moderno de Egídio, enumerou ascitações das autoridades mencionadas no De ecclesiastica potestate,chegando ao seguinte resultado: cerca de 238 citações provêm da Bíbliacom suas glosas; Agostinho é mencionado 41 vezes, o direito canônicocerca de 33 vezes, Aristóteles e o Pseudo-Aristóteles trinta vezes, Hugode São Vítor 16 vezes, Pedro Comestor nove, Dionísio o Areopagita sete,Bernardo de Claraval cinco, Averróis duas vezes, Isidoro de Sevilha umavez e o direito romano também uma única vez. Cf. SCHOLZ, R. “Einleitung”,p. IX. In: ROMANUS, Aegidius. De ecclesiatica potestate. Ed. R. Scholz,Weimar: Hermann Böhlaus, 1929. Uma tal estatística nada pode ofere-cer além de uma visão superficial da obra. Mas ajuda a ilustrar o graude preocupação do autor com certos pensadores.

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monarquia como a forma excelente de governo político. Nes-se ponto há mais continuidade do que ruptura entre as duasobras.

O esquema do tratado De ecclesiastica potestate pro-duzido por Egídio Romano pode ser resumido, grosso modo,num princípio orientador e quatro pares de opostos: o fun-damento que guiava todo o seu raciocínio repousava na afir-mação – que remonta a Platão e Aristóteles – de que todo ouniverso, e tudo o que nele se encontrava, se ordenava doinferior ao superior, estando por essa razão as coisas infe-riores subordinadas às superiores. Os pares de opostos uti-lizados para sustentar sua teoria sobre a correta ordenaçãodo mundo eram: imperfeito/perfeito, corpo/alma, particu-lar/universal e poder temporal/poder eclesiástico.

A partir da identificação entre imperfeito, corpo, par-ticular e poder temporal à ordem dos objetos inferiores, emoposição a perfeito, alma, universal e poder eclesiástico àordem do superiores, Egídio Romano podia construir o edi-fício sobre o qual reivindicava a plenitude de poder do papasobre todas as coisas, materias e espirituais, e a primaziado governo sacerdotal sobre o secular. Contudo, essas duasesferas – a superior, próxima da perfeição divina, e a infe-rior, lugar das imperfeições terrenas – não seriam mais des-critas como dois âmbitos autônomos, cada qual contendoem si os princípios de seu próprio funcionamento, mas pas-sariam a ser tratadas dentro de um único universo: a “cida-de de Deus” deixava de ser um ideal situado numa outraesfera cósmica e passava a existir na mesma dimensão da“cidade dos homens”, constituindo, ambas, partes de umtodo hierárquico devidamente ordenado, no qual toda mul-tiplicidade era reduzida à unidade, ao elemento uno, queera Deus. Tal construção envolvia, contudo, além de pode-rosas vigas, andaimes bastante intrincados, como se verá aseguir.

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O Livro I era dedicado a mostrar que toda autoridadetemporal justa se subordinava à eclesiástica. Isto é, que aautoridade – o dominium, quando diz respeito à relação entrehomens – pontifícia era superior às demais. Depois de ofere-cer a obra ao “santíssimo Padre e senhor” Bonifácio VIII, Egídiointroduzia o assunto dizendo que

compete ao sumo pontífice e à sua plenitude de poderdispor o símbolo da fé e estabelecer as coisas que se rela-cionam com os bons costumes, porquanto, se surgir umaquestão, quer de fé, quer de costumes, compete a ele daruma sentença definitiva e estabelecer, como também dis-por firmemente, o que os cristãos devem crer e que as-pecto os fiéis devem evitar daquelas coisas de onde seoriginam os litígios. (DPE, p. 37)

E adiante: “compete dirimir querelas e resolver ques-tões somente àquele que atingiu o ápice de toda a Igreja; ecomo somente o sumo pontífice é reconhecido como tal, so-mente a ele caberá determinar sobre tais questões surgidas eoutras semelhantes”. E, para que não restasse dúvida a res-peito de sua afirmação, Egídio Romano especificava que opoder espiritual do sumo sacerdote incluía também sua ju-risdição sobre todas as coisas temporais. Porque ao podermais perfeito competia a plenitude de poder e a jurisdiçãosobre as coisas.43 Como o espírito fosse superior à matéria, e

43 “As sentenças dos santos e dos doutores proclamam comumente que háuma dupla perfeição: a pessoal e a de acordo com o estado. Parece queestas duas perfeições se diferenciam pelo fato de que a perfeição pessoalconsiste na serenidade e pureza da consciência, enquanto a perfeição doestado e principalmente do estado dos prelados e de todos aqueles queno último dia, quando estiverem perante o tribunal de Cristo, prestarãocontas das almas dos fiéis, consiste na jurisdição e na plenitude do po-der, de tal modo que é um estado mais perfeito aquele ao qual correspon-de um poder mais amplo e jurisdição mais plena” (DPE, p. 38).

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a alma ao corpo, explicava, e dado que o corpo tendia ao vícioe aos maus costumes, seguia-se daí que ao poder espiritual,maior em perfeição, cabia julgar a todos e por ninguém serjulgado.

Para fundamentar essa opinião, o autor distinguia aperfeição pessoal daquela conferida pelo estado de graça,única capaz de gerar a plenitude de poder:

De acordo, portanto, com a dupla perfeição e a duplaespiritualidade, dizemos que há dupla elevação. Aqueleque é espiritual e pessoalmente perfeito está elevado aci-ma do mundo e acima dos outros conforme o brilho daconsciência. E como está elevado acima do mundo pode-rá julgar o mundo, isto é, os homens mundanos, afir-mando que suas obras são más. [...] Mas quem é perfeitoe santo e está espiritualmente de acordo com o estado,principalmente de acordo com o estado prelatício [statumprelatorum], é elevado segundo a jurisdição e a plenitudedo poder. [...] Tal é o sumo pontífice, cujo estado ésantíssimo e espiritualíssimo. [...] Se o estado do sumopontífice é santíssimo e espiritualíssimo e tal espirituali-dade consiste na eminência do poder, foi bem dito que osumo pontífice, sendo de todo espiritual segundo o esta-do e a eminência do poder, julga e domina tudo e elemesmo não poderá ser julgado, dominado e igualado porninguém. (DPE, p. 39-40)

Até mesmo a autoridade temporal era instituída pelopoder espiritual, afirmava Egídio Romano seguindo Hugo deSão Vítor. Pois o sacerdotium constituía o único poder capazde plantá-la, julgá-la e extirpá-la. Para sustentar essa reivin-dicação, ele recorria à Doação de Constantino – segundo aqual o império havia sido trasladado para a Igreja – e à lei dadivindade (lex divinitatis) de Dionísio (o Pseudo-Areopagita),segundo a qual as realidades inferiores se reduziam às supe-riores por meio das intermediárias:

Como ficou claro através de Hugo, a autoridade espiri-tual tem poder de instituir a terrena e de julgá-la se é

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boa, o que não seria possível se não pudesse plantá-la eextirpá-la. [...] Neste assunto não só os acontecimentosconcordam com a autoridade, porquanto Hugo afirma isto,e a Igreja, transferindo o império, não só o fez de direito,mas de fato. [...] Podemos, com efeito, declarar tranqüila-mente que, pela ordem do universo, a Igreja deve ser cons-tituída sobre nações e reinos, pois, segundo Dionísio [...],é lei da divindade reduzir as coisas ínfimas às supremaspassando pelas intermediárias. (DPE, p. 44-5)

Os argumentos utilizados por Egídio Romano susten-tavam a existência de uma hierarquia na ordem universaldos seres, tal como se encontrava no Pseudo-Dionísio: asrealidades inferiores, de acordo com o grau hierárquico emque se situavam, seriam também mais materiais do que asque lhes eram superiores. Ao Uno correspondia o supremograu de espiritualidade. Dele emanavam as realidades supe-riores. As outras realidades delas provinham e a elas deviamreduzir-se pela conversão da multiplicidade à unidade e damaterialidade à espiritualidade. Assim, cada hierarquia con-tinha previamente em si, num grau superior, as inferioresque, ao se lhe reduzirem, eram por elas reconduzidas a outrahierarquia superior na ordem da unidade e da espiritualida-de e, por meio deste processo de conversão, as hierarquiasintermediárias se reduziriam à hierarquia suprema, que eraDeus.44

Como as coisas inferiores se reduziam às superioresnão imediatamente, mas por meio das intermediárias, paraque o universo pudesse estar corretamente ordenado era pre-ciso constatar que essas duas autoridades, espiritual e tem-poral, provinham imediatamente de Deus, causa primeira detodas as coisas.45 Como todas as coisas no universo a Ele se

44 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 164-5.45 Rezava a bula Unam sanctam, promulgada por Bonifácio VIII em no-

vembro de 1302: “De fato, segundo o bem-aventurado Dionísio, é lei dadivindade que as realidades ínfimas se reduzam à superiores mediante

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ordenavam, também no que respeitava aos poderes era preci-so que um gládio se reduzisse ao outro: “Conseqüentemente ogládio temporal, enquanto inferior, deve ser reduzido, passan-do pelo espiritual, como se passasse pelo superior, e um deveser estabelecido sobre o outro, de modo que o inferior estejasob o superior” (DPE, p. 45).

Por essa razão, dizer que reis e príncipes estariam sub-metidos ao poder espiritual apenas nas coisas espirituaisequivalia a não compreender a força do argumento. E aquiEgídio investia pesado contra o dualismo clássico:

Pois se só nas coisas espirituais os reis e os príncipesestivessem sujeitos à Igreja, não haveria gládio sob gládio;não haveria coisas temporais, sob coisas espirituais, nãohaveria ordem nos poderes, não se reduziriam as coisasínfimas às superiores passando pelas intermediárias. [...]Ora, quem por direito simplesmente domina no espiritu-al, por certa excelência também tem domínio sobre ascoisas temporais. Se alguns, porém, por temor dos prín-cipes seculares escreveram de outra maneira, não se deveadmitir a autoridade deles. A Igreja pode, pois, admoes-tar os príncipes nas coisas seculares, uma vez que o gládiotemporal está sob o gládio espiritual. (DPE, p. 46)

A conclusão lógica dessas premissas, como lembramSouza e Barbosa, consistia na integração plena de todo equalquer poder na suprema autoridade da Igreja.46

Se o papa não utilizava diretamente o gládio material,deixando seu emprego a cargo dos príncipes, dizia Egídio,

as intermediárias. Segundo a ordem do universo, não todas as realida-des igual e imediatamente, mas as ínfimas pelas intermédias, as infe-riores pelas superiores, devem ser reduzidas à ordem. Que a espiritualultrapassa em dignidade e nobreza qualquer poder terreno, somos obri-gados a crer e igualmente proclamar com grande clareza, da mesmaforma que o espírito supera a matéria [...]; porque, segundo testemunhaa verdade, o poder espiritual institui o secular e deve julgá-lo se não forbom”. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., Documento 50, p. 203.

46 Ibid., p. 165.

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não era por não ter direito ao seu uso, mas para não ter de seocupar de um excesso de funções. O papa, segundo EgídioRomano, tinha a espada temporal “à sua disposição”. “E, comoé muito mais excelente e importante o domínio sobre quemexerce o gládio do que o poder sobre o próprio gládio, ficaclaro, da parte do próprio poder, que é mais perfeito e maisexcelente ter o gládio material à disposição do que para uso”(DPE, p. 66). Do mesmo modo também, o fim último daqueleque exercia o gládio temporal – induzir os homens à virtudedispondo os cidadãos a obedecer ao poder espiritual – subor-dinava-se ao fim superior do poder sacerdotal, a salvaçãodos homens.

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Expostos os princípios básicos de sua doutrina a res-peito da superioridade da autoridade espiritual sobre a tem-poral, impunha-se a Egídio a tarefa de elaborar uma teoriacapaz de sustentar a legitimidade da reivindicação de umaplenitude de poder do pontífice em ambas as esferas de do-minação. O Livro II, a parte mais inovadora da obra, tratavada relação entre o poder eclesiástico e as coisas temporais:nele Egídio Romano pretendia mostrar que o sumo pontíficetinha também o dominium – segundo ele, a relação do supe-rior para com o inferior – sobre as coisas temporais.

O primeiro ponto abordado, se era ou não lícito à insti-tuição eclesiástica possuir bens, constituía uma resposta tantoa questões internas da Igreja (entre elas, a discussão acercada pobreza evangélica, encabeçada pelos monges francisca-nos) quanto às investidas dos poderes temporais sobre osnegócios religiosos, especialmente por parte do rei francês.Para justificar a posse de temporalia pela Igreja, Egídio preci-sava encontrar uma solução convincente para as passagens

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bíblicas contraditórias sobre a questão. Para isso, recorria auma adequação histórica destes diferentes momentos – talcomo fizera Tomás de Aquino para justificar a preeminênciada lei nova sobre a lei antiga.

Cristo, nosso médico, esclarecia Egídio Romano, haviaconcedido e retirado aos apóstolos, segundo as necessidadesde cada momento, o direito de levarem bolsa e alforje: emtempos de paz ordenava-lhes nada portar; na guerra, acon-selhava-os a munirem-se de proventos, como se podia lernas Sagradas Escrituras.47 Também para que a Igreja nãofosse vilipendiada pelos leigos, convinha que pudesse ter bens,embora a posse de coisas terrenas não devesse constituir ofim da existência humana nem tampouco dos poderes ins-taurados sobre o mundo.48

Também “historicizada” era a sua argumentação a res-peito da constituição do poder político temporal e da possedo justo dominium pelo poder eclesiástico. A construção

47 “Em nenhum tempo, portanto, as posses temporais foram em si mes-mas lícitas aos clérigos, mas, conforme as circunstâncias, às vezes fo-ram proIbidas, às vezes concedidas. [...] Digamos, portanto, que o auxíliodivino em si mesmo é bom, mas a retirada dele, temporariamente, podenos ser útil. Assim, as coisas temporais são boas, mas a proibição de-las, temporariamente, pode nos ser de auxílio. [...] Mas, como ambos [ostempos] são bons, nenhum deles devia ser perpetuamente proIbido oupermitido. Por isso, deve haver um terceiro tempo, no qual agora estamos,em que tanto as coisas temporais são concedidas aos homens da Igrejacomo a mão do Senhor está colocada por baixo. Neste tempo, a Igrejaestá dotada de ambos, porquanto goza de subsídio das coisas tempo-rais e do auxílio divino, para que se possa conduzir e conservar no seuestado. Com efeito, antes a Igreja teve início, depois incremento, agoraporém tem a perfeição e estado” (DPE, p. 82-3).

48 “Portanto, são coisas a que todos estamos obrigados: não apegar o cora-ção às riquezas (isto é, não buscá-las como coisa principal, e comocoisa que seria um fim em si) e renunciar a tudo que possuímos, nãopondo nas riquezas nossa intenção final. Contudo, ter tais posses parao domínio e para o sustento da vida é lícito tanto aos clérigos como aosleigos” (DPE, p. 74).

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egidiana sustentava-se em alicerces originais. Egídio Roma-no desenvolvera, em vários pontos de sua reflexão, uma in-terpretação própria, que desfrutava de razoável grau deindependência em relação às suas fontes inspiradoras. Issovalia também para a sua noção de dominium, utilizada tantopara designar a propriedade – na relação de superioridadeentre os homens e as coisas – quanto o senhorio, isto é, adominação de um homem sobre outro.49

Segundo Agostinho, no estado de inocência não haviaexistido autoridade política coercitiva de um ser humano so-bre outro: tal como Boaventura, Agostinho associava coer-ção à instituição da autoridade política e localizava suaaparição na queda da humanidade em pecado. Já para To-más de Aquino, o poder coercitivo também constituía umacaracterística intrínseca da autoridade política, como paraAgostinho. Mas, dado que essa autoridade política era natu-ral à condição humana, como havia ensinado Aristóteles, opoder coercitivo de um homem sobre outro – ou o dominium– tinha, portanto, de ter existido já no estado de inocência.

Egídio Romano, tal como Agostinho, defendia não terexistido, antes do pecado original, autoridade política coerci-tiva (dominatio). Mas concordava com a afirmação tomasianade que teria havido senhorio (dominium) no estado de inocên-cia. Para fundamentar essa sua posição, Egídio Romano ar-gumentava, concordando com Tomás de Aquino, que a noçãode dominium não incluía necessariamente a idéia de servitus.Isto é, não havia, segundo Egídio Romano, uma ligação in-trínseca entre autoridade política e poder coercitivo, comohaviam sustentado Agostinho e Boaventura. Para o DoutorFundatíssimo, havia dominium – isto é, senhorio ou relação

49 Ullmann já chamava atenção para uma mudança semântica do termodominium. Com esse termo, observava o historiador, Egídio Romano“quer dizer não tanto propriedade, mas governança ou senhorio(lordship)”. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 220.

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de comando – onde quer que houvesse uma relação entre uminferior e um superior. Mas, como Agostinho, identificava oexercício do poder coercitivo, a dominatio, ao deleite de Adãoao comer do fruto da árvore proibida do bem e do mal. Ouseja, ligava a instauração da coerção ao pecado original.

McAleer, recorrendo aos comentários de Egídio às sen-tenças,50 ajuda-nos a elucidar os termos dessa diferenciaçãolevada a cabo por Egídio Romano.51 Na distinção 21, o Dou-tor Fundatíssimo explicava que, no estado de justiça origi-nal, Deus – que era dominus – governava seus filhos por meioda caridade e da graça. Nesse paraíso originário havia domi-nium do Senhor, mas não existia a coerção (dominatio), poisDeus e suas criaturas encontravam-se em perfeita harmo-nia. Adão, por sua vez, fora instituído como governante eexercia seu poder na caridade e no amor. Neste estado deinocência, explicava o Doutor Fundatíssimo, havia relaçãode superioridade de um homem sobre outro (dominium). Masesse senhorio de Adão, por ser exercido no amor (in dilectione),não teria sido coercitivo (dominatio).

Segundo Egídio, assim, o estado de inocência existiratodo sob uma certa sujeição, que consistia num domínio exer-cido no amor.52 O próprio Adão teria sempre governado como

50 Trata-se das distinções elaboradas por Egídio Romano, reunidas naobra In secundum librum sententiarum, surgida por volta de 1309. Umareunião desses textos pode ser encontrada na edição de WIELOCKX, R.(Ed.). Aegidii romani opera omnia. Firenze: L. S. Oschki, 1985.

51 Não há no Brasil traduções disponíveis dessas distinções, e o texto lati-no é de difícil acesso. Por isso, foi utilizada aqui uma fonte indireta, otrabalho de MCALLER, Graham. Giles of Rome on political authority. Journalof the History of Ideas, v. 60, n. 1, p. 21-36, jan. 1999.

52 “Ideo ait Gregorius loquens de isto statu quod omne mandatum de soladilectione est, quia quicquid praecipitur in sola charitate solidatur. Igiturquia illa status totus erat in quandam subiectione et in quandam iustitiaideo tunc dilectio ex tali subiectione et ex tali iustitia oriebatur”. In: MCALLER,op. cit., p. 30, n. 52.

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um servo obediente aos preceitos de Deus. Por ter sido insti-tuído na justiça original, Adão tinha uma vontade perfeita-mente repleta de caridade.53 A generosidade de seu governolevara os súditos a obedecer voluntariamente àquela autori-dade e lhes permitira alcançar o bem comum. E governarpara o bem comum conduzia à satisfação do desejo da “gran-deza da paz” (magnitudo pacis), que por si só podia concederlegitimidade a um governo.54

Como não existia senhorio sem poder, esse dominiuminstituído no estado de inocência incluía o governo político(principatus politicus), o real (principatus regius) e o despó-tico (principatus despoticus): o primeiro desses reinados diziarespeito àquele de Adão sobre Eva; o segundo se relacionavaao mando de Adão sobre seus filhos; e o último à forma pelaqual Adão dispunha e governava sobre seu próprio corpo,que antes da queda no pecado o servia em completa obediên-cia. Tal dominium devia ser exercido por meio da graça(dominari per gratiam), como queria o Senhor. Adão teria pe-cado, segundo Egídio, ao desejar um governo “per naturam”,isto é, ao pretender reinar por meio de um poder coercitivo,exercido egoísta e despoticamente, ao invés de continuar do-minando pela graça.

Esse poder era necessariamente coercitivo, explicavaEgídio, porque o desejo humano bom e puro só podia teruma única fonte de preenchimento, Deus. Egídio Romanorelacionava o pecado de querer governar per naturam ao de-sejo de comer da árvore proibida do bem e do mal (distinção22). Adão não havia desejado conhecimento especulativo ouiluminação, mas sim o conhecimento moral necessário ao

53 “Ad quod dici potest quod totus ille status erat in subiectione quod inferioraessent subiecta superioribus. [...] Et quia hoc est iustitia quod inferiorasint subiecta superioribus, ideo totus ille status erat in quandam tali iustitiased iste status totus est in dilectione”. In: MCALLER, op. cit., p. 26, n. 25.

54 Cf. MCALLER, op. cit., p. 26.

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exercício do poder coercitivo. Desejar o conhecimento moraldo bem e do mal significava querer reinar e dominar comalgum poder anexo55 (potentia annexa). Ao abandonar omodo de governo de Deus (per gratiam), negando aos seussúditos a verdadeira felicidade, Adão agia egoisticamente eprecisava recorrer à força para reger os súditos. Com isso,passava a reinar violentamente e tornava-se um governantedespótico.

Ou seja, a natureza do poder de Adão teria mudadoquando ele decidira governar independentemente da graçade Deus. No estado de justiça original, Adão havia desfruta-do de autoridade política, razão pela qual governara aquelesque lhe eram sujeitos, mas não dispusera de poder coerciti-vo. A proibição era, no fundo, comenta McAleer, o presentede Deus a Adão: ele não precisava reinar por meio do podercoercitivo, já que um tal modo de governar corrompia os co-rações daqueles que estavam no poder. O problema maior daqueda em pecado, dizia Egídio, não tinha sido o rompimentoda proibição, como haviam defendido Agostinho e Boaventura,e sim o desejar comer da fruta que era em si má. A árvoreproibida a Adão era justamente o governar pela coerção. EAdão desejara esse modo de reinar porque se deleitara naexperiência de coagir outros no momento em que comia afruta da árvore do conhecimento do bem e do mal. Esse dese-jo de coagir não derivava, contudo, da natureza do homem,tal como ocorria com o diabo, mas havia se instaurado com ocomer da árvore proibida (propter esum ligni vetiti).56

55 “Verum quia nullus est principatus sine aliqua potentia. Si primus homoappetiit scientiam boni et mali ut ex hox haberet quandam gubernationemrerum et quandam principatum quia hoc esse non poterat sine quandampotentia coercendi sibi subiecta. Directe non videtur appetivisseilluminationem vel scientiam speculativam sed magis scientiam boni etmali quae est scientiam gubernandi et principandi cum aliqua potentiaannexa”. In: MCALLER, op. cit., p. 27, n. 36.

56 Cf. MCALLER, op. cit., p. 27-8.

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O poder com o qual Adão passou a reinar depois daqueda dependia de uma usurpação: seu governo injusto rou-bava de seus súditos a capacidade e a liberdade para dese-jar, obedecer e amar a Deus.57 O governo adamita per naturamsubstituiu o seu reinar per gratiam e impediu, com isso, oacesso às leis de Deus, forçando outros a desejar de modoinadequado à sua natureza profunda. E era justamente odesejo de governar de maneira coercitiva que, segundo Egídio,marcava a existência política herdada pela posteridade deAdão.58 Esse reinar por meio da natureza era sempre egoís-ta: fomentava o bem privado às expensas do bem público,59

marca da tirania e do despotismo e raiz de todo pecado. Poressa razão, nossa história política era também marcada, aomenos até certo ponto, por um caráter despótico ou tirânico.

Dominium nos dias atuais, explicava Egídio, podia atéter como objetivo a regra da caridade, mas não obtinha maiso mesmo grau de pureza que havia desfrutado quando foraexercido no estado de justiça original. Mesmo existindo reiscaridosos, dizia ele, um tal reinado era sempre combinadocom o governo secular introduzido pelo pecado de nossospais primordiais, que nos obrigava a viver numa servidãocorporal a essa regra temporal. O batismo podia até limparnossas almas, sustentava Egídio, mas não podia nos libertardo domínio coercitivo da autoridade secular. O único gover-

57 A coerção na qual Adão sentira deleite constituía um pecado de primei-ra magnitude, pois havia gozo em negar a outros a capacidade e a liber-dade para reagir obedecendo à lei de Deus. A marca do amor de Deusconsistia na aptidão de obedecer ao Senhor.

58 “Adam ergo peccante et appetente propriam excellentiam et propriumdominium, quod non debebat, perdidit dominium quod habebat”. In:MCALLER, op. cit., p. 29, n. 46.

59 “Nam isti sunt duo amores secundum Augustinum Super Genesim:Privatus et publicus qui faciunt duas civitates Diaboli et Dei et benesecundum eundem ibidem dicitur amor privatus quia privatus est omnibono”. In: Ibid., p. 29, n. 43.

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no compatível com a liberdade era aquele da caridade, noqual todo desejo consistia na devoção a Deus, que governavapor meio do amor.60 A ressurreição, explicava Egídio, consti-tuía o momento no qual toda dominação seria expurgada edeixaria de ser egoísta, passando a ser assumida completa-mente por Deus.

Na distinção 44 tornava explícita a sua formulação deque o exercício do poder não significava necessariamente do-minação e coerção. O termo dominari, oriundo de dominus,em sentido amplo, argumentava Egídio, estava presente ondequer que houvesse um comando. Mas nem toda superiorida-de era dominação, sustentava ele. Já em sentido restrito,entretanto, referia-se a servo: dominari constituía nessaacepção o principado dos servos (principatus servorum) – aque-les que eram sujeitos corporalmente. A obediência do inferiorao superior, portanto, supunha o governo do superior, masnão tinha necessariamente de ser dominatio. Um prelado,por exemplo, não dominava pela coação, e sim por meio davirtude ou caridade, por servir à felicidade.61

Essa distinção permitia a Egídio manter a sacralidadeda ordenação política fundada divinamente, como aquela deAdão no paraíso e, ao mesmo tempo, afirmar a naturalidade

60 O poder tinha de ser expurgado justamente porque era uma regra secu-lar coercitiva que endurecia os corações e tornava incapaz de caridade. Oprimeiro dos pecados de Adão e Eva repousava naquela ilação que senti-ram ao comer do fruto proibido, e não na ingratidão ou na desobediênciapropriamente dita. O mesmo orgulho experimentado por nossos pais ori-ginários podia ser encontrado nos reis e príncipes. E aquela experiênciacomum de poder coercitivo era o que corrompia e conduzia à cegueira docoração, o qual deixava de exercer o poder no amor da caridade. Cf.MCALLER, op. cit., p. 31.

61 “Propter primum sciendum quod obedientia est inferioris ad superiorem velservi ad dominum. Magis tamen large accipitur, ut est inferioris adsuperiorem, quia non omnis superioritas, proprie loquendo, dicitur dominatio.Nam praelatus non debet existimare se potestate dominantem, sed virtutevel charitate, et serviente felicem”. In: MCALLER, op. cit., p. 33, n. 63.

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do mundo civil, sintetizando tradições tão diversas quanto oagostinianismo, o aristotelismo e o tomismo. Ao desvinculardominium de dominatio, Egídio fornecia um modelo bastanteútil de interpretação da autoridade política, o qual lhe permi-tia atribuir ao pontífice, sem descontinuidade, a plenitude depoder tanto em assuntos espirituais quanto temporais, talcomo já havia demonstrado anos antes, quando escrevera oDe ecclesiastica potestate.

O papa podia, nessa lógica, dispor de dominium (ousenhorio) sobre tudo e todos, tal como tivera Deus sobre oshomens no paraíso e Adão sobre seus súditos no estado dejustiça original. Mas não precisava e, no fundo, nem deviaexercer a dominatio, isto é, o “juízo de sangue”, que era amarca do pecado e do afastamento de Deus. Por essa razãotambém podia afirmar, sem prejuízo de seu argumento a fa-vor da primazia da autoridade do sumo sacerdote, que so-mente aos poderes temporalmente instituídos cabia o exercícioda coerção, ou, em termos modernos, o “monopólio legítimoda violência”.

Ou seja, o papa podia julgar e decidir em assuntos tem-porais, em virtude de seu dominium, já que ele, cujo poderera mais sublime, constituía aquela autoridade que instau-rava a ordem legal e detinha, por isso, jurisdição universal.Mas ao pontífice jamais cabia a execução direta do poder, adominatio, fruto da queda em pecado. Isso explica também asua insistência em afirmar que aos religiosos não convinha“banhar as mãos em sangue”. Bastava agora retirar à idéiade dominium a intermediação eclesiástica para que emergis-se o príncipe moderno.

O argumento era forte, mas chegava em tempos de ace-lerada laicização:62 uma tal secularização do poder coercitivo

62 Sobre esse tema, cf. o clássico de LAGARDE, Georges de. La naissance del’esprit laïque au declin du Moyen Age. Paris-Louvain: Béatrice-Nauwelaerts, 1956-63. v. I-V.

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acabaria servindo, certamente contra a vontade de Egídio,mais aos interesses daqueles que pretendiam submeter opoder do pontífice às armas do rei – como demonstraria aprisão de Bonifácio VIII um ano mais tarde pelos agentes domonarca francês – do que àqueles dispostos a se colocar sobos ditames da espada eclesiástica. Um elemento fundamen-tal desse seu raciocínio seria, no entanto, amplamente de-senvolvido: a noção de que havia um dominium natural,anterior à instauração de qualquer poder terreno, e ao qualtodas as criaturas, como filhos de Deus, tinham acesso: JoãoQuidort, por exemplo, derivaria daí a anterioridade da pro-priedade privada. O avanço conceitual, entretanto, era ine-gável, e inúmeros autores fariam bom uso do aparatodisponível.

O recurso às distinções egidianas serve também parauma melhor compreensão dessa “nova teoria da origem dopoder”, aperfeiçoada por Egídio Romano na segunda partedo De ecclesiastica potestate, cuja proposição básica era a deque somente por meio da Ecclesia se podia, no mundo terre-no, obter um dominium justo sobre as posses e as pessoas.Para sustentar essa posição, o Doutor Fundatíssimo recor-ria, mais uma vez, a uma “história da sociabilidade huma-na”.

No início do mundo, escrevia, não houvera possuidoresde iure a ponto de se poder dizer “isto é meu”: na natureza,tudo era possuído em comum, a humanidade vivia em paz ereinava a justiça natural. A convivência dos primeiros gru-pos humanos gerou uma ocupação inicial das terras e apro-priação de seus frutos que, contudo, só ocorria por convençãoe pacto. Com o tempo, os homens multiplicaram-se, gerandoassim a necessidade de ampliar também os pactos e conven-ções, para que a posse pudesse se dar não apenas por repar-tição, mas também por compra, doação, troca ou qualqueroutro modo que contasse com o consentimento dos ânimos(consensus animorum).

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O fundamento de todo esse edifício sobre o qual se po-dia fundar o “meu e o teu” era, segundo Egídio Romano, acomunicação recíproca entre os homens, da qual nasciam aspartilhas, as doações, as trocas e as compras. Esses acor-dos, de caráter particular, contudo, em razão da tendênciado homem ao egoísmo, tornaram-se insuficientes. Foi preci-so instituir então o poder temporal, o qual fazia com queessas convenções e pactos passassem a ser regulados porum instrumento superior que tinha na lei positiva o seu vi-gor:63 ao egoísmo humano Egídio opunha o poder coercitivo,capaz de obrigar os homens ao cumprimento dos pactos.64

Ou seja, para regular adequadamente essas relações,foram instituídos os reinos e seus reis, a quem cabia decidirsobre assuntos temporais. Mas, como esses reinos não seconstituíram por meio da justiça, e sim pela rapina e violên-cia, os mais fortes terminaram por submeter os mais fracos eos escravizaram. Como vivessem sem justiça, tais reinos setransformaram em latrocínios e seus governantes, em usur-padores. Tais poderes seculares eram ilegítimos e só podiamrecuperar sua justiça por meio de um poder superior, o ecle-siástico, capaz de conferir-lhes, por meio da graça, legitimi-dade.

O pecado, continuava Egídio seguindo Agostinho, noshavia tornado indignos de todo domínio e posse, tanto aque-le original cometido por Adão e Eva, quanto o atual, quandopecávamos por nós mesmos,65 já que em ambos os casos os

63 “Depois que os homens começaram a dominar sobre a terra e se torna-ram reis”, escrevia, “sobrevieram leis que tanto continham essas coisascomo acrescentavam outras. Mandam as leis que se observem os pac-tos, as convenções e os contratos lícitos; por estes pactos, convenções econtratos alguém pode dizer: isto é meu, isto é teu” (DPE, p. 138).

64 Esse raciocínio se repetiria anos mais tarde nos seus comentários àssentenças, tal como se viu acima.

65 “Assim também se diz que somos privados com justiça da herança eter-na ou pelo pecado de Adão, que se chama pecado original, porque é um

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homens não estavam sujeitos a Deus, vivendo pois sem jus-tiça.66 E ia buscar no antigo direito imperial romano seumodelo de monarca: o crime de lesa-majestade, explicava oFundatíssimo, tornava digno de morte e indigno da vida e detoda posse aquele que o cometera. “Ora, por antonomásia, amajestade se reserva a Deus e quem não se sujeita a ele éindigno de si mesmo e de toda a posse” (DPE, p. 113).67

Se os homens não fossem pecadores, o poder secularseria desnecessário. Mas, como o pecado residia na origemda vida temporal, era preciso que os governantes terrenosdispusessem e preparassem a matéria para o príncipe ecle-siástico, de modo que os súditos pudessem atingir o fim últi-

pecado que contraímos desde a nossa origem, ou pelo pecado próprio,que se chama atual, que é um pecado que cometemos por nossa pró-pria culpa” (DPE, p.111-2).

66 “Com efeito, Deus dera a Adão certo dom sobrenatural, que se chamavajustiça original, pela qual Adão estava sujeito a Deus, e todos os seusinferiores estavam sujeitos a ele. Este dom não foi dado a Adão comopessoa singular, mas como cabeça de toda sua posteridade. Chamava-se justiça original porque, se Adão não pecasse, passaria por origempara todos os seus pósteros [...]. Mas tendo Adão pecado e se afastadode Deus, com justiça perdeu tal dom e assim não pôde transmitir aospósteros, porque já não o tinha. [...] Portanto, os filhos de Adão e todosnós, com o pecado de Adão, nascemos sem tal justiça e afastados deDeus. Por isso diz o Apóstolo (Efésios 2: 3) que por natureza nascemosfilhos da ira e indignos da herança eterna, pois embora não tenhamosnascido dignos de uma pena dos sentidos, porque pelo pecado não nosé devida uma pena sensível, contudo nascemos dignos da pena de dano,porque nascemos dignos de ser privados da vida eterna. Portanto, pornatureza, pelo pecado original, nascemos filhos da ira, e não sujeitos aDeus, mas antes afastados dele, e, conseqüentemente, indignos da he-rança eterna” (DPE, p. 112).

67 E adiante: “E se é retirada a posse do possuidor indigno, e o domínio dodominador indigno, nada pode ser considerado mais digno e nada maisjusto. Por isso, se pelo pecado original alguém nasce já separado deDeus e pelo pecado mortal atual alguém se torna separado de Deus,segue-se que tanto o pecado original como o atual o tornam um possui-dor indigno das coisas” (DPE, p. 113).

