justificação para paulo e tiago - héber negrão

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INTRODUÇÃO O propósito deste ensaio é entender a doutrina da salvação à luz de Tiago e de Paulo comparando os dois pontos de vistas abordados diferentemente por estes apóstolos. Para uma melhor compreensão do tema este trabalho vai frisar, dentre toda a teologia de salvação, a doutrina da Justificação tanto para Paulo quanto para Tiago. A primeira parte aborda a doutrina da Justificação à luz de Paulo, mostrando como ele se baseou nas Alianças do Antigo Testamento para fundamentar sua teologia, como ele tinha uma perspectiva escatológica para a Justificação, qual a relação entre a Justificação e a Fé e como ela supre completamente os requisitos para a salvação de quem crer no sacrifício de Cristo. A segunda parte vai tratar da doutrina da Justificação à Luz de Tiago, elucidando a relação entre os conceitos utilizados por Tiago e aqueles utilizados por Paulo e analisando de modo geral os capítulos 3 da carta de Paulo aos Gálatas e aos Romanos comparando com o capítulo 2 da epístola de Tiago ao longo da argumentação. 1

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- Como entender a teologia da salvação do apóstolo Tiago à luz da teologia de salvação de Paulo- Como ambas as teologias se complementam

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Page 1: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

INTRODUÇÃO

O propósito deste ensaio é entender a doutrina da salvação à luz de

Tiago e de Paulo comparando os dois pontos de vistas abordados

diferentemente por estes apóstolos. Para uma melhor compreensão

do tema este trabalho vai frisar, dentre toda a teologia de salvação, a

doutrina da Justificação tanto para Paulo quanto para Tiago.

A primeira parte aborda a doutrina da Justificação à luz de Paulo,

mostrando como ele se baseou nas Alianças do Antigo Testamento

para fundamentar sua teologia, como ele tinha uma perspectiva

escatológica para a Justificação, qual a relação entre a Justificação e a

Fé e como ela supre completamente os requisitos para a salvação de

quem crer no sacrifício de Cristo.

A segunda parte vai tratar da doutrina da Justificação à Luz de Tiago,

elucidando a relação entre os conceitos utilizados por Tiago e aqueles

utilizados por Paulo e analisando de modo geral os capítulos 3 da

carta de Paulo aos Gálatas e aos Romanos comparando com o capítulo

2 da epístola de Tiago ao longo da argumentação.

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Page 2: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

JUSTIFICAÇÃO PARA PAULO

Conceitos de Justificação

Muitos têm considerado a doutrina da Justificação como

central na teologia paulina. De fato essa era a opinião dos

reformadores que, em meio a tantas artimanhas da Igreja Católica em

se mostrar como meio de salvação para os fiéis, viam a necessidade

de defender que o único caminho para a salvação é o sacrifício de

Cristo que nos foi oferecido pela graça de Deus e que pode ser

recebido através da fé somente. Antes de ir mais afundo no tema, é

necessário entender os principais conceitos que a doutrina da

Justificação tem apresentado ao longo dos anos.

A maioria dos teólogos pesquisados afirma que Justificação é

um termo forense, usado nos tribunais para isentar de culpa o réu que

estava sendo julgado. Justificação é o oposto de condenação. Ambas

as palavras são sentenças pronunciadas a um réu diante do tribunal

definindo-o como culpado ou inocente.

A tarefa do juiz é absolver o inocente de condenar o culpado.

Segundo George Ladd, Deus é apresentado como juiz em diversas

passagens da Bíblia e age justamente contra o pecado. A palavra

justificação está relacionada com a lei e significa absolvição,

vindicação e aceitação diante de um tribunal. A justificação não tem a

ver com a nossa purificação espiritual (que está relacionado com o

poder do pecado sobre o cristão), antes, tem a ver com necessidade

que o homem tem de ser livre da culpa que ele, como pecador,

carrega diante de Deus. O autor ainda acrescenta que alguns teólogos

católicos têm afirmado que justificação significa “tornar justo”, mas

estudiosos mais recentes tem dito que, de acordo com Paulo, justificar

seria mais em nível de relacionamento com Deus do que de qualidade

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Page 3: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

ética do réu, assim, seu significado melhor seria “estar de acordo com

Deus.” (LADD, 2003)

Handley Moule acrescenta que justificação também pode

significar “tornar justo” ou “conformar a um padrão verdadeiro”. Seria

um processo onde o erro é corrigido e o mau se torna bom, e quem é

bom se torna melhor. É algo diferente do que simples melhora de

condição do indivíduo. Significa receber um veredicto favorável diante

do júri ao invés de uma sentença de condenação. (MOULE, 2005)

Moule também destaca a dificuldade que podemos enfrentar

no estudo desta palavra: como um homem, acusado de pecar, pode

ser aceito por Deus que odeia o pecado como um homem justo, como

se ele nunca tivesse pecado antes? “Sua questão não é, diretamente:

como eu um pecador me tornarei santo? Mas: como eu uma pecador

serei recebido por meu Deus aquém eu afligi, como se eu não O

tivesse afligido?” (MOULE, p. 442)

