junho 2013

8
E D I T O R I A L ÓRGÃO DA FUNDAÇÃO CHRISTIANO ROSA DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PIQUETE, JUNHO/2013 - ANO XVI - N o 197 O ESTAFETA Foto Arquivo Pró-Memória A sociedade brasileira foi surpreen- dida nas últimas semanas por um exem- plo de exercício de cidadania há muito tempo não visto no país. Milhares de cidadãos brasileiros foram às ruas, num movimento apartidário sem precedentes, reivindicando redução nas tarifas dos transportes públicos e outras melhorias. As manifestações começaram como uma forma de expressar a frustração com as tarifas de transportes, mas se torna- ram algo maior. Agora são protestos para mostrar aos nossos políticos que eles devem nos prestar contas quando deci- direm gastar dinheiro com Copas do Mundo, por exemplo, ao invés de inves- tir na Educação; quando aprovam orça- mentos sem transparência ou quando enviam a polícia para reprimir manifes- tantes pacíficos que estão exercendo seus direitos democráticos. Atônitos, os políticos observam com medo e espan- to. Eles não entendem que há um novo Brasil surgindo e que esse Brasil é nos- so, e que somos nós quem podemos di- zer o que fazer com ele. Os brasileiros resolveram virar o jogo: somos nós, cidadãos, que decidi- remos o que os políticos e as institui- ções farão e não o contrário. Esta é nova democracia, que nasceu do povo para o povo. O movimento que está começan- do agora tem potencial para remodelar a atual democracia para melhor. Basta de corrupção, do mau uso dos recursos públicos, de políticos condenados ocu- pando cargos relevantes na república. As ruas estão sendo tomadas por cidadãos cada vez mais conscientes de que trabalham muito, pagam altos impos- tos e recebem cada vez menos dos go- vernos. A grande maioria dos serviços prestados nos diversos setores públi- cos é de péssima qualidade. Como pen- sar num país desenvolvido se nossa educação é uma das piores do mundo e os serviços de saúde oferecidos são in- suficientes?! O dia em que cada cidadão tiver em mente que trabalha cinco me- ses do ano para pagar impostos e, ainda assim, não dispõe de serviços públicos de qualidade, a irritação será ainda mai- or do que a vista nessas últimas sema- nas. É só uma questão de tempo. Técnicos contratados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodi- versidade (ICMBio) deram início no final de maio a uma série de reuniões com os moradores dos municípios cortados pela Área de Proteção Ambiental (APA) da Mantiqueira, visando ao levantamento de informações socioeconômicas que servirão de base para a elaboração do Plano de Ma- nejo dessa APA. O Plano de Manejo estabelece o zonea- mento e as normas que devem regular o uso de uma unidade de conservação e o manejo dos recursos naturais que nela existem. A aprovação desse Plano também implica na definição do conjunto de ações necessárias à gestão da área protegida; ele tem como objetivo conciliar os diferentes usos com a conservação da biodiversidade. O Plano de Manejo é uma ferramenta construída em conjunto com a população da região de localização da unidade de con- servação para definição das regras de uso e de conservação dos recursos naturais, mos- trando o que a região possui de bom e o que precisa ser preservado. A mobilização com a população acontece por meio de reuniões. O primeiro encontro foi realizado no dia 27 de maio e os próximos vêm acontecendo e serão finalizados até o dia 3 de julho. Serão visitados os 29 municípios abrangidos pela APA da Mantiqueira, nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em Piquete, as reuniões já aconteceram: a pri- meira com moradores dos bairros Benfica e Tabuleta, e a segunda no Bairro dos Marins. A APA da Serra da Mantiqueira foi cria- da pelo Decreto Federal número 91.304, em 3 de junho de 1985. A Serra da Mantiqueira faz parte de uma das maiores cadeias montanhosas do Sudeste brasileiro. Entre os objetivos da APA estão: a conservação do patrimônio paisagístico e cultural das regiões mais altas da Serra da Mantiqueira; a proteção e a preservação da flora endêmica, dos rema- nescentes dos bosques de araucária, da continuidade da cobertura vegetal do espigão central, das manchas de vegetação primitiva e da vida selvagem, principalmen- te as espécies ameaçadas de extinção. Outro objetivo importante da APA é a proteção dos recursos hídricos da Serra da Mantiqueira, onde nascem importantes afluentes dos rios Grande e Paraíba do Sul, responsáveis pelo abastecimento de boa parte dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. O Plano de Manejo da APA da Mantiqueira A Serra da Mantiqueira faz parte de uma das maiores cadeias montanhosas do Sudeste brasileiro. É protegida como APA (Área de Proteção Ambiental) pelo Decreto Federal 91.304, de 3 de junho de 1985. Um levantamento de informações está sendo efetivado para regulamentar seu Plano de Manejo.

Upload: fundacao-chistiano-rosa

Post on 27-Mar-2016

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Edição número 197, do mês de Junho de 2013, do Informativo O ESTAFETA, da Fundação Christiano Rosa, de Piquete.

TRANSCRIPT

Page 1: JUNHO 2013

E D I T O R I A L

ÓRGÃO DA FUNDAÇÃO CHRISTIANO ROSA

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PIQUETE, JUNHO/2013 - ANO XVI - No 197

O ESTAFETAFoto Arquivo Pró-Memória

A sociedade brasileira foi surpreen-dida nas últimas semanas por um exem-plo de exercício de cidadania há muitotempo não visto no país. Milhares decidadãos brasileiros foram às ruas, nummovimento apartidário sem precedentes,reivindicando redução nas tarifas dostransportes públicos e outras melhorias.

As manifestações começaram comouma forma de expressar a frustração comas tarifas de transportes, mas se torna-ram algo maior. Agora são protestos paramostrar aos nossos políticos que elesdevem nos prestar contas quando deci-direm gastar dinheiro com Copas doMundo, por exemplo, ao invés de inves-tir na Educação; quando aprovam orça-mentos sem transparência ou quandoenviam a polícia para reprimir manifes-tantes pacíficos que estão exercendoseus direitos democráticos. Atônitos, ospolíticos observam com medo e espan-to. Eles não entendem que há um novoBrasil surgindo e que esse Brasil é nos-so, e que somos nós quem podemos di-zer o que fazer com ele.

Os brasileiros resolveram virar ojogo: somos nós, cidadãos, que decidi-remos o que os políticos e as institui-ções farão e não o contrário. Esta é novademocracia, que nasceu do povo para opovo. O movimento que está começan-do agora tem potencial para remodelar aatual democracia para melhor. Basta decorrupção, do mau uso dos recursospúblicos, de políticos condenados ocu-pando cargos relevantes na república.

