jung mo sung - competencia e sensiblidade solidária
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HUGO ASSMANN JUNG MO SUNG
COMPETÊNCIA E
SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA
Educar para a esperança
Piracicaba, 2000
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Sumário
Prólogo.
LIMIAR: A sadia maluquice de interferir no futuro
Você não precisa carregar o mundo
Evite a Síndrome de Atlas
O possível é elástico e nossos sonhos o ampliam
Desmistificar a questão do egoísmo humano
Parte I.: INTERFACES SÓCIO-FILOSÓFICAS
Cap. 1 Solidariedade: uma teia de campos semânticos variados
Consciência solidária universal não é coisa comum (Kohlberg)
É preciso unir Justiça e Solidariedade (Habermas)
Liberal já detesta crueldade e miséria? (O neo- pragmatismo de R. Rorty)
Solidariedade mecânica - solidariedade orgânica (Émile Durkheim)
Desafio da inclusão e solidariedade (Banco Mundial e FMI)
Intimações à Solidariedade (Clube de Roma, Igrejas, ONGs, Economia Solidária)
O vasto e contraditório leque de referências à solidariedade
Buscando a ponte com a educação
Cap. 2. Interdependência e sensibilidade solidária
Dois sentidos da palavra solidariedade
Interdependência como um fato
O desconhecimento da interdependência como um fato
A insuficiência do desenvolvimentismo
Exclusão social
Sensibilidade solidária com os/as excluídos/as
Empatia e o medo
Esperança humana
Cap. 3. Dignidade humana: acesso a capacidades básicas
A crise atual do conceito de dignidade humana
Os limites oscilantes da questão da dignidade humana
A tese da dignidade humana ontológica - alcances e fragilidade
Peculiaridades da onto-teologia católica da dignidade humana
Um novo patamar para discutir a dignidade humana
Quem de fato acredita numa dignidade humana igual para todos?
Dignidade humana: oportunidade social para competências sociais
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Cap. 4. Sensibilidade solidária e princípios organizativos
Sensibilidade solidária e esperança
Solidariedade como princípio organizativo da sociedade?
Princípios de organização social
Sensibilidade solidária e complexidade social
Complexidade, ética e educação
Cap. 5. O alcance social do desejo.
Subjetividade e conhecimento
Adam Smith e o “homem econômico” competidor
O reconhecimento do/pelo outro em Hegel
Fukuyama: o desejo de reconhecimento e a luta econômica
Desejo e consumo
A economia e a manipulação histórica dos desejos
Amizade e inveja: uma crônica do cotidiano
A ambivalência e o desejo da ordem na modernidade
O cinismo e o desejo de cuidar
O amor e a humanização
Desejo de solidariedade como necessidade vital
Parte II: EDUCAR PARA A ESPERANÇA SOLIDÁRIA
Cap. 6. Competência e solidariedade:
renovação do discurso pedagógico
Novas interfaces entre competência e solidariedade
Competência humana
Competências sociais
Aprendizagem social
Inteligência social
Cap. 7. O papel cognitivo e social da sensibilidade
Sensibilidade e socialidade humana
O mapeamento do genoma humano e o conceito de corporeidade viva
Razões para falar abertamente da sensibilidade social
Na miséria extrema nem "solidariedade mecânica" funciona
Nossa espécie continua lenta em adquirir sensibilidade "humana"
Cresce a ênfase nos temas "sensibilidade" e "razão sensível"
Fragmentos de meditação sobre sensibilidade social
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Cap. 8. Epistemologia solidária
A perfectibilidade e educabilidade humana
Educar é uma aposta "enactante"
Aprendizagem à luz de novos estudos sobre o cérebro/mente
Plasticidade do cérebro e elasticidade dos mundos do sentido
O papel do desejo na emergência do sentido
Aprender é abrir-se ao mundo e aos outros
Aprender é transformar-se
Por uma epistemologia intrinsecamente solidária
Conhecimento como aposta ética transdisciplinar
Acostumar-se ao pluralismo teórico em tudo
Aprender requer uma chispa lúdica
Conhecimento e esperança
Manter viva a curiosidade
Compreender a sociedade ampla e complexa
Cap. 9. O impacto sócio-cognitivo das novas tecnologias
Tecnologias versáteis facilitam aprendizagens complexas e cooperativas
Hipertextualidade: a chance do estudo criativo
A passagem a um paradigma cooperativo do conhecimento
O agenciamento cooperativo dos campos do sentido
A experiência da superação da escassez
Parcerias epistemológicas de alto nível
Perspectivas acerca do "homem simbiótico"
Cap. 10. Mínima Paedagógica
Desejo e conhecimento
Elementos para um quadro de valores educacionais solidários
HORIZONTES: Recontruir nossos campos do sentido
Estamos numa virada civilizatória
Um cenário futurológico
O mal-estar da civilização está dentro de nós
A Neotenia Humana
A "Segunda Neotenia": da Hominização à Humanização
A dimensão profunda dos nossos desejos
Vivenciar a esperança
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PRÓLOGO
O assunto de fundo deste livro é a inclusão da sensibilidade solidária na dinâmica
do desejo das pessoas. Isso tem um pressuposto sumamente exigente e diretamente ligado à
educação, encarregada de "saber cuidar" carinhosamente das formas do aprender e do
conhecimento. Portanto, este é um livro impregnado de esperança.
Na renovação das linguagens pedagógicas e sócio-políticas, que está em curso um
pouco por toda parte, parece persistir a necessidade de superar o desencontro entre as
linguagens que se referem a competências profissionais e técnicas e as que aludem a temas
ético-políticos relacionados com a solidariedade.
Este livro nasceu da vontade de perceber, de forma panorâmica, algumas das
questões implicadas nesse desafio. Não se trata propriamente de um ensaio, e muito menos
de um tratado. É apenas uma tentativa modesta de problematizar o assunto como quem
move um caleidoscópio. Em alguns momentos nos arriscamos a sugerir pistas para
fecundar a reflexão.
Trata-se de um texto produzido na forma de co-autoria, num lapso de tempo muito
curto. Sem os recursos da Internet e do correio eletrônico, o intenso companheirismo de
dois velhos amigos, que não moram na mesma cidade, não se teria concretizado nessa
forma.
O livro tenta aproximar-se da versatilidade das múltiplas entradas, que são
características do hipertexto. Por isso ele pode ser lido a partir de preferências pessoais. Os
ingressos, os links e a mixagem podem emergir do gosto criativo individual ou grupal.
Nossa idéia foi propiciar que a experiência de ler se aproxime da liberdade e criatividade do
escrever.
De certa forma, nossas reflexões nasceram brincando entre si e só fazem sentido se
continuarem brincando entre si na própria leitura, abrindo a roda para que novas idéias
entrem nesse entrejogo criativo. O uso versátil de diversos estilos, formas de expressão e
níveis de reflexão contribuiu para aumentar nosso divertimento.
Os autores saborearam intensamente o diálogo entre duas gerações e gostariam de
testemunhar publicamente a riqueza dessa experiência.
Esse diálogo se deu sob a forma de um pós-doutoramento de Jung Mo Sung, no
Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UNIMEP
(Universidade Metodista de Piracicaba), sendo Hugo Assmann o orientador.
Os co-autores agradecem o clima propício que a referida universidade, seus colegas
e familiares lhes proporcionaram.
Os co-autores
Piracicaba/São Paulo, julho de 2000.
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LIMIAR
A SADIA MALUQUICE DE INTERFERIR NO FUTURO
Você não precisa carregar o mundo
Só alguns estão satisfeitos com o mundo assim como ele é.
Só alguns poucos acreditam que eles possam transformar este mundo.
O primeiro grupo é feliz mas deve ser meio maluco.
O segundo só pode ser mesmo maluco. Hans TenDam
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Vivemos num mundo ao mesmo tempo fascinante e estarrecedor. Tudo parece estar em
efervescência e aceleração. As chances e os desafios alcançaram extremos para os quais a
experiência cotidiana de boa parte da espécie humana não os preparou. Não é exagerado
dizer que muitos acontecimentos do mundo atual nos agarram de surpresa. Não poucos se
sentem empurrados para dentro de vórtices de mudanças, que provocam neles verdadeiros
pesadelos ou, no mínimo, uma estranha mescla de susto e deslumbramento.
O trabalho humano passou a ser constantemente reconceituado. Em estreita parceria
com aceleradas inovações tecnológicas nos mais variados campos, ele atingiu um potencial
produtivo jamais visto. Mas bem no cerne dessa visão mutante do trabalho humano se
instalou uma cobrança crescente de novas habilidades e novos conhecimentos. No futuro só
vai continuar trabalhando quem estiver aprendendo intensamente por toda a vida. Portanto,
o tema incontornável da exclusão adquiriu hoje uma faceta antes menos evidente: a
exclusão social já não é solucionável sem tomar em conta seu forte ingrediente novo ligado
à exigência de um aprender incessante para continuar qualificado como empregável.
Já se tornou previsível que o trabalho diretamente produtivo representará uma
porcentagem rapidamente decrescente no conjunto das atividades humanas do mundo de
amanhã. E que farão os que nunca mais encontrarão emprego produtivo? Pois, no futuro, as
bases de referência para as fontes de remuneração evidentemente terão que ampliar-se e
diversificar-se enormemente. Mas uma coisa é certa, todo esse amplo leque de atividades,
as mais diversas, exigirá uma constante renovação da capacidade adaptativa das pessoas.
Todo mundo terá que estar aprendendo por toda a vida. Será necessário gostar de inventar e
inovar para fazer algo que seja apreciado pelos demais e, como tal, objeto de demanda. E
mesmo para poder desfrutar da multiplicidade de lazeres, bens culturais e serviços
inovadores que estão surgindo, numa velocidade nunca vista. A sociedade precisará criar
ainda muitas novas formas de atividade para poder acabar com todas as formas de exclusão.
As experiências de aprendizagem passaram a ser um ingrediente imprescindível da luta
contra a exclusão. A educação se transformou na tarefa social emancipatória mais
significativa. Mas, evidentemente, não qualquer tipo de educação. Este livro é uma espécie
de brinquedo de armar idéias, que possam ser de alguma forma úteis para crescermos na
capacidade de inovar formas e maneira de educar, saibam juntar as competências sociais requeridas pelas atividades profissionais mais variadas e as novas atividades que
1 TENDAM, Hans, Politics, Civilization & Humanity. (Versão para a Internet, 1999, Prefácio).
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inventarmos com a sensibilidade social necessária para a construção de um mundo, no qual
caibam todos. Vamos estar refletindo juntos sobre o sonho de unir formação de
profissionais competentes com a sensibilidade ética de seres solidários. Por um lado,
empreendedores capazes de tomar iniciativas inovadoras; e, pelo outro, seres humanos que
entendam que a felicidade dos outros faz parte da sua própria felicidade.
Que significa educar quando a educação já não pode nem reduzir-se à transmissão de
saberes prontos, nem limitar-se à formação para funções predeterminadas? Que
características deve ter a educação quando, além de encaminhar as pessoas para um mundo
de atividades em constante metamorfose, se exige dela que também não descuide os valores
de uma sociedade participativa e solidária?
Tamanha tarefa não deve ser proposta como um peso que ninguém consegue carregar. É
sabido que, quando jogamos nas "costas" da nossa consciência uma tarefa impossível,
existe o perigo de cair numa fossa de desânimo e impotência e de não saber mais como sair
dela. Nossa reflexão deverá encaminhar-se, com o máximo de serenidade, por veredas e
caminhos que despertem entusiasmo e um certo otimismo pedagógico. Por isso precisamos
falar de coisas que já "estão no ar", de cenários que - por mais assustadores que possam ser
em alguns aspectos - contenham uma boa dose de motivações alentadoras. Não sempre será
fácil combinar a ousadia de sonhar com a realidade concreta, o terra-a-terra dos passos de
factibilidade concreta.
Comecemos com um toque de sinceridade: ninguém de nós agüenta mais a cobrança
excessiva de nos considerarmos salvadores do mundo no curto lapso de nossa vida. Nesse
sentido de pressão ética levada ao extremo do sufoco, é saudável perguntar, às vezes: existe
alguém que saiba definir e dar-nos a receita compeltadessa ficção? Também nisso, o sonho
do ótimo pode ser inimigo do bom.
O importante é enxergar muitas esperanças gostosas do nosso dia-a-dia, e acreditar que
elas são factíveis, relevantes, geradoras de alegria, embora nunca plenamente satisfatórias.
A gente não consegue escapar da pergunta se essas esperanças tópicas valem realmente a
pena ou não. Depois de todo esforço de estudo, análise e serena ponderação, ninguém
consegue eliminar um certo plano de imponderáveis incertezas, em meio às quais a gente
tem que apostar de coração inteiro, acreditando que vale a pena amar a felicidade própria,
que não chegará a ser gostosa se não estiver ligada à felicidade dos outros.
Em 1992, o pensador francês Michel Serres estava dando um curso sobre "Pronomes
Pessoais" na Universidade de Stanford. Hospedados juntos na casa do nosso amigo comum
René Girard, surgiu a chance de saborear, seus divertidos comentários acerca do curso, que
estava dando, sobre o alcance antropológico e filosófico dos "pronomes pessoais".
- No mundo de hoje - dizia ele - muita gente não sente mais o sabor a mistério dos
pronomes eu, tu, você, ele/a, nós, vocês, eles/elas; e o que é mais grave ainda, já quase
ninguém mais se lembra que esses pronomes só funcionam quando entendemos que todos
se banham juntos no mesmo rio dos verbos, porque viver é conjugar verbos, essa fluência
incessante de processos que não dá para fixar de jeito nenhum. Criança não é substantivo, é
verbo: um processo de ser criança. Mulher, é claro, também é verbo. Foi a cultura patriarcal
que nos meteu na cabeça essa coisa terrível de que as palavras e os conceitos são como
pedras ou balas que a gente lança contra outros. Linguagens são ondas. Comunicar-se é
imergir-se em ondas.
Muitas pessoas ainda experimentam sua vida como caminhada sobre uma planície. E
muitas vezes se trata de um imaginário reduzido a um minúsculo retângulo ou círculo. Há
muitos anos atrás, um professor da zona rural do interior comentava: - Por aqui os homens
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sentem seu mundo como de aproximadamente 30 km ao redor; a maioria das mulheres não
se consegue imaginar quase nada para além de uns 10 a 15 km.
Essa metáfora espacial cruel, com sua referência a uma espécie de achatada planície, é
tão diferente da metáfora do rio de Heráclito, dentro do qual todos estaríamos jogados
numa correnteza solidária comum. O que Michel Serres intentava no seu curso era
ressuscitar de novo os pronomes pessoais no acelerado rio heraclidiano da história de hoje.
Um mundo como o nosso requer um imaginário afeito a fluxos e interfluxos.
Robert Musil (em Um Homem sem Qualidades) agigantou ainda mais a metáfora do
grande rio da história: trata-se na realidade de um rio evolutivo que - como, aliás, o fizeram
todos os rios, só que nos esquecemos disso - além de fluir sem parar, vai criando as suas
próprias margens. É coisa muito saudável que os giros da terra e os fluxos (e refluxos) do
mar e dos rios da história invadam, aos poucos, as nossas linguagens cotidianas sobre a
nossa própria vida.
É pena que muitos ainda se assustem com isso. Será que preferem um mundo feito de
encaixes, engrenagens e pontos fixos? Num mundo no qual as máquinas, há muito, se
mexem e ajudam as coisas a se mexerem, será que nós podemos continuar parados? O pior
parado é o que parou "por dentro", desativando parte de seus próprios neurônios. Suicídio
neuronal, não. apartheid neuronal, também não.
Um início da experiência cotidiana de que vivemos num planeta, no qual tudo está cada
vez mais interligado, já é acessível, de alguma forma, a qualquer telespectador. É bem
menor o número de pessoas que já se deram conta das implicações psicológicas e
filosóficas da possibilidade, que temos hoje, de sensoriar o planeta inteiro a partir de
satélites. Hoje até os mais corriqueiros boletins meteorológicos prolongam a experiência da
visão do planeta Terra vista desde o espaço.
As primeiras fotos da Terra vista desde a lua representaram uma reviravolta imperiosa
na auto-concepção do ser humano, porque lhe mostraram uma responsabilidade pela Terra
"Mátria" que não podia perceber tão intensamente antes. Existe uma terceira percepção da
realidade planetária que só se torna sensível quando nossa experiência cotidiana começa a
dar-se conta de como funcionam os microprocessos da vida (no âmbito das moléculas e das
células), e de como esses níveis micro se entrelaçam com os níveis macro de Gaia, a Terra
entendida como um entrelaçamento complexo da unidade entre processos vitais e processos
de conhecimento. Tudo isso nos enreda em gostosas vertigens.
Evite a Síndrome de Atlas
O negócio é dormir sem medo do outro dia que vai chegar
que pra passar a noite na cocheira tem que ter
o mesmo cheiro do cavalo pra não incomodar.
Raul SEIXAS. O negócio é.
Era sem dúvida bem menos complexo o campo de referências experienciais da
mitologia grega, quando ela inventou os Titãs. Mesmo assim foi um salto ético
impressionante, pois esse mito se refere à elasticidade da liberdade possível sob a forma de
uma revolta de semideuses contra a arbitrariedade dos deuses definidores do destino. Mas é
sobretudo a figura de um dos Titãs, de nome Atlas (de quem herdamos o nome aplicado ao
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globo terrestre e aos planisférios), que revela a consciência aguda dos gregos de que seus
mitos estavam mexendo com vários problemas.
Por um lado, o mito alude à crucial responsabilidade humana, e não de deuses
arbitrários, por aquilo que acontece neste mundo. Mas, por outro lado, fica a impressão de
que, sob um certo ponto de vista, a ousadia era prematura, porque o peso do globo nos
ombros de Atlas era aparentemente quase insuportável. Mediante o símbolo de um castigo
divino mantém-se a suspeita de que, enquanto persistir a arbitrariedade neste mundo, o peso
dela se incorpora, de certo modo, ao próprio peso da terra.
Também aqui, como em tantos outros mitos, o castigo se refere, antes de tudo, a uma
lição ainda não inteiramente aprendida (e não necessariamente a um destino inarredável).
Atlas, como sabemos, foi castigado por Zeus e obrigado a carregar o mundo às costas.
Quem não se lembra de alguma imagem relacionada com essa figura ereta, com um pé no
chão e outro tateante, acabrunhada pelo peso?
A releitura desse antigo mito nas circunstâncias de hoje nos obriga a dar um passo além
do dilema entre destino ou liberdade, que o mito equaciona. A "nervura do real" (para usar
a rica expressão de Marilena Chauí) está tecida por equações mais complexas, muitas delas
recursivas. O panorama dos desafios éticos se transforma substancialmente quando se
abandonam os esquemas simplistas de supostas causalidades lineares, e se começa a
visualizar o papel - porventura mais modesto, mas nem por isso menos relevante - da
liberdade individual e coletiva em meio a processos histórico-sociais, nos quais a auto-
organização e a emergência do imprevisto, em todos os níveis do vivo, incluído o social,
cumprem um papel fundamental, mas, ao mesmo tempo, muito diferente do clássico
imaginário acerca do destino.
Fonte : Encyclopedia Mythica,
verbete Atlas - Internet
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Não é saudável meter-se a profeta de sonhos exagerados. Não é possível identificar-se
com todas as situações socialmente desafiadoras. Nem é preciso. Para fazer algum bem
neste mundo, e sentir-se parceiro da construção de um mundo mais solidário, basta alentar,
com fruição profunda, sonhos modestos que ao menos algumas outras pessoas possam
compartir conosco.
Ninguém de nós deveria sentir-se individualmente responsável por carregar todo o peso
do mundo. Seria um "castigo" totalmente injusto, uma dívida não cobrável, uma
responsabilidade impossível de ser assumida. Por outro lado, porém, não cabe dúvida de
que - a esta altura da evolução da nossa espécie, com todo o avanço da ciência e da
tecnologia, suas promessas reais e seus riscos evidentes - o "nós" coletivo da humanidade já
não pode querer eximir-se da responsabilidade, que lhe toca assumir, por aquilo que
acontecerá com a evolução da vida nesse planeta daqui para diante?
Neste livro vamos estar tratando das várias pontas dessa problemática e de uma série de
assuntos relacionados com a tensão entre os deveres da humanidade como um todo e os
deveres e responsabilidades de cada um de nós. Mas parece oportuno puxar o assunto pelo
lado do perigo de cairmos, enquanto indivíduos, numa espécie de Síndrome de Atlas, ou
seja, de sentirmos nas próprias costas o peso do mundo inteiro.
Para calibrar mais tranqüilamente nossas chances de irradiar esperança, e de fazer
deveras alguma coisa que preste para nós e nossos semelhantes, é preciso desfazer-se do
peso imaginário de tarefas impossíveis. Não pode fazer o bem aos outros quem não está de
bem com a própria vida; não pode melhorar o mundo quem não sabe como começar a amá-
lo assim como ele é.
Como já foi dito acima, queremos abrir, de um jeito solto e desinibido, um amplo leque
de questões relacionadas com a sensibilidade social solidária. Queremos motivar um certo
otimismo pedagógico quanto às possibilidades de criar as competências sociais que devem
dar suporte prático a essa sensibilidade ética.
Como veremos, existem muitas palavras que se referem a esse assunto. Umas estão
impregnadas por uma espécie de pulsão esperançadora. Por exemplo: conciência planetária,
mundo humano, empatia, solidariedade. Outros termos, porém, carregam consigo um tom
amargo. Por exemplo: ter pena, compaixão, misericórdia. Precisamos de linguagens
versáteis capazes de transitar tanto pela ênfase na crítica e na denúncia como pelos
momentos em que se trabalha mais diretamente com motivações esperançadoras.
Uns mais, outros menos, temos conhecimento, ou até experiência pessoal do que
significa uma percepção do mundo, na qual predomina a falta de perspectivas de melhoria
social. Precisamos de referências amplas, com as quais possamos afinar, de modo mais ou
menos consciente, o nosso projeto de vida. Seria lamentável se nos refugiássemos num
mundinho estreito e egoísta.
A situação atual do mundo pode levar-nos facilmente à sensação de que não há
alternativas promissoras à vista. Analisemos pois, alguns dos riscos que semelhante
situação pode induzir na vida precisamente daquelas pessoas que mais fortemente anelam
um mundo mais justo e solidário.
Após décadas de um certo desalento no panorama educativo da América Latina e
também, especificamente, do Brasil, devido em parte ao predomínio da ênfase crítica e
denunciatória em muitas expressões do pensamento educacional, chegamos hoje a uma fase
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de revalorização motivadora em relação à relevância social do empenho de educar. O
entusiasmo está voltando novamente às escolas. No entanto, não poucas pessoas se sentem
sugadas para dentro de responsabilidades cujo peso se revela demasiado para suas limitadas
energias.
É admirável que haja um número crescente de professores/as que se sentem
responsáveis por ideais gigantescos. Em si não há nada de mal em sentir uma
responsabilidade grande, uma urgência de relacionar-se com tarefas amplas. Mas que passa
quando não as podemos transformar em práticas significativas? Pode-se acumular, nesse
caso, a sensação de um peso insuportável, no qual, a responsabilidade se confronta com a
impotência, sem sabermos como balancear os dois elementos. Da sensação de impotência
pode surgir um aumento de instabilidade emocional e aos poucos, de irritabilidade quase
constante.
Quem chega nesse ponto começa a perceber confusamente uma espécie de
bifurcação de caminhos. Por um lado, a preocupação com a falta de possibilidades reais
pode conduzir, pouco a pouco, à acomodação e à indiferença. Pelo outro lado, a
exacerbação das linguagens relacionadas com o compromisso social pode levar a extremos
morbidamente apocalípticos. É facilmente perceptível que as duas saídas conduzem, por
caminhos diferentes, à incapacidade de visualizar esperanças viáveis. Tanto o afundamento
na depressão quanto a exaltação mórbida na indignação conduzem a paralisias no campo
das ações significativas.
Os bebês não têm esse tipo de aflição porque só percebem desafios aos quais podem
responder. Em nosso cotidiano, cada tanto nos faz bem reinventar essa simplicidade à qual
se refere o mito do Puer Aeternus2 (a eterna criança). O permanente direito a recomeçar faz
parte da dinâmica da evolução. Tudo indica que, o processo evolutivo da vida inventou mil
formas de não enxergar e, muitas vezes de não tomar conhecimento de desafios
incontornáveis. É um jeito de enfrentá-los com mais sabedoria e serenidade, como quem
está eternamente situado ao nível das meras tentativas exploratórias. Não há dúvida de que
se trata de um jeito bastante eficaz de evitar pesos insuportáveis. É claro que a gente se
lembra logo de que há algo de ridículo na autodefesa do avestruz, quando enfia, a cabeça na
areia. Mas pelo menos ele evita ficar neurótico.
O aumento de consciência das responsabilidades surgiu com a capacidade evolutiva
da nossa espécie de inventar mundos imaginários. Não é o momento de entrar nas
complexas questões epistemológicas que esse fato implica. Em síntese, enquanto seres
simbolizadores, todos os nossos mundos são mundos construídos mediante linguagens. Já
que a evolução nos proveu com essa característica, não temos outra saída a não ser elaborar
estratégias para intervir nesses mundos sem sobrecarregar nossas energias.
É interessante verificar até que ponto entraram em nossas linguagens cotidianas
certas metáforas relacionadas com essa complexa dialética de balancear responsabilidades e
possibilidades de ação. A própria imagem de Atlas parece estar por trás de expressões
como : "encostar o ombro", "carregar nos ombros", "peso demais para meus ombros"... A
imagem do avestruz parece estar evocada em expressões como "esfriar a cabeça", "cabeça
fria", "não esquente a cabeça", "é um cabeça quente"...
Podemos imaginar-nos meias-respostas, que funcionam como estranhos atratores,
quando lidamos com a dúvida atroz sobre se podemos fazer algo de realmente importante
diante dos graves problemas que nos rodeiam. Parece até que o próprio instinto de
2 FRANZ, M.L.von. Puer aeternus. SP, Edições Paulinas, 1992
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sobrevivência nos sugere certas possíveis crenças como as três seguintes: 1. O mundo está
fora de controle e eu nada posso fazer diante disso. 2. Eu realmente não sei como resolver
problemas tão gigantescos. 3. Os problemas são tão grandes que qualquer coisa que eu fizer
não tem a menor importância.
David Gershon, um apreciado guru ecológico (organizador da The First Earth Run)
disse que ainda não percebemos qual é a ameaça maior no mundo de hoje. Por mais
terríveis que sejam a devastação ambiental, a fome, a superpopulação e a ameaça nuclear,
ele acha que existe algo mais terrível: a nossa dúvida de que possamos fazer algo para
enfrentar esses e outros problemas. Ele suspeita que o a avanço da insensibilidade e da
indiferença no mundo de hoje tem muito a ver com esse jogo de meias respostas, que no
fundo são válvulas de escape ou mecanismos de catarse de pessoas eticamente pouco
maduras.
Em outras palavras, temos que estar atentos ao fato de que a simples sobrevivência e
uma pequena soma de prazeres legítimos, podem estar desativando em nós praticamente
toda a sensibilidade social. Por isso, se por um lado é preciso evitar a Síndrome de Atlas,
pelo outro devemos evitar a petrificação de nossos corações. A esperança deixa de ser
esperança, até em nossas vidas pessoais, quando a enquadramos num esquema minimalista.
Mas ela dificilmente se sustenta dentro de sufocos e cobranças maximalistas.
Por vezes tem-se a impressão de que nosso cotidiano se torna estressante também
por causa de um certo excesso de linguagens vagas e totalizantes acerca do mundo
desejável e das vias de acesso a ele. Poderíamos encher páginas com esse tipo de
linguagens generalistas, às quais muitos continuam atribuindo um potencial comunicativo e
motivador, que elas efetivamente não têm, porque lhes falta vigor analítico e conteúdo
estratégico para isso. Vamos a alguns exemplos: uma sociedade justa e fraterna, respeito à
dignidade humana, justiça e solidariedade, comunhão e solidariedade, etc.
Quanto a seu efeito sócio-afetivo, este talvez não seja muito diferente do resultado
(des)mobilizador das linguagens denunciatórias iracundas e apocalípticas, que costumam
ter como pano de fundo o pressuposto de um "grande inimigo", cuja eliminação - por um
imprevisível lance revolucionário ou por alguma fantasiosa intervenção divina - recolocaria
todas as coisas em seu devido lugar. É um engano atribuir um potencial esperançador a esse
tipo de linguagens iracundas. No entanto, muita gente pensa que o tem.
Essas linguagens funcionam, até certo ponto, como amortecedores semânticos ou
como faixa intermédia de significações simuladas. Enquanto tais, podem efetivamente
evitar que as pessoas se afundem na fossa da Síndrome de Atlas (hipersensibilidade social)
ou se alienem na insensibilidade e na indiferença. O problema é que muitos que empregam
esse tipo de linguagem generalista ou de denúncia exacerbada - ou ambas, porque se casam
perfeitamente - acreditam estar propondo soluções, e não estão. Estão apenas construindo
simulações muito parecidas à conhecida propaganda dos detergentes: cada um deles lava
mais branco do que o outro. Parece incrível, mas o nosso enfeitiçamento por palavras e
estatísticas pode chegar ao ponto de supormos que, pela simples enunciação de festejos de
palavras, os problemas reais ficarão espantados e sumirão do mapa.
Dada a abundância, e até mesmo uma certa prevalência desse tipo de linguagens
generalistas e/ou iracundamente denunciatórias, seria pouco recomendável desprezá-las ou
querer descartá-las como se não fossem de nenhuma serventia. Elas podem cumprir uma
função de ampliação genérica de campos semânticos difusos, cujos atratores precisam ser
melhor caracterizados e detalhados em referência a cada situação específica. Talvez
necessitemos de uma teoria mais complexa acerca do funcionamento social das linguagens
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humanas para avaliar tanto o potencial positivo, quanto os limites analíticos e estratégicos
dessas linguagens generalistas e/ou denunciatórias, que giram sobre si mesmas e se tornam,
aos poucos, plenamente auto-referenciais..
Numa alusão muito rápida a esse tema amplo, pode-se afirmar que, no uso
cotidiano, as linguagens humanas flutuam entre os níveis conotativos genéricos, amplos e
complexos (para os quais talvez se aplique a metáfora da piscina, do nado e da imersão) e
os níveis denotativos, nos quais a relação com referenciais de análise e estratégia de ação
passam a predominar. As linguagens altissonantes, mas semanticamente flutuantes e
difusas, podem provocar uma estranha sensação de que, uma vez aceitas e proferidas, a
nossa fome de sentido para a vida humana concreta e para os desafios que temos pela
frente, ficou praticamente atendida e satisfeita.
O fato de que muitas instâncias políticas, eclesiásticas e até pretendidamente
acadêmicas e científicas, se dão por satisfeitas com o abundante manejo de semelhantes
linguagens mostra até onde pode chegar o auto-engano coletivo. Ou será que o estranho
fenômeno da pomposa vivência dessas linguagens não nos está a indicar que, os sentidos
concretos e determinados da reflexão e da ação humanas nem poderiam existir sem esse
amparo contextual amplo dos níveis míticos e das utopias?3
Mais adiante, neste livro, faremos um levantamento panorâmico das linguagens
acerca da solidariedade. Ali tentaremos mostrar de que maneira, e através de que tipo de
"coágulos verbais" (expressões, binômios, etc.) certas linguagens sobre a solidariedade se
enquistaram (e, por vezes, auto-esvaziaram) em documentos de instâncias como o FMI, o
Banco Mundial, programas e proclamas políticos, encíclicas papais, documentos das
Igrejas, etc. Como baixar campos-do-sentido dessas nuvens ou simulações semânticas para
os terrenos concretos, que demandam iniciativas e encaminhamentos que façam sentido
para a experiêcia das pessoas? Para recuperar esse faro do exigível na prática e do
(elasticamente) possível é bom não esquecer que a vida é feita de uma complexa teia de
articulações tópicas da energia e do sentido da vida.
Algumas verdades concretas são tão simples que corremos o perigo de esquecê-las e
nem mencioná-las mais em nossos discursos mais pretensiosos. Alguns exemplos:
a morte de uma pessoa amiga de repente nos lembra que as pessoas acabam morrendo e que a morte não deve ser tratada como um fantasma espantável;
a experiência concreta de uma poluição sufocante, de repente nos faz lembrar que a
gente precisa respirar;
o convívio mais íntimo com uma pessoa deficiente física de repente nos lembra que boa parte de nossos semelhantes, ou talvez nós mesmos, tenhamos aptidões limitadas;
o diálogo com negros ou indígenas, de repente nos devolve a consciência de que não somos um país de brancos, nem um país plenamente mestiçado e que existem
diferenças físicas e culturais que as palavras bonitas não conseguem abolir.
Em síntese, nenhuma de nossas linguagens generosas acerca da melhoria das condições
sociais que nos envolvem consegue ter uma articulação significativa, do ponto de vista
analítico e estratégico, se não for mergulhada em contextos concretos e possibilidades
concretas. Nós precisamos mudar muita coisa neste mundo, mas para poder fazê-lo
precisamos saber viver neste mundo, gostar deste mundo - ao menos até o ponto requerido
3 Sobre as várias facetas, individuais e coletivas, do auto-engano, ver a excelente obra do economista:
GIANNETTI, Eduardo, Auto-egano.São Paulo: Companhia das Letras, 1997
14
pela alegria de viver -, e suportá-lo em suas condições concretas, enquanto não
conseguimos transformá-lo.
