estado e soberania

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  • 7/28/2019 Estado e Soberania

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

    JOO LUCAS IJINO SANTANA

    O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS:

    a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

    ILHUS BAHIA2009

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

    JOO LUCAS IJINO SANTANA

    O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS:

    a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

    ILHUS BAHIA2009

    Monografia apresentada para obteno de ttulode bacharel em Lnguas Estrangeiras Aplicadass Negociaes Internacionais UniversidadeEstadual de Santa Cruz.

    rea de concentrao: Relaes Internacionais

    Orientador: Prof. Ms Clodoaldo Silva da Anunciao

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    JOO LUCAS IJINO SANTANA

    O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS:

    a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

    Ilhus BA, / /2009

    _______________________________________________Prof. Ms. Clodoaldo Silva da Anunciao

    (Orientador)

    _______________________________________________Prof. Ms. Cesrio Alvim Pereira Filho

    (Parecerista)

    _______________________________________________Prof. Ms. Samuel Leandro Oliveira de Mattos

    (Parecerista)

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    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho aos meus pais, Jos

    Carlos e Eunice, aos meus irmos, Mateus

    e Marcos e a todos aqueles que de alguma

    forma contriburam para a realizao

    deste sonho.

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    AGRADECIMENTO

    A Deus pela fidelidade e infinitas bnos derramadas ao longo dos ltimos quatro

    anos e meio;

    A minha famlia pelo carinho e apoio incondicional de todas as horas, sem os quais

    no teria chegado at aqui;

    A Sara pela amizade, incentivo e companheirismo que marcaro para sempre a minhavida, o meu muitssimo obrigado e eterna admirao;

    Ao meu orientador professor Clodoaldo Anunciao que com muita disposio e

    entusiasmo dedicou parte do seu escasso tempo, incluindo finais de semana, para orientar-me

    na conduo deste trabalho.

    Aos professores Srgio de Cerqueda, Patrcia Argolo, Sylvie de Magalhes, Janana

    Soares, Eduardo Mielke, Reinaldo Soares, Samuel Mattos e Jorge Miguel, pelo aprendizadoacadmico e de vida. Um agradecimento especial ao prof. Cesrio Alvim pela amizade

    constante e pelos conselhos sempre sinceros;

    Aos querido colegas e amigos, em especial aos membros da diretoria: Vincius,

    Juliana, Samara, Geraldo, Joildo, Ilana e Gabriela;

    A Ilka Menezes que, mais do que uma simples secretria, foi uma amiga sempre

    disposta a solucionar os problemas burocrticos, demonstrando competncia e

    profissionalismo no exerccio de suas atribuies no Colegiado do LEA;

    Por fim, a todos os colegas e amigos que de alguma maneira passaram pela minha vida

    ao longo da caminhada acadmica, o meu muito obrigado.

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    Epgrafe

    Mas o puro realismo no pode oferecer nada alm de uma luta nua pelo poder, que

    torna qualquer tipo de sociedade internacional impossvel. Tendo demolido a utopia

    atual com as armas do realismo, ainda necessitamos construir uma nova utopia para

    ns mesmos, que um dia haver de sucumbir diante das mesmas armas. (...) aqui,

    portanto, est a complexidade, o fascnio e a tragdia de toda vida poltica. A poltica

    composta de dois elementos utopia e realidade pertencentes a dois planos

    diferentes que jamais se encontram.

    Edgar Carr, Vinte Anos de Crise

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABM Associao Brasileira de Municpios

    AFEPA Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares

    CNM Confederao Nacional de Municpios

    DIP Direito Internacional Pblico

    EUROCITIES Rede de cidades europias

    FNP Frente Nacional de Prefeitos

    MERCOCIDADES Rede de cidades do Mercosul

    MRE Ministrio das Relaes Exteriores

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    ONU Organizao das Naes Unidas

    SCI Sister Cities International

    UE Unio Europia

    UNALE Unio Nacional dos Legislativos Estaduais

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    SUMRIO

    Resumo.................................................................................................................................. viii

    Abstract................................................................................................................................. xix

    INTRODUO.................................................................................................................... 10

    1. ESTADO E SOBERANIA............................................................................................... 12

    1.1 Elementos Constitutivos do Estado.................................................................................. 15

    1.2 Origem e Evoluodo Estado.......................................................................................... 17

    2. A SOBERANIA NA ATUALIDADE............................................................................. 24

    2.1 Soberania e Globalizao.................................................................................................. 24

    2.2 Soberania eDiplomacia.................................................................................................... 30

    3. PARADIPLOMACIA...................................................................................................... 37

    3.1 Paradiplomacia: definies e elementos conceituais....................................................... 37

    3.2 Paradiplomacia: uma viso dialtica............................................................................... 41

    3.2.1 Aspectos cooperativos da paradiplomacia................................................................. 43

    3.2.2 Aspectos conflitivos da paradiplomacia..................................................................... 44

    3.3. AParadiplomacia no Brasil............................................................................................. 48

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................. 53

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    O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS:

    a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

    RESUMO

    As novas tecnologias da comunicao e do transporte transcontinental modificaramradicalmente no apenas o modo como vemos ao outro, mas tambm a percepo que temos

    de ns mesmos, alterando profundamente nossa viso de mundo. Em funo destastransformaes, vivencia-se na atualidade uma revoluo epistemolgica que alcana todas asreas do conhecimento humano. Nesta perspectiva, as Relaes Internacionais assistem aosurgimento de um novo e dinmico fenmeno, nominado paradiplomacia, qual seja, oconjunto de relaes estabelecidas entre unidades subnacionais (estados, regies,departamentos, provncias, municpios, etc.) em mbito regional, internacional e global. A

    participao ativa destes novos atores no cenrio internacional requer uma reviso do conceitoclssico de soberania, uma vez que a atuao das unidades subnacionais, grosso modo, carecede embasamento e regulamentao jurdica, tanto do Direito Internacional quanto das

    legislaes internas de cada pas. Diante da atualidade e relevncia acadmica que o temaencerra, este trabalho objetiva analisar o papel da paradiplomacia nas Relaes Internacionaisa partir de um estudo que procura sistematizar a literatura existente sobre o assunto, fazendouma retrospectiva histrica da origem e evoluo do fenmeno. Este estudo que leva em contaos aspectos cooperativos e conflitivos da paradiplomacia por meio de uma abordagemhistrico-dialtica, visa tambm apresentar um panorama do atual estgio de desenvolvimentoda paradiplomacia no Brasil e prope uma reflexo acerca dos avanos e desafios impostos sua expanso e consolidao no cenrio nacional e internacional.

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    THE ROLE OF PARADIPLOMACY IN INTERNATIONAL RELATIONS:The emergency of subnational units in a globalized world context

    ABSTRACT

    The new technologies of communication and transcontinental transports have changed

    radically not only the way we see other people, but also how we understand ourselves,changing deeply our perception of the world. As a result of those changes there is anepistemologic revolution nowadays that reachs all human knowledges fields. In this regard,it is possible to identify the emergency of a new and dynamic phenomenon called

    paradiplomacy, which means the relations established among the subnational units (states,departaments, cities, etc.) in the regional, international and global stage. The proactive

    participation of those new players in the international scenario demands a review of theclassical concept of sovereignty, because the initiatives of the subnational units do not havethe support of the International Law nor the legislations of the countries either. Since it is an

    up to date important subject, this paper aims to do an analysis of the role of paradiplomacy inthe International Relations. In order to do so, it does a bibliografic review performing ahistorical reconstitution of the origin and evolution of the phenomenon taking into account theelements of tension and co-operation of the paradiplomacy through a historic-dialeticapproach. It also seeks to give a briefing of the current level of paradiplomacy development inBrazil. Finally, it proposes a discussion about the gains and challenges to the expansion andconsolidation of paradiplomacy in the national and international scenario.

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    INTRODUO

    O aprofundamento do processo de globalizao ocorrido com a quebra do paradigma

    bipolar da Guerra Fria, que norteou as Relaes Internacionais por quase meio sculo, e a

    consequente configurao de um mundo multipolar, abriu novas perspectivas para a atuao

    dos Estados nacionais no concerto das naes, sobretudo entre os ditos pases emergentes ou

    em desenvolvimento. Se por um lado, este novo cenrio multipolar e participativo favorece a

    atuao dos Estados nacionais, por outro, constitui-se em espao aberto para a atuao de

    novos atores, os quais se constituem objeto desta pesquisa.

    A mundializao da economia capitalista, a interdependncia dos mercados

    financeiros, a expanso exponencial do mercado mundial, a criao de zonas de livre

    comrcio e blocos econmicos e a proliferao de ONGs e organismos internacionais, entre

    outros, demonstram claramente o grau de complexidade e polifonia por que passam asRelaes Internacionais contemporneas, estas, j no mais restritas a atuao exclusiva dos

    Estados nacionais. No bojo deste conjunto de mudanas, surge a paradiplomacia, fenmeno

    poltico-social relativamente recente e ainda pouco estudado em mbito acadmico que,

    diante do contexto atual de interdependncia das Relaes Internacionais, tende a observar um

    notvel crescimento durante as prximas dcadas.

    O objeto de estudo desta pesquisa analisar o papel exercido pela paradiplomacia nas

    Relaes Internacionais, a partir da constatao de que as unidades subnacionais (estadosfederados, municpios, cantes, departamentos, provncias, landers etc.) vem assumindo um

    papel mais participativo na conduo da poltica externa dos Estados, fato que tem provocado

    uma revoluo paradigmtica na poltica internacional tradicional.

    O objetivo deste trabalho discutir o fenmeno paradiplomtico, analisar sua gnese e

    evoluo e buscar compreender sua dinmica na atualidade. Os objetivos especficos so:

    definir a paradiplomacia luz da literatura especializada; avaliar seus aspectos cooperativos e

    conflitivos; e traar o panorama atual da atividades paradiplomticas em curso no Brasil.