As ruas estão sendo tomadas porcidadãos cada vez mais conscientes deque trabalham muito, pagam altos impos-tos e recebem cada vez menos dos go-vernos. A grande maioria dos serviçosprestados nos diversos setores públi-cos é de péssima qualidade. Como pen-sar num país desenvolvido se nossaeducação é uma das piores do mundo eos serviços de saúde oferecidos são in-suficientes?! O dia em que cada cidadãotiver em mente que trabalha cinco me-ses do ano para pagar impostos e, aindaassim, não dispõe de serviços públicosde qualidade, a irritação será ainda mai-or do que a vista nessas últimas sema-nas. É só uma questão de tempo.

Técnicos contratados pelo InstitutoChico Mendes de Conservação da Biodi-versidade (ICMBio) deram início no finalde maio a uma série de reuniões com osmoradores dos municípios cortados pelaÁrea de Proteção Ambiental (APA) daMantiqueira, visando ao levantamento deinformações socioeconômicas que servirãode base para a elaboração do Plano de Ma-nejo dessa APA.

O Plano de Manejo estabelece o zonea-mento e as normas que devem regular o usode uma unidade de conservação e o manejodos recursos naturais que nela existem. Aaprovação desse Plano também implica nadefinição do conjunto de ações necessáriasà gestão da área protegida; ele tem comoobjetivo conciliar os diferentes usos com aconservação da biodiversidade.

O Plano de Manejo é uma ferramentaconstruída em conjunto com a populaçãoda região de localização da unidade de con-servação para definição das regras de uso ede conservação dos recursos naturais, mos-trando o que a região possui de bom e o queprecisa ser preservado. A mobilização coma população acontece por meio de reuniões.O primeiro encontro foi realizado no dia 27de maio e os próximos vêm acontecendo e

serão finalizados até o dia 3 de julho. Serãovisitados os 29 municípios abrangidos pelaAPA da Mantiqueira, nos estados de SãoPaulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. EmPiquete, as reuniões já aconteceram: a pri-meira com moradores dos bairros Benfica eTabuleta, e a segunda no Bairro dos Marins.

A APA da Serra da Mantiqueira foi cria-da pelo Decreto Federal número 91.304, em3 de junho de 1985.

A Serra da Mantiqueira faz parte de umadas maiores cadeias montanhosas doSudeste brasileiro. Entre os objetivos daAPA estão: a conservação do patrimôniopaisagístico e cultural das regiões mais altasda Serra da Mantiqueira; a proteção e apreservação da flora endêmica, dos rema-nescentes dos bosques de araucária, dacontinuidade da cobertura vegetal doespigão central, das manchas de vegetaçãoprimitiva e da vida selvagem, principalmen-te as espécies ameaçadas de extinção.

Outro objetivo importante da APA é aproteção dos recursos hídricos da Serra daMantiqueira, onde nascem importantesafluentes dos rios Grande e Paraíba do Sul,responsáveis pelo abastecimento de boaparte dos estados de Minas Gerais e Riode Janeiro.

O Plano de Manejo da APA da Mantiqueira

A Serra da Mantiqueira faz parte de uma das maiores cadeias montanhosas do Sudeste brasileiro. Éprotegida como APA (Área de Proteção Ambiental) pelo Decreto Federal 91.304, de 3 de junho de1985. Um levantamento de informações está sendo efetivado para regulamentar seu Plano de Manejo.

Page 2: JUNHO 2013

Página 2 Piquete, junho de 2013

Imagem - Memória

A Redação não se responsabiliza pelos artigos assinados.

Diretor Geral:Antônio Carlos Monteiro ChavesJornalista Responsável:Rosi Masiero - Mtd-20.925-86Revisor: Francisco Máximo Ferreira NettoRedação:Rua Coronel Pederneiras, 204

Tels.: (12) 3156-1192 / 3156-1207Correspondência:Caixa Postal no 10 - Piquete SP

Editoração: Marcos R. Rodrigues Ramos

Laurentino Gonçalves Dias Jr.

Tiragem: 1000 exemplares

O ESTAFETA

Fundado em fevereiro / 1997

Fotos Arquivo Pró-Memória

Na segunda metade do século 19, a exem-plo do que ocorreu por todo o Vale doParaíba, houve a expansão da culturacafeeira por terras piquetenses e a forma-ção de inúmeras fazendas. No auge da pro-dução, as fazendas viviam em intensa movi-mentação. Enquanto parte do café colhidosecava nos terreiros, outro tanto era des-cascado, separado, ventilado e classificadonos moinhos, tulhas e engenhos. Para ga-rantir o aumento da produção dessa lavou-ra, era necessário um crescente número demão de obra escrava. Nas lavouras, gruposde cincoenta, cem e até mais escravos ocu-pavam-se da colheita, preparo, ensa-camento, pesagem e transporte para casasde comércio e centros exportadores. Duranteo segundo reinado, o café foi a principalfonte de renda do Império. As fazendasvaleparaibanas eram as principais respon-sáveis pelo café exportado e, portanto, aprincipal mantenedora do Império. O Valedo Paraíba tornou-se, com isso, o principalcentro econômico. O solo fértil, o clima ame-no e a crescente mão de obra escrava sófavoreciam a cultura cafeeira. Rapidamente,os grandes proprietários se enriqueceram.As fazendas foram sendo incrementadascom a compra de máquinas de beneficia-mento de café, construção e adaptação demelhorias nas casas grandes, senzalas,depósitos de café, tulhas e outras edifica-

ções. Em fins do século 19, esse faustoapresenta sinais de declínio causados pelodesgaste do solo e pela abolição da escra-vidão, em 1888. Não demorou para que aslavouras fossem deixadas de lado e cafezaiscada vez mais improdutivos abandonados.

Quando da emancipação político-admi-nistrativa do bairro lorenense do Piquete,em maio de 1891, a produção cafeeira dasprincipais fazendas diminuiu acentuada-mente. Os cafezais já não produziam comoem décadas anteriores. O café deixou de serinvestimento certo e seguro. Muitas propri-edades foram vendidas a preços irrisórios.Alguns cafeicultores migraram com suasfamílias para o oeste de São Paulo, ondeterras de solo fértil produziam café de quali-dade em abundância. Os que ficaram tive-ram que se adaptar enfrentando tempos demuitas dificuldades. Alguns conseguirampor mais algumas décadas manter um ououtro cafezal. Um dos que se adaptou aosnovos tempos foi o capitão Antonino Perei-ra da Rosa, proprietário da Fazenda da Bar-ra, à entrada de Piquete, no lugar em que osribeirões Piquete e Itabaquara confluem. Oscafezais que verdejavam os morros foramsubstituídos pelo gado leiteiro. O capitãoRosinha, como era conhecido, intensificouseus investimentos na pecuária. Criou, aexemplo de outros fazendeiros, muitos bo-vinos com sangue de raça holandesa, che-

gando a importar animais da Frízia, regiãodo norte dos Países Baixos, na Europa, ondehavia uma raça especialmente destinada àprodução de leite.