O possível é elástico e nossos sonhos o ampliam
O limite de cada um/a está no tamanho do sonho que carrega. TV GLOBO, Jornal Nacional, 26.05.1997
A idéia de uma sociedade melhor não é óbvia. Antes da modernidade, a maioria dos
seres humanos nem sequer experimentou pessoalmente o ideal de possíveis mudanças
profundas no todo social. O mundo era uma espécie de realidade dada, um ordenamento
estabelecido e inquestionável, um cosmos (ordem). Alguns economistas relembram esse
passado relativamente estático para criar, a partir dele, uma espécie de ideologia da
acomodação.
Antes das revoluções científica, industrial e democrática dos últimos quatro séculos,
dificilmente podería ocorrer às vítimas de qualquer ordem social que as sociedades
humanas pudessem tomar forma diferente4.
Não é correto dizer que todo mundo era fatalista. A aceitação do ordenamento social
existente, como algo praticamente inquestionável, dava às pessoas um mínimo de
segurança. Sobre a base dessa segurança era perfeitamente possível distinguir o maléfico do
benéfico, o feio do belo, o saudável do pernicioso. Tudo até certo ponto, é claro, como
continua acontecendo conosco hoje: todas as nossas percepções vão apenas "até certo
ponto". No entanto, um aspecto básico do mundo de hoje é a aceleração da sua dinâmica de
mudanças. Aconteceu uma perda quase completa de todo tipo de chão estável.
Não vamos voltar a contar aqui a complexa e fascinante história do abandono dos
mundos relativamente estáveis da era pré-moderna, dos saltos para dentro de imaginários
utópicos fantásticos, das ideologias do progresso ilimitado embutidas na ciência, na política
e nas teorias econômicas da modernidade. Nossa situação de hoje é a de uma difícil mas
inevitável e imperiosa despedida das assim chamadas "grandes narrativas" (Lyotard).
Persistem, ao mesmo tempo, no contexto da pós-modernidade, não poucas tentações
de abranger a solução de todos os problemas básicos da humanidade em fórmulas e
propostas extremamente simplistas e profundamente autoritárias. É o caso do "pensamento
único" de corte neoliberal, que pretende embalar-nos na ilusão de que as forças do
mercado, tangidas pelo propósito predominante do crescimento econômico, resolverão
todos os problemas cruciais da humanidade através de uma espécie de misteriosa tendência
congênita geradora do bem comum da humanidade. Quando essa promessa ilusória vem
acompanhada de um cerceamento de quaisquer buscas de alternativas significativamente
diferentes, o ideal de uma sociedade melhor é praticamente riscado do horizonte do futuro.
O "fim da história", embora ridículo demais enquanto proposta teórica e sócio-
analítica, implanta-se por vias de fato como projeto político e econômico com
características planetárias. Já que realmente não se percebe alternativa abrangente a essa
mundialização do mercado, o tema da melhoria da sociedade em termos amplos passou a
4 MOORE, Barrington. Reflexões sobre as causas da miséria humana e sobre certos propósitos de eliminá-la.
Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 30.
15
afunilar-se, mais e mais, sobre a grande mentira de que o mercado como tal, onde quer que
seja, carregaria sempre consigo a garantia de doses crescentes de inclusão junto a doses
decrescentes de exclusão residual. Essa teoria leva um nome bastante cínico: o suposto
trickle down, o efeito gota-a-gota ou gotejamento lento dos benefícios para todos, mesmo
com crescente concentração da riqueza.
Não se pode negar que, nos redutos geograficamente limitados das nações altamente
industrializadas, a inclusão social se manifesta como tendência forte, mas não dissociada do
seu contrário, a persistência da exclusão. Mas certamente não é isso o que está ocorrendo
nos países periféricos desse centro, e nem sequer nos assim chamados mercados
emergentes. Nesses últimos, muitos governos apostam em superar, dentro da obsessão pelo
crescimento econômico como fórmula mágica para a ampliação da inclusão, as nítidas
tendências de predomínio da exclusão.
Em meio a esse panorama, não é de estranhar que muitas pessoas se tenham fechado
no seu cotidiano de garantias mínimas de sobrevivência, sua e dos "seus", e se tenham
blindado numa indiferença e insensibilidade em relação a desafios sociais mais amplos.
Encontramos - sobretudo no diálogo com setores médios, mas não é coisa rara até em
setores populares, que vivem entre a exclusão real e baixos níveis de consumo básico - uma
filosofia de vida prática que pode ser resumida em algumas sensações quase impulsivas.
Primeiramente, existe um pressuposto bastante geral de que não se pode fazer grande coisa para mudar essa sociedade; a natureza humana é imperfeita e nunca vai mudar
muito.
Em segundo lugar, muitos supõem que os esforços para reformar ou até revolucionar as
sociedades têm custado mais sofrimentos do que conseqüências socialmente benéficas.
Valeram a pena tantos sacrifícios e tantas mortes?
Em terceiro lugar, muitos estão ainda presos a uma espécie de crença atávica num progresso real lento, embora pouco perceptível, sob o comando de indecifráveis
providências e "mãos ocultas", embutidas de alguma forma na própria evolução da
história.
As três atitudes mencionadas levam, a primeira, a uma acomodação quase fatalista; a
segunda, a uma profunda descrença em relação a projetos alternativos; a terceira pré-dispõe
para o "confiar", que - sem estranheza alguma para quem sabe olfatear camuflagens
ideológicas - é precisamente o primeiro mandamento do novo catálogo de receitas pseudo-
sociais e pseudo-éticas da era da mundialização do mercado, sob a égide do capital
financeiro5.
Às vezes é saudável perguntar-se até que ponto se mantém viva em nós a coragem de
sonhar um mundo solidário. Se não o sonhamos, com toda a força dos nossos desejos, ele
realmente nunca se tornará possível. Nós somos seres criadores de mundos possíveis. E
esses nossos mundos possíveis não são mundos de geometria euclidiana, como se nossos
sonhos e nossos potenciais fossem cubos, engrenagens e peças mecânicas previstas para
encaixes perfeitos. A dinâmica da vida é essencialmente processual, e suas metáforas-guia
não podem ser emprestadas da mecânica, porque precisam provir de processos vivos.
Todos os sistemas vivos são sistemas aprendentes e desejantes. Por isso nossos
mundos possíveis devem ser concebidos como mundos elásticos, capazes de expansão e
retração. O possível não está submetido unicamente aos planos e às previsões, que todo
pensamento estratégico precisa ponderar Para nós, desejantes humanos, o possível é um
5 FUKUYAMA, F. Confiança, as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
16
conjunto de parâmetros ou padrões de plausibilidade. Por isso convém ativar
constantemente nosso imaginário com intuições inovadoras e algo parecido às
possibilidades estatísticas, das quais fala a física quântica.
A elasticidade do possível não existe apenas porque existem condicionantes
externos que são imprevisíveis em seus detalhes. Essa elasticidade se deve sobretudo à
interferência de nossas em-ações (enactions, para usar a linguagem de Francisco Varela) na
própria projetação desses mundos possíveis. E quando os mundos possíveis estão
entramados vivencialmente com os nossos mundos de desejo, eles podem constituir - em
nossas vivências subjetivas - um campo do sentido no qual se juntem, aos poucos,
necessidades e desejos.
As necessidades sociais podem tornar-se objeto de desejos coletivos, coesionados a
partir de experiências da esperança no cotidiano das pessoas. Sem esse suporte
experiencial, geralmente sobram apenas propostas centralistas, amparadas em algum mito
do Estado ideal, ou ilusões ideológicas sem nexo com o cotidiano das pessoas. Onde há
vivenciamentos concretos da esperança, por limitados que eles sejam, surge um suporte
para sonhos maiores. E essa dinâmica desejante é capaz de gerar tanta energia, em nossas
identidades pessoais e nas convergências de cooperação coletiva, que aquilo que parecia
impensável e impossível se torna projetável e factível.
Um ponto forte, neste sentido, é a questão do sábio uso das energias humanas
disponíveis. É preciso dar-se conta de que, as culturas em geral, ritualizam em gestos e
delimitam mediante linguagens os assuntos que se podem abordar livremente e os que
ficam geralmente escamoteados. Os assuntos escamoteados, ou até mesmo transformados
em tabu, geralmente tem a ver com aspectos delicados da intimidade pessoal e interpessoal
e com riscos-limite da existência humana. Talvez seja importante reconstruir nossas
referências à elasticidade do possível a partir de modestas sinceridades Para um sábio uso
da energia humana socialmente disponível são questões fundamentais.
As pessoas têm variações quase diárias, ou até várias vezes por dia, do seu estado de
ânimo. As pessoas adoecem e morrem. Precisam de ar, definham e até morrem lentamente
quando não podem respirar bem. Ar bom é realidade não apenas bioquímica, mas sócio-
ambiental e de clima interpessoal. Quem não sabe que a expressão "neste ambiente não se
respira" tem imediatamente múltiplos sentidos? Embora vivamos a era da aceleração
crescente em muitos aspectos da tecnologia e da vida, as pessoas têm seus ritmos próprios e
limites na aceleração possível. Hoje muitas pessoas acabam se ilhando, isolando e
confinando em sua identidade, que por vezes não se anima a ir além de um incipiente pré-
projeto de vida.
Supor que todas as pessoas vivam plenamente um projeto de vida é cair numa
grande ilusão. Apesar da incrível conectividade da era das redes (canais abundantes de TV,
telefonia móvel, Internet...), e apesar do fim da escassez, até certo ponto, da informação, a
carência maior de muitas pessoas se refere a escassez de contatos humanos. Muitas formas
tradicionais e, talvez excessivamente ritualizadas, de confluência multitudinária já não
cumprem o papel de fazer que as pessoas vivam a experiência pessoal do pertencimento ao
mundo plural de seres humanos associados.
Esta talvez seja uma das razões pelas quais essa experiência de sentir-se alguém no
meio de muitos outros/as, com os quais esse algém comparte vivências mais ou menos
profundas, encontre hoje acolhida, explosividade diversificada e formas variadas de catarse
nos vastos conglomerados massivos dos estádios, dos megashows, e nesses estranhos novos
espaços cognitivos que são as intermináveis galerias do consumo dos shopping centers.
17
Para não cair em visões fatalistas precisamos sentir, de alguma forma - como
verdade perceptível em nossa própria vida e em acontecimentos, com os quais temos
alguma interface vivencial - que há coisas que podem ser de fato melhoradas em nossa vida
e em volta de nós. Esta parece ser a base mínima para acreditar que vale a pena cultivar
comportamentos pró-sociais. Certamente não se precisa de uma perspectiva de esperanças
tão amplas que demandem níveis de crença e experiência dificilmente acessíveis à maioria
das pessoas.
Fica assim colocada uma nítida distinção entre o plano das esperanças sociais
tópicas, ao alcance do cotidiano de um grande número de pessoas (não necessariamente de
todos, muito menos de forma coincidente) e o nível dos projetos estratégicos de amplitude
tal, que sua efetivação ultrapassa a experiência humana comum, individual e de grupos.
Parece importante trabalhar, hoje, com essa distinção entre esperanças tópicas
realmente vivenciáveis e a Esperança (com inicial maiúscula), projetada para proporções
espacialmente muito amplas e temporalmente previstas para agendas improváveis. Não se
pretende afirmar, de modo algum, que não se deva trabalhar também com visões globais,
ou seja, com pensamento estratégico.
Mas para evitar a desgastante sensação de frustrações, que podem arrasar o ânimo
das pessoas pelo resto da vida, convém que a experiência humana seja vista e analisada em
tempos-espaços "vivos". A aprendizagem da esperança precisa poder acontecer com
intensidade psíquica, em seqüenciamentos de experiências localizáveis, com enredos de
espacialidades e temporalidades que não violentem o potencial das energias humanas
disponíveis.
Não basta sentir que as coisas não andam bem e que não deveriam continuar
eternamente como são. É preciso ter também alguns pontos de apoio para acreditar que algo
pode mudar. É preciso sentir pessoalmente que vale a pena acreditar que alguns aspectos
relevantes deste mundo não só precisam, mas de fato podem mudar, se acreditarmos nisso e
juntarmos nossas forças para que isso aconteça.
Desmistificar a questão do egoísmo humano
Somos uma espécie animal predisposta para o convívio solidário? Com a erosão de
valores tradicionais de coesão social, totalmente insuficientes para o contexto de sociedades
amplas e complexas e para os desafios atuais a escala planetária, vivemos numa espécie de
vácuo de valores solidários. Em vão olhamos à volta, buscando condensações simples da
sabedoria necessária. Essas sínteses provavelmente nunca mais existirão. Entramos
definitivamente num mundo de pluralismo teórico acerca de praticamente todas as questões
fundamentais para a vida individual e social.
Chegou a hora de fazermos as pazes com as limitações dos nossos pendores sociais
e imaginar, apesar disso, formas de convivência social cada vez mais favoráveis ao bem-
estar e à felicidade de todos os membros da nossa espécie. Só que, para isso, devemos
desistir de idealizações, mais ou menos idílicas, acerca de nós mesmos e acerca daquilo que
é historicamente realizável em contextos concretos.
Para que não haja mal-entendidos imediatos voltamos a frisar nossa concepção
acerca da elasticidade do possível. Quando falamos das limitações do historicamente
realizável não nos referimos a recortes do horizonte utópico. Mas o tamanho do sonho, que
deve sempre tender a ser maior do que o imediatamente factível, ficaria esvaziado de
18
sentido histórico se não conseguisse construir interfaces com projetos estratégicos
transformados em programas concretos.
Não somos animais naturalmente solidários para além de um circuito bastante
limitado de relacionamentos, no qual conseguimos perceber a relevância da sociabilidade
para as nossas próprias vidas. Para percebermos a conveniência, até para a nossa própria
felicidade, da solidariedade como elemento da sociedade ampla e do planeta Terra,
precisamos de um salto ético que não costuma suceder espontaneamente. Ele necessita ser
alavancado com argumentos, vivências, testemunhos e até mesmo a sensação de riscos e
ameaças, que não formam parte do senso comum do nosso cotidiano. Para tornar-nos
solidários num sentido mais abrangente precisamos ascender a um estágio de consciência e
opção, que implica numa conversão a valores, que não são óbvios em nossa experiência
cotidiana.
A necessidade dessa conversão sempre já foi tema das éticas e das religiões. A
busca de elevação moral e a adesão a valores "superiores" não são assunto novo. No
entanto, para muitos ainda é chocante a visão do ser humano que se manifesta nas seguintes
afirmações do já citado documento do Clube de Roma de Roma, A Primeira Revolução
Global, que tenta levar-nos a uma visão honesta do Human Malaise (do mal-estar humano)
da atualidade.
O egoísmo, do qual o egocentrismo é uma das manifestações, ou a 'energia vital'
como alguns a chamaram na primeira onda do darwinismo, é uma propriedade de
todos as espécies vivas, que lhes garante o ímpeto primevo para sobreviver, para
reproduzir-se, para prosperar e sobressair. Ele é a força-motriz da inovação e do
progresso. Mas ele se manifesta também constantemente no comportamento
egocêntrico, ganancioso e anti-social, na brutalidade, no gosto pelo poder (por
mesquinho que seja), na exploração e domínio sobre outros.
O conflito entre os aspectos positivos e negativos do egoísmo é o eterno drama
faustiano que todos representamos. Chegar a um equilíbrio dinâmico entre esses
dois aspectos opostos do egoísmo é o objetivo central, raras vezes admitido, da
política social. Alargar demais o espaço ao exercício da tendência egoísta pode
produzir uma sociedade dinâmica, mas pode levar à exploração, ausência de
justiça social, corrupção e opressão.
Nossa herança genética nos persegue. Custa-nos admitir, mesmo para nós mesmos,
que os lados negativos de nossa natureza - tais como a cobiça, a vaidade, a raiva, o
medo e o ódio, que são manifestações da brutalidade de nosso egoísmo - foram
úteis à nossa espécie durante o longo processo da evolução de nosso organismo...
(...)
Agora, ao havermos alcançado nosso presente estado de consciência, sabendo da
nossa mortalidade e capacitados para encarar o futuro como uma seqüência
generacional da vida, os aspectos negativos do egoísmo se tornaram menos úteis
para a luta daqui para a frente. Eles, no entanto, existem e precisam ser tomados
em conta no comportamento pessoal e coletivo. (...)
...é preciso quebrar honestamente os tabus e reconhecer sinceramentee a existência
e o poder dos aspectos positivos e negativos (do egoísmo) no comportamento
individual e coletivo, para chegar a adotar uma visão baseada no interesse próprio
iluminado e compartido de todos os habitantes deste pequeno planeta afim de
19
assegurar ambientes físicos e sociais sustentáveis para nós mesmos e nossos
descendentes6.
6KING, A. & SCHNEIDER, B. The First Global Revolution - A report by the Council of the Club of Rome -.
New York: Pantheon Books, 1991, p. 234-236.
20
PARTE I
INTERFACES
SÓCIO-FILOSÓFICAS
21
Capítulo 1
SOLIDARIEDADE:
UMA TEIA DE CAMPOS SEMÂNTICOS VARIADOS
Este capítulo é uma espécie de bandeja de aperitivos. Contém amostras do uso
variado da linguagem sobre a solidariedade, com destaque a alguns poucos pensadores e
umas quantas "comunidades discursivas" (FMI, Banco Mundial, Igrejas, ONGs, outros
grupos). Nosso propósito é deixar patente que se trata de uma linguagem multirreferencial e
que, apesar de uma aparente coincidência dos termos e mesmo, até certo ponto, das
expressões nas quais se associam diversas palavras, os campos semânticos são bastante
diferentes. Muito mais ainda o são os campos do sentido, isto é, as visões do ser humano e
as concepções de história, que impregnam essas linguagens.
Este mini-panorama fenomenológico dos discursos sobre a solidariedade não passa
de simples amostragem. Mesmo assim ele já revela que lidamos com um discurso que
flutua por diversos campos do sentido. Ao longo desse mapeamento incompleto também já
acresentaremos algumas dicas sobre onde garimpar questões de fundo que possam integrar,
posteriormente, uma problematização da relação entre o tema solidariedade e o da
educação7.
A metáfora da teia nos pareceu sugestiva para sinalizar que esses usos diferenciados
do discurso sobre a solidariedade constituem, em seu conjunto, um fenômeno sintomático.
Ele parece estar mostrando que há indícios convergentes de uma consciência cada vez mais
explícita de uma profunda crise de civilização. Não se trata apenas de problemas
localizados. Há um mal-estar generalizado que revela que há algo de profundamente
equivocado nos rumos gerais da humanidade.
As linguagens sobre a solidariedade se reportam a urgências solidárias diferentes,
fazendo vibrar sensibilidades solidárias diferenciadas, e criando pontos de irradiação e
nexos convergentes e divergentes. Já que se trata de uma teia complexa, é de prever que
ela tenha vários pontos de amarre, nós de aglutinação e, neste caso, muitas pontas soltas.
O fenômeno está longe de ser um campo unificado do sentido. Há ainda
espalhamento de campos semânticos parcialmente desconexos, e até contrapostos, que
operam com níveis e referenciais dificilmente unificáveis. Por isso a teia das linguagens
sobre a solidariedade difere bastante daquelas gigantescas teias com vários centros,
articulados num grande conjunto unificado, que aqueles fascinantes animais solidários, as
"aranhas sociais" (que existem no Equador e por outros lados), sabem fazer emergir,
cooperativamente, desde a iniciativa empreendedora de muitas aranhas em grupo.
Para compactar muita informação e lançar instigações para um pensamento
complexo acerca da solidariedade, usaremos um estilo de amostragem comparável a um
caleidoscópio. Cada leitor/a poderá girá-lo para que seu olhar construa recomposições
imprevistas. Nossa intenção vai além da colagem, entendida como síntese de elementos
pré-fixados. A idéia é introjetar na experiência de ler algo da criatividade do escrever.
7 Uma instigante supervisão da problemática da solidariedade, incluindo aspectos históricos do conceito,
debate filosófico e ressonâncias éticas, encontra-se na obra coletiva: BAYERTZ, Kurt (Ed.). Solidarity.
(Philosophical studies in contemporary culture 5). Dordrecht (Holanda), Kluwer Academic Publishers, 1999. -
Para conhecer o sumário dessa obra, vide a bibliografia ao final deste livro.
22
Como nos hipertextos da Internet: cada navegador escolhe as suas entradas e cria o seu
texto, sobre a base de múltiplos percursos possíveis.
Consciência solidária universal não é coisa comum (Kohlberg)
O tema solidariedade supõe coragem para sustos e esperanças. Exige ânimo e frieza
para acrobacias da mente e do coração. As perguntas são radicais: até que ponto somos
animais solidários? Temos de fato um cérebro social, como nos diz o autor de O Direito à
Ternura, o médico colombiano Luís Carlos Restrepo?8 Antes que os dilemas falsos nos
envenenem o imaginário convém prevenir-nos. Qual seria, nesse caso, um dilema falso?
Por exemplo, o de querer obrigar-nos a optar entre pessimismo e otimismo antropológico,
entre visão inexoravelmente pessimista e visão ingenuamente otimista acerca do potencial
solidário dos seres humanos. Os dilemas são geralmente falsos porque neles as partes
contrapostas têm razão demais. Tem tanta razão que não sobra razão alguma para a posição
oposta. Ou seja, o excesso de razão sempre se afunda na desrazão.
O filósofo e pedagogo contemporâneo Lawrence Kohlberg ficou conhecido por sua
dura tese de que pouca gente alcança a maturidade ética exigida por uma consciência
solidária universal. Mas ele não formulou a sua teoria para colocar-nos diante do dilema de
ou acreditar cegamente no ser humano ou desesperar de sua perfectibilidade. Ao contrário,
como ele mesmo se explicou fartamente, sua teoria visava incutir-nos a urgência
pedagógica de superar, a todo custo, as limitações éticas a que muita gente é condicionada
por seu contexto cultural e social. Não pretendeu apregoar uma espécie de tese ontológica
pessimista acerca de uma suposta natureza anti-solidária dos seres humanos. Se trazemos
aqui este fragmento de seu pensamento é, precisamente, porque se presta como instigação
para refletir seriamente sobre os alcances da tarefa educacional que nos desafia. Sem nos
determos em maiores comentários, cremos que vale a pena dar a conhecer sumariamente o
esquema básico da TEORIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL DE KOHLBERG9:
Observação prévia: a Teoria de Kohlberg distingue 3 níveis, cada qual com dois sub-níveis, no
desenvolvimento moral do ser humano. A noção de convencional refere-se a convenções estabelecidas
consensualmente entre os seres humanos, ou seja, à normatividade social, expressada em leis ou não, mas que
conta com razoáveis consensos.
Nível A - Nível Pré-Convencional (a maioria das crianças com menos de 9 anos)
Nível Definição Frase que exemplifica
Sub-nível 1 - O nível
heterônomo
Agir bem é obedecer cegamente
às prescrições e às autoridades,
para evitar punições e
sofrimentos corporais
"Faça isso direito!"
(Uma das máximas atribuídas
aos nazistas)
Sub-nível 2 - O nível do
individualismo, do pensamento
fim-meios e da troca
Agir bem é servir às
necessidades próprias e alheias
e comportar-se no sentido da
troca recíproca concreta.
"Uma mão lava a outra!"
(sabedoria popular)
8 RESTREPO, L. C. O direito à ternura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
9 KOHLBERG, Lawrence. Essays on Moral Development. Cambridge (Mass.): Cambridge University Press,
vol. 1-2, 1981, 1984; KOHLBERG, Lawrence & COLBY, Ane. The Measurement of Moral Judgment.
Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1987.
23
Nível B - Nível Convencional (a maioria dos jovens e adultos)
Sub-nível 3 - O nível das
expectativas, relações e
conformidade mútua
interpessoal
Agir bem significa fazer um
papel bonito, preocupar-se com
os outros, comportar-se de
maneira leal e confiável com os
companheiros e estar disposto a
cumprir regras e corresponder a
expectativas
"O que não queres que se faça a
ti, também não o faças a
nenhum outro!"
(A regra de ouro, ver Evangelho
de Lucas, 6,31)
Sub-nível 4 - O nível do sistema
social e da ausência de
consciência
Agir bem significa cumprir seus
deveres na sociedade, manter a
ordem social e preocupar-se
com o bem-estar da sociedade.
"Tranqüilidade é o primeiro
dever do cidadão!" [ou seja,
Segurança antes de tudo]
(de uma pixação em muros de
Berlim)
Nível C - Nível Pós-Convencional (alguns adultos com mais de 20 anos)
Sub-nível 5 - O nível do
contrato social ou da utilidade
para todos e dos direitos do
indivíduo
Agir bem significa defender os
direitos fundamentais assim
como os valores básicos e os
contratos na sociedade, mesmo
quando entram em choque com
regras e leis concretas de um
sub-sistema social.
"Ser proprietário é ter
obrigações, o uso da
propriedade deve servir ao
mesmo tempo ao bem comum"
(algo semelhante consta da
maioria das Constituições)
Sub-nível 6 - O nível dos
princípios éticos universais
[solidariedade social]
Agir bem significa considerar
como básicos os princípios
éticos que toda a humanidade
deve seguir
"Age de modo tal que tua
máxima possa valer sempre
como princípio de uma
Legislação Universal!". ( O
imperativo categórico de Kant)
É preciso unir Justiça e Solidariedade (Habermas)
A teoria de desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg teve bastante
repercussão entre os teóricos da ética na década de 80 do século vinte. Jürgen Habermas e
Karl-Otto Apel, os dois principais autores alemães da Diskursethik (Ética do Discurso ou,
melhor, da discursividade ou negociação discursiva) dedicaram longos comentários de
apreciação e crítica à teoria dos níveis de consciência moral elaborada por Kohlberg. Não é
por acaso que Habermas tenha tomado o famoso Nível 6 de Kohlberg (a adesão consciente
a princípios de solidariedade universal) como ponto de referência central de seu estudo
"Justiça e Solidariedade. Sobre a discussão acerca do Nível 6"10
.
Não vamos, por isso, analisar o pensamento de Habermas sobre a solidariedade em
termos amplos. Seria tarefa para um estudo longo e fecundo. O que mais nos interessa
mencionar aqui é o interesse de Habermas por criar um patamar de reflexão sobre a
solidariedade que nos leve um passo adiante da dura tese de Kohlberg acerca da escassa
sensibilidade solidária da maioria dos seres humanos. Habermas instaura a sua reflexão
sobre a solidariedade levando a sério as ponderações de Kohlberg, mas tentando mostrar,
10
O texto foi retomado em várias publicações em alemão e inglês, por exemplo: HABERMAS, J.
Erläuterungen zur Diskursethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, 49-76.
24
ao mesmo tempo. por onde avançar numa análise acerca da viabilidade social de
perspectivas solidárias.
Segundo Kohlberg, o nível de percepção ética requerido para aderir
conscientemente a valores solidários de caráter universal seria atingido, na verdade, por
relativamente poucos adultos. Os argumentos que Kohlberg utiliza para chegar a seu
esquema acentuadamente pessimista tem tudo a ver com sua teoria da consciência, que
muitos criticam como excessivamente racionalista. Mas Kohlberg apresenta também
reflexões de índole histórica, que revelam a persistência da insensibilidade social na
história evolutiva da nossa espécie.
Kohlberg, no entanto, não parece haver-se dado conta de que um modelo
racionalista da conscientização ética é pouco adequado para criar sensibilidade social, já
que leva a propor aos seres humanos um tipo ideal de "consciência de si" que os seres
humanos comprovadamente têm dificuldades em atingir. Seria lógico, então, preferir
trabalhar com abordagens menos cobradoras de "consciência racional" quanto ao agir
humano comum e cotidiano. Em síntese. a teoria da linguagem e da ação comunicativa de
Habermas - os seres humanos somos "negociadores" de linguagens em busca de
coincidências comunicativas - permite visualizar saídas, que não aparecem em Kohlberg.
Em outras palavras, os modelos racionalistas de conscientização ética simplesmente
não funcionam como os racionalistas desejariam. Sendo assim, é preferível optar por
abordagens menos exigentes - mas talvez humanamente mais comunicativas e mais
compreensíveis - tanto na análise dos motivos pelos quais os humanos costumam agir de
determinadas maneiras e não de outras, como no trabalho educativo de sensibilização
efetiva para valores solidários.
Na vasta obra do mais respeitado filósofo social alemão da atualidade, Jürgen
Habermas, se encontram inúmeras referências ao tema da solidariedade. O que nos
interessa destacar aqui é particularmente um aspecto: a repetida ênfase de Habermas na
necessidade de pensarmos conjuntamente as formas de enunciação verbal dos argumentos
em favor de um princípio universal da solidariedade e a construção democrática de
consensos coletivos nessa direção, que possam projetar-se em normas jurídicas e princípios
de organização da sociedade, socialmente desejados e juridicamente exigíveis pelos
cidadãos. O pensamento de Habermas se enriqueceu evolutivamente em três etapas
significativas:
Houve, primeiramente, uma sequência de aprofundamentos em relação a uma série de lacunas do Teoria Crítica da primeira geração da Escola de Frankfurt (especialmente de
Adorno e Horkheimer). Nessa fase, Habermas tentou avançar teoricamente nos
seguintes temas: relação entre conhecimento, desejo e interesse; a reconciliação
positiva, mas não ingênua, do pensamento crítico com a ciência e a tecnologia; uma
desconstrução e reconstrução dos resíduos do materialismo histórico marxista; e,
sobretudo, a adesão convicta à "virada lingüística" na filosofia.
Veio, a seguir, a profunda elaboração da Teoria da Ação Comunicativa, que representa
o cerne da Ética do Discurso de Habermas. Eis uma simples alusão ao desafio central:
doravante toda argumentação ética secular deve ser entendida como negociação de
linguagens e consensos possíveis, sem pressupostos prévios de índole metafísica ou
religiosa (embora levando em conta que a maioria dos dialogantes traz consigo heranças
valóricas dessa proveniência); todos os contextos coletivos de debate e deliberação
acerca de valores (academias, congressos, parlamentos, níveis governamentais, ONGs,
organizações internacionais) deveriam ater-se ao pressuposto básico de que o simples
25
fato da interlocução ou diálogo discursivo pressupõe o desejo honesto de entender-se,
negociar linguagens possíveis e aspirar ao estabelecimentos de consensos expressáveis
de forma normativa (acordos e leis).
Nas duas últimas décadas, Habermas se concentrou em explicitar, sob variadas formas,
as implicações de uma concepção radical dos procedimentos democráticos, voltando
sua atenção maior aos graves obstáculos que representa a ausência de mecanismos
jurídicos, nacionais e supra-nacionais, para avançar mais rapidamente em direção à
efetivação de ideais solidários na economia de mercado. Por diversas vezes expressou a
sua perplexidade diante da indiferença com a qual as normas e instituições efetivamente
existentes - especialmente no plano da economia - se revelam resistentes e praticamente impermeáveis mesmo àquelas formas de ideais solidários, às quais alude o conceito de
"mercado social". É, portanto, sintomática a preocupação de Habermas com o
entrelaçamento entre liberdades democráticas, mercado social, instituições jurídicas
novas e solidariedade. Deve-se, ao menos em parte, à influência do pensamento
habermasiano o fato de que hoje se tenha tornado tão freqüente o binômio "Justiça e
Solidariedade"11
. Essa vinculação não nos remete apenas às implicações histórico-
institucionais e jurídico-normativas do tema da solidariedade. Para Habermas, no cerne
desse binômio deve ser colocado um dos seus temas mais fortes, e que é antropológico
e ético, e não apenas normativo-jurídico, a saber: "a inclusão do outro"12
.
Liberal já detesta crueldade e miséria? (O neo-pragmatismo de R. Rorty)
Um dos maiores filósofos norte-americanos da atualidade, o neo-pragmatista
Richard Rorty, sustenta uma tese chocante: segundo ele, para falar significativamente da
solidariedade é melhor partir de sensibilidades empiricamente comprováveis, abandonar -
como recurso argumentativo inicial - a invocação de obrigações éticas universais e
acreditar que é possível expandir aos poucos o campo de responsabilidade moral das
pessoas. Rorty é apenas um exacerbador irônico ou, se quiserem um provocador explícito
que, no fundo, não defende nada muito diferente daquilo que muitos filósofos morais
anglo-americanos vêm propondo há bastante tempo. Cada qual a sua maneira (Wilfrid
Sellars, Annette Baier, Alasdair MacIntyre e muitos outros) questiona a força eticamente
motivadora, nas circunstâncias do mundo de hoje, do recurso a primeiros princípios (por
exemplo, a dignidade humana universal), ao universalismo ético secular kantiano (com seu
pressuposto básico do imperativo categórico), ou aos conhecidos apelos generalistas à
solidariedade tão comuns no discurso religioso.
Rorty e os demais pragmatistas geralmente não se interessam muito por polemizar
contra os que acham que devem partir sempre de primeiros princípios éticos e, portanto, de
uma visão universalista dos valores humanos básicos. Simplesmente desconfiam que esse
ponto de partida já não tem impacto motivador em grande parte de nossos contemporâneos.
E isso por vários motivos: primeiro, pela extrema dificuldade de provar a aceitabilidade
universal de semelhantes princípios, como patrimônio de pressupostos tornados óbvios para
todos, e isso em linguagem secular e sem recurso a argumentos metafísicos ou religiosos,
hoje sabidamente de baixa cotação no mundo científico. Em segundo lugar, porque os neo-
pragmatistas, como Rorty, têm um conceito peculiar de universalismo ético, ou seja, o
11
Que o documento da Igrejas alemãs de 1997, ao qual se alude mais adiante, sintomaticamente retoma. 12
HABERMAS, J. Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt a. M: Suhrkamp, 1997.