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    As principais referncias tericas utilizadas para a realizao desta pesquisa foram os

    estudos pioneiros de SOLDATOS (1990) e DUCHACEK (1990). Nos anos 80, os referidos

    autores deram o ponta p inicial nos estudos acadmicos sobre a temtica paradiplomtica,

    tomando como base a experincia canadense no Quebc. Logo, os pressupostos tericos

    elaborados em seus escritos constituem ponto de partida da maioria dos trabalhos sobre sobre

    o tema realizados no Brasil e em outros pases. Tambm foram utilizados trabalhos de autores

    nacionais, a exemplo de SALOMN & NUNES (2007), SILVA (2006) e GAMBINI (2007),

    entre outros. Alm dos autores supracitados, foram consultadas obras de autores clssicos da

    Cincia Poltica, como Rousseau, Maquiavel, Hobbes e Locke. Lanou-se mo, igualmente,

    de estudiosos nacionais da Teoria Geral do Estado, como FIGUEIREDO (2001), MALUF

    (2008) e AZAMBUJA (1995). Ademais, procedeu-se a coleta de dados primrios esecundrios em stios institucionais na internet. Para a estruturao do trabalho, utilizou-se o

    mtodo dialtico, com enfoque no aspecto terico-conceitual.

    O trabalho est estruturado em trs captulos. No primeiro deles, revisitamos os

    conceitos clssicos de Estado e soberania a partir da perspectiva histrica da formao e

    evoluo dos Estados. Esta contextualizao histrica acerca da evoluo da noo de Estado

    e de soberania fundamental para se compreender o modo como o Estado moderno foi

    estruturado e como se encontra nos dias atuais.No segundo, debatemos a relativizao do conceito de soberania estatal frente s

    mudanas introduzidas pela globalizao e refletimos acerca dos processos de reconfigurao

    das Relaes Internacionais a partir da atuao dos chamados novos atores globais.

    No terceiro e ltimo captulo, estudamos o fenmeno paradiplomtico e suas

    implicaes. Este captulo subdivide-se em trs partes: na primeira, analisamos a

    paradiplomacia do ponto de vista terico-conceitual com base na literatura existente. Na

    segunda, analisamos os aspectos de cooperao e de conflito que secundam as relaesparadiplomticas. Na terceira, apresentarmos um panorama dessas relaes no Brasil,

    estudando sua gnese, evoluo e estgio atual, para ento apresentarmos as consideraes

    finais.

    A paradiplomacia, por tratar-se de fenmeno em pleno desenvolvimento, constitui

    assunto de grande relevncia para a compreenso das novas dinmicas presentes nas Relaes

    Internacionais. Logo, este trabalho visa a contribuir para a discusso acadmica sobre o tema

    e avaliar seus reflexos e implicaes para as Relaes Internacionais na atualidade.

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    1. ESTADO E SOBERANIA

    Neste captulo sintetizaremos os processos de formao e evoluo, bem como as

    formas de classificao do Estado, ou da sociedade poltica. Para tanto, mister revisar alguns

    conceitos que so caros compreenso do fenmeno estatal e do feixe de relaes que se

    estabelecem entre o Estado e a coletividade dos indivduos.

    Inicialmente cabe procedermos distino entre as noes de Estado e nao, posto

    que, no raras vezes, ambos os termos so utilizados de modo inadequado e em sentidos

    diametralmente opostos. Maluf (2008) afirma que, se por um lado, a nao compreende uma

    realidade sociolgica, por outro, o Estado representa uma realidade jurdica. Para ele A

    nao anterior ao Estado. Alis, pode ser definida como a substncia humana do Estado1.

    Neste sentido, a palavra nao pode ser substituda por Povo, sem qualquer prejuzo

    semntico ou conceitual.

    No entender de Clvis Bevilqua, citado por Maluf (2008, p. 21), o Estado a

    sociedade que se coage; e para poder coagir que ela se organiza tomando a forma pela qual

    o poder coativo social se exercita de um modo certo e regular; em uma palavra, a

    organizao das foras coativas sociais. Para Montesquieu, um Estado (civitas) a

    unificao de uma multiplicidade de homens sob leis jurdicas (MONTESQUIEU apudRUSS, 1991, p. 93). Figueiredo (2001, p.44), por sua vez, defende que o Estado

    [...] a pessoa poltica e jurdica, fenmeno que pode ser estudadosociologicamente ou juridicamente. O Estado o poder institucionalizado que devesempre garantir a liberdade do homem, de acordo com seus desejos legtimos,mediante regras preestabelecidas pelo homem. igualmente centro de decises e decomportamentos ou impulsos, visando realizao das finalidades humanas. Devesobretudo ser controlado pelo homem e no ao contrrio. Em sua dinmica deve

    procurar o equilbrio entre o desenvolvimento e a paz, a tecnologia e o humanismo,

    sem prevalncia da burocracia.

    1 Ibid., p.16.

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    Devemos ter em mente que o Estado, antes de tudo, se constri socialmente, porquanto

    obra da inteligncia e da vontade dos membros do grupo social, ou dos que nele exercem o

    governo e influncia (AZAMBUJA, 1995, p. 3). Ao contrrio de outras formas de

    organizao social como a famlia e a igreja a sociedade poltica inescapvel, uma vez

    que todos os indivduos esto sujeitos s leis, independente de sua vontade. Azambuja

    corrobora esse conceito ao declarar que da tutela do Estado, o homem no se emancipa

    jamais. O Estado o envolve na teia de laos inflexveis, que comeam antes de seu

    nascimento, com a proteo dos direitos do nascituro, e se prolongam at depois da morte, na

    execuo de suas ltimas vontades2.

    Para melhor apreendermos o conceito de Estado cabe elucidar o conceito de soberania,

    uma vez que este se confunde com a prpria idia de Estado. Para tanto, tomemos como base

    o que tratam alguns autores a respeito do tema.

    Accioly (1978) conceitua soberania como sendo a autoridade que possui o Estado para

    decidir sobre questes de sua competncia. Para Maluf (2008, p.29), o Estado definido

    como a autoridade superior que no pode ser limitada por nenhum outro poder. J a

    soberania traduz-se por poder de imprio, ou seja, a capacidade que possui o Estado de

    coagir e constranger o cidado para o cumprimento das regras, leis e princpios estabelecidosna esfera social e no ordenamento jurdico. Santos (2008), por sua vez, define a concepo

    clssica de soberania onipresente no pensamento de Jean Bodin como absoluta, perptua,

    indivisvel, inalienvel e imprescritvel.

    A concepo de soberania est ligada a idia de uso da fora enquanto instrumento de

    legitimao do poder do Estado. Em outras palavras, a capacidade de o Estado fazer valer a

    sua vontade. Vale salientar que a doutrina da soberania surge da luta travada, nos sculos

    XVII e XVIII, entre a monarquia francesa, o papado e as foras feudais pela proeminncia

    poltica (FIGUEIREDO, 2001). Assim, a afirmao da idia de soberania na acepo

    clssica do termo est intimamente ligada ao surgimento do absolutismo na Europa e a

    consequente perda de poder relativo da igreja no plano temporal.

    2 Ibid., p. 4.

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    No obstante, a viso rousseauniana considera a soberania como o exerccio da

    volont gnral3, ou seja, a materializao da vontade da maioria dos membros da sociedade

    organizada politicamente. Em sntese, Rousseau introduz o conceito de soberania popular, em

    contraposio a idia de soberania estatal. Cabe aqui uma distino feita pelo autor entre a

    vontade de todos e a vontade geral. A vontade de todos, nada mais que a soma dos

    interesses particulares, ao passo que a vontade geral tem como alvo a satisfao dos anseios

    da coletividade, ou seja; a busca do bem comum, sendo esta a que deve nortear as aes do

    Estado.

    A Constituio brasileira de 1988 utiliza o princpio roausseauniano de soberania

    popular, expresso em seu Art. 1, pargrafo nico, ao declarar que: Todo o poder emana do

    povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.... Na carta magna, a

    soberania popular vista como um dos princpios fundamentais do Estado brasileiro.

    A soberania4 ousumma potestas pode ser vista sob dois aspectos: o da autonomia e o

    da independncia ou igualdade dos Estados. O primeiro aspecto se d no plano interno,

    enquanto poder de imprio. a capacidade que possui o Estado de gerir os negcios internos

    sem qualquer interveno aliengena. O segundo aspecto reflete-se nas relaes que se

    estabelecem entre diferentes soberanias. Logo, entre dois ou mais Estados.Segundo o Direito Internacional, todos os Estados so formalmente iguais, assim

    como, segundo a constituio brasileira, todos os cidados so iguais perante a lei. Vale

    salientar que tal igualdade encontra-se exclusivamente no plano terico-normativo, j que os

    Estados, em sendo entidades soberanas, decidem submeter-se ou no s resolues

    internacionais, segundo seus prprios interesses e circunstncias. Ademais, o poderio

    econmico e militar, e a preponderncia poltica, alm de outros fatores, fazem com que

    pases iguais, in juris, na prtica, recebam tratamento diferenciado segundo o seu grau deimportncia. A esse respeito, reflete Ferrajoli (apud SANTOS, 2008, p. 49, 50):

    3 Vontade geral (traduo livre).4 Jos Incio de Freitas Filho, em artigo intitulado A Relativizao da Soberania Estatal, elenca as seguintes

    caractersticas da soberania: una e indivisvel; prpria e indelegvel; irrevogvel; suprema e independente.Disponvel em: . Acessoem: 22 abr. 2009.

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    Aps a descolonizao promovida pelas Naes Unidas, o paradigma do Estadosoberano estendeu-se no mundo todo. E, todavia, o antigo princpio vitoriano daigual soberania dos Estados, sancionado pelo artigo 2 da Carta, hoje, mais doque nunca, desmentido pela concreta desigualdade entre eles, fruto inevitvelda prevalncia do mais forte e, portanto, pela existncia de soberanias limitadas...

    (grifo de Santos).

    Segundo Ferrrajoli (2002), o Estado constitucional, pelo qual o direito regula-se a si

    prprio, funciona como dispositivo limitador da soberania interna. A soberania externa, por

    sua vez, s passa a sofrer limitao, com a adoo da Carta da ONU de 1945 que, nas palavras

    do prprio Ferrajoli equivale a um contrato social internacional, e a Declarao Universal

    dos Direitos do Homem de 1948. Por estes dois instrumentos jurdicos os Estados so

    retirados, ao menos em tese, do estado de natureza, sendo introduzidos no convvio social dacomunidade internacional, convvio este que regido pelos princpios de manuteno da paz e

    respeito aos direitos humanos.

    Feitas as considerao iniciais acerca das noes de Estado e de soberania, passemos a

    anlise de seu surgimento e evoluo ao longo dos sculos.