Observando a fotografia da Fazenda daBarra que ilustra este “Imagem Memória”,datada dos primeiros anos do século 20,evidenciamos o período de transição denossa história econômica: no primeiro pla-no vemos, às margens do ribeirão Piquete,o gado leiteiro recém-introduzido na região;ao fundo, atrás da sede da propriedade,observam-se, perfilados, reminiscências decafezais. Ao lado, antigas senzalas adapta-das para casas de colonos e armazéns. Essafotografia fornece aos curiosos de nossopassado histórico preciosos dados paraanálise e entendimento.

A Fazenda da Barra

Page 3: JUNHO 2013

O ESTAFETA

GENTE DA CIDADEGENTE DA CIDADE

Página 3Piquete, junho de 2013

Margarida Campos

Junho me é um mês especial: há datasque me são muito caras. Neste 2013 nãofoi diferente, foi especial. Procuro sempreagradecer por tudo, ainda que nem tudome agrade. Fio-me na fé de que o melhorestá por vir e que isso depende de meuempenho. Bem... Isso no âmbito pessoal...Já no coletivo, este junho foi uma surpre-sa. As manifestações em todo o Brasil sur-preenderam – seja pelo ineditismo em maisde 20 anos, pela forma como surgiram oupelos resultados que já proporcionaram.Não há como não comentar...

Acompanhei somente pela mídia. Emminha opinião, o alcance e o desdobra-mento da manifestação paulistana lidera-da pelo Movimento Passe Livre para pedira revogação do aumento das passagensno transporte coletivo devem ter surpre-endido até mesmo os organizadores. Umfato pontual desencadeou inéditas de-monstrações de descontentamento de todauma nação com a condução de outros se-tores além do transporte, especialmentesaúde e educação. Além disso, protestou-se veementemente contra a corrupção emtodos os níveis e os gastos excessivos noseventos esportivos das copas das Confe-derações e do Mundo e Olimpíadas.

Não há como não admirar a manifesta-ção democrática de um povo exigindo di-reitos básicos, transparência e seriedadeno trato com a coisa pública. De início tra-tados severamente pela mídia – e pela po-lícia – como agrupamentos de baderneiros,os movimentos provaram-se sérios e tive-ram sua avaliação revista: passaram a “ma-nifestantes” e tiveram sua causa encam-pada por todos, mídia inclusive. Porém,como em qualquer acontecimento queenvolva mais de uma pessoa, ou seja, pen-samentos diferentes, há choque de ideiase encontram-se “laranjas podres”, aque-les que se destoam da esmagadora maioria.Neste caso, surgiram os vândalos –covardes mascarados que aproveitaram asmanifestações para atacar prédios emonumentos públicos e privados e saquearestabelecimentos. Para esses, cassetete eprisão são os tratamentos merecidos. Crí-ticas diversas surgiram: os que exigiramque não houvesse invocação de partidosforam taxados de ditatoriais e de extrema-direita, por exemplo. Discordo completa-mente: não sou contra partidos políticos;eles são a representação principal da de-mocracia e do livre pensar. Mas não dápara aceitar que as siglas existentes no Bra-sil (não são partidos, em minha opinião)tentem tirar proveito de uma situação legi-timada pela espontaneidade. Não se justi-fica, é claro, a violência, mas a passivida-de frente a aproveitadores não pode sertolerada ou mesmo corroborada.

Espero que as manifestações pacíficascontinuem. Que o povo tenha finalmenteacordado para a real condição de nossopaís, tão maltratado por políticos inescru-pulosos – bandidos mesmo – que pensamapenas em seu enriquecimento. Que, prin-cipalmente, tenhamos consciência de quea culpa desses políticos estarem no poderé nossa: receberam nossos votos. Acor-demos realmente, brasileiros! Salvemos apátria amada, Brasil! Ainda há tempo.

Laurentino Gonçalves Dias Jr.

Salvemos a pátriaamada, Brasil!

Aos 84 anos, completados no último dia15 de junho, é exemplo de determinação,coragem e fé. Voltada para a família e otrabalho, Margarida Borges de Campos vemsuperando as adversidades da vida.

Essa portuguesa de Vila Franca da Beira,distrito de Coimbra, é filha de SebastiãoBorges de Campos e Maria Tavares Borges.Os pais tiveram cinco filhos, entre eles D.Margarida e o irmão gêmeo Firmino Borgesde Campos. Vila Franca da Beira é umapequena aldeia pertencente ao Conselho deOliveira do Hospital, próxima à cidade deLiseu. A família vivia da lavoura de batata,milho, trigo, centeio – todos trabalhavam;“eu, com 7 anos já ajudava nos serviços dacasa”. Com 21 anos, em 28 de outubro de1950, casou-se com Aurélio Tavares deCampos, na Capela de Santa Margarida, emVila Franca. Em sua terra natal nasceram osdois primeiros filhos. Em 1944, seu irmão maisvelho, Manoel Campos, veio para Piquete,onde comprou, de Miguel Purcino Ferreira,a “Casa Progresso”. “Naquele tempo, coma construção da estrada para Itajubá e aexpansão da Fábrica, circulava muitodinheiro por Piquete”, afirma D. Margarida.Atraído pela oferta de trabalho, o maridoveio, em 1951, para Piquete, trabalhar com ocunhado. Em 1952, adquiriram de AntônioArmando um bar na Praça da Bandeira. Trêsanos após a vinda de Aurélio, Margaridaembarcou com os filhos para o Brasil, em15/08/1954. Recorda-se de que, no meio daviagem, ficou sabendo da notícia do suicídiode Getúlio Vargas. “Foi um momento deapreensão, pois o local desembarque quasefoi alterado”. Após 16 dias de viagem,desembarcou no Rio de Janeiro e veio paraPiquete. “Espantei-me com a quantidade demorros e sentia muita falta das frutas deminha aldeia: uvas de todos os tipos, cerejas,pêssegos, figo...” – essas foram as primeirasimpressões de D. Margarida.