26
único universalismo de valores que eles admitem é o que corresponde a uma tendência de
aceitação crescente de determinados valores, a partir da expansão de confianças
pragmáticas em determinados valores historicamente testados como benfazejos
(universalismo tendencial, e não de pressupostos prévios). O terceiro motivo se liga àquilo
que caracteriza propriamente a posição filosófica neo-pragmática: o esforço de estabelecer
pontos de partida para a argumentação ética desde o interior das experiências históricas
amplamente compartidas e normativamente institucionalizadas; dito em outras palavras, o
abandono da mania de querer fundamentar a ética a partir de "algo que se encontre para lá
da história e das instituições".
Este é um ponto relevante na tramação argumentativa dos neo-pragmáticos. Por isso
nos parece oportuno deter-nos um pouco mais nisso para entender melhor a forma - um
tanto paradoxal para muitos - como Rorty cria a sua ponte peculiar com o tema da
solidariedade. Para isso precisamos invocar diversas citações. Rorty começa desmontando,
com laivos de ironia, a argumentação essencialista e ontológica daqueles que inventam um
caminho fácil para poder desprezar os que se comportam de maneira "desumana", dando
por suposto que se trata de pessoas que deixaram de ser humanamente "normais". Supõe-se
- falsamente, segundo Rorty - que ao público do Coliseu, que aplaudia a matança recíproca
de gladiadores, aos guardas de Auschwitz, aos belgas e tantos outros que colaboraram com
a Gestapo, etc "faltava um componente essencial dos seres integralmente humanos...".
Rorty acha que essa é uma saída fácil demais.Todos sabemos que os seres humanos
- especialmente em conjuntos coletivos, mas também como indivíduos que estão imersos
em campos do sentido consensualmente coletivizados (nazismo, frentes de guerra, regimes
ditatoriais, sectarismos religiosos e ideológicos, hooligans, vandalismo, linchamentos, etc)
- são capazes de comportar-se com suma agressividade e crueldade. Deixam, por isso, de
ser "gente normal"? Não é melhor procurar entender por que os seres humanos chegam a
esse ponto enquanto "gente normal"?
A maneira filosófica tradicional de explicar aquilo que entendemos por
"solidariedade humana" consiste em dizer que existe algo dentro de cada um de nós
- a nossa humanidade essencial - que ressoa com a presença dessa mesma coisa
em outros seres humanos 13
.
Rorty nega que haja tal componente comum a todos os seres humanos. E o faz para
que não andemos por aí desqualificando, a todo momento, a muitas pessoas como
"desumanas", já que seu comportamento se inscreve geralmente de maneira "normal"
dentro dos seus respectivos contextos "da história e das instituições".
A nossa insistência na contingência e a nossa conseqüente oposição a idéias tais
como as de 'essência', 'natureza' e 'fundamento' tornam impossível retermos a
noção de que algumas ações e atitudes são naturalmente 'desumanas'. É que esta
insistência implica que aquilo que conta como sendo um ser humano decente seja
relativo às circunstâncias históricas, seja uma questão de consenso passageiro
quanto a saber que atitudes são normais e que práticas são justas e injustas. (...)
13
RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Editorial Presença, 1994. p. 235.
27
A minha posição implica que os sentimentos de solidariedade dependem
necessariamente das semelhanças e das diferenças que nos surgem com destaque e
que tal destaque é função de um vocabulário final historicamente contingente. (...)
Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe e esse progresso
vai efetivamente na direção de uma maior solidariedade humana. Mas tal
solidariedade não é pensada como sendo o reconhecimento de um eu central da
essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a
capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça,
costumes, etc.) como não importantes, em comparação com semelhanças no que
respeita à dor e à humilhação - a capacidade de pensar em pessoas muito
diferentes de nós como estando incluídas na esfera do 'nós'.
Como se percebe, Rorty aposta numa espécie de emergência lenta e gradual das
sensibilidades solidárias, cada vez mais universais, desde o interior das experiências
empíricas tornadas possíveis pelas instituições democráticas. Acredita que será por essa via
que surgirá "uma consciência política cosmopolita", e não - como supunha Kant - pela
obrigação moral do imperativo categórico, generalizado na consciência de todos pela
simples força de argumentos racionalmente admitidos. Destaquemos, aqui, a arguta
distinção: a ampliação das sensibilidades solidárias emergirá, segundo Rorty, no interior
"da história e das instituições", como fruto de experiências empíricas dos seres humanos, e
não por motivações racionais alheias ao "meramente empírico".
Como era de esperar, esse esvaziamento radical dos argumentos ontológicos e
universalistas - tão comuns ainda devido a heranças metafísicas e religiosas - recebeu
agudas críticas da mais distinta proveniência. Não poucos consideram Rorty um crente
ingênuo que projeta, sem dar-se conta, virtudes e potenciais universalizantes sobre as
instituições democráticas, até na forma frágil alcançada por elas até o presente. Além disso,
aprofunda muito pouco as supostas relações intrínsecas entre mercado e democracia. Como
poderíamos ignorar que essa vinculação se revelou historicamente mutante, frágil e, hoje
mais do que nunca, sujeita às inevitáveis questões sobre os famosos limites de ambos - os
limites do mercado excludente, os limites da democracia tutelada -, limites que exigem ser
problematizados precisamente desde o interior da própria vinculação, supostamente
espontânea, entre mercado e democracia?
Precisamos trazer aqui uma citação um tanto longa para mostrar, de forma sintética,
qual é mesmo a posição de Rorty ao polemizar contra as fundamentações universalizantes
no que diz respeito à solidariedade:
Um bom exemplo de perspectiva que o 'sistema de moralidade' faz parecer
indecente é a perspectiva traçada na primeira parte do presente livro (do de Rorty):
a perspectiva segundo a qual a idéia de uma componente humana central e
universal chamada 'razão', faculdade que seria fonte das nossas obrigações morais,
embora tenha sido muito útil na criação das sociedades democráticas modernas, é
agora uma idéia que podemos dispensar - e que se deveria dispensar, para ajudar a
concretizar a utopia liberal do terceiro capítulo. Tenho vindo a defender que as
democracias se encontram hoje em posição de afastar algumas das escadas usadas
para a sua própria construção. Outra tese central do presente livro, que parecerá
igualmente indecente àqueles que são atraídos pela pureza da moralidade, é a de
que as nossas responsabilidades para com os outros constituem apenas o lado
28
público da nossa vida, lado que se encontra em concorrência com as nossas
afecções privadas e com as nossas tentativas privadas de autocriação e que não tem
nenhuma prioridade automática sobre esses motivos privados. Se tem ou não
prioridade em casos determinados é questão de deliberação, processo que
geralmente não será facilitado por se recorrer a 'primeiros princípios clássicos'. A
obrigação moral, nesta perspectiva, deve ser juntada a muitas outras
considerações, em vez de automaticamente triunfar sobre elas.
Não se deveria querer reduzir a posição de Rorty e outros neo-pragmatistas a um
relativismo pertinaz, esvaziador de valores éticos universais. Não é este o propósito deles.
Ao contrário, o que pretendem é fazer-nos ver a solidariedade como algo que se constrói e
não como algo que se encontra pronto, como predisposição supostamente natural do ser
humano. Concebem a expansão da solidariedade como algo produzido no decurso da
história, mediante consensos, normas, e instituições, e não reconhecida como fato a-
histórico. É preciso entender que, apesar de sérias discrepâncias entre Rorty e Habermas -
manifestadas inclusive em debates públicos entre eles -, existe um terreno comum, isto é, a
proposta de que os consensos em direção à solidariedade levem em conta a maneira como
os campos do sentidos se constituem historicamente.
A visão peculiar da historicidade dos processos sociais, proposta pelos neo-
pragmatistas, difere, obviamente, bastante da concepção daqueles (como as esquerdas em
geral e muitos cristãos), que pensam a historicidade como produto derivado da aguda
consciência histórica de sujeitos ético-políticos. Para estes fica sempre a difícil tarefa de
buscar onde se encontram e quem são esses sujeitos. Como é sabido, alguns os concentram
primordialmente nas vanguardas, outros os vêem emergir por todo lado desde as minorias,
e outros ainda os vislumbram em constructos bastante abstratos como "classes populares",
"sociedade civil" (alguns poucos persistem no mito do "proletariado").
Rorty destaca um ponto de partida desagradável para muitos e o denomina "ironia
liberal", ou seja, ele acha que tem relevância histórica indiscutível, para a evolução futura
das instituições democráticas e da economia de mercado, o fato de que a ética liberal se
tenha tornado, aos poucos, agudamente sensível contra a prática da crueldade (tortura,
maus tratos a crianças e mulheres, formas cruéis de exclusão, etc.). Entenda-se bem: ele não
está ironizando nada, nem diz que os liberais têm comportamento irônico (ou cínico).
Simplesmente quer nos fazer entender que estamos presenciando uma ironia da história,
que consistiria no fato de que os seres humanos melhoram eticamente, não tanto por força
de princípios éticos racionais e abstratos, mas em virtude de uma lenta e efetiva
transformação das sensibilidades humanas.
Em resumo, depois de milênios de crueldades e brutalidades humanas de todo tipo,
hoje os liberais já teriam adquirido um nojo visceral e somatizado em relação a algumas
formas de crueldade e violência, e isso deveria ser apreciado como um progresso ético
historicamente promissor em direção ao aumento da solidariedade no mundo, podendo
inclusive servir de suporte articulador para estratégias solidárias cada vez mais eficientes e
universais. É isso, no fundo, que Rorty nos quer incutir com a sua insistência na
contingência histórica dos comportamentos humanos, cuja melhoria não se apoia em
primeiro lugar, segundo ele, em "algo que se encontre para lá da história e das
instituições". Dito isso, talvez adquira sabor especial a seguinte citação:
29
... a minha posição não é incompatível com defender que tentemos alargar o nosso
sentido do 'nós' a pessoas em que anteriormente pensávamos como sendo 'eles'.
Esta posição, característica dos liberais, pessoas que têm mais medo de ser cruéis
do que qualquer outra coisa, não assenta em nada de mais profundo que as
contingências históricas a que me referi no final do quarto capítulo. Trata-se das
contingências que deram origem ao desenvolvimento de vocabulários morais e
políticos típicos das sociedades democráticas secularizadas do Ocidente. À medida
que esse vocabulário foi gradualmente tornado não teológico e não filosófico, a
'solidariedade humana' emergiu como recurso retórico poderoso. Não é meu desejo
diminuir o seu poder, mas apenas separá-lo daquilo que muitas vezes se pensou
serem os seus 'pressupostos filosóficos' 14
'.
Solidariedade mecânica - solidariedade orgânica (Émile Durkheim)
Mais que embaralhar os tempos, é os conceitos que nos interessa evocar e
desembaralhar. Afinal, os tempos de Émile Durkheim (1858-1917) foram outros que os
nossos. Pensador francês, um dos pais fundadores da sociologia, fortemente influenciado
pelo positivismo de Comte e pelo organicismo social de Spencer, enfim, que aspecto do seu
pensamento vale a pena recordar justamente aqui? Para ir diretamente ao ponto que nos
interessa, cremos que há algo nas elucubrações durkheimianas sobre as diversas formas da
solidariedade - especialmente sua nota a distinção entre solidariedade mecânica e
solidariedade orgânica - que ainda hoje pode servir de instigação para discernir
acontecimentos atuais.
Não se trata de assumir e transpor, sem mais, para hoje os seus conceitos, eivados
de excessivas marcas do seu positivismo e suas crenças e entusiasmos peculiares.
Durkheim, assim como os positivistas de antanho em geral, nutria a convicção de que o
avanço da ciência, a modernização do Direito e a crescente industrialização seriam os
vetores confiáveis e seguros do progresso. Distinguiu-se, no entanto, do positivismo
comteano por sua visão peculiar dos ingredientes da coesão social. Conferiu importância
especial às convicções éticas e inclusive ao fator religioso na integração da sociedade. Para
entendê-lo melhor, é preciso situar seu pensamento no contexto de uma França de final do
século XIX, que tentava recuperar seu atraso na industrialização.
Durkheim projetou verdadeiro entusiasmo sobre o que ele via como fonte de uma
dinâmica coesionadora: a empresa industrial. Não a via primeiramente como divisora de
classes sociais antagônicas. Ele a comparava com organismos integradores. Os marxistas
nunca lhe perdoaram que, em lugar da divisão social do trabalho capitalista, ele invertesse o
eixo desse conceito, na sua obra famosa Da Divisão do Trabalho Social (1893)15
. Sem esse
mínimo de contextualização não faria muito sentido relembrar aqui suas famosas distinções
acerca da solidariedade. Auguste Comte (1798-1857), o pai do positivismo, já havia usado
o termo solidariedade. Durkheim o transforma em noção básica da sua teoria da coesão
social.
14
As várias citações acima se encontram, na ordem em que são apresentadas, em RORTY, R. op cit., páginas:
235, 238, 239, 241 e 239. 15
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1999.
30
Via o conjunto da sociedade e cada um de seus setores parcialmente autônomos (a
economia, a política e a cultura) como vetores convergentes de solidariedade. Isso explica
por que criou um conceito - o de solidariedade mecânica - para descrever e criticar os
processos de excessiva autonomização no todo social, e outro conceito - o de solidariedade
orgânica - para exaltar as dinâmicas de convergência nesse todo. Essa concepção tem,
evidentemente, a marca de um organicismo quase mecanicista, e até de darwinismo social.
Por outro lado, porém, o pensamento Durkheim teve a virtude de antecipar reflexões, que
rebrotam no esforço atual de chegar a uma visão integrada de todas as ciências da vida - as
biológicas e as humanas e sociais. Isso de fato está acontecendo sob nossos olhos, com a
teoria da complexidade e a migração transdisciplinar de conceitos como auto-organização,
autopoiése e níveis emergentes. Para comprovar essa persistência de uma herança teórica
durkheimiana valha a seguinte citação:
Estimulados pelos descobrimentos recentes das Ciências Cognitivas -
especialmente pelos modelos de processamento paralelo amplamente distribuído e
pelos modelos de redes neurais - muitos antropólogos estão retomando antigas
questões de Durkheim e Saussure em relação à, natureza, origem e persistência de
representações coletivas, isto é, formas culturais e estandardizadas de
conhecimento e compreensão. Voltou-se a reexaminar a maneira como o
conhecimento cultural e lingüístico é aprendido, organizado e compartido, sem que
seja explicitamente ensinado. A atenção se volta para os processos mediante os
quais semelhante conhecimento coletivo é criado de forma coletiva - uma espécie
de divisão do trabalho intelectual à maneira durkheimiana...
[O avanço das ciências cognitivas e seu enlace com as biociências permite analisar, hoje,
esses fenômenos sócio-culturais, aos quais Pierre Lévy gosta de aplicar o conceito de
"inteligência coletiva", com os novos conceitos de emergência e auto-organização, -
Comentário nosso.]
A natureza particular da sociabilidade humana - o sentido peculiar no qual
os humanos podem ser caracterizados como animais sociais -, entrelaçando
disposições inatas e capacidades adquiridas, são a base para os processos de
flexibilidade cultural e organizacional. (...) Cresce a preocupação dos antropólogos
com novas maneiras de analisar as representações coletivas enquanto propriedadas
emergentes. A cultura é um sistema complexo que está constantemente mudando e
evoluindo como resposta às mudanças do seu meio ambiente social e material. (...)
...os humanos foram criando, de forma auto-consciente, sistemas referenciais
complexos que funcionam como campos de metalinguagem e estruturação do
sentido das linguagens e dos gestos cotidianos.(...) ...continua em aberto a pesquisa
de relevantes questões biológicas, que precisam ser aprofundadas para entender
melhor a capacidade da nossa espécie para criar e usar tais sistemas de
conhecimento coletivo culturalmente distribuídos e individualmente apropriáveis,
por via, muitas vezes dos simples hábitos cotidianos e não sempre de maneira
consciente...16
16
Culture as Distributed Cognition. American Anthropological Association Meetings, 1996. Destaque nosso.
Resumimos o texto disponível na Internet, junho/2000.
31
Das distinções durkheimianas acerca da solidariedade (das quais faremos uma mini
síntese logo a seguir)17
talvez valesse a pena reter ao menos dois elementos: primeiro, que a
solidariedade básica de qualquer sociedade deve expressar-se numa normatividade
socialmente confiável (aspecto que, aliás, também é fundamental no pensamento de
Habermas e Rorty); e, segundo, que continua útil um conceito como o de solidariedade
mecânica, para avaliar e, quando conveniente, criticar resistências corporativistas à
transformação da sociedade, mostrando que são anti-solidárias na perspectiva do todo
social. Os dois aspectos nos parecem extremamente atuais para a conjuntura do Brasil de
hoje.
Solidariedade Mecânica
A cooperação automática, rígida, funcional entre
semelhantes. A metáfora-guia é a da máquina.
Émile Durkheim aplica esse conceito ao
funcionamento de organizações sociais regidas
por programas, regras, doutrinas e
comportamentos relativamente rígidos. Utiliza o
conceito de forma crítica para referir-se a
organizações excessivamente burocratizadas e
emperradas. Utiliza-o também para analisar
tendências para a rigidez doutrinária e
comportamental em partidos, sindicatos, grupos
étnicos, frentes de luta organizada, movimentos,
etc. Confere a este conceito uma forte
característica jurídica enormativa. A ruptura das
normas de comportamento e o abandono de
convicções e acordos grupais são vistos pelo
grupo como ruptura da solidariedade, mesmo
quando esteja em jogo alguma vantagem ou
desvantagem dos indivíduos. O limite referencial
é a figura do crime: a ruptura da solidariedade
mecânica constitui um crime em relação aos
comportamentos anteriormente consensuais. Um
exemplo de solidariedade mecânica é o que hoje
denominamos corporativismo. Muitas
organizações profissionais ou de classe se regem
fundamentalmente por regras de consenso que
representam um conjunto de mecanismos de
defesa de interesses do grupo em referência. A
solidariedade mecânica é um fato social
fundamentalmente positivo, integrado no
princípio de subsidiariedade, que se refere às
autonomias relativas dos grupos sociais dentro
do todo social. Mas quando a solidariedade
mecânica se exacerba sob a forma de
corporativismos grupais, que se opõe a interesses
Solidariedade Orgânica A cooperação viva e dinâmica entre diferentes;
já que não é automática, ela nunca está feita e
pronta, mas sempre está sendo construída e
depende de negociações e entendimentos. A
metáfora para esse conceito é a do organismo
vivo. É o conceito que Émile Durkheim
elaborou para referir-se aos mais variados
entrelaçamentos cooperativos na coesão social.
Nele se incluem também os aspectos jurídicos e
os consensos ancorados em normas
publicamente estabelecidas. A referência básica
da solidariedade orgânica é a coesão social, que
deve ser, segundo Durkheim - uma dinâmica de
convergências. Esta se ancora fundamentalmente
em fenômenos sócio-culturais. Os fatores de
coesão social se alimentam de um espírito de
cooperação a cujo serviço estão os poderes
públicos e os diversos níveis do sistema jurídico.
A solidariedade orgânica precisa das regras e
poderes da sociedade para superar os conflitos.
Mas ela se alimenta e orienta basicamente não
por essas regras, que apenas lhe servem para
vigiar seus limites. Orienta-se e se nutre de um
conjunto de crenças e consensos em relação a
um projeto solidário da sociedade como um
todo. Um dos aspectos mais freqüentemente
criticados no conceito durkheimiano de
solidariedade orgânica, é seu organicismo. Trata-
se de uma determinada concepção dinâmica da
normatividade social e do jogo de
representatividades, que implica numa filosofia
do direito e numa concepção da democracia
bastante exigentes e radicais. Muitos enxergam
dois aspectos críticos no conceito durkheimiano
de solidariedade orgânica: primeiro, os laivos
17
Para uma exposição mais detalhada ver: CACCIA-BAVA Jr., A lógica e o estilo em Da divisão do
trabalho social de Émile Durkheim. Texto disponível na Internet (Estudos de Sociologia nº 1).
32
de outros grupos sociais ou do conjunto da
sociedade, ele se transforma em fator conflitivo e
virtualmente anti-solidário. Foi Durkheim quem
analisou mais detalhadamente o potencial
positivo e negativo das formas de solidariedade
mecânica. Muitos dos exemplos que ele dá se
referem a tipos de organização social presentes
nas sociedades européias na virada para o século
XX. A ênfase durkheimiana nos aspectos
nocivos e nas insuficiências da solidariedade
mecânica se deve, em boa medida, à necessidade
de contrapor teoricamente o conceito de
solidariedade mecânica ao de solidariedade
orgânica que constitui um elemento central da
visão de coesão social que Durkheim defende.
Como se percebe, trata-se da contraposição de
duas metáforas, a da rigidez da máquina contra a
dinâmica dos processos vivos.
utópicos desse conceito; segundo, a limitação
dos exemplos de normas jurídicas e de
ingredientes da dinâmica social, que ele
apresenta. O mundo e as sociedades se tornaram
efetivamente muito mais complexos ao longo do
século XX, no qual duas guerras mundiais,
diversas formas de fascismo, graves crises
econômicas e a fragilidade da democracia nos
foram mostrando que é difícil conceber uma
visão unificada dos conjuntos sociais mediante a
metáfora excessivamente simplista de um
organismo cooperativo. Os que retomam hoje o
conceito durkheimiano de solidariedade orgânica
apontam seus limites, buscando inseri-lo numa
visão de complexidades múltiplas e entrelaçadas.
Cabe investigar até que ponto o conceito
durkheimiano de solidariedade orgânica é ainda
condizente com uma teoria de sistemas
complexos e adaptativos. Enquanto conceito
crítico, que denuncia os limites da solidariedade
mecânica, ele parece conservar alguma serventia
analítica.
Desafio da inclusão e solidariedade (Banco Mundial e FMI)
O tema da solidariedade e da inclusão social não é mais uma exclusividade dos
intelectuais ou dos organismos ou militantes sociais, mas também já faz parte do discurso
oficial do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. No final de setembro de
1999, jornais de todo mundo anunciaram atônitos que o diretor-geral do FMI., na
assembléia geral da instituição, conclamara os países membros e à sua direção a ouvirem e
a responderem aos “clamores dos pobres” (um tema que foi muito trabalhado pelos
teólogos da libertação na América Latina). Para Camdessus, apesar do aumento de índices
sociais em países nos quais o FMI havia apoiado programas educacionais e na área de
saúde, “as vozes dos pobres espalhados pelo mundo estão nos dizendo em termos claros
que não é suficiente”.18
No dia seguinte, diante de uma interpretação tendendo a social-democracia do seu
discurso, ele lembrou aos jornalistas que esta preocupação social não significava o
abandono dos programas de ajustes econômicos dos países em desenvolvimento ou pobres.
Ele relembrou o que já havia dito no seu discurso:
Nós sabemos os ingredientes [para o crescimento econômico com desenvolvimento
social]: condições macroeconômicas estáveis, uma economia de mercado aberta e
eficiente, uma estrutura que incentive os investimentos privados, e, sim,
18
Address by Michel Camdessus, to the Board of Governors of the Fund. Washington, D.C., September 28,
1999. Disponível na Internet, junho/2000.
33
transaparência, estabilidade no setor financeiro, instituições econômicas
robustas.19
.
Contudo, apesar de um certo desencanto dos jornalistas e daqueles que acreditavam
que finalmente que o FMI iria começar a se preocupar seriamente com questões sociais, o
tema dos problemas sociais foi introduzido na pauta de discussão da alta esfera do FMI.
Camdessus já havia tocado neste tema alguns anos antes, em um encontro não
oficial. Convidado a dar uma palestra no Congresso Nacional CFPC (Associação Francesa
de Dirigentes Cristãos de Empresas), em março de 1992, ele disse o seguinte:
Vocês são membros de mercado e de empresa, em busca de eficácia para a
solidariedade. O Fundo Monetário Internacional foi criado para pôr a
solidariedade internacional ao serviço dos países em crise que se esforçam por
tornar suas economias mas eficazes. A busca da eficácia em e pelo mercado, e
vocês sabem, como eu, quão relacionadas estão eficácia e solidariedade: estamos
no mesmo terreno.20
Não cabe, neste momento, fazer comentários críticos a estes textos. Mas queremos
só destacar como a solidariedade social está reduzida à questão da eficácia econômica. Isto
é, o FMI continua acreditando que a solidariedade só é possível através dos mecanismos de
livre mercado e identifica a solidariedade com a eficiência no e do mercado Em todo caso,
é importante notar que esse tema da solidariedade, que só tinha aparecido no discurso de
Camdessus em conferências “privadas”, isto é, quando não falava como o diretor-geral do
FMI para a própria instituição ou para instituições e governos parceiros, começa a fazer
parte do vocabulário dessa instituição multilateral nos últimos tempos. Na conferência feita
na Assembléia de 1999, a palavra solidariedade ainda não aparece. Mas, já no mês seguinte,
em outubro de 1999, falando à Junta Confederativa da Confederação Mundial do Trabalho,
em Washington, ele diz:
[...] os valores que permitem humanizar um mundo que está em busca de sua
unidade e que permitirão por sua vez o reencontro de todos os homens. Destes
valores mencionarei três, muito relacionados entre si: responsabilidade,
solidariedade e espírito cívico. [...] Solidariedade porque indubitavelmente o
avanço na luta contra a pobreza exige um esforço internacional de grande
envergadura, empreendido com espírito solidário.21
Logo depois, dirigindo-se ao Instituto de Estudos Superiores da Empresa (IESE), da
Espanha, o diretor-geral do FMI faz uma afirmação ainda mais categórica:
A tarefa é decididamente monumental. Somos a primeira geração na história
chamada a organizar e administrar o mundo, não desde uma posição de força como
19
Idem, loc. cit. 20
Documents Episcopat: Bolletin du Secrétariat de la Conférence des Évêques de France, n. 12, jul-
ago/1992, p. 1.
21 CAMDESSUS, M. Cómo reforzar el vínculo entre lo económico y lo social en el marco de una economía
globalizada. Washington, 26/10/1999. Disponível na internet, junho/2000.
34
a de Alexandre, o César ou os aliados ao término da Segunda Guerra Mundial,
senão através do reconhecimento das responsabilidades universais de todos os
povos, da igualdade de direitos ao desenvolvimento social e do dever universal de
solidariedade.22
Além desse conceito de solidariedade, que começou a aparecer mais recentemente,
o FMI utiliza mais freqüentemente a expressão “igualdade social” ou congêneres no seu
discurso em favor da superação da pobreza no mundo.
O Banco Mundial, por sua vez, quase não utiliza o termo solidariedade, preferindo a
expressão “justiça social” e o termo “inclusão”. Na verdade, o Banco Mundial começou a
tratar desse tema de modo mais explícito antes do FMI. Já em setembro de 1997, no seu
discurso à Assembléia dos Governadores, o presidente do Banco Mundial, James
Wolfensohn, disse:
Quando descia aquele morro, voltando daquela favela, percebi que este é o desafio
do desenvolvimento - inclusão. Trazer as pessoas para uma sociedade da qual elas
nunca fizeram parte até agora. É para isto que o Grupo do Banco Mundial existe. É
para isto que todos nós estamos aqui hoje. Para ajudar que isto aconteça para o
povo. [...]
Este - o desafio da inclusão - é o principal desafio do desenvolvimento em nossa
era. [...]
Quero ser muito claro neste aspecto. Não estou advogando uma teoria darwiniana
de desenvolvimento, mediante a qual se abandonam os menos capazes pelo
caminho. Muito pelo contrário. A nossa meta é apoiar os capacitados e ajudar os
incapacitados a se capacitarem. Tudo isso tem a ver com a inclusão.23
No ano seguinte, na Cúpula das Américas, em Chile, ele propunha o fim do assim
chamado “Consenso de Washington” e a sua substituição pelo “Consenso de Chile”,
Este novo consenso é baseado no reconhecimento da suprema importância do que
eu chamei alguns meses atrás, em Hong-Kong, ―O desafio da inclusão‖ – o desafio
de garantir que progresso econômico possa tornar-se uma realidade na vida de
todo o povo desta região, especialmente dezenas de milhões que ainda até agora
foram deixados para trás.24
Trabalhando em sintonia com o Banco Mundial, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) tem defendido uma tese que vale a pena citar aqui. Nancy Birdsall,
a vice-presidenta da BID, diz que a desigualdade latino-americana tornou-se uma
desigualdade destrutiva. Ela, baseando-se estudos apoiados pelo BID e pelo BM, distingue
dois tipos de desigualdade de renda: a construtiva e a destrutiva. A construtiva seria uma
22
Idem, De las crisis de los años noventa al próximo milenio. Madri, 27/11/99. Disponível na Internet,
junho/00. 23
WOLFENSOHN, James D.. Discurso à Assembléia de Governadores. Hong-Kong, 23/09/97. Disponível
na Internet, jun/00. 24
Idem, The Santiago Consensus — From Vision to Reality. Speech to the Summit of the Americas. Santiago,
19/04/98. Disponível na Internet, junho/00.
35
desigualdade que levaria ao aumento da eficiência econômica por refletir um conjunto de
incentivos que encoraja inovação e trabalho duro. Enquanto que a desigualdade destrutiva,
como a que existe na América Latina, não levaria ao crescimento econômico porque produz
incentivos perversos: os pobres são excluídos enquanto os ricos se beneficiam de
privilégios e da renda.25
A diminuição da desigualdade social e a integração social dos/as atualmente
excluídos/as passou a ser considerado pelo BID e por outros organismos como uma
exigência para o crescimento econômico sustentado e para a manutenção do tecido social.
O que antes era considerado uma mera exigência ética, começa a ser visto agora como uma
exigência sistêmica, isto é, necessária para uma reprodução e desenvolvimento do próprio
sistema.
Esta nova mentalidade também está chegando no meio dos empresários. Para não
alongarmos demasiadamente esta seção, vamos somente citar um trecho de uma coluna da
revista Exame:
Essas simplificações históricas servem para mostrar o tamanho do desafio que
ainda existe na sociedade e no mercado: 500 anos de exclusão. [...] a consciência
mais avançada hoje, em parcelas significativas do empresariado e da população em
geral, de que a exclusão social é gerada por problemas na estrutura do país, e não
por culpas individuais ou étnicas, está dando origem a ações que visam dar
igualdade de oportunidades a mais pessoas. Do ponto de vista empresarial, é a
chamada ‗responsabilidade social‘, que passa gradualmente a ser exigida pelos
próprios consumidores. Recentemente, a manchete de um jornal econômico
indicava que ações sociais das empresas têm reflexo positivo na aceitação de seus
produtos.26
É claro que esses discursos não expressam necessariamente uma verdadeira intenção
solidária. Contudo, já é uma amostra de que o nível de tolerância da sociedade frente aos
problemas sociais dos setores mais pobres diminuiu e os problemas aumentaram a tal ponto
que nem essas instituições multilaterais pouco afeitas a esses temas, especialmente o FMI, e
setores do empresariado podem deixar de falar em solidariedade ou justiça social.
Intimações à Solidariedade (Clube de Roma, igrejas, ONGs, Economia Solidária)
1. O Clube de Roma
Logo após o colapso dos socialismos "reais", o renomado Clube de Roma divulgou
mais um de seus documentos preocupados com a crise mundial e as alternativas plausíveis:
A Primeira Revolução Global (1991)27
. Vale a pena recordar o enorme impacto que tiveram
alguns dos anteriores posicionamentos do Clube de Roma, como o sobre os Limites do
Crescimento (1972) e o relacionado com a necessidade de uma profunda redefinição do
25
BIRDSALL, N. Remarks On Equity Issues in a Globalizing World. IMF Conference On Economic Policy and
Equity, Washington, D.C., June 8th, 1998. Disponível na internet, junho/00. 26
FRANCO, Simon. “Combata o preconceito”. Exame. São Paulo, 28/06/00, p. 131. 27
KING, A. & SCHNEIDER, B. The First Global Revolution - a report by the Council of the Club of Rome -.
New York: Pantheon Books, 1991.
36
papel da educação no mundo de hoje, Aprender Sem Limites (1979) 28
. Nesse se antecipam,
em mais de 20 anos, as posições finalmente assumidas pela UNESCO e pelas reformas
educacionais em muitos países, inclusive o Brasil (cf. PCNs, etc).
Intimações à solidariedade é o título contundente do capítulo 6 desse documento. A
percepção da situação do mundo, por esse prestigiado grupo de espertos, incluía, entre seus
vários elementos, os seguintes, a grande tentação - cada vez mais explícita nas tendências
neoliberais - de jogar todo o peso ideológico sobre o mito redentor do crescimento
econômico; a presença de um Vacuum, ou seja, o fosso geralmente silenciado nos mais
solenes documentos econômicos e políticos, e que se evidenciava como um abismo cada
vez maior entre ricos e pobres, tanto no plano das nações como no plano dos indivíduos;
uma sensação crescente de Human Malaise, isto é, um mal-estar e uma sensação
generalizada de que há algo de profundamente equivocado no modo como se estão
enfrentando os desafios maiores do planeta.
É no centro desse cenário que o Clube de Roma situou a sua linguagem insistente
acerca da solidariedade. Trata-se portanto, de um princípio ou fonte de critérios vistos
como elemento decisivo para o futuro da humanidade. O contexto mundial se
evidenciava como inédito.
"...algo inteiramente novo... algo para além de tudo que se pudesse haver
imaginado uma década atrás". "... o futuro da humanidade continua promissor se
ela tiver a sabedoria de enfrentar os problemas...ainda acreditamos nisso, mas o
tempo está ficando curto".
Parafraseando frases de Harrison Brown, o documento sintetiza da seguinte forma
as três possibilidades que a humanidade tinha pela frente: 1) uma autodestruição desvairada
através de enfrentamentos bélicos, incluindo uma eventual guerra nuclear; 2) a
multiplicação e a convergência de milhares de iniciativas inovadoras e alternativas em
relação às tendências preponderantes na economia mundial e 3) a grande omissão - o mais
provável -, ou seja, deixar as coisas acontecerem em direção a uma deterioração crescente,
na qual "os pobres 'herdarão' a terra e viverão em miséria para sempre".