    1.1 Elementos Constitutivos do Estado

    Segundo os tericos o Estado constitudo por trs elementos: populao, territrioe

    governo. O primeiro termo enumerado apresenta grande controvrsia conceitual entre os

    doutrinadores. Para alguns estudiosos da Teoria Geral do Estado, a exemplo de Marcelo

    Figueiredo, o termo mais adequado seria povo ao invs depopulao, ao passo que autores

    como Sahid Maluf preferem o termo populao. O conceito, grosso modo, circunscreve-se ao

    campo semntico. Isto , da forma como o autor classifica o primeiro elemento constitutivo

    do Estado.

    Segundo Kant, povo pressupe nao, pois entendido como (...) a massa dos

    homens reunidos numa determinada regio, desde que constituam um todo. Esta massa, ou os

    elementos desta massa, a quem uma origem comum permite reconhecer-se como unida numa

    totalidade civil, chama-se nao (gens) (KANT apud RUSS, p. 193, 1991).

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    Pelo exposto, denota-se que a palavra povo expressa uma realidade subjetiva-

    valorativa, ao passo que populao encerra um conceito objetivo e quantificvel. Neste caso,

    tomaremos o termo populao, por ajustar-se conceitualmente aos objetivos do nosso

    trabalho. Tal como apontado por Maluf (2008, p. 17), populao a expresso que envolve

    um conceito aritmtico, quantitativo, demogrfico, pois designa a massa total dos indivduos

    que vivem dentro das fronteiras e sob o imprio das leis de um determinado pas.

    O territrio segundo elemento constituinte concebido por Figueiredo (2001)

    como a base fsica do Estado. Segundo GROPPALI (1953, p. 150), territrio o limite

    espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo e exclusivo o poder de imprio sobre

    pessoas. Sem territrio no h Estado possvel, ainda que haja nao. A ttulo de exemplo,

    consideremos o caso do povo judeu. O sionismo movimento nacionalista que congregou

    judeus de todo o mundo foi a base ideolgica que legitimou a reivindicao dos judeus pela

    constituio do Estado de Israel. A nao hebraica, desprovida de territrio, no possua um

    Estado, at que, com o fim da II Guerra Mundial, criou-se o Estado de Israel com capital em

    Tel-Aviv.

    O governo terceiro elemento constituinte entendido por Foucault (apud RUSS,

    p.125, 1991) como o conjunto de tcnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta doshomens. Nos regimes democrticos (parlamentares ou presidencialistas) o governo

    formado pela populao, a qual detentora da soberania nacional. Isto implica na delegao

    de poderes a um partido ou grupo de partidos para que este promova o bem comum, j que a

    titularidade da soberania, em ltima instncia, pertence ao povo, isto , a populao, ou a

    parte da populao possuidora de direitos polticos e civis: os votantes e a sociedade civil

    organizada.

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    1.2Origem e evoluo do Estado

    Em Cincia Poltica, a discusso acerca da origem do Estado , sem dvida, das mais

    controversas, dada a multiplicidade de teorias e hipteses levantadas, no intuito de elucidar tal

    conceito. Estas teorias classificam-se do seguinte modo: teorias da origem familial do Estado;

    teorias da origem violenta do Estado e teorias da origem contratual do Estado. Os Estados

    tambm podem ser classificados a partir do modo como surgiram: formao natural; formao

    histrica e formao jurdica. Consideremos o que prepem cada uma destas hipteses.

    As teorias da origem familial teoria patriarcal ou patriarcalista, pater familias, e teoriamatriarcal ou matriarcalista partem do princpio de que o Estado uma extenso da famlia,

    pois, assim como essa a unidade nuclear da sociedade, seria igualmente o ponto de partida

    para o surgimento do Estado. Segundo as teorias da origem familial, as relaes endogmicas,

    responsveis pela expanso do ncleo familiar, teriam ampliado o poder do lder patriarca

    ou matriarca dando origem s primeiras reas de ocupao que, aglomerando-se umas s

    outras, originaram os primeiros povoamentos e, por conseguinte, as primeiras experincias de

    organizao social.

    As teorias da origem violenta do Estado partem da premissa de que as guerras de

    conquista forjaram toda a evoluo da humanidade e, como no poderia ser diferente, esto no

    cerne da criao e consolidao das primeiras formas de Estado. Nos estgios iniciais da

    civilizao os vencedores costumavam sacrificar os povos vencidos em rituais

    antropofgicos. Com o passar do tempo, descobriram que ao invs de sacrific-los, poderiam

    escraviz-los. Assim, os povos vencedores passaram a explorar economicamente os povos

    vencidos em benefcio prprio, dando origem a vrios Estados.

    A terceira grande corrente epistemolgica corresponde s teorias contratuais, segundo

    as quais, o Estado surgiu de um acordo de vontades entre os membros da sociedade, atravs

    do estabelecimento de um contrato subjetivo.

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    A idia da existncia de um contrato social antiga e remonta aos pensadores da Grcia

    antiga. , porm, com Rousseau e Hobbes que tal concepo ir atingir o seu pice,

    constituindo a base da construo do Estado moderno. Para Rousseau, o Estado est a servio

    do cidado, ou da volont gnrale resulta do livre acordo entre os membros da sociedade.

    Por esse contrato, cada indivduo decide ceder parte de sua autonomia em prol do bem

    comum. , por assim dizer, do livre consentimento dos cidados que surge o Estado. Este

    nada mais do que mero instrumento de promoo da liberdade e da igualdade entre os

    homens.

    Em contrapartida, Hobbes afirma que o contrato social no resultou da aquiescncia dos

    indivduos, mas da necessidade premente de controle e organizao social. A tese hobbesiana

    parte do princpio de que o homem, ao viver em estado de natureza, precisava criar condies

    mnimas para o convvio em sociedade, j que este mesmo homem originariamente egosta e

    competitivo Homo homine lupus . Dito em outras palavras, o contrato social, pelo qual os

    cidados cedem ao Leviat (o Estado, deus mortal) a Soberania antes uma contingncia que

    uma livre eleio. Se para Rousseau a Soberania reside no povo, para Hobbes ela o prprio

    Leviat, absoluto e soberano.

    Segundo a teoria da formao natural, o Estado teria surgido da prpria evoluo dacivilizao, a partir do momento em que o homem abandonou o nomadismo e se estabeleceu

    definitivamente em dado territrio. As novas atividades resultantes da fixao do homem na

    terra teriam criadoper si as condies para o surgimento do Estado. Azambuja (1995) parece

    compartilhar da teoria da formao natural ao afirmar que o Estado surge quando os homens

    atingem o estgio de civilizao, fato que ocorre com a transformao das sociedades

    nmades em sociedades sedentrias.

    A teoria da formao histrica, por sua vez, aponta trs modos bsicos de formao dos

    Estados, quais sejam: a) formao originria quando um Estado surge sem derivar de outro

    preexistente; b) formao secundria esta decorre da unio de vrios Estados ou da diviso

    de um Estado anterior e; c) formao derivada quando foras exteriores atuam na

    constituio de um novo Estado.

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    19

    Por fim, h que se mencionar a teoria da formao jurdica. Esta teoria dicotmica,

    uma vez que os doutrinadores se dividem entre aqueles que identificam o nascimento de um

    Estado a partir do momento em que o mesmo dotado de constituio, e aqueles que

    acreditam ter o Estado o seu nascimento no momento em que recebe o reconhecimento da

    comunidade internacional. Contudo, essa uma questo menor, j que tal divergncia no

    afasta uma corrente da outra, posto que ambas identificam o surgimento do Estado sob o

    aspecto jurdico.

    O crivo da histria nos mostra que as concepes de Estado mudaram bastante ao longo

    dos sculos, atendendo aos imperativos sociais de cada poca. Na antiguidade, o Estado

    forjado dentro da religio e vice-versa. Prova disto a formao de inmeros Estados

    teocrticos, a exemplo do Egito e do Estado hebreu. recorrente nesse perodo, a divinizao

    da pessoa do monarca. Neste perodo ele prprio era a personificao do Estado, pois era

    dotado de prerrogativas temporais e espirituais, tornando-se o representante direto de Deus na

    terra, quando no o prprio Deus. Neste tempo histrico, os Estados eram, via de regra,

    divididos em castas e a mobilidade social era praticamente inexistente. O Estado era, antes de

    tudo, um meio de conteno das tenses sociais e visava manuteno dostatus quo.

    , contudo, napolis grega e na civitas romana onde se encontram os primeiros ensaiosde organizao scio-estatal que serviro de modelo para os Estados ocidentais das eras

    seguintes. As cidades-estado gregas, as quais constituam micro repblicas, regiam-se sob o

    princpio da democracia e da cidadania, muito embora grande parte da populao vivesse a

    margem da vida poltica da polis. J as civitas, centro poltico do Imprio Romano,

    forneceram-nos instituies scio-jurdicas ainda latentes na sociedade contempornea. O

    direito romano e a prpria noo de repblica res publica ou coisa pblica so

    exemplos desse legado.

    Com a desagregao do Imprio Romano, o direito e o Estado passam por um longo

    perodo de retrao. A insegurana e a instabilidade social, ocasionadas pelas invases dos

    povos germanos, ensejam um retorno forado a formas genricas de aglomerao tribal, do

    qual os feudos so o maior expoente.

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    Neste perodo, nominado Idade Mdia, a igreja romana exerce a proeminncia poltica

    no mundo ocidental, atravs da teoria da investidura divina e da indivisibilidade dos poderes

    espiritual e temporal. Eram os papas quem coroavam e destituam os reis, declaravam guerra,

    selavam a paz e extinguiam ou criavam reinos, segundo o alvitre e a convenincia poltica de

    cada um. Vive-se, ento, a era da personificao do Estado na pessoa do soberano, dentre os

    quais, o chefe da igreja era o sumo sacerdote e rbitro inconteste das disputas polticas.

    No obstante, com o advento do absolutismo na Europa continental, este poder

    aparentemente inabalvel, passa a ser contestado. Inmeros pensadores, dos quais Nicolau

    Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes, so os mais clebres expoentes, questionaram a

    subordinao do Estado Igreja e advogaram em favor da soberania estatal atravs de seus

    escritos. O iderio absolutista que pode ser sintetizado na clebre frase atribuda a Luis

    XIV: o Estado sou eu foi fundamental no processo de secularizao da vida poltica na

    Europa, uma vez que se contrapunha ao poder da Igreja.

