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1 KAIOWÁ/PAĨ TAVYTERÃ: espaço de reafirmação do direito ao Oguatá Porã na fronteira Brasil/Paraguai Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues 1 [email protected] Antonio Hilario Aguilera Urquiza 2 [email protected] Marco Antonio Rodrigues 3 [email protected] RESUMO: O presente trabalho é fruto da pesquisa em andamento, e tem por objetivo analisar a dinâmica da mobilidade espacial dos Kaiowá/Paĩ Tavyterã localizados na região de fronteira Brasil/Paraguai. O estudo privilegia a motivação da mobilidade deste povo, o rearranjo desta população ao chegar no novo território, à concepção de mobilidade espacial (Oguatá Porã) para esta população e seus deslocamentos no espaço/tempo. Partimos de reflexões teóricas de autores como Brand (1993 e 1997), Cavalcante (2014 e 2016), Colman (2015), Meliá (2008), Pereira (1999 e 2004). O povo Kaiowá/Paĩ Tavyterã possui processo próprio de ocupação de um território tradicional no qual ocorrem estes deslocamentos e é nele que as comunidades estabelecem redes sociais pautadas pelas relações de parentesco e afinidades. A análise histórica e antropológica do Direito Consuetudinário é importante para que se possa compreender a limitação do Oguatá Porã pelos Estados Nacionais, desrespeitando o direito de ir e vir desses povos tradicionais. A pesquisa terá como foco principal a mobilidade entre as aldeias Tei’ykue no município de Caarapó e Taquaperi, município de Coronel Sapucaia localizadas no estado de Mato Grosso do Sul/BR e no Paraguai a Aldeia Pysyry, Departamento de Amambay, distrito de Pedro Juan Caballero/PY. A pesquisa também analisará o impacto que a mobilidade proporciona na esfera de direitos dos povos indígenas e sua efetividade à luz da Constituição Federal e da Convenção 169 da OIT. Palavras-chave: Mobilidade transfronteiriça, Povos indígenas, Territorialidade Kaiowá/ Paĩ Tavyterã, Fronteiras Nacionais, Direitos Consuetudinário. GT 2: Povos tradicionais, autonomia e Direitos Humanos 1 Mestranda em Antropologia Social - PPGAS pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Bolsita CAPES. Especialista em Antropologia História dos Povos Indígenas (UFMS/2017). Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (2016). Foi Bolsista PIBIC CNPq.2014/15. 2 Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, orientador da pesquisa. Possui Doutorado em Antropologia pela Universidade de Salamanca/Espanha; atualmente é docente do curso de Ciências Sociais, da Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFMS e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFMS) e Professor colaborador da Pós-Graduação em Educação (UCDB). 3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). Foi voluntário PIBIC CNPq 2014/15 e 2015/16. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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KAIOWÁ/PAĨ TAVYTERÃ: espaço de reafirmação do direito ao Oguatá Porã na

fronteira Brasil/Paraguai

Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues1

[email protected]

Antonio Hilario Aguilera Urquiza2

[email protected]

Marco Antonio Rodrigues3

[email protected]

RESUMO: O presente trabalho é fruto da pesquisa em andamento, e tem por objetivo

analisar a dinâmica da mobilidade espacial dos Kaiowá/Paĩ Tavyterã localizados na

região de fronteira Brasil/Paraguai. O estudo privilegia a motivação da mobilidade deste

povo, o rearranjo desta população ao chegar no novo território, à concepção de

mobilidade espacial (Oguatá Porã) para esta população e seus deslocamentos no

espaço/tempo. Partimos de reflexões teóricas de autores como Brand (1993 e 1997),

Cavalcante (2014 e 2016), Colman (2015), Meliá (2008), Pereira (1999 e 2004). O povo

Kaiowá/Paĩ Tavyterã possui processo próprio de ocupação de um território tradicional no

qual ocorrem estes deslocamentos e é nele que as comunidades estabelecem redes sociais

pautadas pelas relações de parentesco e afinidades. A análise histórica e antropológica do

Direito Consuetudinário é importante para que se possa compreender a limitação do

Oguatá Porã pelos Estados Nacionais, desrespeitando o direito de ir e vir desses povos

tradicionais. A pesquisa terá como foco principal a mobilidade entre as aldeias Tei’ykue

no município de Caarapó e Taquaperi, município de Coronel Sapucaia localizadas no

estado de Mato Grosso do Sul/BR e no Paraguai a Aldeia Pysyry, Departamento de

Amambay, distrito de Pedro Juan Caballero/PY. A pesquisa também analisará o impacto

que a mobilidade proporciona na esfera de direitos dos povos indígenas e sua efetividade

à luz da Constituição Federal e da Convenção 169 da OIT.

Palavras-chave: Mobilidade transfronteiriça, Povos indígenas, Territorialidade Kaiowá/

Paĩ Tavyterã, Fronteiras Nacionais, Direitos Consuetudinário.