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mo de todas as coisas, a vida na caridade de Deus. Nos ter-mos de Egídio Romano:

Fica claro que o poder terreno e a arte de governar o povodentro dos limites do poder terreno é a arte que põe amatéria à disposição do poder eclesiástico. [...] Do mesmomodo a arte de dominar, dentro dos parâmetros do poderterreno, e o próprio poder terreno, devem de tal maneiraestar sujeitos ao poder eclesiástico que coloquem a si mes-mos e todos os seus órgãos e instrumentos a serviço e aocapricho do poder espiritual. (DPE, p. 104-5)

Entre tais instrumentos a serem submetidos, estavamas leis e as armas.68 Porque a justiça não era algo do corpo, esim da alma – “Quem me julga é o Senhor” (1 Cor. 4: 4), diziao Apóstolo. Como constituísse uma qualidade do apetite in-telectivo, ela competia ao espírito.69 “Se se considerar bem oque se diz”, alertava Egídio Romano,

o poder terreno, e tal é o poder real ou o imperial, nãopoderá julgar o que é justo e o que não é, a não ser en-quanto age em virtude do poder espiritual, pois se a jus-tiça é coisa espiritual e é uma qualidade da alma e não docorpo, caberá ao poder espiritual julgar a respeito da jus-tiça. (DPE, p. 126)

Como havia mostrado Agostinho, a justiça era aquelavirtude que distribuía a cada um o que era seu. Só poderia

68 “Os órgãos e os instrumentos do poder terreno são: o poder civil, asarmas de guerra, os bens temporais que tem, as leis e as constituiçõesque cria; por isso deve ordenar a si mesmo e todas essas coisas comoseus órgãos e instrumentos a serviço e sob a vontade do poder eclesiás-tico” (DPE, p. 105).

69 “Com efeito, a justiça não é coisa do corpo, mas da alma, e não é umaperfeição de coisas corporais, mas é uma qualidade do apetite intelecti-vo, que não pode ser chamado nem de algo corporal, nem de algo orgâ-nico” (DPE, p. 126).

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haver verdadeira justiça se a cada um fosse dado o que lhecabia. Donde concluía não haver dominium algum,

nem útil (como por exemplo o domínio frutífero), nempotestativo (como é, por exemplo, o domínio que tem ju-risdição), que se possua com justiça, se o possuidor nãoestiver sujeito a Deus e que ninguém pode estar sujeito aDeus, se não o for pelos sacramentos da Igreja. Segue-seque, como dizíamos, és mais Senhor de tua posse e detudo que tens, por seres filho espiritual da Igreja, do quepor seres filho carnal de teu pai. A tua herança e todo teudomínio e toda tua posse deves reconhecer como vindosantes da Igreja e através dela e por seres seu filho, do quevindos de teu pai carnal e através dele, e por seres seufilho. Também segue-se que, se o pai, enquanto viver, émais dono da herança do que tu, a Igreja, que não morre,é mais dona das tuas coisas do que tu. (DPE, p. 110)

Por isso, somente a Ecclesia, por ter de Deus o poder de“ligar e desligar”, podia tornar o homem renatus, justo pos-suidor:

Conclui-se que, pelo sacramento do batismo, que é o re-médio direto contra o pecado original e, pelo sacramentoda penitência, que é o remédio contra o pecado atual, tetornas digno dominador, senhor e possuidor das coisas.Mas estes sacramentos só se distribuem na Igreja e pelaIgreja. [...] Ninguém, pois, torna-se dominador ou dignosenhor, ou possuidor das coisas, senão sob a Igreja e porela. (DPE, p. 113-4)

Daí se podia deduzir que todo dominium justo só podiaderivar do sacerdotium. Sem a regeneração por meio da Igre-ja não era possível suceder com justiça na herança paternanem obter o justo domínio sobre as temporalia.70

70 “Ora, [...] o suceder na herança paterna, por ser alguém gerado por umpai, é justiça iniciada, mas o suceder em tal herança, por ser alguémrenascido pela Igreja, é justiça perfeita e consumada. E a tal ponto esta

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Mas como o príncipe eclesiástico transmitia o justodominium aos fiéis? Depois da paixão de Cristo, explicavaEgídio Romano, caducaram os preceitos legais da lei antiga epassaram a valer aqueles instituídos pelo Cristo redimido(Novo Testamento). A Ecclesia dele havia recebido a universa-lidade e a tarefa de administrar os sacramentos: aqueles quenão tomassem o batismo não alcançariam a salvação.71 Areconciliação com o Senhor, portanto, podia se dar apenaspor meio da Igreja, católica, senhora plena e universal, a únicaa conferir o batismo, porta de todos os outros sacramentos.A dominação universal da Igreja estava descrita na Escritu-ra: Dominarás do mar até o mar, do rio até o fim do universo(Sl. 71: 8). “A terra inteira”, explicava Egídio, “está envoltapelos mares; portanto, dominar de mar a mar é dominar so-bre a terra inteira” (DPE, p. 133). Assim, a Igreja tirava do rio,isto é, do batismo, o poder de dominar até as fronteiras doorbe.

Mas por que do rio?

Com efeito Cristo, batizado no Jordão”, esclarecia o Dou-tor Fundatíssimo, pelo contato de sua puríssima carneconferiu às águas uma força regenerativa, de tal modoque, a partir de então, as águas tivessem a virtude de,

justiça que chamamos de perfeita e consumada é mais fecunda e maisuniversal que a outra, que, se esta faltar, aquela é tirada. Se alguémfosse gerado carnalmente por um pai e não renascesse também espiri-tualmente pela Igreja, não poderia possuir com justiça o domínio daherança paterna” (DPE, p. 106).

71 “Ela [a Igreja] recebeu esta universalidade e este sacramento a partir dapaixão de Cristo e depois dela. Antes da paixão, corriam as coisas legaise os evangelhos, a ponto de se salvarem os circuncisos e também osbatizados, mas, depois da paixão de Cristo, as coisas legais morreramde tal maneira que, a partir de então, ninguém se salva se não for bati-zado. Por isso se diz que a Igreja foi formada do lado de Cristo, porqueos sacramentos têm eficácia a partir da paixão [...]. Quando Cristo pa-deceu, a Igreja passou a ser universal, de modo que ninguém se salva-ria, senão através dos sacramentos dela” (DPE, p. 108).

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atingindo o corpo, lavarem também a alma. Ora, as águasnão podem ter esta força e esta virtude a não ser atravésdo batismo feito na forma da Igreja. Cristo, pelo fato deconferir tal virtude às águas, é chamado Senhor de todaterra. A Igreja confere o batismo e nela se realiza o batis-mo, porque só através do batismo é que estas águas po-deriam exercer a virtude de lavar almas humanas e deregenerar homens. Segue-se, pois, que a Igreja, a quemcabe administrar o batismo, e em cuja forma ele é admi-nistrado, que ela também tenha do rio, isto é, do batis-mo, o poder de dominar até os confins da terra; e porqueela exatamente por isso é católica e senhora universal,segue-se também que o universo e todos os que habitamnele sejam seus. A Igreja obteve de Cristo tal forma debatizar, porque tem de Cristo o poder de dominar destemodo. (DPE, p. 134-5)

A Igreja era portanto aquele organismo capaz de fazercom que alguém ficasse privado da comunhão dos homens,isto é, do fundamento do qual todas as interações humanasderivavam. Essa excomunhão privava também dos bens: “Oexcomungado, por estar privado da comunhão dos fiéis, estáprivado de todos os bens que possui, enquanto fiel. E ficariaainda muito mais privado, se se tornasse infiel e estivesseentre eles, já que os infiéis são indignos de toda posse e do-mínio” (DPE, p. 140). Dado que todo direito, incluindo o depropriedade, se baseava na comunhão dos homens, funda-mento dos pactos e das leis, aquele que fosse excluído dessacomunhão, e toda sua descendência, ficava necessariamen-te privado de suas posses, bens e domínios.72 Pois a Igrejatambém era senhora e mestra de todos o bens temporais.

72 “Já que tudo o que a Igreja ligar sobre a terra será ligado também noscéus, no sentido em que os assim ligados estão privados da comunhãocom os outros, e já que sobre tal comunhão se baseiam todos os direitosde propriedade, concluamos dizendo que, pelo poder geral, de ligar, osexcomungados, por estarem privados deste fundamento, não devendocomunicar-se com os outros, estão privados de seus bens, posses edomínios, a ponto de não poderem dizer que algo é seu” (DPE, p. 141).

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Todas as coisas temporais se colocavam, portanto, sobo domínio e poder da Igreja. “Nem por isso”, avisava Egídio,“pretendemos subtrair ao poder terreno e aos príncipes se-culares seus direitos, mas antes conservá-los” (DPE, p. 83-4). E justificava:

É preciso que as coisas temporais se disponham às espi-rituais; [...] porque, uma vez que estas são transitórias eefêmeras, em nenhuma delas deve ser buscada a felici-dade; e uma vez que são bens extrínsecos e que não po-dem saciar a alma, a nossa felicidade não poderia estarna posse de tais bens. (DPE, p. 84)

A felicidade, esclarecia ele baseando-se em Averróis,devia ser buscada nos bens espirituais que podiam habitar aalma e saciá-la. “Logo”, concluía, “se o nosso fim ou a nossafelicidade não deve ser buscado nas coisas temporais, masnas espirituais, é preciso admitir que as coisas temporaisnão são boas, a não ser enquanto se ordenam às espirituais”(idem).

As posses temporais, portanto, deviam ser considera-das “instrumentos de apoio” úteis à consecução dos bensespirituais. Quando não estavam a serviço desse fim, argu-mentava ele, as coisas temporais deixavam de ser boas. E,embora continuassem a ser boas em si (dado que tudo o queexistia era bom pelo simples fato de existir), não o eram emrelação aos homens, já que estes deviam estar corretamenteordenados ao bem supremo espiritual. Daí seguia-se que

o príncipe ou qualquer homem que tenha coisas tempo-rais, se não as ordenar às espirituais, essas coisas tem-porais não lhe serão boas, porque não lhe são para asalvação, mas para a condenação da alma. Por isso, ascoisas temporais, de per si, se ordenam às espirituais edevem submissão a estas, servindo-as. E o sumo pontífi-ce que, no Corpo Místico, domina totalmente as coisasespirituais, é manifesto que domina também todas ascoisas materiais, uma vez que estas se sujeitam às espi-rituais. (DPE, p. 85)

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Também o poder pertencia ao gênero das coisas boas,dizia Egídio, já que tudo o que vinha de Deus era em si bom.O uso que se fazia dele, contudo, podia não ser bom. Por essarazão, Egídio Romano podia falar num poder ordenado (aqueledos bons) e noutro permitido (o dos governantes maus ouinfiéis): essa separação era o que distinguia os que manda-vam de iure, isto é, por ordem do Senhor daqueles que domi-navam apenas de facto, por meio da coerção e da violência,porque não usavam bem o poder que Deus lhes concedera, oqual, embora justo na raiz, se tornava injusto pelo mau uso.

O poder temporal, sustentava Egídio Romano, não vi-nha diretamente de Deus para o governante terreno, comoqueriam muitos, mas sim de Deus, causa primeira, para osumo sacerdote, que, na qualidade de causa intermédia, porsua vez, instituía o poder secular justo.73 E, se os príncipesterrenos estavam sob o dominium do poder eclesiástico, di-zia, seguia-se que também as temporalia sobre os reinos se-culares estavam sob o senhorio da Ecclesia. E declamava nomelhor estilo tomista:

Nunca de duas coisas em ato se faz uma coisa, nem deduas em potência, mas uma coisa sempre se faz de umapotência e de um ato, como se demonstra amplamente

73 “Erram os que dizem que o sacerdócio e o império, ou o sacerdócio e opoder real [potestas regia] vieram tanto um como o outro diretamentede Deus, pois, por ordem de Deus, o primeiro rei no seio do povo fiel foiconstituído através do sacerdócio. De fato, inicialmente o povo judeu,que era então o povo fiel e ao qual sucedeu o povo cristão, era regidoatravés de juízes, que eram instruídos pelos sacerdotes. [...] A estesjuízes, quanto às causas temporais entre as pessoas leigas, sucedem oimperador, os reis e os príncipes terrenos. Era porém o poder sacerdo-tal e eclesiástico que constituía estes juízes, porque Moisés, retendopara si o poder sobre as coisas que se referem a Deus, com o que sequer significar o poder eclesiástico, constituiu tais juízes, que exerciamo ofício do poder terreno (Ex. 18: 25s) e Samuel (1 Sm 8: 1) constituiuseus filhos como juízes sobre Israel” (DPE, p. 91).

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na física natural. Se, pois, da alma e do corpo se faz umacoisa, se constitui o homem, é preciso que uma coisaesteja sob a outra, que uma coisa se aperfeiçoe graças aoutra, que uma se sujeite à outra. Assim, o corpo estásob alma, se aperfeiçoa graças a ela e está ordenado paraservir à alma. (DPE, p. 93)

Egídio conferia assim novo sentido à máxima tomistade que “a natureza era apefeiçoada pela graça”: a relaçãoentre as duas deixava de ser de complementaridade e passa-va a ser de subordinação.

E concluía, distanciando-se do mestre:

Consta que o sumo pontífice não tem poder sobre as al-mas separadas dos corpos. A Igreja pode, é verdade, re-zar em favor das almas que estão no purgatório, com asquais está em comunhão pela caridade, mas tem poderdireto e jurisdição direta só sobre as almas unidas, quepresidem os corpos, ao mando das quais os corpos semovem. [...] Segue-se que, assim como a autoridade espi-ritual se exerce sobre as almas, enquanto presidem oscorpos, assim esse poder [espiritual] se exerce de tal ma-neira sobre as almas que todo o corporal e terreno estásujeito a elas, e o poder espiritual possui de tal maneiraseu gládio que o gládio material está sujeito a ele, emboranão para o uso, mas à sua disposição. Disso ficam bemclaro que todas as coisas temporais [temporalia] estãocolocadas sob o domínio [sub dominio] da Igreja. (DPE,p. 94)

A Ecclesia, que tinha dominium sobre todas as coisas,embora confiasse a terceiros os assuntos temporais, podia,quando a causa fosse justa, retomar o rigor:

Assim também a Igreja, quanto ao domínio [dominium],possui tudo, mas deve ser tão grande a sua preocupaçãocom as coisas espirituais, a ponto de confiar aos outros apreocupação das coisas temporais, para que ela, quantoà preocupação, não tenha bolsa nem alforje, e no quetange a tal preocupação, seja como se nada possuísse.

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[...] Conclui-se, pois, que o rigor do plano de conduta ecle-siástica é libertar-se do cuidado e preocupação das coi-sas temporais, para que possa exercer melhor o cuidadoespiritual. Contudo, surgindo causa justa, segundo a li-ção de Beda, pode pôr-se de lado este rigor, para que aIgreja se preocupe também das coisas temporais. (DPE,p. 95-6)

Tal poder de dominar sobre todas as coisas existentes,entretanto, não derivava da pessoa do sumo sacerdote, es-clarecia Egídio Romano, mas do cargo (ex officio), pois o pontí-fice de agora era o mesmo, embora não fosse o mesmo homem.74

Nessa separação residia um importante avanço operado pelopensamento hierocrático: a diferenciação entre o cargo e seuocupante.75 A força vinculante das decisões papais não provi-nha da pessoa do pontífice, mas constituía um atributo dafunção, cuja autoridade derivava de Deus: por ser o vigário deCristo na terra, toda consideração de natureza pessoal eraexcluída e toda jurisdição lhe era devida.

Justamente porque o papado constituía uma institui-ção política, lembra Ullmann, “ era evidente que recorresse àlei e à jurisdição. Não podia existir governo algum dentro daordem se a validade objetiva de seus decretos e medidas de

74 “E assim como Pedro obteve diretamente de Cristo o governo da Igreja,assim também o sumo pontífice de agora tem reconhecidamente talpoder que recebeu diretamente de Deus ou de Cristo, que era verdadei-ro Deus. [...] Segue-se disto que de corpo e de alma, com tudo que têm,os fiéis estão sujeitos ao império do sumo pontífice” (DPE, p. 87).

75 “Se o sumo pontífice julga tudo e este julgamento não é apenas devido auma qualidade pessoal mas devido a seu ofício e por exigência de seuestado”, escrevia Egídio adiante, “segue-se que julga tudo porque temautoridade e jurisdição em tudo. Mas quem diz tudo, não excetua nada.Então o universo e os que habitam nele, como dizíamos, é todo seu.Tem, pois, jurisdição e poder sobre todos os possuidores e posses, jáque os possuidores e as posses estão computados dentro da palavratudo, e não julgaria todos, a menos que tivesse jurisdição sobre todos”(DPE, p. 137).

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governo tivessem de depender do caráter subjetivo e pessoaldo agente que criave as leis, ou seja, neste caso, de que opapa legislador fosse moralmente uma pessoa boa ou má”.76

Dentro em breve essa distinção eclesiástica seria utili-zada para fundamentar os “dois corpos do rei”.

Além disso, segundo a ordem do universo, acrescenta-va Egídio, tudo estava ordenado do imperfeito ao perfeito;assim também as coisas imperfeitas às mais perfeitas.

E porque ninguém duvida que as coisas divinas são maisperfeitas que as humanas, e as celestes que as terrenas,e as espirituais que as corporais, nada mais convenientedo que o poder real, que é poder humano e terreno e queatua sobre coisas corporais, sujeitar-se e estar ordenadoao serviço do poder sacerdotal e, principalmente, do po-der do sumo pontífice, que é o poder até certo ponto divi-no e celeste e que atua sobre coisas espirituais. (DPE,p. 88)

O poder, definia Egídio, nada mais era do que a quali-dade pela qual se dizia ser alguém poderoso. Também ospoderes, que podiam ser de quatro gêneros,77 deviam ser or-denados dos inferiores aos superiores,78 do imperfeito ao

76 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 123.77 “Distinguem-se, pois, quatro gêneros de poderes: um gênero são as

forças naturais, outro são as artes, o terceiro são as ciências, e o quartosão os principados e os governos dos homens. E qualquer um destespoderes consiste em certa disposição e proporção, assim o poder natu-ral está proporcionado à produção dos efeitos naturais; o poder artifi-cial é a reta razão ou a proporcionada produção das coisas factíveisartificialmente; o poder científico é a reta razão das considerações espe-culáveis; e o poder dos principados é a proporcionada e reta razão dogoverno dos homens” (DPE, p. 98).

78 “E nos três primeiros gêneros [de poder] indicamos três razões e causasda sujeição e da dominação. Nas forças naturais, porque dominam asforças celestes, indicamos como razão e causa a generalidade e a con-

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perfeito. O principado temporal, do mesmo modo, deveria sesujeitar ao espiritual por três razões: “tanto porque é maisparticular, como porque dispõe e prepara a matéria, comoporque o poder terreno não se aproxima tanto da perfeição enão a atinge, quanto o poder espiritual” (DPE, p. 100). Comojá havia dito Isidoro, emendava ele, a Igreja era chamada decatólica, isto é, universal, e por isso o seu poder era maisuniversal do que o terreno. “Portanto, a Igreja é santa e cató-lica, isto é, universal; e não seria verdadeiramente universal,se não estivesse totalmente à frente de tudo” (DPE, p. 101).

A Igreja só podia ser chamada católica, explicava EgídioRomano, se tivesse dominium tanto sobre os fiéis quanto so-bre os seus bens. Aos senhores terrenos cabia reconhecer aparticularidade de seu governo diante do eclesiástico, e pre-parar a matéria para o espírito, as temporalia para as spiritu-alia. Assim,

é tarefa do poder terreno fazer justiça sobre essas coisas[temporais], para que ninguém prejudique ninguém, tantono corpo como nas coisas, e que qualquer cidadão [civis]e qualquer fiel goze dos bens. A tarefa do poder terreno é,pois, preparar a matéria, a fim de que o príncipe eclesiás-tico não fique impedido de agir nas coisas espirituais,visto que o corpo foi feito para servir à alma e as coisastemporais para serem úteis ao corpo. [...] Conseqüente-mente, todo o ofício do poder terreno é governar e regerestes bens exteriores e materiais de tal maneira que osfiéis não se sintam entrevados na paz da consciência e daalma, como também na tranqüilidade da mente. (DPE,p. 103)

tração: as forças celestes dominam porque são gerais, e as forças infe-riores se sujeitam porque são contraídas e particulares. Nas coisas ar-tificiais indicamos como razão e causa a preparação da matéria, pois aarte de talhar a pedra se sujeita à de construir casas, e a de fazer freiosà militar, porque lhes preparam e dispõem a matéria. Nas ciências,indicamos como razão e causa a maior aproximação da perfeição: aque-la que atinge mais de perto a perfeição [a Teologia] domina, enquantoque as outras se sujeitam” (DPE, p. 100).

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O dominium da Igreja sobre as coisas temporais eraportanto universal e superior, enquanto o dos fiéis era parti-cular e inferior.79 E assim como a substância corporal seregia pela espiritual, também as coisas temporais se subor-dinavam ao seu poder, e a força inferior se sujeitava à supe-rior.80 “Portanto como o gládio espiritual pode julgar todas ascoisas temporais, tem ele um domínio universal jurisdicionale potestativo sobre as temporais; e porque pode colher detodas as coisas temporais, tem um domínio universal útil efrutífero” (DPE, p. 125). Ora, quem tinha o poder de julgarsobre as coisas superiores, dizia Egídio, podia também commaior propriedade julgar as inferiores, dado que o temporalse ordenava ao espiritual. Por isso, a Igreja, repetidas vezes,interpunha seu gládio espiritual – a censura eclesiástica –contra os usurpadores e aqueles que detinham indevidamenteas coisas, principalmente quando estes perturbavam a paz eo bem públicos.

Estava fundamentado assim o dominium de iure da Igre-ja sobre os demais poderes. Era difícil negar, numa época deprofunda devoção religiosa, a força da argumentação egidiana.

79 “Contudo, deve-se observar que, embora digamos que a Igreja é mãe edona de todas as posses e de todas as coisas temporais, nem por issoprivamos os fiéis de seus domínios e de suas posses, porque, como seesclarecerá abaixo, tanto a Igreja tem tal domínio, como também os fiéiso têm: mas a Igreja tem domínio universal e superior, enquanto os fiéis,particular e inferior. Damos portanto o que é de César a César e o que éde Deus a Deus, porque atribuímos à Igreja um domínio universal esuperior das coisas temporais, enquanto que aos fiéis prodigalizamosum domínio particular e inferior” (DPE, p. 110).

80 “Com efeito, quem julga as coisas espirituais, pode muito mais julgar asmateriais, pois quem vê e julga as coisas mais subtis, as mais rudesnão lhe devem ficar escondidas, nem lhe podem escapar ao juízo. Eassim como quem julga as coisas espirituais pode julgar as materiais,assim também quem semeia coisas espirituais, pode colher tanto ascarnais como as temporais” (DPE, p. 124).

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A conclusão lógica dessas premissas era a completa subordi-nação dos poderes terrenos à esfera de atuação do podereclesiástico:

Por este motivo todas as leis imperiais e as do poder terre-no devem ordenar-se aos cânones eclesiásticos, para quedeles obtenham vigor e também solidez. Todas as leispublicadas pelo poder terreno, para que tenham vigor efirmeza, não podem contradizer as leis eclesiásticas, masantes devem ser confirmadas através do poder espiritual eeclesiástico. A justiça é coisa espiritual, por ser uma certaretidão só perceptível pela mente. (DPE, p. 126-7)

A tradicional hierarquia das leis – eterna, divina, natu-ral e humana – que vingara até então era agora acrescida deuma nova ordem, a canônica, que se interpunha entre a na-tural e a humana, numa hierarquia descendente e sem rup-tura. As antigas reivindicações dos papas hierocratasganhavam desse modo um aparato jurídico e filosófico con-sistente. O papado era, nesse modelo, um organismo capazde transformar a pura doutrina em leis obrigatórias para osfiéis. A catolicidade da Igreja, comenta De Boni, “converte-se,assim, de universalidade da salvação em universalidade daposse. O aforisma patrístico ‘Extra Ecclesia nulla salus’ trans-forma-se em Extra Ecclesia nullum dominium.”81 Esse siste-ma, contudo, logo seria posto em xeque: João Quidort, porexemplo, daria largos passos na direção de afastar a inter-mediação da Ecclesia na vida temporal. Também a idéia deum indivíduo autônomo, portador de direitos inalienáveis jádava, antes mesmo de Guilherme de Ockham, os primeirossinais de vida.

Não se pode dizer, contudo, que o poder temporal, paraEgídio, não tivesse papel algum: seria, no mínimo, uma re-dução grosseira da construção egidiana. Embora se subordi-

81 DE BONI. Introdução. In: DPE, p. 24.

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nasse ao sumo sacerdote, explicava Egídio Romano, isso nãosignificava dizer que o poder terreno fosse inútil:82 para que opoder sacerdotal pudesse dedicar-se mais intensamente aosassuntos do espírito, instituiu, para sua conveniência, o po-der temporal para agir em seu nome. Os cristãos deviam sesubordinar, voluntariamente e de bom grado, tanto ao poderespiritual quanto ao temporal. E isso era necessário paraque se pudesse ordenar devidamente o corpo dos fiéis, deacordo com as funções específicas de cada estado, “já que ospoderes espirituais não têm diretamente e por si mesmos ojuízo de sangue, mas exercem tal juízo por meio de outrosministros e através dos poderes seculares” (DPE, p. 43).

A cada um dos poderes cabia tarefas específicas e cadaqual julgava de acordo com seus instrumentos:

Os poderes espirituais requerem que os sirvamos de mentee de vontade, mas os poderes seculares, se não os servi-mos de vontade e de mente, forçam-nos pelo juízo de san-gue e também pela morte, que é o fim de todas as coisasterríveis, como se diz na Ética a Nicômaco (l. 3, c. 6; 1115a).Os prelados eclesiásticos exercem o poder pela censuraeclesiástica e pela excomunhão, nunca pelo juízo de san-gue; [...] não que agir assim seja pecado, pois manda oSenhor (Ex. 22: 18), [...] mas porque a Igreja não deve termancha, nem ruga, nem inconveniência alguma. Have-ria certa inconveniência no fato de que o chefe espiritualexercesse por si mesmo o juízo de sangue. Por isso, taisjuízos se exercem pelos poderes seculares. (idem)

82 Esse raciocínio não excluía, contudo, a obrigatoriedade da sujeição dossúditos ao governante temporal: embora, na ordem do universo, o âm-bito temporal estivesse subordinado ao espiritual, a esfera secular, quan-do considerada apenas em si mesma, tinha na figura do príncipe o seugovernante máximo, ao qual todos os súditos, fiéis e infiéis, deviamestar submetidos: “Portanto, sob ambos, tanto sob o príncipe bom comosob o mau, podemos progredir: sob o bom, porque por ele somos nutri-dos, e assim nos aperfeiçoamos e progredimos; sob o mau, porque porele somos tentados, e temos provações e nos purificamos” (DPE, p. 42).

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O poder terreno devia usar seu gládio, portanto, damaneira que conviesse à Igreja, sem intrometer-se jamaisnos assuntos espirituais superiores.83 Para demonstrar aconvivência entre as diferentes ordens existentes no univer-so, Egídio recorria à hierarquia dos anjos, que seria seme-lhante àquela encontrada no mundo dos homens:84

Os anjos estão coordenados e são divididos para nossasalvação e para o nosso bem, nem ficam sobrando para oregime do universo os anjos inferiores por existirem ossuperiores. Muito mais devem ser distintos os principa-dos e os poderes entre os próprios homens, porque se háanjos distintos e ordenados para o bem dos homens, ospróprios homens, para o seu bem, com muito maior ra-zão, devem ser divididos e ordenados. Não vai ficar so-brando o poder e o gládio inferior por haver o poder e o

83 “O mesmo acontece no regime e no governo dos homens, que são com-postos de ambas as substâncias, espiritual e corporal: aquele poderque é espiritual, é geral e se estende também às coisas corporais, en-quanto que aquele que está especialmente ordenado para as coisas cor-porais, é particular e restrito e, de per si e enquanto tal, não se poderáintrometer no campo das coisas espirituais. Entretanto, pelo fato deexistir o poder espiritual, que é geral, não se torna supérfluo o poderterreno, que é restrito e particular, tal como dizíamos no caso das ciên-cias” (DPE, p. 150-1).

84 “O mesmo acontece nesta questão: no governo do mundo e no regimedo universo há anjos que, unidos a Deus e nos vestíbulos dele, conhe-cem a bondade dele, de que maneira quer que se reja o universo; são aprimeira hierarquia que contém três ordens: os diletos, os sábios e osque divulgam decisões. Diletos são os serafins, sábios os querubins, edivulgam as decisões aos tronos. [...] Os serafins sendo os diletos deDeus, e porque conhecem primeiro os segredos divinos [...] iluminam osquerubins a respeito desses segredos [...]. Por sua vez os querubins, jáiluminados pelos serafins e já conhecendo os segredos e as decisões deDeus, iluminam os tronos, para que eles anunciem aos outros e osiluminem a respeito das decisões e dos segredos divinos. Diz-se, por-tanto, que Deus está sentado sobre os tronos e que promulga neles assuas decisões, porque eles anunciam às hierarquias inferiores as deci-sões de Deus a respeito do regime do universo” (DPE, p. 156-7).

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gládio superior, muito embora tudo que pode o gládioinferior, possa também o superior. (DPE, p. 159-60)

Nesse modelo nada era supérfluo: o gládio espiritualpodia, junto com o material, algo que não poderia sem ele, domesmo modo que o ferreiro podia algo com o martelo que nãopoderia sem ele. Pedro havia sido proibido pelo Senhor de usaro gládio material, devendo guardá-lo na bainha. Isso não sig-nificava contudo que a Igreja não tivesse o gládio temporal:85 aeficácia da espada espiritual, argumentava Egídio, não era vi-sível aos olhos corporais. Ela contudo existia e feria: “O gládiodesembainhado, pelo fato de ser desembainhado, tornou-sevisível, e assim considerando, representa o gládio material,que é visível e faz feridas visíveis. Enquanto que o gládio nãodesembainhado, que por causa disso estava oculto e invisível,representa o gládio espiritual, que não pode ser visto por olhoscorpóreos; é a ele que cabe ferir e golpear a alma, cujas feridasos olhos corporais não podem ver” (DPE, p. 173).

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Por ser senhora de direito de tudo quanto havia nomundo, residia na Ecclesia – que tinha no sumo pontífice o

85 “A Igreja tem ambos os gládios: Pedro é o porta-chaves do reino terrenoe celeste; todo poder que o poder terreno tem, tem também o eclesiásti-co. Não há nenhum poder no gládio material que não haja no espiritual,mas há no material de um modo que não há no espiritual, porque ogládio material pode exercer diretamente o juízo de sangue, o que oespiritual não pode, isto é, não convém que exerça. Logo, não é que ogládio material possa o que não pode o espiritual, mas pode de ummodo que este não pode. Por isso alguns doutores observaram que aIgreja tem ambos os gládios enquanto autoridade primária e superior, epor isso mais a Igreja que o poder terreno é que tem o gládio material,porque ter alguma coisa baseado em autoridade primária e superior éalgo mais do que em autoridade secundária e inferior” (DPE, p. 166).

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seu representante máximo – a plenitudo potestatis, diziaEgídio no Livro III. Por isso, pertencia a ela criar leis, publicá-las aos povos, explicá-las e interpretá-las.86 Aqueles quediziam ter o imperador o mesmo poder porque “o que aprazao príncipe tem força de lei”, como estava dito nos Instituta,exortava Egídio, tinham de compreender que havia um gládiosob outro, um principado sob outro. Do mesmo modo, erapreciso que as leis se sujeitassem às leis. Pois o poder daIgreja, e portanto o do sumo sacerdote, que a representava,era sem peso, número e medida.87 Mesmo assim, o pontífi-ce devia se impor limites e procurar viver de acordo com asleis estabelecidas, já que convinha àquele que criava as leisobservá-las.88

86 “Ora, a quem pertence instituir leis, pertence também promulgá-las einterpretá-las. Se variam as sentenças dos juízes, seja por causa dacondição da lei, ou pela amplitude de sua abrangência ou por causa desua interpretação, tudo caberá ao sumo pontífice” (DPE, p. 220).

87 Somente o papa detinha todo o poder que havia na Igreja, dizia Egídio.Por isso, “o sumo pontífice ordena em si mesmo, [por]que é número semnúmero, peso sem peso e medida sem medida. Ele é número sem nú-mero quanto às ovelhas que lhe são confiadas, porque não lhes foramconfiadas estas ou aquelas, mas foram-lhe confiadas todas. [§] [...] Emsegundo lugar, também o sumo pontífice é peso sem peso, se se consi-derar o modo segundo o qual lhe foram confiadas as ovelhas: foram-lheconfiadas de tal maneira que pudesse administrar os sacramentos daIgreja, que pudesse absolver de todo peso dos pecados. O seu modo depresidir pesa, pois, mais que todo peso dos pecados. Há então nele pesosem peso, porque se fosse um peso ponderado, não pesaria mais quetodo peso. [§] [...] Em terceiro lugar, o sumo pontífice é medida semmedida, se se considera a pessoa dele, a quem as ovelhas foram confi-adas, porque nele há sem medida o poder no qual está todo poder daIgreja” (DPE, p. 239-40).

88 “Embora o sumo pontífice seja alguém sem limite e freio, um homemacima das leis positivas, contudo ele deve impor-se limites e viver deacordo com as leis estabelecidas, e, a menos que surjam certos casos ecertas causas exijam, deve observar as leis que constituiu, porque, comose transmite em outra ciência, quem cria as leis, deve observá-las” (DPE,p. 222).

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E porque as leis se sujeitavam às leis, Egídio podia afir-mar sem maiores problemas que a

criação das leis remete, pois, a jurisdição temporal aosumo pontífice, ou casualmente, nos casos não suficien-temente determinados pelas leis; ou não só casualmen-te, mas considerando certas causas, nas quais as leisnão devem ser observadas. Portanto, se há casos nãoprevistos pelas leis, ou porque considerando certas cau-sas as leis não devem ser observadas (casos que perten-cem à criação das leis), ou se as leis falam ambiguamente(casos de interpretação), a Igreja exercerá jurisdição tem-poral baseada na plenitude do poder que nela reside. (DPE,p. 222)

Mas em que consistia a plenitude de poder? A essaquestão Egídio respondia dizendo que a plenitude existe numagente

quando este pode efetuar, sem causa segunda, tudo oque pode com a causa segunda. Se algum agente nãotem tal poder, segue-se que não tem pleno poder, porquenão tem o poder no qual se concentra todo o poder. [...]no próprio Deus há plenitude de poder, porque tudo oque pode com a causa segunda, pode sem ela, a tal pontoque o poder de todos os agentes se concentra no primeiroagente que é Deus. [...] E embora possa tudo, administraas coisas deixando-as seguir seus próprios rumos. Con-tudo, às vezes Deus faz milagre ou mesmo milagres, quan-do age fora do rumo comum da natureza e não segundoas leis comuns dadas a ela. (DPE, p. 223)

Do mesmo modo, o sumo sacerdote, quanto ao poderque havia na Igreja, tinha a plenitude de poder,89 podendosem a causa segunda tudo o que podia com ela.

89 “Para que não fiquem supérfluas as obras de sua sabedoria, Deus agequase sempre de acordo com as leis que deu às coisas, e quase sempreobserva as leis para que o efeito dos agentes segundos aja mediante osagentes segundos. [...] Assim também o sumo pontífice, porque lhe cabeestabelecer as leis de como a Igreja deve ser governada, e deve governar

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Sendo a causa justa e racional, podia o sumo pontíficeusar livremente esse poder. Pois onde existia intenção santahavia também liberdade. Mas, como ao papa cabia criar edar leis a toda Igreja, ele estava por essa razão acima de taisleis, pois havia nele a plenitude de poder. Era do mundonatural, entretanto, que Egídio tirava seu exemplo:

Assim estão assinalados os dois modos de plenitude dopoder. Um quando pode sem causa segunda o que podecom a causa segunda, e assim é que Deus pode sem osagentes naturais tudo que pode com eles. Também o sumopontífice pode sem quaisquer pessoas tudo que poderiacom elas. Pelo outro modo, Deus dá leis naturais às coi-sas naturais como, por exemplo, dá esta lei ao fogo deque esquente, à água que esfrie; há contudo nele a pleni-tude do poder, porque pode agir fora dessas leis. Do mes-mo modo o sumo pontífice dá às pessoas leis positivas emorais; entretanto há nele plenitude de poder, porquepode agir fora destas leis. (DPE, p. 227-8)

Embora reconhecesse que o sumo pontífice não se igua-lava ao “céu sensível”, havia, segundo Egídio, semelhançasentre os dois poderes.90 O senhor temporal, mesmo tendojusto dominium sobre as coisas – obtido somente da Ecclesia

a Igreja conforme essas leis, deve permitir que os cabidos façam suaseleições e os prelados exerçam suas ações, e que os demais membrosda Igreja realizem seus trabalhos de acordo com a forma que foi dada aeles. Contudo, por motivo racional, pode agir fora destas leis comuns,sem os outros agentes, porque se concentra nele o poder de todos, poisnele está o poder todo de todos os agentes da Igreja, a ponto de se dizerque nele reside a plenitude do poder” (DPE, p. 224).