    Ainda a propsito do absolutismo, vale mencionar a importncia do pensamento

    maquiavelista para sua legitimao e justificao. A teoria de Maquiavel parte de uma viso

    pessimista do ser humano, na qual todos os homens so maus por natureza. Dos homens, em

    realidade, pode-se dizer genericamente que eles so ingratos, volveis, fementidos edissimulados, fugidios quando h perigo, e cobiosos (MAQUIAVEL, 2007, p. 80).

    Em sua filosofia finalstica, Maquiavel prega que, se preciso for, o soberano deve-se

    utilizar de meios moralmente reprovveis para obter os resultados polticos desejados. Sua

    concepo vulgarizou-se como a teoria dos fins justificam os meios. O referido autor

    explica que:

    [...] a experincia nos faz ver que, nestes nossos tempos, os prncipes que mais sedestacaram pouco se preocuparam em honrar as suas promessas; que, alm disso,eles souberam, com astcia, ludibriar a opinio pblica; e que, por fim, aindalograram vantagens sobre aqueles que basearam as suas condutas na lealdade(MAQUIAVEL, 2007, p. 84).

    E prossegue afirmando

    Assim, devemos saber que h dois modos de combater: um, com as leis; o outro,com a fora. O primeiro modo prprio do homem; o segundo, dos animais. Porm,como o primeiro muitas vezes mostra-se insuficiente, impem-se um recurso aosegundo. Por conseguinte, a um prncipe necessrio valer-se dos seus atributos deanimal e de homem (MAQUIAVEL, 2007, p. 84).

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    Para Maquiavel a poltica essencialmente exerccio de poder que, s vezes, ocorre por

    meio da fora. Neste sentido afirma que o prncipe deve fazer por onde alcanar e sustentar o

    poder: os meios sero sempre julgados honrosos e por todos elogiados [...] (MAQUIAVEL,

    2007, p. 87). Seu pensamento crivado de idiossincrasias sustenta a personificao do

    soberano, este, depositrio da soberania estatal.

    Em sntese, no se pode dizer que sua filosofia poltica seja imoral, mas sim amoral.

    Uma teoria finalstica que tem como princpio basilar o divrcio entre a poltica e a moral.

    Neste universo gravita a obra de Maquiavel, sempre citada e criticada por inmeros

    pensadores ao longo dos ltimos quinhentos anos.

    A superao do Estado absolutista ocorre graas a um conjunto de modificaes

    polticas, econmicas e sociais nominado liberalismo que nasce e consolida-se ao longo

    dos sculos XVII e XVIII. Com base neste novo paradigma funda-se o chamado Estado

    Moderno, o qual tem como uma de suas principais caractersticas a supremacia da soberania

    estatal em contraposio ao poder desptico e ilimitado dos reis.

    A reao antiabsolutista desencadeada pelo liberalismo desestabilizou o ancien

    rgime5, deixando marcas profundas na sociedade ocidental. A doutrina liberal forjada no

    pensamento dos contratualistas John Lock, Rousseau e Montesquieu tem na defesa

    incondicional das liberdades individuais seu principal corolrio. Este princpio fundamental

    em muito contribuiu para as Revolues Liberais como as Revolues Francesa e

    Americana , delineando as bases que moldaram a moderna democracia. Ademais, o

    liberalismo econmico dos pensadores clssicos, a exemplo de Adam Smith e David Ricardo,

    bem como o advento da Revoluo Industrial, contriburam para a extino definitiva do

    regime monrquico absolutista europeu.

    No obstante, com a vitria do liberalismo sobre o absolutismo observou-se, no incio

    do sculo XX, o surgimento de vrios projetos alternativos e antagnicos ao modelo liberal,

    numa aspiral dialtica que levou a novas formas de organizao estatal, a exemplo do

    socialismo. Enquanto o termo liberal remete-nos a idias como individualismo e livre

    iniciativa, o socialismo que vem da raiz social tem como inspirao a construo do bem

    comum de maneira coletiva, visando mitigar as desigualdades existentes no mundo real. Estas

    desigualdades, por sua vez, no so levadas em conta na filosofia liberal, a qual coloca todos

    5 Antigo regime (traduo livre)

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    os homens em p de igualdade no plano formal. Vale salientar que, ao contrrio do Estado

    comunista-marxista, o Estado socialista, no necessariamente anti-capitalista. O Estado

    social toma pra si a incumbncia de atender s presses sociais, a prestar servios de toda

    ordem, a interferir na realidade social e econmica a fim de distribuir ou atingir a justia

    social (FIGUEIREDO, 2001, p. 77). O Estado socialista objetiva a promoo do bem estar

    social, sem, contudo, comprometer as liberdades individuais ou contestar as bases do sistema

    econmico liberal.

    O modelo de Estado comunista, por sua vez, prope uma soluo radical. Este o

    cerne do totalitarismo, o qual se apresenta sob as mais variadas formas, tais como o fascismo,

    o nazismo e o comunismo. Ainda que apresentem orientaes poltico-ideolgicas distintas, o

    eixo que une esses modelos tericos a elevao do Estado condio de protagonista na

    vida poltica, sendo o individuo absorvido por ele. luz de tais concepes, o cidado deixa

    de ser servido pelo Estado, passando a servi-lo. Tudo pelo Estado, atravs do Estado e para o

    Estado. Sobre isso, Figueiredo designa que Estado totalitrio toda e qualquer organizao

    de poder em que o autoritarismo e a centralizao esto fortemente presentes6.

    Durante o sculo XXo mundo assistiu a um grande embate ideolgico, travado entre

    duas propostas de Estado opostas e excludentes. De um lado, o Estado liberal democrtico-burgus, representado pelos Estados Unidos, e de outro, o modelo estatal comunista-marxista,

    capitaneado pela extinta Unio Sovitica. Vale ressaltar que, alm das inconciliveis

    divergncias ideolgicas, ambos os Estados apresentavam propostas diferenciadas do ponto

    de vista do papel do Estado na economia. O primeiro, propugnando o Estado gendarme, o

    segundo, pregando a interveno do Estado na economia, atravs de um projeto

    desenvolvimentista que tinha como eixo o intervencionismo estatal.

    Com a expanso da globalizao e a desagregao da Unio Sovitica, fato que ps

    fim a dicotomia Estado liberal versus Estado comunista, instaurou-se um novo momento

    histrico na evoluo do Estado. A vitria da ideologia democrtica e do modelo capitalista

    de produo geraram uma onda de otimismo na sociedade mundial que levou muitos a

    acreditarem na configurao de um mundo multipolar, no fim definitivo dos grandes embates

    ideolgicos e no nascimento de uma era de paz duradoura e prosperidade mundial.

    6 Ibid., p, 69.

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    A elevao dos Estados Unidos a categoria de super-potncia mundial e o avano

    tecnolgico advindo da revoluo telemtica contriburam para a mundializao da economia

    e das finanas mundiais. Neste contexto de reformulao das estruturas de produo e de

    acumulao de riquezas, forjou-se o neoliberalismo, o qual fora consagrado pelo Consenso de

    Washington. A partir da a filosofia neoliberal se expandiu para quase todos os cantos do

    planeta, levando a globalizao a um estgio de avano e desenvolvimento inditos.

    Este turbilho de transformaes desatado com a queda do muro de Berlim teve como

    conseqncia inevitvel o enfraquecimento do poder do Estado. A predominncia da

    economia sobre a poltica, o crescimento vertiginoso das grandes corporaes multinacionais,

    o avano do crime organizado e de prticas delitivas em nvel mundial, as recentes correntes

    migratrias e o surgimento de novas formas de organizao poltica e social constituem

    alguns dos grandes desafios do Estado moderno, demandando, portanto, uma releitura do

    conceito clssico de soberania estatal. Neste sentido, o capitulo seguinte discute a Soberania

    sob dois aspectos: o da globalizao e o da diplomacia.

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    2. A SOBERANIA NA ATUALIDADE

    2.1Soberania e Globalizao

    Neste captulo discutiremos de que forma e em que profundidade as mudanas do

    mundo ps-moderno, introduzidas pela globalizao, tem afetado ou modificado a concepo

    clssica de soberania do Estado-nao. Para tanto, vejamos o que diz Mller (2009, p.1)

    acerca do tema:

    A questo da soberania hoje inseparvel de uma anlise das transformaesprofundas que a figura do Estado e a da soberania sofreram nos ltimos trinta anos,principalmente com a mundializao da produo capitalista, com o surgimento das

    empresas transnacionais, da internacionalizao dos circuitos financeiros e o esboode formao de uma sociedade civil transnacional, que provocam uma eroso dopoder pblico e a fragmentao das atribuies da soberania estatal, quando no oseu desmantelamento, freqentemente executado, alis, por um poder pblicoobediente s injunes da concorrncia capitalista, da diviso internacional dotrabalho e do monitoramento das agncias financiadoras internacionais.

    Diante dos fatos contemporneos e da anlise de Mller (2009) acerca da evoluo do

    sistema capitalista de produo, com a internacionalizao dos circuitos financeiros e a

    formao de uma sociedade civil transnacional, percebe-se a descentralizao e a

    instabilidade do Estado, devido quebra das hierarquias e fundamentos que o caracterizavam.

    Esta tendncia descentralizadora emerge num contexto de continua globalizao por que

    passa a sociedade hodierna. Para Bauman (1999, p.67), o significado mais profundo

    transmitido pela idia da globalizao o do carter indeterminado, indisciplinado e de

    autopropulso dos assuntos mundiais; a ausncia de um centro, de um painel de controle, de

    uma comisso diretora, de um gabinete administrativo.

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    Pode-se definir a globalizao como um conjunto de estruturas e processos

    econmicos e sociais, tecnolgicos, polticos e culturais suscitados pela evoluo da

    produo, do consumo e do comrcio de produtos e de bens que esto base da economia

    poltica internacional cujo movimento tem como essncia a tentativa de dissoluo dos

    espaos nacionais (RIBEIRO, 2008, p. 40, 41). Sendo assim, a globalizao constitui um

    elemento de contestao e relativizao da soberania dos Estados.

    A principal face, mas no a nica, da globalizao a economia capitalista, que tem na

    expanso dos mercados financeiros seu principal veculo de disseminao. Este fator leva a

    uma situao de preeminncia da economia em relao poltica, resultando em menor

    presena do Estado nas questes de ordem econmica, mesmo quando essas possam ter

    reflexos na esfera social. Por esta razo, Bauman (1999, p. 63) afirma que o capital [...]move-se rpido; rpido o bastante para se manter permanentemente um passo adiante de

    qualquer Estado [...] que possa tentar conter e redirecionar suas viagens.