Em 1957, o esposo Aurélio e o cunhadoFirmino compraram o Hotel Brasilino, queteve seu nome alterado para Hotel Brasil.As duas famílias passaram, então, a residirno Hotel. No Brasil, D. Margarida teve maistrês filhos. “Foi um período de muitotrabalho, mas muito bom... O estabele-cimento era hotel, bar e restaurante. Imagine:não havia gás; o fogão era a lenha... Eraduro o trabalho de cortar a lenha e cozinharno período de chuvas...”, conta, saudosa.O Hotel tornou-se referência... Contava com14 quartos – “todos sempre ocupados”,afirma D. Margarida. Além dos quartos,dispunha de um amplo salão, frequen-temente utilizado para encontros políticos econfraternizações diversas. Os hóspedeseram militares, jogadores de futebol, funcio-nários de banco, além de viajantes.

Em 1962, o pai de D. Margarida faleceuem Portugal e a mãe foi trazida para morarcom os filhos. Aqui faleceu, em 25/10/1987,com 93 anos. A família passou a residir àavenida Rodrigues Alves. No início dos anos90, D. Margarida perdeu a filha mais velha.A doença e a morte da filha foram um baquepara a família. Poucos anos depois, em 1993,ficou viúva. As ausências e perdas forampreenchidas por três netos que vieram morarcom ela. Os sobressaltos foram enfrentadoscom força e coragem.

Criada sob preceitos fortementereligiosos, D. Margarida afirma: “somentecom muita fé e a ajuda de Deus venhosuperando as dificuldades da vida; forammuitas perdas...”. Emociona-se ao falar dafamília, de seus dez netos e, princi-palmente, do primeiro bisneto, de poucosmeses.

Há quase 60 anos em Piquete, D.Margarida diz amar a cidade. Sente-sehonrada por aniversariar no mesmo diado município. Cita a antiga CorporaçãoMusical Piquetense, que, em todos os 15de junho, lanchavam em seu bar e, emseguida, formados em frente ao Hotel,tocavam o “Parabéns Pra Você” para acidade, ela e seu irmão.

Page 4: JUNHO 2013

O ESTAFETA Piquete, junho de 2013Página 4

Qual é o motivo da cidade?Na data aniversariante de nossa cidade

é importante considerarmos que todas ascidades têm símbolos, isto é, elementos re-conhecíveis da identidade que lhes é atri-buída. São símbolos imateriais como a his-tória, a memória e as narrativas cultivadasno imaginário e transmitidas por gerações,além dos materiais como as edificações.

Piquete é reconhecida na paisagem pe-los edifícios, os rios, o entorno da serra, asmatas, os campos. Dos edifícios marcadores,destacamos os das sedes matriciais católi-cas – a antiga matriz harmonizada no seutempo com a cidade nascente, no promon-tório, que lhe permite ser vista com suastorres arredondadas, o relógio e os peque-nos galos sinalizadores das direções dosventos. Na outra colina, a nova Matriz,tetrangular, erigida pelo sonho e a pranche-ta de Prometheu da Silveira, o arquiteto queaqui aportou e se instalou, e elegeu Piquetepara aqui terminar seus dias, vinculado parasempre ao tetraedro de Miguel Arcanjo.Tetraedro espelhado nos vértices agudosdas montanhas cobertas de verde esmeral-da ou azul safira, ou azul lápis-lazulli, ou plúm-beo, no cinzento das catadupas vertigino-sas, ou enevoadas na cor do gelo, e da gea-da. Névoas apaziguando arestas e vérticese dando leveza de plumas à aspereza dasencostas. Enganadoras, a ameaçar incautosnas estradas circunvolantes e fossosabissais, precipícios.

Na cronologia, a edificação da fábricade pólvora, dos edifícios de trabalho e pro-dução, referências máximas da instalação donúcleo de produção bélica e seus mobiliza-dores, acompanhantes e caudatórios. Rele-vância do complexo urbano diversificado dehierarquias e os equipamentos da circula-ção – as estações ferroviárias, a neoclássicaRodrigues Alves, eclética modelagem doinício do século 20, e a moderno-militar Es-tação da Estrella do Norte, assim grafadapara localizar o imponente Marins de frente,e a Vila Militar atrás da gare, as duas facha-das abertas e amplas.

Equipamentos urbanos referenciadoresda Fábrica de Pólvora Sem Fumaça, depoisPresidente Vargas, mantendo o fio de liga-ção histórica de expansão e povoamento dacidade. Como selo de autenticidade, umaimagem, a da cidade, e a outra, a da Fábrica,transfiguram-se, resistentes aos desgastes,

para testemunhar um passado eloquente epositivista, alimentado pelos cultores for-mados na era Vargas, moldados à luz donacionalismo, do progresso e da ordem. Ci-dade estrategicamente não representada nosmapas dos meados do século passado, Pi-quete foi “escondida” no Vale do Paraíba.Cogitava-se, por consequência, se ela faziaparte dessa unidade territorial, até que a li-beração da logística bélico-militar projetou-a na subunidade do Cone Leste, intersec-cionada ao vale tributário da Bacia doParaíba do Sul, o do Ribeirão Piquete, e àselevações mantiqueiras de acesso às fron-teiras São Paulo-Minas. Piquete, aquela, so-bre a qual só se falava veladamente ou sobepítetos, alguns até menos favoráveis, setornou foco num vale de destacados con-juntos ligados ao belicismo e por um deter-minado espaço de tempo mantida portado-ra de uma importante infraestrutura social,com destaque na educação. Hoje, marcaevocatória do esgotamento do modeloparadigmático do corpo e mente sãos. Ou,em outras palavras, valorizados.

Uma população mesclada define a pai-sagem humana. Muitos descendentes de ex-escravos alforriados e por fim libertos, a en-grossar as correntes dos estigmatizados pelamarginalidade e a exclusão. Mão de obradisponível e barata.

Ao aumento relativo de habitantes, fru-tos do crescimento vegetativo, somou-se achegada de estrangeiros – principalmenteespecializados no trabalho industrial emcurso. A Fábrica equipava-se e aumentava aprodução até singularizar-se no conjuntolatino-americano. A população requeria bense favorecia a chegada de artesãos de ori-gem europeia.

Mas, que nos dizia a “cidade invisível”que se denotava no modelo projetado sob aégide militar? Ainda uma cortina recobre essepassado, emblematizado e vangloriado numrepertório emocional alimentado pelo fogodas paixões.

Que imagem dela temos hoje, 122 anosapós a emancipação político-municipal,quando, agora, a população começa a dis-cutir seu futuro a partir das perdas do pas-sado e a sentir-se no direito de tomar real-mente as decisões? Estaríamos no limiar deuma nova emancipação?

Dóli de Castro Ferreira

Existir é ter o tempo marcado no espaço;Simbolizado nas formas e registrado na memória,

Motivado nos significados.

Salve Piquete!