90 “Podemos referir cinco coisas do céu que podem ser aplicadas ao poderdo sumo pontífice; primeiro, o céu quanto ao ser é cheio de forma; se-gundo, quanto à posição, ou seja, quanto à ordem, está sobre tudo;terceiro, quanto à grandeza, ou à capacidade de conter, contém tudo;quarto, quanto à ação age e influi em tudo; quinto, quanto à passivida-de, não é tocado por ninguém e não sofre nada de ninguém, uma vezque toca tudo e age em tudo” (DPE, p. 229).

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por meio do renascimento batismal e da purificação pela con-fissão –, o tinha de um modo diferente do que o possuía aIgreja: “porque estão [as coisas temporais] sob a Igreja comosob aquela que tem o domínio superior primário, que é prin-cipal e universal; e sob o domínio temporal como sob o donoque tem domínio inferior e secundário, que é direto eexecutório” (DPE, p. 234). Em razão desse domínio superiore primário, dizia Egídio, devia-se à Igreja o dízimo e as oblaçõesde todas as coisas temporais; e, por causa do domínio infe-rior e secundário, eram devidos aos poderes terrenos outrasutilidades e emolumentos provindos das coisas temporais.91

O dominium que a Igreja tinha sobre as coisas, portanto, erasuperior ao de César. Por isso, o direito de César devia orde-nar-se àquele da Igreja.

Assim, tanto o domínio útil quanto o domínio potestativode César sobre as pessoas ou as coisas temporais, dos quaisnão devia ser privado de forma alguma sem culpa e sem cau-sa, estavam sob a Ecclesia:

Fica claro também que nenhuma coisa temporal está sobCésar que não esteja sob a Igreja, porque nada foge dodireito superior e primário desta. E se algum sumo pon-tífice doasse algum direito, o seu sucessor poderia revogá-lo, já que tal direito não pode ser confirmado por umsuperior, uma vez que o papa não tem nenhum superiore o sucessor poderia revogar porque um igual não temdomínio sobre outro igual. Mas a Igreja pode ter algumascoisas temporais sobre as quais César não tem nenhumdireito, porque César pode dar à Igreja todo o direito quetem sobre tais coisas, e isso pode ser confirmado pelo

91 “Voltemos pois à questão e digamos que sobre as coisas temporais aIgreja tem o seu direito e César o seu, e ambos os direitos são de algummodo úteis e de algum modo potestativos. [...] Com efeito, depois quesão dados à igreja os dízimos, tributadas as oblações e apresentadas ascoisas que se devem às igrejas, o resto é de César, isto é, do senhortemporal. Assim, portanto, se dá à Igreja o que é da Igreja e a César oque é de César” (DPE, p. 235).

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papa, de modo que o sucessor de César não poderá revo-gar, porque César, ou qualquer senhor secular, agiriaacima do seu âmbito, ao querer revogar o que foi confir-mado pelo papa. (DPE, p. 237 – grifos meus)

Os futuros monarcas absolutos disporiam de materialsuficiente, mas sobretudo autorizado, para se inspirar.

Egídio reivindicava para o pontífice, portanto, uma ple-nitudo potestatis que continha todos os poderes sacerdotaise reais. O poder que a ele não se submetesse não seria exer-cido legitimamente. A noção de dominium deslizava, portan-to, da indicação de posse, típica do direito privado,92 para ade superioridade numa relação entre pessoas. Senhorio, emsentido estrito, podia referir-se, segundo Egídio Romano, tantoà propriedade – quando a coisa material se encontrava sujei-ta a um senhor – quanto ainda, em sentido amplo, à sujeiçãode um homem a outro – quando se podia falar da autoridadepolítica. Em qualquer caso, posse material ou relação de co-mando, Egídio apontava como indispensável a condição delegalidade. Pois o exercício desse poder fundava-se num di-reito.

Esse direito ao dominium podia ser obtido apenas pormeio da graça divina, que operava pelos sacramentos confe-ridos pela Ecclesia, mediadora entre Deus e os homens e,portanto, dominadora universal. Como conseqüência, erapossível dizer que os infiéis jamais poderiam gozar de pode-res nem autoridade legítimos: se detinham algum, era entãode maneira ilegítima e por usurpação. Tal dominium tampoucose obtinha por herança ou conquista, mas apenas por meio

92 Dominium, no direito romano, tanto podia indicar a posse, generica-mente, quanto designar formas de propriedade, como o dominium exiure Quiritium, a propriedade quiritária, direito exercido por um romanosobre um imóvel romano ou itálico. Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições dedireito romano. Rio De Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 229-30.

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da regeneração, que supunha o batismo. A autoridade deoperar os sacramentos, matéria do espírito, derivava dos po-deres de “atar e desatar” conferidos a São Pedro.

Por essa razão podia o sumo pontífice, detentor de iuredas duas espadas, instituir o poder terreno: como sumo sa-cerdote delegava o cuidado do gládio material ao “ministrotemporal”. O poder como tal, mostrava Egídio, diferenciava-sede sua execução. A fórmula evangélica da sagração de SãoPedro (“tudo que ligares na terra será ligado no céu, tudo quedesligares na terra será desligado no céu”) era invocada, maisuma vez, para afirmar a jurisdição tanto religiosa quanto se-cular da Santa Sé. O papa, portanto, cujo poder derivava dire-tamente de Deus, era a fonte autêntica de todos os poderesinferiores, já que nenhum outro era mais perfeito do que ele.

Pelo mesmo motivo podia o bispo de Roma prescindirdas leis, se assim o aconselhasse a situação. Deus, quandooperava milagres, argumentava Egídio, às vezes deixava delado as leis naturais. Da mesma forma, podia o pontífice dis-pensar da regra positiva e ir além dela. A jurisdição papal,flexível e modificável, observa Ullmann, estendia-se a todo omundo: fundamentava-se assim juridicamente o princípioda supremacia universal da Ecclesia sobre a comunidade ci-vil.93 Essa combinação do supremo poder temporal e espiri-tual na pessoa do dominus mundi, que, como recorda Canning,adquiria sentido prático no governo pontifício exercido sobreo Patrimônio de São Pedro, acabaria inaugurando o Estadomoderno, especialmente aqueles dos monarcas absolutos.94

Pois, também no modelo de Egídio, a instituição ecle-siástica constituía mais do que um mero corpo místico ou

93 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 121-2.94 Cf. CANNING, J. A state like any other? The fourteenth-century papal

patrimony through the eyes of roman law jurists. In: WOOD, Diana. (Ed.)The Church and sovereignity c. 590-1918: essays in honour of MichaelWilks. Oxford: Blackwell, 1991. p. 245-60.

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sacramental: era um corpo governamental que tinha nosumo pontífice o seu princeps. Suas decisões tinham im-plicações terrenas bastante definidas, já que constituía aúnica fonte legítima de organização da vida civil dos cris-tãos neste mundo, além de monopolizar a garantia da suasalvação no mundo post mortem. “Ao tentar espiritualizaro mundo, apelando para uma concepção agostiniana desociedade”, comenta De Boni, “Egídio acabou mundani-zando a Igreja, esvaziando o conceito de justiça e politizandoos sacramentos”.95 Conscientemente ou não, Egídio Ro-mano erguia com a sua teoria mais um pilar no vigorosoedifício que constituiria a soberania no Estado territorialmoderno.

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A resposta imediata ao tratado de Egídio Romano foiescrita por João Quidort ou João de Paris. Retomando a no-ção do rei como “um imperador dentro de seu reino”, JoãoQuidort escrevia ao mesmo tempo contra os defensores dosacerdotium e contra os do imperium. Do confronto entre es-ses dois universalismos, nascia, depois de um longo proces-so de gestação, o poder político secular propriamente dito,tal como manifesto nas monarquias cada vez mais nacio-nais. João Quidort, entretanto, embora partidário do rei, nãoera um defensor incondicional da causa real: às pretensõesabsolutistas do monarca francês Filipe IV o autor opunha opopulus, o novo intermediário tanto do poder temporal quan-to do eclesiástico, como já havia ensinado Tomás de Aquino.

95 E termina: “Dois séculos mais tarde, Lutero, outro monge agostiniano,deverá fazer o caminho oposto, na tentativa de reespiritualizar a Igreja”.In: DE BONI. Introdução. In: DPE, p. 25.

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Marsílio de Pádua, por exemplo, faria amplo uso desta recen-te inovação conceitual.

Um dos fatores que certamente contribuíram para essanova abordagem sobre a fonte do poder foi a adoção sistemá-tica, por João Quidort, de argumentos estritamente lógicos,princípio interpretativo que dificultava grandemente a proli-feração da uma eclesiologia estrito senso. Formado em artespela Universidade de Paris, João Quidort, nascido provavel-mente em 1270, esteve ativamente envolvido nas disputasintelectuais de sua época. Iniciou sua carreira entre os domi-nicanos, como teólogo mendicante, e logo se tornou um ex-poente da ordem. Autor de inúmeros tratados e comentáriosutilizados por seus confrades, como o De principioindividuationis e o Tractatus de formis, João de Paris só foielevado à cátedra de teologia em 1304.96

No ano seguinte tornou público seu tratado sobre aeucaristia, o Determinatio de modo existendi corporis Christiin sacramento altaris, escrito que lhe rendeu uma acusaçãode heresia e acabou sendo julgado por uma comissão de pre-lados, da qual fazia parte, entre outros, Egídio Romano, comquem ele se dabatera publicamente anos antes. Depois deter seu trabalho condenado e censurado pela comissão, e deter sido afastado do magistério, João Quidort apelou ao sumopontífice. Seu processo terminou sendo examinado pelo papaClemente V (1304-14), a quem ele solicitara nova audiência.Quando estava prestes a ser recebido pelo bispo de Roma,João Quidort faleceu, em setembro de 1306.

Conhecido também, por sua aparência, como surdus,ou ainda praedicator monoculus, João Quidort havia partici-

96 Para uma análise detalhada da obra de João Quidort, cf. GRABMANN, M.Studien zu Johannes Quidort von Paris. In: Sitzungsberichte derBayerischen Akademie der Wissenschaften, Phil.-philologische undhistorische Klasse, 3. Abhandlung, München: Verlag der BayerischenAkademie der Wissenschaften, 1922.

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pado de vários debates públicos que envolviam a causa real ea papal: defendeu o mestre Tomás de Aquino das críticas dosfranciscanos e também o rei francês Filipe IV quando da que-rela com Bonifácio VIII. Em 1303 João Quidort assinara, emconjunto com outros colegas residentes no convento de Saint-Jacques, um documento apoiando a convocação de um con-cílio geral da Igreja para julgar o pontífice morto. Participouainda da elaboração de textos anônimos, como aquele surgi-do no meio acadêmico francês por volta de 1302, a Quaestioin utramque partem, no qual se podia identificar inúmeraspassagens assumidas por João Quidort em seu tratado Deregia potestate et papali.

Também é atribuído a ele o texto anônimo Quaestio depotestate papae (ou Rex pacificus Salomon),97 escrito prova-velmente no auge do conflito entre o papa e o rei.98 Sendo ounão de sua autoria o Rex pacificus, é de todo modo sabidoque João Quidort, intelectual engajado e apreciador da cora-gem cívica, ocupou-se da redação de vários textos desafiado-res da plenitudo potestatis papae in temporalibus. Consultadopelo rei sobre o assunto, quando o conflito com o sumo pon-tífice ainda não apontava para um desfecho trágico, JoãoQuidort produziu seu tratado político mais contundente,intitulado Sobre o poder régio e papal, publicado no final do

97 Paul Saenger, num artigo polêmico, sustentou, a partir de um manus-crito encontrado na Bodleian Library, em Oxford, ser esse tratado deautoria de João Quidort. Cf. SAENGER, P. John of Paris, principal authorof the Quaestio de potestate papae. Speculum, v. 56, n. 4, oct. 1981.Outros estudos respeitáveis, no entanto, defendem a produção coletivado texto, como era comum à época. Cf. SCHOLZ, Richard. Die Publizistikzur Zeit Philipps des Schönen und Bonifaz’ VIII. Sttutgart: Verlag vonFerdinand Enke, 1903. p. 252-75.

98 Para uma abordagem do conflito e do papel do tratado, cf. GARFAGNINI, G.C. Il Tractatus de potestate regia et papali di Giovanni da Parigi e ladisputa tra Bonifacio VIII e Filipo il Bello. In: Conciliarismo, stati nazionali,inizi dell’Umanesimo, Atti del XXV convegno storico internazionale.Spoleto: Centro italiano di Studi Sull’Alto Medioevo, 1990. p. 147-80.

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ano 1302, contra as pretensões absolutistas tanto do mo-narca franco quanto do bispo de Roma, que teria repercus-sões significativas para o pensamento político posterior.

O texto era sucinto e, apesar de denso, extremamenteclaro. João de Paris recorria, para fundamentar seus argu-mentos, tanto aos corpos filosóficos disponíveis – entre ou-tros, aos escritos de Aristóteles, Cícero e Tomás de Aquino –como ainda a passagens bíblicas e textos jurídicos. Comotodo filósofo medieval, recorda De Boni, João Quidort toma-va a palavra das Escrituras como sagrada, atribuindo-lhesuma autoridade primária. Sua inovação, contudo, estava namaneira como a interpretava: “O realismo aristotélico”, es-creve De Boni,

leva-o a procurar, em primeiro lugar, o sentido literal dotexto, cotejando-o geralmente com outras passagensbíblicas, e apresentando a leitura que dele foi feita pelapatrística. [...] Na linha da exegese tomista, João Quidortnega aos argumentos alegóricos e místicos qualquer va-lor probatório [...]. Com isto, por primeiro, leva os resul-tados da nova exegese para o campo da disputa política,e invalida todo o discurso baseado em recursos alegóri-cos bíblicos como os dois luminares criados por Deus, ouos dois gládios aos quais refere-se Lc. 22: 38.99

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João Quidort apontava já no Proemium o que conside-rava serem os dois erros cometidos pelos que pretendiamopinar sobre o poder das autoridades eclesiásticas: o equívo-co dos valdenses; e o dos herodianos.100 Os primeiros erra-vam, dizia João Quidort, quando procuravam sustentar, com

99 DE BONI, L. A. (Ed.) Introdução. In: QUIDORT, J. Sobre o poder régio epapal. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 16-7

100 Cf. QUIDORT, João. Sobre o poder régio e papal (SPRP). Ed. L. A. DE BONI.Petrópolis: Vozes, 1989. Todas as citações em português constantes no

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base nas Escrituras, ser vedados ao papa a posse de bensmaterias e também todo e qualquer domínio temporal. O errooposto, esclarecia o autor, era aquele cometido pelos herodia-nos, que, ao ouvirem dizer que Cristo, o rei, havia nascido,supuseram que ele seria um rei terreno. Desse erro proviria aopinião de alguns contemporâneos, segundo a qual o pontífi-ce, enquanto representante de Cristo na terra, possuiriadominium e jurisdição (iurisdictionem) sobre todas as coisastemporais101 (temporalia).

O caminho correto para a consideração da matéria,sustentava João Quidort, residia na adoção de uma via me-dia,102 isto é, de um meio-termo entre essas duas posições:

aos prelados da Igreja não é proibido ter a posse e a juris-dição nas coisas temporais, contra a primeira opinião;mas isto não cabe a eles de per si, em razão de seu estadoe por serem vigários de Cristo e sucessores dos apósto-

texto foram retiradas dessa edição. Utilizou-se ainda como referência epara fins de consulta a consagrada edição crítica bilíngüe (alemão-la-tim) de BLEIENSTEIN, Fritz (Hrsg.). Johannes Quidort von Paris: Überkönigliche und papstliche Gewalt (De regia potestate et papali). Stuttgart:Ernst Klett Verlag, 1969. Para consulta e referências, cf. tb. o trabalhoclássico de LECLERQ, Jean. Jean de Paris et l’ecclésiologie. Paris: J. Vrin,1942.

101 “O erro oposto foi o de Herodes que, ouvindo dizer que Cristo, o rei,havia nascido, supôs que este seria um rei terreno. Provém evidente-mente deste erro a opinião de alguns modernos, [...] afirmando que osenhor papa, como representante de Cristo na terra, possui o domíniobem como a jurisdição sobre os bens temporais dos príncipes e barões.Dizem também que este poder sobre as coisas temporais o papa o pos-sui em proporção maior que o príncipe, pois o papa o tem como autori-dade primária, diretamente de Deus, enquanto o príncipe o temmediatamente de Deus, através do papa” (SPRP, p. 42).

102 Uma rica e longa discussão sobre a via media em João Quidort e noperíodo e sua relação com o nacionalismo francês e com o imperialismogibelino pode ser encontrada em RIVIÈRE, Jean. Le problème de l’église etde l’état au temps de Philippe le Bel. Paris-Louvain: Honoré Champion-Spicilegium sacrum lovaniense, 1926. Esp. p. 272-340.

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los, e sim por concessão ou permissão dos príncipes, querporque estes por devoção lhes oferecem algo, quer por-que de algum outro modo o obtiveram. (SPRP, p. 43-4)

João Quidort invertia dessa forma a proposição de EgídioRomano: não era o pontífice quem concedia as temporaliaaos poderes temporais, e sim os governantes seculares, quepor sua generosidade, ou ainda para sua conveniência, per-mitiam ao poder eclesiástico ter dominium e jurisdição sobrecertas coisas terrenas.

Depois de esclarecer que, com suas opiniões, não pre-tendia aviltar nem a fé nem os bons costumes, e menos ain-da a “reverência devida à pessoa e à posição do sumo pontí-fice”, João Quidort passava a tratar da natureza e origem dosdois poderes, o real e o papal (cap. I-VI). Seu primeiro passoconsistia em definir o que denominava regnum: “reino é ogoverno de uma multidão perfeita, ordenado ao bem comume exercido por um só indivíduo”103 (SPRP, p. 44). Esse gover-no monárquico de uma comunidade humana auto-suficien-te que visava aos interesses do coletivo104 era derivado, se-gundo João de Paris, do direito natural e do das gentes.

103 No original: “Regnum est regimen multitudinis perfectae ad comune bonumordinatum ab uno”. In: QUIDORT. De regia potestate et papali. Ed.Bleiensten, op. cit., p. 75.

104 “Nesta definição o ‘governo’ está como gênero; ‘multidão’, porém, acres-centa-se para diferenciá-lo do regime no qual cada um governa-se a simesmo, quer pelo instinto natural, como nos brutos, quer pela própriarazão, como naqueles que levam vida solitária. ‘Perfeita’ é colocada paradiferenciá-lo da multidão doméstica, que não é perfeita, porque não ésuficiente a si mesma a não ser por pouco tempo, e não por toda a vida,como a cidade, conforme diz o Filósofo (Política, l. 1, c. 2; 1252b). ‘Orde-nado para o bem da multidão’ é dito para distingui-lo da tirania, daoligarquia e da democracia, nas quais [...] o governante procura apenasseus próprios interesses. Por um só indivíduo é dito para diferenciá-loda aristocracia [...] [e] da policracia [...]. Somente é rei aquele que domi-na sozinho, como diz o senhor através de Ez. 34: 23: Meu servo Daviserá rei sobre todos e seu único pastor” (SPRP, p. 44).

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Partindo da premissa aristotélica de que o homem eraum animal naturalmente político ou civil, João Quidort po-dia afirmar ser-lhe necessária a vida em comunidade. Masnão aquela existente na família ou na aldeia, e sim a da cida-de ou do reino. E, para que não houvesse dispersão dos obje-tivos, essa unidade política devia ser governada por uma únicaautoridade capaz de ordenar a todos para o bem comum.105

E justificava:

Esta unidade de governo é, pois, necessária, visto que opróprio não é igual ao comum: segundo o que é próprio,diferenciam-se os homens entre si, segundo o comum,unem-se. As coisas, porém, que são diferentes, possuemtambém causas diferentes, pelo que é necessário que,além das forças que movem para o bem próprio de cadaum, haja também algo que mova ao bem comum de mui-tos. (SPRP, p. 45)

Tanto no interesse da unidade do poder, caso em que avirtude era maior, quanto no da garantia da paz, explicava oautor, a monarquia constituía a forma excelente de governopolítico.

Além disso, vemos que na ordem natural todo o governotende a reduzir-se à unidade, como, por exemplo, no cor-po misto, onde há um elemento dominante; no corpo hu-mano heterogêneo, um é o membro principal; no conjuntodo homem, a alma conserva a unidade de todos os ele-mentos. Também os animais gregários, como as abelhase os grous, aos quais é natural viver em sociedade, sub-metem-se naturalmente a um único rei. (SPRP, p. 45-6)

105 “[...] é necessária ao homem a vida em multidão, e em tal multidão quelhe seja suficiente à existência, o que não é o caso da comunidade do-méstica ou da aldeia, mas só da cidade ou do reino. [...] Contudo, todaa multidão, na qual cada um persegue seu próprio interesse, acaba pordissolver-se e dispersar-se em diversas direções, a não ser que sejaordenada para o bem comum por uma só pessoa, a quem foi confiado ocuidado pelo bem comum, do mesmo modo como o corpo do homem sedecomporia, se nele não existisse uma certa força comum, que visasseao bem de todos os membros” (SPRP, p. 45).

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E, porque o homem era um animal civil, ou político esocial (animal civile seu politicum et sociale), podia-se dizerque um tal governo era derivado do direito natural (a iurenaturali).

Mas essa passagem da vida selvagem para a vida emcomunidade sob um único governante não havia se dadopela adesão livre e imediata de todos, e sim por um processode convencimento racional, como já havia ensinado Cícero:

E como os homens, pela comunidade das palavras, nãoconseguiam passar da vida animal para a vida em comumcorrespondente à sua natureza, como foi visto, então al-guns homens, que faziam maior uso da razão e sofriamsob a falta de rumo de seus semelhantes, empreenderama obra de, através de argumentos persuasivos, convenceraos demais a partir para uma vida comum ordenada, sob adireção de um único chefe, conforme narra Cícero. Os queconcordaram foram ligados por certas leis relativas à vidaem comum, que aqui são chamadas de direito das gentes.Assim fica claro como este regime procede tanto do direitonatural como do direito das gentes. (SPRP, p. 46 – grifosmeus)

Nederman chama atenção para a idéia de que váriosdos pensadores medievais tardios tendiam a fundir duas tra-dições, a aristotélica e a ciceroniana, quando precisavam ex-plicar a transformação do homem numa criatura comunitária.A utilização do pensamento ciceroniano como forma de com-plementar as noções aristotélicas, esclarece Nederman, jus-tificava-se porque Cícero deixava lugar para a noção cristãda pecaminosidade humana, enquanto de Aristóteles se reti-nha o princípio básico de que as relações sociais e políticaseram naturais aos seres humanos.106

106 Cf. NEDERMAN, C. Nature, sin and the origins of society: the ciceroniantradition in medieval political thought. Journal of the History of Ideas, v.49, n. 1, p. 3-26, jan-mar. 1988.

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João Quidort, por exemplo, depois de constatar a na-turalidade da condição humana e da tendência à vida numacomunidade auto-suficiente, empenhava-se em estabelecera relação entre o bem particular e o bem-estar da comunida-de. Em Aristóteles, o fim do indivíduo coincidia com o fim docoletivo, a boa vida segundo a virtude. A natureza se realiza-va somente dentro da totalidade cívica, a polis. Já o homemdescrito por João Quidort, entretanto, era entendido nos ter-mos do cristianismo tradicional: isto é, como um ser egoístae auto-interessado, fruto da queda da humanidade em peca-do, cuja preocupação primária consistia na perseguição dobem-estar pessoal e da salvação. Na ausência de um estímu-lo externo, os homens adotavam um estilo de vida apropria-do à sua condição depravada e pecadora e viviam num estadoanimalesco comparável ao das bestas. Essa era a situaçãodos seres humanos depois do pecado original, quando re-nunciaram à fraternidade do paraíso e se voltaram para umaexistência baseada apenas nos próprios benefícios.

A fala, dom comum a todos, não era capaz de unir, sozi-nha, tais seres em comunidade. Pois a natureza não comuni-cava por meio dela seus princípios inerentes de movimento:não havia a garantia de que os homens iriam necessariamen-te reunir-se somente porque esse era um traço de sua nature-za. Como a natureza humana se tornara defectiva pelo pecadooriginal, a vida coletiva só pôde ter lugar quando alguns ho-mens, mais sábios e racionais, que “sofriam sob a falta derumo de seus semelhantes”, procuraram conduzi-los, por meiode argumentos persuasivos, para a vida coletiva ordenada sobum governante. Pois, se os homens individualmente não sepropunham a obedecer às regras do bem viver em comum, erapreciso que se nomeasse um guardião da utilidade pública.Ou seja, apesar de enfraquecido pelo pecado e pouco dispostoà benevolência para com os semelhantes, o homem retinha acapacidade de convencer os seus iguais a perseguir voluntari-amente seus objetivos particulares por meio da instituição deum administrador do bem comum.

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A adesão a essa comunidade política, portanto, não erainevitável, apesar da aptidão humana para tal, e sim reque-ria uma indução ativa. O reconhecimento da necessidade deum governo dependia assim de uma apresentação convin-cente – baseada em argumentos razoáveis – dos benefíciosda lealdade ao princípio da utilidade pública e sua encarnaçãoreal. Por isso também, a instituição de um governo não podiaser vista como uma imposição forçada da coerção sobre amultidão. Aqueles que haviam aceitado a argumentação deseus pares passaram a estar ligados por certas leis geraisrelacionadas à vida comum, “leis estas que não eram evi-dentes por natureza – que não pertenciam, portanto, ao di-reito natural –, mas que formaram o fundamento do que, emlinguagem posterior, seria chamado pacto social, e que, naterminologia medieval, provinham do direito das gentes: aque-las normas [...] que permitem o consenso entre todos e possi-bilitam a vida em comum”.107 A autoridade pública erainstituída assim com o objetivo de servir de freio aos aspec-tos auto-interessados da criatura humana.

O governo do rei só era legítimo quando estabelecidopor um processo consensual, segundo o qual os homens con-cordavam em serem governados dentro dos limites estabele-cidos pelas regras do bem comum. Mas, como os homensnão respeitavam as regras comuns por vontade própria, omonarca, que incorporava o bem público, devia ser dotadode poder coercitivo, de modo que pudesse impor a necessitasao coletivo.108 João Quidort partia da societas perfecta deTomás de Aquino, mas acabava construindo muito mais amultitudo nominalista, como já apontou De Boni:

107 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 18.108 Sobre os temas da coerção e do consenso em fins da Idade Média, cf.

MONAHAN, A. P. Consent, coertion and limit: the medieval origins ofparliamentary democracy. Leiden: Brill, 1987. Cf. tb. NEDERMAN, op. cit.,1988, p. 16 et seq.

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O nominalismo, defrontando-se com a economia mone-tária e a acumulação de capital, faz com que a naturali-dade tomista ceda terreno ao positivismo contratual. Seconserva a noção de bem comum e de eqüidade na distri-buição dos bens, como fundamento da ordem social, pas-sa, apesar disto, a considerar que a aquisição dos bens ea defesa da propriedade são o motivo pelo qual foi insti-tuído pelo povo um príncipe.109

Mas a vida do homem não visava apenas a um fim na-tural – o viver segundo a excelência moral –, continuava JoãoQuidort, e sim também a um outro sobrenatural, a vida eter-na, fim último de toda multidão (tota multitudo) que vivia se-gundo a virtude. Por isso, era preciso que existisse um outroser capaz de dirigi-la na direção da virtude divina.110 Poisesta não poderia ser alcançada pela simples força da nature-za humana, cujo controle cabia ao rei, mas apenas por meiodaqueles responsáveis pela condução das coisas sagradas,isto é, os sacerdotes, ministros de Cristo e administradoresdos sacramentos.111 Por essa razão, dizia o Surdo, o sacerdo-tium podia ser definido como aquele “poder espiritual confe-

109 DE BONI, L. A. João Quidort: o tratado De regis potestate et papali e oespaço para o poder civil. Veritas, Porto Alegre, v. 38, n. 150, p. 288-9,jun. 1993.

110 “Por isto, é necessário que exista algum indivíduo que dirija a multidãopara este fim. Se fosse possível atingir tal fim pela força da naturezahumana, pertenceria necessariamente ao ofício do rei terreno orientaros homens para ele, pois chamamos de rei àquele a quem foi confiado ocuidado supremo do governo nas coisas humanas. Mas como o homemnão consegue a vida eterna pela virtude humana, mas pela divina [...]levar ao fim sobrenatural não é obra de governo humano, mas de gover-no divino. [§] Este governo pertence, portanto, àquele rei que não é so-mente homem, mas também Deus, Jesus Cristo, que faz dos homensfilhos de Deus e assim os introduz na vida eterna, sendo por isto cha-mado rei” (SPRP, p. 47).

111 E adiante: “como Cristo haveria de subtrair da Igreja sua presença cor-poral, foi necessário instituir alguns auxiliares, que ministrassemaoshomens estes sacramentos, auxiliares estes que são chamados desacerdotes, porque dão coisas sagradas, ou são guias (duces) sagrados,

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rido por Cristo aos ministros da Igreja para dispensarem ossacramentos aos fiéis” (SPRP, p. 48).

A Igreja, explicava João Quidort, havia sido instituídapara reparar aquela injúria causada ao Senhor quando dopecado comum da humanidade. Cristo, oferecendo-se emsacrifício a Deus, tinha removido, por meio de sua morte, opecado original, obstáculo universal à salvação espiritual dohomem. Depois disso, foi necessário introduzir outros remé-dios, como os sacramentos, para que os benefícios de Cristopudessem ser aplicados a todos os homens. Tais sacramen-tos, argumentava ele, deviam pertencer à ordem dos senti-dos, de modo que pudessem encontrar as necessidades danatureza humana. Pois apenas por meio das coisas sensíveispodia o homem ser levado ao entendimento das coisas espi-rituais e intelectuais. Por essa razão, foi necessário instituirministros que administrassem esses sacramentos.

Tais ministros eclesiásticos, voltados para o culto divi-no, ordenavam-se a um único superior, seu chefe supremo.112

Já os fiéis leigos não têm uma determinação de direitodivino que, nas coisas temporais, os coloque sob um sómonarca supremo. Pelo contrário, por um instinto natu-ral, que provém de Deus, são levados a viver na comuni-dade civil e, para bem viver em comum, elegem chefes,que variam em quantidade segundo o número das comu-

ou docentes de coisas sagradas, pelas quais são intermediários entreDeus e os homens” (idem).

112 Ao identificar o governo civil à ordem natural e o eclesiástico à graça,João Quidort encontrava uma justificativa para a relativização do go-verno civil, esclarece De Boni: “Por uma determinação divina – não porexigência da razão – a unidade dos homens na mesma fé deve ser pro-tegida e garantida por uma unidade na direção da comunidade dosfiéis, e por este motivo o povo cristão tem como dirigente maior na terrao sucessor de Pedro na sé de Roma. Já a organização política dos ho-mens fundamenta-se em princípios da razão, não da revelação, e a ra-zão não apresenta nenhum argumento em favor da unidade dos homenssob um único governante”. Cf. DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 25.

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nidades. A colocação de todos sob um único monarcasupremo, nas coisas temporais, não se fundamenta nemna inclinação natural, nem no direito divino, e nem lhesconvém da mesma forma como aos ministros eclesiásti-cos. (SPRP, p. 49)

Para justificar a diversidade das formas de governoterrenas, João Quidort assumia a argumentação aristotélicaacerca da variedade das constituições políticas e, tal como oFilósofo, explicava-a em termos “antropológicos”. Mas esseseu enunciado precisava dar conta de um elemento adicio-nal, a ordenação ao sobrenatural, estranha ao Estagirita. Paraisso, recorria ao argumento tomista da unidade do gênerohumano:

1. Nos homens há uma grande diversidade quanto aoscorpos, mas não quanto às almas, visto que todas estãoconstituídas no mesmo grau de ser, devido à unidade daespécie humana. Do mesmo modo, devido às condiçõesgeográficas e diferenças raciais [complexionum diversita-tem], o poder secular possui maior diversidade que o es-piritual, que não varia tanto nestes assuntos. Daí, pois,não ser necessária a mesma diversidade em um e emoutro. (SPRP, p. 49)

O segundo argumento utilizado por João Quidort parasustentar a multiplicidade de comando no que respeitava àscoisas temporais repousava num certo realismo político: adificuldade da imposição do gládio material, que supunha aforça sobre povos distantes, enquanto ao poder espiritual eramais fácil tal controle dado serem as suas penas somenteverbais:

2. Não é tão fácil a um só dominar [ad dominandum] todoo mundo nas coisas temporais, assim como um só é su-ficiente para dominar nas espirituais. O poder espiritualpode facilmente transmitir a todos, próximos e distantes,as suas penas, por serem elas verbais. Já o poder tempo-

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ral não pode fazer que com facilidade o peso de seu gládio,por ser manual, possa ser sentido nos que estão distan-tes. De fato, é mais fácil à palavra que à mão atuar à dis-tância. (SPRP, p. 49-50 – grifos meus)

Hobbes, Locke e outros tantos pensadores políticosecoariam por séculos os termos dessa formulação.

Por fim, para que a unidade da fé não fosse destruída,era necessário que houvesse nas coisas espirituais uma sóautoridade superior cujas sentenças obrigassem a todos osfiéis.113 Já a vida política não supunha a convivência de to-dos os seres humanos numa única comunidade política co-mum a todos:

Devido à diversidade de climas, de línguas e de condiçõesdos homens, pode haver diversos modos de viver e diver-sas comunidades políticas, e o que é virtuoso em um povonão o é noutro, como o Filósofo diz das pessoas singula-res, ao anotar que algo pode ser demasiado para um epouco para outro. (SPRP, p. 50)

Por todos os argumentos apresentados, portanto, nãoera possível deduzir nem do direito natural nem do direitodivino a necessidade de um governo universal – como o doimperium – sobre as coisas terrenas, insistia o Pregador. Combase nesse raciocínio, João Quidort opunha-se às preten-sões de domínio temporal tanto do imperador quanto do sumopontífice. E recorria a Agostinho para sustentar que a repú-blica (res publica) era mais bem governada, e de modo maispacífico, “quando as fronteiras do reino de cada um coinci-diam com as de sua cidade” (SPRP, p. 50). A idéia do Estado

113 “Então, para que a unidade da fé não seja destruída pela diversidadedas controvérsias, é necessário, como ficou dito, que nas coisas espiri-tuais haja uma só autoridade superior, por cuja sentença estas contro-vérsias sejam dirimidas” (SPRP, p. 50).

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territorial moderno já ganhava com nitidez os seus contor-nos,114 nesse momento bastante bem delineados em unida-des concretas como a França, Inglaterra, Espanha e Portugal,entre outras.

A comunidade política assim organizada não se opu-nha, segundo João Quidort, à religiosa, mas simplesmentedesempenhava funções diferentes e operava com instrumen-tos distintos daqueles encontrados na ordem natural, queem si mesma tinha um fim: o viver segundo a virtude. Essatarefa da autoridade temporal englobava a possibilidade deadministrar o bem comum de maneira justa, independente-mente do recurso a regras ou preceitos divinos. E, como talgestão era racional, fundada em argumentos razoáveis acei-tos no processo de convencimento, todo discurso que não sefundamentava numa racionalidade mundana podia ser re-

114 Ullmann chama atenção para um dado relevante: segundo ele, o com-ponente “impessoal” da noção de soberania, isto é, aquele que se refereà soberania externa, espacialmente delimitada por fronteiras bemdemarcadas, foi assumido oficialmente pelo papa Clemente V, em suabula Pastoralis cura, de 1314. Nela o pontífice fazia a defesa de Robertode Nápoles, rei da Sicília, afirmando a jurisdição do monarca sobre seuterritório e liberando-o de responder à acusação de crime de lesa-ma-jestade contra o imperador Henrique VII. Os argumentos utilizados nabula para sustentar a autonomia territorial do rei siciliano não vinhamda imaginação do pontífice, esclarece Ullmann, e sim da antiga lei canô-nica, constante nas compilações legais da Ecclesia. A base da argumen-tação papal, segundo o autor, repousava na lei diocesana – oriunda porsua vez do antigo direito público romano – que regulamentava a jurisdi-ção dos bispos em suas dioceses de acordo com o princípio territorial:seus domínios se estendiam aos limites geográficos de cada diocese. Adeterminação era antiga, lembra Ullmann, e havia sido sancionada no IConcílio Ecumênico de Constantinopla, em 381. Agostinho, que certa-mente conhecia as resoluções da reunião provavelmente as tinha emmente quando escrevia sobre as “fronteiras do reino”. Mais uma vez,noções surgidas no seio da Igreja eram utilizadas para sustentar aspretensões dos poderes estatais emergentes. Cf. ULLMANN, op. cit., 1978,p. 17-9.