Na tentativa de reunir elementos para não desesperar, o Clube de Roma tenta
preencher sua noção de solidariedade de elementos esperançadores:
É previsível que, aos poucos, se entenda que o crescimento econômico precisa ser submetido a critérios de efetiva universalização do acesso aos bens e serviços.
Expandem-se mundo afora as iniciativas que de fato operam com novos critérios
solidários (ONGs, iniciativas comunitárias, retorno à demanda explícita de políticas
públicas relativas à sustentabilidade social do desenvolvimento).
Lento decréscimo de alguns indicadores negativos como taxas de mortalidade infantil, analfabetismo, explosão demográfica, desnutrição extrema (com a exceção de vários
bolsões persistentes).
Algum progresso no que se refere à opressão da mulher, embora continue predominando o chovinismo masculino.
28
O Clube de Roma é uma entidade internacional independente de cunho transdisciplinar, composta por
intelectuais de renome, com vínculos não oficiais com líderes social-democratas da Europa e do mundo.
Criado no final da década de 1960, tornou-se famoso por seus pronunciamentos sobre problemas de alcance
mundial.
37
A importância decisiva da mulher e dos jovens, como referencial de critérios e
articulação de iniciativas, na perspectiva de uma solidariedade planetária.
Gostaríamos de expressar não apenas nossa convicção de que este último tópico é de
extrema relevância, mas de pedir excusas por não tratarmos extensamente deste assunto
neste livro. Dado o curto lapso da pesquisa para este escrito, e dado o nosso despreparo
para aprofundar essa temática, preferimos deixá-la insinuada como referencial de fundo em
dois momentos: na discussão sobre a dimensão não-competitiva do desejo, onde
sublinhamos o valor paradigmático da relação mãe-criança, e no destaque dado ao papel da
mulher no conceito de Neotenia e na metáfora de uma Segunda Neotenia, no final deste livro.
2. Igrejas
A linguagem sobre a solidariedade é sumamente freqüente também nos documentos
da Igreja Católica, do Conselho Mundial de Igrejas e especialmente dos bispos latino-
americanos. Não é nossa intenção analisar mais detidamente as características peculiares
que o discurso sobre a solidariedade adquire nessas instâncias eclesiásticas. Como é sabido,
a repercussão de documentos desse gênero é bastante limitada na mídia secular em geral. O
que mais nos interessa destacar neste livro, que busca voltar-se prioritariamente para
linguagens pedagogicamente relevantes acerca da sensibilidade solidária, é a maneira como
as áreas de igreja estabelecem interrelações temáticas, a forma na qual criam binômios ou
trinômios de termos juntados em formulações bastante peculiares e, sobretudo os saltos ou
curtos-circuitos que operam nessas linguagens.
Os entrelaçamentos temáticos e a aproximação de vários termos numa única
expressão não são exclusividade dessas instâncias religiosas.Trata-se de um fenômeno
bastante usual também na retórica secular, sobretudo de documentos de alcance
internacional. Mas as áreas religiosas parecem particularmente proclives a fazer esse tipo
de junções. Um tema de fundo - que exigirá posteriores retomadas, quando falarmos da
relação entre princípios organizativos e princípios éticos - é o do potencial prático e
operacional desse tipo de linguagens generalizantes. Tem-se a impressão de que aqueles
que as elaboram e utilizam talvez suponham - equivocadamente - que essas linguagens
contenham sugestões diretamente ligáveis aos níveis operacionais da economia, da política
e da educação, como se já fossem, em si mesmas, princípios organizativos da dinâmica
social. Quanto a isso, nos parece de suma importância prevenir que os apelos éticos só
adquirem potencial estruturante de ações e processos sociais na medida em que são
introduzidos vitalmente em formas de pensamento estratégico e operacional.
EXEMPLO (I)
Doc. da Campanha da Fraternidade/1999 - Desempregados, Parte II - Julgar29
Expressões típicas
sociedade justa e solidária
Frases-amostra - A solidariedade se assenta sobre a dignidade da
pessoa, seja ou não produtora.
- A solidariedade com os pobres é o centro e pedra de
29
Texto ainda disponível na Internet, junho/2000.
38
justiça e solidariedade
globalização e solidariedade
cultura da solidariedade
cultura da solidariedade, da sobriedade e da
subsidiariedade
uma nova sensibilidade
dignidade da pessoa e solidariedade
modelo da sociedade sem exclusão
toque fundamental de toda cultura.
- É urgente enfrentar esta cultura de egoísmo e
consumismo com uma outra cultura. Estamos falando
da cultura da solidariedade, da sobriedade e da
subsidiariedade. Ela é a favor da vida e da dignidade
humana, de uma sociedade justa e solidária, e a favor
do meio ambiente preservado. Torna possível um
projeto político democrático e solidário. Coloca em
primeiro lugar a pessoa humana em suas relações
fraternas, e coloca a economia e o mercado a serviço
da superação da pobreza.
- Pequenas organizações solidárias vão nascendo e
se somando, se articulando, construindo laços de
fraternidade e de cooperação. Dando importância a
valores éticos, elas vão forçando o Estado e as
empresas a se humanizarem. (...) globalizar a justiça,
a solidariedade, a subsidiariedade, as iniciativas e os
sonhos que concretizam a caminhada rumo a esta
nova sociedade.
Critérios para uma sociedade justa e solidária
- Jesus Cristo, modelo da sociedade sem exclusão
- As lições bíblicas do sétimo dia e do Jubileu
- Os critérios do Reino de Deus para a nova
sociedade
- O critério da misericórdia libertadora
- O critério da "opção preferencial pelos pobres" - O critério da conversão
Nosso comentário Tem-se a impressão de que os autores desse tipo de
linguagem supõem que é possível dar um salto direto
da linguagem ética para o plano operacional. Se não
fosse assim, não apelariam para uma suposta ponte
direta entre seus critérios e o tipo de sociedade que
propõem. Os critérios éticos, e o próprio Jesus Cristo,
são colocados em conexão direta, supostamente
operacionável de forma imediata e sem outras
mediações. Por isso, também supostamente, poderiam
ser cobrados diretamente às consciências.
EXEMPLO (II)
Bispos do Brasil, Brasil – 500 anos - Diálogo e Esperança30
Expressões típicas
uma globalização da solidariedade
comunhão e solidariedade
fraternidade e solidariedade
solidariedade e zelo missionário
solidariedade irrestrita com todos os que
amam nossa Pátria
Frase-amostra A tecnologia oferece-nos, hoje, uma nova e
extraordinária possibilidade de solidariedade
humana. Há, todavia, na globalização o perigo de se
perder a identidade e soberania do País. É necessário
distinguir...entre uma globalização econômica
dirigida só pela lei do mercado, aplicada conforme a
conveniência dos mais poderosos, e uma
globalização da solidariedade, que deve ser
incentivada (n. 24).
EXEMPLO (III)
BISPOS do México: Del Encuentro con Jesucristo a la Solidaridad con Todos31
30
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Brasil – 500 anos - Diálogo e Esperança - Carta à sociedade
brasileira e às nossas comunidades. (38ª Assembléia Geral. Porto Seguro - BA, 26 de abril a 03 de maio de
2000).
39
Expressões típicas Crear modelos económicos solidarios
neoliberalismo: un sistema insolidario
la solidaridad como respuesta a los desafíos
de nuestra Nación.
"cultura globalizada de la solidaridad"32
solidaridad en situaciones de emergencia.
la solidaridad y la misión
la construcción de una cultura globalizada de
la solidaridad.
la permanente solidaridad con todos,
especialmente con los más pobre
incremento de la cultura de la solidaridad.
Una Iglesia que afirma la comunión y la
solidaridad
Una Iglesia solidaria que sirve a todos
la solidaridad con todos los hombres
Frases-amostra
...reconocer y vivir la solidaridad que une a todos los
seres humanos en una misma condición, origen y
destino, en la única redención de Cristo y en la
comunión de los santos, la solidaridad como respuesta
a los desafíos que presentan la nueva evangelización
y la globalización.
...cuando la solidaridad se establece como un modo
habitual de acción que dinamiza las relaciones
sociales, podemos hablar de que la cultura de la
solidaridad ha surgido. La solidaridad tiene que
trascender las iniciativas meramente momentáneas
para que funja realmente como sostén de la sociedad
como sujeto. Este es el camino para que una cultura y
una civilización basadas en el amor sean posibles
dentro de la historia.
El propósito central ...consiste en mostrar cómo la
solidaridad cristiana es cimiento para la
construcción de la ―subjetividad social‖
Outros destaques desse documento
El desarrollo integral que necesita un pueblo no se puede ni debe reducir al puro desarrollo económico
aunque lo incluya33
. Sostener esto sería caer en un “ingenuo optimismo mecanicista” propio de filosofías
“de tipo iluminista”34
.
Las políticas económicas llamadas neoliberales atribuyen un papel central y casi redentor a la dinámica
del mercado. Desde el punto de vista de las exigencias de la dignidad humana un modelo económico así
es del todo inadecuado. La Doctrina Social de la Iglesia no reprueba la economía de mercado, pero
exige el respeto a la persona humana, a su dignidad y libertad, al destino universal de los bienes, al
legítimo derecho a la propiedad, a la sana competencia y a la solidaridad. Excluye, por tanto, el
consumo indiscriminado y la falta de respeto al medio ambiente.
Las economías centralmente planificadas fracasaron estrepitosamente tanto por su falta de efectividad
como por su deficiente antropología35
. Por ello, es necesario también evitar estos dos errores en las
nuevas economías de mercado que, colocando como criterio fundamental la lógica del intercambio,
vulneran gravemente dimensiones de la persona humana que se encuentran regidas por otro tipo de
criterios entre los cuales se hallan los relacionados con la solidaridad y la gratuidad para con los más
débiles.
...democracia: un entramado institucional y cultural fundado en valores y principios basados en la
dignidad humana.
Juan Pablo II afirma que “la economía globalizada debe ser analizada a la luz de los principios de la
justicia social, respetando la opción preferencial por los pobres”:36
31
BISPOS do México, CARTA PASTORAL: Del Encuentro con Jesucristo a la Solidaridad con Todos.
México, D. F., 25 de marzo de 2000 - Disponível na Internet, jun/00. Este documento é sócio-politicamente
significativo tendo em vista a crise que assola esse país e a do PRI. 32
Juan Pablo II, Ecclesia in America, n. 55 33
“Si el desarrollo tiene una necesaria dimensión económica, puesto que debe procurar al mayor número
posible de habitantes del mundo la disponibilidad de bienes indispensables para «ser», sin embargo, no se
agota con esta dimensión.” Juan Pablo II, Sollicitudo Rei Socialis, n. 28. 34
Juan Pablo II, Sollicitudo Rei Socialis, n. 27. 35
Cf. Juan Pablo II, Centesimus Annus, n.n. 13, 23 y 24. 36
Juan Pablo II, Ecclesia in America, n. 55.
40
EXEMPLO (IV)
Conselho da Igreja Evangélica da Alemanha e a Conferência Episcopal Alemã
Por um Futuro com Solidariedade e Justiça37
Expressão-guia
Solidariedade e Justiça (mais de uma dezena de vezes)
A Solidariedade e a Justiça...devem ser
entendidas em dimensões mundiais.
Frases-amostra - As igrejas assumem a posição de que a
solidariedade e a justiça, enquanto critérios para
uma política econômica e social viável e sustentável,
tem uma validez permanente. (...) Mas a
solidariedade e a justiça não são hoje valores
aceitos sem questionamento. - As igrejas pedem que seja reconhecida a validade
da solidariedade e da justiça como regras decisivas
de uma política econômica e social com capacidade
de futuro e durável
- A solidariedade e a justiça constituem de fato o
coração de toda ética bíblica e cristã"
- Esperar que uma economia de mercado sem tais
obrigações, uma economia de mercado até certo
ponto sem adjetivo, uma pura economia de mercado
possa cumprir melhor essas exigências, é uma crença
falsa (uma heresia: Irrglaube).
3. As ONGs
Não vamos deter-nos longamente sobre a vasta rede de iniciativas solidárias das
ONGs. Sobre isso existe farta literatura. Apesar de alguns radicalismos estreitos, elas
merecem destaque como frentes significativas de iniciativas solidárias relacionadas com
urgências globais, regionais ou locais de diversa índole. Ao nível mundial, organizações
como Greenpeace, Anistia Internacional, Worldwatch e similares não representam apenas
uma impressionante coordenação de intervenções práticas em problemas evidentes de
ecologia, direitos humanos e outras emergências, mas põem a nu questões cruciais para a
viabilidade de um futuro para a humanidade e o planeta Terra. As ONGs incidem,
geralmente, em pontos emergenciais onde a lógica sistêmica imperante se revela não
apenas omissa, mas irracional.
Além disso, as ONGs foram criando aos poucos uma impressionante rede de idéias
e sensibilidades solidárias convergentes, concretizada sob a forma de redes comunicativas
que interconectam múltiplas responsabilidades e engajamentos de grupos e pessoas. O já
citado documento do Clube de Roma já reconhecia, em 1991, que a ampliação e
diversificação das ONGs provavelmente cumpriria um papel relevante em relação à
superação do Vacuum - os abismos não apenas entre os acessos à riqueza, mas também os
37
IGREJAS DA ALEMANHA. Für eine Zukunft in Solidarität und Gerechtigkeit - 1997. Disponível na
Internet, jun/2000. Sintomaticamente, as Igrejas alemãs assumem, com ênfase, a linguagem "Justiça e
Solidariedade", bastante conhecida nos debates universitários e políticos daquele país e que é central no
pensamento de Jürgen Habermas. Mas note-se que eles invertem o binômio "Justiça e Solidariedade" para
"Solidariedade e Justiça". Em seu conjunto, o documento. vê na normatividade social a garaantia da
solidariedade básica da sociedade. Mas o "princípio da subsidiariedade" garantiria a decentralização e as
suplências requeridas por uma normatividade sempre inconclusa, imperfeita e em processo de reformulação.
41
abismos da indiferença e da insensibilidade. Mesmo quando as análises de algumas ONGs
não nos convencem, em termos de visão abrangente das urgências mundiais, parece-nos
importante valorizar o trabalho das ONGs como uma vasta operação planetária de luta
contra a indiferença e em favor da sensibilidade solidária.
Cabe, no entanto, uma ressalva crítica quanto à avaliação - a nosso entender
profundamente equivocada - que alguns fazem em relação às ONGs, quando as
transformam num ilusório sujeito histórico com potencial para, e já em vias de criar "uma
alternativa pós-capitalista à globalização atual"38
. O pano de fundo dessa transformação das
ONGs em promessa global alternativa está constituído pelo entrelaçamento de vários
pressupostos muito peculiares e discutíveis:
O grande inimigo projetado numa imagem questionável: a crítica ao neoliberalismo é configurada de tal maneira que se transforma automaticamente em rejeição rotunda do
mercado e na incapacidade de desenvolver linguagens positivas acerca de uma
economia com mercado.
A redução dos potenciais sócio-organizativos e políticos a uma hiper-exaltação do papel
de um assim chamado "Terceiro Setor entre Estado e Mercado" (associativismo e
movimentos, campanhas, mobilizações, demandas por qualidade e quantidade, novas
atividades e novas ocupações, em suma, a ficção de um para-estado e para-mercado).
Um recorte perigoso no próprio conceito de solidariedade já que ele é fundamentalmente reduzido a um determinado tipo de "Redes de Colaboração
Solidária" (leia-se: sobretudo aquelas ONGs que explicitam sua fúria anti-mercado e
anti-capitalista).
Uma concepção fundamentalmente moralista e negativa dos direitos do cliente, enquanto direitos de acessos ao consumo, mediante uma sintomática exacerbação do
xingatório contra o consumismo, propondo ardentemente a sua substituição por um
"consumo solidário" ou "consumo crítico", com características bastante moralistas e
ascéticas. (Aqui se toca um ponto crucial, mas escorregadio: de fato não são
universalizáveis os níveis de consumo dos países ricos e das elites; é preciso lutar por
níveis de consumo realmente universalizáveis; mas isso não significa criar a miragem
ascético-moralista de um rechaço a níveis ampliáveis de consumo e ao direito e ao
prazer, que as pessoas têm de comprar e usufruir mais bens e serviços. É simplesmente
hilário querer que alguém se vista ou coma um churrasco com mentalidade de
"consumo crítico").
4. Economia Solidária
Não é função deste capítulo alongar-nos acerca dos variados usos do conceito de
Economia Solidária. O assunto retornará, numa análise mais abrangente, mais adiante. A
expressão está sendo empregada com significações bastante diferentes, que vão desde a
exaltação do assim chamado Terceiro Setor como novo sujeito histórico, passando por
variadas formas de re-conceituação de Sociedade Civil, até um conjunto de ponderações
importantes de economistas que, sobre a base da aceitação de necessários mecanismos de
mercado, se esforçam por elaborar critérios acerca das urgências de determinadas políticas
públicas com vistas à perspectiva de um "mercado social". Nisso há óbvias críticas ao
38
MANCE, E.A. A Revolução das Redes - A colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à
globalização atual. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000.
42
neoliberalismo, ao mito do crescimento econômico como referência prioritária ou quase
exclusiva para critérios macroeconômicos, e um variado leque de ênfases na importância do
papel do Estado no direcionamento da economia39
.
O vasto e contraditório leque de referências à solidariedade
Esta breve seção tem um propósito preciso: mostrar que as linguagens sobre a
solidariedade estão parcialmente colonizadas e que, portanto, a noção de solidariedade não
só não é óbvia, mas sua serventia para campos do sentido abrangentes requer um
distanciamento consciente dos usos reducionistas da noção de solidariedade. Entendemos
por usos reducionistas os recortes limitantes e específicos, que se manifestam em muitos
modos de falar em "solidariedade com ...".
Embora se trate de recortes, muitos apelos para "solidariedade com..." são
necessários e não merecem nenhuma crítica. Por exemplo: solidariedade com as vítimas de
acidentes naturais, de desastres de toda índole, de situações opressivas persistentes
(excluídos, marginalizados, minorias, violência contra a mulher, etc). Muitos outros apelos
têm conotação política, por exemplo: nos anos 80 houve, mundo afora, inúmeros grupos de
solidariedade com situações nacionais específicas (Nicarágua, El Salvador, etc). Houve
também notório uso ideológico desse tipo de apelos. Enfim, é um fenômeno amplo e não
isento de contradições. Por sorte estão minguando os apelos à solidariedade com
sectarismos absurdos.
É também conhecido o fenômeno da ocupação, por vezes bastante usurpadora, da
linguagem da solidariedade por iniciativas compensatórias da ausência de políticas sociais
(Comunidade Solidária e similares), por iniciativas emergenciais (Iglesia Solidaria, no
Chile de Pinochet), por títulos de campanhas, nomes de sites na Internet, etc. Muitas ONGs
trazem em seu nome a referência explícita a algum tipo de solidariedade.
Sem intenção de estabelecer uma cronologia do recurso, mais ou menos intensivo,
ao termo solidariedade, podem-se elencar facilmente algumas hipóteses40
:
Nos anos 1970 e 1980, muitos apelos à solidariedade aparentavam uma referência global aos excluídos, mas de fato se referiam mais a determinados grupos específicos
(perseguidos políticos, refugiados, etc). Olhando para trás, hoje estamos em condições
de reconhecer que boa parte da luta por direitos humanos estava direcionada, não aos
pobres em geral, mas a determinados tipos de violação dos direitos humanos.
Como é sabido, Solidariedade foi o nome do sindicato comandado por Lech Walessa,
na Polônia, e, até certo ponto, a referência de muitas formas de oposição nos países ex-
socialistas.
Já no início dos anos 1980, o tema da solidariedade começou a ter uma certa função substitutiva relacionada com a orfandade de um projeto histórico alternativo, após o fim
das ditaduras na América Latina. O conceito de solidariedade passa a ser atraído
semanticamente pelo conceito de exclusão.
39
Como simples exemplos, cf. SINGER, P. Globalização e Desemprego - diagnóstico e Alternativas. São
Paulo: Contexto, 1998.; "Crise do Trabalho e Economia Solidária". Fundação Joaquim Nabuco. Disponível na
Internet, jun/00. Economia Solidária contra o desemprego. Folha de S. Paulo, 11-07-1996, p.1-3.;
MERCADANTE, A. "O centro e a economia solidária". Folha de S. Paulo, 19-10-97, p.2-11. 40
Conferir fontes e comprovações na Bibliografia específica sobre Solidariedade, no final do livro.
43
Na Teologia da Libertação e outras formas de teologia latino-americana, a noção de
solidariedade passou a ocupar um lugar importante no atinente à perspectiva futura
dessas teologias.
A Conferência Latino-Americana dos Religiosos (CLAR) deu lugar, em suas publicações, a uma vinculação explícita entre a definição do papel específico do
religioso e a solidariedade.
Como já vimos, aos poucos as linguagens sobre a solidariedade se tornam um referencial importante em documentos oficiais das igrejas.
Buscando a ponte com a educação
A idéia deste capítulo é apresentar uma espécie de fenomenologia de cenários
variados nos quais se inclui, de maneira bastante diversificada, o sonho de uma humanidade
mais solidária e nos quais se empregam linguagens sobre a solidariedade. Seguem agora
algumas poucas ponderações que visam retomar uma visão de conjunto e estabelecer
primeiras pontes com a educação:
Solidariedade não é palavra de um só significado. Além de ter vários, não todos convergem. Não é termo unívoco, mas polisêmico e por vezes ambígüo.
A linguagem da solidariedade não é terra virgem, mas parcialmente ocupada,
loteada, colonizada, com cultivo diferenciado, mas com vastas áreas pouco
cultivadas. Mas seria ingênuo achar que é tudo terra sem dono, plenamente
disponível, propriedade coletiva.
Solidariedade se refere muitas vezes a situações emergenciais clamorosas. Quando estas são pontuais no espaço e no tempo e "são notícia" (acidentes
graves, desastres, terremotos, vitimações coletivas, etc.), a sensibilidade
solidária é mais unânime. Quando se trata de calamidades persistentes, mesmo
que brutais (exclusão social, analfabetismo, miséria extrema, conflitos
prolongados, etc.), tendem a sair do noticiário e a indiferença tende a esvaziar a
sensibilidade solidária.
As ocupações semânticas do discurso da solidariedade muitas vezes obedeceram a propósitos precisos, mas bem variados ("solidariedade com..."); outras, nem
tanto, porque serviam como novo discurso emergente, substituindo vagamente
semânticas e opções mais ou menos falidas.
Os discursos sobre a solidariedade remetem a pressupostos que muitas vezes não
ficam explícitos neles. Trata-se, em geral, de pressuposições acerca da visão que se tem do ser humano, da convivialidade humana que se acredita viável ou não,
de crenças pessimistas ou otimistas acerca do futuro possível para a organização
humana coletiva em sociedade e ao nível mundial.
Para aprofundar a reflexão sobre a solidariedade, parece aconselhável que se
distingam nitidamente, por um lado, os apelos à solidariedade que se referem a
situações emergenciais transitórias e, pelo outro, as questões da solidariedade
como ingrediente ético-político na busca de soluções estruturais e sustentáveis
para problemas amplos e de caráter persistente. As divergências e convergências
de opiniões funcionam de maneira distinta nos dois caso. Na solidariedade
emergencial as questões de princípio (não necessariamente as motivações)
geralmente não são tão cruciais, a não ser que haja a presença ostensiva de
44
ideologias políticas opostas. Na solidariedade estrutural e permanente muitos
bloqueios decorrem das próprias concepções antropológicas, econômicas,
políticas, culturais e até religiosas.
A solidariedade se transformou em bandeira abrangente para enfrentar a crise
civilizacional do mundo de hoje. Isso fica sinalizado em algumas expressões das
linguagens mais insistentes e globais acerca da solidariedade. Mas convém não
esquecer que essas linguagens muitas vezes carecem de pontes mediadoras para
alcançar o plano operacional e, nesse sentido, podem continuar sendo
semantemas flutuantes e até linguagens apenas catárticas e compensatórias da
falta de estratégias solidárias.
Existe uma série de linguagens que buscam pontos de articulação do
potencialmento da sensibilidade social, que representam, de certa forma,
parâmetros preparatórios de articulação da sensibilidade solidária,
pedagogicamente unidos a anseios individuais e coletivos concretos. Disso se
tratará nos capítulos posteriores deste livro.
ANEXO: Um texto do MEC sobre Solidariedade41
41
MEC - Temas Transversais - 5ª à 8ª. Queremos deixar bem claro que este texto representa apenas uma
amostra. Após conferir mais de perto os PCNs para o Ensino Médio, que são mais recentes, nos confirmamos
na impressão de que esses documentos e a linha de atuação de várias asessorias do MEC representam um
esforço significativo em direção a um pensamento pedagógico bastante inovador. Voltaremos ao tema ao
longo do livro. destacando limitações. Só queremos registrar desde já que, a nosso modo de ver, a oposição
sistemática à linha representada pelos PCNs, da parte de alguns setores que se dizem "críticos", é um sintoma
de resistências lamentáveis ao propósito e à proposta de dar passos importantes.
Solidariedade O respeito mútuo tem sua significação ampliada no conceito de solidariedade. Talvez se possa mesmo dizer que
os gestos de solidariedade são, concretamente, expressão de respeito dos indivíduos uns pelos outros. Ser solidário é, efetivamente, além do respeito, partilhar de um sentimento de interdependência, reconhecer a pertinência a uma comunidade de interesses e afetos — tomar para si questões comuns, responsabilizar-se pessoal e coletivamente por elas.
O que se deseja aqui é aproximar as idéias de solidariedade e de doação, de ajuda desinteressada. A solidariedade não pode constituir-se em objeto de uma declaração, como os Direitos Humanos — no gesto solidário, trata-se de agir, não em função de determinado texto, de determinada lei, mas além de qualquer texto, de qualquer lei. A rigor, se todos fossem solidários nesse sentido, talvez nem se precisasse pensar em justiça: cada um daria o melhor de si para os outros.
A força da solidariedade dispensa que se demonstre sua relevância para as relações interpessoais. É importante, entretanto, estar atento para alguns equívocos, que se constatam em certas circunstâncias. A palavra solidariedade pode ser enganosa. De fato, diz-se que os membros de uma quadrilha de ladrões, por exemplo, são "solidários" quando se ajudam e se protegem mutuamente. A mesma coisa pode acontecer com os membros de uma corporação profissional: alguns podem encobrir o erro de um colega para evitar que a imagem da profissão seja comprometida. Nesses casos, a "solidariedade" só ocorre em benefício próprio: se a quadrilha ou a corporação correr perigo, cada membro em particular será afetado. Portanto, ajuda-se o outro para salvar a si próprio.
É necessário considerar, também, as diversas formas de ser solidário. Não se é solidário apenas ajudando pessoas próximas ou engajando-se em campanhas de socorro de pessoas necessitadas, como, por exemplo, depois de um terremoto ou enchente. Essas formas são genuína tradução da solidariedade humana, mas há outras. Uma delas, que vale sublinhar aqui, diretamente relacionada com o exercício da cidadania, é a da participação no espaço público, na vida política. O exercício da cidadania não se traduz apenas pela defesa dos próprios interesses e direitos, embora tal defesa seja legítima. Passa necessariamente pela solidariedade, por exemplo, pela atuação contra injustiças ou injúrias que outros estejam sofrendo. É pelo menos o que se espera para que a democracia seja um regime político humanizado e não mera máquina burocrática.
A necessidade de começar a fazer parte do mundo adulto, o desejo de agir sobre a realidade e modificá-la é marcante na adolescência e na juventude. Na escola essa energia pode ser canalizada em prol de atividades que visem o bem-estar de todos, na perspectiva do desenvolvimento de atitudes solidárias. Entretanto, para que a solidariedade seja concretizada, é necessário que o ensino contemple tanto a valorização de atitudes como o aprendizado de formas concretas de atuação. Assim, algumas observações são pontuadas a seguir. • Reconhecimento e valorização da existência de diversas formas de atuação solidária no âmbito político e comunitário.
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É importante que o aluno perceba que pode ser solidário tanto ao ajudar um amigo doente, que necessita momentaneamente de auxílio, como ao lutar por um ideal coletivo da sociedade. Ele precisa ter conhecimento das questões sociais mais urgentes, sensibilizar-se com elas, refletindo sobre os valores presentes nas sociedades e sobre os princípios que devem ser assumidos por todos para agir solidariamente. Um projeto pedagógico, no qual questões da realidade social que se encontram em debate sejam abordadas e discutidas, criará ocasião para que se pense em formas de colocar em prática idéias que concretizem ações solidárias. Só conhecendo, vivenciando situações e refletindo sobre elas o aluno pode construir uma postura solidária.
Organizar e participar de ações comunitárias, aprender cuidados específicos tais como primeiros socorros, responsabilizar-se pelo cuidado de bens coletivos, como uma biblioteca comunitária, ou um trabalho educativo em campanhas de saúde, ou ambientais, são formas de envolvimento dos alunos em busca de alternativas para problemas reais da comunidade ou da sociedade em geral.
Analisar as campanhas que a mídia divulga periodicamente com a intenção de alertar as pessoas para questões que envolvem a necessidade da participação de todos em busca de uma sociedade mais justa, relacionar essa análise aos problemas vivenciados na escola e na comunidade é um bom exercício de sensibilização para a ação solidária. É preciso que o aluno perceba-se considerado pela escola como alguém que tem liberdade para optar, iniciativa para agir, compromisso e responsabilidade para ser cidadão e que perceba também a importância de sua participação em ações solidárias coletivas. • Atuação compreensiva nas situações cotidianas.
Uma aprendizagem importante para o desenvolvimento da atitude de solidariedade está relacionada com a percepção das causas das dificuldades que os "outros" enfrentam.
Conhecer as condições de vida das pessoas, aprender a buscar as causas das dificuldades enfrentadas pelo outro, refletindo sobre o direito de todos a uma vida digna, contribuirá para que não sejam perpetuadas posturas equivocadas e preconceituosas e para que se modifiquem atitudes indiferentes diante de situações injustas ou egoístas, comumente aceitas como naturais: "Isso sempre foi assim, não temos nada a fazer". Levar em conta os direitos do outro, buscar razões que expliquem a ausência desses direitos em alguns contextos sociais, colocar-se no lugar do outro, significa levá-lo a sério, considerá-lo real, compreendê-lo. A atitude de compreensão indica não apenas uma apreensão racional de conceitos, mas também um envolvimento afetivo com a situação vivenciada.
Destaca-se aqui a importância de o aluno aprender a ajudar os colegas que são portadores de necessidades especiais e perceber que também podem ser ajudados por eles. E é preciso romper com tabus, com a desinformação e a ignorância, que levam a atitudes negativas em relação a essas pessoas. A informação e a preparação dos alunos para recebê-los deverá estar direcionada para a descoberta e aceitação de dificuldades, deficiências e necessidades que todo ser humano possui, e para a valorização das diferenças e da cooperação.
O professor deve estimular para que sejam resgatadas atitudes que valorizem a prática da solidariedade na sala de aula — aí convivem ritmos de aprendizagem diferenciados, são expressos desejos e emoções distintos. O respeito aos colegas e a relação de cooperação precisam ser valorizadas e assumidas por todos. Os alunos precisam sentir que podem e necessitam ajudar e ser ajudados. Todos têm alguma coisa para partilhar: a valorização do trabalho em duplas ou grupos, por exemplo, é muito importante para estimular a partilha.
Aqueles que têm mais dificuldade em aprender podem ser auxiliados pelos colegas, se forem propostas na sala de aula parcerias e estratégias de colaboração, responsabilizando a todos pela aprendizagem de todos, numa relação solidária.
Isso não significa fazer pelo colega, mas fazer com ele. A solidariedade que se busca que o aluno aprenda deve aproximar-se da idéia de generosidade, que não é caridade, atitude paternalista, mas compromisso e cidadania, caracterizando-se como oposição à qualquer forma de corporativismo que se coloque acima da busca da justiça, ou que desconheça o bem comum e como a possibilidade de um sentimento de altruísmo: uma atitude de solidariedade com aqueles que necessitam ajuda, seja nas relações cotidianas e interpessoais, seja pensando-se como parte da humanidade e, portanto, co-responsável pela solução dos problemas que afetam a todos. Essa é uma aprendizagem que requer, portanto, envolvimento de todos aqueles que fazem parte do contexto da escola. • Conhecimento de ações necessárias em situações específicas.
Ter a possibilidade de conhecer melhor o local em que mora por meio de pesquisas orientadas pela escola e aprender que a escola é uma instituição que faz parte da comunidade e precisa manter uma relação de intercâmbio com as demais instituições uma forma de implementar a proposta de integração da comunidade com a escola, pautada pela atuação solidária. Conhecer melhor a comunidade, coletando informações sobre as instituições que realizam trabalhos solidários e atendem a população, divulgar esses serviços, avaliar sua proposta de atuação na comunidade, proporciona a criação de um vínculo de co-responsabilidade entre a escola e as instituições.
Os alunos necessitam aprender como, de fato, traduzir a solidariedade em ações. Um exemplo pode ser dado no tema Saúde. Alguém está passando mal ou teve um acidente. O mínimo sentimento de solidariedade exige que se o ajude. Porém, como fazer? O que fazer? Se for o caso, a
quem chamar? Para onde transportar a pessoa? Sem esses conhecimentos básicos, a solidariedade fica apenas na intenção. Portanto, é imperativo que a escola promova tais aprendizados. Estabelecer parcerias com instituições como o Corpo de Bombeiros, Postos de Saúde e outras que possam dar informações adequadas sobre como agir corretamente em situações de emergência, contribuirá para a formação do jovem e a percepção das formas corretas de ajuda. • Repúdio a atitudes desleais, de desrespeito, violência e omissão.