Sem dúvida, como pecadores, precisamos urgentemente do

perdão de Deus pelos nossos pecados para não recebermos a punição

que merecemos por nascer sob a ira de Deus. Entretanto, mais do que

isso, precisamos ser aceitos à presença de Deus como se nunca

tivéssemos pecado contra Ele. “A justificação não significa meramente

uma concessão de perdão, mas um veredicto em favor de nossa

posição como satisfatória diante do juiz.” (p. 442)

Moule apresenta outra idéia que achei interessante relatar

aqui por não ter encontrado outra definição como esta. Justificação

também pode ser explicada pela linguagem dos impressores. O ato

que o profissional fazia de alinhar vários tipos na antiga imprensa para

as palavras saírem numa ordem correta dos tipos fixados era

justificar. (MOULE, 2005)

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Page 4: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

Justificação Baseada na Aliança do Antigo

Testamento

Devemos entender a doutrina da justificação olhando da

perspectiva do Antigo Testamento, uma vez que Paulo se fundamenta

nestes escritos para elaborar sua doutrina. O significado de “justiça”

para os israelitas era se conformar com uma norma preestabelecida.

A questão da justiça no AT seria uma norma a ser seguida para que

houvesse ordem no mundo, o justo é aquele que segue estas normas.

“O significado básico da palavra [justiça] é a norma, nas questões do

mundo, à qual os seres humanos e as coisas têm que se conformar, e

pela qual podem ser medidos. O homem justo é o homem que vive de

acordo com a norma dada. O verbo ‘ser justo’ que dizer viver de

acordo com a norma dada.” (LADD p. 604). Por isso o judaísmo do AT

a justiça passou a ser associada a completa observância da Lei

Mosaica.

Assim, O conceito de justiça no AT está mais vinculado a

relacionamento, do que questões éticas. Quem cumpre a ordem é

considerado justo. “Basicamente, ‘justiça’ é um conceito de

relacionamento. Quem cumpre as exigências, que lhe são impostas

pelo relacionamento em que se encontra, é considerado justo. Não é

uma palavra que designa o caráter ético pessoal, mas a fidelidade a

um relacionamento.” (LADD p. 604).

Paulo em seus escritos manifesta claramente a justiça de Deus

tomando como base também as revelações veterotestamentárias.

Deus é o Deus que faz uma Aliança com Israel ditando a maneira

como o seu povo deveria viver. O Deus que fez a Aliança deveria se

manter fiel à mesma, e essa fidelidade à Aliança é a revelação da sua

justiça.

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Page 5: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

Por isso em Romanos 3.251 Paulo mostra que a cruz é a

manifestação da justiça de Deus e em Romanos 1.172 ele diz que o

Evangelho é a revelação da justiça de Deus. O Deus do AT, fiel à sua

Aliança com seu povo, continua sendo fiel à sua Aliança através da

cruz e do evangelho.

A profundidade da doutrina da justificação estaria, portanto,

no fato de o homem estar completamente em desacordo com as leis

de Deus, e, assim, debaixo da condenação divina. Este homem pode,

portanto, ter esperança de salvação uma vez que o Deus fiel à sua

Aliança providencia um meio de sua justiça ser satisfeita e ainda

assim se manter fiel ao Pacto.

Paulo olha para a obra redentora de Cristo igualmente da

perspectiva do Antigo Testamento. “A ação de Deus que levou Jesus à

morte expiatória e vicária dos pecadores, nós a experimentamos

como ‘demonstração da justiça’ de Deus.” (GOPPELT, p. 230)

Observamos, portanto, que a justiça é o padrão que Deus deu

aos homens. O homem justo é aquele que segue todos esses padrões

divinos e que, pos isso, pode desfrutar de um relacionamento com

este Deus. No dia do juízo seria considerado como íntegro por não ter

se desviado dos padrões estabelecidos. Logo, a seqüência da

justificação seria: a justiça de Deus anula a condenação do homem

injusto e o transforma em justo.

É bom ainda destacar que a justificação está mais associada a

um relacionamento adequado com Deus do que a postura ética do

homem. Quando Deus justifica o homem que crê, Ele não está

atribuindo-lhe uma justiça no sentido de perfeição ética, mas no

sentido de impecabilidade. O objetivo da justificação não é o

aperfeiçoamento moral do réu. A corte dá o veredicto de justificado

1 “a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos” Rm 3:25

2 “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé.” Rm 1.17

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Page 6: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

para satisfazer a lei da sociedade. O juiz da não está interessado se o

réu vai melhorar sua conduta depois disso, ele está interessado em

saber se o réu está em boas condições diante da lei. “É obvio que a

questão não é um aprimoramento moral. Os juízes não existem para

tornar o homem justo melhor. Eles existem para justificar sua posição

como satisfatória diante da lei.” (MOULE, p. 441).