Fot

os A

rqui

vo P

ró-M

emór

ia

Piquete,A cidade da espera.À espera do amorPasseiam gentesNas calçadas.À espera da missaAndam as devotasEm roda da igreja.À espera da festaArrumam-se as moças,Limpa-se o pó dos ternos,Procura-se a gravata borboleta.À espera do filmeFazem-se filas nas calçadas.À espera de mais nadaSentam-se ao solVelhos de olhos viajados.À espera de encontroVagueiam os sem-encontro.À espera do que viráCaminham todosNesse universo morno.Viver nele é procurarÉ escalarSempre e sempreSuas montanhas azuisÀ procuraDe se acharDe se chegarOnde se possaDeixar os olhosE voltar.

PiqueteMolementeEnrolado nas montanhasPiqueteCom tudo que é bomO riacho

QueDesce

Amor-tecendoPor

OndePassa

A cruzQue do altoOlhaO mais altoE se suja de azul.O sol de PiqueteCom seus olhosCaiados de luzTraz para fora pessoas,Pessoas que saúdam o solCom seus sorrisosPassados a limpo.PiqueteOnde também as cruzesSe sujam de vermelhoOnde também os sorrisosFicam no rascunhoOnde também a ternuraFica sobre pedras.

Vera Lúcia Machado (1971)

Vera Lúcia Machado (1971)

Page 5: JUNHO 2013

O ESTAFETA Página 5Piquete, junho de 2013

O poemeto aqui colocado é uma singelahomenagem a um grande homem, eméritocidadão piquetense – “seu” Dito. Habitan-te do bairro da Estação, a Estação Ferroviá-ria Rodrigues Alves, pontua, com eloquên-cia, o local, e dele faz referência para sernomeado – “Seu” Dito da Estação.

Assim como é costume muito antigo nassociedades ibéricas o nome de um moradormais famoso, conhecido e representativo,cede a individualidade para a identificaçãoda nomenclatura referencial básica.

92 anos é um tempoMemorávelPara se viver,Não é, “seu” Dito?E nesses 73, paraSe fazer uma festaAnimada. Errei a data?Mas não o efeito.Este é real.É a soma dos diasDedicados a pensarNa festa, para promovê-la,A chamada festaDa queima do Judas,O traidor entregadorDe Jesus para o suplício,E a promoçãoDa promessaDos sacramentosMinistrados. O Rei e Senhor.E da boa novaDa RedençãoAplicada como PáscoaDa irmanação fiel,E da imantaçãoDos privilégios da vida eternaCentrada no eventoDa paixão glorificada.

“Seu” Dito2 de abril – 2013

No dia 15 de junho foi realizado o “Terçodos Negros” em homenagem a Santo Antô-nio. Nunca havia participado da reza, tradi-cionalmente realizada na casa do Gil doJongo, na Vila Eleotério, em Piquete.

Cheguei já próximo ao final, mas presen-ciei cenas que me emocionaram. O terço nãoé rezado da forma tradicional, mas cantadocom vozes fortes que soam tristes e emoci-onadas. Um número muito grande de pes-soas lotava a residência de Gil. Vislumbreiali o real sentido de comunidade, de parti-lha. São familiares e amigos que se reúnematraídos pela amizade e pelo carinho. As “in-tenções” do terço são emocionantementecantadas por todos. Reza-se pela saúde de

membros do grupo, pela memória dos quenão mais estão ali, pela recuperação de ami-gos... E, como não podia deixar de ser, algu-mas “moças casadouras” também fazemseus pedidos, né?!

O mais importante, em minha opinião, éa união e a fraternidade evidenciadas. É pormeio desses sentimentos que conseguemse reunir anualmente para saudar SantoAntônio. A casa lotada de colchões e as ati-vidades divididas são outros sinais de es-pírito comunitário e de amizade.

A reza do terço é seguida por uma gran-de festa. Animação é a tônica, depois derealizados os pedidos com a certeza do aten-dimento pelo santo. Complementaram a noi-

te farta distribuição de saborosa canjiquinha– perfeita para a noite fria, mas aquecida poruma fogueira –, apresentação de Folia deReis e uma animada roda de jongo.

Tradição, cultura, demonstração de fé...foi o que encontrei naquela noite... É o quediversos estudiosos acadêmicos presentestambém puderam partilhar. Esta reza acon-tece já há muitos anos em Piquete e carecede continuidade. Percebe-se que as“puxadoras” são “pretas velhas”; é essen-cial que busquem passar o costume adian-te. Dessa forma, manter-se-ão vivas e pode-rão dar-nos o prazer de muitos momentoscomo o deste 15 de junho de 2013.

Laurentino Gonçalves Dias Jr.

Mais do que isso, seu Dito é o patroci-nador de uma festa já tradicional no eventoda Páscoa, com a queima do Judas sob in-tenso foguetório, música e gritaria da crian-çada.

Desconheço sorriso mais feliz do que odele ao ver o grande número de criançasbrincando e pulando nos artefatos para es-ses fins que Regina, sua filha, prepara, or-ganiza e administra. Acrescente-se a fartadistribuição de pipoca e algodão doce. Emais, balas, pirulitos, e demais guloseimasacondicionados e atirados às crianças quese aglomeram à porta da casa familiar dele.

Aos 92 anos, seu Dito mantém anual-mente essa tradição, que já salientei em pá-ginas deste periódico e que faz parte do ca-lendário cultural da cidade como componen-te do patrimônio imaterial. Somente falta oreconhecimento pelas autoridades do even-to e a presença que daria ao patrocinador obeneplácito da felicidade completa.

Seja documentada essa iniciativa pelaCâmara Municipal, e garanta-lhe nas pági-nas de seus registros essa passagemmarcante de ocorrência por 73 anos.

Ancorado nessa alegria, seu Dito apre-senta-se firme em cada festa, projetando apróxima, recebendo os amigos e distribuin-do presentes. Faz questão disso e não medeesforços para atender a todos que apare-cem para cumprimentá-lo.

Eis um belo exemplo de civilidade.Que seja lembrado principalmente neste

mês de junho em que se comemora o aniver-sário de emancipação política de Piquete.

É bom considerarmos que seu Dito estájunto à Estação Ferroviária, num dos polosdo eixo que faz a ligação com a matriz tradi-cional – os dois focos simbólicos defini-dores do processo civilizatório que deu ori-gem ao núcleo e ao aglomerado urbano.

Dóli de Castro Ferreira

Fot

os A

rqui

vo P

ró-M

emór

ia

O “Terço dos Negros” – união e fraternidade

PiqueteAlmofadada entre montanhasPiqueteApenas tu possuis

a calmao olhar manso do solnos dias sem surpresas.