    A perda da autonomia estatal no tocante conduo de polticas econmicas

    autnomas sintomtica do aspecto extraterritorial do capital (financeiro, comercial e

    industrial), fato que resulta na eroso da prpria soberania do Estado. Neste sentido, Ribeiro

    (2008, p. 51) declara que mesmo quando no plenamente aceita como tal, a globalizao

    transformou certamente o papel do Estado na gesto econmica nacional, vez que a economialiberalizada est acompanhada de uma eroso, freqentemente desejada, aceita e organizada

    pelo Estado da soberania poltica. Ainda segundo a autora, a falncia do Estado conduz [...]

    a uma apropriao parcial da sua soberania pelas organizaes internacionais [...] a exemplo

    do Banco Mundial que refora no seu discurso a primazia dada ao mercado7. Logo, observa-

    se que a globalizao impe um grande desafio a primazia do Estado, uma vez que sua

    expanso implica na relativizao do conceito de soberania.

    Outro grande desafio do Estado contemporneo diz respeito ao seu poder de polcia. Aporosidade das fronteiras resultado do avano tecnolgico dos meios de transporte e

    comunicao propicia a disseminao de prticas delitivas em escala mundial. Por esta

    razo, a conteno do crime organizado transnacional nas suas mais variadas formas: trfico

    de drogas, trfico de rgos, trfico de pessoas, prostituio e o contrabando de armas, entre

    outros. Tais fatos desafiam a manuteno do Estado de direito, a exemplo do que ocorre na

    Colmbia no combate ao trfico de drogas e na Itlia no enfrentamento das mfias.

    7 Ibid., p, 48.

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    No obstante, Arnaud e Capeller (2005, p. 229) acreditam no fortalecimento do poder

    do Estado frente s ameaas e desafios impostos pelo crime organizado. Afirmam eles que os

    efeitos perversos da globalizao, como o caso da criminalidade transnacional, acabam por

    determinar novas posies do Estado. Este, ao invs de enfraquecer-se [...] parece aumentar

    sua fora quando confrontado ao ataque de sua soberania e sua autodeterminao.

    Se por um lado o crime organizado representa uma ameaa ao Estado de direito, ele

    vem sendo constantemente confrontado por meio de aes conjuntas dos Estados. Neste

    sentido, diversos pases e grupos de pases, a exemplo dos Estados Unidos e da Unio

    Europia, vem estabelecendo estratgias supranacionais de controle e monitoramento de

    atividades delitivas no intuito de conter o avano do crime organizado transnacional. Apesar

    dos fluxos e refluxos, a cooperao entre Espanha e Frana no combate ao grupo ETA,

    constitui exemplo de exitosa cooperao internacional em nvel institucional, uma vez que

    envolve no somente os respectivos governos, mas tambm as polcias e agncias de

    inteligncia dos dois pases.

    As recentes correntes migratrias sentido sul-norte fruto do agravamento do

    processo de empobrecimento das naes de menor desenvolvimento relativo tambm tem

    contribudo para o questionamento da autonomia do Estado no tocante ao controle de suasfronteiras. Neste contexto a globalizao revela seu carter falacioso e contraditrio, pois, ao

    contrrio do que pensam alguns, o avano da globalizao tem contribudo para o aumento da

    concentrao de riqueza e o agravamento das desigualdades entre ricos e pobres. Neste

    cenrio de pobreza e excluso, milhares de pessoas tentam migrar, diariamente, para pases

    onde acreditam dispor de melhores condies de vida. Entretanto, vale salientar que reduzir o

    fenmeno migratrio ao aspecto puramente econmico seria um erro grave e inconsistente,

    haja vista que a imigrao possui diversos elementos causadores, os quais no podem serreduzidos exclusivamente a fatores de ordem econmica.

    Os processos de integrao regional desencadeados na segunda metade do sculo XX

    constituem verdadeiro divisor de guas para a Teoria Geral do Estado, medida que impem

    maior ou menor relativizao do conceito de Soberania, conforme o modelo de integrao

    adotado. Todo processo de integrao, seja ela econmica e/ou poltica, implica em cesso de

    parte da soberania dos Estados membros em prol do alcance dos objetivos traados pelo

    bloco. mister distinguir dois modelos estruturais bsicos de integrao regional, quais

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    sejam: a integrao regional supranacional, e a integrao regional interestatal ou

    intergovernamental. No primeiro caso:

    A noo de supranacionalidade, do ponto de vista prtico, vincula-se a transfernciade parcelas de soberania por parte dos Estados-Membros em benefcio de umorganismo que, ao funcionar, avoca-se desse poder, que opera por cima das unidadesque o compe, na qualidade de titular absoluto (KERBER apud SANTOS, 2008, p.51).

    No segundo caso:

    Atravs do ponto de vista da organizao intergovernamental, os Estados envolvidosem uma integrao, embora desprenda de esforos que beneficiem o bloco como umtodo, prioriza a resoluo dos interesses internos [...] Percebe-se, portanto, que emuma viso intergovernamental de integrao prioriza-se a preservao da soberanianacional... (SANTOS, 2008, p. 52).

    Destarte, a diferena fundamental entre o modelo de integrao regional supranacional

    e o modelo interestatal ou intergovernamental o grau de autonomia conferido ao organismo

    internacional representativo, o que implica na maior ou menor cesso de parcelas da

    Soberania estatal para o organismo regional.

    O MERCOSUL um exemplo de estrutura intergovernamental de alcance regional,

    vis--vis seu baixo nvel de institucionalizao. A Unio Europia, por sua vez, optou pelo

    modelo supranacional de integrao, levado a termo pelo fortalecimento dos seus rgos

    constitutivos, tais como o Parlamento Europeu e o Banco Central Europeu. Este, responsvel

    pela conduo da poltica monetria de todo o bloco. A respeito da constituio de blocos

    econmicos, Figueiredo (2001, p. 33) afirma que o desenrolar dos mercados comuns em todo

    o mundo nos leva a crer em uma nova concepo de Estado, onde o carter nacionalista ceda

    espao, ou mesmo seja mitigado, cooperao internacional.

    Consoante Font e Rufi (2006, apud RIBEIRO, 2008, p. 52) o Estado tende a ceder

    parte de sua soberania a dois tipos de instncias: as instncias superiores constitudas por

    organizaes paraestatais, transnacionais e demais agentes de globalizao e as instncias

    inferiores constitudas por regies e cidades. [...] a dupla cesso de soberania [...] ocorre

    porque o novo sistema mundial outorga aos Estados menor capacidade de intermediao do

    que em pocas anteriores, apesar do Estado continuar sendo imprescindvel, em muitos

    sentidos, inclusive para a prpria globalizao. Assim, Ribeiro (2008, p. 52, 53) afirma que:

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    Diante da inegvel realidade contempornea, constata-se de fato que a expanso dosprocessos de globalizao e a interdependncia crescente acabam erodindo aindamais as fronteiras entre o que domstico e o que internacional, tornando cada vezmais difusas as discusses acerca da validade e da extenso do princpio desoberania nacional.

    Santos (2008, p.54), por sua vez, advoga a plena compatibilidade entre o conceito de

    soberania e integrao ao afirmar que

    O fenmeno de globalizao tem se mostrado de forma a desconsiderar as barreirase os limites impostos pela soberania, sobretudo no que concerne ao avano deinovaes tecnolgicas e econmicas. Entretanto, no devido a essadesconsiderao da soberania por parte da globalizao que seja possvel afirmar aincompatibilidade entre a integrao e a soberania.

    Para Locateli (apud SANTOS, 2008, p 55), preciso rediscutir o conceito deSoberania estatal, uma vez que

    a viso do conceito de soberania como um dogma poltico intocvel estdescaracterizada devido a sua interao com a necessidade de adotar normas decarter internacional em favor do benefcio da nao, pressuposto que rejeita ocarter absoluto da soberania, sem que estas modificaes sejam traumticas ouesvaziem seu contedo...

    Cabe ainda ressaltar o papel de destaque exercido pela defesa dos direitos humanos na

    discusso sobre a inalienabilidade da soberania estatal. Santos (2008) afirma que a tendncia

    atual de integrao dos direitos humanos na ordem internacional. Segundo o referido autor,

    cada vez mais forte o discurso em torno da possibilidade de que organismos, como a ONU,

    interfiram no mbito do Estado para a resoluo de conflitos ou problemas dessa natureza 8.

    A Declarao Universal dos Direitos do Homem e as dezenas de convenes e acordos

    internacionais em defesa do tema so uma prova inconteste do forte apelo exercido pela

    defesa dos direitos humanos junto sociedade civil mundial. Deste modo, torna-se imperativo

    aos Estados o respeito s liberdades fundamentais e a integridade fsica e moral de seus

    cidados.

    8 Ibid., p, 26.

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    Destarte, os Estados que se opuserem ao princpio da prevalncia dos direitos

    humanos tendem a sofrer com o isolamento da comunidade internacional, alm de arcar com

    sanes diplomticas e embargos comerciais9. Tais sanes tem o efeito prtico de limitar ou

    cercear a soberania do Estado dito infrator. Entretanto, preciso esclarecer que a deciso de

    punir ou no determinado Estado menos humanitria que poltica, posto que a soberania,

    mais alm de um princpio formal, tambm um campo poltico de conflitualidades e

    negociaes entre sociedades do Norte e do Sul, entre Estados mais poderosos e perifricos do

    sistema internacional (RIBEIRO, 2008, p. 47). Esta constatao revela que o princpio da

    igualdade entre os Estados positivado pelo direito internacional no se aplica ipsis litteris

    na prtica da conduta dos Estados. Igualmente, sanes a possveis violadores dos direitos

    humanos no so isentas de interferncia poltica.Velasco e Cruz (2004, apud RIBEIRO, 2008, p. 50) prope um modelo que engloba

    trs estgios distintos de soberania. No primeiro deles, chamado pelo autor de ordem

    internacional clssica, os Estados soberanos prevaleciam com total poder de mando e

    liberdade de ao em detrimento dos direitos humanos. No segundo estgio, a integridade da

    pessoa humana ganha relevo em relao ao poder outrora ilimitado dos Estados. A partir

    desse momento, a condio humana j no mais pode ser suprimida em nome da raison dtat

    (razo de Estado). No ltimo estgio, hipottico, os princpios normativos que garantizam osdireitos humanos sero universalmente compartilhados pelos membros da comunidade

    internacional.