É possível que o homem considerado justo por Deus continue

errando e pecando, mas diante do Justo Juiz, os erros cometidos pelo

homem declarado justo não são mais apontados contra ele (“Deus

estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos

homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da

reconciliação.” 2 Co 5.19). Isso só é possível porque Cristo se fez

pecador em nosso lugar. Diante de Deus, Cristo, na cruz, não foi

considerado como sendo pecador, ele de fato se tornou pecador

(“Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para

que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.” 2 Co 5.21). “O homem

justo não é ‘visto como se fosse justo’; mas é realmente justo, pois foi

absolvido do pecado pelo veredicto de Deus. Quando Cristo foi feito

pecado, Deus não o tratou meramente ‘como se’ Ele fosse um

pecador. Ao contrário, Deus fez com que o (eticamente) imaculado se

tornasse um pecador (no sentido forense).” (LADD, p. 610)

Justificação como Escatológica

Outra característica importante de justificação é que ela é

escatológica, ou seja, no dia do juízo final Deus condenará os ímpios e

salvará os justos. Foi Deus quem estabeleceu os parâmetros para a

humanidade seguir, portanto, somente Ele tem poder para decidir que

será salvo e quem será condenado. “O resultado final será uma

declaração de justiça que significará a absolvição de toda culpa, ou a

prova da culpabilidade e subseqüente condenação. O significado

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Page 7: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

essencial de justificação, portanto, é forense e envolve a absolvição

pelo justo Juiz.” (LADD, p. 605)

O argumento de que a justificação é escatológica coincide com

a doutrina judaica. Entretanto Paulo se difere em pontos

importantíssimos. O primeiro deles é que, para Paulo, essa justificação

escatológica que ocorreria somente no futuro, já aconteceu. Observe

as seguintes referências: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz

com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo [...] Logo, muito mais

agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da

ira.” Rm 5.1, 9 e “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes,

mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor

Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” 1 Co 6.11. “Pela fé em

Cristo, cuja base é o seu sangue derramado, os homens já foram

justificados, absolvidos da culpa do pecado e, portanto, libertos da

condenação.” (LADD, p. 606)

A mensagem da justiça de Deus passa uma idéia escatológica

e anuncia uma realidade divina, celestial se introduzindo no mundo

atual. Em Paulo, contudo, esta mensagem passa a ter uma

perspectiva mais presente. Para o ele, o evangelho – a mensagem da

encarnação, morte e ressurreição de Cristo – é a própria revelação do

poder de Deus, na verdade o poder de Deus vem contido dentro desta

mensagem. Assim, o evangelho age em todo aquele que crê na obra

de Cristo. “Nesta eficácia está contida a justiça de Deus que,

exatamente assim, desce sobre a terra. De escatológica que ela era

no início, a mensagem se torna anúncio dos bens presentes.”

(CERFAUX, p. 430)

O juízo final não está mais restrito a acontecer somente no

futuro, no fim de todas as coisas. Ele já aconteceu na era presente. A

justificação que deveria absolver os justos somente no juízo final, já

ocorreu no presente através da morte de Cristo e trouxe esperança e

salvação para a humanidade desta era. John Stott mostra que com a

morte de Cristo ele trouxe para o presente a sentença que deveria ser

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Page 8: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

dada somente por ocasião do juízo final. O resultado disso é uma

comunidade de crentes justificados que aguardam com muita

esperança o futuro. A Lei já não pode nos condenar porque estamos

em Cristo Jesus que pagou o preço desta condenação. (STOTT, 2006).

Esta salvação é adquirida pela fé no sacrifício de Jesus. “O julgamento

futuro tornou-se, assim, essencialmente uma experiência presente.

Deus em Cristo absolveu o crente; logo, este tem a certeza da

libertação da ira divina e não está mais sob condenação.” (LADD, p.

606)

George Ladd ainda acrescenta que é possível entender que a

justificação do crente se limita somente aos pecados que ele cometeu

antes de sua conversão. No entanto é necessário lembrar que a

justificação é um evento escatológico e, portanto referente ao fim dos

dias. Entretanto o que precisamos destacar ainda mais não é o caráter

escatológico, mas o que a obra de Cristo realizou com esta

escatologia. Até então todos seriam julgados como culpados e

inocentes num futuro juízo final, mas Cristo trouxe este julgamento da

era futura para a era presente. Com isso aquele que foi justificado

pela morte de Cristo não foi levado em conta somente as

transgressões do passado, mas o estado de culpa como um todo, e

isso abrange toda a história do indivíduo, tanto passado como futuro.

”Sua [a justificação] locação temporal, portanto, não é realmente o

ponto de fé; de fato, nada mais é do que o juízo final que, em Cristo,

foi impelido para o curso da História [...]. Ele [o crente] não é somente

justificado dos pecados cometidos antes do tempo de fé; é justificado

de toda a culpa.” (LADD, p. 614)

Justificação pela Fé

Para os judeus a Lei de Deus era o meio pelo qual eles

poderiam ser considerados justos diante do Senhor. A aceitação e a

obediência à Lei por parte dos judeus deveriam ser feitas por meio da

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Page 9: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

fé. Ao aceitar a Lei pela fé, os judeus deveriam se conformar com o

padrão divino instituído a eles. No entanto, esse conceito judaico

passa muito próximo da questão do mérito, porque basta alguém ter a

boa intenção de obedecer a lei que já espera ser beneficiado com as

bênçãos de Deus. Paulo retruca este pensamento dizendo que a Lei

do AT só justificava como Deus queria que isso acontecesse: pela fé

nEle e não pela prática vazia da lei.