A procissão do Santíssimo,com seus tapetesde ternura simples.

Cabeças baixasacompanham a procissãorelembram castamenteoutras procissões tão iguaistão sem surpresas.

Sem surpresaso trenzinho de operáriosque chega todo dia.Os mesmos rostos,a mesma marmita,o mesmo olhar deencontro sem resultado.

Sem surpresasas bicicletas operáriasque levam e trazem todo diaesperança e desencontro...

Sem surpresasos filmes de mocinhoonde morre o bandido.

Sem surpresasos namorados que se veemà mesma hora, na mesma pracinha.

Sem surpresaso sol que nasceo sorriso que surge - ou não surgeo rio que se joga a si mesmo nas pedras.

Sem surpresaso luar que surgenão se sabe de ondemas para que saberse tudo são não-surpresas.

Por isso os meus olhossem surpresasforam deixadosem Piquetesozinhos.

Vida em Piquete

Vera Lúcia Machado (1971)

Page 6: JUNHO 2013

O ESTAFETA

Edival da Silva Castro

Página 6 Piquete, junho de 2013

Crônicas Pitorescas

Palmyro Masiero

A descoberta do amor

Jardim Zoológico

Acesse na internet, leia edivulgue o informativo

“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”

www.issuu.com/oestafeta

***************

Bons tempos aqueles em que, juntamen-

te com amigos, nas tardes de domingo, ía-

mos passear no zoológico da Fábrica Presi-

dente Vargas.

Localizado no recinto onde funcionava

o Jardim da Infância, as crianças tinham o

privilégio de aprender o ABC ouvindo as

vozes dos animais e o canto dos pássaros.

As jaulas circundavam as salas de aula,

o viveiro dos pássaros silvestres ficava

após as jaulas, no fundo esquerdo de quem

entrava no zoo. Era o recanto mais visitado

pelos passarinheiros por possuir enorme

variedade de aves canoras. O aquário, or-

namentado com estátuas da Branca de Neve

e dos sete anões, recebia muitos turistas,

tendo em vista a variedade de peixes, de

plantas exóticas e a beleza do lugar.

O zoológico seria hoje a única maneira

de as crianças conhecerem de perto um pe-

daço de nossa fauna, de se amedrontarem

com o rugir da onça pintada, de sorrirem

com as macaquices dos macacos, de se ad-

mirarem com o canto do pavão e de ficarem

apreensivas com o silvo da cobra jiboia.

Defronte ao jardim zoológico, num es-

paço entre a margem esquerda do ribeirão

Benfica e a rua, um búfalo chamava a aten-

ção dos transeuntes pela grandeza de seu

porte. Ele passava o dia ruminando, mugin-

do e babando na sua baia improvisada.

O saudoso seu Marinho possuía a mis-

são de alimentar e observar o bem-estar de

cada irracional.

Até por volta das dez horas da manhã,não me lembro de nada especial que me fi-zesse desconfiar que naquele dia eu tivesseme levantado com o diabo no corpo. Poresse horário, ao abrir o velho armário ondese guardavam as compras do mês, foi quesuspeitei de sua presença. Dentro do armá-rio, vi uns pacotes de cigarro fechados – ovelho comprava para o mês todo – e umaberto com umas carteiras. Juro que não fuieu e sim o luciferzinho que estava comigoque tirou uma carteira do pacote (eu lembro:era Beverly) e que, num toque mágico, aco-modou-se no meu bolso. Logo, a busca deuma caixa de fósforo, que veio fazer par coma carteira. Não atinava bem, mas estava memuniciando para alguma coisa que só ochifrudinho poderia dizer.

Mais tarde, passaram do meu bolso paraa bolsa da escola. Depois do banho, almo-ço, cabelos penteados e coberto de bên-çãos, estava eu a caminho do Grupo. Naesquina, o Pirinho, um pretinho magricela,já me esperava. Encontramos, mais à frente,o João e o Nelson – estava formado o quar-teto do dia em direção às aulas. No trajeto,contei-lhes o segredo que minha bolsa con-tinha, e o diabozinho incumbiu-se de colo-car na minha boca um plano e na cabeçadeles a aceitação do mesmo.

Saímos do caminho costumeiro e toma-mos por uma trilha que subia por um morroarborizado e ia dar na rua de cima. No meiodo atalho dobramos à direita e debaixo deuma árvore nos sentamos e começamos afumar. A fumegação era danada... Um cigar-ro atrás do outro... Tontura geral, enjoo, tos-ses de arrancar lágrimas... Estávamos malcom o negócio...

A consciência estava me doendo. Meupai tinha uma coleção de filhos, dava duropara saciar as goelinhas abertas... Não, nãopodia jogar fora o restante do maço. Apósleve pausa, a fumaça recomeçou e o mal-estar aumentou... Pirinho não suportou: oque tinha vomitou... Ali estávamos os qua-tro, embrulhados numa terrível indisposição,boca terrivelmente amarga e aula cabulada...

As horas não corriam... Tempo de solfervente e parado. Nós, mudos, ruminando

nosso desassossego. Bastava lembrar dolanche para o estômago se revoltar. Pelastrês horas, talvez, ouvimos ligeiros sussur-ros, gemidos, ou coisa parecida, pouco maisabaixo de onde nos encontrávamos.Sobressaltamo-nos. Estariam nos caçando?Ansiedade. Permanecemos em silênciotumular. Voltamos a ouvir claramente levesmurmúrios e respiração ofegante. Resolve-mos, nos arrastando como cobras pelo mato,ir em direção ao ruído. E vimos, pouco abai-xo, em outra clareira, sob a sombra de umaárvore, um enorme crioulo deitado em cimade uma mulher branca, ambos como que lu-tando.

Com nossos nove anos de idade, somen-te um pensamento nos ocorreu: o negãoestava matando a mulher. Assustados, emdesabalada carreira, tomamos a trilha aosberros de que havia um homem matandouma mulher no meio do mato. Apareceramdois empregados de uma venda da rua decima e, juntos, fomos ao local do crime...Nada encontramos, porém. De lá vimos ocrioulo correndo para um lado e a mulherpara o outro, já no sopé do morro. Quandoexplicamos aos dois como estava o casal,desandaram a rir – piada que não entende-mos – e, retornando, displicentemente, nosdisseram que os dois estavam fazendo amor.

O único amor de que já tínhamos ouvidofalar fora no catecismo: “amar a Deus sobretodas as coisas”. Na escola, dia seguinte,contamos a cena assistida, a nosso modo, eos mais velhos e tarimbados nos deram umaaula de sexologia – ao modo deles... E fica-mos assim sabendo de uma atividade hu-mana que jamais passara por nossas cabe-ças.