Para que o jovem aprenda a repudiar atitudes violentas é preciso que saiba identificá-las. O papel da escola é o de desvelar essa situação por meio de discussões que explicitem os diferentes tipos de
violência (física, moral, simbólica) que jovens, adultos e crianças podem sofrer, auxiliando o aluno a reconhecer atitudes violentas, prevenir-se contra elas, conhecer instituições que auxiliem vítimas de violência e a possibilidade de denunciar essas atitudes.
Faz-se necessário chamar a atenção para atitudes de omissão que podem impedir a prática da solidariedade: é fundamental trazer para sala de aula discussões que envolvam atitudes de omissão nos dias de hoje e em nossa história, criando espaços para avaliação de atitudes que contribuem para que as pessoas não se mobilizem para uma ação
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solidária. Ao mesmo tempo, é importante a valorização de atitudes de solidariedade identificadas na escola e fora dela. Não se pode deixar de marcar que, ao lado de atitudes de indiferença e descrédito, tem-se assistido também a uma revalorização da solidariedade traduzida tanto em ações coletivas e de caráter político (tal como o próprio movimento pelos direitos humanos, a Anistia Internacional etc.) como em ações individuais ou de pequenos grupos que se mobilizam para o enfrentamento de problemas específicos (tais como campanhas de ajuda, atendimento a pessoas necessitadas etc.).
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Capítulo 2
INTERDEPENDÊNCIA E SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA
Dois sentidos da palavra solidariedade
Cada vez mais a palavra solidariedade faz parte da nossa linguagem cotidiana.
Grupos os mais diversos usam hoje esta palavra como um conceito chave para as mais
diferentes propostas de solução dos problemas sociais e ecológicos. No campo da educação
também o conceito de solidariedade veio para ficar. Na Parte I dos Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Médio as palavras “solidariedade” e “solidário/a/as” aparecem vinte e
uma vezes. Esses conceitos aparecem fortemente ligados aos temas da sociedade de
informação e da exclusão social. Vejamos dois trechos:
A expansão da economia pautada no conhecimento caracteriza-se também
por fatos sociais que comprometem os processos de solidariedade e coesão
social, quais sejam a exclusão e a segmentação com todas as conseqüências
hoje presentes: o desemprego, a pobreza, a violência, a intolerância. [...]
Diante da violência, do desemprego e da vertiginosa substituição
tecnológica, revigoram-se as aspirações de que a escola, especialmente a
média, contribua para a aprendizagem de competências de caráter geral,
visando a constituição de pessoas mais aptas a assimilar mudanças, mais
autônomas em suas escolhas, mais solidárias, que acolham e respeitem as
diferenças, pratiquem a solidariedade e superem a segmentação social.42
O conceito de solidariedade aparece aqui em dois sentidos interligados, mas
distintos. O primeiro é a solidariedade entendida como um fato e uma necessidade de
interdependência na vida social, um conceito associado à coesão social. Neste sentido, a
exclusão social aparece como um perigo para os necessários processos de solidariedade,
isto é, para a própria coesão social. Em outras palavras, a atual forma de gerenciamento da
economia pautada no conhecimento está gerando uma exclusão social que está
comprometendo a própria capacidade da sociedade de se manter coesa e se reproduzir
como uma sociedade.
O segundo sentido de solidariedade apresentado nos PCNs é mais normativo ou
propositivo. É um chamado à superação da exclusão e da segmentação sociais através de
uma educação que contribua para a aprendizagem de competências de caráter geral e que
leve as pessoas a praticarem a solidariedade. Neste segundo aspecto, a solidariedade é vista
mais como uma atitude capaz de respeitar as diferenças e se interessar pelos problemas da
coletividade, principalmente dos que estão sofrendo mais com a situação.
Estes dois sentidos estão interligados na medida em que a solidariedade como
atitude, ou a solidariedade como uma questão ética, nasce do reconhecimento de que a
solidariedade/interdependência é um fato, uma necessidade para a vida da e na sociedade.
Essa concepção de solidariedade também está presente em outros diversos meios.
Recentemente, o jornalista Washington Novaes publicou um artigo que sintetiza bem este
duplo aspecto. Após afirmar que na natureza tudo está relacionado com tudo, escreveu que
42
A citação é da versão disponível na Internet, www.mec.gov.br, em maio/2000, p. 12 e 60.
48
estamos condenados, agora em nível interplanetário, cósmico – como já descobrira
Jean Paul Sartre num campo de prisioneiros – a ser solidários; a solidariedade é
um fato, antes de poder ser um imperativo ético.43
Estes textos apresentam dois aspectos presentes nos inúmeros apelos à solidariedade
que encontramos nos dias de hoje: a solidariedade é um fato – ainda que não muito
reconhecido e compreendido pela sociedade – e deve se tornar também um imperativo
ético. Para que a solidariedade se torne um imperativo categórico aceito e vivido pela
sociedade, é preciso antes que esta mesma sociedade reconheça a interdependência e a
coesão social como um fato fundamental para a vida em geral, e a vida humana em
particular.
Em outras palavras, a palavra solidariedade é usada, muitas vezes, em dois sentidos
diferentes: o descritivo e o normativo. Sem essa explicitação fica difícil entender certas
afirmações, como, por exemplo:
Ainda que solidários, os humanos permanecem inimigos uns dos outros, e o
desencadeamento de ódios de raça, religião, ideologia conduz sempre a guerras,
massacres, torturas, ódios, desprezo.44
Como podem ser ao mesmo tempo solidários e inimigos? São solidários, enquanto
são interdependentes, e inimigos e desencadeadores de ódio enquanto posturas e ações
concretas. Apesar de que é comum o uso indistinto destas duas noções de solidariedade, e
até assumidos teoricamente por autores como Max Pensky, que diz explicitamente:
“‗Solidariedade‘ pode ser tomada tanto em um sentido descritivo quanto em um
normativo”,45
pensamos que distinguir esses dois sentidos nos ajuda na compreensão do
assunto e na comunicação.
O relatório “Educação: um tesouro a descobrir”, escrito para a UNESCO, apresenta
sinteticamente estes dois aspectos da solidariedade com uma outra formulação que nos
parece melhor: “Ajudar a transformar a interdependência real em solidariedade desejada,
corresponde a uma das tarefas essenciais da educação.”46
O uso do conceito interdependência para se referir ao aspecto descritivo e o da
solidariedade para o normativo, ético, nos parece mais útil, na medida em que mantém a
idéia sem criar confusões na comunicação. Além disso, essa distinção nos ajuda a não
cairmos no erro de querermos deduzir diretamente de um fato, do que é (a descrição da
interdependência), um dever-ser ético (solidariedade no sentido normativo). Uma tentação
que parece estar presente em muitos dos discursos que interpelam para a solidariedade.
O conhecimento da interdependência e o problema da coesão social é uma condição
de possibilidade para uma atitude pessoal e social de solidariedade, mas não conduz
43 NOVAS, Washington. A era da solidariedade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 5/05/00. 44
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,
2000, p.85. 45
PESKY, M. The Limits of Solidarity. Em: NASCIMENTO, Amós (ed.). A Matter of discourse. Vermont:
Ashgate, 1998, p.129. 46
DELORS, Jacques e Outros. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão
Internacional sobre Educação para o século XXI. 3a. ed., São Paulo: Cortez; Brasília: MEC-UNESCO, 1999,
p. 47.
49
necessariamente a essa atitude. Pois, entre o conhecimento e a nova atitude há desejos e
interesses.
Interdependência como um fato
Para muitos é estranha a idéia de que a interdependência é um fato. A forma como a
nossa vida transcorre no dia a dia nos leva a pensarmos que somos indivíduos ou grupos
sociais autônomos e independentes. O que passa com os/as outros/as não nos atinge e nem
tem a ver conosco. E o que nós fazemos não tem nada a ver com a vida das outras pessoas.
Isto é, a própria noção de interdependência de todas as pessoas na sociedade não faz parte
do cotidiano de uma boa parte da população.
Tomemos como exemplos, duas notícias veiculadas em um noticiário em rede
nacional.47
O mês de junho é um tempo especial para os que se divertem soltando
papagaios ou pipas, pandorgas. Entre eles, é comum a prática de passar cola com vidro
moído na linha para cortar a linha das pipas de outros. Com isso, é comum acontecer
acidentes, alguns fatais. Nesse dia um motoqueiro foi morto quando passou por uma dessas
linhas cortantes e se feriu mortalmente no pescoço. Na mesma região uma pequena garota
de sete anos também foi ferida no rosto. Perguntado pela repórter se não era perigoso soltar
pipas com cortantes, um rapaz respondeu que sim, mas que ele tinha que soltar assim
mesmo. Quando a repórter perguntou, espantada com a resposta, porque ele tinha que soltar
pipas com cortantes, ele respondeu que a graça da brincadeira estava exatamente nesses
cortantes e nas disputas com outros soltadores de pipa.
Logo após esta notícia, o jornal mostrou o caso de uma senhora que teve o seu rosto
desfigurado pelas mordidas de um cão pitbull, que estava passeando sem focinheira e
coleira. Após mostrar essa senhora, a reportagem mostrou diversos cães considerados
perigosos passeando livremente nas praças, sem coleiras e sem focinheiras, como manda a
lei da cidade onde estava sendo feita a reportagem. Uma moça, aparentando ser de classe
média ou alta, perguntada sobre se o seu cão pitbull sem focinheira e sem coleira não
oferecia perigo aos transeuntes, respondeu tranqüilamente dizendo que não.
As respostas dessas duas pessoas nos dão um exemplo de como a sensibilidade
social não é algo que predomina nas nossas ruas. Mesmo correndo risco de causarem
acidentes graves às outras pessoas e de serem processadas criminalmente, elas parecem
preferir viver como se não houvesse pessoas em sua volta, como se suas ações não fossem
interferir na vida de outras pessoas.
Uma das razões para este tipo de cegueira é que as relações de interdependência de
todos os seres vivos ou não-vivos na natureza e das pessoas na sociedade não são visíveis
aos olhos. Não somente porque essas relações de interdependência não são objetos físicos
visíveis aos olhos, mas fundamentalmente porque os nossos olhos e nem as nossas mentes
foram treinados ou preparados para ver as relações de interdependência.
Nas nossas escolas fomos ou somos preparados para conhecer “pedaços”
independentes da realidade. As disciplinas funcionam quase sempre como segmentos
autônomos, que recortam um aspecto ou uma parte da realidade, e estabelecem pouca ou
quase nenhuma relação com outras disciplinas do curso. E no interior da disciplina
aprendemos analisar, isto é, dividir a parte que coube à ciência em questão em pedaços
ainda menores, sempre em busca de verdades que se confundem com certezas. A realidade
47
Jornal Hoje. Rede Globo de Televisão, 19/06/00.
50
é aprendida como algo constituído por partes que se justapõem, cada um exercendo uma
função dentro do todo. Em suma, não aprendemos ver as relações de interdependência. E
como sabemos, ver é uma questão de aprendizagem.
Essa nossa dificuldade não nasce e nem é reforçada somente nas nossas escolas. As
nossas escolas reproduzem os traços fundamentais da nossa cultura. Edgar Morin,
analisando a relação entre a cultura e conhecimento nos diz que
se a cultura abrange um conhecimento coletivo, acumulado na memória
social, se implica princípios, modelos, esquemas do conhecimento, se ela gera
ideologia (filosofia), se a linguagem e o mito são elementos constituintes da cultura,
então a cultura não contém somente uma dimensão cognitiva; ela é um
instrumento cognitivo, cuja prática é de natureza cognitiva.
E completa o raciocínio afirmando que
uma cultura abre e fecha as possibilidades bioantropológicas do conhecimento. Ela
as abre e atualiza à medida que põe à disposição dos indivíduos o seu
conhecimento acumulado, sua linguagem, seus paradigmas, sua lógica, seus
esquemas, seus métodos de aprendizado, de pesquisa, de verificação e assim por
diante; simultaneamente entretanto ela fecha e dificulta essas possibilidades
através das suas normas, regras, proibições, tabus, seu etnocentrismo, sua auto-
estilização, seu não-conhecimento de que nada sabe. Também nesse caso, aquilo
que o conhecimento possibilita é ao mesmo tempo aquilo que o inibe.48
Em outras palavras, a cultura na qual nós vivemos nos abre e fecha as “janelas”
pelas quais vemos o mundo. Ela nos leva a vermos certos aspectos da realidade e a não
vermos outros; mais ainda, leva-nos a não perceber que não vemos esses outros aspectos.
Como não temos consciência de que não vemos um determinado aspecto ou parte da
realidade, cremos que o que vemos é toda a realidade ou toda a verdade.
Se essa idéia tem um fundo de verdade, podemos deduzir que a nossa cultura com
a sua visão fragmentada da realidade, com um individualismo exacerbado, incentivo
unilateral à concorrência, diminuição da importância da identidade nacional e do
compromisso com a construção de um futuro melhor, entre outras características , dificulta o conhecimento e o reconhecimento da importância da interdependência e da
coesão social.
Assim, os problemas dos indivíduos e dos grupos sociais são compreendidos como
problemas isolados que dizem respeito somente aos interessados e que devem ser
solucionados por estes, sem nenhuma responsabilidade por parte do resto da sociedade.
Entre estes problemas estão, é claro, o desemprego, a violência, a degradação do meio
ambiente.
Contudo, como diz F. Capra,
48
MORIN, Edgar. “Cultura conhecimento”. em: WATZLAWIK, Paul & KRIEG, Peter (org). O olhar do
observador. Contribuições para uma teoria do conhecimento construtivista. São Paulo: Psy II, 1995, pp.71-
80. Citado das pp. 72-73.
51
quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos
levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São
problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes.
Por exemplo, somente será possível estabilizar a população quando a pobreza for
reduzida em âmbito mundial. (...) Em última análise, esses problemas precisam ser
vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma única crise, que é, em grande
medida, uma crise de percepção.49
Quando falamos da crise de percepção, estamos indo muito além de uma simples
discussão sobre uma maneira de ver o mundo. A forma como conhecemos a realidade tem
muito a ver com a forma como vivemos e construímos o nosso mundo. Este é um tema
central das novas teorias científicas que levamos a sério neste nosso trabalho. O viver está
intimamente conectado como o conhecer, a tal ponto de se afirmar que “viver é conhecer,
conhecer é viver”. A forma como se conhece determina o modo de se viver. Assim sendo,
uma crise de percepção é mais do que uma simples crise de conhecimento, é uma crise na
forma de viver e de organizar a vida humana e social.
O grande impacto provocado pelas novas teorias científicas no século XX foi a
percepção de que os sistemas, incluindo aqui os sistemas sociais, não podem ser entendidas
pelo modo clássico da divisão das partes, a análise de cada uma das partes e a reconstrução
da totalidade pela junção dos estudos das partes. As novas teorias de sistema mostraram
que as propriedades essenciais de um organismo ou um sistema vivo são propriedades do
todo, isto é, nenhuma das partes possui e nem é resultado da soma das propriedades das
partes. Estas propriedades essenciais surgem das interações e das relações entre as partes e
são destruídas quando o sistema é dividido, física ou teoricamente, em partes isolados. O
fato de que podemos estudar partes individuais em qualquer sistema não significa que elas
sejam isoladas, nem que o todo seja uma mera soma das partes. O todo de um sistema é
sempre diferente da mera soma das partes.
Tomemos como um exemplo um sistema humano pequeno e simples, a família. A
família é muito mais do que a soma das partes, isto é, dos indivíduos que a compõem. Uma
pessoa é filho só na medida em que tem uma família, que tem pai e/ou mãe. Ele não é filho
se tomado isoladamente, sem nenhuma relação com outras pessoas que compõe a família.
A sua identidade de filho desaparece quando morrem todos os membros da família, isto é,
quando desaparece o sistema familiar. O pai e a mãe se tornam pai e mãe na medida em que
têm filho/a, e não antes disso. É o estabelecimento da relação que dá identidade aos
indivíduos que compõe o grupo.
Por isso se diz que as propriedades das partes são ou podem ser entendidas a partir
da lógica organizativa do todo. Neste tipo de abordagem sistêmica, o estudo se concentra
em princípios organizativos básicos, e não em blocos ou pedaços de construções básicos. O
método analítico consiste em isolar as partes a fim de compreendê-las, enquanto que o
pensamento sistêmico significa coloca-las num contexto mais amplo para entender as
relações entre o todo e as partes.
Quando as pessoas têm uma visão sistêmica da realidade social conseguem perceber
que elas são o que são porque fazem parte de um todo social e que elas não existiriam sem
a existência de outras pessoas e do sistema social. Elas conseguem perceber que o que afeta
49 CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix,
1997, p. 23
52
uma pessoa ou grupos sociais ou à natureza, que é o meio onde o sistema social reproduz a
sua vida, afeta a si próprio e ao seu grupo. Porque nós todos estamos interligados.
O reconhecimento da interdependência entre todas as pessoas do mundo, entre todos
os seres vivos e não vivos do planeta Terra e entre todos corpos celestiais do universo nos
faz ver que há uma interdependência objetiva, isto é independente do nosso reconhecimento
ou aceitação. É a interdependência como um fato. Todos nós sofremos os efeitos positivos
ou negativos do que acontece no sistema em que vivemos.
Em termos ecológicos, o sistema em referência é o planeta Terra e em última
instância é o cosmos. Em termos sociais é o mundo. Após o processo de globalização, as
pessoas e grupos sociais estão ligados a todos os/as outros/as do mundo inteiro. Se não
pelos fatos sociais ou econômicos imediatos, pelo menos pelos efeitos a longo prazo no
campo econômico-social e no meio ambiente. E o funcionamento do sistema ecológico não
está limitado pelas fronteiras nacionais, muito menos por barreiras dos condomínios
fechados ou algo assim.
O desconhecimento da interdependência como um fato
O reconhecimento de que estamos de fato interligados é o primeiro passo para uma
atitude de solidariedade ativa. Mas, será que o conhecimento teórico é suficiente para levar
as pessoas a uma atitude solidária? Em outras palavras, o conhecimento teórico determina
a postura ética ou há algo a mais entre o conhecimento e opção ética?
Antes de respondermos estas questões, precisamos encontrar algumas pistas para
uma pergunta anterior: por que a maioria das pessoas das sociedades não conhecem esse
fato da interdependência? Ou por que há casos em que mesmo conhecendo teoricamente
não o reconhece, isto é, não admite que tem conhecimento deste fato e faz dele um aspecto
significativo nas suas vidas?
Uma primeira pista já apareceu no tópico anterior ao falarmos do tipo de educação
dominante nas nossas escolas e na nossa cultura: a visão fragmentária e mecanicista do
mundo.
As novas propostas educacionais em torno de temas transversais ou de abordagens
transdisciplinares mostram como o nosso sistema educacional estava e ainda está, na
maioria dos lugares, baseada em uma concepção segmentada do conhecimento e das
disciplinas.
A fragmentação do ensino em matérias entendidas como autônomas e
independentes não passa do reflexo do parcelamento ocorrido no campo das ciências. Este
parcelamento foi fruto, em certo sentido inevitável, do aumento de especialização frente à
complexidade da realidade. O problema não está na especialização, mas na crença
subjacente de que esta especialização levaria às verdades definitivas pelo refinamento cada
vez maior das ciências. Por trás desta crença está a cosmovisão que concebe o todo como
sendo composto de partes independentes. E estas partes teriam as suas verdades definitivas
reveladas pelas ciências especializadas.
Em uma cosmovisão assim, a educação é concebida fundamentalmente como
instrução, isto é, como formação de profissionais capazes de dominar o conhecimento e as
técnicas necessárias para um funcionamento eficaz das partes do todo que lhes cabem.
Educação como um reordenamento que faz emergir um relacionamento com o todo, com a
realidade da interdependência, não tem lugar.
53
Além desta segmentação da realidade, temos também a problemática crença de que
é possível obter verdades definitivas e que as escolas são meios de transmitir estas verdades
acumuladas aos/às alunos/as. Certezas levam a intolerâncias e à dificuldade de reconhecer
os/as diferentes. Um tema fundamental para a solidariedade como atitude ética, tema ao
qual voltaremos mais à frente.
A superação desta visão fragmentada da realidade não se dará somente com a
introdução de temas transversais. Pois a solidariedade não é um problema pontual que pode
ser resolvido com alguma matéria específica. Tem a ver com a própria forma de ver o
mundo e a vida. Aliás, os propositores de temas transversais têm plena consciência disso.
Por isso, é fundamental que modifiquemos também a maneira de compreender e ensinar
ciências/disciplinas que compõe o currículo escolar. Os PCNs, por exemplo, apresentam
uma proposta de abordagem transdisciplinar bastante interessante. Tomemos como
exemplo a proposta apresentada na parte sobre Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias (Parte III).
O documento mostra como o princípio físico da conservação da energia, essencial
na interpretação de fenômenos naturais e tecnológicos, pode ser verificado também no
campo da biologia e o da química, ao mesmo tempo em que processos deste tipo são
essenciais na compreensão da apropriação humana dos ciclos materiais e energéticos, como
o uso das hidroeletricidades e biomassas. O que os associa ao campo da economia e da
organização social. E diz:
Assim, a consciência desse caráter interdisciplinar ou transdisciplinar,
numa visão sistêmica, sem cancelar o caráter necessariamente disciplinar
do conhecimento científico mas completando-o, estimula a percepção da
inter-relação entre os fenômenos, essencial para boa parte das tecnologias,
para a compreensão da problemática ambiental e para o desenvolvimento
de uma visão articulada do ser humano em seu meio natural, como
construtor e transformador deste meio. Por isso tudo, o aprendizado deve
ser planejado desde uma perspectiva a um só tempo multidisciplinar e
interdisciplinar, ou seja, os assuntos devem ser propostos e tratados desde
uma compreensão global, articulando as competências que serão
desenvolvidas em cada disciplina e no conjunto de disciplinas, em cada área
e no conjunto das áreas. Mesmo dentro de cada disciplina, uma perspectiva
mais abrangente pode transbordar os limites disciplinares.50
No fundo, o que estamos observando atualmente não são apenas mudanças nos
conteúdos das diferentes disciplinas, mas no próprio conceito de ciência e, portanto, da
educação. Sem essa profunda transformação epistemológica teremos muita dificuldade em
reconhecer a interdependência como um fato, em perceber a necessidade da coesão social e
de atitudes solidárias.
Como diz E. Morin,
as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para
contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos
naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da
50
PCNs, Ensino Médio, Parte III, p. 9.
54
responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa
especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não
mais sente os vínculos com seus concidadãos).51
Não podemos, contudo, pensar que há só uma causa para este problema complexo
do não reconhecimento da interdependência como um fato. Fenômenos sociais complexos
não possuem somente uma única causa.
Um outro aspecto que deve ser levado em conta é o fato de que, em sistemas sociais
extensos, os efeitos, benéficos ou perversos, das ações e omissões levam muito tempo para
retornar à sua origem. Talvez a imagem de bumerangue possa nos ajudar nessa idéia. Em
uma comunidade pequena, qualquer ação produz efeitos que são fácil e rapidamente
notadas. É como se uma onda fosse emitida e ela batesse rapidamente nos limites do
sistema e voltasse para os seus emissores. Além da rapidez da percepção dos efeitos, as
mudanças no sistema seriam também mais fácil e rapidamente visíveis.
Mas, na medida em que o sistema cresce em extensão e complexidade, os efeitos
são cada vez mais difíceis de serem captados e as modificações, intencionais ou não, no
sistema são menos perceptíveis. É como se as ondas levassem muito tempo para percorrer
todo o espaço do sistema e bater nos limites para voltar. Além da demora, estas ondas vão
afetando e sendo afetados por outras ondas emitidas por outras pessoas e grupos, ao mesmo
tempo em que a força destas ondas vão se perdendo ao longo do trajeto. Este processo de
dissipação das ações intencionais e dos efeitos intencionais e os não-intencionais e a
retroalimentação dos subsistemas dentro do seu meio gera mecanismos auto-organizadores
que vão fazer emergir o que chamamos de estrutura sociais.
Nas palavras de Pablo Navarro,
Não é a intencionalidade da consciência humana, diretamente, a que produz o
cenário social ―objetivo‖ – os ―mapas sociais extramentais‖ – no qual essa
consciência deve atuar. O que produz este cenário ―objetivo‖- aquilo ao que se
costuma referir a teoria sociológica quando fala da ―estrutura social‖
independente da vontade dos atores individuais‖ – é algo diferente: é justamente o
jogo que necessariamente se produz entre a intencionalidade consciente desses
atores e os inevitáveis efeitos de dissipação dessa intencionalidade que suas
mesmas ações originam.52
A dificuldade na percepção deste processo cria a impressão de que não estamos num
mesmo sistema, em relação de interdependência com todas outras partes do sistema. Surge
assim a ilusão de que somos uma parte independente, de que não precisamos nos preocupar
nem com os efeitos das nossas ações sobre outras pessoas ou sobre o próprio meio
ambiente, muito menos nos preocuparmos com problemas e sofrimentos das outras pessoas
ou do meio ambiente. Vivemos a ilusão de que estes problemas não tem a ver conosco e
que nunca nos atingirão.
Esta é uma das razões porque é mais fácil percebermos a solidariedade como um
fato em pequenos grupos sociais, principalmente se estamos vivendo em um meio hostil ou
se estamos enfrentando um perigo comum. Por isso, a própria noção de solidariedade pode
51
MORIN, E. Os sete saberes...op. cit., p. 40-41. 52
NAVARRO, Pablo. El fenomeno de la complejidad social humana. Disponível na Internet, junho/2000.
55
ser distorcida e pervertida. Há solidariedade também em uma gangue e em organizações
criminais, onde a lealdade ao grupo é exigida até ao extremo e há disciplina e sentimento de
que o bem do grupo é o bem do indivíduo.
Restringir o campo da interdependência ao pequeno grupo é um caminho mais fácil
para perceber e se viver a prática de solidariedade. Mas, na medida em que este grupo se
fecha ao sistema mais amplo dentro do qual vive e age, considerando-se como uma parte
autônoma e independente, perverte as noções de interdependência e de solidariedade, o
reconhecimento de que vivemos todos em relações de interdependência e que o presente e o
futuro de cada um/a está ligado/a ao presente e o futuro da coletividade.
Um terceiro aspecto tem a ver com esta última idéia. Os efeitos benéficos e
maléficos do interior de um sistema não são distribuídos eqüitativamente. Tomemos como
exemplo o problema do efeito estufa. O aumento da temperatura vai elevar o nível do mar
em todo planeta e todos nós seremos afetados por isso. Mas, isto não significa que todos
nós seremos afetados da mesma maneira. Os habitantes das pequenas ilhas do Oceano
Pacífico serão um dos primeiros grupos a serem afetados porque vivem ao nível do mar e
não há lugares altos nas suas ilhas para toda a população. Depois serão afetados os que
vivem no litoral em todos os lugares. Mas os moradores dos planaltos não sofrerão
imediatamente estes efeitos. Alguns até esperam ganhar dinheiro com a valorização das
suas terras em lugares altos.
Aliás, há um economista norte-americano, Thomas G. Moore, membro do Instituto
Hoover, que defende a tese que o aquecimento global é um bom negócio. Os países
nórdicos, Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e outros gastariam menos dinheiro com o
sistema de calefação e terras geladas com muitas riquezas naturais como a Sibéria e parte
do Canadá poderiam ser exploradas economicamente. É claro que os moradores de lugares
baixos sofreriam e deveriam mudar para lugares altos, se tiverem dinheiro para tanto.
Os que ocupam melhores lugares no sistema não se preocupam tanto com os efeitos
maléficos que não os atingem imediatamente, nem de um modo mais grave. Podem até ter
conhecimento do fato da interdependência, mas não reconhecem este fato como algo
significativo nas suas vidas e, por isso, são muito resistentes às propostas de mudanças
necessárias nos seus estilos de vida. No caso de efeito estufa, é fundamental que os países
mais ricos diminuam ou modifiquem o seu padrão de consumo.
Por não conhecimento das relações de interdependência, ou por falta de
reconhecimento deste fato como algo significativo na vida das pessoas e das sociedades,
vivemos sem ver que a interdependência é um fato do qual não podemos escapar. O
conhecimento deste fato pode ser adquirido com uma educação baseada na
transdisciplinaridade e perspectiva sistêmica. O reconhecimento depende de algo mais.
Aqui entram em campo os desejos, os interesses, os medos e outros aspectos afetivos e
emocionais.
O reconhecimento nosso de que esse reconhecimento existencial sobre a
interdependência pressupõe um conhecimento, mas que não é um resultado necessário deste
conhecimento nos dá uma idéia das possibilidades de contribuição da educação, sem
colocar, ao mesmo tempo, demasiado peso sobre os seus ombros.
A insuficiência do desenvolvimentismo
Durkheim, no livro que mais tratou do problema da solidariedade e coesão social,
Da divisão do trabalho social, escreveu:
56
A divisão do trabalho é, pois, um resultado da luta pela vida, mas é um desenlace
atenuado da mesma. De fato, graças a ela, os rivais não são obrigados a se
eliminarem mutuamente, mas podem coexistir uns ao lado dos outros. Por isso, à
medida que se desenvolve, ela fornece a uma maior número de indivíduos que, em
sociedades mais homogêneas, seriam condenados a desaparecer, os meios para se
manterem e sobreviverem.53
Segundo ele, a divisão do trabalho é, ou era, um dos pilares fundamentais da
solidariedade orgânica, da coesão social, mas era também a chave para a integração de mais
pessoas à sociedade. O desenvolvimento da divisão do trabalho, isto é, o desenvolvimento
econômico moderno era tido como uma das formas mais importantes de solidariedade
social, na medida em que possibilitava aos que estavam à margem da economia serem
incorporados na dinâmica econômica e assim sobreviverem.
Esta idéia, juntamente com a tese weberiana da racionalização do mundo moderno,
compõe um dos pilares das teorias de desenvolvimento econômico que tiveram grande
aceitação nos meados do século XX. Uma idéia central nessas teorias era que o crescimento
econômico - dentro das relações mercantis como os países ricos (teorias
desenvolvimentistas “burguesas”), ou liberto das relações de dependência em relação aos
“países cêntricos” (teorias da dependência) – levaria à eliminação da pobreza, superação
das grandes desigualdades sociais e a um padrão de consumo igual ao do Primeiro Mundo
(para o primeiro grupo) ou a um padrão digno e respeitável (para o segundo grupo).
As teorias desenvolvimentistas e as de dependência estão meio fora de moda hoje,
mas a idéia de que a modernização e crescimento econômicos é o caminho para a solução
dos problemas sociais continua ainda em voga. Não somente entre os
“desenvolvimentistas” remanescentes, mas também entre os defensores das políticas
neoliberais. A diferença é que para estes últimos os ajustes econômicos, a privatização
completa da economia e a diminuição do papel do Estado nas questões econômicas e
sociais são condições prévias para o crescimento econômico e a posterior solução dos
problemas sociais.
O problema é que esta abordagem não é mais suficiente. Pois, com a revolução
tecnológica que estamos vivendo, a produção econômica cresce sem aumentar o nível de
emprego, sem incluir mais gente na divisão do trabalho social como era de se esperar em
uma visão baseada na solidariedade orgânica (Durkheim). Pelo contrário, a economia
cresce despedindo trabalhadores que não são e nem serão mais necessários. É o grave
problema do desemprego estrutural. E numa sociedade de mercado como a nossa, estar
desempregado sem ajuda do Estado ou dos familiares significa estar excluído dos espaços e
relações que possibilitam viver dignamente.
É claro que sempre houve progresso tecnológico na história da humanidade. Com o
advento do mundo moderno industrial, este progresso se acelerou e provocou nos
trabalhadores a pressão para ir se adaptando às novas tecnologias. Esta insegurança foi
enfrentada, principalmente nos países social-democratas da Europa, com o Estado de bem-
estar-social. As políticas que compunham esse Estado foram concebidas como um
instrumento para reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os aptos a se
53
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2a. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 268.
57
empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo. Como
diz Bauman,
a comunidade assumia a responsabilidade de garantir que os desempregados
tivessem saúde e habilidades suficientes para se reempregar e de resguarda-los dos
temporários soluços e caprichos das vicissitudes da sorte. O estado de bem-estar
não era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidadão, e não
como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro
coletivo.54
O documento final “Desenvolver uma Cultura de Solidariedade” do Copenhagen
Seminars For Social Progress, promovidos pelo Ministério das Relações Exteriores da
Dinamarca, chama este mecanismo de “solidariedade entre grupos e classes sociais com
diferentes níveis de riqueza e renda.‖55
É uma solidariedade institucionalizada que
funciona de modo auto-regulado, isto é, sem necessidade de ações solidárias voluntárias
individuais ou grupais.
Hoje, com a revolução tecnológica em andamento, os/as inaptos/as não são mais um
grupo marginal e temporário, mas constituem um crescente setor da população que,
mantido na atual condição de competência, provavelmente nunca reingressará na economia
“formal”. Frente a esta situação, quando mais se necessita da intervenção do Estado de
bem-estar para recapacitá-los/as e ajuda-los/as, a opinião dominante é que não há mais
condições financeiras para custear estes programas e, o pior, que estes programas são
ineficazes e sem sentido.
Os Estados estão em condições orçamentárias precárias, não há muita vontade
política para reformas necessárias para a implantação eficaz destes programas e na
sociedade vigora o que Galbraith chamou de “cultura de contentamento”. Os que estão
“satisfeitos” com a ordem econômica vigente, os que têm capacidade financeira para
contribuir na forma de impostos para financiar estes programas, acreditam que “não estão
fazendo mais do que auferir o seu justo merecimento” e que se “a boa fortuna é merecida
ou se é uma recompensa do mérito pessoal, não há justificativa plausível para qualquer
ação que possa vir a prejudicá-la ou inibí-la que venha a reduzir aquilo que é ou poderá
ser usufruído.”56
Em outras palavras, acham que é do seu direito não contribuir para o que
antes era considerado como um “seguro coletivo”.