GT 2: Povos tradicionais, autonomia e Direitos Humanos

1 Mestranda em Antropologia Social - PPGAS pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Bolsita

CAPES. Especialista em Antropologia História dos Povos Indígenas (UFMS/2017). Bacharela em Ciências

Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (2016). Foi Bolsista PIBIC CNPq.2014/15. 2 Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, orientador da pesquisa. Possui

Doutorado em Antropologia pela Universidade de Salamanca/Espanha; atualmente é docente do curso de

Ciências Sociais, da Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFMS e do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social (UFMS) e Professor colaborador da Pós-Graduação em Educação (UCDB). 3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Teoria e

Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). Foi voluntário PIBIC

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INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe uma análise sobre a dinâmica e motivação da

mobilidade espacial4 dos Kaiowá5/Paĩ Tavyterã localizados na região de fronteira

Brasil/Paraguai e o rearranjo deste povo ao chegar no novo território em ambos os países.

Nesse contexto, as cidades fronteiriças do Mato Grosso do Sul tornam-se

verdadeiros laboratórios de estudo do processo de inserção dos migrantes, sendo um

espaço privilegiado para a discussão dos temas acerca da diversidade e da trajetória

histórica e cultural de povos indígenas (AGUILERA URQUIZA, 2013).

O povo kaiowá/Paĩ6 se refere aos representantes do subgrupo Kaiowá pertencentes

ao tronco Tupi, da família linguística Tupi-guarani, que no Brasil engloba os Kaiowá, os

Ñandeva e os Mby’a (PEREIRA, 1999, p 14). São na maioria bilíngues, ou seja, além do

Guarani, falam o português (Brasil) ou castelhano (Paraguai), todavia os mais idosos

falam somente a língua materna. O Guarani é a língua utilizada cotidianamente entre eles,

em conversas, reuniões e ensinamentos dos “mais velhos” para as crianças e jovens.

O historiador Antônio Brand, em sua tese “O impacto da perda da terra sobre a

tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da palavra”, relata que:

Os Kaiowá (Paĩ Pavyterã) foram descobertos pelo mundo colonial, em

1750-60, por ocasião da execução do Tratado de Madrid (...). Foram

considerados descendentes dos Itatim, cujo território se estendia desde

o rio Apa até o rio Miranda, tendo ao Leste a serra de Amambai e a

Oeste o rio Paraguai (...) (BRAND, 1997, p.49-50; apud MELIÀ, G.

GRÜNBERG, F. GRÜNBERG, 1976).

Alguns estudiosos (MELIÁ, 2008), (BRAND, 1997), (PEREIRA, 1999), dentre

outros, afirmam que os Kaiowá/Paĩ possuíam um território ao Norte, até os rios Apa e

Dourados e, ao Sul, até a Serra de Maracaju e os afluentes do Rio Jejuí, chegando ao

Leste/Oeste por uma distância de aproximadamente 100km, em ambos os lados da Serra

de Amambai, abrangendo uma extensão de terra de aproximadamente a 40Km2. Território

este que, com a Construção dos Estados Nacionais, foi dividido pela fronteira

4 Compreende os movimentos territoriais de população: “a imigração e emigração de indivíduos, famílias

ou grupos” (COLMAN, 2015, p. 20 apud VAINER E MELLO, 2012). 5 Na grafia dos nomes indígenas adoto as normas da Convenção da ABA de 1953 - I° RBA (que pretende

uniformizar a maneira de escrever os nomes das sociedades indígenas em textos em língua portuguesa, ou

seja, descartar o “c” e o “q”, substituindo-os pelo “k”). 6 Ao longo do texto estarei utilizando a escrita “Paĩ “ para me referir a esta população que autodenomina

Paĩ Tavyterã no Paraguai.

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Brasil/Paraguai. Nesta espacialidade localizam-se suas aldeias, tendo como referência as

matas e os córregos, para dimensionar seus territórios como algo específico para cada

família extensa7, e assim poderem dar continuidade ao bom modo de ser de seus

ancestrais. É na aldeia, enquanto tekoha8 que os Kaiowá vivenciam e atualizam seu modo

de ser (BRAND, 1997, p.2-8).

De acordo com o antropólogo Levi Marques Pereira:

Os Kaiowá ocupam uma pequena área situada em uma faixa de terra de

pouco mais de 100 quilômetros de cada lado da fronteira do Brasil com

o Paraguai, onde são denominados de Paĩ Tavyterã. Tradicionalmente

são agricultores de floresta tropical, praticando a caça como principal

fonte de proteína, e a pesca e a coleta como atividades subsidiárias

(PEREIRA, 1999, p. 16).

A partir do período em que os países adquiriram sua autonomia no que tange à

criação dos Estados Nacionais na América, ocasião em que se definiram as fronteiras

regionais pelo critério de fronteiras naturais, foram ignoradas, por conseguinte, as

fronteiras do território tradicional Kaiowá/Paĩ, haja vista bem sabermos que seus tekoha

ficam próximos a córregos ou rios, e foi o que aconteceu com o território tradicional na

fronteira Brasil/Paraguai, mais precisamente tendo o Rio Estrela como divisor entre os

países, também conhecido como “Estrelão”. Podemos citar, também, o processo mais

intenso da perda de territórios tradicionais enfrentado pelos Kaiowá/Paĩ, que se iniciou

com o fim da Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), dando início à

ocupação por frentes de colonos e criadores de gado no estado de Mato Grosso do Sul/BR,

não muito diferente do ocorrido no lado paraguaio. Essa expansão atingiu todo o território

indígena em ambos os lados da fronteira.