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jeitado. Também a idéia de um governo temporal universalopunha-se agora à razão e à força determinantes dos costu-mes e da diversidade. Como a comunidade política já não sebaseava mais numa instituição divina, fosse do imperium oudo sacerdotium, era preciso definir seus traços.

A coisa pública (res publica), insistia João Quidort adian-te, de fato não podia ser governada sem a noção de justiça.Isso não equivalia a dizer, no entanto, que somente a Ecclesiafosse capaz de gerar tal virtude:

Deve-se observar que as virtudes morais podem ser per-feitamente adquiridas sem as teologais, e nem são aper-feiçoadas por estas a não ser de um modo acidental [...].Portanto, também sem a direção de Cristo pode haver ajustiça verdadeira e perfeita que se requer para o reino,pois o reino ordena-se a viver segundo a virtude moraladquirida que, posteriormente, pode ser aperfeiçoada poroutra virtude qualquer. (SPRP, p. 111)

Ao conceder à natureza autonomia diante do sobrena-tural, recorda De Boni, João Quidort tornava possível falardas ciências práticas e da ação humana independentementede uma moral de origem sobrenatural.

Ora, a política, enquanto ciência do agir social, constituium fim em si mesma. João Quidort concede sem hesitarque a política não é o fim último do homem e que, para ocristão, ela se ordena a um fim superior. Mas isso nãoquer dizer que ela simplesmente exista em função desseoutro fim, como se não tivesse bondade ou finalidade emsi mesma.115

Viver segundo a virtude, continua De Boni adiante, nãoimplicava o atrelamento do poder político ao religioso, “comose coubesse a alguma autoridade fora e acima do Estado – e

115 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 21.

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da constituição racional deste – indicar o que é virtude. OEstado é uma construção da natureza racional do homem e,como tal, pode ser pensado e realizado com empenho único eexclusivo da razão”.

E se concedia alcance ilimitado ao poder espiritual, jáque este se fundava na palavra, isto é, na fala, dom comum atodo gênero humano, ao poder temporal contudo o autor de-limitava fronteiras bastante concretas: sua extensão depen-dia da capacidade de implementar a coerção física sobre umdeterminado espaço geográfico. Ou seja, definia-se sobretu-do pela capacidade de fazer cumprir a lei neste ou naqueleterritório. Tanto a realidade quanto a teoria revelavam o sur-gimento daquela noção tão fundamental à ciência política: osmodernos Estados territoriais. Também a “societas perfectado Estado deixa sempre mais de ser entendida como aquelaharmonia à qual tendem naturalmente as pessoas”, apontaDe Boni lembrando a emergência do nominalismo, “para serencarada como a multitudo de interesses divergentes, que sóse mantém coesa graças à força da autoridade: que pagaimpostos devido aos fiscais e às multas; que observa as leispor temor dos castigos; e que um dia lutará pela pátria por-que arrastada compulsoriamente para o campo de batalha”.116

Também nas Escrituras se podia ler, argumentava JoãoQuidort, que a instituição do regnum legítimo havia precedi-do temporalmente à instituição do verdadeiro sacerdotium,quando se tomava o sacerdócio em sentido próprio e estrito,como mostrara Cristo.117 Como o que era posterior no tempocostumava preceder em dignidade, como era o caso do per-

116 Ibid., p. 21-2.117 “[...] desde Abraão – antes de cujo nascimento houve reis dos assírios,

dos siciônios, dos egípcios e outros mais – até Cristo decorreram doismil anos, ou aproximadamente isto segundo outros. Portanto, tempo-ralmente, antes do verdadeiro sacerdócio houve verdadeiros reis, cujoofício é preocupar-se com as necessidades da vida terrena dos homens”(SPRP, p. 52).

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feito com relação ao imperfeito e do fim com relação àquiloque se ordenava, dizia João Quidort seguindo Tomás, “dize-mos que o poder sacerdotal é maior que o real e o supera emdignidade”. E concedia:

O reino, como foi visto, está constituído com a finalidadede que a multidão reunida viva segundo a virtude; isto,porém, ordena-se posteriormente a um fim mais elevado,que é a fruição de Deus. A missão de levar a este fim foiconfiada a Cristo, de quem os sacerdotes são vigários eministros. Portanto, o poder sacerdotal é mais digno queo secular. (SPRP, p. 53)

O fato de dispor o sacerdote de maior dignidade do queo príncipe, entretanto, esclarecia o Pregador, não o tornavasuperior a ele em todas as coisas. E respondia aqui a Egídio,e aos partidários da hierocracia, rejeitando a cadeia causalpor ele suposta para a ordenação dos poderes. Pois o podertemporal, embora menor do que o espiritual, não provinhadeste do mesmo modo que o poder do procônsul derivava doimperial. Por essa razão, dizia João Quidort, o poder secularera superior ao espiritual nas coisas temporais, assim comoo médico, cujo fim era inferior, não estava sujeito ao mestrena aplicação de remédios.118 A primazia no âmbito espiritualnão podia, portanto, ser estendida ao reino das coisas secu-lares: tratava-se de duas esferas distintas que tinham so-mente uma característica comum, a origem divina.

Entre elas, contudo, não havia relação necessária decausalidade nem de anterioridade lógica. Havia apenas uma

118 “Numa casa, o professor de letras ou de moral, por voltar-se ao conhe-cimento da verdade, ordena todos para um fim mais nobre que o médi-co, pois este visa a um fim inferior, que é o cuidado dos corpos. Quemdiria, porém, que o médico está sujeito ao mestre na aplicação dos re-médios? Isto nem está prescrito, porque o Senhor da casa, que empre-gou a ambos, sob este aspecto não colocou o médico como sujeito aninguém” (SPRP, p. 54).

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superioridade moral do poder espiritual sobre o temporal,isto é, o primeiro desfrutava de maior dignidade que o segun-do. Nada mais do que isso. E, por ser somente moral, essasuperioridade não tinha implicação concreta para as regrasde funcionamento do poder temporal: suas sanções, do mes-mo modo, baseavam-se apenas em preceitos de caráternormativo a serem ou não obedecidos pela consciência decada agente moral individual.

Como o poder temporal e o eclesiástico constituíamcoisas diversas, continuava João Quidort, a alegação de queo pontífice, por deter um poder maior, ordenava também arespeito do menor era equivocada. E explicava:

A afirmação é verdadeira em relação à maior e à menorem uma determinada ordem, como, por exemplo: se obispo pode ordenar o sacerdote, pode ordenar também odiácono. Não é verdadeira, porém, para as coisas que sãode ordem ou de gênero diferente, como, por exemplo: semeu pai pôde gerar um homem, pode gerar também umcão; ou: se o sacerdote pode absolver alguém do pecado,pode absolver também da dívida pecuniária.119 (SPRP, p.104)

Nos assuntos temporais, o poder secular em nada seencontrava sujeito ao poder eclesiástico. Pois não procedia

119 Numa passagem do texto anônimo Quaestio in utramque partem, surgi-do na corte francesa em meio à querela entre o rei e o papa, essa idéiaera formulada nos seguintes termos: “No entanto, quando tal premissase refere a coisas de gênero diverso, não é verdadeira; por exemplo, ofato de uma pessoa ser capaz de gerar uma outra não implica que possagerar igualmente uma mosca. Portanto, dado que as coisas espirituaise as materiais são de gênero diverso, pelo mesmo motivo não decorreque uma pessoa que exerce um poder no âmbito espiritual tambémpossa exercê-lo na esfera temporal”. In: SOUZA & BARBOSA, Documento45, op. cit., p. 199. Uma cópia do documento original pode ser encon-trada em: GOLDAST, M. (Ed.) Monarchia sancti romani imperii. Graz:Akademische Druck u. Verlaganstalt, 1960. Reimpr. da ed. frankfurtia-na de 1611-4. t. II, p. 95-107.

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dele: ambos os poderes, terreno e espiritual, tinham ori-gem imediatamente em Deus, isto é, no poder divino, e sóeram superiores naquelas coisas específicas que lhes cabi-am.120 Ou seja, o sacerdote era superior ao princeps nascoisas espirituais, e este, de seu lado, era superior ao sacer-dos nas temporais. Isso não significava negar, esclarecia oautor, que o sacerdócio de Cristo fosse superior ao poderreal em dignidade. E àqueles que defendiam virem ambosos poderes de Deus, mas com uma certa ordem, João Quidortrespondia que podia até haver uma certa ordem de dignida-de entre eles. Mas, como o poder temporal não provinhado espiritual, não havia entre eles relação de causalida-de.121

Se não havia prioridade do sacerdotium sobre o reg-num na ordem das causas, muito menos poderia ter havi-do uma instituição do segundo pelo primeiro, como queriamalguns, escrevia João de Paris. À alegação de que as coisastemporais eram dirigidas pelas espirituais, e delas depen-diam como de sua causa, João Quidort respondia, combase no mesmo raciocínio:

120 “Assim, pois, o poder secular é superior ao espiritual em algumas coi-sas, isto é, nas coisas temporais, e neste assunto não se encontra emnada sujeito ao espiritual, pois não procede dele, mas ambos provêmimediatamente de um só poder supremo, que é o divino, e por isso opoder inferior não está sujeito ao poder superior em todas as coisas,mas apenas naquelas em que o poder supremo o colocou sob o supe-rior. [...] Portanto, o sacerdote é superior ao príncipe nas coisas espiri-tuais, e vice-versa, o príncipe é maior que o sacerdote nas temporais,embora o sacerdote, pura e simplesmente, seja maior que o príncipe,assim como o espiritual é maior que o temporal” (SPRP, p. 54).

121 “Eles têm, de fato, uma certa ordem de dignidade, como foi dito, masnão de causalidade, pois um não provém do outro, assim como todos osanjos são produzidos por Deus segundo uma certa ordem de dignidade,enquanto, por natureza, um é mais digno do que outro, mas não háentre eles ordem de causalidade, pela qual um provém de outro, mastodos são criados imediatamente por Deus” (SPRP, p. 112).

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O argumento, assim apresentado, falha sob muitos as-pectos. Em primeiro lugar, supõe que o poder real sejacorporal e não espiritual, e que tenha reservado a si ocuidado dos corpos e não das almas, o que é falso, pois,como foi dito acima, este poder ordena-se não para qual-quer bem, mas para o bem comum dos cidadãos, que éviver segundo a virtude. (SPRP, p. 106)

Em outras palavras: a sociedade política tinha seu fun-damento em Deus tanto quanto a Igreja, mas por um vínculopróprio e independente de toda mediação eclesiástica.

E completava:

Em segundo lugar, o argumento é falho porque não équalquer poder secular que é instituído, movido e dirigi-do por qualquer poder espiritual. Numa casa bem orga-nizada, o professor de letras ou o mestre de costumes,que possui poder espiritual, não institui o médico, masambos são instituídos pelo pai de família, e o mestre nãodirige o médico enquanto médico, mas só por acidente,na medida em que o médico deseja tornar-se de bonscostumes ou instruir-se. Assim o papa não institui o rei,mas ambos são colocados por Deus a seu modo, e tam-bém não dirige o rei, enquanto rei, mas por acidente, namedida em que é preciso que o rei seja fiel à crença, enisto é este instruído pelo papa a respeito da fé, mas nãodo governo. O rei, pois, está sujeito ao papa naquilo a queo sujeitou o poder supremo de Deus: apenas nas coisasespirituais. (idem)

Dizer que havia uma hierarquia dos fins entre as coi-sas do espírito e as da matéria equivalia também a procedersegundo uma falha de raciocínio, sustentava João Quidort:

a arte superior nem sempre e necessariamente dominasobre a inferior, movendo-a de modo autoritativo e insti-tuindo-a, mas só a domina de modo diretivo, assim comoo médico instrui o farmacêutico, e julga se o mesmo pre-parou corretamente os remédios, mas não o institui nemdestitui. Existe, porém, alguém superior tanto ao médico

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como ao farmacêutico e a quem cabe a responsabilidadede toda a ordem da cidade: é o rei ou o senhor da cidade;este, se o farmacêutico não preparar os remédios confor-me o pedido do médico, pode instituí-lo ou destituí-lo.Aplicando ao nosso caso, podemos dizer que todo mundoé como que uma cidade, na qual Deus é o poder supre-mo, que pode instituir tanto o papa como o príncipe.(SPRP, p. 108)

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Investindo fortemente contra as reivindicações hiero-cráticas, materializadas naquele momento no tratado deEgídio Romano escrito pouco antes, João Quidort passavaao alvo seguinte: a reivindicação de dominium e jurisdiçãoem assuntos temporais pelo sumo pontífice. A matéria ocu-pa boa parte do livro (cap. VII-XX) e constitui provavelmentea parte mais interessante da obra. A discussão se inseria nocontexto mais amplo das ordens mendicantes e sua reivindi-cação em favor da pobreza evangélica, que atingiria seu ápi-ce pouco depois.122 João de Paris, sempre atento às disputasde seu tempo, forneceria à questão uma nova e frutífera in-terpretação.

Os bens eclesiásticos, dizia ele, por serem de uso co-mum e pertencerem à comunidade da Igreja, não eram pro-priedade (proprietatem) nem dominium de qualquer pessoa

122 O século XIII fora marcado por uma enorme fermentação social, queprosseguia no XIV. Multiplicavam-se as organizações, comunidades,uniões, grêmios e movimentos rebeldes formados à margem de qual-quer doutrina ou norma sustentada pela Igreja. Tornava-se cada vezmais difícil manter a teoria de um mundo social ordenado de cima parabaixo, fato que podia ser verificado nas inúmeras formas de manifesta-ção popular contra os princípios sociais dominantes na cristandade.Sobre esse assunto, cf. WAUGH, S.; DIEHL, P. (Ed.). Christendom and itsdiscontents. Cambridge: Univesity Press, 1996.

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singular, e sim do grupo como um todo. Ao sumo pontífice,cabeça da Igreja universal, cabia apenas o cuidado e a admi-nistração desses bens coletivos, fossem eles temporais ouespirituais.123 Isso contudo, advertia, não o tornava senhor(dominus): tal dominium cabia somente à comunidade daEcclesia, senhora e proprietária daqueles bens em geral, cujaposse era detida pelas igrejas e comunidades particulares,que tinham sobre eles direito de uso (ius utendi).

Por essa razão, continuava o Pregador, o sumo sacer-dote não podia dispor dos bens eclesiásticos como desejassee nem seus decretos tinham vigor legal:

Isto aconteceria se ele fosse senhor [dominus], mas comoé apenas administrador dos bens da comunidade – e doadministrador espera-se boa fé – não recebeu ele podersobre estes bens, a não ser para a necessidade ou utili-dade da Igreja em geral. [...] Assim sendo, não tem forçade direito sua ação, se dispõe ad libitum e não de boa féos bens eclesiásticos, e no caso não só deve fazer peni-tência pelo pecado, como se fosse por abuso de algo quefosse seu, mas, por ter agido de modo infiel, está obriga-do à restituição, se possui algum bem herdado ou adqui-rido, já que agiu como dilapidador de bens que não sãoseus. (SPRP, p. 59)

Ou seja, caso os atos do pontífice não se subordinas-sem à utilidade do corpo eclesial, ele podia ser punido e esta-va obrigado a devolver os bens transacionados pelo mau uso

123 “Como os fundadores de igrejas entendiam transferir domínio e a pro-priedade dos bens oferecidos primária e imediatamente à comunidadede um colégio, isto é, de determinada Igreja, para o uso dos que nelaservem a Deus, e não tencionavam transferir ao senhor papa, é eviden-te que o domínio imediato e verdadeiro sobre tais bens cabe à comuni-dade, e não ao papa ou a qualquer outro prelado subalterno. [...] Portanto,o papa não é senhor único, mas administrador geral; o bispo e o abadesão administradores especiais e imediatos; a comunidade, porém, é quetem o verdadeiro direito de posse sobre os bens” (SPRP, p. 58).

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do patromônio coletivo. E, se não corrigisse seu erro, o sumopontífice podia ser deposto pelo corpo dos fiéis.124

E assim ocorria porque a propriedade eclesiástica eraconferida às comunidades, e não a pessoas individuais: ape-nas a congregação como um todo detinha dominium ouproprietas sobre ela. O papa, membro principal e cabeça dacongregatio dos cristãos, tinha somente o direito de uso dosbens comunitários. Podia administrá-los e deles dispensar,alocando-os de acordo com a justiça proporcional e com obem comum do grupo. Essa era a posição do bispo numacatedral que, em virtude da unidade da Ecclesia, estava su-bordinado ao papa, encarregado de zelar pelo bem geral dainstituição eclesial. Por isso, o pontífice constituía o dispen-sator de todos os bens eclesiásticos, temporais – como o Pa-trimonium Petri – e espirituais. Ele não era, contudo, dominus,senhor desses bens, pois apenas a comunidade universal daIgreja podia sê-lo, já que eram comuns e a propriedade delesgeral.

Os bens dos leigos, pelo contrário, dado serem adquiri-dos individualmente por meio do esforço de cada um, nãoconstituíam posses coletivas. Por isso, o dominium sobre eles– e isto é relevante – não podia caber nem ao pontífice nem aoprinceps, mas somente ao seu proprietário:

deve-se considerar que os bens exteriores dos leigos nãopertencem à comunidade, como os bens eclesiásticos, massão adquiridos pela arte, o trabalho e a habilidade própriade cada pessoa, e as pessoas individualmente, e enquanto

124 “O mosteiro pode depor o abade, e a Igreja particular, o bispo, se forconstatado que dissipam os bens do mosteiro ou da Igreja, tomando-osinfielmente não para o bem comum, mas para seu interesse particular.Do mesmo modo, se se constatar que o papa dissipa infielmente osbens da Igreja, não os usando para o bem comum – sobre o qual, naqualidade de pontífice supremo, cabe-lhe vigiar – pode ser deposto se,admoestado, não vier a corrigir-se” (SPRP, p. 59).

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indivíduos, possuem o direito, o poder e o verdadeiro domí-nio sobre eles, e, por ser senhor [dominus], cada um podepor si ordenar, dispor, distribuir, reter e alienar qual-quer bem ad libitum, sem com isto lesar a alguém. Taisbens não possuem, pois, ordem e conexão entre si, nempara com um chefe comum, a quem caiba dispô-los edistribuí-los, pois cada um é ordenador de suas pró-prias coisas assim como bem o entende, e nem o príncipenem o papa tem direito de posse [dominium] ou de admi-nistração [dispensationem] sobre tais bens.125 (SPRP,p. 60 – grifos meus)

João Quidort utilizava dessa maneira a tese tomista daindividuação corpórea existente entre os homens que com-preendiam uma espécie para explicar a propriedade tantoprivada quanto pública. À diversidade dos corpos, no entan-to, ele opunha a unicidade da alma, dado que todas as cria-turas humanas eram constituídas do mesmo grau essencial,segundo a unidade da espécie. Nesse ponto, João Quidortnada mais fazia do que seguir as pegadas do Aquinate e suadoutrina da unicidade substancial da forma e da matéria,como já foi visto. Mas ia além do mestre ao relacionar explici-tamente a posse material ao trabalho: isto é, cada ser indivi-dualmente era dominus, senhor da sua propriedade pelo fatode tê-la adquirido por meio do esforço e indústria próprios.Por essa razão também, cada indivíduo era o administradorde seus bens, podendo fazer com eles tudo o que desejasse.

125 No original: “Ad quod declarandum considerandum est quod exteriorabona laicorum non sunt collata communitate sicut bona ecclesiastica, sedsunt acquisita a singulis personis arte, labore vel industria propria, etpersonae singulares, ut singulares sunt, habent in ipsis ius et potestatemet verum dominium, et potest quilibet de suo ordinare, disponere,dispensare, retinere, alienare pro libito sine alterius iniura, cum sitdominus. Et ideo talia bona non habent ordinem et connexionem inter senec ad unum commune caput quod habeat ea disponere et dispensare,cum quilibet reisuae sit ordinator pro libito. Et ideo nec princeps nec papahabet dominium vel dispensationem in talibus”. In: QUIDORT. De regiapotestate et papali, E. Bleienstein, op. cit., p. 96-7.

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Os homens tinham, portanto, sobre tais bens exterio-res obtidos pelo esforço pessoal de cada um, direito de pro-priedade e verdadeiro dominium, de modo que cada qual podia“ordenar, dispor, distribuir e alienar” como quisesse, semdanos para terceiros. Essa propriedade não dependia de ou-tros homens nem estava a eles condicionada. Tampouco li-gava os homens entre si (“não possuem ordem e conexãoentre si”). Com base nesse raciocínio, João Quidort podianegar, tanto ao príncipe quanto ao sumo pontífice, qualquerpoder sobre o dominium verdadeiro. Isso permitia ao Prega-dor falar do dominium (senhorio) de cada indivíduo como umdireito inalienável: John Locke, leitor de João Quidort, poucoteria a acrescrentar a essa formulação. O princeps só podiadispor dos bens privados de cada uma dessas unidades emcaráter excepcional, quando estava em jogo o interesse dobem comum, a utilitas publica. Uma nova forma de interpre-tar o mundo estava sendo gestada. Os representantes da teoriado valor-trabalho, por exemplo, encontrariam, séculos maistarde, justamente nessa idéia um bom motivo para a reivin-dicação de um novo mundo.

Mas, como a posse privada de bens era freqüentemen-te fonte de conflitos entre os seres humanos, justificava JoãoQuidort, foi preciso instituir a populo um governante, a fimde que essas querelas fossem solucionadas de forma justa:

Seguidamente, porém, acontece que por causa destes bensexteriores a paz comum é perturbada, pois um rouba oque é de outro; outras vezes, porque os homens, apegan-do-se por demais às próprias coisas, não as distribuemconforme o exige a necessidade ou a utilidade da pátria(utilitati patriae). Por isto foi instituído pelo povo um prín-cipe, que como juiz preside nestes casos, discernindo entreo justo e o injusto, punindo a apropriação indébita e de-terminando a quantidade certa de bens que deve receberdos cidadãos para prover à necessidade e utilidade co-mum. (SPRP, p. 61)

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Mas por que instituir um príncipe? Depois da quedaem pecado, contava João Quidort, os homens, proprietáriosindividuais, administravam suas posses de maneira egoístae auto-interessada, sem consideração para com os demaisseres humanos. De Deus as criaturas haviam recebido o ins-tinto natural, por meio do qual apreendiam que lhes podiaser útil a vida em comunidade, de modo a evitar a reprodu-ção infinita dessas experiências violentas. Mesmo que, emprincípio, os homens não precisassem uns dos outros paraadministrar suas propriedades, parecia razoável que, a fimde impedir que a paz do todo fosse perturbada por causa dosconflitos – roubo, amor excessivo do seu etc. – gerados pelosbens exteriores, fosse estabelecido um príncipe que agissecomo um juiz em tais situações, distinguindo o justo do in-justo.

O governante, portanto – punidor das injúrias e injus-tiças e distribuidor dos prêmios –, era aquele que media ajusta proporção do bem comum a ser concedida a cada pro-prietário individual. Tais governantes, explica Coleman, nãodestruíam a propriedade privada dos indivíduos, nem o seudireito natural a ela, e sim organizavam-na de modo que ser-visse à utilitas publica, cujo cuidado era incumbência do prín-cipe: devia ele assegurar o bem comum do todo, impedindo adesintegração daquela multidão de indivíduos à procura deseus interesses pessoais.126 Pois na ausência de um podercomum dentro dos corpos que os inclinasse na direção dobem coletivo, argumentava João Quidort invocando o mes-tre, o corpo do homem sofreria um colapso.

Por isso, um tal rector do governo das coisas constituíauma necessidade. O bem individual, como já havia explicadoo autor, não equivalia ao bem do coletivo: os homens dife-riam no que lhes era próprio enquanto indivíduos e uniam-

126 Cf. COLEMAN, J. The dominican political theory of John of Paris in itscontext. In: WOOD, op. cit., p. 211.

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se naquilo que lhes era comum. Pois um princípio de unida-de era requerido para que os indivíduos se juntassem sob acomunidade da espécie. E porque causas diferentes tinhamefeitos diversos – como já demonstrara ele a respeito do po-der temporal e do espiritual – então necessariamente o quemovia cada indivíduo para o bem próprio era diferente da-quilo que o movia na direção do bem comum dos muitos. Poressa razão, a garantia da boa vida em comunidade consistiaem subordinar o interesse privado ao comum.

Como não era dominus, não detinha o papa portantodireito de uso sobre os bens dos leigos, podendo cada qualdeles dispor ad libitum. O único instrumento do pontífice paraobter posses materiais dos leigos com vistas ao bem espiri-tual comum era a censura eclesiástica, que não passava deuma “declaração de direito” (iuris declaratio). Mas ter pro-priedade e dominium sobre bens exteriores, esclarecia o Pre-gador, não equivalia a ter jurisdição (iurisdictionem) – isto é, odireito de decidir o que era justo ou injusto – em relação atais bens.127 E exemplificava: “Os príncipes têm o poder dejulgar e discernir sobre os bens dos súditos, embora não te-nham o direito de domínio sobre a própria coisa em questão”(SPRP, p. 62). Essa discussão tinha um importante sentidoestratégico na tentativa de mostrar a incompatibilidade en-tre a missão eclesial e aquela do poder político.

João Quidort construía sua argumentação a partir deuma teoria da propriedade e de uma concepção de governo a

127 Janet Coleman chama atenção para uma formulação relevante de JoãoQuidort: a de que o poder (potestas), em assuntos temporais, devia serentendido de maneira específica: isto é, como aquele senhorio sobre apropriedade material, chamado por João Quidort de dominium in rebus.Com essa restrição, diz ela, o autor restringia a utilização do termodominium, à época de uso vasto, à esfera unicamente temporal. Cf.COLEMAN, J. Dominium in the thirteenth and fourteenth-century politicalthought and its seventeenth-century heirs: John of Paris and Locke.Political Studies, v. 33, n. 1, p. 77, mar. 1985.

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ela associada. Seu raciocínio era tão claro quanto sucinto: odominium dos leigos sobre seus bens, porque fundado naindústria e diligência de cada um, constituía um seu “direito,poder e verdadeiro domínio”. Tal senhorio era anterior, histó-rica e logicamente, aos distintos modos de exercício da juris-dição, que consistia na determinação do justo e do injustoem relação aos vários usos das posses privadas e, num mo-mento posterior, daquelas comuns. Esses bens privados, antesda instituição de um governante, não eram conectados nemordenados mutuamente, nem dispunham de uma cabeçacomum para administrá-los, pois cada qual decidia pro libitosobre o que era seu.

Eleito um príncipe para reparar os agravos e satisfazeras necessidades coletivas, instaurava-se a iurisdictio – lite-ralmente, o ato de “ditar a justiça”, o direito, a lei, o ius, quetem como verbo correlato iurare, jurar, prometer sob jura-mento. Ou seja, aquela capacidade de gerir os vários dominipreocupados apenas com perseguir seus interesses priva-dos. Ao decidirem, por um processo de convencimento e per-suasão pelos mais sábios, se unir numa associação civil, osindivíduos renunciavam voluntariamente a boa parte de suaautonomia para viver numa comunidade pacífica, reguladapela lei, sob a direção de um rector por eles designado paraproteger o bem comum e também os vários bens privados:ficava-lhes garantido que a propriedade de cada um seriapreservada da guerra, da usurpação e da violência por partede terceiros.

O estabelecimento do princeps se dava por meio da li-vre escolha pelos singulares, que o elegiam e a ele se subme-tiam. A jurisdição do governante, dessa forma, era legitimadapelo fato de que fora imposta originalmente pelos indivíduossobre si mesmos para o benefício de todos. A criação da co-munidade política, nessa perspectiva, realizava a naturezagregária das criaturas humanas, isto é, tornava ato a incli-nação natural dos cives à vida comum, e os afastava um

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pouco, pelo incentivo da virtude, da forma pecaminosa devida que levavam antes da instauração da iurisdictio. A reu-nião livre de todos nessa formação específica tornava possí-vel o exercício legítimo da coerção em nome do bem comum eda garantia do dominium individual.

Entre os instrumentos para a manutenção dessa or-dem pública estavam a lei e o governo, e todas as instituiçõesdeles decorrentes. E, porque era o governante eleito livre-mente pelo populus com base em argumentos razoáveis, JoãoQuidort podia adotar a velha máxima segundo a qual “o queapraz o príncipe tem força de lei”: se a vontade do príncipenão reconhecia superior, era porque ela coincidia com aque-la dos súditos. O raciocínio tinha inspiração claramente aris-totélica: o bem das partes correspondia, na ordem da polis,ao bem do todo. Esse era o significado último da jurisdiçãoda autoridade pública. Não havia descontinuidade entre domi-nium, o próprio dos indivíduos, e iurisdictio, o direito especí-fico daquele que geria o bem público. Ao papa, portanto, cabiasomente guiar os espíritos ao seu fim último, a fruição deDeus, já que fomentar as virtudes terrenas era tarefa unica-mente do princeps.

João Quidort operava aqui uma clara distinção entredireito, de um lado, entendido como aquelas regras de açãoacerca do justo e do injusto, reguladas pela capacidade decoagir, e cuja garantia era função exclusiva do rei; e moral,de outro lado, entendida como aquele conjunto de regras oupreceitos de ação que não implicavam o uso da força e, por-tanto, não tinham vigor de lei, e cuja propagação e estudocabiam sobretudo aos prelados. Mas ia além: à diferenciaçãoentre direito e moral – passo fundamental para a definiçãoda idéia de soberania, que já vinha sendo desenvolvida pelosjuristas canonistas e civilistas desde o século XII –, JoãoQuidort acrescentava agora novos elementos relevantes, en-tre os quais a noção do exercício da coerção como fundamen-to primeiro da ordem legal.

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Seus argumentos não se limitavam, porém, às explica-ções naturais, esclarecia o Pregador, mas podiam ser corro-borados também por uma leitura atenta das Escrituras.Contra aqueles que reivindicavam ter recebido o papa taldominium do filho de Deus, o autor opunha a afirmação deque o próprio Cristo, enquanto homem, não tivera senhorioalgum sobre os bens dos leigos, nem tampouco autoridadeou poder judicial sobre as temporalia:

Cristo não possui um reino como os demais reis terrenos,mas um muito maior e mais brilhante reino nas alturas, eque não foi construído pelo homem. [...] Fica claro, pois,segundo os santos expositores, que Cristo não teve autori-dade sobre as coisas temporais, nem poder judicial, massua missão era dar testemunho da virtude. (SPRP, p. 63)

O sumo pontífice, portanto, não poderia ter recebido deCristo algo que ele próprio não tivera.128

A realeza de Cristo, sustentava João Quidort, jamaisfora deste mundo e, por isso, seu poder não era da ordemtemporal. Por essa razão, nada havia a que renunciar: Cris-to, ao longo de sua vida pregadora, jamais exercera direito depropriedade nem jurisdição temporal alguma. Todas as pas-sagens das Escrituras citadas pelos defensores da suprema-cia papal em assuntos temporais, esclarecia João Quidort,referiam-se a um exercício, por Cristo, da jurisdição sobre osbens dos leigos enquanto Deus, e não na qualidade de ho-mem. E quando a glosa afirmava reinar Cristo pela fé, issonão equivalia a dizer que Jesus havia pretendido dos ho-mens que se submetessem a ele como o faziam em relaçãoaos reis terrenos. Esse, aliás, tinha sido o erro de Herodes,

128 “Conclui-se, pois, que, como Cristo, enquanto homem, não teve domíniosobre os bens temporais, assim também qualquer sacerdote, enquantovigário de Cristo não possui poder dado por Cristo sobre estes bens, poisnão lhe transmitiu o que ele mesmo não possuía” (SPRP, p. 64).

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que julgara ter desejado Cristo ser meramente um rei terrenoquando na verdade pretendera reinar somente nos cora-ções.129

Por essa razão também, afirmar que o príncipe não podiafazer as leis nem colocá-las em vigor enquanto não fossemaprovadas pelo papa, a quem competiria ditar leis vinculantes,significava repetir, uma vez mais, o erro dos herodianos, ar-gumentava João de Paris:

Dizer, porém, com tais juristas, que o papa dita leis aopríncipe, e que o príncipe só pode tomar leis de outrasfontes quando elas são aprovadas pelo papa, é simples-mente destruir o regime real e republicano [regimen regaleet politicum], e cair no erro de Herodes, julgando e temen-do que Cristo destruísse o reino terreno, pois, segundo dizAristóteles, [...] um governo só se chama real quando épresidido por um só, segundo as leis que ele mesmo fez;quando, porém, não é governado segundo seu arbítrio, nemsegundo as leis que ele mesmo institui, mas que foramfeitas pelos cidadãos, chama-se então governo civil, ourepublicano [principatus civilis vel politicus]. Se, pois, umaautoridade só vier a governar segundo leis que lhe foremdadas pelo papa, ou que antes sejam aprovadas por ele,não haverá então governo real ou republicano, mas papal.Isto significaria a destruição do reino e o esvaziamento dasformas antigas de governo. (SPRP, p. 109-10 – grifos meus)

Gregorio Piaia sustenta que a menção ao erro de Herodestinha uma função específica na obra do Pregador: a ele João

129 “Assim, pois, segundo a glosa, o jugo da lei e do pecado é sacudido porCristo de seus membros. Mas não se deve entender que Cristo, pela fé,reine nos homens, como se alguém, ao converter-se à fé, venha a tor-nar-se súdito do vigário de Cristo nas coisas temporais, assim comosoem os homens ser súditos dos reis. Se assim fosse, Cristo teria muda-do o reino terreno, como Herodes temia. Mas diz-se apenas que reinapela fé, porque os homens submetem a Cristo aquilo que neles é supre-mo e mais importante, que é o espírito, e o entregam como cativo emobediência à fé. Este é o espírito dos santos” (SPRP, p. 67).

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Quidort atribuía a raiz daquele princípio teocrático – que ser-via para sustentar as pretensões dos modernos defensoresda plenitude de poder do papa tanto em coisas espirituaiscomo temporais – destruidor da herança aristotélica (e tomista)baseada na naturalidade dos ordenamentos políticos, fos-sem eles monárquicos ou democráticos.130 A hipótese parecebastante plausível, sobretudo quando se considera que a viamedia aplicada por João Quidort consistia quase invariavel-mente numa aparente concessão inicial à posição adversáriapara, no momento seguinte, obrigar seus opositores a mo-ver-se no mesmo terreno argumentativo sobre o qual ele, JoãoQuidort, imperava. Por isso, parece sensato pensar que aexposição do Surdo fazia uso de recursos estratégicos refina-dos. E mais ainda quando se recorda que o tratado fora es-crito, antes de tudo, para ser um instrumento de combate naluta entre o rei e o sumo pontífice.

E, mesmo que Cristo tivesse desfrutado de tal jurisdi-ção e autoridade enquanto homem, concedia adiante Joãode Paris, ele não a transmitira a Pedro nem aos seus suces-sores: ao apóstolo Cristo transferira apenas o poder espiri-tual, conferindo o temporal a César.131 Os poderes, portanto,eram distintos não só quanto ao objeto, mas também quanto

130 Cf. PIAIA, G. L’errore di Erode e la via media in Giovanni da Parigi. REVISTA

DA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS. As relações de poder no pen-samento político da Baixa Idade Média. Homenagem a João Morais Bar-bosa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, v. I, 1994.