Além disso, o desenvolvimento tecnológico chegou a tal ponto que somos capazes
de destruir a natureza em uma velocidade superior à capacidade da natureza de se refazer.
Com isso, estamos colocando também em perigo a vida das futuras gerações, um problema
ausente na dinâmica social baseada somente na divisão do trabalho atual.
Quando falamos que hoje a solidariedade do tipo orgânico (Durkheim) não é mais
suficiente, não estamos querendo dizer que alguma vez tenha sido plenamente suficiente
para resolver todos os problemas sociais. Até recentemente, nas sociedades modernas
industriais este tipo de solidariedade era suficiente para manter a coesão social e gerar
54
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.51. 55
Copenhagen Seminars For Social Progress. Develop a Culture of Solidarity. Disponível na Internet,
junho/00. 56
GALBRAITH, John Kenneth. A cultura do contentamento, São Paulo: Pioneira, 1992, p.12
58
progresso econômico e social. É claro que havia pessoas e grupos sociais à margem deste
progresso, mas esta situação não ameaçava a reprodução da sociedade como um todo.
A diferença hoje é que com o fenômeno do desemprego estrutural, do número
massivo dos “sobrantes”, dos que não são necessários ao sistema econômico, e do
conseqüente dualismo social – tão visível nos países como Brasil – a insuficiência se tornou
estrutural. O mecanismo de solidariedade orgânica não é mais capaz, por si só, de ir
incluindo mais pessoas. Com isso, as sociedades correm risco de uma ruptura interna.
Aliás, este tipo de preocupação está afetando até mesmo pensadores como Francis
Fukuyama, um ardoroso defensor do capitalismo, que escreveu um livro sobre este assunto
com o título “A grande ruptura”.57
Parece que os mecanismos auto-organizadores, até hoje vigentes nas nossas
sociedades, não são mais capazes de solucionar este grave problema atual. Razão pela qual
esse tema da solidariedade volta a ser discutido, isto é, trazido ao nível da consciência
social.
Nós não estamos preocupados somente com a coesão e a reprodução social. A nossa
principal preocupação, ao tratarmos da questão educação e solidariedade, consiste na
integração ou inclusão da massa dos/as excluídos/as na vida social, nas condições de
possibilidade de viverem uma vida digna e prazerosa.
Exclusão social
Antes de continuarmos a nossa reflexão sobre a solidariedade, precisamos dirimir
alguns possíveis equívocos ou mal-entendidos em torno do conceito de exclusão social.
Desde o início deste capítulo temos insistido na interdependência de tudo e de todos como
um fato. Agora estamos dizendo que há pessoas e grupos sociais que estão excluídos.
Afinal, todos estão interligados ou há grupos excluídos? A realidade social é complexa e
não permite uma resposta simples do tipo sim ou não.
O conceito “exclusão” pede um complemento. Excluído/a de que? É claro que a
massa imensa dos/as excluídos/as não está fora do planeta Terra, nem dos seus respectivos
países em que vivem. Neste sentido continuam em relações de interdependência com o
resto da humanidade e com todos os outros seres vivos e não-vivos da natureza. Essas
pessoas também não estão excluídas do alcance dos meios de comunicação de massa que
socializa a cultura dominante e o padrão de desejo de consumo. As pessoas pobres também
têm os desejos de consumo em grande parte determinados pelos meios de comunicação,
mesmo que elas não tenham condição de satisfazer estes desejos via compras no mercado.
Esta impossibilidade ou grande dificuldade de satisfazer os desejos de consumo e as
suas necessidades básicas para uma vida digna está ligada à sua exclusão ou a uma inserção
extremamente desfavorável no mercado de trabalho. Como dissemos acima, o desemprego
estrutural é, sem dúvida, um dos problemas fundamentais da nossa época, além de ser uma
das causas principais da exclusão social.
Há muitas causas desse desemprego estrutural. Por brevidade, vamos citar somente
as duas que têm a ver com o nosso tema educação e solidariedade. A primeira está
relacionada com a mudança no padrão de produção por causa da revolução tecnológica que
estamos vivendo. Esta revolução, que está gerando a sociedade de informação, foi
precedida por duas outras grandes revoluções tecnológicas na história da humanidade. A
57
FUKUYAMA, Francis. A grande ruptura. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
59
primeira foi a revolução agrícola, que teve início mais ou menos há dez mil anos, e a
segunda foi a revolução industrial, que começou no século XVII. Estas grandes revoluções
tecnológicas, inevitáveis em termos históricos, modificaram e modificam hoje
profundamente o modo de sociedades trabalharem e viverem. O que significou e significa
ainda hoje a necessidade de reaprendizagem por parte dos trabalhadores/as que aprenderam
o padrão que está sendo substituído.
Na passagem de uma sociedade de caçadores-coletores para uma sociedade agrícola,
as pessoas tiveram que aprender a lidar com a terra, com as sementes e a entenderem as
variações climáticas. Por ocasião do surgimento de sociedades industriais, os/as
trabalhadores/as acostumados/as com o campo tiveram que aprender a ler não a natureza
mas sim o alfabeto e a aprender a lógica do funcionamento das máquinas e a se adaptarem
às novas formas de trabalho e de sociabilidade nas cidades. Nos dias de hoje, com a
revolução da informática, os/as trabalhadores/as precisam aprender não somente o alfabeto,
mas também a lógica do funcionamento dos computadores e das máquinas de alta
tecnologia. Além de adquirir, isto é aprender, formas de relacionamento e posturas como
iniciativa, criatividade, capacidade de comunicação e de trabalho em equipe, coisas que o
padrão anterior (das linhas de produção nas indústrias) não só não exigia, mas também
proibia.
Domínio da língua natal, raciocínio abstrato e lógico, conhecimento básico da
álgebra e geometria, capacidade de comunicação, iniciativa e criatividade são hoje
requisitos básicos – nem sempre suficientes – para se ingressar no mercado de trabalho. E
todos nós sabemos que estas qualidades não são inatas e nem adquiridas nas ruas. Também
não basta ir à escola, se a escola continua oferecendo uma educação para um mundo que
está acabando. Uma educação baseada num tipo de disciplina que inibe iniciativa e
criatividade, numa estrutura curricular e ensino de matérias que não tomam em conta a
complexidade da realidade e não utiliza abordagens transdisciplinares e/ou de temas
transversais não é mais capaz de preparar as pessoas para uma boa inserção do mercado de
trabalho e na sociedade.
Escolas e educadores que, por diversos motivos, não colaboram para preparar
alunos/as para esta nova sociedade e novo tipo de trabalho estão, de um modo ou outro,
conscientemente ou não, contribuindo para o aumento ou manutenção da exclusão social.
Por isso a renovação profunda da educação é hoje uma tarefa social extremamente
prioritária. Escolas atrasadas significam aumento da exclusão. Escolas que se renovam e
atualizam significam salvar vidas humanas.
Não estamos querendo imputar toda responsabilidade ao sistema educacional, mas
não podemos negar que todos nós que fazemos parte dele, de uma maneira ou outra, temos
uma parcela de responsabilidade. Estamos dizendo responsabilidade, não necessariamente
culpa, que é uma outra questão. E reconhecer que temos parcela de responsabilidade é a
condição para podermos tomar novas atitudes e tentar fazer algo para mudar a situação.
Para as pessoas que já saíram das escolas e estão buscando emprego ou algum tipo
de trabalho com o qual possam viver, o processo de readaptação ou nova aprendizagem
enfrenta o grave problema do tempo. Este processo exige tempo, além de organismos
educacionais que as ajudem na recapacitação. E tempo significa dinheiro. Como vimos
acima, os Estados de bem-estar-social, que funcionavam razoavelmente bem na Europa e
que na América Latina nunca foram uma realidade, tinham como sua missão exatamente
dar suporte financeiro (salários-desemprego, educação) e estruturas institucionais para esse
processo de recapacitação dos/as trabalhadores/as ou adaptação ás novas condições de
60
trabalho. Isto era uma forma de solidariedade institucionalizada. Os custos desta
solidariedade eram repartidos por toda a sociedade, através de impostos, porque a sociedade
considerava esses mecanismos como um direito de cidadania, como uma forma de “seguro
coletivo”.
Hoje, com a hegemonia da ideologia neoliberal no processo de globalização
econômica, esse modelo de Estado de bem-estar-social foi sendo deslegitimado e
substituído por Estados preocupados fundamentalmente com processos de ajustes
econômicos em vista da dinâmica do mercado mundial, em particular do mercado
financeiro. Daí os cortes nos programas sociais que poderiam amenizar estes problemas e a
exclusão deste problema da lista das prioridades reais dos governos.
Essa mudança no conceito do Estado foi acompanhada pela crescente apatia da
população frente à questão política e insensibilidade social frente ao problema da exclusão
social. Esta apatia e insensibilidade, que leva as pessoas a verem os problemas dos pobres e
problemas estruturais da sociedade como problemas dos/as “outros/as”, têm a ver com a
incapacidade de ver as relações de interdependência entre todas as pessoas e grupos. O
equívoco na percepção da realidade, a falta de uma educação baseada no princípio da
transdisciplinaridade e visão sistêmica do mundo, colabora na manutenção desta situação
social inaceitável do ponto de vista ético e sistêmico.
Alguns, em nome da defesa dos direitos dos/as trabalhadores, simplesmente
criticam todo este processo da mudança do padrão tecnológico e suas conseqüências, sem
perceber que há aspectos positivos e até inevitáveis nele. Para simplificar, façamos uma
analogia deste processo com a “crise” da adolescência. A adolescência é uma fase de
transição na nossa vida que não podemos evitar. É uma fase rica em experiências, mas
também difícil, de insegurança e de necessidade de reordenamento e de readaptação. Assim
como as revoluções tecnológicas na história da humanidade, que propiciam avanços
importantes na vida humana, ao mesmo tempo em que provocam muitos problemas. Só que
há uma grande diferença entre viver a experiência da adolescência em um ambiente
familiar acolhedor, compreensivo e dialógico, e a de viver em um ambiente frio, agressivo
e insensível. A nossa sociedade está vivendo uma fase da transição inevitável, mas há muita
diferença entre viver essas dificuldades em uma sociedade que têm espírito de solidariedade
e busca dar apoio aos/às que têm mais dificuldades no processo de reordenamento e
readaptação e em uma sociedade insensível que corta ainda as poucas formas de
solidariedade institucional já existentes.
A exclusão ou inserção extremamente desfavorável no mercado de trabalho tem
como conseqüência a exclusão do mercado consumidor. Este é o segundo aspecto da
exclusão. Estar excluído/a do mercado consumidor significa, em uma sociedade de
mercado como a nossa, estar excluído/a das condições para satisfazer as necessidades
básicas para uma vida digna. O conceito de necessidades básicas é um conceito muito mal
compreendido nos debates sociais. Alguns, como o pessoal do marketing, simplesmente
identificam as necessidades com os desejos e utilizam estas duas palavras como sinônimos.
Outros, como muitos marxistas e cristãos preocupados com questões sociais, deixam de
lado a questão do desejo e reduzem as necessidades básicas aos itens materiais que
compõem a cesta básica. É claro que sem a satisfação das necessidades materiais básicas o
ser humano não pode sobreviver, mas as pessoas precisam mais do que “comida e bebida”,
precisam se sentir vivas, sentir que a vida vale a pena de ser vivida. E isto tem a ver com os
desejos e com as dimensões simbólicas da vida. Neste sentido, alguns desejos e símbolos
fazem parte das necessidades que compõem a “cesta básica”.
61
Estar excluído/a do mercado consumidor, não significa somente ter dificuldades em
satisfazer as necessidades básicas (materiais e simbólicas), mas também dificuldades na
construção de identidade e no relacionamento com outros grupos sociais. Pois, em uma
cultura de consumo, como a que estamos vivendo, o processo de consumo é muito mais que
simples relações comerciais. O que uma pessoa consome é um elemento importante na
definição da pertença a um grupo e na diferenciação em relação a outras pessoas e/ou
grupos. Muitos dos grupos de jovens são formados a partir do compartilhar os mesmos
gostos e padrões de consumo. Sendo assim, estar excluído/a do mercado consumidor
significa ter um baixo nível de auto-estima e estar fora das relações sociais significativas e
reconhecidas pela sociedade.
Em suma, as pessoas pobres estão dentro do mesmo território, da mesma sociedade
e do alcance dos meios de comunicação que socializa a cultura e os desejos de consumo.
Mas ao estarem excluídos/as do mercado de trabalho ou de postos de trabalhos
razoavelmente remunerados, estão excluídos/as do mercado consumidor e das relações
sociais significativas e reconhecidas pela sociedade, isto é, pelos que são reconhecidos
como pertencente à parte “boa” da sociedade. Para tentar dar conta desta complexa relação,
estamos usando a expressão “exclusão social”.
Contudo, devemos reconhecer que por trás do uso corrente das palavras “exclusão”
e/ou “excluídos/as” há uma armadilha da qual é muito difícil escapar. Esses conceitos
foram importantes para mostrar que as pessoas pobres, apesar de continuarem sofrendo as
mesmas dores da pobreza de antes, estavam inseridas em um novo contexto econômico e
social. Mas, quando para facilitar a comunicação utilizamos “excludído/a” sem
complemento ou esclarecimento adicional, corremos o risco de identificarmos a exclusão
do mercado com a exclusão como tal. Se fizermos isso, acabamos caindo na lógica (ou
armadilha) neoliberal que reduz todas as dimensões da vida social ao mercado e identifica
tudo com o mercado. Para um neoliberal radical tudo é (ou deve ser) reduzido ao mercado,
todos os aspectos da vida devem ser subordinados à lógica do mercado.
Com isso, nós acabamos reproduzindo os velhos esquemas dualistas. As pessoas
podem estar excluídas do mercado formal, mas viver nas franjas do mercado através de
atividades econômicas informais ou ilegais. O mercado não é um sistema econômico
fechado, uma estrutura estática com seus limites claramente delimitados. Como todo
sistema real (isto é, não ideal), o mercado é um sistema aberto que interage com o seu meio
(a sociedade e a natureza) como uma “estrutura dissipativa”, isto é, não é estático, nem está
em equilíbrio ou tem seus limites claramente delimitados.
Além disso, estar excluído/a do mercado e das relações sociais reconhecidas pelo
status quo – o que estamos chamando de exclusão social – não significa necessariamente
não fazer parte de nenhuma outra forma de socialização e/ou de trocas econômicas e
simbólicas. Não admitir isso seria assumir a tese neoliberal de que não há nada de bom e
saudável fora do mercado.
Muitas vezes o termo “excluído/a” nos leva à fantasia de um ser-chutado-para-fora-
do-mundo, quando esse povão fica dentro desse único mundo e investe todos os seus
desejos nele. É engraçado que geralmente são só os que podem satisfazer um nível razoável
dos seus desejos, como os intelectuais ou atores políticos, que investem os seus desejos em
outro mundo. Parece que quem tem que se virar neste mundo para realizar algo dos seus
desejos, como os pobres, investe as suas energias e desejos neste único mundo que temos.
É difícil sair dessa armadilha. Uma tentativa seria de usar a expressão “excluído/a
social” no lugar do termo “excluído/a”, mas não resolve todos os problemas, além de não
62
ser esteticamente interessante. Assim, continuaremos usando o termo “excluído/a”
esperando que o/a leitor/a tenha em mente todas essas reflexões. De vez em quando
colocaremos algum complemento, só para nos lembrarmos que é muito difícil sair das
armadilhas em que a linguagem usual nos coloca.
Sensibilidade solidária com os/as excluídos/as
A figura de excluído/a social entra nas nossas vidas como uma “perturbação”, seja
através das cenas que passam na TV ou das pessoas concretas que cruzamos nas nossas
ruas ou olhamos pelos vidros dos carros. Perturba-nos porque nos causa um certo abalo no
espírito, nos faz perder a serenidade, nos confunde, nos embaraça, nos intimida, nos
incomoda. Ao mesmo tempo, como uma perturbação que nos obriga a uma mudança na
maneira de viver ou ver o mundo e as pessoas ou que nos exige uma resposta no sentido de
dar uma explicação que permita integrar esta experiência sem mudanças fundamentais na
nossa maneira de ser, viver e olhar o mundo.
Nós não conhecemos as cenas e as pessoas como elas são “em si”, mas sempre
através de uma interpretação. E esta interpretação é feita a partir da cultura que temos
internalizada em nós e na qual vivemos. Vimos um pouco disso acima, quando, citando
Morin, dissemos que a cultura é um instrumento de cognição que abre e fecha as nossas
“janelas”, isto é, as nossas possibilidades de conhecimento. O sistema social que exclui as
pessoas produz também uma cultura que “explica” este paradoxo de pessoas e grupos
estarem dentro do nosso mundo, ao mesmo tempo em que estão fora.
Elas estão dentro do horizonte das nossas visões, por isso as vemos mesmo que seja
através da tela de uma TV, mas elas estão fora do sistema produtivo e das relações sociais
significativas e reconhecidas pela sociedade. Assim sendo, elas são vistas e explicadas
como “perturbações” da “vida normal”, do funcionamento do sistema econômico e cultural
dominante. São pessoas e grupos sem funções no sistema. Podemos dizer que elas estão
“dentro-e-fora” do sistema. Por isso são “sobrantes”, excluídas e vistas como perigosas.
Neste processo de rotulação social, essas pessoas são vistas geralmente como culpadas das
suas condições.
Uma característica importante da cultura dominante é que ela se apresenta como a
cultura. O mundo organizado e interpretado por essa cultura é visto como a realidade. Esta
característica de se apresentar como a realidade dá certezas inabaláveis para pessoas que
vivem dentro e segundo essa cultura. Esse modo de viver baseado nas certezas é
concomitante ao modo de conhecer que se crê capaz de conhecer com certezas. Quem tem
essas certezas não é capaz de se abrir ao novo que foge, que está além, das rotulações e das
funções e explicações do sistema vigente. Torna-se intolerante com o diferente, com
pensamentos e pessoas que ameaçam essas certezas.
As pessoas e sociedades vivem baseadas na crença dessas certezas porque crêem
que é possível ter certezas absolutas. E essas certezas seriam possíveis porque só haveria
uma única realidade passível de ser desvendada por algum tipo de ciências ou religiões
portadoras ou anunciadoras das verdades absolutas. Não haveria nada fora e além do
alcance dessas certezas. Essas teorias, quando adotam uma abordagem sistêmica, são
teorias de sistemas fechados, que não admitem a possibilidade de sistemas abertos e,
portanto, sem verdades e certezas absolutas.
Quando as escolas ensinam ciências, em especial as ditas exatas e biológicas, como
se elas fossem capazes de produzir certezas, estão reforçando essa visão do mundo como
63
um sistema fechado. E esta visão leva à intolerância e a não compreender que por detrás
das rotulações dos/as excluídos/as, feitas pela cultura dominante, existem pessoas, histórias
e outros sistemas e modos de viver.
Um processo de aprendizagem que leva as pessoas à intolerância frente ao diferente,
abre as portas para uma cultura do narcisismo (C. Lasch). Pois, “o que justamente
caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder admirar
o outro em sua diferença radical, já que não consegue se descentrar de si mesma.”58
Solidariedade não é só uma questão temática a ser tratada por algumas disciplinas
da área de humanas ou sociais ou então por temas transversais. Solidariedade tem a ver com
o modo de ver o mundo e a vida. Solidariedade é uma relação inter-humana fundamentada
na alteridade, que pressupõe o reconhecimento do/a outro/a na diferença e singularidade,
atributos da alteridade. Reconhecer o/a outro/a na diferença pressupõe relativizar a si
mesmo, as nossas certezas, enfim, todas as mesmices. Sendo assim, ensinar pressupondo a
possibilidade de certezas é tender para uma negação da solidariedade com os/as que estão
“dentro-e-fora” do sistema.
Como ser solidário/a com estes grupos e pessoas? Isto é, como interpretar essas
“perturbações” de tal modo que queiramos reordenar as nossas vidas em direção a ações e
atitudes que favoreçam a criação de novas condições que possibilitem uma vida digna e
prazerosa para eles/as?
A primeira condição epistemológica é que haja lugar para dúvidas na nossa
maneira de conhecer a realidade. Sem duvidar das nossas certezas culturais e dos rótulos
sociais que estamos acostumados a usar para classificar as pessoas, não há possibilidade
para um novo tipo de percepção das pessoas e do mundo. Isso significa que uma educação
que dê lugar e considere positivamente as dúvidas é um passo fundamental. Não somente a
dúvida de quem aprende e de quem ensina, mas a dúvida e a incerteza como uma parte
integrante do fazer ciência, do conhecer a realidade. Rejeitar a idéia arcaica da ciência
como um conjunto de verdades que vão se acumulando e assumir uma concepção mais
adequada às últimas descobertas científicas, que mostram que as teorias científicas vão se
sucedendo ao longo da história e não passam de modelos explicativos parciais e sempre
provisórios de determinados aspectos da realidade. Só assim estaremos realmente
abertos/as ao novo.
A segunda condição é a valorização da sensibilidade como conhecimento.
Sensibilidade no sentido de experiências físicas da visão, audição e tato. A relativização da
nossa capacidade racional e das nossos teorias racionais deve vir acompanhada da
valorização das nossas experiências sensitivas, do nosso contato visual ou físico com as
pessoas, que são sempre realidades mais complexas e portadoras de mistérios que
transcendem a nossa capacidade racional. Também é preciso valorizar a sensibilidade no
sentido da “sensibilidade humana”, a capacidade de sentir a empatia e a compaixão, de se
deixar tocar pelas vidas, sofrimentos e alegrias, esperanças e desejos das outras pessoas.
Nesse sentido, a solidariedade para com os/as excluídas é sempre mais do que a
solidariedade na concepção tratada no início do capítulo. A solidariedade que nasce do
reconhecimento da interdependência dos membros de um mesmo sistema não dá conta
desse tipo de solidariedade para com os/as que estão “dentro-e-fora” do sistema, para com
os/as cujas mortes e sofrimentos alteram muito pouco ou quase nada nas nossas vidas
imediatas. Para esse tipo de relação é preciso antes de mais nada uma “sensibilidade
58
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 25.
64
solidária”. A palavra sensibilidade quer mostrar que a solidariedade como ato ético-
subjetivo radical só acontece quando entram em jogo os “sentidos’, como a percepção
empática do sofrimento e angústia dos/as outros/as. O ver e o ouvir, alterando a
sensibilidade da nossa pele. Ao mesmo tempo, a sensibilidade é a condição a priori para
que o/a outro/a possa irromper no meu mundo como outro/a.
Nas palavras de E. Dussel:
[...] o fato de que o rosto do miserável possa ―interpelar-me‖ é possível porque sou
―sensibilidade‖, corporalidade vulnerável a priori. [...] Sua aparição não é uma
mera manifestação mas uma revelação; sua captação não é compreensão mas
hospitalidade; diante do outro a razão não é representativa, mas presta ouvido
sincero à sua palavra.59
Quando somos capazes de nos permitir esta abertura ao/à outro/a, quando somos
capazes dessa sensibilidade solidária, podemos ouvir e conhecer histórias de vidas das
pessoas que rompem com os nossos esquematismos pré-concebidos. Na medida em que
relativizamos os nossos preconceitos e as nossas teorias provisórias e parciais, somos
capazes de tentar entender as experiências e vidas destas pessoas a partir do mundo e
história delas. Aprendemos que a vida das pessoas não pode ser interpretada a partir de
fora, a partir das nossas categorias que pouco têm a ver com a vida delas. Descobrimos que
para conhecer a realidade complexa das vidas humanas e sociais o caminho não é a
proposta cartesiana de “idéias claras e distintas”, mas a aproximação respeitosa e dialógica.
Esta aproximação é mais do que um método de abordagem do real. É uma maneira
de compreender nossa relação com os seres humanos e não-humanos. Uma abordagem que
vai descobrindo diferentes perspectivas, lugares e tempos neste diálogo e aproximação.
Assim, somos capazes de descobrir um aspecto fundamental da realidade: a existência de
muitos mundos diferentes dentro do nosso mundo, a pluralidade dentro da realidade. E ao
reconhecer a pluralidade na realidade, aprendemos a reconhecer a pluralidade das
interpretações, a respeitar as diferentes perspectivas e pontos de partida.
Esse reconhecimento e diálogo é essencial para a sensibilidade solidária, porque,
como diz M. Pensky, a solidariedade ―exige uma preocupação por outros/as, uma
habilidade de assumir o papel do outro e de ver os interesses e bem-estar de outros como
intimamente conectado com os seus próprios interesses e bem-estar.‖60
Empatia e medo
A percepção do sofrimento do/a outro/a, em particular dos/as excluídos/as não é,
contudo uma questão meramente teórica. Não basta o conhecimento da teoria dos sistemas
abertos e/ou as teorias da complexidade para que ocorra a sensibilidade solidária. Pois um
conhecimento meramente teórico, racional, não é suficiente para gerar uma postura
existencial desse tipo.
59
DUSSEL, Enrique. Ética da liberação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p.
367. 60
PENSKY, Max, op. cit., p. 130.
65
A percepção do sofrimento na terceira pessoa – isto é, o sofrimento infligido a
outrem por um terceiro – sempre provoca um processo afetivo no sujeito. “Perceber o
sofrimento alheio provoca uma experiência sensível e uma emoção a partir das quais se
associam pensamentos cujo conteúdo depende da história particular do sujeito que
percebe: culpa, agressividade, prazer, etc.”61
Se a pessoa que percebe o sofrimento alheio
tem muita dificuldade em perceber e conviver com os seus próprios limites, medos e
sofrimentos, também terá muita dificuldade em perceber empaticamente o sofrimento do/a
outro/a. Assim sendo, tenderá a assumir uma postura de indiferença ou de agressividade
como forma de defesa frente à sua dificuldade em perceber o seu próprio sofrimento. E não
cabe dúvida que a nossa cultura oferece muitas formas “civilizadas” de justificar esta
insensibilidade social.
Infelizmente, na maioria das vezes a reação não é só de indiferença, mas de
agressividade. As pessoas e grupos sociais integrados no mercado se sentem agredidos e
ameaçados por grupos que estão à margem da sociedade. Ameaça que algumas vezes é real,
mas que na maioria das vezes é superestimada. Isto é, a possível ameaça deles é percebida
de um modo exagerado, ou no mínimo desproporcional às condições sociais objetivas. Com
isso se assumem posturas agressivas desproporcionais e, muitas vezes, injustificadas e/ou
não merecidas.
Isso se explica em parte pela nossas dificuldades em convivermos com a
ambigüidade das nossas vidas, como os nossos medos, limites e sofrimentos. A nossa
civilização ocidental moderna não nos educou para aceitar e convivermos com as
ambigüidades da vida, como por exemplo a tensão e a convivência entre a vida e a morte, o
amor e a insegurança frente à possibilidade de perder a pessoa amada, o desejo de
felicidade plena e a inevitável frustração desse desejo. Assim nós tendemos a projetar para
fora dos “muros” da sociedade estas ambigüidades das nossas vidas e da nossa sociedade.
Os nossos “demônios interiores” são encarnados naqueles que “sitiam” os nossos muros e
nossas vidas, os/as excluídos/as sociais. A presença deles/as nos recorda os nossos medos e
ambigüidades que queremos não ver. Existem duas formas de resolver esta situação:
sermos agressivos com os/as que nos recordam o que queremos esquecer; ou enfrentarmos
os nossos próprios medos e sofrimentos e percebermos que nós, os/as incluídos/as e os/as
excluídos/as compartilhamos da mesma condição humana.
Sem uma educação que nos ajude a convivermos com os limites e as ambigüidades
da condição humana, como a morte e a vida, a dor e o prazer, sofrimentos e alegria, medos
e coragens, egoísmos e gestos de solidariedade, necessidades e desejos, etc., teremos muita
dificuldade em percebermos com empatia e compaixão (sentir a mesma paixão/dor) os
sofrimentos dos/as e excluídos/as pela sociedade. E para isso, é também importante que no
processo de educação se reconheça que as teorias e ciências que se ensinam são sempre
provisórias e parciais.
Esperança humana
Recentes anúncios sobre o Projeto Genoma reascenderam em muitos/as o secreto
desejo da imortalidade. Desejo secreto, porque a morte é um tema que faz parte do nosso
cotidiano e o anunciar essa palavra nos dá medo e angústia. No afã de negar a ambigüidade
e a precariedade da condição humana, as sociedades moderna e pós-moderna tornaram
61
DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 2a. ed., Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999, p. 45.
66
invisível a morte no nosso cotidiano. Os cemitérios desapareceram das nossas vistas, e
parecem muito mais jardins do que cemitérios. No cotidiano, a morte é um assunto
camuflado, evitado e proibido. Violência e morte que ronda as grandes cidades são
transformadas em espetáculos. A cobertura pela televisão das cenas de violência urbana é
recheada com músicas ao fundo para dar mais “emoção”. Com a espetacularização essas
experiências humanas únicas vão perdendo a sua dimensão qualitativa e o seu caráter não-
intercambiável e sendo reduzidas a uma vivência pontual, sem memória e diálogo acerca
das bases sociais da sociedade. Em uma sociedade assim, o avanço científico e tecnológico
no campo da vida nos dá, de novo, a esperança e a ilusão de podermos ser imortais.
Hannah Arendt disse, no final dos anos 50:
talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de
prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.
Esse homem futuro, [...] parece motivado por uma rebelião contra a existência
humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente
falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele
mesmo.62
É claro que não estamos propondo que o ser humano deixe de lutar para prolongar e
melhorar a qualidade da sua vida. Mas, queremos chamar a atenção para o mito da
imortalidade embutida nas esperanças, e porque não dizer das utopias, depositadas nas
ciências hoje. Os antigos se refugiavam da sua condição humana na certeza dogmática da
imortalidade da alma ou da vida após a morte. A modernidade tentou banir ou esquecer-se
da morte com as promessas de liberdade e construção de mundos utópicos. Esperanças e
utopias têm a importante função de não nos deixar acomodar e a se conformar com a
situação em que vivemos. Mas, quando esperanças ou utopias se propõe ir para além da
condição humana acabam se tornando desumanas. Pois, quando queremos esquecer da
nossa condição humana, não somos capazes de reconhecermos a nós próprios, e nem a
condição humana das pessoas que sofrem com o processo de exclusão social e com a
insensibilidade social
A desumanidade dessas esperanças se torna mais clara quando nos lembramos que a
“salvação” pelas ciências da vida não é para todos/as, mas somente para aqueles/as que
venceram na concorrência do mercado e estão aptos/as para pagar os preços exigidos.
Concorrência obstinada que gera exclusão e insensibilidades sociais. Assim como diversas
configurações históricas do cristianismo que prometiam o céu, a salvação eterna, não para
todos/as, mas somente para aqueles/as que tinham “pago” os sacrifícios necessários.
Ernest Bloch escreveu:
Esperança, esse antiafeto da espera contra a angústia e o medo, é, por isso, o mais
humano de todos os movimentos do ânimo e só acessível ao ser humano, e, ao
mesmo tempo, refere-se ao mais universal e ao mais lúcido dos horizontes.63
Ele tem razão em parte. A esperança é algo tipicamente humano e é fundamental
para superarmos o medo de encararmos os nossos medos e angústias. Mas, ao não
62
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Univ., 1991. 5a. ed. rev., p.10.
63 BLOCH, Ernest. El principio esperanza. Madri: Aguilar, 1977, tomo 1, p. 61.
67
reconhecer os limites da factibilidade humana, isto é, ao não reconhecer que o ser humano
pode sonhar, desejar e esperar para além da sua condição humana ou das possibilidades da
história humana, Bloch não percebeu que há – e a história nos dá muitos exemplos –
determinadas esperanças que não são horizontes lúcidos.
Precisamos de esperanças humanas, do tamanho do ser humano, não a Esperança de
soluções definitivas e absolutas, pois estas negam a nossa condição humana. Esperanças
que não podem ser deduzidas das certezas religiosas dogmáticas e nem das pretensas
certezas científicas. (Nunca devemos nos esquecer que doutrinas religiosas e ciências
também são produzidas pelos seres humanos.) Esperança só é esperança quando não se
funda em certezas. Quando há bases seguras, “científicas”, para as nossas projeções
desejantes, temos otimismo. Esperança é quando nós esperamos apesar das nossas
incertezas, apesar das atuais condições humanas e sociais que não nos dão garantia da
possibilidade de realização dos nossos desejos. Alguém é otimista por causa de, enquanto
que nós temos esperança apesar de. Por isso, Horkheimer disse que ―a esperança de que o
horror deste mundo não tenha a última palavra é com toda certeza um desejo não
científico.‖64
A esperança humana, da qual estamos falando, é um horizonte de futuro tecido com
desejo. Não o desejo de um único indivíduo, nem o desejo de subir na “escada do sucesso”
segundo os parâmetros da eficiência do mercado regendo todos os aspectos da nossa vida,
mas o desejo do reconhecimento mútuo e respeitoso entre pessoas e grupos sociais, o
desejo de uma vida mais digna e prazerosa para todos/as. O desejo de um mundo onde
caibam muitos e muitos mundos.
É esse horizonte de esperança que nos mostra, nos revela, a mesquinhez e a
irracionalidade de uma sociedade centrada na exclusão e insensibilidade, e a desumanidade
de uma vida humana voltada para negar a sua condição humana.