Os Kaiowá/Paĩ possuíam uma vasta extensão territorial, mas com a construção

dos Estados nacionais sul americanos, não houve o devido respeito aos direitos dos povos

indígenas de manterem-se em seus territórios e, em decorrência, impedindo-os de suas

práticas culturais. Soma-se a isso, a perda de seus territórios nos últimos quarenta anos,

7 A cada família extensa corresponderá, como condição para sua existência, uma liderança, em geral um

homem que denominam Tamõi (avô), não sendo raro, contudo, a existência de líder de família extensa

mulher, que denominam Jari (avó) – neste caso, a incidência é maior entre os Ñandeva. O líder familiar

aglutina parentes e os orienta política e religiosamente. Cabe-lhe também as decisões sobre o espaço que

seu grupo ocupa no tekoha e onde as famílias nucleares (pais e filhos) pertencentes a seu grupo familiar

distribuem suas habitações, plantam suas roças e utilizam os recursos naturais disponíveis (conforme

https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/555 - acesso no dia 20/10/2016). 8 Tekoha é o lugar físico (teko = modo de ser e ha = lugar onde) – Deve conter, antes de tudo, matas

(ka'aguy) e todo o ecossistema que representa, como animais para caça, águas piscosas, matéria prima para

casas e artefatos, frutos para coleta, plantas medicinais etc (conforme

https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1298 - acesso no dia 20/10/2016).

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em prol da exploração de recursos naturais por grandes empresas tanto do Brasil como

do Paraguai e outros projetos de infraestrutura idealizados sem levar em conta as

especificidades e direitos indígenas, mas que infelizmente foram realizados com a

anuência dos estados nacionais.

A MOBILIDADE ESPACIAL KAIOWÁ/PAI

O povo Kaiowá/Paĩ tem por tradição cultural a prática da mobilidade espacial.

Efetivamente, esta migração indígena faz parte do Direito Consuetudinário9, ou seja, é

uma mobilidade espacial ao longo do território ancestral, prática esta milenar e muito

conhecida dentre os povos indígenas como Oguatá Porã10.

Percebe-se que, para os Kaiowá/Paĩ, o viver bem está ligado ao viver no tekoha,

ou seja, está relacionado à qualidade da terra onde possam ser felizes, da mesma forma

que os seus antepassados foram.

De acordo com Bartomeu Meliá (2016), foram muitas as migrações dos

Kaiowá/Paĩ, desde o século XVI ao século XX, e sempre em busca de terras sem males.

Entenda-se que é uma terra que possua recursos naturais, sendo extremamente importante

para a qualidade de vida desta população indígena. Para os Kaiowá/Paĩ, é fundamental a

preservação do meio ambiente para se manter a relação com o mundo sobrenatural, ou

seja, para a prática cultural (BRAND, 1997). O tekoha se difere e corresponde a um modo

de ser identitário, e que possui um espaço exclusivo, com fronteiras definidas, mas não

demarcadas como as fronteiras dos não indígenas (MELIÁ, 2016).

Nessa inteligência, a mobilidade espacial praticada entre os Kaiowá/Paĩ está

vinculada ao princípio da ancestralidade do território. Eles são povos agricultores que

utilizam um sistema rotativo das terras, de forma a se evitar o desequilíbrio ecológico.

Eles também praticam visitação a seus parentes, podendo ficar por meses até mesmo anos,

mantendo assim suas redes sociais e políticas. Outra causa não menos importante é o

deslocamento para outros territórios a partir de conflitos internos, doenças e acidentes e

imprevistos com parentes, como por exemplo, a morte.

9 De modo geral, o direito consuetudinário é definido como um conjunto de normas sociais tradicionais,

criadas espontaneamente pelo povo, não escritas e não codificadas. O verbete “consuetudinário” significa

algo que é fundado nos costumes, por isso chamamos essa espécie de direito também de direito costumeiro

(CURI, 2012). 10 O termo “Oguatá Porã” (Bonita Caminhada), pertence à cosmologia e apresenta-se como um dos

elementos centrais da cultura deste povo.

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Em vista disso, esbarramos na negação do direito consuetudinário como

consequência da construção dos Estados Nacionais, em que a liberdade dos povos

indígenas de praticar seus deslocamentos espaciais; entretanto isso não quer dizer que

eles sejam nômades (andarilhos errantes), mas é representativo da busca de um lugar onde

possam ser Kaiowá/Paĩ, dentro de seu território tradicional. A autora Keppi (2001) afirma

que é justamente nas relações entre índios e não índios que o direito indígena não é

respeitado, acarretando aos povos indígenas grandes prejuízos, que os leva a se tornar

vítimas de um poder estatal o qual eles não conhecem, mas que lhes é aplicado, muito

embora o Brasil seja signatário da Convenção 169 da OIT.