131 “Segundo Ef. 1:22 e 5:23, Cristo é cabeça da Igreja [caput Ecclesiae]. [...]Às vezes, porém, as coisas que estão unidas na cabeça estão separadasnos membros. Assim, por exemplo, todos os sentidos estão na cabeça,mas não em qualquer um dos membros. E há uma regra geralmenteválida: as coisas são mais distintas nos principiados que no princípio,nos efeitos que na causa, nos inferiores que no superior. Portanto, seCristo, também enquanto homem, teve os dois poderes, nem por isto énecessário que tenha transmitido ambos a Pedro, a quem transmitiu sóo espiritual, conferindo o temporal a César, poder este que ele receberade Deus” (SPRP, p. 67).

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ao sujeito, escrevia João Quidort: “O imperador é a maiorautoridade nas coisas temporais, e não existe ninguém su-perior a ele, do mesmo modo como o papa o é nas coisasespirituais” (SPRP, p. 67). E àqueles que utilizavam a refe-rência às duas espadas para sustentar a jurisdição de Cris-to, João Quidort respondia, recorrendo ao Pseudo-Dionísio,que a teologia mística não tinha força probatória.

Por isso, sustentava que a alegação a respeito dos doisgládios tomada de Lc 22, 38 constituía somente uma adapta-ção alegórica a partir da qual não se podia formular um ar-gumento válido. E reintrepretava a tão amplamente divulgadateoria gelasiana das duas espadas:

Aliás, posso dizer que por aqueles dois gládios não seentendem misticamente os dois poderes em questão, prin-cipalmente porque assim não são expostos misticamentepor nenhum dos santos, cuja doutrina é aprovada e con-firmada pela Igreja; pelos dois gládios todos entendem apalavra de Deus [...] que é chamada de “dois gládios” porcausa do Antigo e do Novo Testamento. (SPRP, p. 114)

Por dois gládios podiam-se entender ainda a palavraou pregação e a perseguição que deveria ser suportada pelosapóstolos.132

Mesmo supondo-se que constituísse uma representa-ção dos dois poderes, entretanto, concedia João Quidort maisuma vez, era preciso concluir dessa passagem que Pedro haviarecebido de Cristo um único gládio, o espiritual:

132 “Pelos dois gládios podem-se também entender o gládio da palavra e oda perseguição implacável, da qual diz Lc. 2: 35: ‘Uma espada traspas-sará tua própria alma’; e em 2 Sm 12: 10: ‘O gládio não sairá de tuacasa’. Estes dois gládios deviam então ser suficientes para os apóstolos:um deviam eles suportar passivamente – o gládio da perseguição; outrolhes era próprio, devendo ser desembainhado no momento oportuno – ogládio da pregação” (SPRP, p. 115).

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Admitindo, contudo, que por aqueles dois gládios en-tendam-se o poder espiritual e o temporal, embora sediga que ambos são ali existentes, não se diz que am-bos são propriedade de Pedro. De fato, num deles, nosecular, não tocou, pois não era seu; tocou no outro, oespiritual, o único que o Senhor disse pertencer-lhe, econtudo não devia ser imediatamente desembainhadopor Pedro. Por isto foi-lhe dito (Mt. 26: 52): “Põe o teugládio na bainha”, pois o juiz eclesiástico não deve usarincontinenti sua arma espiritual, mas só após sériadeliberação e em caso de grande necessidade, a fim denão ser desprezado. Suposto então que por aqueles doisgládios entendam-se misticamente os dois poderes, oargumento fica em nosso favor, pois eram dois gládios,e entretanto Pedro teve somente um. (SPRP, p. 115)

Além disso, argumentava ele recorrendo ao princípioda divisão do trabalho, como a vida coletiva fora organizadapor Deus de modo a ser auto-suficiente, seria inconvenienteque tarefas tão diferentes como o cargo real e o episcopalfossem atribuídas a uma única pessoa.133 E, como na trans-missão do poder Cristo não colocara nenhuma restrição aosdemais apóstolos com relação a Pedro, embora o tivesse apon-tado como o principal e a cabeça da Igreja, seguia-se daí que,entre os apóstolos, o poder que um tinha era também o po-der do outro. Assim também hoje, dizia João Quidort, pelodireito comum o que podia o pontífice sobre toda a Igreja,podiam também os bispos em suas dioceses. E assim comonão era possível apelar do príncipe para o bispo local ou para

133 “Pode-se também argumentar com a comparação entre a Igreja funda-da por Deus e os artefatos humanos. Uma casa é visivelmente imperfei-ta, materialmente mal montada e não basta a si mesma na vida, se umasó pessoa deve exercer nela diversos ofícios. [...] A Igreja é chamada decasa santa de Cristo [...]. Portanto, como foi organizada por Deus com onecessário para a existência, seria inconveniente que nela fossem con-fiados a um só tão diversos ministérios como o ofício sacerdotal e odomínio real” (SPRP, p. 68-9).

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o sacerdote em matérias temporais, assim também não sepodia apelar ao papa.134

Se havia uma só cabeça na Ecclesia, considerava, talunidade estaria, em sentido próprio, apenas em Cristo, ca-beça única da qual provinham todos os demais poderes emdiversos graus. O sumo pontífice, portanto, só podia ser ditocaput com relação à ordenação dos ministros da Igreja, daqual ele era o minister principal:

Pode-se, sem dúvida, dizer que o sumo pontífice é cabeçacom relação à colocação exterior dos ministros, enquan-to é o principal entre eles e de quem, como principal vigá-rio de Cristo nas coisas espirituais, depende toda aordenação dos ministros como do hierarca e arquiteto,do mesmo modo como a Igreja romana é cabeça das de-mais Igrejas. Mas o papa não é cabeça no sentido de quedeve dispor sobre coisas temporais, pois nestas cada reié cabeça de seu reino, e se houver um imperador, quegoverne sobre tudo, ele é cabeça do mundo [caputmundi].135 (SPRP, p. 112)

Isto é, Cristo era a cabeça da Ecclesia e, portanto, docorpo místico. Na ordem terrena esse papel cabia ao rei, e,

134 “Ora, ninguém afirma que os demais bispos, enquanto são vigários deCristo e sucessores dos demais apóstolos, tenham também poder e do-mínio sobre os bens temporais, e que em questão temporal se possaapelar do príncipe para o bispo local, ou para o sacerdote da paróquia –o qual, segundo alguns, possui na paróquia o mesmo poder que o bispona diocese. Do mesmo modo, pois, não se deve dizer isto do papa comrelação a todo o mundo” (SPRP, p. 70).

135 Pode-se ler o mesmo na Quaestio in utramque partem: “Todavia, admiti-mos que o Sumo Pontífice pode ser chamado de cabeça da Igreja, en-quanto é o vigário de Cristo e principal dentre os ministros eclesiásticos,e de quem depende toda a organização da esfera espiritual, do mesmomodo como também a Igreja Romana é designada cabeça das outrasIgrejas, mas o Papa não é a cabeça quanto ao governo temporal. Naverdade, cada rei é cabeça no seu reino, como o Imperador é no Império[...]”. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 45, op. cit., p. 197-8.

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quando este se subordinava a um poder maior – o que nãoera o caso do monarca francês –, cabia ao imperador.136 Nes-se esquema, o papa era reduzido “à condição de um simplesministro, o maior de todos, sem dúvida, mas nada mais queum ministro, nunca um termo de comparação à altura dorei”.137 O sumo pontífice, embora não possuísse ambos osgládios, podia até vir a ter jurisdição nas coisas temporaisquando o princeps, por devoção, assim o concedia.

Assim, em seus domínios, isto é, no Patrimônio de SãoPedro, dentro do qual tinha jurisdição, podia o pontífice dis-pensar em assuntos temporais. Mas, em qualquer outra ter-ra que não lhe estivesse submetida, não podia o bispo deRoma fazê-lo. Pois fora de seus domínios o papa podia legiti-mar apenas em matérias espirituais (SPRP, p. 101-2). Opatrimônio papal aparecia nesse raciocínio equiparado àsdemais unidades políticas: seu administrador, responsávelpela gestão do bem comum sobre aquele território, tinha dearbitrar os conflitos em nome do coletivo, detendo por isso,dentro dele, jurisdição. Fora dessas fronteiras, entretanto,nada mais lhe cabia em matéria de jurisdição.

O legado petrino era tratado mais e mais como umaautêntica monarquia sobre a qual reinava o bispo de Roma.

136 E repunha o argumento de Egídio Romano, expondo uma absurdidadelógica: “Há, porém, alguns que crêem poder evitar muitas destas con-clusões através de uma pequena distinção. Dizem que o poder secularencontra-se no papa de modo imediato e em força de autoridade primá-

ria. Mas o papa não tem a execução imediata, que confia ao príncipe, eassim o príncipe secular, no que se refere àquele poder, necessita doreconhecimento do papa, mas quanto à execução o papa necessita dopríncipe”. E respondia: “Esta evasão é totalmente absurda [absurda], enem concorda com as palavras deles, pois se a Igreja reconhece que opoder de execução cabe primariamente ao príncipe secular, deve entãoo príncipe julgar da devida execução do papa, podendo retirá-la do sumopontífice, o que eles não aceitam, pois dizem que o papa não é julgadopor ninguém” (SPRP, p. 72).

137 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 27.

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Se essa monarquia devia ser absoluta ou constitucional, erao que se discutia. Egídio e os hierocratas propunham a pri-meira forma; João Quidort e os conciliaristas, a segunda. Poressa razão, dizer que a organização da Ecclesia fornecia, nes-se momento, um modelo bem acabado de uma formação depoder de tipo estatal não deve constituir surpresa: era mais aconseqüência óbvia da sistematização conceitual desenvolvi-da por seus pensadores, teólogos e juristas, em face das dis-putas concretas pelo poder desde pelos menos o século XI.

Os argumentos utilizados por João Quidort forneciamuma boa amostra de quão desenvolvida já estava à época anoção de pertencimento a um povo ou nação sobre determi-nado território, elemento fundamental para a consolidaçãodo Estado moderno:

Anote-se também que antes existiu, em si e quanto àexecução, a autoridade real e depois a papal; antes houvereis da França que cristãos na França. Portanto, o poderreal não depende do papa nem em si mesmo, nem quan-to à execução, mas provém de Deus e do povo que elegeue continua elegendo o rei, indicando uma pessoa ou umafamília para o cargo. (SPRP, p. 73 – grifos meus)

Também na Ecclesia, emendava João Quidort, o podervinha diretamente de Deus e do povo para os prelados, e nãopor meio do sumo pontífice, como pretendiam alguns. Pois oapostolado não fora recebido de Pedro, e sim de Cristo.138 Econcluía: “Se, pois, na Igreja vemos que o poder eclesiástico

138 “Mas o poder dos prelados não provém de Deus através do papa, e simimediatamente de Deus e do povo que os escolhe e os aprova. Pedro,cujo sucessor é o papa, não enviou os outros apóstolos, cujos sucesso-res são os bispos, e nem mesmo os setenta e dois discípulos, cujossucessores são os párocos; quem enviou a todos eles foi Cristo, de modoimediato, segundo Mt. 10 e Lc. 10. Nem foi Pedro que soprou sobre osapóstolos, dando-lhes o Espírito Santo e o poder de perdoar os pecados,mas Cristo soprou sobre eles” (SPRP, p. 73).

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não provém do papa, muito menos devemos dizer que o po-der real venha dele” (idem). A fonte e a origem de todo poderera o povo, “por meio do qual se realiza o costume”. Pois maisvalia o consenso de toda a multidão. Com essa formulação, adiscussão sobre a origem do poder mudava de eixo e teriaimplicações relevantes tanto para a organização interna daIgreja quanto dos reinos. Pouco depois surgiria o movimentoconciliarista, que defenderia a idéia de um concílio geral paradirigir a Ecclesia, nos moldes de uma monarquia constitu-cional.

A noção de representação, tal como conhecida moder-namente, e a idéia de uma corporação capaz de agir em nomedos indivíduos ganhavam contornos ainda mais claros. Es-sas transformações, no entanto, como lembra De Boni, su-punham uma nova visão do mundo civil:

A concepção primordial que João Quidort tem da socie-dade – e da Igreja – não é a de uma unidade superior,diferente do conjunto dos indivíduos. O nominalismo, quepor tudo já se respira em 1300, conhece em primeiro lu-gar os indivíduos em sua singularidade, esvaziando osconceitos genéricos de qualquer realidade extramentalsuperior. A sociedade é a soma de seus componentes, e aautoridade nela é concebida como provinda de uma dele-gação por parte dos indivíduos, aos quais cabe também,em determinadas circunstâncias, revogar seu ato primeiroe instituir a outrem como chefe.139

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Depois de listados os argumentos a favor da tese deque o papa teria jurisdição sobre os bens temporais exter-nos, João Quidort passava a esclarecer as premissas de suaresposta, retomando sua definição de sacerdotium:

139 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 35.

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Deve-se pois levar em consideração [...] que o sacerdócionada mais é que o poder espiritual dado aos ministros daIgreja para dispensar aos fiéis os sacramentos que con-têm a graça, pela qual nos tornamos aptos para a vidaeterna. Mas a natureza, que não falha no necessário, nãoconcede a ninguém uma capacidade sem dar-lhe ao mes-mo tempo os meios necessários para que aquela potên-cia passe à atividade que lhe corresponde. (SPRP, p. 83)

Pois, como dizia o Filósofo, a todo ato correspondia umapotência.

De tal modo isso era verdadeiro, sustentava JoãoQuidort, que os poderes conferidos aos apóstolos, e transmi-tidos aos seus sucessores, os ministros da Igreja, podiam serlidos no Evangelho. Eram eles seis: 1) o poder da consagra-ção; 2) o de administrar os sacramentos, entre eles o da peni-tência, que constituía o poder das chaves ou jurisdiçãoespiritual no foro da consciência; 3) o poder ou ofício doapostolado ou da pregação; 4) o poder de correção judicial noforo externo, por meio do qual, devido ao temor da pena, ospecados eram castigados, sobretudo aqueles que provoca-vam escândalo na Igreja; 5) o poder de dispor os ministrosquanto à determinação da jurisdição eclesiástica, para quese evitasse confusão; e 6) como resultado dos anteriores, o dereceber o necessário para um conveniente sustento da vidapor parte daqueles que conferem os bens espirituais (SPRP,p. 84-7). Este era todo o poder que Cristo havia concedidoaos apóstolos. Segundo os poderes recebidos, portanto, de-duzia o Pregador, os prelados não tinham nenhum dominiumou jurisdição sobre as temporalia.

Também segundo tais poderes, os príncipes não esta-vam submetidos aos sacerdotes nas coisas temporais. Pois opoder de consagrar, explicava, era puramente espiritual. Tam-bém o era o segundo poder – o das chaves no foro de cons-ciência. Pois

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por este poder não possuem [os prelados] qualquer auto-ridade sobre as coisas temporais, a não ser quando, noforo da consciência induzem e impõem para a satisfaçãodo pecado uma penitência corporal, do mesmo modo comoimpõem outras penitências. Mas por este motivo ninguémlhes é pura e simplesmente sujeito, sendo-o apenas sobduas condições: se pecar e se quiser fazer penitência. Sealguém não tiver tal intenção, não podem coagi-lo poreste poder, ao contrário do juiz secular, que pode impormulta pecuniária ou reparação mesmo a quem não quer,podendo até compeli-lo a tanto. (SPRP, p. 88)

Já o poder ou autoridade da pregação não constituíadominium por não desfrutar de senhorio: consistia somentenuma autoridade de magistério ou docência.

A dificuldade toda residia, segundo o autor, no poderde julgar no foro externo, no qual se deveriam considerardois aspectos: a autoridade para discernir ou julgar e o poderde coagir. E explicava com clareza:

Trata-se aqui de duas chaves no foro exterior. Quanto àprimeira deve-se considerar que o juiz eclesiástico, en-quanto eclesiástico, não julga regularmente no foro exte-rior, a não ser em causas espirituais, que são chamadasde eclesiásticas, e não nas causas temporais, a não serpor motivo de pecado. Se se compreende corretamenteesta afirmação, ela não é uma exceção à regra, pois aIgreja não julga sobre nenhum delito, a não ser que sedeixe reduzir ao espiritual ou eclesiástico. (SPRP, p. 89)

Assim, de dois modos se podia pecar nas coisas tempo-rais:

1) usando da opinião falsa ou erro, como quando sedefendia, por exemplo, não constituir a usura um pecadomortal. Como tais pecados eram regulamentados pela leidivina, dizia João Quidort, cabia ao juiz eclesiástico, únicaautoridade competente, decidir sobre ele. Mas esclareciaadiante:

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embora caiba à autoridade eclesiástica julgar sobre o cri-me de usura, porque é pecado, e seja de sua competênciajulgar o que deve ser restituído, contudo, por ser um casopúblico, cabe ao príncipe impor a restituição e a repara-ção, pois ele é a justiça animada e o guarda do justo.(SPRP, p. 105 – grifos meus)

2) outro modo de pecar consistia

na reivindicação de fato, pela qual procura-se reter oubuscar o alheio como se fosse bem próprio; o julgamentoem tais casos cabe somente ao juiz secular, que julgasegundo as leis civis, pelas quais fazem-se as apropria-ções e as reivindicações jurídicas, pois os bens necessá-rios ao uso dos homens seriam negligenciados se fossemcomuns a todos e a cada um, e se fossem indistintamen-te comuns a todos dificilmente se conservaria a paz entreos homens. [...] Por isso, a respeito das coisas temporais,o juiz eclesiástico não legisla e nem julga, cabendo taltarefa somente ao juiz secular. Em caso contrário, o juizeclesiástico recebeu para tanto concessão ou permissãode alguém outro, que não Cristo. (SPRP, p. 89)

O poder de receber o necessário para o sustento davida, prosseguia, era um poder de caráter temporal e deviaser antes chamado de “um certo direito”, que cabia aos reli-giosos, de obter o sustento. Esse direito não tornava os prín-cipes súditos daqueles, mas apenas devedores,

como os demais fiéis que deles recebem dons espirituais.E embora isto lhes fosse devido, contudo os apóstolosnão procuraram este direito de modo autoritativo, masem forma de súplica. Contudo, o papa pode decidir o quese deve aos ministros da Igreja, e eles mesmos podemreclamar, como a quantia que lhes é devida dos rendi-mentos, e até por censura eclesiástica o papa pode váriasvezes coagir os resistentes a pagar o sustento dos minis-tros. (SPRP, p. 94)

Já o poder de correção ou de censura eclesiástica, diziaJoão Quidort, constituía matéria puramente espiritual, pois

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não podia impor pena alguma no foro externo que não fosseespiritual, a não ser sub condicione et per accidens. Sob con-dição, explicava ele,

pois aplica-se somente quando alguém quer arrepender-se e dispõe-se a aceitar uma pena pecuniária. [...] Se nãoa aceitar, o juiz eclesiástico pode compeli-lo pela exco-munhão ou por outra pena espiritual, que é tudo o quepode aplicar, não lhe sobrando outros meios. Digo tam-bém “acidentalmente”, porque se se tratar de um prínci-pe herético, incorrigível e desprezador das censuras ecle-siásticas, o papa pode tomar certas medidas junto aopovo e por elas o príncipe fica privado da honra secular eé deposto pelo povo. (SPRP, p. 91 – grifos meus)

Mas, assim também como o papa podia intervir juntoao povo pela deposição do governante temporal, continuavao Pregador, o príncipe podia pressionar os cardeais e o povoem favor de sua deposição:

Do mesmo modo, acontecendo o contrário, e se o papafor criminoso, escandalizar a Igreja e não se corrigir, podeo príncipe indiretamente excomungá-lo e depô-lo aciden-talmente, admoestando-o pessoalmente e por intermédiodos cardeais. Mas se o papa não quiser corrigir-se, podeo príncipe tomar medidas junto ao povo, a fim de obrigá-lo a ceder ou a ser deposto pelo povo [...]. Assim podemtanto o papa como o imperador agir um contra o outro,pois tanto um como outro possuem jurisdição universal,um em matéria espiritual, outro em matéria corporal.(SPRP, p. 91)

Não restava dúvida de que Filipe IV retirara da formu-lação desse seu conselheiro os argumentos para pedir a de-posição de Bonifácio VIII e, mais tarde, sua condenação porheresia.

Do mesmo modo, se o rei pecasse em assuntos espiri-tuais, cujo julgamento coubesse ao tribunal eclesiástico, po-dia o papa admoestá-lo e até excomungá-lo. Mais do que

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isso, contudo, não podia a não ser por acidente, influencian-do o povo a derrubá-lo.140 A tônica de João Quidort aqui pa-recia ser a da cooperação entre os dois poderes, cada qualagindo somente em sua esfera específica. Embora a Igreja,em seu raciocínio, desempenhasse um papel exclusivamentemoral sobre os fiéis, um mundo sem a dignidade e a superio-ridade moral da instituição eclesiástica não era concebívelpara a imensa maioria dos cristãos medievais. João Quidort,oriundo da ordem dominicana, tal como seu mestre de Aquino,parecia compartilhar dessa visão.

Sua estratégia argumentativa, no que se referia à rela-ção entre os dois gládios, parecia repousar numa forte cren-ça no papel primordial da razão natural: por serem os doispoderes relativamente autônomos, era-lhes mais racional aju-darem-se e regularem-se mutuamente, cada qual respeitan-do o âmbito de atuação do outro, do que se confrontarem.Por isso, dizia ele, quando o rei pecava em assuntos tempo-rais, cujo julgamento não competia à Igreja, cabia aos barõese seus pares corrigi-lo. Esses, contudo, caso julgassem con-veniente, podiam pedir auxílio à Igreja para admoestar o prín-cipe e proceder contra ele. Dessa relação entre os poderes,escrevia, ficava claro portanto que “os dois gládios são obri-gados a ajudar-se mutuamente pela caridade comum quedeve unir todos os membros da Igreja” (SPRP, p. 93).

Mas o que, de fato, podia ou não o poder sacerdotal, emmeio a tantos poderes que um dia já lhe haviam sido atribuí-dos? E ao pontífice, o que lhe era devido? Dizer que o sumopontífice não podia ser julgado por ninguém constituía umerro grave, principalmente em se tratando de abuso do poderou de falhas pessoais:

140 “Fica claro, de quanto foi visto, que toda a censura eclesiástica é decunho espiritual, cabendo-lhe excomungar, suspender e interditar, enada mais pode a Igreja, a não ser de modo indireto e acidentalmente,como foi dito” (SPRP, p. 93).

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Digo, pois, que onde o papa erra manifestamente, pri-vando a Igreja de seu direito, dispersando a grei do Se-nhor e provocando escândalo por suas ações, pode eleser julgado pelo que fez, e ser persuadido e repreendidopor qualquer um, se não por ofício, ao menos pelo zelo dacaridade, não pela imposição de pena, mas com exorta-ção reverencial, porque o respeito que se deve à sua pes-soa não fica diminuído, em razão do alto posto ao qual foielevado. (SPRP, p. 136-7)

E, se o pontífice proferisse opiniões indefinidas quepusessem em perigo a justiça ou a verdade, ou mesmo o bempúblico, era lícito ao príncipe e ao povo agir contra ele.141

Com base em inúmeros tipos de argumentos era possívelmostrar também, dizia João Quidort, que o papa podia re-nunciar e até mesmo ser deposto contra a vontade. O pontí-fice, que tinha em vista o bem comum da Igreja e seu rebanho,presidia em função desse bem coletivo. Se, uma vez elevadopapa, ele se mostrasse inapto para cumprir com sua missão,ou ainda incapaz, ou surgindo qualquer outro impedimento,devia ele retirar-se ou ser dispensado pelo povo, ou pelo colé-gio de cardeais, que o representava.142

141 “Se, porém, na demora [em manifestar-se] houver perigo para o bempúblico, como no caso em que o povo seja levado a formar uma opiniãoerrônea, se houver o perigo de revolta, e se o papa excitar indevidamenteo povo pelo abuso do gládio espiritual, e não houver esperança algumade que ele possa ser demovido de outra maneira, creio que neste caso aIgreja deve ser mobilizada contra o papa e contra ele deve agir. O prín-cipe também pode repelir a violência do gládio do papa usando de seupróprio gládio de forma moderada, e nem age contra o papa enquantopapa, mas enquanto inimigo seu e da comunidade” (SPRP, p. 138).

142 “Se, portanto, após ter sido elevado à dignidade de papa, constatar porsi mesmo ou os outros constatarem que é totalmente inútil e inaptopara tanto, ou se surgir algum impedimento, tal como a loucura ou algosemelhante, deve então pedir sua demissão perante o povo, ou peranteo colégio dos cardeais, que em tal caso está em lugar de todo o povo, edeve então retirar-se tanto se houver recebido como se não houver rece-bido dispensa. [...] A respeito vale a regra geral: nenhum compromisso

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O poder papal, considerado em si mesmo, provinha sóde Deus, que lhe havia conferido o poder de “ligar e desligar”.De outro modo, contudo, considerado neste ou naquele indi-víduo, provinha de Deus da mesma forma que a Ele atribuía-mos as nossas ações.

Portanto, se o papado em si provém só de Deus, contudonesta ou naquela pessoa ele existe pela cooperação hu-mana, isto é, pelo consenso do eleito e dos eleitores, eassim também, pelo consenso humano, pode deixar deexistir nesta ou naquela pessoa. (SPRP, p. 144 – grifosmeus)

O pontífice, admitia João Quidort, era constituído papapela lei divina. E, embora tal lei divina fosse imutável, eracontudo cambiante materialmente, neste ou naquele, emCelestino ou Bonifácio “Que o papa esteja acima de todos élei divina e nada se pode fazer em contrário; mas que este ouaquele indivíduo seja papa é algo mutável, pois que para tan-to coopera o consenso dos eleitores e do eleito” (SPRP,p. 148).

Por isso, no que se referia à ordenação, as ações dopontífice eram sempre válidas. O mesmo já não se podia di-zer daquelas coisas que se referiam à jurisdição, as quaispodiam sempre ser removidas:

O motivo pelo qual as coisas que se referem à ordem nãopodem ser retiradas e as que se referem à jurisdição [iu-risdictionis] o podem é talvez porque as que se referemà jurisdição não se encontram acima da natureza e dacondição do dever e dos homens, pois não está acimada condição dos homens que os homens governem aos ho-mens; pelo contrário, de certo modo é até muito natural.

voluntariamente assumido pode prejudicar a caridade ou o compromis-so a que cada um é obrigado de tratar da salvação da própria alma”(SPRP, p. 142).

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Em tal condição, o que não é proibido é permitido e lícito,de tal modo que os mesmos fatores que constituíram algo,se usados de modo inverso, podem destruí-lo. Assim, pois,como pelo consenso dos homens a jurisdição é conferida,do mesmo modo também pelo consenso oposto ela podeser retirada. (SPRP, p. 149 – grifos meus)

O poder sacerdotal, porque se fundamentava no cará-ter indelével da concessão,143 permanecia para sempre na-quelas coisas que se referiam à ordenação, mas podia abdicarda jurisdição.144 Ao sumo pontífice, portanto, era permitidorenunciar, pois seu compromisso estava condicionado ao tem-po que permanecia no cargo. Por isso, também, não era pos-sível igualar o bispo de Roma a Cristo:

O sacerdócio de Cristo é eterno porque Cristo vive parasempre devido a seu sacrifício, e com isto concedemos arespeito do papa que seu sacerdócio dura sempre, en-quanto ele viva, porque recebeu um caráter indelével eserá sempre sacerdote, podendo celebrar no altar. Mas oofício de papa não dura necessariamente para sempre,enquanto ele viva, pois o papa pode renunciar ou, pormotivo grave, pode ser deposto, visto que o papado indica

143 “As coisas, porém, que se referem à ordenação encontram-se acima danatureza e da condição dos homens, de tal modo que pela prolação daspalavras consagradoras imprime-se na alma um caráter ou poder espi-ritual. Nestas coisas, porém, o que não é expressamente permitido, énegado. Porque está expressamente garantido que tais palavras impri-mem tal caráter, acontece o que é dito. Mas como não se encontra ex-pressamente indicado por Deus que de algum modo tal caráter pode sertirado, por isso é indelével a concessão do caráter, sobre o qual funda-menta-se o poder sacerdotal” (SPRP, p. 149).

144 “Pelo fato, pois, de que o papa se submete à lei da esposa, permanecepara sempre nela naquelas coisas que se referem à ordem, que são osacerdócio e o episcopado, nos quais imprime-se o caráter e a plenitudedo caráter. Mas quanto às coisas referentes ao papado ou sumo ponti-ficado, como o papado nada acrescenta além de jurisdição, não é neces-sário que permaneça para sempre na lei da esposa, pois pode renunciarà jurisdição” (idem).

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apenas jurisdição acima do episcopado e do sacerdócio,e é mutável esta jurisdição, sem a qual o papa não épapa. (SPRP, p. 150)

Em resposta aos argumentos levantados em favor daplenitude de poder do pontífice in temporalibus, constantesem seus grupos de réplicas, João Quidort levantava aindaoutras objeções relevantes, como aquelas em defesa do reinofranco. Entre elas, algumas são de especial interesse para aargumentação política. João Quidort esclarecia, por exem-plo, que o papa Zacarias jamais havia deposto o rei da Fran-ça, como reivindicavam alguns de seus partidários: ele apenasteria consentido com aqueles que o depuseram.145 E todas asvezes que o poder eclesiástico se imiscuíra em assuntos tem-porais – casos que deveriam ser considerados situações par-ticulares, e não a regra –, fizera-o pelo consentimento dosreis, príncipes ou barões devotos, e não porque tivesse algumtipo de direito. Segundo a boa jurisprudência, lembrava oPregador, o excepcional não devia ser tomado como regra:“não convém que de fatos particulares, acontecidos por moti-vos diversos, façam-se argumentos jurídicos” (SPRP, p. 99).Do mesmo modo, prosseguia ele, não havia motivo para trans-formar em lei pública o que havia sido determinado por umapessoa particular, como havia sucedido quando da transfe-rência do Império de Constantinopla para Carlos Magno. Talato constituía somente uma mudança de nome, afirmava,sem nenhum sentido legal concreto.

Quanto ao argumento de que podia o pontífice dispen-sar os soldados do juramento de fidelidade, João Quidortrebatia:

Deve-se além disso considerar que o vassalo está obriga-do ao seu senhor por um dúplice vínculo: em primeiro

145 Também essa passagem pode ser encontrada quase literalmente naQuaestio in utramque partem: cf. QUIDORT, SPRP, p. 97 e tb. o Docu-mento n. 45, traduzido em SOUSA & BARBOSA, op. cit., p. 198 [XVI].

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lugar, por um vínculo natural, em vista do objeto, da coi-sa que recebeu de seu senhor com honra de vassalagem;em segundo lugar, sob determinada condição e com ju-ramento. Do vínculo natural o papa não pode dispensar,embora possa declarar que em determinado caso, como,por exemplo, quando o príncipe é herético, o vassalo nãoestá obrigado a seguir o seu senhor, mas deve livrar-seda obrigação e restituir o feudo. Em segundo lugar, há aobrigação por juramento, e dela pode o papa dispensar,caso exista um motivo sério e evidente e boa-fé, pois sósob estas condições a dispensa da obrigação tem valorante Deus, visto que ao papa não foi dado o poder dedestruição, mas de edificação [...]. No que, porém, se re-fere ao juramento, sempre permanece a obrigação natu-ral que acompanha o objeto, a não ser que o feudo sejarestituído. (SPRP, p. 102-3)

Por isso ele podia sustentar adiante que bispos de ou-tras regiões, no caso de terem sido convocados pelo papa enão terem comparecido por obedecerem a uma ordem qual-quer do imperador ou do rei, não podiam ser repreendidospelo pontífice, pois tais prelados estavam isentos da jurisdi-ção papal pelo fato de terem recebido o seu feudo do prínci-pe.146 Aquelas pessoas eclesiásticas que haviam recebido dopoder real a sua propriedade não podiam lhe negar obediên-cia, dizia João Quidort:

Assim, pois, como o poder real não pode negar o cuidadoque deve a outro, de igual modo também a propriedade,mesmo que obtida por pessoas eclesiásticas, por direitonão pode recusar obediência ao poder real pela proteçãoque lhe deve, como está escrito em Lc. 20: 25: “Dai a Césaro que é de César, e a Deus o que é de Deus”. (SPRP, p. 123)

146 “Se pois, principalmente quando com conhecimento e permissão do sumopontífice, um bispo recebe um feudo, deve obedecer mais ao senhortemporal que ao sumo pontífice, e especialmente no caso em que opríncipe lhe ordena algo relativo ao ônus do feudo é claro que se encon-tra isento da jurisdição do papa, tal como o monge da do abade” (SPRP,p. 122).

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E dizer que os reis deviam ser privados de um tal direi-to por estarem prejudicando o bem espiritual, impedindo queos bispos fossem à cúria romana quando por ela chamados,ou que o rei estivesse coibindo a liberdade de movimentoquando impedia que se levasse dinheiro para fora do reino,equivalia a não compreender que a causa do rei – garantir obem comum – era maior e mais amparada no direito:

proibir simplesmente e em geral a viagem, por qualquermotivo que alguém queira ir, significa de fato impedir umbem espiritual. Mas se a proibição for imposta com a ex-ceção de que pode ser suspensa por uma causa maioracolhida pelo príncipe [ex causa rationabili de licentiaprincipis], não se impede então o bem espiritual. Se portais limitações é atingida a cúria romana, que deixa dereceber os serviços costumeiros, nem por isso o príncipedeve ser tido como quem age injustamente e coloca-secomo inimigo da Igreja, a não ser que tome tais medidascom a intenção única de prejudicar. Se fizer em proveitopróprio ou de seu país, faz o que lhe é permitido, emborapor conseqüência surjam danos a terceiros, pois a cadaum é permitido fazer uso de seu direito. (SPRP, p. 123 –grifos meus)

Em João Quidort já era clara, portanto, a prioridaderelativa ao cuidado da res publica, ou regnum, ou ainda bemcomum: nenhum assunto do espírito se lhe superava quan-do se tratava de garantir a paz e a ordem pública, mesmo quecom isso pudesse causar danos a terceiros. Também a idéiade unidades políticas específicas, detentoras de direitos e prer-rogativas que se sobrepunham a quaisquer outras, já apare-cia bastante consolidada. Mais do que um sinal dos tempos,tratava-se aqui de uma descrição da época: nesse momento,teoria e realidade se mesclavam, exprimindo o mundo sobreo qual versavam, o Estado moderno emergente.

É importante frisar que esse novo sistema de poder quedespontava se construía com base em determinadas preten-

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sões jurídicas dos detentores do poder territorial. De um lado,essas pretensões excluíam toda interferência nos assuntosdo reino. Constituía-se uma oposição legal entre o interno e oexterno, em sentido radicalmente novo. De outro, passava-se a agir em nome de uma nova categoria de interesses.

Numa passagem em que explicitava os episódios da que-rela entre o papa Bonifácio VIII e seu protetor, Filipe IV daFrança, João Quidort mencionava a possibilidade de o prínci-pe agir na defesa de interesses do reino, mesmo que isso cau-sasse danos a terceiros:

E mesmo que o príncipe tome tal medida com a intençãode prejudicar, mesmo assim é-lhe lícito, se previr comargumentos prováveis ou evidentes que o papa tornou-seseu inimigo ou que convocou os prelados para com elesplanejar algo contra o príncipe ou o reino. É lícito ao prín-cipe repelir o abuso do gládio espiritual do modo como opuder, mesmo se usando para tanto o gládio material,principalmente quando o abuso do gládio espiritual con-verter-se em um mal para a república, cujo cuidado in-cumbe ao rei. Em caso contrário, não haveria razão paraeste levar o gládio. (SPRP, p. 124)

Pode parecer curioso João Quidort utilizar, nesse mo-mento, argumentos originários do direito privado. Ele se re-feria ao uso das águas, numa propriedade, com prejuízo paraos vizinhos. Podia um homem elevar as águas ou desviá-laspor outros canais, impedindo a irrigação de terras alheias?“Diz a lei que lhe é permitida tal ação”, respondia, “pois estáusando de seu direito, embora outros venham a ser prejudi-cados” (idem).