Paulo faz uma clara distinção entre sua doutrina e o

pensamento judaico sobre a obediência a Lei. Se para os judeus,

bastava a boa intenção, para Paulo o necessário para ser justo diante

de Deus era cumprir Sua Lei na íntegra. O que torna um homem

aceitável diante de Deus não é o nível de pecados cometidos, mas o

simples fato de cometer pecados. Assim, como ninguém é capaz de

viver sem cometer um pecado sequer, todos são condenados diante

de Deus

Paulo ilustra esse ensinamento mostrando que Abraão foi

justificado pela fé antes mesmo de haver a Lei Mosaica. Deus fez

promessas a Abraão dizendo que seria abençoado e que abençoaria

toda a terra. O cumprimento dessa promessa ocorreu em Cristo,

descendente de Abraão sem sequer passar pela Lei. Assim sendo, a

Lei não é requisito para se conseguir as Bênçãos de Deus. “A Lei,

portanto, não intervém de modo algum na concessão dos bens divinos

(que a justificação à maneira judaica pretende ‘merecer’)”. (CERFAUX,

p. 419)

Lucien Cerfaux diz que Para Paulo a fé é sempre uma resposta

que o homem dá à mensagem divina. Também é a resposta do

homem à salvação oferecida por Deus. Analisando mais

detalhadamente “a fé é a resposta do homem à mensagem, com seu

conteúdo objetivo e o poder que o acompanha. A justiça é dom de

Deus [...]; a fé é necessária para afinar nossa inteligência e nossa

vontade com a mensagem, e abri-nos assim à força divina.”

(CERFAUX, p. 440). Nesse sentido, qualquer pessoa que, pela fé,

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Page 10: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

aceite o sacrifício de Cristo em seu lugar pode ser salva, até mesmo o

ímpio.

Esse conceito de salvação dos ímpios na doutrina de Paulo

choca os judeus. Paulo defende que Deus também justifica o ímpio,

sendo que no AT era obrigação dos juízes condenarem os ímpios e

absolverem os inocentes. Ao defender a justificação dos ímpios, Paulo

nos mostra que Deus ressalta seu caráter de justiça. “Tendo em vista

a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser

justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” Rm 3.26. Isso não

seria uma contradição, mas uma comprovação da justiça reta de

Deus. O grande diferencial é que o pré-requisito para esta justificação

não são os cumprimentos meticulosos da Lei e sim a fé completa na

obra de Cristo.

Para Paulo a pessoa justificada não é aquela que tenta andar,

o mais sinceramente possível, dentro da Lei de Deus, e sim aquela

que aceita pela fé a morte propiciatória de Cristo. Fé esta dada a nós

pelo próprio Deus. “O fundamento da justificação não é a obediência à

lei; mas a morte de Cristo [...] Nossa aceitação não está

fundamentada nem nossas obras nem em nossa fé, nem na obra de

Cristo dentro de nós; mas naquilo que ele fez objetivamente por nós.

Assim, se fosse possível a um homem ser justificado pela Lei, a morte

de Cristo teria sido sem propósito.” (LADD, p. 612)

A morte propiciatória de Cristo aponta para duas perspectivas

do caráter de Deus. A morte de Cristo foi um ato da parte de Deus

tanto de justiça quanto de misericórdia. Ao fazer Jesus, um homem

eticamente correto diante de Deus, pagar a pena que nós deveríamos

pagar Deus se mostra perfeitamente Justo e perfeito. No entanto Ele

se mostra igualmente misericordioso por nos poupar da pena capital

que nós merecíamos receber. George Ladd nos mostra que “por Deus

ter manifestado tanto sua justiça como seu amor ao punir Cristo com

a culpa e a condenação do pecado, Ele pode agora, em perfeita

justiça, oferecer a vindicação de absolvição ao pecador.” (LADD, p.

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Page 11: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

613) e Lucien Cerfaux confirma a teoria de Ladd dizendo que a justiça

de Deus consiste basicamente em misericórdia e salvação é atribuída

ao homem pela fé dada a ele por Deus. “Se a justiça de Deus é uma

justiça que tem o dever de castigar os culpados, Cristo ofereceu-se

em nosso lugar.” (CERFAUX, p. 442)

É necessário ainda discorrer sobre a relação entre a “Graça” e

a “Fé” na obra salvadora de Cristo. John Stott faz um paralelo notável

entre estes temas mostrando que o homem é justificado por Deus

somente por Sua graça por meio da fé nele, sem qualquer prática que

ele possa ter para alcançar esta justificação. Tudo o que homem pode

fazer para se tornar justo diante dele é crer. “Assim, o homem é

justificado somente por meio da graça de Deus; o homem nada

realiza; não há nenhuma atividade humana. Antes, o homem

simplesmente se submete à justificação de Deus; ele não realiza

obras; ele crê.” (STOTT, p. 165)

A fonte da justificação é a Graça de Deus (“sendo justificados

gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo

Jesus” Rm 3.24), ou seja, um favor expresso ao pecador que não

merece coisa alguma. Uma vez que não há nenhum justo, obviamente

ninguém pode se declarar justo diante de Deus, mesmo aqueles que

tentam fazê-lo através de suas práticas vãs. Isso nos leva a entender

que só quem pode justificar o pecador é o próprio Deus e Ele o faz

porque escolheu fazer. Por sua graça.