Para os Kaiowá/Paĩ, as fronteiras nacionais não fazem o menor sentido, mas,

infelizmente, desde o período colonial, sua história vem sendo fortemente marcada e

demarcada pelas fronteiras dos estados nacionais, que possuem o monopólio do uso

legítimo da violência e da força. Eis que impacta frontalmente o modo de vida dessa

população indígena.

Estudos realizados sobre os Kaiowá/Paĩ por Meliá (2008-2016), Brand (1993),

Pereira (1999), Crespe Lutti (2009), dentre outros, tratam a parentela como o princípio

básico da organização social. A parentela ou família extensa é a reunião de várias famílias

nucleares, formada pelo pai, mãe, filhos e agregados. É um núcleo político, social,

econômico e religioso, organizado a partir dos mais idosos, agregando de três a quatro

gerações.

Pereira (1999), descreve a organização social dos Kaiowá11 do sistema de

parentesco, constituindo-se como um grupo não linear em torno de um líder de expressão,

que reúne em torno de si seus parentes mais próximos e aliados, formando assim a

parentela. O autor denomina a família nuclear como fogo familiar/doméstico, e o

estabelece como unidade sociológica no interior da família extensa, que pode ser

composta por vários fogos interligados por relações consanguíneas, afinidade ou aliança

política.

O chefe da parentela atua como centro norteador dos fogos, e seus parentes se

estabelecem ao redor, tanto socialmente como geograficamente. Geralmente os mais

próximos pertencem ao tronco familiar e na medida em que o grau de parentesco vai se

distanciando, vão se constituindo os fogos mais autônomos. São comuns os conflitos

11 Cito apenas a etnia Kaiowá por ter sito a etnia abordada pelo autor em sua dissertação intitulada

“Parentesco e organização social Kaiowá” (1999). Vale ressaltar que na proposta dessa pesquisa estamos

abordando o povo Kaiowá/Paĩ.

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dentro da parentela e, portanto, é função do chefe solucioná-la. Caso não ocorra a solução,

o indígena ou a família deverá buscar outra parentela que tenha afinidade consanguínea

ou política, ou até mesmo ocorrer a mudança de tekoha.

Passando adiante, quando analisamos o fluxo migratório, os indígenas e os

migrantes estarão sempre na situação desconfortável e de vulnerabilidade comum às

minorias sociais, estando sujeitos a todo tipo de dificuldades para sobreviver no novo

ambiente, passando por discriminação e marginalização (CARDOSO DE OLIVEIRA &

BAINES, 2005). Por outro lado, a autoidentificação indígena é um direito garantido pela

Constituição Federal de 1988, sendo um importante reconhecimento da consciência

política e cidadã de ser índio. Entretanto, isso não significa que “qualquer um pode ser

índio”, mas, com base no processo histórico-étnico e reconhecimento de seu povo, esta

população não deveria passar por discriminação e muito menos qualquer dúvida quanto

a sua identidade-étnica.

De acordo com Bim (2014), a Convenção OIT nº 169 se aplica aos povos

indígenas e tribais (Indigenous and Tribal Peoples ou Peuples Indigènes et Tribaux). É

oportuno discorrer sobre o que se entende como povos tribais, mesmo que esses não

estejam abrangidos pela cláusula do artigo 231, § 3o da Constituição Federal.

Esse autor afirma que a Convenção OIT 169 (1989) substituiu a Convenção OIT

107 (1957). Esta, concernente à proteção das populações indígenas e outras populações

tribais e semitribais de países independentes, era expressa em se dizer aplicável às

populações tribais e semitribais. No atual diploma normativo, o termo semitribal foi

eliminado, restando apenas povos tribais.

Nesse sentido, Bim (2014) destaca que a Convenção OIT 169 não se aplica

somente aos povos indígenas e tribais, mas também se aplica aos (i) povos tribais em

países independentes, (ii) cujas condições sociais culturais e econômicas os distingam de

outros setores da coletividade nacional e (iii) que sejam regidos, total ou parcialmente,

por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial.

Segundo Athias (2005), a partir da Constituição Federal de 1988 os povos

indígenas recuperam seus direitos originários de poderem se constituir como cidadãos

etnicamente diferenciados mostrando, assim, a possibilidade de existência de um Estado

pluriétnico. Porém, a letra da Constituição não garantiu, ainda, a inclusão das

comunidades étnicas em um processo de participação plena nas políticas públicas de

desenvolvimento que permitam a essas comunidades exercer plenamente seus direitos.

Apesar de um “crescimento econômico” anunciado pelo governo, as comunidades étnicas

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constituem-se em grupos vulneráveis que buscam soluções para seus problemas, que

tendem a se agravar devido à política do Estado mínimo, onde não há espaço para

políticas sociais que incluem as minorias étnicas.