Há dois pontos de especial significado nesse raciocínio.O primeiro constitui a analogia, estabelecida por João Quidort,entre propriedades particulares e potências. As relações en-tre potências eram equiparadas, juridicamente, às relaçõesentre unidades individuais de direito, num sentido muitopróximo àquele encontrado nas teorias contratualistas. O

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segundo ponto é o reconhecimento do interesse próprio comofonte absoluta de direito. Assim como o agricultor tinha odireito de usar as águas de sua fonte segundo lhe parecessemelhor, mesmo com prejuízo dos vizinhos, também o prínci-pe podia tomar as medidas que julgasse necessárias, “mes-mo com a intenção de prejudicar”, na defesa própria ou deseu reino.

Note-se a diferença entre duas questões: uma era o di-reito absoluto de agir, outra era a obrigação do príncipe dedefender a república (“cujo cuidado incumbe ao rei”). A se-gunda noção fazia parte da tradição medieval: o governanteera o guardião da coisa pública. A primeira era parte de umaidéia em formação: a dos Estados (regna, res publicae etc.)como sujeitos de interesses que se antepunham, por direito,a quaisquer outros. Essa seria, na forma acabada, a maisradical concepção moderna da soberania de cada potênciaem face das demais.

Mas João Quidort não parava aí: para sustentar a ide-pendência do reino franco, recorria ainda a um argumento doantigo direito imperial romano, a prescrição pelo costume.

Assim o reino da França foi governado por reis santosdurante longo tempo e de boa-fé, servindo como exemploSão Luís, canonizado pela Igreja. E a Igreja, pela canoni-zação, reconheceu o fato. Digam, pois, alguns teólogos oque quiserem: com o direito humano [iure humano] corresempre a apropriação das coisas e a sujeição de homens;segundo Santo Agostinho [...], podem os direitos huma-nos fazer com que, por motivo sério, torne-se comum oude outro aquilo que é meu, e deste modo transfere-se odomínio [dominium]. Assim, pois, desde que os direitosimperiais determinam que após um tempo previsto algocaia em prescrição, transfere-se o domínio, e isto para autilidade comum, em castigo do negligente e em favor doproprietário de boa-fé, a fim de que os litígios não se es-tendam sem fim e não se multipliquem. Um tal possui-dor por prescrição não tem em mãos algo de alheio, masde próprio, enquanto tornou-se seu por legítima prescri-

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ção. Portanto, suposto que o reino da França estivesseoutrora sujeito, esta sujeição entrementes prescreveu”.(SPRP, p. 132-3)

Se essa era a regra do direito, por que razão não sepodia falar de uma prescrição do império romano? “Os gre-gos”, explicava o Pregador,

tiveram de Deus o império e os romanos usaram a pres-crição contra os gregos e tentaram usurpar o impérioexpulsando os gregos. Por que não podem então outroshomens aplicar a prescrição contra o império romano, eafastar-se do domínio dele, principalmente se foram a elesubmetidos não livremente, mas pela violência, como selê dos gauleses, que nunca, antes da vinda dos francos,se haviam livremente sujeitado aos romanos mas confor-me as possibilidades sempre se revoltavam, vencendoumas vezes, perdendo outras? Se, pois os romanos al-cançaram o domínio pela violência, não se pode, com jus-tiça, pela violência, repelir seu domínio, ou contra eleaplicar a prescrição? (SPRP, p. 134)

A resposta era óbvia: “nada foi mais forte que o reinodos romanos, e no final nada será mais débil e mais frágil”(idem). Poucos autores do período ilustraram melhor a disso-lução do imperium.

Por fim, a Doação de Constantino, outro fundamentolongínquo das reivindicações hierocráticas, merecia sua aten-ção. Por toda a documentação disponível, esclarecia João deParis, recorrendo uma vez mais à história, sabia-se queConstantino doara à Igreja somente uma província determi-nada, a Itália, e algumas outras partes, entre as quais nãoestava a França, e que transferira então o império para osgregos, fundando lá a nova Roma. Mas estava também emdiscussão, no que respeitava a essa matéria, um ponto aindamais relevante:

a translação do império dos gregos aos germanos, feita,como se diz, pelos romanos e o papa, na pessoa do impe-

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rador Carlos Magno. A esse respeito deve-se observar que,pelo que consta nas crônicas citadas, não houve transla-ção, pois o império permaneceu de fato com os gregos, ecom os ocidentais apenas de nome. Ou pode-se dizer quehouve uma divisão, de tal modo que dois passaram achamar-se imperadores, o romano e o constantinopolita-no. (SPRP, p. 129-30 – grifos meus)

Assim narrada, a história política e jurídica da cristan-dade ocidental ganhava em clareza e realismo: os episódiosque a caracterizavam podiam ser descritos como uma se-qüência de usurpações e fantasias às quais se atribuíra valorde verdade, e que o costume perpetuara. Os romanos havi-am abandonado o império grego, explicava João Quidort, portrês motivos:

em primeiro lugar, pela defesa da república, empreendidapor Carlos Magno, enquanto o imperador Constantino nãose preocupava com ela; em segundo lugar, por causa daimperatriz Irene, que mandou cegar seu filho Constantinoe os filhos deste, para poder reinar sozinha; em terceirolugar, porque se haviam indignado porque Constantinotransferira o império deles para os gregos, cujo domíniosuportavam com dificuldade, e por isso aclamaram comoimperador ao vitorioso Carlos. (SPRP, p. 130)

Dessa perspectiva, sustentava o autor, podia-se con-cluir que tanto a doação quanto a translação do império nãoconferiam ao sumo pontífice poder algum sobre o rei da Fran-ça: primeiro, porque a Doação não incluía o reino francês;segundo, porque, do ponto de vista do Corpus Iuris Civilis, elaera inválida; terceiro, porque os francos jamais haviam sidosubmetidos ao império; e quarto, porque, mesmo que todasas afirmações anteriores fossem verdadeiras – o que não acei-tava o Pregador –, ainda assim o papa nada poderia contra orei da França, pois não era imperador.

Também os motivos apontados por João Quidort parafundamentar a ilegalidade da Doação de Constantino ofere-ciam uma boa amostra do alcançe das transformações em

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curso no período e eram assim apresentados: “O imperador échamado de ‘semper augustus’ porque é sua missão aumen-tar (augere) sempre o império, e não diminuí-lo. Por isso adoação evidentemente não podia ser válida, porque era pordemais excessiva e imensa”. E considerava adiante: “Tal en-tende-se quando a doação provém dos bens pessoais do im-perador, não quando provém do erário público [de patrimoniofisci], que deve ser sempre conservado e do qual não podedispor a não ser com moderação e em determinados casos”(SPRP, p. 130).

Como o imperador era o administrador do império e darepública, a doação tinha sido nula, de acordo com as leisimperiais contidas no Digesto. E, se fora transformada emlei, tal doação estaria revogada, “pois uma lei pode serrevogada pelo sucessor daquele que a promulgou, visto queentre pares um não tem poder sobre outro” (SPRP, p. 131). E,como ensinara o antigo direito romano, os bens públicos eramintransferíveis. Exatamente sobre esse raciocínio repousavaa noção medieval da “inalienabilidade”: os direitos foram ini-cialmente chamados inalienáveis, explica Riesenberger, emrelação ao bem público comum. Tal teoria logo se tornariaum princípio de direito público, como, por exemplo, em Bodin.Essa era ainda a razão pela qual reis e imperadores medie-vais relembravam constantemente as doações, translaçõesetc.147

Também João Quidort precisava invocá-la e rejeitar suavalidade sobre o território francês, a fim de manter a reivindi-cação da inalienabilidade do poder de jurisdição do rei fran-co. O Augustus poderia, enquanto pessoa singular, doar àIgreja tudo que desejasse. Mas isso não valia para as proprie-dades do fisco, as quais, tendo sido criadas para uso e bene-fício da comunidade política, jamais podiam perecer. Pois o

147 Cf. RIESENBERGER, Peter. Inalienability of sovereignty in medieval politicalthought. New York: Columbia University Press, 1956. p. 177 et seq.

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imperador, como o rei, era somente um administrador doimperium e, por isso, não podia alienar o que lhe fora confia-do. E como a lei romana proibia aos ocupantes de um cargocoagir seus iguais, tornava-se impossível que Constantinotivesse prejudicado legalmente seus sucessores, privando-osdo que lhes era devido pelo ofício. Em nome da Coroa, JoãoQuidort falava simultaneamente contra o papa e contra oimperador.

A intrincada relação entre os dois poderes de naturezateocrática, encarnada no imperium e no sacerdotium, e quedominara o cenário nos últimos séculos do medievo, davalugar a uma reivindicação de caráter mundano, a boa vidaterrena segundo a virtude, que independia de consideraçõesde natureza sagrada. O ponto fundamental agora era situaros dois poderes em questão – o temporal, do âmbito civil, e oespiritual, do religioso – em instituições distintas e autôno-mas, uma ocupada da ordem natural, a outra da sobrenatu-ral. E, embora essa separação já fosse clara em Tomás deAquino e João Quidort, ela logo seria tornada ainda maisexplícita por autores como Marsílio de Pádua. Também o ve-lho problema das temporalia e spiritualia, recorda Ullmann,“que havia resistido a qualquer tipo de solução razoável, re-solvia-se com a correspondência entre o natural e o tempo-ral, e o sobrenatural e o espiritual”.148

E, porque todo poder passava a ter origem apenas etão-somente em Deus, que o transmitia para o povo, os go-vernantes não teriam mais de prestar contas senão ao Se-nhor. O poder civil libertava-se assim definitivamente – tantode iure quanto de facto – de toda tutela da Ecclesia em as-suntos temporais. Desse ponto de vista, alerta Quillet, o prin-cípio da distinção dos poderes carecia agora de objeto: aodualismo gelasiano, que constituíra até então a base essen-

148 ULLMANN, op. cit., 1985, p. 264.

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cial da evolução dos fatos e das doutrinas, sucedia a unifica-ção do poder.149 Tal potestas, que passava a ser entendidocomo único, exclusivo e indivisível qualquer que fosse o regi-me, comportaria inúmeras modalidades de aplicação – o go-verno constitucional, a monarquia absoluta e o impériohabsburgo eram apenas algumas delas.

Também o movimento ideológico que havia constituídoa noção de soberania estava assim consolidado: uma noçãode jurisdição – entendida como o governo do justo e do injus-to – independente de toda lei divina ou natural, e alicerçadaexclusivamente na lei humana e no “governo dos homenspelos homens”,150 havia sido, mais do que criada, fundamen-tada. Terminava assim um longo processo que envolvera osprincipais atores do medievo europeu ocidental e resultariana junção de duas noções – uma de natureza política e outrade caráter jurídico –, que se desenvolviam paralelamente, ado Estado territorial moderno e a de soberania, numa enti-dade única, que teria a sua expressão mais bem acabadanaquela gravura que ilustra a mais conhecida obra de ThomasHobbes: a do Leviatã moderno.

149 Cf. QUILLET, J. Pouvoir temporel et pouvoir espirituel aux XIVe et XVesiècle: complémentarité ou conflit?. In: Revista da Faculdade de Ciên-cias Sociais e Humanas, op. cit., p. 61-2.

150 “[...] as [coisas] que se referem à jurisdição não se encontram acima danatureza e da condição do dever e dos homens, pois não está acima dacondição dos homens que os homens governem aos homens” (SPRP, p.149 – grifos meus).

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Os elementos necessários a uma teoria individualista jáestavam presentes em João Quidort, com suas idéias a respei-to da propriedade e das conseqüências políticas dela deriva-das. A noção de indivíduos como átomos iguais, livres eportadores, naturalmente, de reivindicações igualmente legíti-mas teria reflexos no desenvolvimento da teoria dos direitos –antecipada em João de Paris – e na concepção das relaçõesentre Estado e indivíduo, embora não fosse essencial à cons-trução de determinados conceitos, como o de soberania. EmBodin, por exemplo, a unidade relevante era a família (no sen-tido antigo), e não o indivíduo. Para ele, a relação de comandotípica da vida política já estava embutida na estrutura fami-liar. Mas o individualismo, até por seus fundamentos cristãos,foi a concepção dominante no pensamento político moderno,pelo menos desde o século XIV até o XVIII.

Com Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham, o indi-víduo assumia de forma indiscutível uma posição central nareflexão sociopolítica. Esses autores entraram em cena du-rante o conflito entre o papa João XXII (1316-34) e o impera-dor Luís da Baviera (1314-47). João XXII tentou intervir, deAvignon, na eleição imperial. Cinco príncipes eleitores haviamvotado em Luís da Baviera (da casa dos Wittelsbach) e três emFrederico da Áustria (casa dos Habsburg). Luís foi coroado emMogúncia, no ano de 1314, e Frederico em Bonn, cada umdeles por um arcebispo.

Depois de dois anos de luta, apelaram ao papa, mas estedecidiu não se pronunciar, atendendo aos interesses do rei deNápoles. Estava em jogo o controle do norte da Itália, que inte-ressava tanto a Luís quanto ao papa e a seus aliados. Luís

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venceu Frederico em batalha, e pouco depois seus aliadospassaram a controlar o norte italiano. João XXII, sem alterna-tiva, excomungou o imperador (1324). Marsílio e Guilhermede Ockham entraram na polêmica em defesa do poder tempo-ral, do lado de Luís da Baviera. Para ambos, o papado havia setornado herético, ao intervir de maneira tão direta em assun-tos seculares: ao clero, reivindicavam, cabia recuperar suamissão primitiva e o ideal de pobreza evangélica.1

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Essa intromissão papal indevida nos assuntos secula-res constituía um dos principais alvos do Defensor pacis, es-crito por Marsílio de Pádua. O livro, dedicado ao imperador,foi publicado em 1324. Dois anos haviam se passado quandoa obra recebeu atenção dos curialistas. Marsílio, provenientede uma família italiana burguesa formada basicamente defuncionários públicos, fora estudante das artes jurídicas najuventude, mas acabou optando pela medicina, profissão queexerceu de maneira mais ou menos intensa até sua morte,ocorrida provavelmente no ano de 1343. Seu nome, contudo,pouco ou nada dizia até aquele momento. Em 1326, cincoteses de seu livro foram condenadas pela cúria romana, le-vando-o, juntamente com o amigo e interlocutor João deJandun, a procurar refúgio na corte do imperador, que pron-tamente os acolheu.

1 Souza faz um comentário instigante sobre a defesa da pobreza evangé-lica por Marsílio: segundo ele, o pensador paduano reivindicava a defe-sa de um clero pobre, sem riquezas nem luxo, e dependente da esmolados fiéis, a fim de que não pudesse exercer, em tempos de aceleradoprogresso econômico, influência política. Cf. SOUZA, J. A. C. R. As tesesdo Defensor pacis, II, XIII. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociaise Humanas, op. cit., p. 205-27.

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Rapidamente, a influência do pensador paduano sobreo monarca tornou-se visível e ele passou a acompanhá-lo emsuas missões pela Itália, aconselhando e opinando a respeitode praticamente todas as matérias políticas. Não demorou,contudo, para que o radicalismo de suas posições começassea interferir no bom andamento dos assuntos do Estado. De-pois de uma malfadada excursão com a comitiva imperialpelas cidades itálicas, encerrada por volta de 1330, Marsíliofoi enviado de volta a Munique, onde se retirou da cena pú-blica até o início dos anos 40. Nesse período, novos exiladosna corte imperial, mais inclinados à conciliação com o papado,ganharam destaque junto ao seu protetor. Entre eles, esta-vam os frades franciscanos Miguel de Cesena, superior daordem, e Guilherme de Ockham, acusado de heresia pelopapa João XXII em 1328.2

O Defensor pacis, de Marsílio, constituía um exame dascondições necessárias à paz, um tema de longa duração nahistória do pensamento político. Monarquia, de DanteAlighieri, e Leviatã, de Thomas Hobbes, por exemplo, tam-bém constituíam reflexões sobre esse tema. Uma das condi-ções da paz, procurava mostrar Marsílio de Pádua, era alimitação das pretensões de plenitude de poder em assuntostemporais reivindicada pelo papado.3 A tese, no entanto, nãoera simplesmente afirmada. Marsílio circunscrevia cuidado-samente o campo da reflexão política. Os laços entre a natu-reza e Deus eram matéria de fé e, por isso, não podiam serdemonstrados. A ciência política devia limitar-se, portanto, acuidar dos objetos acessíveis à razão e à experiência.

2 Para uma abordagem detalhada dos dados históricos que envolveram adisputa cf. MIETHKE, J. Der Weltanspruch des Papstes im späterenMittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 399-402.

3 Cf. SOUZA, BERTELLONI & PIAIA. Introdução. In: PÁDUA, O defensor da paz.Ed. José Antonio Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 13-63.

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A manutenção da fé na comunidade dos fiéis, argu-mentava o autor, não dependia nem de facto nem de iure dequalquer reivindicação de plenitude do poder, fosse ela tem-poral ou espiritual, pelo sumo pontífice. Tais pretensões, pelocontrário, ameaçavam a paz e a felicidade humanas. A inter-ferência do governo eclesiástico na vida secular, constatava opensador paduano, havia trazido somente a disputa de fac-ções e a insegurança para a comunidade dos cristãos, princi-palmente na Itália. Com seu tratado, Marsílio pretendia queas autoridades seculares detivessem e revertessem a expan-são dos poderes terrenos do bispo de Roma. “O Defensorpacis”, escreve Nederman, “representa um chamado diretoaos príncipes e cidadãos de toda cristandade latina para res-taurar o papa em seu papel legal (e extremamente limitado)dentro do governo da Igreja”.4

Para que esse apelo fosse o mais abrangente possível,Marsílio construiu em sua obra uma teoria política de carátersecular bastante genérica, capaz de contemplar tanto as pre-tensões imperiais quanto aquelas dos reis e as das cidades-república italianas. A primeira parte do livro era dedicada aoestudo das origens e natureza da autoridade política tempo-ral. Nela, a ênfase recaía na noção do consentimento popularcomo fundamento do bom governo, sem que uma forma cons-titucional específica fosse advogada: sua preocupação era es-tipular os arranjos institucionais necessários para sustentara unidade e a estabilidade das comunidades políticas secula-res, de modo a poder rejeitar toda interferência eclesiástica. Asegunda parte do livro consistia numa investigação e refuta-ção de várias das reivindicações de poder dos clérigos e, espe-cialmente, do sumo pontífice. O governo da Ecclesia, sustentavao jurista patavino seguindo as pegadas de João Quidort, devia

4 NEDERMAN, C. From Defensor pacis to Defensor minor: the problem ofempire in Marsiglio of Padua. History of Political Thought, v. 16, n. 3,p. 316-7, autumn 1995.

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caber a um concílio geral formado por seus membros: ao papacaberia somente a execução de suas decisões.

Homem engajado nas controvérsias de seu tempo,Marsílio usava bem os recursos e avanços disponíveis, fos-sem eles teóricos ou práticos. Não apenas conhecia em pro-fundidade a literatura da época, como também a manuseavacom rigor e precisão para a consecução de seus objetivospolíticos. Para interpretar as transformações em curso, nadaera desperdiçado: o legado greco-romano, os acréscimos dajurisprudência, a síntese tomista e as idéias de seus contem-porâneos tornavam-se assim instrumentos de combate. Domesmo modo, recorria à tradição para explicar a comunida-de política: os homens, movidos pela percepção de que reu-nidos poderiam tirar maior proveito das habilidades de cadaum e evitar os prejuízos causados por condições naturaisadversas, explicava o autor acrescentando um fator “utilitá-rio” à formulação aristotélica, agruparam-se em comunidadepara melhor realizar os fins da vida temporal: o gozo pacíficodos frutos materiais e morais da existência terrena, isto é, aboa vida (DP I.4.3-5).5

Tal comunidade política perfeita, ou universitas civium,no entanto, continuava ele na mesma vertente ciceronianatambém utilizada por João Quidort, só pôde ser atingida pormeio do exercício continuado da razão pelos seres humanose pelo uso de seu livre-arbítrio, que lhes permitiu consentirna associação comunal e chegar a um acordo a respeito dobem comum (DP I.13.5-8). Nesses cidadãos, portanto, sus-tentava ele remontando a João Quidort e ao mestre de To-

5 As citações utilizadas aqui foram retiradas da seguinte edição brasilei-ra: PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz (DP). Ed. José Antonio CamargoRodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. Cf. tb. a importante edi-ção crítica francesa: PADOUE, Marsile de. Le défenseur de la paix. Ed. J.Quillet. Paris: J. Vrin, 1968. A versão latina pode ser encontrada naseguinte edição: PADUA, Marsilius von. Defensor pacis. Ed. Richard Scholz.Hannover: Hahnsche Buchhandlung, 1932.

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más de Aquino, repousava a base do consentimento, únicafonte legítima da autoridade política. Ao aquiescerem, pormeio da livre escolha, especificava, os homens se sujeitavamentão às leis e aos governantes. Ou seja, o estabelecimento ea perpetuação da comunidade política derivavam do exercí-cio da faculdade humana natural da razão e da volição, e nãode uma concessão divina.

Para que o objetivo da vida humana coletiva – a paz e atranquilidade – pudesse ser alcançado, impunha-se a insti-tuição de uma autoridade que subordinasse os demais mem-bros da comunidade, de modo a preservar a unidade e aharmonia e garantir a permuta dos bens. Para tanto, eranecessário um poder único que tivesse sido organizado parao fim de reger a comunidade, sem contrariar com isso as leisdivina e natural. O governante, encarregado de administrara associação política na direção desse objetivo, fosse ele acomunidade dos cidadãos (universitas civium), fosse a suaparte mais importante (valentior pars sua), tinha autoridadepara dirigir todos os seus subordinados e para punir, quan-do necessário, quem quer que fosse, de acordo com as leisestabelecidas pelo povo que o havia instituído.6 Deus conti-nuava sendo, nesse modelo, a causa remota de todo poder.Mas o seu depositário, como em João Quidort e Tomás deAquino, era o povo.7

Segundo Marsílio, havia dois tipos básicos de lei: a di-vina, ordenada por Deus, o qual julgava de acordo com ela; e

6 Cf. SOUZA, J. A. C. R. Introdução. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor minor(DM). Petrópolis: Vozes, 1991. p. 21-3.

7 John Morral comentou essa idéia em Marsílio, afirmando que tal trans-ferência do poder último tanto do regnum quanto do sacerdotium parao povo soberano antevia o fim do papel político distintivo que a Europaocidental havia concedido à Igreja em graus diversos desde a conversãode Constantino. Mesmo que Marsílio não pudesse perceber, escreviaMorral, a comunidade cristã universal criada pela Idade Média deixavade existir e um novo leitmotiv político passava a assumir o controle: oEstado moderno. Cf. MORRAL, op. cit., p. 118.

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a humana, estabelecida pelo legislador terreno e imposta pormeio daqueles aos quais esse legislador atribuiu papel judi-cial. A primeira tratava do que era necessário para se alcan-çar a salvação; a segunda do castigo e da premiação na vidapresente. Lei (lex), em sentido próprio, explicava o juristapatavino, em si mesma, revelava apenas o justo e o injusto e,como tal, era chamada a ciência do direito. Sob um segundoaspecto, contudo, podia ser entendida como um comandocoercitivo cuja observância se dava por meio de punição ourecompensa a ser distribuída no mundo presente (DP I.10.4).A capacidade de fazer leis vinculantes se restringia exclusi-vamente ao legislador humano (humanus legislator).

Segundo esse raciocínio, era possível a Marsílio negaraos preceitos canônicos o caráter de lei em sentido próprio e,com isso, a aplicação de tais cânones neste mundo, tal comoadvogara João Quidort pouco antes. Pois, para ele, as leishumanas existiam dentro de uma perspectiva estritamentesecular. Por isso, concentrava na vontade humana e no atri-buto da coerção os seus elementos constitutivos. Mas ia alémna formulação: lei era, propriamente falando, somente a lexhumana. As demais podiam compartilhar com ela o nome,mas no contexto do mundo terreno não podiam ser conside-radas verdadeiras leis. Marsílio acreditava na lei divina e aaceitava como válida. Mas seu efeito, a recompensa ou casti-go, dizia ele, só poderia ser sentido no outro mundo (DP I.10.3).Já a lei natural constituía um tipo de lei humana: consistianos princípios gerais de justiça comuns aos vários povos ededutíveis pela razão (DP II.127-8).

Embora fosse da essência da lei humana ser posta,como resultado de um comando coercitivo, seu conteúdogeralmente dispunha de uma qualidade moral. O objetivomaior de Marsílio, escreve Canning, “era produzir para a leihumana uma definição econômica, que deixasse a determi-nação da lei secular apenas nas mãos de leigos: ignorandoa lei natural no sentido tradicional, localizando os efeitos dalei divina no outro mundo e negando a validade de uma

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jurisdição eclesiástica própria, ele acreditava ter limpado oterreno sobre o qual o clero podia reivindicar interferênciana lei secular e no governo”.8 A “lei canônica”, explicava opensador paduano ecoando João Quidort, só havia se con-vertido numa realidade graças à superstição e ignorânciados leigos, à vontade complacente de reis e imperadores e àhabilidade e criatividade dos papas (DP II.15.1-20).

Um tal poder coercitivo não era, obviamente, arbitrá-rio: a lei, expressão do poder coativo, era o que mantinhacoesa a comunidade política, além de ser necessária paraatingir o bem público e para assegurar a continuidade dogoverno (DP 1.11.1 e 8). Lei, portanto, não constituía, em seuraciocínio, mera expressão de uma estrutura de poder: comouma regra coercitiva, ela era o instrumento necessário paraa obtenção do bem comum, objetivo que requeria um gover-no firme e duradouro.9 Por essa razão, o governo supremo deum reino, lembrava o jurista patavino, devia ser apenas umem número (DP I.17.1-2).

8 CANNING, J. Law, sovereignty and corporation theory, 1300-1450. In:BURNS, op. cit., 1991, p. 461.

9 Num certo sentido, o exercício do poder na forma de coerção poderia sertomado como o núcleo fundamental da lei humana em Marsílio e comoa garantia da boa ordem e do governo da sociedade, argumenta Canning.Isso, contudo, não faria do autor um “positivista legal”, alerta ele: embo-ra o pensador patavino enxergasse as leis – enquanto preceitos coativos– como um fato da vida social, não as via como opostas a ou limitadorasda natureza humana. Pois, ao localizar o poder coativo na comunidadepolítica e, dessa forma, no legislador humano – representação do povoou de sua parte principal e autor das leis por meio do consentimento –,nada do que fosse proposto por esse legislador podia ser contra a natu-reza ou a divindade, já que a feitura da lei supunha a recta ratio e tinhacomo fim a paz e a tranqüilidade dos homens congregados. Isto é, por-que essa comunidade política era semelhante a uma natureza anima-da, ela faria para si somente leis adequadas, dado que, como qualqueranimal, ela buscava apenas a sua sobrevivência. Desse modo, não

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As implicações deste raciocínio eram evidentes: Marsíliodeixava para trás o mundo dualista e sua lógica dos poderescoordenados. A noção de um poder político fundado no res-peito pela autonomia dos poderes temporal e espiritual per-dia terreno. Caminhava-se agora na direção daquela consta-tação tão bem expressa por Hobbes séculos mais tarde: a deque “o governo temporal e espiritual são apenas duas pala-vras trazidas ao mundo para fazer os homens enxergaremduplicadamente e confundir o seu Soberano Legal”.10

No Defensor minor, escrito provavelmente entre 1330 e1342, Marsílio retomou o problema da relação entre lei e co-erção. Lá desaparecera qualquer reticência: nele o autor ne-gava explicitamente a validade das leis positivas queinfringissem normas superiores. No capítulo 8, afirmava queas leis divinas e humanas deviam ser consistentes e se refor-çar mutuamente. A lei sagrada, dada por Deus, decretavaobediência a toda legislação humana que não fosse incom-patível com os ditames divinos. A lei humana, portanto, nadadevia promulgar que contradissesse ou conflitasse com avontade de Deus. Mais adiante, no capítulo 13, afirmava quequando surgia um caso no qual algum estatuto humano obri-gava a algo que era oposto à lei divina, esta última devia terabsoluta precedência sobre a primeira: Marsílio retomavaaqui, propositalmente ou não, a boa tradição cristã.

O poder jurisdicional envolvia a capacidade de coerçãopor parte do legislador humano e, portanto, concluía o pen-sador paduano, constituía matéria terrena, e não das almas.Por esta razão, somente ao governante temporal cabia a rei-vindicação da plenitudo potestatis in temporalibus. A Ecclesia,embora pudesse ter plenitude de poder em assuntos espiri-

havia contradição entre as regras coercitivas e a razão humana. Cf.CANNING, J. The role of power in the political thought of Marsilius ofPadua. History of Political Thought, v. 20, n. 1, p. 30-2, spring 1999.

10 HOBBES, T. Leviathan. Harmondsworth: Penguin Books, 1988. p. 498.

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tuais, nada tinha a declarar ou a exigir em assuntos munda-nos. “A teoria política de Marsílio”, esclarece Canning, “erauma tentativa de mostrar que o poder coercitivo constituía aespinha dorsal do governo legítimo, e de revelar onde estepoder repousava e os mecanismos por meio dos quais eledevia ser exercido. Ele tinha de fazer isso a fim de poder des-truir intelectualmente as falsas reivindicações do papado esua corte”,11 o qual ele identificava àquela “estátua horrível”vista por Nabucodonosor em seu sonho (DP II.24.17).

Por não constituir aquele governante a quem cabia aimposição e o cumprimento da lei humana, fundamento davida coletiva, o sumo pontífice – e qualquer outro clérigo –desfrutava do mesmo status que as outras partes do corpocívico. Os sacerdotes não apenas não podiam usurpar legiti-mamente poderes de legislação e imposição coercitiva, masainda estavam sujeitos ao legislador humano em todos osassuntos relacionados às suas próprias pessoas temporais eà sua propriedade, assim como aos bens da Ecclesia. Comona comunidade política era necessária a unidade de coman-do, não podia haver em seu seio um poder autônomo. Comoconseqüência lógica, era preciso negar à Igreja toda plenitu-de de poder temporal. A comunidade cívica, por outro lado,não devia expulsar a Ecclesia para fora do grupo, e sim asso-ciar-se a ela, deixando-a cumprir com a sua função: a deeducar os homens para a fé no Senhor e nas Escrituras,garantindo-lhes a salvação eterna.12

Marsílio opunha-se, assim, consistentemente às pre-tensões papais de jurisdição terrena. O governo eclesiásticodo sumo pontífice era reconhecido por ele como mero agenteexecutivo do concílio geral e, por isso, incapaz de agir porconta própria. Esse concílio devia representar todos os fiéiscristãos, sustentava o jurista patavino, e somente ele era com-

11 CANNING, op. cit., 1999, p. 26-7.12 Cf. SOUZA. Introdução. In: DM, p. 27-8.

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petente para decidir os objetivos básicos da fé e estabeleceros cargos e rituais apropriados à Igreja. No Defensor minor,Marsílio fazia uma apreciação minuciosa da natureza e ope-ração do concílio geral da Ecclesia: seu objetivo, afirmava oautor, era a interpretação canônica da Sagrada Escritura.Como tais verdades sagradas eram fixadas para todo o sem-pre, a tarefa do concílio limitava-se a descobrir e articulartais verdades com referência ao Espírito Santo.

Por essa razão, o concílio geral podia ser dito infalívelnum sentido em que sacerdotes ou prelados individuais nãoo eram: somente ele tinha acesso à verdade eterna. AquiMarsílio respondia às críticas feitas por Guilherme de Ockhamcontra a infalibilidade conciliar uma década antes: segundoele, o que não era possível a uma pessoa realizar podia, àsvezes, ser alcançado pela cooperação de muitos.13 No casodo concílio geral, essa colaboração acontecia como resultadode discussão e da sabedoria das partes, e por meio dela umconsenso sobre a verdade podia ser eventualmente estabele-cido. O Espírito Santo, dizia o autor, estava infundido nosmembros individuais do concílio, como resultado de suainteração recíproca, por meio de um processo semelhanteàquele pelo qual as comunidades civis chegavam a um acor-do sobre a legislação. Estavam lançadas as bases do movi-mento conciliarista que forneceria à Ecclesia um fundamentoconstitucional de governo.14

13 Cf. SOUZA, J. A. C. R. A argumentação política de Ockham a favor doprimado de Pedro contrária à tese de Marsílio de Pádua. In: DE BONI, op.cit., 1996, p. 473-84.

14 No início do século XV, ecreve Oakley, já havia sido criado um certoconsenso acerca da figura do príncipe eclesiástico: ele já não era maisum monarca absoluto, e sim muito mais um governante constitucional.Sua autoridade passara a ser entendida como meramente ministerial, aele delegada para o bem da Igreja. A autoridade final repousava agoranão mais em sua figura, mas na congregação dos fiéis como um todo,ou nos seus representantes reunidos no concílio geral. Sobre tais fun-damentos assentava-se o movimento conciliarista que se havia imposto

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Apesar da infalibilidade atribuída ao concílio, a compe-tência para fazer valer as decisões de uma tal assembléia detodos os fiéis só podia caber a um governante cuja autorida-de coercitiva se estendesse por todos os rincões da cristan-dade. E o único governante capaz de se adequar a esse critério,constatava o pensador paduano no Defensor minor, era o im-perador Romano (DM 16.4). No Defensor pacis essa autori-dade havia sido nomeada por Marsílio em termos mais vagos:competia ao “legislador humano cristão, acima do qual nãohá nenhuma outra autoridade” (DP II.21.1). Talvez porque,depois dos infortúnios vividos durante o conflito entre o papae o imperador, anos antes, que lhe haviam rendido anos dereclusão, Marsílio tivesse retornado à militância.15

O imperium e seu governante, no Defensor minor, eramprovavelmente vistos menos como a incorporação de um idealimperial maior, como quisera Dante, e mais como um aliadoútil na batalha para conter o papado. Além disso, constituíaà época a única liderança capaz de insurgir-se concretamen-te contra Avignon. Diferentemente do Defensor pacis, menos

ao Ocidente a partir de meados do século XIV e atravessaria todo oséculo XV. Cf. OAKLEY, Francis. Natural law, the corpus mysticum andconsent in conciliar thought from John of Paris to Matthias Ugonius.Speculum, Massachusetts, The Medieval Academy of America, v. 56, p.786-810, 1981.

15 Depois de sua malsucedida excursão com o imperador Luís da Bavierapelo norte da Itália na década de 20, que somente havia acirrado oconflito entre imperium e sacerdotium, Marsílio atritou-se com o impe-rador pelo fato de que este pretendia ceder a algumas das exigênciaspapais e retroceder um pouco em suas posições anticlericais. Ao fim dequase uma década sem aparições significativas, o pensador paduanoreapareceu na cena pública para reafirmar que qualquer tentativa dereconciliação com o papado seria inútil. Para enfrentar o desafio, publi-cou o Defensor minor, cuja data da composição é incerta e controversa:é geralmente situada entre o final da década de 30 e o ano de 1342. Cf.NEDERMAN, C. Editor’s introduction. In: PADUA, Marsiglio of. “Defensorminor’” and “De translatione imperii”. Ed. C. Nederman. Cambridge:University Press, 1993. p. XVIII.

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convencional, a obra posterior não introduzia uma clivagementre a discussão do governo temporal e a da eclesiolo-gia, entre os reinos natural e sobrenatural. Nele, Marsílioconcentrou-se na relação entre jurisdição temporal e autori-dade espiritual, como era comum em seu tempo. Enquantono primeiro livro ele adotara uma abordagem genérica dacomunidade política, sem privilegiar nenhum sistema cons-titucional, no Defensor minor procurou traduzir tais princí-pios gerais do poder temporal nos termos concretos de umgoverno imperial, e não mais nos da civitas ou do reino.

Mas sua abordagem a respeito da origem do poder tem-poral permanecera intocada. O império, como qualquer outraunidade política terrena, reafirmava Marsílio no Defensor minor,tinha um fundamento independente: originava-se do consen-timento da comunidade corporada (ou “legislador humano”).O papado, do mesmo modo que no Defensor pacis, não des-frutava de maior direito de interferência nos assuntos do im-pério do que as outras formas de associação política. Mesmoatribuindo poderes especiais ao imperador romano, como reu-nir o concílio geral dos fiéis e impor suas decisões, Marsílio eracuidadoso e alertava para a contingência da reivindicação desuperioridade do poder imperial romano: um tal direito nãoera fundado numa vontade divina nem numa necessidade danatureza, e sim fora-lhe delegado pelo povo romano e, por isso,podia ser sempre revogado pela comunidade (DM 12.3).