Hoje fico imaginando porque odemoninho que me encaminhou para a gran-de descoberta não o fez de outra forma...Deixa-me, agora, muito triste a lembrança deque, para descobrir o amor, eu tivesse dei-xado um casal assustado, incompletado efrustrado... Resta-me tão somente a espe-rança de que eles tenham tido outra oportu-nidade de terminar o que fora iniciada – des-ta vez em paz!

A Fundação Christiano Rosa parabeniza os poderes

constituídos e os piquetenses pela passagem do 122o

aniversário de emancipação político-administrativa de

Piquete!

Salve 15 de junho!

Page 7: JUNHO 2013

O ESTAFETAPiquete, junho de 2013 Página 7

Não há quem discorde: “a populaçãobrasileira se deslocou do campo para a ci-dade”.

Curioso é que ninguém percebesse asconsequências; ou melhor, antes não setivesse preocupado com as causas.

Deus foi realmente brasileiro quandosoprou no ouvido de alguém que era pre-ciso criar Brasília.

Mesmo tendo sido a capital da Repú-blica até 1960, a cidade do Rio de Janeironão tomou as providências necessáriaspara assimilar o acréscimo de populaçãoque se constatou.

A cidade de São Paulo cresceu num rit-mo tão acelerado, que toda a gestão de umPrefeito não consegue produzir um ordena-mento que tenha visibilidade.

A coragem dos agropecuaristas paulis-tas, paranaenses, catarinenses e gaúchosmudou a face do centro-oeste e chegou aosul do Maranhão, ao sul do Piauí, Tocan-tins e oeste da Bahia.

Agora, cabe ao Governo Federal efetu-ar um planejamento inteligente que tire omelhor proveito dessas migrações espon-tâneas e delas crie subsídios importantespara a distribuição da população brasilei-ra.

O planejamento da distribuição popula-cional brasileira tem-se caracterizado pelaprocrastinação de providências semnenhum motivo justificável.

A estruturação da atividade agrope-

O inchaço das cidadescuária familiar sempre foi indicada como omelhor caminho para inibir o êxodo rural.

No entanto, as terras quilombolas ga-rantidas pela Constituição de 88, sequer fo-ram regularizadas.

As terras indígenas são federais. Nin-guém quer manter os índios apartados dasociedade nacional.

É preciso evitar a caboclização do índio,o que o fará passar por mais uma etapa an-tes de atingir a comunidade nacional.

A cultura do índio tem rígidos contor-nos e é facilmente atingida ao ser esquadri-nhada por profissionais competentes. Nareserva será mais fácil dar atendimento prin-cipalmente de saúde e de educação.

A cultura do caboclo é fragmentária eengloba influências de várias vertentes;abriga receios e preconceitos arraigados, oque dificulta a ação de funcionários do Go-verno e Organizações Não-Governamentais(ONGs).

O Semiárido é mais um item da ausênciado Poder Público.

A seca do semiárido brasileiro é cíclica eé possível conviver com ela.

O povo brasileiro espera que os prejuí-zos da seca de 2012 nunca mais se repitam.

Quando se fala em cultura cabocla, amente corre para a Amazônia. Mas a popu-lação do semiárido também apresenta aspeculiaridades desse modo de interpretar omundo.

A presença da escola e dos demais agen-

tes sociais é necessidade premente.Esses núcleos populacionais em que o

Poder Público raramente põe os olhos, emsituação de desespero, costumam migrar eocupar, em condições precárias, a periferiadas cidades.

São famílias que se dedicavam, na mai-oria das vezes, à agricultura e pecuária desubsistência em seu local de origem.

A estruturação da atividade agrope-cuária familiar pode manter o homem nocampo.

Os projetos devem partir dos estadoscom subsídios fornecidos pelos municípi-os. Só então cabe a interferência do Minis-tério do Desenvolvimento Agrário.

No atual modelo, as pequenas proprie-dades não conseguem manter suas famíli-as; os sítios são vendidos e todos partempara as cidades ou tomam o rumo dashostes do MST (Movimento dos Traba-lhadores Sem Terra).

Essa dívida tem de ser paga agora; nãohá mais clima para a espera.

A paz na cidade ou no campo só temuma receita: núcleo de produção casadocom um núcleo de população.

Aí brotam cidades, vem o Cartório, aPolícia, vem a Igreja, vem o Banco, vem aEscola, vem o Hospital, o Correio.

Dúvida? Vá dar uma olhadinha na cida-de mato-grossense de Rondonópolis, meucaminho para Poxoreo e Sangradouro em1970-71. Abigayl Lea da Silva

Os protestos que tomaram conta dediversas cidades de nosso país nos últimosdias têm grande importância política. É certoque os gritos das ruas serão, de algumamaneira, ouvidos pelos governantes destepaís. A democracia é celebrada pelo povoque, nas ruas, está clamando por seusdireitos, está cansado de tanta corrupção,má gestão do Estado, impunidade e descasocom as demandas públicas. As manifes-tações populares são fundamentais paraque a democracia se consolide de fato emuma nação, não apenas como ideologiapolítica, mas como modo de organização detoda a convivência social.

Ainda estamos longe de viver em um paísdemocrático. Podemos escolher nossosgovernantes, mas isso é apenas o começo.Uma nação vai se tornando realmentedemocrática enquanto seu povo vai setornando, literalmente, dono de seu país:dono das terras, dos meios de produção,das riquezas naturais e criadas. Essa é a basede uma verdadeira democracia. Um governodemocrático é aquele que zela pela possejusta e compartilhada das riquezas de umpaís, de forma que todos os cidadãos sejamdonos de uma parcela de bens que lhesgarante dignidade.

A democracia é uma conquista que não

O País precisa de mais donospode prescindir de elementos estruturantescomo a reforma agrária, a demarcação deterras indígenas, a limitação da posse daterra, o confisco de grandes fortunas e aredistribuição das riquezas, a defesa deporções minoritárias de cidadãos, a salva-guarda do patrimônio material e cultural anteaos interesses internacionais, a estatizaçãode setores estratégicos para a economia e asegurança nacional e serviços públicos dequalidade que garantam o acesso à edu-cação, à formação profissional, à assistênciasocial e à saúde – um povo doente não podetrabalhar.