Por residirem em região de fronteira, os Kaiowá/Paĩ passam por frequentes

dúvidas para se autoafirmarem e autodeterminarem, haja vista a sociedade não indígena

questionar a sua nacionalidade, ocasionando grande dificuldade quanto ao acesso às

políticas nacionais em ambos os países, ou seja, Brasil e Paraguai. Acarretando o

impedimento de obterem, um simples registro de nascimento, no qual muitas vezes os

cartórios brasileiros costumam não admitir sua identidade étnica alegando que os mesmos

são paraguaios, restando a essa população a alternativa de permanecer sem o direito de

ser registrado, em clara afronta ao Código Civil brasileiro. Nesse contexto, não há dúvidas

ao afirmarmos que estes cartórios não reconhecem os direitos indígenas estabelecidos

pelo Estado brasileiro, e nem o Código Civil, pois ao negar a emissão da certidão de

nascimento, refletem a sua discriminação aos indígenas, além de bloquearem o seu livre

acesso às políticas públicas, como educação, saúde, bolsa família12 e sistema

previdenciário13. Colman, Azevedo e Brand (2012) informam no artigo “A presença dos

Guarani no estado de SP – final do séc. XIX até hoje” que a mobilidade espacial impacta

diretamente na implementação dos direitos dos povos Guarani relativos à documentação,

educação escolar, terra e saúde, e isso tudo agrava por não possuírem registro de

nascimento.

Thiago Leandro Vieira Cavalcante afirma em seu artigo “Os Guarani

Transfronteiriços: a realidade de quem existe sem existir” que:

Guarani e Kaiowá, não se coloca em dúvida a sua identidade étnica

indígena, pois, apesar do longo período de contato com a sociedade

nacional, eles mantêm sua língua e vários outros sinais diacríticos.

Assim sendo, de forma costuma lança-se mão do argumento de que os

indígenas que vivem na fronteira seriam de origem paraguaia, que

migram para o Brasil com o intuito de acessar benefícios sociais e

previdenciários, especialmente: o atendimento da rede de saúde

pública, a previdência social e o acesso às terras indígenas asseguradas

pelo Art. 231 da Constituição Federal de 1988 (CAVALCANTE,

2014).

12 É um programa do governo federal direcionado às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza

em todo o País, de modo que consigam superar a situação de vulnerabilidade e pobreza. (Conforme

http://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx- acesso no dia 15/11/2016). 13 Este programa objetiva-se proporcionar melhores condições sociais, econômicas e humanas em geral para

a população (conforme http://conceito.de/previdencia-social - acesso no dia 15/11/2016).

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A vida cotidiana de parte dos Kaiowá/ Paĩ, caracterizados por ser uma população

indígena sem fronteiras ou, ao menos, sem as mesmas fronteiras impostas pelos Estados

nacionais, resume-se ou limita-se apenas à liberdade de ir e vir, seja para, visitar seus

parentes, busca de um novo território, ou até mesmo, poderem gozar de mais direitos

como trabalhar, acesso à educação e saúde.

Diante desses fatos, surge a reflexão sobre a expansão econômica desenfreada que

ameaça o futuro dos povos tradicionais. Estudar a cultura indígena nos remete a uma

indagação: será que a sociedade não indígena pensa no seu futuro como os indígenas?

Hans Jonas (2006) nos alerta sobre uma ética da responsabilidade, fundamentada no

compromisso com os seres futuros e nossa responsabilidade para com eles. Estudiosos

sobre o autor, como Battestin & Ghiggi (2010) advertem que “o dever para com as

gerações futuras é um dever da humanidade, independentemente se os seres são ou não

nossos descendentes”, desta forma a cultura indígena é pautado na preservação do hoje

para o futuro.

A RECEPÇÃO DO DIREITO CONSUETUDINÁRIO NA ORGANIZAÇÃO DOS

ESTADOS LATINO- AMERICANOS

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma

coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como

equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e,

portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade (KANT,

2002, p.95).

Ao longo da história, a sociedade foi marcada por conflitos e massacres, tal como

ocorridos na América espanhola e na própria América portuguesa, onde o colonizador

europeu viera em busca de ouro e pedras preciosas, renda para o custeio de guerras,

conquistas, opulência e luxo dos nobres.

Ao menos desde a época de 1500, a Europa experimentou inúmeras crises, bem

como guerras como a que ocorreu entre as duas potências ibéricas da época, e que levaram

Espanha e Portugal à bancarrota, mais ainda Portugal, que teve que se lançar ao mar na

busca de novas fronteiras de comércio e renda para amenizar a crise econômica interna e

externa existente.

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Assim como Ortega y Gasset (1983, p.105) buscou a compreensão política e social

de seu país através de suas raízes históricas, é necessário lançar um olhar amplo para se

compreender alguns matizes da situação estudada.

O homem vive de sonhos, expectativas e esperanças. Assim também os índios têm

esse direito, esperar que algo melhor lhes aconteça, a sua terra prometida, o seu solo e a

sua paz. No entanto, a questão indígena é um dos assuntos que resistiram ao tempo,

atravessando governos, sem solução concreta, mas apenas com paliativos ou soluções

cosméticas.