No seu breve tratado sobre a Doação de Constantino, oDe translatione imperii, escrito provavelmente entre 1324 e1334, Marsílio já havia estabelecido que o titular do cargo deimperador romano ocupava tal posição como resultado deuma série de transferências legais do poder, e de acordo como procedimento adequado para sua eleição. Sustentava ain-da, como havia feito João Quidort, que independentementedo papel exercido pelo sumo pontífice – o qual facilitara atransferência da cadeia imperial para os francos e, posterior-mente, para os germânicos –, sua função havia sido pura-

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mente honorífica e acidental. Pois, mesmo que o costumetivesse permitido aos papas coroar novos imperadores, a fonteda autoridade imperial não era o papado, mas um processohistórico terreno externo ao controle do papa.16

Era claro, portanto, que o consenso tinha prioridadesobre as demais justificações da autoridade: mesmo o impe-rador romano gozava de certas prerrogativas somente por-que elas lhe haviam sido concedidas por um ato de consenti-mento livre dos povos que se haviam submetido a Roma. Aautoridade e o poder coercitivo para criar e impor as leis hu-manas derivadas da instituição do poder político pertenciamà universitas civium ou ao príncipe supremo – nomeado noDefensor minor o imperador romano. Mas esse apenas repre-sentava os poderes legislativos da comunidade.

A transferência condicional de tais poderes ao gover-nante romano, explicava Marsílio, somente exemplificava ummodo segundo o qual as comunidades humanas escolhiamusar o consentimento civil que nelas residia. Em nenhummomento, contudo, tratava-se de abrir mão dos direitos judi-ciais ou legislativos delegados: por mais que os poderes trans-feridos ao imperador lhe conferissem jurisdição suprema, elenão podia reivindicar o monopólio sobre os poderes governa-mentais.

A comunidade política, fosse ela o império, o reino, oprincipado ou a civitas, passava a ser entendida em termospuramente leigos, como uma entidade com fim próprio, vin-culada às necessidades naturais do homem. Constituía umproduto da ação e razão humanas e resultava da conjugaçãodas vontades dos cidadãos, que podiam opinar diretamenteou por meio de representantes.17 Volição e ato se manifesta-

16 Ibid., p. XIII.17 D’Entrèves chama atenção para o que ele descreve como “germes de

dois institutos que deverão assumir grande importância no Estado mo-

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vam na instituição da lei e do poder. Tais idéias certamentenão eram novas.18 Mas a formulação de Marsílio proporcio-nava clareza conceitual: “O legislador ou a causa eficienteprimeira e específica da lei”, escrevia ele,

é o povo ou o conjunto dos cidadãos ou sua parte pre-ponderante, por meio de sua escolha ou vontade externadaverbalmente no seio de sua assembléia geral, prescre-vendo ou determinando que algo deva ser feito ou não,quanto aos atos civis, sob pena de castigo ou puniçãotemporal. (DP I.12.3)

O povo, o conjunto dos cidadãos, constituía, portanto,a origem e a fonte de todo poder terreno. E, como a funçãodas leis era proporcionar bem-estar nesta vida, os cidadãosconstituíam o grupo mais qualificado para elaborá-las, já queeram aqueles que melhor conheciam os objetivos que deseja-vam alcançar. As pessoas comuns, em seu raciocínio, dispu-nham de competência suficiente para o exercício das respon-sabilidades políticas.19 Por isso, a correção de governantesnegligentes ou daninhos pertencia ao legislador humano –

derno”, o da representação e o da divisão dos poderes. “Remontam àIdade Média as origens das instituições que hoje chamamos represen-tativas ou parlamentares: não se enganava Rousseau, seu feroz ad-versário, ao ver nelas uma sobrevivência dos tempos feudais”. Quanto àdivisão dos poderes, continua, não existe como doutrina formulada,mas está “de certo modo implícita na concepção [...] do poder políticocomo limitado à tutela e à aplicação do direito”, devendo reconhecer-se,acima do governante, uma fonte legislativa à qual todos deveriam sujei-tar-se. Cf. D’ENTRÈVES, Alessandro Passerin. La dottrina dello Stato. Torino:G. Giappichelli Editore, 1967. p. 133-4.

18 Sobre a filiação da teoria política marsiliana ao contexto especificamen-te medieval, cf. PIAIA, G. Marsilio da Padova, Guglielmo Amidani e l’ideadi sovranità popolare. Veritas, Porto Alegre, v. 38, n. 150. p. 297-304.

19 Chama atenção a amplitude de sua concepção de cidadania: Marsílioreivindicava igualdade de posições políticas para todos os homens adultosdo sexo masculino, independentemente do status social e econômico.Se cada civis tinha o mesmo valor, concluía, não se podia estabeleceruma distinção qualitativa entre eles.

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noção que incluía tanto homens de prudência e letrados quan-to fabris, artesãos e outros tipos de técnicos (mechanicis) (DPI.5.4-6).

E ia adiante: se essa correção tinha de ser assumidapor um único segmento do corpo cívico, e não por todo opovo, dizia o jurista patavino, então era preferível atribuiressa tarefa à parte trabalhadora. Pois os homens dispunhamde poderes da razão suficientes para julgarem por si mesmosse as leis ou os governantes serviam ao bem comum (DM2.7). Isto é, não importava tanto se o poder jurisdicional eradelegado “aos sábios e aos especialistas” e se nem todos par-ticipavam, todo o tempo, do comando dos assuntos políticos:o essencial, como lembra Cesar, era a vinculação do direitode legislar e de governar aos componentes do corpo social.20

Perante esse corpo o governante era responsável.

A lei civil estava agora inteiramente humanizada e avida coletiva se ordenava de forma autônoma. Somente aoprinceps, fosse ele um indivíduo ou um corpo coletivo, cabiacomandar aos súditos, em conjunto ou separadamente, se-gundo as leis estabelecidas. E ele nada devia fazer, fora des-sas leis, “especialmente em se tratando de algo importante,sem a anuência do legislador e da multidão que lhe está su-bordinada” (DP III.3.1).

20 “Assim como a causa eficiente da lei é o que pode instituir as leis quevisem ao bem comum, a causa eficiente do governante eleito é o quepode instituir o governante prudente, virtuoso, equânime e benevolen-te. Tal é o conjunto dos cidadãos, pelas mesmas razões por que temautoridade para instituir a lei. Se o conjunto dos cidadãos é o legisla-dor, então é ele que deve instituir o governante, pois quem define aforma (a lei) determina também a matéria (o governante). Pelas mesmasrazões, é também ao conjunto dos cidadãos que cabe corrigir e destituiro governante.” In: CESAR, Floriano Jonas. O defensor da paz e seu tempo.1994. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 89.

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O franciscano Guilherme de Ockham defendia, em polí-tica, pontos de vista aparentemente semelhantes aos de Marsíliode Pádua. Seu ataque ao papado, especialmente ao papa JoãoXXII, foi também bastante violento. Mas sua crítica dirigia-semais aos equívocos cometidos pelos pontífices dos últimosséculos do que à instituição eclesiástica propriamente dita.Desde muito cedo ocupado com questões especulativas e coma vida monástica, o irmão menorita, nascido em Ockham, ci-dade próxima a Londres, entre 1285 e 1290, ingressara aindabastante jovem na ordem franciscana, dedicando-se ao estu-do de teologia, filosofia, teoria do conhecimento, lógica e filoso-fia natural. Ao terminar os estudos básicos, foi enviado a Oxford,onde deveria aperfeiçoar seus conhecimentos e lecionar atéestar apto a receber o título de mestre em teologia.

Suas aulas e textos, no entanto, logo chamaram a aten-ção de alguns membros da universidade ligados à cúria ro-mana. Sob suspeita de heresia, Guilherme de Ockham teveseus escritos submetidos a uma comissão de expertos quedecidiu encaminhá-los a Roma para um estudo mais minu-cioso das proposições, tal como ocorrera anos antes com JoãoQuidort. Enviado pela ordem para representá-la junto à cúria,Guilherme de Ockham instalou-se em Avignon, no ano de1324, para aguardar a tramitação e julgamento do processo.Enquanto isso, acirrava-se a disputa entre o pontífice e osmembros de sua ordem em torno do problema da “perfeiçãoevangélica”. Três anos mais tarde seu superior imediato,Miguel de Cesena, alojou-se na cúria a fim de somar forçasem defesa das teses franciscanas.21 Miguel encarregou então

21 A disputa entre o papa e os franciscanos girava basicamente em tornoda noção de “direito ao uso” pelas partes: Guilherme de Ockham, porexemplo, sustentava ter a ordem franciscana usus de facto sobre ascoisas temporais, sem com isso deter dominium algum. O pontífice, por

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seu pupilo de estudar em profundidade a questão da pobre-za e a posição do pontífice. Nascia aí a carreira política doInvincibilis Doctor.

Como resultado de suas investigações, Guilherme deOckham concluiu que o “Pseudopapa” João XXII usurparafunções que não lhe cabiam e se havia tornado herético. Noano seguinte, acompanhado de outros frades franciscanos,Guilherme de Ockham fugia para Roma, de encontro ao im-perador que era agora oficialmente coroado. Recebidos porLuís IV, o Bávaro, em sua corte, à qual se juntara logo depoisMiguel de Cesena e sua comitiva, os “Rebeldes” passaram adesfrutar da proteção imperial para prosseguir na sua lutapela mendicância. Junto ao poder imperial, sediado em Mu-nique, Guilherme de Ockham exerceria durante mais de 15anos a função de conselheiro e escreveria suas obras políti-cas mais relevantes – como o Compendium errorum IoannisPapae XXII., parte significativa do Dialogus de postesteimperiali & papali, ou ainda o Breviloquium de principatutyrannico –, sempre atento às intrigas e interesses do impe-rador e de sua causa, até a sua morte, em 1347 ou 1348.

Boa parte desse engajamento do Menorita Inglês emmatérias imediatamente políticas pôde ser traduzido em ter-mos científicos no Brevilóquio sobre o principado tirânico, es-

sua vez, defenderia na bula Quia vir reprobus, de 1329, que essa reivin-dicação era infundada: os franciscanos não podiam renunciar a tododominium, ou pelo menos àquele comum, pois este fora conferido porDeus e só por ele poderia ser retirado aos homens. A resposta francisca-na à bula papal foi dada na conhecida obra de Guilherme de Ockham,Opus nonaginta dierum, produzida já no exílio. Um comentário útildessa disputa – e também o referido texto latino do Venerabilis Inceptor– pode ser encontrado num estudo comparativo de KILCULLEN, R. J. Theorigin of property: Ockham, Grotius, Pufendorf and some other, dispo-nível no endereço http://www.mq.edu.au/ockham. Cf. tb. a edição in-glesa da Opus nonaginta dierum em SIKES, J. G.; OFFLER, H. S. (Ed.).Guillelmi de Ockham. Opera politica. Manchester: University Press, 1940.v. 1

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crito por volta de 1340. Nele, Guilherme de Ockham recor-reu, para argumentar, a todas as fontes possíveis do direito eda lei, buscando apoio no direito natural, no direito canônico,nos ensinamentos dos grandes teólogos, no direito romano eno divino, revelado nas Escrituras. Não que tudo isso tivesseigual valor para o Venerabilis Inceptor. Ele simplesmente seempenhava em cercar por todos os lados a argumentaçãodos defensores do poder papal, para refutá-la ou para mos-trar que as fontes às quais eles haviam recorrido podiam serinterpretadas de forma diversa e até oposta.

Mesmo quando apelava para as Escrituras ou para otestemunho dos grandes teólogos, no entanto, o raciocíniode Guilherme de Ockham nunca deixava de ser estritamentecrítico. Sua interpretação das Escrituras ia sempre em bus-ca do significado mais razoável em face da cada circunstân-cia. Sobre uma passagem de Santo Agostinho, ele declarava,sem cerimônia, que devia ser interpretada com restrições quechamaríamos de históricas:

Assim sendo, a afirmação de Agostinho: “Encontramos odireito humano nas leis dos reis” deve ser entendida comrelação ao tempo dele e às regiões onde habitavam ele eos hereges que desejava refutar; mas não deve ser enten-dida em relação ao direito humano que precedeu as leisdos imperadores e reis, o qual, no tempo de Agostinho,ao menos em grande parte estava revogado ou modifica-do.22 (BPT, p. 121-2)

Sua doutrina afirmava a independência dos poderestemporais em relação à Ecclesia, localizava no povo a fonte

22 OCKHAM, Guilherme de. Brevilóquio sobre o principado tirânico (BPT). Ed.Luis A. De Boni. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 121-2. Todas as citações dotexto foram retiradas dessa edição. Cf. tb. as edições críticas de: BAUDRY,L. (Ed.). Breviloquium de potestate papae. Paris: Librairie PhilosophiqueJ. Vrin, 1937; e SCHOLZ, R. (Ed.). Wilhelm von Ockham als politischerDenker und sein ‘Breviloquium de principatu tyrannico’. Leipzig: VerlagKarl W. Hiersemann, 1944.

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da autoridade e distinguia os verdadeiros domínio e jurisdi-ção do domínio e da jurisdição justos:

Assim, pois, embora quaisquer fiéis e pecadores sejamindignos do domínio das coisas temporais, podem contu-do ter verdadeiro domínio delas. O que se diz do domíniotemporal vale também para a jurisdição temporal: embo-ra os fiéis e todos os ímpios sejam indignos de jurisdição,contudo podem ter verdadeira jurisdição tanto os infiéiscomo os fiéis pecadores. (BPT, p. 118)

Sua posição, quanto a esse ponto, era bastante seme-lhante à de João Quidort e oposta à de Egídio Romano, quenão reconhecia nenhum direito de domínio ou de jurisdiçãoaos infiéis, isto é, aos não batizados.

Fundamental para a construção de Guilherme deOckham era a noção de “lei de liberdade” (lex libertatis) evan-gélica, isto é, aquela liberdade perfeita oferecida por Cristoaos homens, disponível no Novo Testamento. Os homens,postulava o Menorita Inglês, nasciam livres. Conseqüente-mente, tinham certas liberdades, originadas da criação divi-na, as quais não podiam alienar por completo, fosse ao podertemporal ou ao espiritual. Isso lhe fornecia um fundamentopara sustentar que o individual, ou particular, tinha de serconsiderado, em primeiro lugar, com relação aos seus direi-tos, capacidades e liberdades.23 Ou seja, antes de analisar oconjunto dos cidadãos e sua interação, era preciso tomar osindivíduos em sua singularidade.

Essa preeminência do individual no pensamento ockha-miano, alerta Coleman, estava fundada em sua teoria do co-nhecimento, segundo a qual universais constituíam somentenomes:24 o Princeps Nominalium havia desenvolvido de ma-

23 Cf. MCGRADE, A. S. Ockham and the birth of individual rights. In: TIERNEY,B.; LINEHAN, Peter (Ed.). Authority and power. Studies on medieval lawand government. Cambridge: University Press, 1980. p. 149-66.

24 Os universais (ou pensamentos) nada mais eram, de acordo com a teo-ria ockhamiana, do que nomes (nomina), isto é, conceitos primários

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neira bastante original o nominalismo já presente em JoãoQuidort e outros contemporâneos. Essa corrente de pensa-mento opunha-se ao realismo tomista: segundo Guilhermede Ockham, tal realismo destruía a possibilidade de conheci-mento genuíno porque estabelecia essências universais – oucoisas não particulares – fora da mente. E isso era contrárioà ciência da verdade e à razão em geral. Pois tudo quantohavia no mundo, explicava o Doutor Invencível, eram indivi-duais contingentes aos quais os seres humanos atribuíamdenominações. Esses particulares podiam ser conhecidos pormeio de uma experiência determinada: a intuição cogniti-va.25

Isto é, tudo o que havia na realidade eram coisas sin-gulares, individuais e quantitativamente diferenciadas entresi. Para se referir a essa individualidade existente no mundo,os seres humanos construíam, no pensamento ou na lingua-gem convencional, sentenças ou proposições. O nosso co-nhecimento, portanto, era formado de conceitos (mentais oulingüísticos) cujos termos eram substituídos por nossas ex-periências.26 A ciência do Doutor Invencível se limitava, as-

gerais naturalmente significantes (sinais naturais); de maneira secun-dária, constituíam os sinais convencionais (termos e proposições nalinguagem) correspondentes a conceitos primários. Cf. COLEMAN, J.Sovereignty and power relations in the thought of Marsilius of Paduaand William of Ockham: a comparison. Revista da Faculdade de Ciên-cias Sociais e Humanas, op. cit., p. 230.

25 Um tratamento mais abrangente da noção de conhecimento intuitivoem Guilherme de Ockham pode ser encontrada em: BOEHNER, Philotheus.Collected articles on Ockham. New York: The Franciscan Institute St.Bonaventure, 1958.

26 A coisa que constituía o objeto do conhecimento tinha de ser a proposi-ção mental em si, escrita ou falada, e não a substância à qual ela sereferia. Essa substância individual só podia ser conhecida por meio dostermos da proposição. Ou seja, nenhuma substância corpórea externa(matéria) podia ser apreendida, naturalmente, pelos seres humanos:estes só podiam conhecer as substâncias particulares e individuais por

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sim, a cuidar das relações externas entre os corpos. Não ha-via lugar para considerações a respeito das essências ou daspropriedades “íntimas”, como aquelas que impeliam um cor-po a descrever certo tipo de movimento. Como cientista, Gui-lherme de Ockham estava mais próximo de Galileu e deHobbes do que de São Tomás e de Aristóteles. Ele podia sertomista e aristotélico por seu apego ao empírico, mas não porqualquer concepção ontológica.

Bem ao contrário, seu apego à experiência tinha comocontrapartida uma atitude modesta em relação ao conheci-mento e às possibilidades da razão. A experiência nos ofere-cia apenas a multiplicidade dos singulares. O entendimentopodia organizar esses dados, identificar semelhanças e re-gularidades, mas não podia avançar além de certos limitesmuito estreitos. Não devia, nem precisava, construir ou su-por entidades misteriosas, nem formular mais hipóteses doque as estritamente necessárias para trabalhar com os da-dos disponíveis. Como expressaram acertadamente Souzae De Boni:

Um mundo de indivíduos iguais entre si e sem interme-diários é, porém, um mundo que se desprende total-mente das agonizantes hierarquias medievais; ummundo que encontra sua própria explicação dentro desi mesmo, sem receio de qualquer questionamento; ummundo que se organiza a partir de seus membros cons-tituintes.27

meio de proposições mentais, escritas ou faladas. Tais proposições eramformadas de sinais ou termos que, por sua vez, eram substituídos porcategorias experimentadas fora da mente. Cf. Ockham, G. Dialogus depotestate Imperiali & Papali. livro III, cap. XVI. In: GOLDAST, M. (Ed.).Monarchia sancti romani imperii. op. cit., t. II. Cf. tb. COLEMAN, J. Ockham’sright reason and the genesis of the political as absolutist. History ofPolitical Thought, v. 20, n. 1, p. 40-1, spring 1999.

27 SOUZA, J. A. C. R.; DE BONI, L. A. Introdução. In: OCKHAM, G. Brevilóquiosobre o principado tirânico. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 15-6.

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Segundo Guilherme de Ockham, o conhecimento hu-mano podia ser alcançado por meio da experiência sensível,da razão natural e da autoridade infalível da Escritura. Avivência sensorial precedia as demais formas. A ela podia-seaplicar a razão natural. Tal procedimento permitia aos ho-mens, por exemplo, confirmar sua crença na verdade do Evan-gelho, por meio da demonstração lógica de suas afirmações.Com base nesse raciocínio, o Princeps Nominalium podia sus-tentar, entre outras coisas, que o papado e a hierarquia ecle-siástica não constituíam os únicos intérpretes de direito dapalavra divina. Qualquer pessoa que experimentasse o mun-do e pensasse a respeito do vivenciado – desde que sã e ilus-trada – estava apta a interpretar as palavras de Deus naSagrada Escritura.

Se a reta razão constituía o leme dos homens, sua ca-racterística distintiva era, segundo o Doutor Invencível, a li-berdade para desejar segui-la. Tal liberdade constituía aindao fundamento da dignidade humana e a fonte da bondademoral e da responsabilidade individual. Se os atos cognitivosdos seres humanos eram naturais, o que devia ser objeto dejulgamento era seu poder de performar ou não uma ação,isto é, sua capacidade de agir naquilo que conhecia. Seu ra-ciocínio aqui era basicamente tomista. Essa ênfase numaescolha racionalmente direcionada constituiria um dos pila-res da idéia de voluntarismo. Guilherme de Ockham aceita-va, como Aristóteles e Tomás de Aquino, que as virtudesmorais e intelectuais, e também a busca do prazer, constitu-íam valores intrínsecos: um ato podia ser dito desmedidosomente quando algo que não deveria ser buscado comosupremamente bom (por exemplo, matar) fosse percebidoenquanto tal.

Esse raciocínio permitia ao Princeps Nominalium sus-tentar que também os pagãos e os infiéis podiam atingir avirtude moral genuína, mesmo sem um conhecimento corre-to de Deus. Pois tinham ciência de alguns bens intrínsecos

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ou razões para agir, podendo assim dispor de uma ética po-sitiva ou de uma ciência da moral, como ocorrera por exem-plo entre os gregos antigos.28 Por essa razão, também podiaafirmar que todas as normas válidas constituíam comandosdivinos, mesmo que alguns seres humanos não tivessem cla-reza disso. Deus, causa primeira de todas as coisas, agindolivremente, postulava o Venerabilis Inceptor, era autor e cria-dor da natureza e, desse modo, de suas leis. Num certo sen-tido, portanto, a lei natural era um comando divino. Mesmoque imediatamente determinada por Deus, seu conteúdo,entretanto, devia necessariamente corresponder aos ditamesda razão natural, como já havia mostrado o Aquinate.

Isto é, as normas contidas nessa lei natural tinham deser acessíveis às criaturas humanas por meios puramentenaturais ou racionais.29 Estabelecia-se assim uma conexãoentre a vontade divina e a moralidade natural. A obediênciaa Deus tornava-se, nesse modelo, um princípio prático darazão: obedecer a um comando divino era sempre racional. Oúnico limite ao alcance das obras do Senhor era o postuladoda não-contradição: Ele podia fazer qualquer coisa que nãoenvolvesse uma oposição entre proposições. Um agente queexecutasse o que a reta razão ditasse, simples e precisamen-te porque ela o impusesse, estaria performando ao mesmotempo uma ordem divina, sob o fundamento de que tal atoera racional. Reconhecê-lo como uma norma divina, no en-tanto, exigia um outro passo, pois dependia da fé e da revela-ção. Pagãos e infiéis, por exemplo, podiam ter domínio ejurisdição justos mesmo sem conhecer Deus.

28 Cf. MCGRADE, A. S. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, V.(Ed.). The Cambridge companion to Ockham. Cambridge: University Press,1999. p. 274-5.

29 A noção de lei natural em Guilherme de Ockham constitui matéria com-plexa e polêmica. Uma abordagem aprofundada do tema pode ser en-contrada em: TIERNEY, Brian. The idea of natural rights: studies on naturalrights, natural law and church law 1150-1625. Atlanta: Emory Univer-sity Studies in Law and Religion, 1997. n. 5, p. 157 et seq.

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Desse modo, obedecer comandos divinos, de um lado,constituía um princípio razoavelmente auto-evidente, dadoque Deus constituía o bem supremo e, por isso, só ordenavacoisas boas e justas. De outro lado, havia bens intrínsecos eprincípios normativos que podiam ser apreendidos por umarazão natural que sabia pouco ou nada de Deus. Assim, re-gras morais e normas de convivência comuns podiam amiú-de ser determinadas de maneira puramente racional,independentemente da referência à vontade de Deus, semcom isso invalidar a afirmação primeira de que todas as nor-mas válidas constituíam comandos divinos. Mas nem tudo,na esfera moral, era decretado pelo Senhor: na ausência deum comando divino direto contrário, as ações performadaspodiam ser consideradas boas.30

Os seres humanos eram portadores não só de uma ra-zão natural: naturais eram ainda alguns de seus direitos,escrevia Guilherme de Ockham no pequeno tratado Deimperatorum et pontificum potestate, descoberto por R.Scholz.31 E deles os indivíduos não podiam ser privados.Certas liberdades e direitos tinham sido concedidos por Deusaos homens, por meio da natureza, e nem mesmo o sumopontífice podia negá-los. Entre esses direitos inalienáveisencontravam-se: o de usar as coisas no mundo, o de estabe-lecer leis e eleger governantes, o direito natural de sobrevivere de consentir. Todos eles já existiam antes mesmo da vindade Cristo. Este e seus apóstolos, como relatavam as Escritu-ras, nada possuíram: apenas utilizaram o mundo para poder

30 O que não equivalia a dizer, alerta McGrade, que qualquer ato moralnão estabelecido previamente por Deus fosse, do ponto de vista ético,neutro. Cf. MCGRADE. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, op.cit., 282.

31 Cf. SCHOLZ, Richard. Unbekannte kirchenpolitische Streitschriften aus derZeit Ludwigs des Bayern (1327-1354). Bibliothek des Kgl. Preuss. Hist.Instituts in Rom, Band IX. Roma: Verlag von Loescher & Co., 1911.p. 178 et seq.

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sobreviver. Do mesmo modo, argumentava o franciscano, to-dos os homens tinham um “direito natural de uso” das coisastemporais, conferido por Deus. Este direito ao uso era anteriora todos os direitos de posse introduzidos posteriormente.

Isto é, segundo o Venerabilis Inceptor, os seres huma-nos detinham naturalmente – ou de acordo com a reta razão– o direito de usar os bens terrenos. Mas não dispunham dodireito à propriedade privada (dominium) de tais bens. Possee propriedade nos grupos humanos, dizia ele, era fruto daqueda em pecado. Sua argumentação aqui não era muitodiferente daquela de João Quidort ou Egídio Romano: apro-priar e dividir as coisas temporais constituía um desenvolvi-mento racional exclusivo da condição pós-lapsária (postlapsum). Antes do pecado original, contava o Doutor Invencí-vel, Adão e Eva desfrutavam de um poder perfeito – que nãoincluía a posse privada nem a coerção – de uso sobre todasas coisas, regulando-as apenas por meio da reta razão.32

Depois da queda, entretanto, a natureza pecaminosa do ho-mem proliferou e tornou útil a apropriação privada (BPT,p. 111-2).

Assim, em vista da utilidade humana comum, contavaGuilherme de Ockham, Deus decidira conceder aos homens,fiéis e infiéis, o poder de estabelecer o dominium,33 isto é, o

32 “O primeiro domínio, aquele comum a todo o gênero humano, existiu noestado de inocência, e teria permanecido se o homem não houvessepecado, mas sem conceder a algumas pessoas o poder de apropriar-sede alguma coisa, a não ser pelo uso, como foi dito. E não haveria utilida-de nem necessidade em ter a propriedade de qualquer coisa temporal,porque naquelas pessoas não havia nenhuma avareza, ou desejo depossuir ou de usar alguma coisa temporal contra a reta razão” (BPT,p. 111).

33 Um resumo breve, mas útil, das idéias de Guilherme de Ockham sobrea “autorização” divina para a instauração da propriedade privada entreas criaturas humanas pode ser encontrado em: MIETHKE, J. Kaiser undPapst im Konflikt: zum Verhältnis von Staat und Kirche im spätenMittelalter. Düsseldorf: Verlag Schwann-Bagel, 1988. p. 54-5.

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“direito” de apropriar-se privadamente das coisas temporaise de instituir chefes com jurisdição temporal, de acordo como que a reta razão, na condição do pecado, julgasse ser ne-cessário, útil e conveniente. Esse dominium, divinamenteoutorgado para limitar os efeitos do pecado, fora introduzidopor Ele como possibilidade, e não em sua forma concreta. Talconcretude, de maneira geral, só foi estabelecida pela insti-tuição da lei civil,34 embora tivesse havido concessão de do-mínio feita diretamente pelo próprio Deus, como quandopresenteara os filhos de Israel com as terras caanitas35 (BPT,p. 116). Por isso, a jurisdição legal sobre a propriedade nacomunidade política cabia somente ao governante terreno.

A Igreja nada possuía e não tinha direitos sobre as coi-sas temporais. Posse e propriedade constituíam conclusõeslógicas e seculares às quais os homens tinham aquiescidocomo criaturas pecadoras, acrescentando aos seus direitosnaturais de uso a especificação da apropriação privada. Em-bora seu alvo primeiro fosse a disputa com o papado, suaconclusão servia igualmente bem às pretensões e interessesdos poderes temporais. O ideal de perfeição espiritual, res-pondia o Menorita Inglês, espelhava-se na lei natural, a qualinformava aos homens terem eles um direito, conferido porDeus, de sobreviver e de usar o mundo, sem que fosse neces-sário possuí-lo ou qualquer parte sua:36 aqui Guilherme de

34 Essa diferença era importante, alerta Miethke, pois se a propriedadeprivada fosse instituída divinamente, somente Deus poderia efetuar mu-danças no direito de propriedade. Já como acordo humano ela erahistoricizada: constituía uma norma legal, um direito positivo historica-mente mutável. Cf. MIETHKE, J. Der Weltanspruch des Papstes im spätenMittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 413.

35 Cf. KILCULLEN, J. Introduction. In: OCKHAM, W. A short discourse on tyran-nical government. Cambridge: University Press, 1992. p. xii-xiv.

36 O modo de vida mais perfeito para um cristão consistia, segundo Gui-lherme de Ockham, numa existência sem propriedade nem direitos le-gais humanamente estabelecidos. Mas reconhecia que tal forma de vidanão era possível para qualquer pessoa, nem mesmo para todo cristão.

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Ockham falava em nome de seu superior, Michel de Cesena,e de toda a ordem franciscana, e perfilava-se em defesa dapobreza evangélica, contra o papa João XXII.

Havia espaço ainda, em sua argumentação, para a ado-ção do princípio aristotélico – e antiplatônico – segundo oqual as coisas comuns eram menos amadas e menos cuida-das do que as próprias. Uma sociedade que admitisse os benspróprios, escrevia, seria mais bem ordenada do que uma outrafundada na posse comum (BPT, p. 113). A propriedade, emseu raciocínio, não era apenas um direito igual a qualqueroutro, mas uma condição necessária ao bem viver.37 Era outraforma de fundamentar o governo temporal nos governados,isto é, no interesse dos indivíduos. E porque papas e prela-dos eram em primeiro lugar homens, esclarecia o Doutor In-vencível, sua relação com a propriedade tinha de estar sob asregras dos arranjos temporais (BPT, pp. 122-4).

O poder do pontífice, portanto, limitava-se àquelasmatérias constantes das Escrituras, acessíveis a qualquerindivíduo: lá podia-se ler que Cristo tinha conferido a Pedronão uma plenitude de poder ilimitada sobre coisas tempo-rais e espirituais, e sim uma jurisdição limitada para admi-nistrar os sacramentos, ordenar a hierarquia eclesiástica einstruir os fiéis.38 O papa, por causa da comissão petrina,podia até ter primazia sobre os apóstolos, concedia o Venera-bilis Inceptor. Mas Cristo não havia conferido a Pedro e seus

Cf. MCGRADE. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, op. cit.,p. 289.

37 Deus dera ao homem, segundo Guilherme de Ockham, “o poder de dis-por das coisas terrenas, que a reta razão aponta como necessárias,convenientes, decentes e úteis não só para viver, mas para bem viver”(BPT, p. 112).

38 Ao bispo de Roma, escrevia o autor no De imperatorum et pontificumpotestate, cabia especialmente: lectio, oratio, predicatio e o cultus Dei.Cf. SCHOLZ, op. cit., 1991, p. 184. Cf. tb. BPT, p. 180.

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seguidores jurisdição alguma sobre a existência material doshomens.39 eles continuavam detendo aquele direito naturalde organizar livremente sua vida mundana.

Esse direito, fruto do pecado e anterior à própria insti-tuição da Ecclesia, era detido igualmente por fiéis e infiéis epodia ser conhecido pela experiência. A reta razão dos ho-mens, isto é, sua vivência e sua capacidade intelectual detirar conclusões gerais sobre o bem viver, os havia levado aestabelecer o dominium pelo consenso dos pares.40 O estadoresultante dessa decisão, portanto, devia ser entendido comouma esfera de atividade autônoma e até mesmo pré-cristã.Dentro desse âmbito, a legitimidade estava assegurada semreferência alguma à Igreja. Seu raciocínio aqui tinha um fun-damento epistemológico: o pensar, não menos que o falar,defendia Guilherme de Ockham, operava de acordo com umadeterminada lógica que, num certo nível abstrato, acima dehábitos e costumes específicos, era a mesma para todas asmentes humanas.

39 Guilherme de Ockham, comenta Souza, definia o papel do religioso nosseguintes termos: “principatus apostolicus est minitrativum, nondominativus”. In: SOUZA, J. A. C. R. A argumentação política de Ockhama favor do primado de Pedro contrária à tese de Marsílio de Pádua. In:DE BONI, op. cit., 1996, p. 484.

40 “Ora, uma vez que a jurisdição é paralela ao dominium (‘o duplo poder –diz Guilherme de Ockham – de apropriar-se das coisas temporais e deinstituir chefes com jurisdição temporal’), ‘o poder de instituir leis e direi-tos humanos (jura humana) esteve no princípio e de modo principal nopovo, e o povo depois o transferiu ao imperador’. [...] A expressão [direitoshumanos] é relevante para distinguir-se do mero direito positivo dos reisde fazerem as leis: são ‘direitos humanos’ tanto a possibilidade de cons-tituir direitos, quanto os ‘costumes louváveis e úteis introduzidos pelospovos’. [...] Em suma, o ‘direito civil’ (jus civili) – aquele que não é divinonem natural [e sim humano] – vem do povo: um poder é legítimo quandoé desejado pelo povo”. In: ESTEVÃO, José Carlos. Sobre a liberdade emGuilherme de Ockham. 1995. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.p. 53-4.

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Isto é, para além das diferenças entre povos e costu-mes, existia uma capacidade crítica, lógica, que permitiaaos homens distinguir entre certo e errado. Tal raciocínioreto era mais completamente atingido, é claro, na comuni-dade dos cristãos, já que eles dispunham das verdades daSagrada Escritura. Como as criaturas humanas nasciamlivres e não sujeitas a ninguém pela lei humana, continua-va o Doutor Invencível, toda civitas e todo populus podiamestabelecer a lei para si (BPT, p. 133-4). Ou seja, podiamconstruir comunidades políticas autônomas com ordena-mentos jurídicos próprios, independentemente de sua filia-ção religiosa.41 Constantino, exemplificava Guilherme deOckham, tivera verdadeiro poder tanto antes quanto depoisde sua conversão. Também os direitos de seus súditos nãotinham sido afetados por sua conversão, apesar de eles nãoterem se tornado cristãos. A cristandade não tinha, nessemodelo, papel algum na administração da justiça entre ospovos infiéis.42

Os regimes políticos haviam sido instituídos para arbi-trar conflitos entre os seres humanos, garantindo as permu-tas, e para servir à paz. O critério para a eleição do governo –como em Marsílio ou João Quidort – não era moral, e simracional: os homens estabeleciam, voluntariamente, a regu-lamentação civil da vida por meio de sanções coercitivas. Aforma de cada governo, como já ensinara o Filósofo, depen-dia da natureza dos seus cidadãos. Um imperador, para cons-

41 Isso não significava dizer, alerta McGrade, que a política estivesserelegada a uma arena amoral de combate entre vontades humanas ce-gas: a política secular ockhamiana operava dentro da moldura de umalei e um direito naturais racionalmente construídos. Dentro desse es-pectro, havia espaço para uma escolha razoável entre uma variedade dearranjos políticos e econômicos, que dependia de circunstâncias histó-ricas e da concordância do povo. Cf. MCGRADE. Natural law and moralomnipotence. In: SPADE, op. cit., p. 291.