    O modelo explicativo de Velasco e Cruz, ainda que no se possa comprovar de modo

    exato no campo prtico, possui o mrito de elucidar a evoluo da defesa dos direitos

    humanos ao longo do tempo, muito embora este processo no seja linear, porquanto apresente

    avanos e retrocessos, os quais so impulsionados pela participao ativa da opinio pblica

    mundial e contidos, por vezes, por fatores de ordem interna dos Estados.Mediante tais reflexes, percebe-se a necessidade de rediscutir e reformular o conceito

    de soberania luz dos desafios e da realidade do mundo contemporneo, uma vez que a

    concepo de Estado-soberano, enquanto ente inflexvel e onipotente, j no mais

    corresponde realidade scio-poltica dos tempos atuais.

    9 Cuba, Coria do Norte e Mianmar so exemplos de Estados que sofrem o isolamento da comunidadeinternacional devido aos constantes desrespeitos aos Direitos Humanos. Tais aes, contudo, no esto isentas dequestes de ordem poltica e estratgica, sobretudo no que concerne a Cuba, pas que desde 1959 mantmrelaes conflituosas com os Estados Unidos da Amrica.

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    Neste cenrio de crescente interdependncia e de reconfigurao das Relaes

    Internacionais, torna-se cada vez mais complexo conciliar interesses e encontrar solues para

    as disputas entre os Estados. Destarte, o exerccio da diplomacia de grande importncia,

    medida que se torna ferramenta essencial para a convivncia entre os membros da

    comunidade internacional.

    Por esta razo, estudaremos a seguir como se d a relao entre Soberania e

    diplomacia, a partir da anlise do surgimento da diplomacia e da evoluo de seus institutos

    ao longo do tempo.

    2.2Soberania e Diplomacia

    O reconhecimento internacional de valores universais relacionados pessoa humana,

    tais como os direitos humanos e as liberdades individuais, alm da consolidao de

    parmetros reguladores das relaes interestatais, a exemplo dos princpios da no

    interveno, da no ingerncia e da auto-determinao dos povos, devem-se a um longo e

    rduo processo diplomtico, o qual fora exercitado continuamente ao longo de dcadas.

    Tais princpios, gestados a partir do final do sculo XVIII ganham impulso no Ps-

    Segunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito, a diplomacia passa a exercer papel de

    destaque nas relaes internacionais, medida que os pases receosos da ecloso de um

    novo conflito mundial, desta vez de propores apocalpticas, haja vista o destrutivo potencial

    nuclear demonstrado pelos Estados Unidos no lanamento das bombas atmicas sobre

    Hiroshima e Nagasaki substituem a lgica belicista por esforos diplomticos, no sentido de

    arquitetar uma sociedade internacional menos anrquica, tendo como princpio basilar o

    Direito Internacional.

    Por esta razo, pode-se afirmar que a diplomacia implica, em certa medida, elemento

    de flexibilizao da Soberania, uma vez que as diversas convenes e acordos celebrados,

    tanto em nvel bilateral quanto multilateral, vinculavam os Estados contratantes a obrigaes

    internacionais pacta sunt servanda as quais se constituem, grosso modo, em limitao do

    poder discricionrio dos Estados signatrios.

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    Situados esses aspectos, convm analisar o percurso percorrido pela diplomacia para

    compreender como esta arte desenvolveu-se e consolidou-se ao longo dos sculos, atingindo

    o seu estgio atual.

    Segundo Biancheri (2005, p.17), a diplomacia inconstante e difcil de definir na

    essncia [...]. Ao contrrio do que possa parecer, o autor no afirma a impossibilidade de

    apreender cognitivamente a diplomacia, mas sim a sua dificuldade de delimitao, dada a

    abrangncia e a multiplicidade de conotaes que o termo encerra. Contudo, o prprio

    Biancheri aponta que diplomacia a forma como um dado pas entre vrias opes

    possveis procede a suas escolhas nas relaes internacionais e assevera que o objetivo da

    diplomacia a busca do acordo. Por sua vez, para o Houaiss (2008), a diplomacia consiste na

    conduo dos negcios estrangeiros de uma nao, seja diretamente por seus governantes,seja por seus representantes acreditados em outro pas ou rgo internacional, ou, cincia ou

    arte de negociar, visando defesa dos direitos e interesses de um pas perante governos

    estrangeiros.

    O termo embaixador do latim ambactiare designa o cargo de mais alta distino

    dentro da hierarquia diplomtica, sendo superado apenas pelo de chanceler, que equivale a

    ministro das Relaes Exteriores. Embaixada, palavra de mesma raiz etimolgica, designa

    tanto o local de residncia e trabalho do embaixador, quanto a comitiva que o acompanha emmisso. Os primeiros registros de atividades diplomticas substanciais e sistemticas ocorrem

    na Grcia antiga. Durante a Guerra do Peloponeso, que ops os persas aos atenieneses e

    espartanos, houve uma intensa atividade diplomtica que culminou com a aliana militar

    celebrada entre a Liga do Peloponeso, sob a liderana de Esparta e a Liga de Delos, tendo a

    frente Atenas.

    A partir do sculo XIV a diplomacia vive um perodo de grande florescimento com as

    atividades das repblicas italianas no mediterrneo. No sculo XV as embaixadas

    extraordinrias so substitudas por misses residentes10 e no centenrio seguinte a atividade

    diplomtica j se encontrava largamente difundida por toda a Europa. Entretanto, atribui-se ao

    cardeal Richelieu, a primeira grande iniciativa de sistematizao da atividade diplomtica

    dentro de uma estrutura burocrtica centralizada. Isto ocorre com a inaugurao do Ministrio

    10

    Francesco Sforza, duque de Milo, foi o primeiro chefe de misso diplomtica permanente, com sede emGnova no ano de 1455.

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    das Relaes Exteriores da Frana, no ano de 1626, considerado por muitos o pioneiro dos

    ministrios nos moldes modernos.

    As negociaes da Paz de Westeflia podem ser consideradas uma espcie de prviadas conferncias internacionais da atualidade. Para Biancheri (2005), a Paz de Westeflia

    marca o incio da diplomacia em sentido prprio. As funes do diplomata consistiam em

    negociar, informar, representar e proteger os compatriotas, num contexto marcado pelo

    equilbrio da balana de poder na Europa continental, formando o que se convencionou

    chamar de diplomacia clssica.

    A bem da verdade, ao longo de pouco mais de trs sculos, as atribuies bsicas do

    diplomata permaneceram as mesmas. Representar o seu pas, negociar em nome do seu

    governo, manter o Estado emitente atualizado acerca dos acontecimentos e conjuntura do pas

    acreditado e zelar pelo bem estar dos seus compatriotas, continuam sendo as atribuies

    dirias do diplomata. Pode-se dizer que as maiores mudanas ocorreram no ambiente de

    atuao, devido grande quantidade de objetos possveis, que vo desde negociaes polticas

    clssicas, at temas como imigrao ilegal, narcotrfico e proteo ambiental. Neste

    sentido, o diplomata hodierno v-se obrigado a desenvolver mltiplas competncias e

    demonstrar alta capacidade de adaptao e reciclagem, alm de preservar as caractersticastradicionais do ofcio, tais como o cosmopolitismo e o ecletismo intelectual.

    Desde os primrdios, a atividade diplomtica caracterizou-se pelo formalismo e

    seletividade de seus quadros, dando origem a uma classe homognea, corporativa e de difcil

    penetrao por pessoas de fora do ciclo. Antes da introduo dos critrios de isonomia e

    meritocracia to caros burocracia contempornea exigia-se, para o exerccio da carreira

    diplomtica, que o candidato fosse oriundo de classes sociais mais elevadas e gozasse de alto

    poder aquisitivo, condio sine qua non para o ingresso na carreira, disto resulta o carter

    altamente aristocrtico da profisso. Isto era vlido no s no Brasil, mas em quase todo o

    mundo.

    Atualmente, a maioria dos pases realiza o recrutamento de seus quadros atravs de

    concursos pblicos e outras formas de seleo. No Brasil, o Instituto Rio Branco o rgo

    responsvel pelo recrutamento e aperfeioamento do corpo diplomtico brasileiro, rgo de

    excelncia internacionalmente reconhecida, graas ao virtuosismo intelectual e slidaformao de seus recursos humanos.

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    Com o fim da Segunda Grande Guerra, a vida internacional passou por um longo

    processo de multilateralizao que se iniciou com a constituio das Naes Unidas, a que se

    seguiu o surgimento de inmeras agncias internacionais reguladoras as chamadas agncias

    ou organismos da famlia da ONU . No obstante, a tendncia de multilateralizar as relaes

    internacionais sofreu um longo interstcio, devido ao antagonismo que ops a Unio Sovitica

    aos Estados Unidos. Com a quebra da bipolaridade, a sociedade internacional volta a se

    configurar de forma multilateral, malgrado o unilateralismo protagonizado pelos Estados

    Unidos na defesa de seus interesses. A consequncia prtica do avano do multilateralismo a

    crescente demanda de recursos humanos por que passam a maioria dos pases membros da

    comunidade internacional.

    A crescente institucionalizao de todas as reas da vida internacional resultou no

    surgimento de um exrcito de profissionais que, de alguma maneira fazem diplomacia, ainda

    que no sejam diplomatas de formao. Assim, se identifica, atualmente, no mundo

    diplomtico dos organismos internacionais, dois tipos de profissionais em atuao. De um

    lado, o diplomata de carreira diplomata clssico aquele profissional generalista que atua,

    notadamente, em temas polticos e nas tomadas de deciso. E de outro, o especialista:

    militares, tcnicos, burocratas, estudiosos de reconhecido saber, etc., os quais tem atuao

    pontual sob determinadas questes e trabalham formalmente para organismos internacionais

    ou exercem funes ad hoc em temas sobre os quais seu know how requisitado. Assim,

    todo indivduo que participar de uma deciso entre Estados, seja ela sobre aconcesso de canais de televiso, sobre os nveis de emisso de gases nocivos ousobre os destinos da paz ou da guerra no Oriente Mdio, representar os interessesdo seu pas e, portanto, desenvolver atividade diplomtica e, desta forma, no quediz respeito, far poltica externa (BIANCHERI, 2005, p. 126).