Desde a chegada dos europeus na América, nunca se verificou uma política

favorável aos povos indígenas, que continuam a ser violados em seus direitos, sua cultura

e, principalmente, em seus direitos territoriais. Houve a dizimação quase completa de

tribos inteiras por doenças, trabalhos forçados e resistência à dominação, não restando

alternativa ao governo senão importar escravos africanos.

Com o advento da escravidão, os índios foram relegados a um segundo plano,

recebendo a herança do ostracismo ao serem marcados pela sociedade como pessoas

incapazes e improdutivas.

Segundo Platão:

O orador Trasímaco entra na conversação para defender a idéia de que

a justiça se define pelo interesse do mais forte, e que a injustiça é mais

vantajosa do que a justiça. Sócrates refuta-o e insiste principalmente no

fato de que sem justiça sociedade alguma é possível (PLATÃO, 2013,

p.23).

Esse debate, ocorrido há aproximadamente dois mil e quinhentos anos, ressalta a

necessidade de se estabelecer parâmetros para o que se poderia definir por justiça, e até

que ponto ela é efetiva no sentido de regular as relações entre os indivíduos, bem como

entre estes e o próprio Estado.

Nesse contexto, seria a injustiça mais vantajosa do que a justiça e a equidade? Ao

longo de anos, o ser humano tem desenvolvido modelos de justiça que inevitavelmente

refletiram, em quase sua totalidade, os interesses dos mais fortes, das classes dominantes.

Não seria diferente no caso dos indígenas e povos tradicionais, que ao longo do

tempo foram destituídos de seus direitos, em prol do progresso, dizem alguns; no entanto,

esse mesmo progresso tem ocasionado danos irreparáveis a esses povos, sub

representados nesse processo, marcados em muitos locais por preconceito e exclusão

social.

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Tornando o foco para a causa indígena, observa-se que, historicamente, não há

como se diferenciar políticas que fossem voltadas para resguardar os interesses imediatos

das populações tradicionais, ou mesmo a sua dignidade, destruída ao longo dos anos.

Embora as raízes históricas do problema das populações indígenas nos países da

América do Sul tenham suas diferenças, em um ponto elas concordam: quanto à violência

praticada contra essas populações, que ficaram à mercê de invasores e assassinos,

privadas de qualquer direito fundamental efetivo.

Trapalanda14 foi um termo cunhado por Sebastián Caboto15 em 1527, referiu-se a

um reino índio de fabulosas riquezas, tendo levado o rei Carlos V a se empolgar com as

notícias de uma terra fabulosa, tendo designado Pedro de Mendoza16 para a missão de

descobrir esse reino fabuloso e fantástico e, malgrado as dificuldades no estabelecimento

do novo território, as cidades foram sendo fundadas, a despeito do reino fantástico que

então se transmudara em um lugar cheio de dificuldades, obstáculos e miséria. Mesmo

assim, foram fundadas as cidades argentinas de Santiago Del Esteio, Córdoba e La Rioja.

A vastidão do território recém-povoado deu lugar à Coroa de Castela e à Igreja da

Contrarreforma, que iam paulatinamente plantando a suas sementes, organizando-se em

uma estrutura hierarquizada, burocrática, elitista e patrimonialista, tendo sido o Século

XVI marcado pela exploração da prata na região recém- conquistada e povoada. O maior

entrave foi o fato de grande quantidade de minas de prata estar em território indígena,

ocasionando violência e dizimação de diversas populações indígenas devido à ganância

com que foi conduzido esse processo.

No século seguinte, intensificou-se a exploração da prata devido à conjuntura

política da Europa, cuja análise foge ao objetivo deste trabalho, e com a finalidade de

refrear os ímpetos do colonizador espanhol, foram criadas missões jesuíticas com o

intuito de preservar as populações indígenas.

Todavia, o rei Carlos III ordenara a expulsão dos jesuítas, cuja influência se fazia

sentir em quase todos os assuntos do Estado, deixando populações inteiras de índios à

mercê de exploradores de ouro e prata.

14 A Cidade dos Césares ou Trapalanda é uma cidade legendária oculta na Patagônia, tida como possuidora

de imensas riquezas. (Nota do autor) 15 Cartógrafo e explorador inglês nascido em Veneza, Itália, de destaque na história da Inglaterra pela posse

e colonização do Novo Mundo. No comando de uma expedição espanhola destinada ao Oriente, desviou

para explorar o rio da Prata, o Paraguai e o Uruguai em 1525. (Nota do autor) 16 Pedro de Mendoza y Luján, de família nobre, foi um militar e conquistador espanhol, primeiro governador

do Rio da Prata e fundador de Buenos Aires. (Nota do autor)

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Nesse contexto, quanto à situação política, social e histórica brasileira, destacam-

se as palavras de Faoro:

A civilização brasileira, como a personagem de Machado de Assis,

chama-se ‘Veleidade’, sombra coada entre sombras, ser e não ser, ir e

não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora (FAORO, 2012,

p. 602).