Dificilmente um governo, mesmo eleitopelo povo, terá força política capaz depossibilitar mudanças que impactariam tãodiretamente nos interesses dos mais pode-rosos. Isso equivale a dizer que dificilmenteviveremos numa democracia real. Até agoranão tive conhecimento de que as vozes queecoam pelas ruas do país tenham ido tão afundo em suas reivindicações. Acho que opovo ainda não percebeu algo fundamental:vivemos em um país com poucos donos. Évital redistribuir o Brasil. Essa é umacondição que a democracia nos impõe. Aordem e a Lei que regem a Nação precisamser re-escritas não para dar garantiasjurídicas às posses dos mais ricos, como

sempre aconteceu, mas para garantir adistribuição equânime da posse das riquezasdo país, de modo que tenha o povo comodono. Uma nova ordem seria chamada dedesordem, subversão, baderna ou comu-nismo por aqueles que sempre foramprivilegiados pela atual maneira injusta de aconvivência se organizar em nossa Nação.Essa nova ordem, porém – que precisa surgir–, será, de fato, o que podemos chamar deordem democrática. Ela deve nascer pelaexigência e força do povo, mas respeitandoas instituições legítimas.

Ficamos no aguardo do desfecho dessaonda de protestos e manifestações. Espe-ramos que não haja mais atos de vanda-lismo, que não causem mais danos aopatrimônio público e nem a desestabilizaçãodas instituições. Que se mostrem maispacíficas e conscientes. Os frutos mostrarãose todo esse movimento que tem agitado aNação é a manifestação de um tão esperadoamadurecimento político de nossa gente ouum mero fenômeno de massa motivado poruma arregimentação de contingentes popu-lares desprovidos de criticidade e instrumen-talizados pelas sedutoras redes sociais.Esperamos que o resultado disso tudo sejaum país mais justo, que garanta os direitosde sua gente. Pe. Fabrício Beckamann

Page 8: JUNHO 2013

O ESTAFETA Piquete, junho de 2013Página 8

O município de Piquete tem a Serra daMantiqueira como seu maior patrimônionatural. Orgulha-se de abrigar esse maciçomontanhoso com altitudes que ultrapassam2mil e 400 metros. Preserva importantes frag-mentos de mata atlântica, rica diversidadede fauna e flora, além de um número signifi-cativo de nascentes de ribeirões tributáriosdo Paraíba do Sul.

A formação vegetal predominante, aMata Atlântica, é chamada pelos botânicosde Floresta Estacional Semidecidual. Nas re-giões mais altas, apresenta os campos dealtitude e remanescentes de araucárias, es-pécie de pinheiro ameaçada de extinção. Vi-sando a preservá-la, em 1985 a Mantiqueira

foi transformada em Área de ProteçãoAmbiental. A APA da Mantiqueira estáinserida na categoria especial no Atlas deÁreas Prioritárias para sua conservação,devido à grande riqueza da fauna e da florada região e à alta concentração de répteis eanfíbios endêmicos, ou seja, que só ocor-rem nesse local. Nelas são encontradas po-pulações de macacos como o muriqui oumonocarvoeiro, bugios, felídeos como aonça pintada, jaguatirica, suçuarana e gatodo mato, além de aves cada vez mais rarascomo o macuco, sabiá cica, maria leque...

De maneira muito similar a outras APAsbrasileiras, as principais ameaças à conser-vação da Serra da Mantiqueira são o mau

uso e a ocupação desordenada do solo, aprecária fiscalização, queimadas e poluiçãodos recursos hídricos.

Desde 1997, a Fundação ChristianoRosa, por meio de O ESTAFETA, vem traba-lhando para sensibilizar a população quan-to à necessidade de se preservar essepatrimônio, tarefa que necessita de apoio emultiplicadores, uma vez que a educaçãoambiental e a consciência ambientalista fa-zem parte de um processo continuado. Aconservação da Serra da Mantiqueira é umgrande desafio que necessita de ações con-juntas de todos os segmentos da socieda-de. Há muito a se fazer em defesa daMantiqueira.

A Mantiqueira era habitada desde muitoantes do descobrimento do Brasil. Quandoos primeiros desbravadores, cruzando oVale do Paraíba, transpuseram a muralhaserrana, em meados do século 16, já encon-traram a presença indígena – puris,goytacazes – o que se pode observar pelaextensa nomenclatura de origem tupi-guarani, como Paraíba, Mantiqueira, Guara-tinguetá, Embaú, Piquete, Itatiaia, Itajubá,Itanhandu, Caxambu, Baependi, Sapucai etantos outros.

Com a notícia da descoberta de ouro, norastro de desbravadores vieram levas debandeirantes, atraídos por essa riqueza.

Partindo do Vale do Paraíba, atravessan-do a Garganta do Embaú, penetraramgradativamente pelo interior estabelecendo,com o correr dos anos, os primeiros pousose as primeiras roças. Com o descobrimentode novas lavras – Itajubá, Alagoa e Aiuruoca–, acelerou-se a penetração desses primei-

ros colonizadores brancos, que, misturadosaos aventureiros vindos de Portugal e detoda parte, juntamente com escravos africa-nos e índios aprisionados, espalharam-sepelas serras e campos nativos. Iniciava-seaí a criação de gado e de burros de carga.Com a derrubada das matas dos vales e dasencostas, foram sendo plantadas as cultu-ras do milho e do feijão. Com o tempo, damistura dessas raças, a branca, a indígena ea negra, fez-se o povoamento da serra daMantiqueira.

Esgotado o ciclo do ouro, os que perma-neceram buscaram sua sobrevivência expe-rimentando diversas culturas, como cana,fumo e o café. Predominou, porém, a culturade subsistência e desenvolveu-se grandeconhecimento sobre as plantas nativas, so-bretudo medicinais, além de técnicas arte-sanais tradicionais.

Com a destruição das matas, as queima-das e a erosão das encostas, rapidamente

esgotou-se o solo e a região passou a fazerda criação de gado – à falta de opção – suaprincipal atividade econômica.

Nos últimos anos, apesar do abandonopolítico-cultural em que vive a maior partedas comunidades regionais – que jamaisreceberam qualquer apoio ou incentivo dosgovernantes –, com o fluxo do turismo inici-ado na década de 70, abriu-se nova pers-pectiva de prosperidade. É preciso, contu-do, que a população esteja preparada econsciente da necessidade de preservar seupatrimônio natural, sua qualidade de vida,suas tradições culturais... A criação da APAda Serra da Mantiqueira, em junho de 1985,teve essa finalidade. No entanto, passados28 anos, essa APA ainda nem foi regulamen-tada. É preciso que cada um de nós se inte-gre aos seus objetivos e contribua para apreservação da Mantiqueira.

A Serra da Mantiqueira: a presença humana e a cultura tradicional

Em defesa da Mantiqueira...

Fotos Arquivo Pró-Memória

Fot

os A

rqui

vo P

ró-M

emór

ia

***************