    Apesar do catastrofismo de alguns e do excessivo conservadorismo de outros, a

    crescente participao de no-diplomatas na vida poltica internacional no supe o fim da

    carreira de diplomata, ou sequer, sua perda de importncia e prestgio. No complexo e

    conflituoso mundo em que vivemos, a atuao do diplomata ser sempre necessria e

    imprescindvel, prova disso, a importncia que os Estados do a suas respectivas

    chancelarias. Importncia essa, observada no cuidadoso e exigente processo de recrutamento

    de seus quadros.

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    Em contrapartida, a proliferao de temas e objetos possveis atividade diplomtica

    demanda de forma crescente a atuao de especialistas, quer seja na anlise de situaes reais,

    quer seja na prospeco de cenrios futuros, atravs de observaes e proposies tcnicas.

    Portanto, alm do olhar poltico do diplomata, necessita-se atualmente do olhar tcnico-

    administrativo dos funcionrios internacionais, os quais tem como principal atribuio, munir

    os negociadores de dados precisos e confiveis necessrios s tomadas de deciso.

    No mundo contemporneo, marcado por um alto grau de complexidade, a diplomacia

    torna-se ferramenta imprescindvel, j que os conflitos de interesse e as disputas tendem a se

    intensificar em funo da maior interdependncia existente entre os atores da comunidade

    internacional (Estados, Organismos Internacionais e No Governamentais, empresas, etc.). ,

    portanto, neste cenrio de polifonia e instabilidade que a diplomacia exerce seu papel de

    mediao, contribuindo para a construo de um mundo menos instvel e mais inclusivo.

    Na discusso sobre o papel da diplomacia no mundo contemporneo, cabe analisar a

    diplomacia multilateral das Naes Unidas. A ONU organismo criado em 1945 constitui a

    maior experincia de organizao supranacional da histria da humanidade. Concebida como

    instrumento de promoo da paz e da segurana internacional, sua atuao controvertida e

    tem sido alvo de duras crticas, sobretudo durante os primeiros anos deste sculo.

    Em que pesem as crticas dirigidas organizao, os progressos alcanados na esfera

    diplomtica so notrios, vis-a-vis as dezenas de misses de manuteno da paz realizadas ao

    longo de mais de cinco dcadas de existncia. Igualmente no se pode obliterar a importncia

    da ONU para a promoo do multilateralismo e da convivncia pacfica entre os povos. Note-

    se que a referida organizao foi o mecanismo pelo qual os novos Estados-nacionais, surgidos

    das guerras de independncia dos anos 50, 60 e 70, ingressaram na comunidade internacional.

    Ademais, o avano na discusso de inmeros temas da agenda internacional deve-se,

    em grande medida, a atuao engajada da diplomacia multilateral onusiana. Neste sentido,

    podem-se citar como exemplos as conferncias temticas ocorridas a partir da dcada de

    noventa do sculo passado, dentre as quais merecem destaque a II Conferncia das Naes

    Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano conhecida como Rio 92 , a

    Conferncia Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993 e o Protocolo de

    Kioto, assinado em 1997.

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    Se por um lado houve acertos, sobretudo no que diz respeito promoo do

    multilateralismo e do Direito Internacional, vrias foram as ocasies nas quais a diplomacia

    multilateral onusiana mostrou sua fragilidade, a exemplo da omisso da ONU com relao ao

    genocdio de Ruanda, fato que constitui a maior mcula da histria da organizao.

    Recentemente a crtica situao do Oriente Mdio, agravada pela guerra do Afeganisto e pela

    invaso do Iraque, ambas ocasionadas por atitudes unilaterais dos Estados Unidos, gerou

    imenso constrangimento a organizao, uma vez que tais medidas foram tomadas em

    detrimento das suas resolues e contra as admoestaes e apelos de toda a comunidade

    internacional.

    Diante do desprestgio da ONU e do questionamento acerca da sua real capacidade de

    promover e garantir a paz cabe indagar as razes diretas e indiretas de seu aparente fracasso.

    Uma das principais causas diagnosticadas a necessidade de reformulao do organismo,

    para que suas aes gozem de maior legitimidade e eficcia.

    importante perceber que a ONU foi criada num contexto poltico marcado pelo fim

    da II Guerra Mundial e pelo incio da Guerra Fria e que tal contexto reflete-se na estrutura

    organizacional e no modus operandi da organizao. Com a exausto do paradigma bipolar

    capitalista-socialista e o avano da globalizao, tal modelo j no mais reflete a correlao de

    foras no mundo real. Sendo assim, faz-se necessria uma reformulao do organismo, de

    modo a promover uma participao mais ativa e democrtica dos seus membros. A esse

    respeito comenta Amorim que o projeto de reforma [ ] [da ONU] deve [...] buscar um

    equilbrio satisfatrio entre a preservao da essncia do sistema multilateral, conforme os

    preceitos da Carta de So Francisco, e sua adequao a condicionantes novas do mundo

    contemporneo.11 As condicionantes novas a que o ministro se refere seriam os pases

    emergentes, dentre os quais o Brasil.

    A diplomacia brasileira, por sua vez, tem atuado intensamente a fim de impulsionar o

    processo de reforma da organizao e, mais especificamente, do Conselho de Segurana,

    tendo declarado seu interesse em fazer parte do rgo na qualidade de membro permanente.

    Consoante o ministro Celso Amorim, a candidatura brasileira deve-se ao peso poltico,

    econmico e demogrfico do pas e a suas credenciais diplomticas. Tais atributos, na sua

    viso, credenciariam o pas no pleito por um assento permanente num conselho ampliado.

    O conjunto de mudanas scio-polticas percebidas nas Relaes Internacionais, o

    surgimento de novas demandas sociais em escala local e transnacional e a ineficcia das

    11 AMORIM, Celso L. N. Conferncia proferida no IEA em 2 de abril de 1998.

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    polticas pblicas dos governos centrais voltadas para a promoo do bem estar das

    comunidades locais, aliada a forte influncia exercida pela revoluo telemtica, concorrem

    para a reconfigurao interna do Estado e das formas de exerccio da diplomacia. Este novo

    cenrio encerra uma tendncia de descentralizao e democratizao das esferas de poder.

    Destarte, o monoplio poltico dos Estados-centrais passa a ser questionado, abrindo-se

    terreno a experimentaes de toda a ordem.

    Uma destas experimentaes diz respeito a paradiplomacia: o crescente envolvimento

    de governos no-centrais nas Relaes Internacionais, fenmeno polmico que tem se

    intensificado ao longo das ltimas dcadas, fornecendo um novo elemento de anlise do

    Estado e das Relaes Internacionais. Vale ressaltar que tal fenmeno sintomtico do

    processo de reestruturao e redistribuio de competncias por que passa o Estado moderno.A seguir, sistematizaremos alguns conceitos de paradiplomacia luz de alguns autores

    e analisaremos os elementos de cooperao e conflito da paradiplomacia a partir de uma viso

    dialtica, avaliando suas repercusses no Brasil.

    .

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    3. PARADIPLOMACIA

    3.1.Paradiplomacia:definies e elementos conceituais

    O primeiro passo para a compreenso do fenmeno paradiplomtico e suas

    implicaes est na correta apreenso conceitual do termo. Para tanto, tomaremos suas

    definies por parte de alguns autores.

    Consoante Zabala (2000 apud RIBEIRO, 2008, p. 73),

    [...] o neologismo paradiplomacia surgiu nos anos 1980 de forma inocente eemprica no campo da poltica comparada de estados federados e da teoriarenovada do federalismo, especificamente na literatura norte-americana, onde o

    prefixo para designaria alm de algo paralelo, algo associado a uma capacidadeacessria ou subsidiria, referindo-se atuao diplomtica dos governossubnacionais.

    Para Gambini (2007) paradiplomacia consiste na possibilidade de unidades

    subnacionais (estados-membros, provncias, regies, cidades e demais unidades poltico-

    administrativas) formularem e executarem uma poltica externa prpria, independentemente

    do auxlio da Unio.

    Conforme (MOREIRA, SENHORAS & VITTE, s/d, p. 2).

    A paradiplomacia um tema de crescente importncia na rea das relaesinternacionais que se refere aos processos da extroverso de atores subnacionaiscomo governos locais e regionais, empresas, organizaes no governamentais que

    procuram praticar atos e acordos internacionais a fim de se obterem recursos eresolverem problemas especficos de cada rea com maior rapidez e facilidade sem ainterveno dos governos centrais.

    Segundo Mariana de Barros e Silva (2006), consiste em qualquer participao

    supranacional de sujeitos desprovidos de personalidade jurdica internacional, ou seja,

    unidades subnacionais (estados, municpios, etc.). Para ela, o fenmeno paradiplomtico

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    encerra uma relativizao do conceito hobbesiano de soberania dos Estados12, refletindo a

    tendncia do mundo ps-moderno de reinventar novas formas de lidar com as relaes de

    poder. neste contexto que as unidades subnacionais passam a reivindicar maior autonomia

    na conduo de polticas de alcance internacional, bem como participao ativa na formulao

    da poltica externa estatal. o chamado movimento paradiplomtico centrfugo

    (KUGELMAS E BRANCO, 2004).

    Uma das mais difundidas definies deparadiplomacia afirma ser esta

    o envolvimento de governos no centrais nas relaes internacionais, mediante oestabelecimento de contatos permanentes e ad hoc, com entidades pblicas ou

    privadas estrangeiras, com o objetivo de promoo socioeconmico (sic) e cultural,bem como de qualquer outra dimenso exterior nos limites de sua competnciaconstitucional. (PIETRO apud RODRIGUES, 1998, p.443).

    Pode-se ainda encontrar termos genricos referidos, tais como: a) Diplomacia

    Federativa expresso oficialmente utilizada pelo Ministrio das Relaes Exteriores MRE

    ; b) Poltica Externa Federativa. Rodrigues (1998) faz distino entre esses dois termos.

    Segundo ele, a Diplomacia Federativa refletiria a perspectiva do governo federal, ao passo

    que a Poltica Externa Federativa, ilustraria a viso descentralizada dos governos

    subnacionais; c) Micro-diplomacia, termo encontrado na literatura anglo-sax; d)PolticaExterna de Cidades terminologia exclusiva para cidades -; e) Protodiplomacia casoparticular do Quebec13 e f)Diplomacia Empresarial, que no se aplica esfera de atuao

    do poder pblico, muito embora possa exercer influncia sobre ela.