A história mostra que a situação do índio no Brasil fora remediada em grande parte

pelo tráfico negreiro em função de dois fatores: dizimação quase absoluta da população

indígena conhecida e grandes lucros causados pela escravidão, muito embora a população

indígena também tenha sido socorrida pelas missões jesuíticas estabelecidas, criadas para

catequizar e proteger os índios.

Decerto o modelo brasileiro difere em grande parte dos demais países sul-

americanos, pois no Brasil o índio não foi submetido ao sistema de mita e encomienda

para trabalhar, mas foi forçado ao trabalho e resistiu, chegando a quase dizimação de sua

população.

Nos dizeres de Barbosa (1995, p.117), a América Latina é o reflexo de sua

realidade histórica e social: na verdade, um amontoado de espelhos partidos. Sociedades

forjadas pela cruz e pela espada, na coragem desmedida do colonizador de na sua

crueldade e intolerância, plasmadas na cobiça, na aventura e no desejo pela conquista

desenfreada do território, da exploração desmedida dos metais preciosos, seguida de

genocídios e demais violações à vida humana em todos os sentidos.

Considerando que toda essa situação terá reflexos diretos ao longo da formação

da sociedade nos diversos países latino-americanos, cumpre ressaltar a organização dos

estados e a formação, analisando-se o caso brasileiro, de todo um aparato jurídico

alienígena que serviu para beneficiar as classes dominantes e as oligarquias existentes na

época, favorecendo o clientelismo, os abusos e a expansão irregular de terras em

detrimento do direito já estabelecido nas populações tradicionais que habitavam o

território. Como continuidade desse contexto podemos citar o recente veto presidencial,

no novo estatuto do migrante, exatamente no artigo que permitia o livre trânsito de povos

indígenas e tradicionais nas fronteiras.

Segundo Volkmer (2003, p. 38), registra-se a consolidação de uma

instância de poder que, além de incorporar o aparato burocrático e profissional da

administração lusitana, surgiu sem identidade nacional, completamente desvinculada dos

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objetivos de sua população de origem da sociedade como um todo. Alheia à manifestação

e à vontade da população, a Metrópole instaurou extensões de seu poder real na Colônia,

implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma burocracia

patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de terras.

Com isso, desenvolveu-se um cenário contraditório de dominação política: “de

um lado, a pulverização do poder na mão dos donos das terras e dos engenhos, seja pelo

profundo quadro de divisão de classes. seja pelo vulto da extensão territorial; de outra

parte, o esforço centralizador que a Coroa. impunha, através dos governadores-gerais e

da administração legalista. A ordem jurídica vigente, no domínio privado ou público,

marchará decisivamente no sentido de preeminência do poder público sobre as

comunidades, solidificando uma estrutura com tendência à perpetuação das situações de

domínio estatal (VOLKMER, 2003, p.38).

A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais permitiu

construir um modelo de Estado que defenderia, mesmo depois da independência, os

intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos meios de produção.

Naturalmente, o aparecimento do Estado não foi resultante do amadurecimento

histórico-político de uma Nação unida ou de uma sociedade consciente, mas de imposição

da vontade do Império colonizador.

Instaura-se, assim, a tradição de um intervencionismo estatal no âmbito das

instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico. Tal referencial

aproxima-se do modelo de Estado absolutista europeu, ou seja, no Brasil, o Capitalismo

se desenvolveria sem o capital, como produto e recriação da acumulação exercida pelo

próprio Estado (VOLKMER, 2003, p.38).

Nas palavras desse autor:

Na sua globalidade, a compreensão, quer da cultura brasileira, quer do

próprio Direito, não foi produto da evolução linear e gradual de uma

experiência comunitária como ocorreu com a legislação de outros povos

mais antigos. Na verdade, o processo colonizador, que representava o

projeto da Metrópole, instala e impõe numa região habitada por

populações indígenas toda uma tradição cultural a1ienígena e todo um

sistema de legalidade ‘avançada’ sob o ponto de vista do controle e da

efetividade formal (VOLKMER, 2003, p. 42).

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Conforme o autor (ibid., p. 42), ao se analisar as raízes culturais da legislação

brasileira, dos três grupos étnicos que constituíram nossa nacionalidade, somente a do

colonizador luso trouxe influência dominante e definitiva à nossa formação jurídica.

Se a contribuição dos indígenas foi relevante para a construção de nossa cultura,

o mesmo não se pode dizer quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não

conseguiram impor seus princípios e suas leis, participando mais “na humilde condição

de objeto do direito real”, ou seja, objetos de proteção jurídica.

Igualmente o negro, para aqui trazido na condição de escravo, se sua presença é

mais visível e assimilável no contexto cultural brasileiro, a sua própria condição servil e

a desintegração cultural a que lhes impelia a imigração forçada a que se viam sujeitos,

não lhes permitiu também pudessem competir com o luso na elaboração do Direito

brasileiro (VOLKMER, 2003, p. 45).