O meio da nossa justificação é pela fé (“Concluímos, pois, que

o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.”

Rm 3.28). A graça e a fé estão intimamente ligadas, pois a fé é a

resposta que o homem dá ao presente que a graça lhe oferece

gratuitamente. O que nos justifica não é a nossa fé. Acreditar nisso

seria ter fé na fé, que seria tão prejudicial quanto ter fé em um falso

deus. “A graça de Deus é a fonte e o sangue de Cristo o fundamento

de nossa justificação; a fé não passa do meio pelo qual somos unidos

a Cristo.” (STOTT, p. 170). A fé, entretanto, não é simplesmente “um”

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Page 12: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

meio para se adquirir esta salvação. Ela é o “único” meio para se

obtê-la. Nossa justificação não poderia vim através da obediência às

obras da lei porque implicaria em justiça própria do homem, se fosse

desse modo ele teria condições de, por si só, se apresentar justo

diante o perfeito Juiz.

Ao entender que a fé é o “único” meio para obter a salvação

naturalmente entende-se também que a fé é somente um instrumento

pelo qual o homem pode se apropriar da providência de Deus em

justificá-lo. Como já foi mencionado acima, o homem não deve ter fé

na fé, isso seria vazio. Segundo Michael Horton, o homem precisa ter

a fé no objeto certo, a obra de Cristo na cruz. Pela fé a justiça de

Cristo se torna a nossa própria justiça. “Não somos justificados pela fé

por algo intrínseco à própria fé. Não há nada de mágico em crer. É a

fé em Cristo [...] que constitui a fé salvadora.” (HORTON, p. 168)

Concluímos então que a fé é o meio pelo qual o injusto pode

lançar mão da justificação oferecida na morte de Cristo e receber o

dom de ser considerado justo diante de Deus. Nada mais que isso é

necessário para uma pessoa ser justificada. Sendo a obra de Cristo

perfeita e completa seria um insulto se qualquer pessoa pudesse

tentar, por si só, através de esforços e cumprimento de regras,

alcançar a salvação oferecida por Cristo de graça. Ao ter fé, o pecador

confia plenamente que o sacrifício de Cristo foi suficiente para que ele

fosse considerado inocente.

Justificação e Imputação

É necessário destacar que a doutrina da justificação não se

limita somente à identificação de Cristo com os nossos pecados. Ela

vai mais além e declara que, com a sua morte, a justiça de Cristo foi

colocada em nós.

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Page 13: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

A justificação não é um ato isolado, ela consiste em dois

momentos distintos: um é quando Deus perdoa o transgressor e o

reconcilia consigo mesmos, e o outro é quando nos concede sua

própria justiça para que alcancemos a plenitude da vida cristã. Esta é

a doutrina da imputação que declara que a justiça de Cristo foi

imputada a nós. Um versículo chave para a compreensão desta

doutrina é 2 Co 5.21 “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez

pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.”

Paulo afirma que Cristo se fez pecado em nosso lugar, ele não

assumiu simplesmente sobre si os nossos pecados, ele se tornou

pecador, por assim dizer, e foi sofrer a nossa pena. Com a justificação

Deus nos concede sua justiça como um dom. Isso somente depois que

temos nossos pecados perdoados por Ele. “Sem dúvida, Deus nos

concede a riqueza de sua justiça depois de haver perdoado nossos

pecados; o dom é precedido duma expiação e duma reconciliação.”

(CERFAUX, p. 438)

Depois de nossa conversão continuamos pecadores e falhos,

mas somos aceitos por Deus não somente porque nossos pecados

(presentes e futuros) foram perdoados, mas porque a justiça de um

homem que viveu nesta terra e não cometeu um só delito, foi

colocada sobre nós e podemos nos achegar a Deus sendo

considerados justos por causa da justiça de Cristo. ”Assim nos foi

imputada a justiça de Cristo, mesmo que em caráter ou em atos

permaneçamos pecadores. É uma conclusão lógica e inevitável que

aqueles que têm fé são justificados pelo fato da justiça de Cristo lhes

ser imputada.” (LADD, p. 614). A justiça de Deus passa a ser a fonte

das nossas virtudes. Assim, a única justiça que os homens têm não é

aquela que eles tentaram obter por si mesmos, mas aquela que lhes

foi imputada.

Para entendermos melhor este ponto podemos nos voltar para

o que Paulo ensina. Segundo ele boas obras também são importantes

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Page 14: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

para a justificação. Estas boas obras estão envolvidas pela justiça de

Cristo que foi imputada aos pecadores que creram pela fé.

Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; porque,

se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de

Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram

abundantes sobre muitos.

O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou;

porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação;

mas a graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação. Se, pela

ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que

recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida

por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. Pois assim como, por uma só

ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim

também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os

homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela

desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores,

assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão

justos (Rm 5.15-19)

Neste texto Paulo explica que o pecador que foi justificado não

precisa ter medo da condenação. “Ele também é renovado

internamente segundo a exigência da lei santa de Deus.” (SHEDD,

p.27). Em outras palavras, ao ser declarado justo o pecador recebe os

atos de justiça de Cristo que nunca se desviou da lei. Assim, o pecador

justificado é considerado como se nunca tivesse transgredido um só

mandamento da santa lei de Deus.

Michael Horton ilustra a doutrina da imputação de maneira

muito eficiente comparando nossa situação espiritual com as dívidas

do comércio. Em nossa vida de pecados temos duas grandes

carências diante de Deus que precisam ser supridas, a saber,

precisamos pagar todos os nossos débitos (todas as nossas dívidas

devem ser pagas), além disso precisamos também de uma generosa

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Page 15: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

linha de crédito. Diante de Deus não podemos ser culpados de pecado

algum (ter os débitos pagos) mas precisamos, por outro lado, ser

moralmente perfeitos diante de Deus assim como Ele é (daí a

necessidade do crédito). Horton comenta que reduzir o significado de

justificação somente a “ter os pecados perdoados” não estaria

expressando plenamente o significado correto da doutrina. “Aqui é

onde a definição popular de justificação – ‘como se eu nunca tivesse

pecado’ – torna-se insuficiente. Antes, é como se eu nunca tivesse

pecado e tivesse, em seu lugar, amado a Deus e a meu próximo

perfeitamente toda a minha vida.” (HORTON, p. 159)

Se nos voltarmos ao conceito de pecado original veremos que

não foi somente a injustiça de Adão que herdamos, junto com isso

herdamos também seus débitos. Nós nos identificamos com o pecado

de Adão e seu estado depois que ele pecou. Cristo, o segundo Adão,

pagou esse débito gigantesco, e todos aqueles que olham para Cristo

pela fé, herdam não somente a quitação desta dívida, como também

sua vida de justiça completa diante de Deus. Se não fizemos

absolutamente nada para sermos condenados em Adão, também não

podemos fazer absolutamente nada para sermos justificados em

Cristo.

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Page 16: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

JUSTIFICAÇÃO PARA TIAGO

Justificação pelas obras

Antes de analisarmos a posição de Tiago quanto à doutrina da

Justificação é importante lermos atentamente o que ele coloca no

segundo capítulo de sua epístola.

“Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado,

quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé

operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras

que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora,

Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e: Foi

chamado amigo de Deus. Verificais que uma pessoa é justificada

por obras e não por fé somente. De igual modo, não foi também

justificada por obras a meretriz Raabe, quando acolheu os emissários

e os fez partir por outro caminho?” Tg 2.21-25 [grifo acrescentado]

Tiago sabia da importância histórica e teológica que Abraão

tinha para o povo judeu que o admiravam bastante por sua

obediência total a Deus, mesmo se isso significasse sacrificar seu

próprio filho. O principal argumento de Tiago se baseia neste fato. Foi

exatamente a disposição que Abraão teve em matar Isaque para

obedecer a Deus que Tiago denomina “obras”. Por causa desta “obra”

é que Abraão foi justificado.

Para Tiago, o termo “justificar” é expressado no sentido de um

julgamento futuro. Tiago usa o termo para explicar a posição de uma

pessoa quanto ao juízo final de Deus e não a segurança que essa

pessoa pode ter pela fé na obra de Cristo. Assim, Tiago usa a palavra

com respeito ao “pronunciamento final de Deus em relação à justiça

de uma pessoa, e não à segurança inicial desta mesma justiça pela

fé.” (MOO, p. 108).

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Page 17: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

Esse uso da expressão “justificar” tem suas raízes no Antigo

Testamento e nos ensinos de Jesus. No Antigo Testamento “justificar”

é usado para declarar um réu inocente, baseado na comprovação de

sua inocência. Era usado também para falar de quem cumpria

lealmente a Aliança, neste caso esse veredicto tem uma ligação

profunda com o juízo final. Nos ensinamentos de Jesus essa visão do

juízo final era muito clara. “Digo-vos que de toda palavra frívola que

proferirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo; porque, pelas

tuas palavras, serás justificado e, pelas tuas palavras, serás

condenado” MT 12.36,37.

Tendo como base estes fundamentos da justificação para Tiago,

fica evidente que as boas obras que Abraão praticou – a saber,

sacrificar seu Filho Isaque em obediência a Deus – serviram para

justificá-lo no Julgamento Final. Tiago não nega que Abraão tinha fé,

pelo contrário “ele pressupões que Abraão tinha fé e aquela fé foi um

elemento básico em sua aceitação por parte de Deus.” (MOO, p.109).