    Alm dos conceitos supracitados, h outros que nos auxiliam na compreenso do

    termo paradiplomacia, a saber: relaes transgovernamentais as que vinculam os atores de

    diferentes estruturas de governos que estabelecem relaes diretamente com representantes deestruturas similares em outros pases com organismos internacionais e com atores no

    governamentais (SALOMN; NUNES, 2007, p. 102); Novos atores ou new voicesque so

    unidades subnacionais ou subestatais (estados, municpios), sociedade civil organizada e

    12Thomas Hobbes tinha uma viso bipolar da sociedade. Concentrava num plo a figura do indivduo (ou da

    infinidade generalizada dos mesmos) e no outro, a do Leviat (Estado). Nem a famlia nem geraes e geraesmarcadas por uma potncia hereditria, enfim nada, era considerado relevante na estrutura de uma organizaosocial que no as duas partes do contrato social (SILVA, 2006).

    13 O Quebec uma regio autnoma, localizada no sudeste do Canad, que possui lngua, costumes e legislaodiversa do restante do pas, constituindo exemplosuis generis de ao paradiplomtica.

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    corporaes multinacionais; Unidades subnacionais - tambm chamadas de unidades

    subestatais, entes federados, agentes de segmentao e unidades constituintes dizem respeito

    s prefeituras, estados-federados, provncias, departamentos, cantes, regies, etc., segundo a

    designao que dada em cada pas; Sovereignty-bound atores condicionados pela

    soberania: governos centrais dos Estados-nacionais e; Sovereignty-free atores livres de

    soberania: unidades subnacionais (ROSENAU apud SALOMN; NUNES, 2007).

    A respeito dos atores livres de soberania Sovereignty-free e dos atores condicionados

    pela soberania Sovereignty-bound, Salomn e Nunes (2007, p. 103) afirmam que os

    atores condicionados pela soberania (basicamente os governos centrais) esto

    obrigados por suas responsabilidades soberanas a prestar ateno s mltiplasquestes includas na agenda global e a distribuir seus recursos entre elas, enquantoos atores livres de soberania, com responsabilidades menos dispersas, tm liberdade

    para buscar objetivos mais limitados e concretos.

    O surgimento de new voices ou novos atores globais, compreende o conceito de

    segmentao. Consoante Soldatos (1990), h dois tipos de segmentao: A segmentao

    territorial ou vertical, que ocorre quando os diversos nveis da administrao (federal,

    estadual, municipal) exercem atividades internacionais e participam do processo deelaborao da poltica externa do Estado. E a segmentao funcional ou horizontal, quando

    dentro de um mesmo nvel administrativo, diversas agncias, secretarias, departamentos ou

    ministrios participam da elaborao e conduo da poltica externa. Os dois tipos de

    segmentao no so competitivos ou excludentes. Pelo contrrio, o que se observa uma

    grande interao entre ambos, compondo uma terceira forma de segmentao - hbrida e

    dinmica com benefcios mtuos para os dois nveis da burocracia.

    Por sua vez, Salomn e Nunes (2007) propem uma diviso segundo as dimenses de

    atuao dos entes paradiplomticos. A primeira, dimenso institucional, compreendendo a

    estrutura paradiplomticaper si. A segunda, dimenso substancial, abrangendo a agenda e

    os instrumentos utilizados. Logo, qualquer administrao, seja ela local ou regional, que se

    proponha a desenvolver aes no plano internacional, deve levar em considerao essas duas

    dimenses no planejamento de suas aes.

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    Tratando sobre os diversos nveis de relaes paradiplomticas, Lessa (apud

    BRANCO, 2007, p. 57, 58) prope uma classificao a partir dos conceitos de

    microdiplomacia regional, microdiplomacia fronteiria, microdiplomacia transregional e

    paradiplomacia global, significando, respectivamente:

    contatos entre unidades no centrais fronteirias em diferentes Estados, contatosentre unidades no centrais sem fronteiras comuns, mas cujos Estados nacionais solimtrofes, e contatos polticos entre unidades pertencentes a Estados distantes, queestabelecem ligaes no apenas entre centros comerciais, industriais e culturais emoutros continentes, mas tambm com os vrios ramos ou agncias de governosnacionais estrangeiros.

    Os exemplos supracitados certamente no exaurem toda a taxonomia relacionada ao

    fenmeno paradiplomtico, servindo apenas para demonstrar a riqueza terminolgica e

    conceitual produzida pela literatura especializada. O esforo de apreenso e a diversidade de

    terminologias adotadas pelos estudiosos demonstram que a paradiplomacia no um

    fenmeno estanque, porquanto apresente vrias nuances, segundo o contexto de cada regio

    ou localidade. O ponto de convergncia entre todas estas formas de atuao paradiplomtica

    a tendncia de descentralizao e compartilhamento de responsabilidades na conduo dapoltica externa dos Estados. Seja qual for a designao dada a estas atividades (relaes

    transgovernamentais, microdiplomacia, paradiplomacia, etc.), todas tem como objetivo

    fundamental a articulao de polticas externas mais participativas que levem em conta as

    peculiaridades e necessidades regionais e locais .

    3.2 Paradiplomacia: uma viso dialtica

    O carter dialtico da paradiplomacia , antes de tudo, reflexo da dinmica do mundo

    contemporneo, causada pelo aprofundamento do processo de globalizao. A quebra da

    barreira espao-tempo e a flexibilizao das fronteiras propiciada pela expanso dos

    mercados, remodelou a forma de interao dos agentes sociais em todas as partes do mundo.

    Neste cenrio, a dicotomia local-global torna-se cada vez mais ilegvel, uma vez que os

    elementos de um e de outro se confundem, formando um todo complexo e homogneo.

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    Exemplo indelvel de tal afirmativa o processo de elaborao da poltica externa dos

    Estados.

    Num contexto onde a nova lgica internacional apresenta-se marcada pela ascensodas localidades [...] (RIBEIRO, 2008, p. 59), em funo da nova configurao do sistema

    internacional, a qual favorece e estimula a participao direta do poder local nas relaes

    internacionais (RODRIGUESb, 2004 apud RIBEIRO, 2008, p. 120), a poltica domstica

    encontra-se de tal modo presente na formulao e conduo da poltica externa que, por vezes

    confunde-se com aquela. Alm disso, a poltica externa, no raras vezes, um meio de

    perseguir objetivos de poltica domstica, atendendo a demandas e presses de grupos

    internos. Por esta razo, Silva (2006, p. 76) declara ser [...] infrutfero debater se a poltica

    domstica que influencia as relaes internacionais, ou vice-versa. A resposta bvia:

    ambas, s vezes. Logo, as perguntas mais pertinentes seriam em que momento e como

    (traduo nossa)14.

    Considerando esta reflexo, percebe-se a correlao de elementos endgenos e

    exgenos nas aes dos Estados na seara internacional. Neste sentido, Brigago (apud

    CEZRIO; ANDRADE, 2005, p. 5) afirma que a dinmica complexa da globalizao aponta

    para o fortalecimento do poder local, que em muitas circunstncias se revela um espao de

    mediao eficaz entre as demandas dos cidados e o carter transnacional.

    Se para o autor a globalizao indica o fortalecimento do poder local e este representa

    um espao privilegiado de mediao, podemos dizer, a partir disso, que se torna vivel uma

    associao direta entre globalizao e paradiplomacia.

    A onda pacifista do mundo ps II Guerra Mundial e o iderio de cooperao entre as

    naes para o progresso da humanidade, expressa na criao da ONU e diversos organismos

    internacionais, formaram o cimento sobre o qual a cooperao internacional se desenvolveu

    em escala global e regional.

    Coube ao continente europeu, devastado pela guerra, o papel de vanguarda, com a

    criao em 1951 do Conselho de Municipalidades e Regies Europias. A idia da criao

    das redes de cidades est vinculada com a de irmanamento de cidades, a qual teve sua

    origem na Segunda Guerra Mundial, quando as cidades europias resolveram promover a

    14

    It is really fruitless to debate whether domestic politics really determine international relations , or the reverse.The answer is clearly Both, sometimes. The more interesting questions are When? and How? 14. Op. Cit.(p,76).

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    integrao entre si para evitar o renascimento do revanchismo que poderia causar novos

    conflitos (GAMBINI, 2007, p 9).

    Vale salientar que a existncia de um sistema democrtico condio sine qua nonpara o desenvolvimento da paradiplomcia, haja vista o carter centralizador e no-

    participativo dos regimes autocrticos, independentemente de sua orientao ideolgica. Este

    fator inviabiliza o fortalecimento do poder local, suprimindo a diversidade de vozes e

    pensamentos, em nome do pseudo-interesse nacional. Acreditamos que sistemas

    federativos flexveis so positivamente predispostos a lidar com problemas de

    interdependncia global e regional de maneira mais efetiva que sistemas autoritrios ou

    unitrios (DUCHACEK, 1990, p. 4)15. Em seu trabalho, Duchaceck (1990) observa que as

    experincias paradiplomticas mais avanadas e exitosas no mundo encontram-se em pases

    democrticos altamente industrializados, a exemplo da Sua, da Alemanha e do Canad.

    3.3. Aspectos cooperativos da paradiplomacia

    As redes de cidades16 - tendncia crescente no mundo contemporneo - so

    dispositivos eficazes na promoo da cooperao internacional e do desenvolvimento

    regional/local sustentvel, pois constituem foros privilegiados para a discusso de alternativas

    e troca de experincias em reas afins, tais como: urbanismo, infra-estrutura, habitao e

    polticas pblicas voltadas para o combate pobreza e a violncia. Outro elemento positivo

    a proximidade entre o poder pblico local e a populao na formulao de polticas de

    interesse comum, o que torna os entes subnacionais interlocutores privilegiados das

    populaes locais no debate internacional, medida que captam mais facilmente as demandasda populao, transformando-as em polticas concretas e compartilhadas. Dito de outro modo,

    os entes subnacionais, com seus tentculos e ramificaes, vo onde os governos centrais no

    conseguem alcanar, quebrando o distanciamento entre a poltica externa e os reais anseios da

    populao.

    15We may tentatively suggest the flexible federal systems are positively predisposed to handle the problems of

    global and regional interdependence more effectively than unitary or authoritarian systems

    16 Exemplos de redes de cidades: Sister Cities, European Sustainable Cities, Eurocities, International Networkfor Urban Development, World Association of Major Metropolises, World Federations of United Cities,International Union of Local Authorities, Organization of Islamic Capitals and Cities, Mercocidades, etc.

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    Um dos principais aspectos da paradiplomacia a cooperao, uma vez que

    [...] a insero internacional das unidades subnacionais, em especial de cunho

    econmico,