Horizonte de esperança não é algo que se toma dentre as ofertas do mercado, nem
pode ser produzido individualmente. Como todo horizonte de compreensão, ele deve ser
tecido no diálogo, na construção de uma linguagem e esperanças comuns. Por isso, um
horizonte de esperança que nos abra e nos interpele para a sensibilidade solidária só pode
ser fruto de um desejo de dialogar com os/as que estão dentro-e-fora da sociedade, do nosso
mundo (o mundo de cada um, o mundo de cada grupo social). Diálogo que pressupõe o
reconhecimento mútuo.
Quando nos imergimos neste horizonte, descobrimos algumas verdades humanas
básicas. A descoberta da minha condição humana não se dá fora do reconhecimento da
condição humana (da dignidade humana) dos que estão “dentro-e-fora” da sociedade. Eu
não posso me descobrir como pessoa humana, se não “descobrir” o/a outro/a, o/a diferente,
como participante da mesma condição humana. É o reconhecimento do/a diferente como
“igual”, isto é, co-participante da mesma condição humana, que me possibilita encontrar
comigo mesmo. Na década de 70 havia uma propaganda que mostrava um menino e uma
menina, cada um olhando dentro do shorts de banho do/a outro/a. Acima do desenho, a
frase: “Ah! Descobri a diferença!”. É a descoberta de que existe um sexo diferente na
mesma espécie humana, que me faz descobrir que eu sou um ser sexuado, masculino ou
feminino.
64
HORKHEIMER, Max. Prólogo ao livro de JAY, Martin, The Dialetical Imagination. A History of the
Frankfurt School. Londres: Heinemann, 1973, p. xii.
68
Em resumo, tentar encontrar-se consigo mesmo e realizar-se como ser humano
negando o/a outro/a que lhe revela e lhe lembra as suas angústias e medos inerentes à sua
condição humana é um caminho trágico, no sentido grego desse conceito, isto é, não como
destino, mas como tomada de consciência de um desafio radical que faz parte da nossa
condição humana.. A única forma de nos realizarmos como seres humanos é reconhecendo
e assumindo a nossa condição humana. É isto que nos possibilita vivermos as alegrias da
vida, mas também os momentos tristes e angustiantes. Esse assumir a nossa condição
humana pressupõe o reconhecimento do/a outro/a que nos lembra das nossas inseguranças.
Este reconhecimento mútuo só é possível se cultivarmos e vivermos a sensibilidade
solidária e o horizonte de esperança. Educar para esperança é uma das chaves para educar
para a sensibilidade solidária.
Queremos terminar este capítulo oferecendo algumas reflexões de dois pensadores –
coincidentemente dois judeus – sobre onde encontrar o fundamento ou forças para a
esperança. O primeiro pensador, Horkheimer, nos aponta para a direção de uma aposta
radical, uma aposta no sentido da fé. Uma aposta na esperança que se funda na negação do
caráter absoluto de qualquer sistema social ou coisa que há sobre a face da terra.
Perguntado sobre o absoluto, ele disse:
Não podemos comprovar a existência de Deus. O conhecimento consciente do
desamparo, da nossa finitude, não se pode considerar como prova da existência de
Deus, senão que tão somente pode produzir a esperança de que exista um absoluto
positivo.(...) Não podemos representar o absoluto, não podemos, quando falamos
do absoluto, afirmar muito mais que isto: o mundo em que vivemos é algo
relativo.65
Ele fala da esperança de um absoluto positivo não para afirmar Deus, mas sim para
afirmar a relatividade do mundo, a nossa condição humana, contra aqueles que querem
fazer do sistema social vigente um absoluto. É a negação do mundo atual como absoluto
que nos abre a possibilidade para a esperança e para a sensibilidade solidária. Essa é uma
compreensão da religião bem diferente, e à qual muitos não estão acostumados. Uma
compreensão da religião que está baseada na interpretação da proibição, no judaísmo, de
representar a Deus: “Creio que este [mandamento com esta proibição] existe porque na
religião judaica não se trata de ver como é Deus, senão de como é o homem.”66
Por isso, para ele a teologia não é a ciência do divino ou de Deus, mas
significa aqui a consciência de que o mundo é um fenômeno, de que não é a
verdade absoluta nem o último. A teologia é - me expresso conscientemente com
prudência - a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode
permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra.‖67
65
HORKHEIMER, Max. “La añoranza de lo completamente otro”, em: MARCUSE. H., POPPER, K. e
HORKHEIMER. M.. A la búsqueda del sentido. Salamanca: Sígueme, 1976, pp. 67-124. Citado da p. 103. 66
Idem, La añoranza..., op.cit, p. 104. 67
Idem, La añoranza..., op.cit, p. 106.
69
Um outro autor judeu, Elie Wiesel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1986, que
sobreviveu a Auschwitz, nos oferece uma reflexão que aponta para uma outra direção, mas
que, no fundo, se complementa com a de Horkheimer:
Se eu olho ao meu redor, no mundo só vejo falta de esperança. E apesar de tudo,
eu, e todos, temos que tratar de encontrar um fonte de esperança. Temos que crer
no homem, apesar do homem. [...]
Eu não tiro forças unicamente das fontes escritas, as forças provêm também de
nossos comportamentos humanos. E por isso provêm dos outros seres humanos,
sobretudo das crianças.68
Podemos falar hoje de sensibilidade solidária e de esperança porque muitos/as antes
de nós e ao nosso redor viveram e vivem estas duas qualidades que fazem valer a pena
pertencermos à espécie humana. Terminamos o capítulo com uma pequena e antiga história
que Wiesel contou, ao final do seu diálogo, para responder a uma pergunta sobre o futuro
do ser humano.
Um rei ouviu dizer que no seu reino havia um sábio, um homem que falava todas as
linguagens do mundo. Sabia escutar o piar dos pássaros e compreender os seus
cantos. Sabia interpretar o aspecto das nuvens e compreender o seu sentido.
Também sabia ler o pensamento de outros homens. O rei lhe deu ordem de ir ao seu
palácio. O sábio chegou.
Disse então o rei:
- É certo que sabes ler todas as línguas?
Sim, Majestade.
É verdade que sabes escutar os pássaros e que entendes o seu canto?
Sim, Majestade.
É verdade que compreendes a linguagem das nuvens?
Sim, Majestade.
É verdade que sabes ler o pensamento de outras pessoas?
Sim, Majestade.
Disse então o rei:
- Nas mãos, atrás das costas, tenho um pássaro. Diga-me, está vivo ou morto?
O Sábio teve medo, pois se deu conta de que, dissesse o que dissesse, o rei poderia
matar o pássaro. Olhou ao rei e guardou silêncio por um bom tempo. Ao final, disse
algo que eu também quisera dizer aos meus leitores:
A resposta, Majestade, está em suas mãos. Você perguntou pelo porvir. A resposta está em nossas mãos.
69
68
METZ, Johann B. & WIESEL, Elie. Esperar a pesar de todo. Madri: Trota, 1996, pp. 73 e 74. 69
Idem, op.cit.¸ p. 107.
70
Capítulo 3
DIGNIDADE HUMANA:
O ACESSO A CAPACIDADES BÁSICAS
No final do século XVIII, durante uma viagem através da China como secretário particular
do Conde de Macartney, embaixador do Rei da Inglaterra, John Barrow testemunhou uma
cena estranha:
Entre as pessoas que se amontoavam às margens do grande canal (que leva a Cantão),
muitas se puseram sobre a alta popa de um velho barco que, infelizmente, rompendo-se com
o peso, atirou ao canal todo um grupo delas. Apesar de vários botes navegarem pelo lugar,
não se observou nenhum que saísse em auxílio dos que lutavam com as águas; um homem
foi visto muito ocupado em tirar da água, com seu arpão, o chapéu de um homem que se
afogava. Isto aconteceu porque havia abundância de homens e escassez de chapéus. Se os
chapéus fossem abundantes e os homens escassos, a história teria sido completamente
diferente. É tragicamente inevitável que, quando ocorre uma abundância de homens em
relação a outros recursos, seu valor marginal diminua e a dignidade da vida humana se
deteriore na mesma proporção. Para a salvaguarda do valor e da santidade da vida
humana é fundamental que o homem não se torne a mais barata de todas as mercadorias. Carlo M. CIPOLLA70
A crise atual do conceito de dignidade humana
Pode parecer espantosa a frieza do relato que acabamos de citar. Mas ele se encaixa
perfeitamente dentro da lógica do assim chamado marginalismo dos economistas neo-
clássicos. Essa vertente teórica predominou na maioria das Escolas de Economia, em
praticamente todo o mundo capitalista, ao longo do século vinte. O keynesianismo, um
pouco mais preocupado com a conjugação entre livre mercado e políticas públicas, e por
isso mais próximo ao pensamento político social-democrático, nunca logrou uma acolhida
tão duradoura entre os economistas acadêmicos.
Os socialismos "reais" desmoronaram por dentro, sem que fossem necessários
complôs sistemáticos de fora, devido a uma soma complexa de fatores, entre os quais os
economistas geralmente preferem destacar a baixa produtividade e a escassa diversificação
de bens de consumo. Esse destaque não se torna tão convincente quando se recorda que
existia um atendimento bastante generalizado de algumas necessidades humanas
elementares (alimentação, saúde, educação, moradia). Um fator determinante do colapso foi
provavelmente aquilo que o Papa João Paulo II chamou de equívoco antropológico71.
Em que teria consistido esse equívoco ou deficiência na visão do ser humano? Uma
análise sociocultural mais aguda do colapso dos socialismos nos remete à escassa atenção
que eles davam à dinâmica dos desejos humanos - de valorização pessoal, liberdade de
iniciativa e livre fluxo da vontade humana de sonhos e devaneios. Com isso se tornou cada
vez mais abstruso o recorte de compreensão da dignidade humana amarrada unicamente na
satisfação daquelas poucas necessidades humanas básicas, com as quais os socialismos se
haviam efetivamente preocupado até um nível, se não satisfatório, ao menos respeitável,
como se pode ainda hoje conferir em Cuba, apesar da deterioração crescente até mesmo
desse aspecto.
70
CIPOLLA, Carlo M. História econômica da população mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 119. 71
Cf. JOÃO PAULO II, Encíclica Centesimus Annus, n. 13, 23 y 24.
71
Com a exacerbação das teses neoliberais nas duas décadas finais do século XX, a
maximização da rentabilidade do capital se foi descolando ainda mais das urgências sociais
e do próprio processo produtivo e o comando do mercado mundializado - que leva o
charmoso nome de globalização - passou às múltiplas pontas soltas do capital financeiro e,
em não pequena porcentagem, do capital especulativo. Este se foi mostrando cada vez
menos preocupado com os seres humanos concretos. Somando a isso o aumento
exponencial da produtividade do trabalho humano, quando eficazmente acoplado ao uso da
mais avançada tecnologia, chegou-se a uma crise social quantitativamente sem precedentes.
Mesmo nos países ricos, mas sobretudo nos assim chamados "emergentes" e, pior ainda,
nos quase totalmente relegados, o fosso das desigualdades sociais virou abismo.
Já não se consegue disfarçar que a própria concepção do mercado foi
profundamente transformada por sua mundialização sob a égide do capital financeiro. A
suposta peculiaridade das propostas da União Européia, e nomeadamente dos arautos da
assim chamada "Terceira Via", e até mesmo alguns pronunciamentos das chefias do FMI e
do Banco Mundial apontam para um discreto retorno à ênfase em políticas públicas, que
procurem reaproximar os mecanismos de mercado de urgências sociais geograficamente
localizáveis. Mas essas "boas intenções" se chocam com a tese ainda soberana de que
quaisquer tentativas de rechear de conteúdo programático o sonho do "mercado social"
terão que passar inevitavelmente pelo crescimento econômico, ou seja, o velho mito de
primeiro o bolo, depois o seu fatiamento.
A esta altura da pós-modernidade, seria bastante absurdo sonhar com um mundo
sem mercado, porque significaria sonhar com cordões de isolamento em volta de processos
sócio-econômicos de pequeno porte, localmente auto-sustentáveis e de interdependência
escassa com outros bolsões similares. Vão nessa direção alguns rebrotes ideológicos neo-
comunitaristas e o sonho "alternativo ao capitalismo" de algumas ONGs. Sonham com um
estranho ciberespaço reservado apenas a suas interconexões supostamente orientáveis por
canais comunicativos e de fluxos de bens e serviços paralelos e relativamente autônomos. É
difícil acreditar que isso ainda seja possível num mundo no qual o predomínio do mercado
e sua mundialização vieram para ficar, ao menos no que tange a produção e circulação
ampla de bens e serviços.
Dito de outra forma, a sociedade ampla, complexa e prevalentemente urbana se
tornou definitivamente um fenômeno que abrange o planeta inteiro e essa interdependência
já não pode ser anulada. A busca de alternativas, recolocada no tapete com a crise da
ortodoxia neoliberal, passa pelo questionamento da sua concepção peculiar de mercado
mundial, fulcrada não apenas na dominância do econômico na concepção do todo social,
mas na dominância do capital financeiro enquanto rentabilidade auto-acumulativa
tendencialmente cada vez mais distanciada da própria economia, no sentido clássico de
sistema de produção, circulação e consumo de bens e serviços.
O propalado "mercado social" ou é mera balela ideológica, ou requer uma
concepção de mercado realmente diferente do conceito neoliberal. A diferença consistiria
sobretudo em dois aspectos: primeiro, numa re-vinculação decidida e obrigatória da
lucratividade do capital à dinamização do sistema produtivo; segundo, na priorização de
critérios de produtividade social relacionados com a geração de empregos e a valorização
de todas as formas de atividade humana, as já existentes e outras por inventar. Isso significa
que será necessário normatizar e controlar as formas de rentabilidade de tal modo que se
torne possível o re-ingresso dos excluídos sociais no todo social. Um mercado no qual não
prevalecerem os critérios de inclusão jamais poderá ser um "mercado social".
72
A dinâmica de um mercado social exige uma redefinição dos princípios
organizativos do todo social. Teoricamente, não é tão complicado imaginar um
espalhamento da própria rentabilidade dos investimentos para um leque aberto de
atividades humanas, que sirvam como suporte para remunerações e ingressos, e portanto
também para índices diferenciados de rentabilidade monetária e outras formas de
rentabilidade. Na prática, os capitalistas exitosos nunca o foram apenas em termos
estritamente financeiros. Existe uma vasta literatura - incluídas várias ponderações do
próprio pai fundador Adam Smith - sobre rentabilidades não limitadas a fatores monetários
(prestígio, criatividade inovadora, investimento em inventividade não imediatamente
lucrativa, o retorno de fluxos comunicativos gratificantes pelo seu teor cultural e social,
etc.).
A pergunta que hoje se agudiza é a velha questão acerca da possibilidade de tornar
plausível um atrator complexo que incite e motive iniciativas, esforços, uso inovador da
inteligência e aplicação de todo tipo de recursos mediante a criação de um vasto conjunto
de satisfações e compensações efetivamente gratificantes para os seres humanos enquanto
empreendedores. É ilusório imaginar-se uma ampla dinâmica ao mesmo tempo
economicamente produtiva, socialmente solucionadora e culturalmente instigante como
resultado de ações humanas inteiramente desinteressadas e gratuitas. Não existe sujeito
histórico imaginável para tão vasta operação de gratuidade. Nesse sentido, a civilização do
amor não é viável com a espécie humana na fase atual de sua evolução. Ninguém nos
proíbe imaginar lentos progressos evolutivos futuros nessa direção, contanto que não se
queira escrever história atual com esse sonho.
Os limites oscilantes da questão da dignidade humana
1. Recordar é preciso (I): Origem da tese
de que há vidas inúteis e até socialmente nocivas
Na organização social pré-moderna dos países europeus, que costumamos
caracterizar como feudalismo, havia certamente formas brutais de discriminação social e
funcionavam recursos culturais e religiosos que podiam ser utilizados para incitar
agressividades cruéis, como as guerras religiosas, a caça às bruxas, etc. Apesar disso,
prevalecia uma coordenação unificadora dos aspectos produtivos e dos aspectos sociais e
culturais da sociedade. No interior dessa frágil unidade entre o sistema produtivo e o
sistema social, existiam evidentemente desigualdades aberrantes. Mas não se deve esquecer
que havia uma certa previsão de acolhimento e atenção mínima até mesmo para os
deficientes físicos e psíquicos e os velhos e enfermos.
O fato que queremos destacar é o seguinte: com a chegada da industrialização e o
surgimento dos mecanismos do mercado, deu-se uma ruptura brutal e profunda entre o
sistema produtivo e todos os aspectos do sistema social da sociedade. Desapareceu quase
abruptamente aquele mínimo de cuidados e atenções com os quais contavam os seres
humanos praticamente improdutivos do ponto de vista econômico. Daí por diante, esse
contingente de seres produtivamente inúteis sofreu um esvaziamento quase completo do
resto de dignidade humana que se lhes reconhecia. E a razão desse esvaziamento foi
primordialmente o fato de eles não poderem oferecer nenhuma força de trabalho
significativa em um novo contexto produtivo, no qual o trabalho humano se via
transformado em mercadoria. Outra razão foi a súbita ampliação das referências espaciais e
73
temporais nas relações sociais: foi o salto das pequenas aldeias para as incipientes cidades
industriais. Os laços inter-humanos foram submetidos a rupturas e distanciamentos que não
existiam antes.
Uma teoria mais explícita acerca de "vidas que não merecem viver" foi surgindo aos
poucos e encontrou, provavelmente, as primeiras formulações mais chocantes em círculos
médicos e psiquiátricos das últimas décadas do século XIX e nas décadas iniciais do século
XX. A criação de instituições para confinar seres humanos produtivamente inúteis e cujo
estado físico ou mental era considerado um peso excessivo para os mais achegados foi -
como nos demonstrou Foucault - um fato sintomático da mudança profunda na percepção
humana acerca da dignidade humana. Certas variantes psicopatológicas passaram a ser a
referência dos limites da universalização socialmente "possível" do reconhecimento da
dignidade humana.
É bastante sintomático que se tenham usado argumentos relacionados com critérios
genéticos e hereditários para as teses mais explícitas de des-dignificação de seres humanos.
As esterilizações eugênicas serviram, ao que tudo indica, como referência prática para
ampliar o conceito de seres que representam uma ameaça genética para os demais. Em
menos de 40 anos, dos anos 1890 aos anos 1920, a consciência subjetiva de muitos médicos
começou a admitir como normal um direito de intervenção para fins de limpeza genética,
da qual derivou rapidamente o conceito de limpeza racial nazista. É provável que, a rápida
normalização desse suposto direito a eliminar determinados seres humanos tenha sido
acompanhado, praticamente desde o início, pelo pretexto de "pena" e "misericórdia".
Matava-se para redimir determinadas pessoas de seu triste estado e de seu
sofrimento. A forte presença da referência ao sofrimento facilitou a manutenção da
tranqüilidade da consciência. O sofrimento era visto, simultaneamente como a dor efetiva
das vítimas potenciais e o mal-estar dos que deveriam continuar cuidando deles. Até aí é,
até certo ponto, compreensível o mecanismo da legitimação dos recortes na universalização
da dignidade humana. Aliás, convém frisar que esse aspecto retorna hoje com muita força
na discussão sobre a eutanásia.
Que a eliminação de milhões de seres humanos por outros motivos, como é o caso
da motivação explicitamente racista do genocídio praticado com os judeus pelo nazismo (e
outros casos similares de menores proporções, até na atualidade) tenha sido praticados por
"gente normal" é bastante mais difícil de explicar. A questão que estamos apontando é
precisamente esta: os seres humanos são capazes de violar, "normalmente" e com toda a
naturalidade, a dignidade humana de seus semelhantes e ao mesmo tempo continuar
professando uma adesão genérica à dignidade peculiar dos seres humanos. Essa
normalidade da coexistência entre afirmação e violação da dignidade humana é o que
precisa ser encarado e analisado.
Não seria possível recordar aqui todas as formas de brutalidades e mortandades,
guerras insanas e perseguições sistemáticas até a morte, que a história da nossa espécie
registra. No século XX , enquanto se acelerava o progresso tecnológico, houve também um
agravamento ostensivo da brutalidade humana. O tão lembrado Holocausto dos judeus,
especialmente na fase final do nazismo, foi precedido e acompanhado pela eliminação de
centenas de milhares de seres humanos portadores de alguma deficiência física ou psíquica.
"Que aquilo que eu fazia era assassinato, esse pensamento só me foi possível tê-lo depois
de 1945, e desde então ele me acompanha insistentemente em todos os momentos" - Eis a
74
declaração de um médico, que provavelmente representa uma espécie de média do que
muitos médicos nazistas sentiam ao praticarem crimes horrendos72
.
A eliminação física de seres humanos percebida como algo normal , pelos
causadores diretos e pelo contexto cultural no qual agiam, verificou-se com suma
freqüência na evolução da nossa espécie, mesmo nos tempos modernos. As mais diversas
formas de discriminação - a da mulher, a étnica, o racismo, etc. - e a escravização de um
número assustador de seres humanos ao longo da história, com evidentes repercussões até
hoje, nos obriga a ser cautelosos e até desconfiados diante de qualquer suposição apressada
de que já tenha vigência o reconhecimento óbvio da dignidade humana estendida a todos os
membros da nossa espécie.
Na realidade jamais aconteceu até hoje uma universalização efetiva do
reconhecimento da dignidade humana de todos os seres humanos, sem graves distinções
limitantes. Por isso, é desejável, por um lado, que se enfatize, nas mais variadas formas e
ocasiões, que todos desejamos chegar a essa meta ética e social da dignidade humana
universalizada, por outro lado, deve-se evitar que a simples proclamação desse ideal sirva
de manto ideológico para encobrir ou até acobertar as negações práticas da mesma. Por
mais desagradável que seja, cada tanto precisamos dar-nos conta, explicitamente, da
persistência da destrutividade humana. Nesse contexto, cabe mencionar aqui o fato nada
estranho de que, com o colapso do socialismo real e o recrudescimento neoliberal do
capitalismo selvagem, tenham surgido "livros negros" sobre a lógica destrutiva de vidas
humanas, tanto no capitalismo realmente existente como nos socialismos73
.
Um dos propósitos desse rápido flash de memória histórica foi criar uma entrada ou
um preâmbulo para o desafio maior, isto é, a dificuldade de fazer valer hoje, no plano
social e em amplitude universal, o reconhecimento pleno da dignidade universal de todos
os seres humanos. Grande parte dos humanos não têm muita sensibilidade para o que está
acontecendo com seus semelhantes. Os aspectos chocantes de acontecimentos, aos quais
aludimos rapidamente, deveriam servir-nos para perceber e avaliar, com sensibilidade
aguçada - e em termos comparativos, se quiserem - a amplitude da exclusão social hoje,
enquanto fenômeno amplo de sistemático não reconhecimento da dignidade humana de um
número assustador de seres humanos.
A expressão “lógica da exclusão”74
pretendia enfatizar precisamente a crueza da
"insensibilidade normalizada", como elemento inerente à concepção neoliberal do mercado.
O fato maior do mundo de hoje consiste na assustadora combinação entre exclusão social e
insensibilidade crescentes. Mas a esta altura todos sabemos que a mera indignação ética e a
insistência em "gritos" de denúncia têm uma força bastante reduzida na criação de novos
consensos sociais. Parece que ainda precisamos entender melhor como articular e ampliar
os campos do sentido inovadores, que possam desarticular estruturas do sentido já
incorporadas na (in)sensibilidade cotidiana.
72
DÖRNER, K. Wir verstehen die Geschichte der Moderne nur mit den Behinderten vollständig (Só
enteneremos a história moderna a partir dos portadores de deficiência). Texto disponível na Internet,
junho/2000. 73
PERRAULT, G.(org.) O Livro Negro do Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999; COURTOIS, S. et al.
O Livro Negro do Socialismo: Crimes, Terror e Repressão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 74
ASSMANN, Hugo. Crítica à lógica da exclusão. São Paulo: Paulus, 1994.
75
2. O contraste entre o "valor" de baixas militares e baixas sociais
É bastante conhecido o conceito de baixas militares, ou seja, mortes de
combatentes. O cálculo de mortes admissíveis, em relação ao número global de
combatentes, sempre foi um elemento-chave das estratégias militares. Com a profunda
transformação tecnológica das guerras recentes, houve uma tendência para a diminuição
acentuada do número de baixas militares admissíveis. Em discussões acerca de confrontos
bélicos na Europa, inclusive números bastante reduzidos de baixas militares (por exemplo,
no máximo 350 por conta de tal país), passaram a ser considerados baixas excessivas.
Apenas 30 e poucos anos após a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos da América do Norte
dificilmente voltariam a admitir cerca de 50.000 baixas num confronto bélico com aquelas
características.
A quem não parece absurdo e arrepiante que, tão pouco tempo atrás, as frentes em
luta num país tão pequeno como a Nicarágua, considerassem admissível um número de
40.000 mortes antes da vitória sandinista e um número parecido nos 10 anos posteriores?
Enfim, poderíamos trazer à lembrança vários outros cenários de conflitos armados,
ocorridos na América Latina e mundo afora, nos quais a percepção subjetiva acerca da
quantidade de mortes admissíveis representavam um fenômeno aterrador quando
confrontado com as solenes declarações acerca da dignidade humana dos líderes e
ideólogos desses processos de luta.
Estamos fazendo esta evocação de horrores de guerra para suscitar nossa surpresa
diante do fato de que, enquanto está decrescendo a tolerância quanto ao número de baixas
militares admissíveis, ninguém se lembrou ainda - ao que nos consta - de sequer elaborar o
conceito de baixas sociais e muito menos de apontar para a urgência de termos indicadores
de sensibilidade social para isso, e não meras estatísticas acerca da fome e da miséria. Além
disso, vale recordar que, para as baixas militares costuma haver algum tipo de
reconhecimento dos governos e da população, sob forma de pensões, condecorações,
monumentos e homenagens. O panorama é muito diferente no que se refere às baixas
sociais.
Os conceitos de custo sociais e dívida social ainda flutuam por cima de qualquer
cobrança efetiva que se possa encaminhar juridicamente. De resto, o próprio conceito de
cidadania - que, nos países anglo-saxãos costuma referir-se a direitos efetivamente
exigíveis porque estabelecidos juridicamente - é, entre nós, um termo e sentido flutuante,
que circula num campo tão amplo e diversificado que se tornou praticamente impossível
transformá-lo em eixo de articulação de exigências concretas em defesa da vida.
3. A dispersão dos referenciais da dignidade humana
Qual é a referência básica para caracterizar as propriedades do ser humano que se
pressupõem quando se usa o conceito de dignidade humana? O indivíduo humano adulto e
normal? Todo indivíduo humano a partir do momento do seu nascimento até a morte? Que
forma de nascimento e que forma de morte?
Para percebermos que a generosa suposição da dignidade humana universal é em boa
medida ilusória e pode ser, em muitos casos, fonte de hipocrisia ou filtro ideológico em
nossa percepção daquilo que efetivamente acontece no mundo, é conveniente refletir sobre
o fato estranho de que a admissão de freqüentes exceções ao referido pressuposto conta
igualmente com amplos consensos. Vamos a alguns casos concretos:
76
Uma atleta feminina é barrada das Olimpíadas porque há suspeitas acerca da definição
orgânica do seu sexo.
Um casal de New Jersey processa seu médico por não ter evitado o "nascimento indevido" de seu filho portador da Síndrome de Dow.
Na Califórnia ficou notório o caso da criança cujo nascimento foi planejado especificamente para que ela se tornasse doadora de medula óssea para sua irmã. É
plenamente possível e começa a ser legal por alguns lados, planejar nascimentos para
doação de órgãos. (As suspeitas de que exista, há bastante tempo, um tráfico
internacional de crianças, que incluiria a criação de bancos de órgãos, já foram muitas
vezes levantadas por entidades de renome internacional...)
Em Lousiana, EUA, basta (por ora ainda) que um embrião seja concebido num
laboratório para que se lhe aplique proteção pela lei estadual. Mas assim que este
mesmo embrião for implantado no útero de uma mulher, o aborto desse embrião,
mesmo como feto de vários meses, poderá ser feito ao amparo de uma outra lei
constitucional.
Companhias de seguro praticam, em várias partes do mundo, discriminações genéticas, por exemplo, exigindo contribuições mais elevadas ou até negando-se a dar cobertura
de seguro em casos que qualificam como "condições negativas preexistentes", como a
presença de enfermidades geneticamente transmissíveis. (Nas Escolas Médicas de
Harvard e Stanford descobriram centenas de ocorências desse tipo).
A legalização da eutanásia em casos de doentes terminais com sofrimentos agudos, por idade ou tipo de doença, avança mundo afora. (A legislação da Holanda neste sentido,
embora contenha cláusulas restritivas fortes, parece haver se tornado uma referência
para muitos, dada a ênfase central que se confere à terminalidade, à agudeza do
sofrimento e à articulação de consensos em vários níveis da família, além do próprio
paciente, no caso de ele ainda se encontrar em estado consciente).
A tese da dignidade humana ontológica - alcances e fragilidade
Em 1993, a Comissão Internacional da Bioética da UNESCO definiu a "dignidade
humana" de forma sumamente genérica como direito de todos os membros da espécie
humana "à exigência de liberdade e solidariedade". Aplicada às implicações bioéticas das
pesquisas relativas ao Genoma Humano e similares, essa definição soa assim:
A proteção do indivíduo com respeito às implicações da pesquisa em biologia e
genética é destinada a salvaguardar a integridade da espécie humana como um
valor em si mesmo, e como o respeito da dignidade, liberdade e dos direitos de
cada um de seus membros 75
.
Como se pode ver, as referências do conceito são bastante confusas, o ser humano
individual parece ser a referência direta da dignidade, da liberdade e dos direitos, mas ele é
visto de fato numa referência muito mais ampla, a da integridade da espécie humana. Basta
tomar um conceito aparentemente tão simples como o de sobrevivência para dar-se conta
que os critérios concretos não estão definidos. Sobretudo em tempos de explosão
75
Paris, 15 a 16 de setembro de 1993, 1ª Sessão . cf. SALVI, M. Ontology and Bioethics: the case of Human
Dignity Principle in Human Genetics. texto disponível na internet, junho/2000.
77
demográfica e de busca, quase obrigatória (na China é rigidamente obrigatória), de redução
da natalidade, é evidente que a sobrevivência quantitativa da espécie pode dispensar
perfeitamente a existência individual de uma parte ponderável dos seres humanos.
A pergunta começa a agudizar-se: a dignidade humana, que se pretende defender, é
de fato algo assim como uma propriedade ontológica de todos os seres humanos
simplesmente pelo fato de serem membros da espécie humana? Até que ponto isto
corresponde a uma dinâmica intrínseca dos processos evolutivos dessa espécie? Ou estamos
dispostos a abandonar, ou nem sequer ponderar esse critério de supostas leis evolutivas da
espécie? Olhando para trás, parece fora de dúvida que a evolução não se ateve a esse tipo
de cuidado com a dignidade dos indivíduos.
Também a fase mais recente dessa evolução, após o surgimento das formas mais
complexas da comunicação simbólica e lingüística, e após a aparição do fenômeno
reflexivo que solenizamos com o termo sapiens (Homo Sapiens Sapiens), não manifesta
nenhum cuidado peculiar com a preservação da dignidade de todos os indivíduos. Isso torna
difícil derivar a atribuição individual da dignidade humana, da simples característica de
hominização da espécie.
Dito de outra forma, o advento evolutivo da hominização só pode coincidir com
uma emergência da dignidade humana, universalmente aplicável a todos os indivíduos da
espécie, por algum tipo de argumentação que supere a simples dinâmica intrínseca dos
processos evolutivos. Surge assim a pergunta: quais são os critérios ou as referência bio-
sócio-históricas que tomamos como base para afirmar a dignidade universal de todos os
seres humanos?
A tese adotada pela Comissão Internacional de Bioética da UNESCO assume, em
termos genéricos, a posição de que existe uma dignidade humana a ser reconhecida para
todos os membros da espécie humana. Mas, como já vimos, essa afirmação não é
aprofundada até o ponto de dirimir velhas disputas acerca do que - para facilidade de
compreensão - se costuma distinguir com os conceitos de visão ontológica versus visão
reducionista. Muitos cientistas da área da genética e das Biociências em geral sustentam
que precisam de um conceito prático e operacional da dignidade humana para poderem
refletir sobre os alcances de suas pesquisas. Afirmam que não lhes basta um conceito tão
genérico da dignidade humana que não lhes ofereça elementos de referência concreta para
intervenções, de índole prática e operacional, por exemplo no campo da saúde, da
preservação, recomposição e, na medida do possível, da melhoria das funções bio-orgânicas
do ser humano. Como é fácil de perceber, a genética e a bio-engenharia representam hoje
fronteiras avançadas e, em muitos aspectos, ameaçadoras de intervenção factível na própria
constituição da corporeidade humana.
Seria impossível trazermos aqui os detalhes desse debate cada vez mais aceso.
Tentemos, por isso sintetizar ao máximo os critérios invocados pelas duas posições.
Comecemos pela argumentação dos que advogam uma concepção da dignidade humana
referida a campos concretos de intervenção.
Pode se resumir essa argumentação no seguinte esquema76
:
Aspecto da DH
Critério Crítica
O conceito de "dignidade" parece estar apelando Com tal princípio ontológico ainda
76
Reelaborado a partir de SALVI, M. loc cit.
78
A DH como Princípio
Ontológico
inevitavelmente para um "outro elemento", fora
daquilo que é cientificamente pesquisável, que
serviria de base para tornar o ser humano
"dignus". Esse outro elemento seria a referência
última da "dignitas".
não temos um referencial racional
que possa servir de nexo com a
realidade física. O próprio conceito
de dignidade humana estaria
fundamentado em premissas
metafísicas ou religiosas que
servem de base para a interpretação
da realidade.