De acordo com este autor (2003, p. 45), desde o início da colonização, além da

marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um direito nativo

consuetudinpario, a ordem normativa oficial implementava, gradativamente, as condições

necessárias para institucionalizar o projeto expansionista lusitano.

A consolidação desse ordenamento formalista e dogmático está calcada

doutrinariamente, num primeiro momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente,

na exegese positivista. Cumpre ressaltar, nessa trajetória, que os traços reais de uma

tradição subjacente de práticas jurídicas informais não-oficiais podem ser encontrados

nas remotas comunidades de índios e negros do Brasil colonial (VOLKMER, 2003, p.46).

Sob tal prisma, é essencial o resgate histórico de um pluralismo jurídico

comunitário, localizado e propagado através das ações legais associativas no interior dos

antigos “quilombos” de negros e nas “reduções” indígenas sob a orientação jesuítica,

constituindo-se nas formas primárias e autênticas de um direito insurgente, eficaz, não-

estatal (VOLKMER, 2003, p. 46).

Conforme o autor (ibid., p. 46), tais concepções desmentem o mito da

centralização jurídica ocidental moderna, fundada na unicidade territorial de um Direito

estatal e formal. A historiografia oficial em geral, não reconhece a existência, no período

anterior à colonização, de várias nações indígenas, cada qual com um Direito próprio,

base de suas formas de procedimento no âmbito da propriedade, posse, família, sucessão,

matrimônio e delito.

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Nos dizeres de Volkmer:

Na verdade, a riqueza desses grupos indígenas revela-se na convivência

com a pluralidade de valores culturais diversos, organizando suas

modalidades de comportamento conforme disposições jurídicas “que

nada têm a ver com o Direito Estatal, porque são a expressão de uma

sociedade sem estado, cujas formas de poder são legitimadas por

mecanismos diferentes dos formais e legais do Estado (VOLKMER,

2003, p. 47)

Entendemos, dessa forma, que a grande riqueza dos conhecimentos indígenas

acumulados acerca da sua organização social e política e as práticas milenares de

resolução de conflitos não foram aproveitadas pelo ordenamento jurídico dos estados

nacionais, muito menos, o respeito às suas práticas de mobilidade entre os limites de seu

território ancestral, os quais não coincidem com as fronteiras dos estados modernos.

CONCLUSÃO

As fronteiras Kaiowá/Paĩ costumam ser pautadas em acidentes geográficos,

fronteiras ecológicas e relações de parentesco, passando a confrontarem-se com as

fronteiras dos estados nacionais e, também, com frentes econômicas de expansão

territorial, com a concordância dos chefes de estados em ambos os países, alterando essas

fronteiras em detrimento do território dos Kaiowá/Paĩ. O conceito de fronteira fixa e

rígida, delimitando o espaço, não existe entre a população indígena, pois isso costuma ser

uma concepção ocidental.

Diante do avanço da expansão econômica e da frenética ocupação das terras

indígenas por terceiros denominados “não-índios”, fenômeno marcado por disputas

intestinas e extrema violência em alguns casos, acredita-se que o aumento da mobilidade

internacional indígena está diretamente relacionado à situação da perda de seus territórios

e de recursos naturais, o que os impulsionou aos deslocamentos temporários e/ou

definitivos.

Nesse contexto, constata-se que direitos dos povos indígenas e de outros povos

tradicionais sofreram diversas mutilações desde a formação dos estados nacionais latino-

americanos e da vinda do conquistador.

A estruturação social e política do estado brasileiro levou em conta o direito

alienígena, aplicando normas e impondo um ordenamento jurídico que em nada se

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relacionava com a realidade social e econômica da sociedade que aqui se encontrava, não

se atribuindo a devida importância aos costumes e ao direito próprio desses povos, que

poderiam ser harmonizados ou recepcionados pela ordem jurídica que ora se instaurava

em nosso país.

A base social, política e econômica de uma nação residem no seu povo, cujo

fundamento está em sua cultura tradicional, que pode ser aperfeiçoada em virtude da

dinâmica da sociedade, fruto do seu desenvolvimento e da incorporação de outros

patrimônios jurídicos, antropológicos e sociais que levem em conta a importância dos

diversos atores que se encontram nesse processo.

De fato, a busca de qualquer mudança nesse sentido deve ser precedida de bom

senso e de fatores que levem em conta os costumes arraigados em uma sociedade, bem

como a necessidade de se considerar as características culturais dos povos tradicionais

que habitam determinado território.

O progresso, a globalização e os demais fatores de integração e desenvolvimento

entre as nações têm relegado ao segundo plano os direitos dos povos tradicionais,

desdenhando a sua cultura e sua importância como elementos autóctones de um país, que

contribuíram na formação e estabelecimento de um estado pluricultural como o Brasil.

A principal função do Estado é o bem estar dos seus cidadãos, respeitando-se as

diferenças culturais, étnicas e sociais dentre os povos, por meio de políticas públicas

efetivas e alinhadas com a Constituição Federal de 1988, e qualquer coisa diferente disso

poderá resultar em graves consequências para a nação.

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