Douglas Moo ainda acrescenta que a palavra “somente” que é

colocada junto com a palavra “fé” no versículo 24 faz toda a

diferença. Essa palavra demonstra que Tiago não tem intenção de

tirar a fé do processo de justificação. Pelo contrário, ele estava

incomodado por causa da fé inoperante dos cristãos de sua época.

Para combater essa quietude foi preciso enfatizar a importância das

obras. “Tiago teve que colocar bastante ênfase na natureza ativa da

fé e afirmar que, no final das contas, as ações têm importância.”

(MOO, p. 114)

Vale ainda apresentar as idéias de Leonhard Goppelt que

oferece três argumentos baseados em Tg 2.14-26, mostrando a idéia

de salvação para Tiago e como esta salvação se evidencia pelas

obras. Primeiro vemos em 2.14 o escritor questionando a vantagem

de uma pessoa ter fé e não ter obras. “Pode, acaso, semelhante fé

salvá-lo?”. Vemos claramente que a uma fé sem obras visíveis não

pode salvar ninguém. Em segundo lugar Goppelt observa que a fé

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Page 18: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

sem obras é tão inútil quanto o amor ao próximo que fica evidenciado

somente nas palavras (2.15-17). Em terceiro lugar o autor em questão

mostra que Tiago apresenta um exemplo positivo de salvação pela fé

evidenciada nas obras, ou seja, Abraão creu em Deus, e por isso se

dispôs a sacrificar seu filho (2.21-24). Resumindo as idéias de Goppelt

podemos afirmar que “A fé sem obras é morta [...]. A Escritura

promete salvação somente à fé associada a obras.” (GOPPELT, p.440)

Dialética entre Paulo e Tiago

Este é um dos pontos mais delicados deste trabalho por que

trata de uma possível contradição entre autores inspirados. É

necessário fazer uma cuidadosa avaliação para demonstrar que,

apesar de fortes opiniões contrárias (como Martinho Lutero, por

exemplo), não há qualquer contradição entre os ensinamentos de

Paulo e de Tiago.

Se pudermos resumir a doutrina da justificação para Paulo ela

teria as seguintes seqüências: absolvição divina, baseada somente na

graça, recebida pela instrumentalidade da fé, sem a prática das obras

da Lei. Paulo deixa claro que ninguém é bom o suficiente, nem

perfeito o suficiente para ser justificado por Deus mediante o pleno

cumprimento das obras da Lei. “Visto que ninguém será justificado

diante dele por obras da lei” (Rm 3.20). Paulo descreve a doutrina da

Justificação como o modo pelo qual o pecador, pode se apresentar

justo diante de Deus se ele tiver aceitado, pela fé, o sacrifício

substitutivo de Cristo. Por se tratar de um pecador, que não tem

justiça alguma em si mesmo para oferecer para sua salvação as suas

obras não tem absolutamente nenhum valor para que isso aconteça.

“Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a

sua fé lhe é atribuída como justiça.” (Rm 4.5)

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Page 19: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

Tiago, entretanto, parece ir imediatamente contra o ensino de

Paulo: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé,

mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? Se um

irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do

alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz,

aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o

corpo, qual é o proveito disso? Assim, também a fé, se não tiver

obras, por si só está morta. Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu

tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras,

te mostrarei a minha fé” (Tg 2.14-18) [grifo acrescentado]

Para Tiago, o termo “justificar” tem um significado

completamente diferente daquele utilizado por Paulo. Tiago se baseia

no julgamento Antigo Testamento onde, para um juiz declarar justo o

réu requer que sejam apresentadas provas que confirmem sua

inocência. O veredicto da justificação está ligado ao julgamento final.

“Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como aqueles que hão

de ser julgados pela lei da liberdade. Porque o juízo é sem

misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A

misericórdia triunfa sobre o juízo.” (Tg 2.12,13).

Douglas Moo faz um resumo notável unindo estes dois

conceitos. “Apesar de nossa união com Cristo pela fé ser a única base

para a justificação diante de Deus, as obras necessariamente

produzidas como resultado desta união são levadas em conta no

julgamento final de Deus sobre nós. Numa terminologia teológica,

Paulo está falando da imputação de justiça; Tiago da declaração de

justiça.” (MOO, p. 47) [grifo no original]

Ambos os autores usam o exemplo de Abraão para defender

suas doutrinas. Paulo fala de Abraão dizendo que Deus o declarou

justo3 por causa da fé que este demonstrou antes mesmo de ele ser

circuncidado4 – o que é uma exigência imprescindível para os judeus.

3 “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça” Gn 15.6.4 Rm 4.1-12

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Já Tiago, mostrou que a justificação de Abraão foi o resultado de sua

obediência a Deus (suas obras) a ponto que se dispor a sacrificar seu

único filho – e até então único herdeiro da Aliança – com isso, Abraão

estaria cumprindo Gn 15.6.

É necessário agora entender o contexto das colocações que

Paulo e Tiago fizeram. “Compreendidos em seus próprios contextos,

prestando-se uma cuidadosa atenção ao modo pelo qual cada um usa

certas palavras chaves, podemos ver que Tiago e Paulo estão

estabelecendo argumentos complementares, não contraditórios.”