42 Cf. KILCULLEN. Introduction. In: OCKMAN, op. cit., 1992, p. xx.

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tituir uma autoridade política legítima, não tinha necessa-riamente de ser um cristão. O melhor governo, dizia Guilher-me de Ockham, era aquele exercido sobre uma comunidadede homens livres. Pois estes não permitiam com facilidadeque o governante os reduzisse – como ocorria na lei de Moisés– à escravidão, condição contrária à “lei de liberdade”43 anun-ciada por Cristo no Novo Testamento: este fora instituído afim de aperfeiçoar a antiga lei pagã e os preceitos envelheci-dos do Antigo Testamento.

Era função dos governantes temporais, portanto, cas-tigar e punir malfeitores. Entre os povos cristãos, deviam aindadefender a Igreja de tais vilanias. Seu poder derivava do povo,que consentira voluntariamente em instituir uma autorida-de pública. O ponto central a reter nesse raciocínio era apercepção da variedade dos povos e de suas formas de orde-nação política. Por trás dessa variedade havia algo comum, esó esse fator comum podia indicar o fundamento do poder: opovo.44

43 Por essa razão, Guilherme de Ockham negava toda e qualquer reivindi-cação de plenitude de poder por um único governante em ambas asesferas de dominação. Cf. MIETHKE, J. Lordship and freedom in the politicalthought of the early 14th century. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 500.Para uma análise detalhada da questão, cf. Souza, J. A. C. R. O conceitode ‘plenitudo potestatis’ na filosofia política de Guilherme de Ockham.1975. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

44 Do ponto de vista jurídico, a idéia da anterioridade dos “povos” em rela-ção a qualquer potência universal foi posta com clareza na obra deBaldo, segundo observa Calasso: “Diante das múltiplas dúvidas da dou-trina sobre os poderes dos ordenamentos particulares existentes naórbita do Império, e que Bartolo havia superado com a gradação dasiurisdictiones, Baldo revirou o problema: não era partindo do ordena-mento universal que se podia chegar a construir juridicamente a vidados ordenamentos particulares, pois estes nasceram antes daquele:‘populi sunt de iure gentium’, não os criou nenhum outro poder”. In: CA-LASSO, Francesco. Gli ordinamenti giuridici del rinascimento medievale.Milano: Giuffrè, 1974. p. 275.

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Disto, porém, conclui-se evidentemente que os direitoshumanos não foram somente os direitos dos imperado-res e dos reis, mas também dos povos e de outros, quereceberam dos povos o poder de criar e constituir direi-tos, e além disso são direitos humanos os costumes lou-váveis e úteis introduzidos pelos povos. (BPT, p. 121)

“Costumes louváveis e úteis”: Guilherme de Ockhamnão se referia aqui a nenhum povo em particular e a nenhumcostume ou sistema. O ponto nodal do argumento era a idéiade cada povo como capaz de se ordenar e de produzir aspróprias normas e, portanto, de ser fonte constituidora dosdireitos e das leis (“os direitos humanos não foram somenteos direitos dos imperadores e dos reis”). Reis, imperadores,príncipes, condes ou chefes guerreiros comandavam, mas aordem social podia ser pensada sem eles ou com qualquerdeles (“que receberam dos povos o poder de criar e constituirdireitos”). A idéia de povo era auto-suficiente, mas não a dechefe. A forma de governo e o governante eram produtos dopovo (como os “costumes louváveis e úteis”), e não o contrá-rio. E a unidade à qual todo povo podia ser reduzido era oindivíduo, portador de certos direitos inalienáveis. Locke nãoteria formulado melhor.

Ao argumentar contra a interpretação literal do “tudoque ligares na terra”, Guilherme de Ockham excluía da juris-dição papal os “direitos legítimos dos imperadores, dos reis edos outros fiéis e infiéis, direitos estes que de modo algum seopõem aos bons costumes, à honra de Deus e à observânciada lei evangélica” (BPT, p. 74). Os possuidores de tais direi-tos, prosseguia, “tiveram-nos antes da instituição explícitada lei evangélica, e puderam fazer deles uso lícito, de tal for-ma que, sem causa nem culpa, o papa não pode imediata-mente perturbar ou diminuir regular e ordinariamente taisdireitos, por qualquer poder que lhe foi conferido por Cristo”(idem). Este, segundo ele, deixara claro aos apóstolos, ao fa-lar no direito de César, que não pretendia perturbar ou dimi-

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nuir os poderes temporais dos governantes seculares: Jesusnão pretendera ser um rei terreno, argumentava Guilhermede Ockham retomando o “erro de Herodes”.

Mas, então, em que consistia o poder eclesiástico? Cris-to, sustentava ele, constituía o fundamentum primarium etprincipale sem o qual a Igreja não poderia ter sido fundada.Era, portanto, sua causa eficiente, enquanto os apóstolosconstituíam sua causa agente. Deus Pai, não desejando dei-xar sua Igreja acéfala, escreve Souza comentando uma pas-sagem do Dialogus, dera-lhe “o melhor governo, isto é, o regi-me monárquico, em perfeita consonância com a sua e presentecondição, e a confiou [a Igreja] a Pedro”.45 Pois era proveitosopara toda a congregação dos fiéis, declarava o Menorita In-glês, estar sob uma liderança fiel e prelada, subordinada aoSenhor. Uma monarquia papal adequada dependia de con-dições a que as teorias curialistas de alguns prelados nãohaviam obedecido, como o respeito pela liberdade dos súdi-tos papais em matérias religiosas que não exigiam regula-mentação pela Igreja ou o respeito pela autonomia dos gover-nantes políticos seculares.

O poder de Pedro e seus sucessores, esclarecia o Dou-tor Invencível, originava-se imediatamente de Deus e, por isso,não desfrutava da mesma causa eficiente que o poder secu-lar, que tinha origem no uso da razão e na vontade huma-nas. E aproveitava para estabelecer uma fronteira clara entrea sua posição e aquela de seu contemporâneo e colega deluta, Marsílio de Pádua: o papado não existia por uma esco-lha dos cristãos, e sim por instituição divina. Cristo nomearaPedro, e não os apóstolos, seu sucessor, e o Espírito Santo ohabitara. In spiritualibus, continuava Guilherme de Ockham,o sumo pontífice tinha plenitude de poder e era autônomo

45 SOUZA, J. A. C. R. A argumentação política de Ockham a favor do prima-do de Pedro contrária à tese de Marsílio de Pádua. In: DE BONI, op. cit.,1996, p. 479.

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em relação aos poderes temporais. Do mesmo modo, em as-suntos terrenos, a plenitude de poder cabia ao princeps, e obispo de Roma nada tinha regularmente a acrescentar.46

Entretanto, embora o sumo pontífice não detivesse po-der jurisdicional algum in temporalibus, aquiescia Guilher-me de Ockham retomando a tradição gelasiana das duasespadas, ele podia, sob circunstâncias excepcionais ou emcaso de necessidade última, intervir em assuntos secularespara executar o que a reta razão ditasse como necessário. Talintervenção, contudo, devia ser apenas ocasional e ainda as-sim, como em João Quidort, só podia vir de uma comissãodos homens, e não de um direito divino. Em situação de nor-malidade, contudo, não tinha o papa iurisdictio alguma so-bre os negócios terrenos (BPT, p. 189). Assim, falar emplenitude de poder do papa em assuntos temporais se con-vertia, em sua argumentação, numa heresia. O papa, sim,podia ser julgado pelos fiéis e pelos que entendiam das coi-sas divinas. Mas ele mesmo não tinha jurisdição sobre ossúditos de nenhum rei ou imperador: pelo rigor do direito,“não é permitido apelar do juiz civil ao papa” (BPT, p. 61).

Argumentando com base na história (a anterioridadedos poderes temporais em relação à Igreja), no direito revela-do e no direito natural, Guilherme de Ockham construía umateoria do poder duplamente oposta às doutrinas da supre-macia papal. De um lado, ele dispunha de argumentos “na-turais” para fundar suas opiniões a respeito do indivíduo, da

46 Em assuntos espirituais que eram de necessidade, o papa tinha com-pleta autoridade na terra, regularmente, sobre fiéis cristãos, mas nãosobre os infiéis. Já em assuntos temporais, o papa não detinha regular-mente autoridade alguma. Ocasionalmente, contudo, numa situaçãode necessidade, ou de utilidade acrescida à necessidade, como por exem-plo evitar algum perigo iminente para a comunidade cristã ou para osfiéis, podia o pontífice fazer o que fosse necessário, caso os leigos não ofizessem. Também era possível o oposto, isto é, que o imperador intervi-esse em caso de necessidade nos assuntos religiosos (BPT, p. 187-9).Cf. KILCULLEN, J. The political writings. In: SPADE, op. cit., p. 313-4.

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propriedade e da comunidade política. De outro, conseguiarecolher dos textos sagrados material suficiente para legiti-mar, também do ponto de vista da religião, os poderes secu-lares e os direitos ditos naturais.

O recurso à história não era só retórico e fornecia ele-mentos para um ponto fundamental de sua teoria: a do povocomo fonte do poder. Guilherme de Ockham, defensor de Luísda Baviera contra João XXII, no fundo importava-se pouco emdemonstrar a superioridade do império. O relevante era o sim-ples fato da transferência, qualquer que fosse a autoridadeque viesse a governar. “O poder de instituir leis e direitos hu-manos esteve no princípio e de modo principal no povo, e opovo depois o transferiu ao imperador. Assim, os povos, osromanos, por exemplo, e outros, transferiram para outros opoder de instituir leis; às vezes, para os reis, às vezes, paraoutros de dignidade e poder menor e inferior. Isto pode serdemonstrado não só pela história e pelas crônicas, mas tam-bém pela Sagrada Escritura” (BPT, p. 121).

O Estado constituía portanto uma criação utilitária dehomens racionais que haviam experimentado a sobrevivênviae reconheciam a necessidade de instituir regras de bem vivermais gerais, a fim de alcançar um bem comum útil a todos.Uma vez estabelecido, no entanto, o governante assumia –desde que a sua jurisdição permanecesse útil e vantajosapara a sobrevivência do coletivo – toda autoridade e rara-mente podia ser deposto. Por essa razão, não era possívelfalar num contrato entre governantes e cidadãos, nos termospropostos por Marsílio: como a comunidade política não cons-tituía uma pessoa real, mas fictícia, uma entidade criada,advogava Guilherme de Ockham, ela não podia performaratos legais nem possuir direitos concretos sob a lei.47

47 Cf. COLEMAN. Sovereignty and power relations in the thought of Marsiliusof Padua and William of Ockham: a comparison. In: Revista da Faculda-de de Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 240.

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As ações dessa comunidade consistiam na soma dosatos desejados por seus membros individuais, ou sua maio-ria, em relação ao bem comum e à utilidade pública, de acor-do com o que fosse mais racional em cada circunstância.48

As vontades dos indivíduos não podiam, em seu modelo, serrepresentadas. Pois uma vontade coletiva – reivindicava Gui-lherme de Ockham contra as teorias jurídicas da corporaçãodesenvolvidas por alguns contemporâneos – não era algo real.Cada indivíduo, no exercício de seus direitos e liberdades,era responsável. Também o era em sua resistência àquelesque agiam contra a reta razão, fossem eles príncipes ou pa-pas. Os primeiros princípios da moralidade, auto-evidentes,podiam ser inferidos da experiência até pelo mais humildedos mortais.49 Como o poder político só podia ser adequada-mente exercido sobre indivíduos livres, qualquer autoridadeque exigisse dos homens um comportamento contrário àqueleexigido pelas Escrituras ou pela reta razão tornava-se ilegíti-ma.

Ao reunir-se em comunidade e eleger um governante,esclarecia o Doutor Invencível, cada indivíduo abria mão decertos poderes e os transferia àquele cuja decisão eles teriamde aceitar a partir de então. Havia, contudo, determinadasprerrogativas, como apropriar-se de bens temporais, que nãopodiam ser transferidas ou alienadas em hipótese alguma. Ogovernante, consentido pelo povo, não podia ignorar essesdireitos intransferíveis concedidos por Deus e pela natureza

48 Uma abordagem proveitosa da relação entre os indivíduos e a políticaem Guilherme de Ockham pode ser encontrada em: MCGRADE, Arthur S.The political thought of William of Ockham: personal and institutionalprinciples. Cambridge: University Press, 1974.

49 Guilherme de Ockham afirmava ainda a existência de princípios maiscomplexos, que constituíam inferências a partir de outras inferências erequeriam intermediação e estudo. Estes deviam ser conhecidos, senãopor todos, ao menos por aqueles que se dedicavam aos assuntos coleti-vos.

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aos seus governados. Tanto o imperator quanto o rex in regnosuo, contudo, não eram subordinados às leis postas nemtinham de julgar de acordo com elas do mesmo modo que odeviam os juízes inferiores (BPT, p. 121-2). Pois os governan-tes estavam submetidos aos homens apenas casualmente(BPT, p. 138). A regra valia tanto para o príncipe quanto parao bispo de Roma.

Ou seja, em caso de necessidade ou em nome do bemcomum e da paz, podia o príncipe se sobrepor às leis huma-nas ou positivas. E, porque todos deliberavam de acordo coma reta razão, era improvável que houvesse contradição entrea vontade dos súditos e a de seu rector. O raciocínio aqui erasemelhante ao de Marsílio. A deposição de um governante,portanto, só podia ocorrer em casos muito especiais, comoquando cometia crimes ou pecados hediondos.50 Se o gover-no era uma instituição a serviço da boa vida, a obrigação deobediência resultante de sua criação não podia ser absoluta.Por isso, ele não concebia plenitude de poder irrestrita nemdo papa nem do governante secular.

Os reis e os príncipes não têm a plenitude de poder. Emcaso contrário, o principado real seria um principadodespótico, os súditos do rei seriam seus servos, não ha-vendo entre eles distinção entre livres e servos, pois to-dos seriam servos. (BPT, p. 54)

Guilherme de Ockham consumiu a maior parte dos li-vros IV a VI do Breviloquium procurando mostrar que o impé-rio não proveio de Deus por intermédio do papa, mas de Deus

50 Guilherme de Ockham parecia acreditar, diz Coleman, que a maioriados governantes, ao longo da história, tinha organizado a sociedade demaneira suficientemente racional e utilitária, de modo que, quaisquerque fossem os crimes que tivessem cometido, eles teriam sido de menorconseqüência para o bem-estar coletivo do que seria a sua remoção dogoverno. Cf. COLEMAN. Ockham’s right reason and the genesis of thepolitical as absolutist. History of Political Thought, op. cit., p. 55.

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diretamente ao povo e, portanto, aos imperadores por ele ins-tituídos ou reconhecidos. A argumentação sobre o funda-mento do império interessava essencialmente à polêmica entreo papa e o imperador. De modo geral, contudo, os argumen-tos do Princeps Nominalium eram aplicáveis tanto ao imperiumquanto ao Estado territorial ou a qualquer outra forma depoder temporal.

Importavam de forma especial, porém, aos interessesdos nascentes Estados europeus. O Estado territorial consti-tuía, no tempo do Menorita Inglês, a realidade emergente tantoem Inglaterra e França quanto nos reinos ibéricos e eslavos.Os interesses a ele vinculados haviam se tornado os maiscapazes de se beneficiar da defesa ockhamiana do poder tem-poral. Seus argumentos de inspiração aristotélica tendiam afavorecer a idéia de Estado territorial, e não de império uni-versal, como comunidade perfeita.

Num exame retrospectivo, pode-se dizer que a figurado Venerabilis Inceptor marca na história um extraordináriocruzamento. Há quem o aponte como o primeiro dos filósofosmodernos. De toda forma, ele utilizava, para filosofar, uminstrumental que nos remete, como leitores, mais à moderni-dade do que ao passado. Como polemista político, ele se en-volvera, no entanto, na defesa de um império que já quasenada significava, reduzido, mais do que nunca, a uma potên-cia entre outras e menos importante do que muitas. Emborafosse uma questão presente, a disputa entre o papa e o impe-rador, naquele momento, era de certo modo um anacronis-mo.

Nessa polêmica meio fora de tempo, no entanto, ele con-seguiu trabalhar com argumentos renovadores. Sua cons-trução do político a partir dos indivíduos e da experiênciados povos (formadores autônomos de leis) independia, a ri-gor, de qualquer referência à idéia aristotélica de comunida-de perfeita. Esta entrava no seu raciocínio como complemento,

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não como elemento formador. Guilherme de Ockham, semdúvida, não foi o primeiro pensador a imaginar a autonomiada esfera política. Bem antes dele, João Quidort e Marsílio jáhaviam advogado a idéia. Mas em sua obra a proposição apa-recia com clareza incomum. Nesse momento, a idéia da nor-ma transcendente ao poder político ainda não desaparecera,mas ganhara novo peso.

O mais importante, na construção de pensadores comfiliações e interesses tão distintos quanto João Quidort,Marsílio ou Guilherme de Ockham, não era mais defender asubmissão do governante a uma lei (costumeira, natural oudivina), nem apontar o povo como transmissor do poder deorigem divina ao príncipe. Era, sim, acentuar a capacidadedo populus de produzir uma ordem normativa, independen-temente de haver ou não um governo ou de sua forma cons-titucional. O governo, na visão desses cientistas, acabavasendo apenas um dos instrumentos que o povo podia forjarpara as suas necessidades, embora fosse um dos mais im-portantes e o mais adequado à defesa da justiça, da paz e dapropriedade.

Estava realizada, já em meados do século XIV, a inver-são final da perspectiva na disputa entre os defensores dopoder secular e os advogados do poder religioso. Numa visão,a Igreja era o foco de legitimidade do qual dependia todo po-der no universo. Na perspectiva oposta, visível nas obras deTomás de Aquino, João Quidort, Marsílio e Guilherme deOckham, o poder tinha de ser pensado (não importavam seusapelos a argumentos teológicos) a partir da realidade dospovos. Era fácil deslizar desse ponto para uma defesa tam-bém dos Estados contra o imperium. Os trabalhos de Gui-lherme de Ockham e de Marsílio, por exemplo, podem tersido uma retribuição ao imperador. E ambos realizaram suamissão fielmente. Mas acabaram deixando muito mais doque uma apologia do poder imperial.

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Entre o século XI e inícios do XIV, como se viu, juristas,teólogos e filósofos fixaram as principais teorias a respeito daautoridade do príncipe. Alguns deles mantiveram a ênfase nasupremacia da lei, eventualmente confundida com a supre-macia da comunidade. Outros acentuaram a idéia do príncipelegislador. De modo geral, porém, não se renegava a idéia dogoverno fundado no bem público. Desses dois modelos seriapossível derivar, com alguns acertos, tanto as doutrinas damonarquia absoluta quanto a do governo constitucional.

Num caso, era preciso acentuar o papel da vontade le-gisladora e reduzir drasticamente, senão eliminar, a impor-tância de qualquer norma não posta pelo soberano. Em Bodin,houve redução, e não eliminação.51 Em Hobbes, a concepçãodo soberano legibus solutus era radical. No outro caso, osmodernos acabaram combinando a idéia da supremacia dalei com a noção de que só podia haver um soberano, o povo.Locke constituiu um paradigma desse tipo de filósofo.

Passavam a estar disponíveis, portanto, em matériadoutrinária, todos os elementos indispensáveis à consagra-ção de um novo conceito de lealdade, aquele necessário àconsolidação jurídica do Estado moderno, que teria na no-ção de soberania, fosse ela localizada no povo ou no gover-nante supremo, um de seus principais atributos. “Com taisdoutrinas, que comprovam a autonomia do Estado e sua cria-ção, para propósitos úteis, por homens pecadores mas racio-nais”, constata Coleman, “entramos efetivamente no inícioperíodo moderno.”52

51 Ele mantinha, por exemplo, referências à lei natural e a uma norma decaráter constitucional, a Lei Sálica. Sobre esse assunto, cf. BARROS, AlbertoR. A teoria da soberania de Jean Bodin. São Paulo: Unimarco, 2001.

52 COLEMAN. Sovereignty and power relations in the thought of Marsilius ofPadua and William of Ockham: a comparison. In: Revista da Faculdadede Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 246.

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No meio do caminho, a figura de Tomás de Aquino cons-tituía uma ponte indispensável. Com ele, pensamento políti-co e pensamento jurídico se integravam de um modo novo,no trabalho de naturalização do político que já vinha aconte-cendo desde, pelo menos, o século XII. Aristóteles fora umfator fundamental nessa operação, mas a teoria tomista ha-via incorporado também o pensamento jurídico e filosóficorenovados, e o resultado era muito mais que uma meraredescoberta do aristotelismo.

Essa construção, porém, não atendia somente aos in-teresses dos novos poderes constituídos sobre os territórios.A renovação conceitual era mais ampla. Ao mesmo tempoem que se desenhava uma nova figura do governante civil – apartir de noções como ‘rex in regno suo imperator est’, ‘princepssuperiorem non recognoscens’, interesse do reino etc. –, al-guns autores conferiam novo sentido à idéia da base populardo poder.

A doutrina do poder ascendente se desligava progressi-vamente da idéia da origem divina. Cada vez menos, o povoera um comissário e, cada vez mais, uma fonte original.Bellarmino e Suarez, neotomistas, ainda reivindicariam, de-pois da Reforma, a noção de um poder atribuído por Deus aopovo e por este aos reis. Isso era suficiente para incomodaros defensores da idéia do direito divino dos reis, como Filmer.Locke já não precisava invocar uma origem divina do poderpopular. Bastava-lhe a noção de um direito natural que sematerializava, por exemplo, na organização da propriedade edos negócios da comunidade pré-estatal (até a moeda, emLocke, independia do Estado). Se a doutrina lockiana tivessede ser inscrita numa linhagem proveniente da Idade Média,os pontos de referência seriam João Quidort e Guilherme deOckham, muito mais do que São Tomás.

Estava pronta uma herança intelectual e política quepodia ser usada pelo menos de três maneiras. Uma delas era

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a reivindicação, pelos monarcas, de um direito divino. O pró-prio Egídio Romano, ao defender o poder papal, havia deixa-do material para a confecção dessa doutrina. O segundo usose dava pela proclamação de uma lei natural acessível à ra-zão e suficiente, sem recurso à idéia de Deus, para guiar avida política e social. O terceiro ocorria quando se afirmavama racionalidade do Estado e a supremacia absoluta da comu-nidade política como única fonte da lei e do direito. James I,Locke e Hobbes realizaram uma a uma essas opções.

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Tradução: Raquel Kritsch2

Como ensina o Filósofo, no Livro II da Física, a arteimita a natureza. A razão disso é que assim como os princí-pios existem sucessivamente, do mesmo modo existem pro-porcionalmente operações3 e efeitos. Ora, o princípio dascoisas que são feitas segundo a arte é o intelecto humano,que deriva segundo certa similitude do intelecto divino, o qualé o princípio das coisas naturais. Donde é necessário que asobras da arte imitem as obras da natureza, e aquelas [coisas]que existem segundo a arte imitem aquelas que existem nanatureza. Se pois algum ordenador de alguma arte efetuasseuma obra de arte, seria preciso que o discípulo, o qual tivesserecebido a arte daquele, atentasse à obra daquele para quetambém ele próprio operasse à semelhança daquele. E por

1 O texto a seguir refere-se ao “Prológo”, escrito por Tomás de Aquinocomo introdução aos seus “Comentários” à Política, de Aristóteles. Aversão latina aqui utilizada (cf. p. 545-6) foi retirada da seguinte edição:AQUINO. Prologus. Sententia libri politicorum (Comentários). In: OperaOmnia (iussu Leonis XIII P.M. edita). cura et studio fratrumpraedicatorum”. Roma: Ad Sancta Sabinae, 1971. t. 48.

2 Esta tradução contou com o auxílio generoso do Prof. Marcos Martinhodos Santos, latinista da Faculdade de Letras da USP, que comigo deba-teu esta versão.

3 No sentido de ‘atos’, ‘ações’.

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isso o intelecto humano, cujo lume inteligível é derivado dointelecto divino, tem necessariamente de se formar nas coi-sas que faz a partir do exame das coisas que foram feitasnaturalmente, para que opere de maneira similar; e daí vemque o Filósofo diz que se a arte fizesse aquelas coisas que sãoda natureza, de modo semelhante, operaria como a nature-za. E, ao contrário, se a natureza fizesse aquelas [coisas] quesão da arte, faria assim como faz a arte.

Mas a natureza, todavia, não perfaz aquelas [coisas] quesão da arte, mas somente prepara certos princípios e ofereceaos artífices, de algum modo, um exemplo de [como] operar; aarte, em verdade, pode sim inspecionar aquelas [coisas] quesão da natureza e usar destas para perfazer [uma] obra pró-pria, perfazer [aquela], porém, ela não pode. A partir disso ficapatente que das coisas que são segundo a natureza a razãohumana é apenas cognoscitiva, mas das coisas que são se-gundo a arte [a razão humana] é tanto cognoscitiva comofactiva. De onde é preciso que as ciências humanas que tra-tam das coisas naturais sejam especulativas,4 mas que as[ciências] que tratam das coisas feitas pelo homem sejam prá-ticas ou operativas, segundo a imitação da natureza.

Ora, a natureza, em sua operação, procede dos simplesaos compostos, de modo que nas coisas [que são] feitas pelaoperação da natureza, aquilo que é maximamente compostoé perfeito e total e [é] o fim das outras coisas, como é evidenteem quaisquer todos em relação às suas partes; donde tam-bém a razão dos homens, [que é] operativa, procede das coi-sas simples às compostas, tal qual do imperfeito ao perfeito.

E como a razão humana teria de dispor não apenasdaquelas coisas que se oferecem ao uso do homem, mas ain-da dos próprios homens, os quais são regidos pela razão,num e noutro caso procede dos simples ao composto: nas

4 No sentido grego de ciências ‘teoréticas’.

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outras coisas que se oferecem ao uso do homem, assim comoa partir da madeira [se] constrói a nau, e a partir de madeira epedras a casa; já nos próprios homens como quando [a razão]ordena vários homens numa única certa comunidade. E comodentre estas comunidades há diversos graus e ordens, supe-rior é a comunidade da cidade, ordenada para as coisas auto-suficientes da vida humana: donde entre todas as comunidadeshumanas esta é a mais perfeita. E porque aquelas coisas quese oferecem ao uso do homem são ordenadas para o homemcomo ao [seu] fim, o qual é anterior5 a estes que são [ordena-dos] ao fim, por isso é necessário que aquele todo que é acidade seja anterior a quaisquer todos que podem ser conheci-dos e construídos pela razão humana.

Logo, destas coisas que foram ditas acerca da doutrinada política, a qual Aristóteles trata neste livro, podemosdepreender quatro [coisas]. Primeiro, a necessidade desta ciên-cia: com efeito, dentre todas as coisas que podem ser conhe-cidas pela razão, é necessário transmitir alguma doutrinapara a perfeição da sabedoria humana, a qual é chamadafilosofia; logo, como este todo que é a cidade está sujeito aum certo julgamento da razão, foi necessário, para comple-mento da filosofia, instituir uma doutrina [que tratasse] dacidade, que é chamada política, isto é, a ciência civil.

Segundo, podemos depreender o gênero desta ciência.Pois como as ciências práticas são distinguidas das especu-lativas nisto: que as [ciências] especulativas são ordenadassomente para a ciência da verdade, mas as práticas [são or-denadas] à obra, é necessário que esta ciência esteja contidasob a filosofia prática, já que a cidade é um certo todo do quala razão humana não apenas é cognoscitiva, mas tambémoperativa [ou atuativa]. E mais: algumas coisas a razão opera– por meio de uma operação que se transforma em matéria

5 No sentido de ‘mais importante que’, ‘supremo’ em relação a.

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exterior – pelo modo do fazer, o qual pertence propriamenteàs artes que são chamadas mecânicas, como aquela doforjador, do construtor de naus e similares; outras coisas,porém, [a razão] opera pelo modo da ação, por meio de umaoperação que permanece naquele que opera, tal como delibe-rar, eleger, desejar e, deste modo, [ações] que pertencem àciência moral: é manifesto que a ciência política, que consi-dera a ordenação dos homens, não está contida sob as ciên-cias do fazer, que são as artes mecânicas, mas sob a dasações, que são ciências morais.

Terceiro, podemos depreender a dignidade e a ordemda política em relação às demais ciências práticas. É pois acidade a mais importante das coisas que podem ser consti-tuídas pela razão humana, pois todas as comunidades hu-manas são referidas a ela. E mais: quaisquer todos, que sãoconstituídos pelas artes mecânicas a partir das coisas ofere-cidas ao uso dos homens, são ordenados aos homens assimcomo ao fim; se pois a ciência mais importante é aquela [quetrata] do mais nobre e do mais perfeito, então é necessárioque a política, entre todas as ciências práticas, seja a maisimportante e arquitetônica entre as demais, na medida emque considera o bem último e perfeito nas coisas humanas.E, por causa disto, o Filósofo diz, no fim do Livro X da Ética,que a filosofia que cuida das coisas humanas se perfaz napolítica.

Quarto, do dito podemos depreender o modo e a ordemdesta ciência. Pois assim como as ciências especulativas, queconsideram algum todo, chegam ao conhecimento do todo apartir da consideração das partes e dos princípios, manifes-tando as paixões6 e as operações7 do todo, assim também

6 No sentido grego, daquilo que ‘se sofre’, como ‘reação’, em oposição àação (num sentido passivo).

7 No sentido ativo: ‘atos’ ou ‘ações’.

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esta ciência, ao considerar os princípios e as partes da cida-de, transmite o conhecimento da própria [cidade], manifes-tando as partes dela: tanto as paixões como as operações. Eporque é prática, manifesta em adição o modo pelo qual ascoisas singulares podem perfazer-se: o que é necessário emtoda ciência prática.

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Sicut Philosophus docet in II Phisicorum, ars

imitatur naturan. Cuius ratio est quia sicut se

habent principia ad inuicem, ita proportionaliter

se habent operationes et effectus; principium

autem eorum quo secundum arterm fiunt est

intellectus humanus, qui secundum similitudinem

quandam deriuatur ab intellectu diuino qui est

principium rerum naturalium: unde necesse est

quod et operationes artis imitentur operationes

nature, et ea que sunt secundum artem imitentur

ea que sunt in natura. Si enim aliquis instructor

alicuius artis opus artis efficeret, oporteret disci-

pulum qui ab eo artem suscepisset ad opus illius

attendere ut ad eius similitudinem et ipse operare-

tur. Et ideo intellectus humanus, ad quem intelli-

gibile lumen ab intellectu diuino deriuatur,

necesse habet in hiis que facit informari ex inspec-

tione eorum quo sunt naturaliter facta, ut similiter

operetur; et inde est quod Philosophus dicit quod

si ars faceret ea que sunt nature, similiter operare-

tur sicut et natura: et e conuerso si natura faceret

ea que sunt artis, similiter faceret sicut et ars

facit.

Set nature quidem non perficit ea que sunt artis,

set solum quedam principia preparat et exemplar

operandi quodam modo artificibus prebet; ars

uero inspicere quidem potest ea que sunt nature

et eis uti ad opus proprium perficiendum, perficere

uero ea non potest. Ex quo pater quod ratio huma-

na eorum que sunt secundum naturam est cognos-

citiua tantum, eorum uero que sunt secundum

artem est et cognoscitiua et factiua. Vnde oportet

quod scientie humane que suns de rebus natura-

libus sint speculatiue, quo uero sunt de rebus ab

homine factis sint practice siue operatiue secun-

dum imitationem nature.

Procedit autem nature in sua operatione ex

simplicibus ad composita, ita quod in eis que per

operationem nature fiund, quod est maxime com-

positum est perfectum et totum et finis aliorum,

sicut apparet in omnibus totis respectu suarum

partium; unde et ratio hominis operatiua ex

simplicibus ad composite procedit, tanquam ex

imperfectis ad perfecta.

Cum autem ratio humana disponere habeat non

solum de hiis que in usum hominis ueniunt, set

etiam de ipsis hominibus qui ratione reguntur, in

utrisque procedit ex simplicibus ad compositum:

in aliis quidem rebus que in usum hominis ueniunt,

sicut cum ex lignis constituit nauim, et ex lignis et

lapidibus domum ; in ipsis autem hominibus, sicut

cum multos homines ordinat in unam quandam

communitatem. Quarum quidem communitatum

cum diuersi sint gradus et ordines, ultima est

communitas ciuitatis ordinata ad per se sufficientia

uite humane: unde inter omnes communitates

humanas ipsa est perfectissima. Et quia ea que in

usum hominis ueniunt ordinantur ad hominem

sicut ad finem, qui est principalior hiis que sunt ad

finem, ideo necesse est quod hoc torum quod est

ciuitas sit principalius omnibus totis que ratione

humana cognosci et constitui possunt.

Ex hiis igitur que dicta sunt, circa doctrinam

politice quam Aristotiles in hoc libro tradit,

quatuor accipere possumus. Primo quidem neces-

sitatem huius scientie: omnium enim que ratione

cognosci possunt necesse est aliquam doctrinam

tradi ad perfectionem humane sapientie que philo-

sophia uocatur; cum igitur hoc totum quod est

ciuitas sit cuidam rationis iudicio subiectum,

necesse fuit ad complementum philosophie de

ciuitate doctrinam tradere que politica nominatur,

id est ciuilis scientia.

Secundo possumus accipere genus huius scien-

tie. Cum enim scientie practice a speculatiuis dis-

tinguantur in hoc quod speculatiue ordinantur

1 Artist. Pbys II 4 (194 a 21-23) et 12 (199 a 15-16)75-76 scientie practice... speculatue: cf. Metaph. II 2 (993 a 21) cum Thomas commento.

55 per se sufficientia: cf. infra 1/b, 13-25.

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35

40

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55

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70

75

19 Phys. II 13 (199 a 12-15)

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solum ad scientiam ueritatis, practice uero ad opus,

necesse est hanc scientiam sub practica philosophia

contineri, cum ciuitas sit quiddam totum cuius

humana ratio non solum est cognoscitiua, set etiam

operatiua. Rursumque cum ratio quedam operetur

per modum factionis operatione in exteriorem

materiam transeunte, quod proprie ad artes perti-

net que mecanice uocantur, utpote fabrilis et

nauifactiua et similes; quedam uero operetur per

modum actionis operatione manente in eo qui

operatur, sicut est consiliari, eligere, uelle et

huiusmodi que ad moralem scientiam pertinent:

manifestum est politicam scientiam que de homi-

num considerat ordinatione, non contineri sub

factiuis scientiis que sunt artes mecanice, set sub

actiuis que sunt scientie morales.

Tertio possumus accipere dignitatem et ordi-

nem politice ad omnes alias scientias practicas.

Est enim ciuitas principalissimum eorum que

humana ratione constitui possunt, nam ad ipsam

omnes communitates humane referuntur. Rursumque

omnia tota que per artes mecanicas consti-

tuuntur ex rebus in usum hominum uenientibus,

ad homines ordinantur sicut ad finem; si igitur

principalior scientia est que est de nobiliori et

perfectiori, necesse est politicam inter omnes

scientias practicas esse principaliorem et architec-

tonicam omnium aliarum, utpote considerans

ultimum et perfectum bonum in rebus humanis.

Et propter hoc Philosophus dicit in fine X Ethi-

corum quod ad politicam perficitur philosophia

que est circa res humanas.

Quarto ex predictis accipere possumus modum

et ordinem huius scientie. Sicut enim scientie

speculatiue que de aliquo toto considerant, ex

consideratione partium et principiorum notitiam

de toto perficiunt passiones et operationes totius

manifestando, sic et hec scientia principia et partes

ciuitatis considerans de ipsa notitiam tradit partes

et passiones et operationes eius manifestans. Et

quia practica est, manifestat insuper quo modo

singula perfici possum: quod est necessarium in

omni practice scientia.

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85

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115

119 scientia] hic ad lin. seq. transit et litt. initialen apponit φ

107 Etbic. X 16(1181 b 14-15): «et totaliter utique de politica, ud da potentiam quae circa humana philosophia perficiatur».Cf. Thomae comm., lin. 173-179.

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DIVULGAÇÃO LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO

Mancha 10,5 X 18,5 CM

Formato 14 x 21 cm

Tipologia Bookman Old Style 10,5/13,5 e Cooperplate Gothic Bold 22,5

Papel miolo: pólen soft 70 g/m2

capa: supremo 250 g/m2

Impressão da capa Quadricromia

Impressão e acabamento ????

Número de páginas 572

Tiragem 1.000 exemplares

FICHA TÉCNICA