(MOO, p. 45). O que Tiago está combatendo aqui não são os

ensinamentos de Paulo, mas como estes ensinamentos passaram a

ser vulgarizados com o passar do tempo. Naquela época a justificação

pela fé somente passou a ser uma mera teoria filosófica e os cristãos

deixaram de se importar com demonstração prática desta fé. Segundo

Goppelt, isso poderia acontecer em vários contextos da época, tanto

numa ortodoxia morta que só repetia atos litúrgicos quanto em um

liberalismo cristão que vive de acordo com o mundo

O autor explica de maneira muito esclarecedora que “no

contexto da situação em que surgiu a Epístola de Tiago, [ocorria] um

fenômeno típico da segunda geração e, além disso, estranho para a

tradição de pensamento da qual Tiago provém.” (GOPPELT, p. 441).

Em outras palavras, a primeira geração de cristãos viveu a doutrina

da justificação da maneira correta, expressando em atos a evidência

de sua salvação, mas a geração que veio depois deles foi passando a

aceitar a justificação de maneira automática, sem levar em

consideração a necessidade de demonstrar a praticidade da sua fé.

Tiago se levanta contra a ortodoxia fria e inoperante da igreja em sua

época. A crença cristã, ou fé cristã, deve ser acompanhada de obras

que dêem evidência dessa fé.

Portanto Paulo e Tiago combatem problemas diferentes. Em

Gálatas 3 e Romanos 3, Paulo se levanta contra a prática judaica de

confiar em sua própria obediência à Lei para se conquistar a salvação.

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Page 21: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

Como as obras são supervalorizadas Paulo mostra a importância da fé

como o único meio para justificação diante de Deus. Tiago combate a

desvalorização das obras cristãs que torna a fé uma mera ortodoxia

fria morta e contra um cristianismo acomodado e frouxo. Por este

motivo Tiago enfatiza a importância das obras.

Por fim é importante que seja esclarecido o porquê de tanta

contradição. Na verdade o significado as expressões fé e obras

utilizadas por Paulo e Tiago são distintos entre esses autores. Embora

as palavras usadas em ambos as referências sejam semelhantes, o

conceito por trás destas palavras são diferentes.

“Fé” para Paulo é a aceitação do Evangelho, é um compromisso

pessoal com Cristo, é a resposta do homem ao presente da salvação.

Segundo Efésios essa fé é dada ao homem pelo próprio Deus. “Porque

pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de

Deus;” (Ef 2.8). Para Tiago, o conceito de fé firma-se no monoteísmo,

na crença em um só Deus. “Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem.

Até os demônios crêem e tremem.” (Tg 2.19). Se para Paulo a fé é um

confiança pessoal em Deus, para Tiago ela é uma opinião ortodoxa.

“Obras” para Paulo significa obediência dos judeus à Lei

somente para se promoverem e, pelos seus próprios atos, serem

aceito por Deus. Para Tiago essas obras são baseadas no amor

cristão, como evidência de um novo nascimento.

O teólogo George Ladd resume estas diferenças dizendo que

“Tiago e Paulo estão lidando com duas situações diferentes: Paulo,

com a auto-justiça da piedade legal judaica, e Tiago com a ortodoxia

morta.” (LADD, p.787)

Douglas Moo nos oferece outra perspectiva para entendermos

esta diferença. Paulo, ao afirmar que as pessoas não podem ser

justificadas pelas obras da Lei, ele esta se referindo às obras que

precedem à salvação, ou seja, não há nada que o ímpio possa fazer

para ser salvo. Tiago menciona as obras originadas por fé que devem

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ocorrer depois da salvação. O crente deve mostrar que é crente

através de suas ações. Sobre esses pontos de vistas diferentes

Douglas Moo faz um comentário elucidativo: “Se Paulo tem em mente

as obras que precedem a salvação e Tiago está pensando nas obras

que a seguem, então a ‘justificação’, da qual estas respectivas obras

são a base, deve ter significados diferentes para Paulo e Tiago.”

(MOO, p.46)

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Page 23: Justificação para Paulo e Tiago - Héber Negrão

Bibliografia

CERFAUX, Lucien. O Cristão na Teologia da Paulo. Ed. Teológica. São

Paulo, 2003

GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Ed. Teológica. São

Paulo, 2003

HORTON, Michael. As Doutrinas Maravilhosas da graça. Editora Cultura

Cristã. São Paulo, 2003.

LADD, George. Teologia do Novo Testamento. Hagnos. São Paulo,

2003.

MOO, Douglas. Tiago: Introdução e Comentário. Vida Nova. São Paulo,

1990.

MOULE, Handley. Justificação pela fé. In: TORREY, R. A. Os

Fundamentos. Editora Hagnos. São Paulo, 2005.

SHEDD, Russel. Justificação. Editora Vida Nova. São Paulo, 2000.

STOTT, John. A Cruz de Cristo. Editora Vida. São Paulo, 2006.

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