A DH como Princípio
Sócio-econômico
A dignidade humana pode ser tomada como
referencial sócio-econômico, indicando-se
parâmetros para o limite mínimo de seu
atendimento.
Ficam, porém, por esclarecer
problemas cruciais como: existem
parâmetros universalizáveis para
isso? Quem os define? Que dizer
dos estilos de vida que não são
universalizáveis precisamente
porque absorvem excessivos
recursos?
A DH como Princípio
Biológico
Pode-se pensar a dignidade humana em termos
biológicos reducionistas. Tal acontece quando,
por exemplo, se adere à teoria de que os
aspectos empiricamente analisáveis do genoma
humano, com os atuais instrumentos e hipóteses
da ciência, contêm todas as peculiaridades
fundamentais espécie-específicos da "raça
humana".
Este conceito, embora
operacionalmente aplicável, é
reducionista na medida em que a
dignidade humana passa a ser
entendida como "constituição
biológica" e "propriedades
biológicas constitutivas" do
organismo enquanto
empiricamente analisável. É
suficiente tal conceito enquanto
critério ético e sócio-histórico?
Convém lembrar que as discussões das instâncias internacionais de mais alto nível,
relacionadas com a criação de referenciais jurídicos para a Bioética, já encaminharam (por
exemplo, junto à UNESCO e cúpulas jurídicas de vários países) versões de textos
preliminares, que adotam praticamente o princípio reducionista exposto no esquema. Um
exemplo, o do IBC (International Bioethics Committee):
Art.1. O genoma humano é um componente fundamental da herança comum da
humanidade.
Art.2. O genoma de cada indivíduo representa sua identidade genética específica.
A reserva crítica fica pendurada fragilmente no destaque verbal "um componente".
Feito isso, acredita-se estar respondendo plenamente às exigências da formulação elaborada
pelo mesmo IBC:
Os princípios de proteção das pessoas, no que se refere às conseqüências da
pesquisa do Genoma Humano, estão baseados sobre um conjunto de direitos que
derivam diretamente do princípio da dignidade: o direito a um tratamento igual
(...), o direito dos indivíduos à liberdade (...), o princípio de solidariedade entre os
povos e os países77
.
77
Apresentação da versão preliminar de uma Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os direitos
humanos. Apud. SALVI, M. loc cit.
79
Peculiaridades da onto-teologia católica da dignidade humana
Como é sabido, já não é unânime entre todas as igrejas cristãs, e menos ainda entre
as demais religiões do mundo, a colocação de um referencial orgânico-biológico no cerne
da definição da dignidade humana. A alta cúpula do magistério da Igreja Católica romana
continua, no entanto, defendendo a necessidade dessa conexão entre a concepção
ontológica da dignidade humana e um referencial orgânico-biológico. Até esse ponto
certamente várias tendências éticas, religiosas e seculares, se inclinam a compartilhar a
idéia de que o abandono de um referencial bio-orgânico significa abrir as portas a um
perigoso pluralismo de fundamentação última da dignidade humana.
Convém, por isso, enfatizar que, a posição oficial da cúpula católica vai um pouco
além da exigência dessa conexão da dignidade com a corporeidade. Ela se apega a uma
definição espaço-temporal do início e do fim da vigência operante de um princípio
encarnatório da dignidade humana nos momentos, respectivamente, da concepção e da
morte. Trata-se de uma teoria peculiar, que implica o surgimento súbito e o
desaparecimento súbito de uma qualidade entitativa que caracterizaria o surgimento e o
desaparecimento do suporte bio-orgânico ligado à dignidade (em síntese, é a questão da
"alma" como entidade não totalmente coincidente com "princípio vital", porque
"autônoma" em relação a ele, no princípio e no fim da vida).
Como se nota, a espaço-temporalidade invocada é a do átimo ou instante, e não a de
um processo. Entra aqui uma concepção peculiar do princípio animador supostamente
único e específico da vida humana. É sintomático que em todos os documentos da Igreja
Católica relativamente favoráveis a uma admissão da teoria da Evolução - Pio XII ainda
sustentava, em 1951, que se tratava de uma mera hipótese; João Paulo II já admitiu que é
mais do que mera hipótese - conste invariavelmente a demanda de uma intervenção divina
criadora em relação à alma de cada pessoa humana.
É facilmente perceptível que essa posição não é sem problemas diante da visão
predominante, entre os cientistas, acerca da passagem dos hominídeos ao Homo. De resto,
tanto na Cosmologia como nas biociências e em praticamente todas as questões científicas,
tornou-se impossível pretender anular o pluralismo teórico, isto é, a existência de uma
pluralidade de teorias acerca de um mesmo assunto, inclusive em aspectos cotidianos
sumamente cruciais do comportamento humano.
O Cardeal Joseph Ratzinger relaciona a posição doutrinária católica com um
conceito específico de "pessoa humana":
A reprodução da espécie humana se realiza mediante a união de duas "fitas de
informação"; assim, ao menos, podemos resumir o assunto. Não há dúvida de que
essa descrição está correta. É também exaustiva? Aqui se impõem imediatamente
duas perguntas: é o ser reproduzido dessa forma apenas um outro indivíduo, um
exemplar reproduzido da espécie Homo, ou é algo mais: uma pessoa, isto é, um ser
que se por uma parte representa sem variantes aquilo que é comum na espécie
humana, é, por outro lado, algo novo, original, não reprodutível, com uma
singularidade que vai além da simples individuação de uma essência comum? E se
é assim, de onde provém essa singularidade?
Com essa questão está relacionada a segunda pergunta: de que maneira chegam a
encontrar-se as duas "fitas de informação"? Esta pergunta, aparentemente até
80
demasiado simples, transformou-se hoje no ponto da decisão crucial na qual não
apenas se separam as teorias acerca do ser humano, mas no ponto no qual a
prática encarna as teorias dando-lhes todo o seu rigor.
(...) É possível designar a reciprocidade entre o homem e a mulher como um
fenômeno puramente natural, no qual também a recíproca inclinação espiritual não
seria talvez nada mais do que uma astúcia da natureza (para dizê-lo na linguagem
de Hegel) que os engana tratando-os não como pessoas, mas somente como
indivíduos de uma espécie? Ou, pelo contrário, seria necessário afirmar que,
mediante o amor de duas pessoas e com a liberdade espiritual, vem à luz uma nova
dimensão da realidade a qual corresponde o fato de que também a criança não é
uma simples repetição de uma informação sem variantes, mas uma pessoa
caracterizada pela novidade e pela liberdade de um eu, que representa um novo
centro no mundo? Não está por acaso, simplesmente cego, quem nega essa
novidade e reduz tudo a um puro mecanismo, vendo-se obrigado a inventar para
isso uma natureza astuta, que é um mito irracional e cruel? 78
Como se pode notar, a concepção ontológica-religiosa da dignidade humana se vale
da conjunção entre um determinado conceito de pessoa e um determinado conceito de
natureza. Não é de nosso interesse polemizar com semelhante argumentação, mas apenas
insinuar onde se encontram seus aspectos decisivos, frágeis para uns, fortes segundo outros.
Cremos que o debate acerca da dignidade humana deve ser travado em termos plenamente
seculares, sem o contrabando de pressupostos metafísicos, mas também sem reducionismo
cientificista.
É em questões como essa que se torna mais evidente que qualquer interpretação
biologicista - e ela pode existir mesmo quando se apela a algo mais radical que os
argumentos biológicos - não dá conta da visão processual, complexa e radicalmente bio-
sócio-histórica, que se esboça em conceitos como emergência, autopóiese e auto-
organização dos sistemas dinâmicos, adaptativos e aprendentes que denominamos seres
vivos.
Ficam, no entanto, algumas questões: seremos capazes de abandonar nossos
referenciais antropocêntricos no que se refere à concepção do nosso lugar no mundo da
vida? Como sentir-nos plena e responsavelmente integrados no todo da evolução, sem a
petulância de reclamar para nós um destaque de superioridade e excelência única, sob o
pretexto de que somente tal destaque poderá fundamentar nossa responsabilidade única na
continuidade da evolução? Será que nossa responsabilidade ético-política de sermos
solidários com todos os membros da nossa espécie e com a vida e o Cosmos em geral
precisa realmente desse reclamo de sermos algo mais e algo especial em relação a tudo
mais que existe no Universo?
Quando as culturas humanas arcaicas foram inventando seus mitos acerca de um
pertencimento profundo a uma esfera misteriosa, a filiação reclamada referia-se
fundamentalmente a aspectos da natureza e do cosmos projetados para um imaginário
religioso. Ser filhos/as do Sol, da Natureza, da Terra. Sabemos que esse tipo de suporte
mítico arcaico foi evoluindo para teorias religiosas marcadamente antropocêntricas,
conferindo ao ser humano um lugar único no Universo e em relação a Deus. A discussão
78
RATZINGER, J. La sacralidad de la vida humana. Texto disponível na Internet, junho/2000.
81
sobre a dignidade humana - ao menos no plano filosófico e teológico - está desafiada a
levar finalmente a sério o processo evolutivo do Universo, sem pressupostos marcadamente
antropocêntricos.
No discurso religioso cristão, praticamente toda a argumentação teológica em favor
da dignidade humana universal costuma ser ancorada nas metáforas (somos) "imagem de
Deus", (somos) "filhos de Deus". Por estar fartamente difundida em documentos, não
precisamos retomar aqui essa fundamentação recorrente em abundantes documentos das
igrejas. No diálogo pedagógico e comunicativo em geral será preciso tomar em conta e
respeitar a presença de convicções provenientes desse tipo de formas culturais.
Como simples registro, relatamos um pequeno incidente curioso: num grupo
ecumênico, um católico argumentava em favor da dignidade humana universal a partir da
afirmação de que todos os seres humanos são filhos de Deus; mas um membro de uma
denominação evangélica interveio com a surpreendente distinção: - Minha igreja pensa
diferente. Para a minha igreja, todos são criaturas de Deus, mas filhos de Deus são
unicamente os que aceitam a Jesus como seu salvador. Este episódio mostra que a mera
argumentação religiosa tem um alcance limitado na fundamentação da dignidade humana.
Um novo patamar para discutir a dignidade humana
1. Recordar é preciso (II): Custou muito chegar aonde estamos
Vale a pena trazer à memória alguns fatos históricos que manifestam quanto custou e
demorou para chegarmos aos frágeis semi-consensos atuais hoje acerca de uns poucos
ingredientes básicos da dignidade humana. Por exemplo, o mandamento "Não matarás!" foi
surgindo, enquanto preceito, em contextos culturais específicos, como o dos israelitas, e
alguns biblistas acreditam que sua aplicação se confinava, numa primeira fase, ao âmbito
interno do povo judaico. A incrível normalidade do "direito" de aniquilar, sem mais, os
adversários, era discurso corrente até na boca dos deuses. Como é sabido, grupos, tribos e
povos inteiros estiveram imbuídos pela obsessão de destruir, das formas mais variadas e
cruéis, os seres humanos não pertencentes ao seu clã. Culturas inteiras praticaram, por
longos períodos, a eliminação física de primogênitos sacrificados aos deuses, de deficientes
expostos às feras ou simplesmente mortos sem que ninguém se sentisse assassino.
Milhares de hereges e bruxas foram cruelmente torturados/as e assassinados em
verdadeiros espetáculos públicos, assistidos por multidões, das quais não poucos
contribuíam com seu feixe de lenha, e - coisa espantosa para nós hoje - tudo isso costumava
ser encenado em praças públicas, com imagens da Santíssima Trindade na fachada da
catedral ou igreja, e na hora de execução o povo era incitado a cantar o Te Deum laudamus
(A ti louvamos, ó Deus - o famoso hino de agradecimento atribuído a Santo Ambrósio, do
século IV d.C/).
Os cristãos, portanto, não deveriam esquecer que, por quase dois milênios, foi ensinada
explicitamente, e ainda continua muito presente em boa parte das vertentes cristãs de hoje,
a doutrina de que a salvação não é para todos. A maior parte dos grandes teólogos do
passado (e alguns do presente) admitiu como óbvio que haveria muitos condenados. A
exclusão da salvação, e não sua garantia, era o tema obsessivo de muitos teólogos e
pregadores. Santo Agostinho deixou a suspeita, em muitos dos seus textos, de que a
salvação seria a exceção e não a regra (confira-se sua linguagem sobre a massa damnata).
82
Embora chocante, será que há muito exagero no seguinte quasi-poema de desabafo de um
internauta anônimo?79
: Os tempos amadureceram
para os cristãos se envergonharem
de terem acreditado
num Deus Juiz implacável
e Providência Divina arbitrária
de terem acreditado
numa Redenção Sacrificial
de terem admitido
a condenação eterna como possibilidade real
de terem povoado
as fantasias de tanta gente com entes demoníacos
de terem identificado a mulher
com o mal e o pecado
O mais paradigmático dos sintomas do atraso ético e humano de certas organizações
religiosas é, sem dúvida, o seu persistente patriarcalismo, que impregna suas doutrinas,
grande parte de suas linguagens, suas estruturas organizativas e suas atitudes práticas.
Embora haja discretos sinais de querer mudar, em geral ainda não se admite que a des-
dignificação da mulher forma parte do campo de (sem-)sentido estruturado a partir de
conceitos centrais da teologia, distorcidos pela visão patriarcal da experiência religiosa80
.
Até muito recentemente, o tema da dignidade humana não sobressaía no ideário
religioso do Ocidente. Ao contrário, um dos temas de maior destaque era a indignidade
humana. Ela, sim, formava um vasto campo semântico no linguajar religioso. Ela teve
extrema importância na formação do pensamento ocidental. Por isso, vale a pena destacar
alguns de seus elementos: o pecado era tido como a marca primeira da condição humana; o
mundo material era visto como lugar de perdição, ou de sofrimento meritório, na melhor
das hipóteses. A indignidade do homem é o grande tema da teologia oficial da igreja da
Idade Média. Essa indignidade era considerada tão visceral que o ser humano, apenas por si
mesmo, jamais conseguiria salvar-se; para isso era imprescindível a ação mediadora da
Igreja, seus clérigos, seus sacramentos. A duras penas, e não sem imenso esforço, houve -
aqui e acolá - lances de mais otimismo acerca da vocação terrena do ser humano (por
exemplo, no franciscanismo).
A contrapartida histórica a esse pessimismo foi o lento surgimento de um extremo
oposto: o antropocentrismo da modernidade, alavancado, sucessivamente, pelo humanismo
renascentista, pela razão iluminista, pela ideologia do progresso, etc., até chegarmos, no
século XX, ao questionamento radical dessa petulância antropocêntrica.
2. O impossível retorno ao antropocentrismo
Ainda nos custa bastante levar a sério os desarraigamentos e as descentrações que o
avanço das ciências foi impondo, passo a passo, à presunção do ser humano de ser ele o
centro de todas as coisas e, obviamente, de todos os sentidos cabíveis para o mundo da vida
79
Die Christen sollten sich schämen. Texto anônimo da Internet, outubro/1999. 80
Sobre issso vale conferir GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio, Uma fenomenologia feminista do mal.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
83
e do universo. Eis um quadro sintético dos golpes sucessivos que as ciências assestaram, e
continuarão a infligir, à auto-imagem pretensiosa do ser humano81
:
AS “AFLIÇÕES” DO ANTROPOCENTRISMO ORIGEM
As três que Freud nomeou (Mal-estar da Cultura)
cosmológica: fim do geocentrismo
biológica: evolução; somos seres “deste mundo”
psicológica: “o eu não é dono em sua casa”
...e a seqüência ainda em curso
bio-semiótica: imersos em "campos" de linguagens
etológica: herdamos comportamentais animais
epistemológica: aprendemos evolucionariamente
sociobiológica: valores estreitos, altruismo “egoísta”
bio-ecológica: interagimos com nossos nichos vitais
informacional: inteligência e socialidade artificiais
neurofisiológica: que é “consciência”?
Copérnico, Kepler, Galileu
Darwin
Freud
bio-sócio-semiótica e biociências
O. Heinroth. J. Huxley
K. Lorenz, D. Campbell, K. Popper
E. Wilson
H. Maturana, F. Varela, etc.
Novas Tecnologias
Estudos sobre o cérebro/mente
Quem de fato acredita numa dignidade humana igual para todos?
Nós, povo do planeta Terra, respeitando a dignidade de cada vida humana preocupados
com as gerações futuras cada vez mais conscientes da nossa relação com o nosso ambiente
reconhecendo os limites dos nossos recursos e a necessidade de comida, ar, água, abrigo,
saúde, proteção, justiça e auto-realização, declaramos aqui a nossa interdependência e
decidimos trabalhar juntos em paz e harmonia com o nosso ambiente para melhorar a
qualidade de vida em todos os lados
(Declaração de Interdependência - Profs. do norte, Portugal)
Em nossos dias - não, porém, em qualquer tempo e lugar da história - existe
aparentemente um senso comum que supõe que todos os seres humanos participam de uma
dignidade comum a todos eles. Não é fácil provar que semelhante suposto valorativo seja
de fato compartido por todos os seres humanos existentes, nem que seja atribuída de
maneira uniforme a todos. Mesmo assim, geralmente vivemos com uma espécie de
convicção tácita de que exista um consenso universal em relação ao pressuposto de que
todos os seres humanos possuem um estatuto moral especial baseado no simples fato de
serem humanos. As implicações desse pressuposto são de fato infringidas com suma
facilidade.
Note-se bem que o pressuposto é sumamente generoso quanto à qualificação
genérica do humano, não estabelecendo quaisquer exceções ou limites. O pressuposto não
só atribui aos seres humanos uma dignidade básica universalmente compartida. Vai além
disso porque supõe-se que os seres humanos atribuam normalmente um valor especial - isto
é, uma espécie de dignificação consensual de si mesmos - ao simples fato de serem
humanos, independentemente do fato de que existam elementos da espécie humana que não
reconhecem coerentemente essa dignidade humana atribuída a todos os seres humanos, pelo
simples fato de serem humanos.
81
Inspirado em VOLLMER, Gerhard. Die vierte bis siebte Kränkung des Menschen. Em Aufk;ärung und
Kritik, 1/1994, p. 81s. Disponível na Internet, 1999.
84
Estamos bastante acostumados à idéia de que os direitos humanos básicos - e,
portanto, o reconhecimento de um respeito à dignidade humana de qualquer ser humano -
seriam, ao menos hoje em dia, patrimônio ético consensual da humanidade. Isso é um grave
engano. Se assim fosse certamente seria bem diferente o quadro das preocupações
prioritárias dos governos e da maioria das instituições e pessoas.
Na modernidade há, de fato, duas tradições bastante diferentes e, até certo ponto
contrapostas, no que se refere ao universalismo da dignidade humana, enquanto atributo
historicamente atribuível aos seres humanos. Simplificando bastante, pode-se distinguir
uma tradição mais política (e filosófica) e outra mais econômica. Na tradição política se
inscrevem todas as lutas pela liberdade, igualdade, direitos humanos e democracia como
valores universais. A tradição econômica é muito menos explícita e muito mais restritiva
quanto ao reconhecimento pleno e universal de direitos básicos de todos.
Resumindo: no fundo, o pensamento econômico burguês só reconhece direitos a
quem “se mexe”, toma iniciativa, sabe competir, enfim, a quem chega a ser um agente
econômico produtivo. Neste sentido, uma certa dose de darwinismo social perpassa todo o
pensamento econômico burguês. E é nele e em suas conseqüências práticas que estamos
todos mergulhados. Temos que analisar e entender muito bem a antropologia que subjaz a
essa visão. É uma antropologia muito diferente daquela que suporta o pensamento
“revolucionário”. E é inegável que ela contém elementos - como os expressados no “código
fundante” de Adam Smith: interesse próprio, industriosidade, iniciativa... - que, quando
traduzidos por auto-apreço, empenho e criatividade, não só não devem ser eliminados de
uma antropologia construtiva do social, mas formam parte, hoje, de um conjunto amplo de
tendências espirituais, psicológicas, organizacionais, etc.
Dignidade humana: oportunidade social para competências sociais
Precisamos de linguagens sobre dignidade humana que sejam minimamente
operacionais no plano do pensamento estratégico e dos projetos de intervenção prática nas
regras do jogo da sociedade. Neste sentido, e como primeira aproximação ao plano
operacional, a noção de dignidade humana talvez devesse partir do seguinte postulado:
expandir ao máximo possível o direito concreto dos indivíduos e grupos sociais a terem
acesso às mesmas regras do jogo daqueles que melhor conhecem e mais se das regras do
jogo da sociedade em que vivem.
Nessa formulação de um ponto de partida operacional para falar da dignidade
humana ficam imediatamente evidentes duas implicações: primeiro, que sem educação não
há acesso ativo (pode haver outorgação passiva) à dignidade humana; segundo, que só é
justa aquela sociedade na qual se possa trazer à luz o escândalo sumamente freqüente
(especialmente no Brasil) da manipulação jurídica das leis - em si mesmas, não poucas
vezes, já viciadas por propósitos de diferenciação social injusta - para a defesa de
privilégios de uns contra os outros. Dito de outro, os princípios organizativos da sociedade
e a normatividade efetivamente implantada constituem as referências práticas para se
conferir qual é o conceito de dignidade humana vigente nessa sociedade. O mesmo vale,
como já foi dito, para o conceito de solidariedade humana básica. Os dois temas estão
claramente interligados.
Tem-se, por vezes, a impressão de que bem poucos acreditam que se possa lutar por
uma vigência prática do velho preceito jurídico de que todos são iguais perante a lei. Já que
85
todos sabemos que isso não se cumpre, talvez o respeito à dignidade humana deva ser
ancorado, para começo de conversa, num consenso mínimo dos membros de uma
sociedade, que afirma defender a dignidade humana, para estarem dispostos a acabar com a
própria conivência com a prática de regras do jogo socialmente diferenciadas para situações
iguais. Em outras palavras, a defesa da dignidade humana pressupõe que uma sociedade
não queira continuar a mentir constantemente a si mesma.
Esse é precisamente o caminho pelo qual o filósofo social alemão Jürgen Habermas
vincula a solidariedade com a justiça, a saber, a solidariedade básica de uma sociedade se
institui no plano da normatividade, consensualmente construída e efeticamente exigível
pela sociedade civil. Mas sempre existe uma distância, quando não um fosso, entre as
normas e o acesso à sua vigência ou aplicação à efetivação dos direitos cidadãos. Esta
distância não se transpõe pelo manejo abstrato e ideológico de manifestos, normalmente
generosos no reclamo de uma sociedade fraterna e justa (o que não deixa de ter uma certa
relevância na "cultura social"). Transpõe-se pela aquisição de competências sociais que
acabem com a privação de capacidades para conhecer as referidas regras sociais e fazer uso
das mesmas.
Nas pequenas comunidades este acesso geralmente não é sonegado. Mas nas
sociedades amplas e complexas existem mil subterfúgios para ocultar, distorcer e manipular
essas regras. Seu conhecimento e uso é impossível sem a educação. Portanto a educação é
tão ou mais fundamental para a prática da cidadania quanto já mostrou ser o caminho mais
eficaz para os problemas demográficos.
Precisamos de um conceito operacional de dignidade humana para a negociação de
consensos relativos a oportunidades sociais concretas para as pessoas. Isto nos obriga a
situar-nos na perspectiva das capacitações para exercer atividades e ampliar experiências
que tenham sentido, ao mesmo tempo, de realização pessoal e de relevância social.
Formulado dessa maneira, trata-se de um princípio ainda muito abstrato e genérico. Mas
talvez se trate de um tipo de linguagens inovadoras, que nos ajudem a baixar do plano
sumamente abstrato e genérico ao qual nos acostumou o discurso sobre os direitos
humanos, a cidadania (no discurso brasileiro, não tanto no anglo-saxão) e os princípios
universalistas acerca da dignidade humana.
Não se trata de aderir, sem mais, à posição neo-pragmática de Richard Rorty, que
nos recomenda desistir totalmente de princípios universalistas e tomar, como ponto de
partida, as limitadas sensibilidades solidárias efetivamente existentes como, por ex., o
relativo progresso da sensibilidade liberal para sentir repulsa diante de crueldades
explícitas e um certo nojo de ver cenas explícitas de tortura e miséria extrema. É bom
lembrar que tais sentimentos são relativamente recentes na história da sensibilidade
coletiva. Assistir a espetáculos públicos de eliminação recíproca foi esporte apaixonado
por séculos (gladiadores, duelos, execuções públicas, etc.). A excitação com cenas
explícitas de violência e sadismo, bem como o atiçamento agudo do imaginário catastrófico
e apocalíptico ocupam, sabidamente, um lugar nada secundário na produção
cinematográfica contemporânea. Com demasiada facilidade embarcamos em especulações
abstratas acerca da suposta evidência de princípios universalistas sobre a dignidade
humana. Esquecemos facilmente que, na prática, os níveis de sensibilidade solidária da
nossa espécie são lamentavelmente muito baixos no que se refere à inclusão, sem reservas e
exceções, de todos os seres humanos num patamar minimamente acima do vilipêndio direto
da corporeidade viva das pessoas.
86
A intenção dos filósofos neo-pragmáticos, ao estilo de Rorty, certamente não é
restringir os propósitos de expansão universalizante da diginificação de um número cada
vez maior de seres humanos. Eles nos propõem simplesmente que partamos de uma visão
realista das sensibilidades sociais disponíveis. De que adianta manifestar a nossa
indignação diante dos acontecimentos terríveis de exclusão social, se não formos capazes
de situar as nossas linguagens em contextos concretos de negociação de consensos mínimos
acerca de passos factíveis para reverter essa situação. Sem isso, o discurso meramente
denunciatório pode tornar-se politicamente estéril e servir, sobretudo, para catarses da
conciência indignada, que já nem se dá conta de que encontrou um jeito de embutir a sua
impotência no próprio tom vociferante de suas linguagens.
A reflexão acerca das limitadas possibilidades de fundamentar argumentativamente
- isto é, para efeito da ação comunicativa negociadora - deve ser alentada e potencializada a
partir do referencial plural dos acatamentos efetivos de valores solidários, que possam ser
articulados sem resistência explícitas imediatas. Cremos que existe, efetivamente, a
possibilidade de utilizar, com propósitos argumentativos, uma série de linguagens que
articulam exigências sociais básicas e já contam com aquele elemento consensual mínimo
de não poderem ser recusadas de antemão, pelo simples fato de terem adquirido uma ampla
circulação nos campos semânticos socialmente construídos em instâncias de repercussão
relativamente ampla.
Muitos ainda acreditam que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU
expressa o patamar mínimo e, portanto, um ponto de partida sólido e obrigatório para
negociações consensuais. Cremos que isto é uma perigosa ilusão, sem querer, com isso,
diminuir a importância argumentativa desse referencial. É preciso aceitar, embora não nos
agrade, o duro fato de que apenas relativamente poucos membros da nossa espécie têm um
nível de sensibilidade social tão generosamente includente. Por isso é necessário elaborar
linguagens sobre a dignidade humana que possam servir para encaminhar consensos acerca
de melhorias concretas, em situações concretas.
Como exemplo disso, nos parece relevante a linguagem de Amartya Sen acerca da
pobreza, entendida como privação de capacidades, e acerca da liberdade como um conjunto
de oportunidades sociais concretas.
Há bons motivos para julgar a vantagem individual em função das capacidades que
uma pessoa possui, ou seja das liberdades substantivas para levar o tipo de vida
que ela tem razão para valorizar. Nessa perspectiva, a pobreza deve ser vista como
uma privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de
renda, que é o critério tradicional de identificação da pobreza. A perspectiva da
pobreza como privação de capacidades não envolve nenhuma negação da idéia
sensata de que a renda baixa é claramente uma das causas principais da pobreza,
pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da privação de capacidades de
uma pessoa.
Uma renda inadequada é, com efeito, uma forte condição predisponente de uma
vida pobre. Já que isso é aceito, então por que tanta preocupação com ver a
pobreza desde a perspectiva da capacidade( em vez de pela clássica avaliação da
pobreza com base na renda)? 82
82
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 109. (O autor
recebeu o Prêmio Nobel em Economia).
87
Precisamos de uma linguagem sobre a dignidade humana que contenha elementos
diretamente perceptíveis pela sensibilidade social, com a qual se possa contar, até certo
ponto, como fruto de experiências humanas feitas pessoalmente pelas pessoas envolvidas
no diálogo. É preciso testar, em cada caso, quais são as linguagens mais apropriadas para
falar
do potencial de uma pessoa para ser mais produtiva,
do preparo necessário para a pessoa auferir renda própria,
das facilidades sociais necessárias para organizar uma vida cotidiana minimamente feliz,
das habilidades necessárias para relacionar-se bem na vida e no trabalho,
dos riscos de ficar privado de chances para um relacionamento interpessoal gratificante,
e da necessidade de expansão desse tipo de habilidades e competências humanas básicas.
Nas novas linguagens educacionais, a que nos referimos em capítulos posteriores
deste livro, já aparecem indícios apreciáveis de que se está começando a perceber a
insuficiência operacional dos conceitos genéricos sobre dignidade humana, direitos
humanos, cidadania e solidariedade. A solidariedade só adquire sabor de experiência
personalizável quando as linguagens sobre ela trazem embutida a relação com os requisítos
de capacitação social.
As novas linguagens pedagógicas sobre a competência humana, a competência
social e similares representam, neste sentido, um deslocamento da semântica abstrata para
as situações humanas verificáveis. É nesse plano que o papel da educação adquire uma
relevância direta para a dignificação humana das pessoas e dos contextos sociais. Ninguém
se ilude achando que ela sozinha dará conta dessa tarefa de solidarização da sociedade. Mas
ninguém pode duvidar de que ela representa uma condição fundante para isso.
O limite do intolerável, a ser definido em normas de convivência democraticamente
construídas, não existe apenas em relação àquela exclusão que se concretiza na privação de
oportunidades para a afirmação da vida. O limite do intolerável também se aplica à falta de
inventividade e aproveitamento de oportunidades existentes ou viáveis. Nenhuma sociedade
humana pode funcionar na base de paternalismos e assistencialismos. Adam Smith tinha
razão ao afirmar que a economia não pode ser pensada a partir da mentalidade de
mendigos. No Brasil, não chegaremos nunca a uma sociedade onde caibam todos se muitos
continuarem confundindo a dignidade humana com privilégios corporativistas e os mais
diversos tipos de interesses criados e institucionalizados
Encerremos este capítulo sobre a dignidade humana com uma alusão rápida àquela
que nos parece ser a referência decisiva para a questão da solidariedade, a saber: a
corporeidade viva. É tristemente sintomático que esse tema provoque imediatamente, em
alguns, a suspeita de recaída no individualismo ou de adesão a uma concepção egoísta da
subjetividade. O tema da corporeidade está fortemente ligado à solidariedade, e isso por
duas razões:
primeiro, porque salta como tema necessário a partir de uma visão unificada das necessidades e dos desejos na vida humana (assunto no qual os “socialismos reais” se
equivocaram seriamente, enquanto o capitalismo enraizava nele os seus fetiches);
88
segundo, porque não é possível levar muito longe uma dicussão ético-política sobre a
base de absolutos (metafísicos ou religiosos), tidos como pressupostos prévios
indiscutíveis.
Qual é, então, a última instância dos critérios éticos no interior da história? Existe
referência mais radical para uma ética solidária do que a corporeidade viva?.É necessário
refundar e refundamentar os critérios ético-políticos a partir daquela instância interna à
história humana acerca da qual talvez ainda seja possível obter o maior número de
consensos: a dignificação da corporeidade viva.
89
Capítulo 4
SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA E PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS
A sensibilidade solidária é uma forma de conhecer o mundo que nasce do encontro
e do reconhecimento da dignidade humana dos que estão “dentro-e-fora” do sistema social;
um conhecimento marcado pela afetividade, empatia e compaixão (sentir na sua pele a dor
do/a outro/a). Por isso mesmo, é um conhecimento e uma sensibilidade que estão
comprometidos, que vivem a relação de interdependência e mútuo reconhecimento de um
modo existencial,visceral, e não somente intelectual.
Sensibilidade solidária e esperança
Quem se posiciona desta maneira diante da realidade é capaz de ver o que os
“olhos” de quem olha com os valores da cultura dominante não conseguem ver. Isto é, além
de ver as coisas que são, também deseja e vê as coisas que ainda não são, as relações
humanas e sociais que ainda não existem de fato, mas que podem vir a existir. A
solidariedade para com os/as excluídos, uma vida digna e prazerosa de todos/as e um
sentido mais humano das nossas vidas aparecem não somente como uma possibilidade, mas
essas realidades ainda não-existentes aparecem como algo que deveriam ser, porque
desejadas.
Quando desejamos o mundo assim, produzimos e passamos a viver dentro de um
horizonte de esperança e de utopia. Utopia no sentido de desejar e de “ver” um mundo, um
lugar, “topos”, que ainda não existe e que talvez nunca venha a existir, mas que dá um
sentido às ações que nascem do nosso desejo de um mundo melhor. Este horizonte de
utopia e de esperança nascem juntamente com este desejo de vivenciar a sensibilidade
solidária para além das relações pessoais, ou em um pequeno grupo, o desejo de que toda a
sociedade, toda a realidade seja invadida e “grávida” desta solidariedade mais genuína. E é
este horizonte utópico que alimenta este desejo e dá sentido a esta sensibilidade solidária.
Em outras palavras, a sensibilidade solidária suscita um desejo que articula um novo
horizonte de sentido às nossas vidas, um horizonte utópico e de esperança. E este novo
horizonte utópico dá sentido à sensibilidade solidária e realimenta o nosso desejo de um
mundo mais humano, acolhedor e solidário.
A descoberta deste novo horizonte de sentido nos faz ver que não compartilhamos
mais as esperanças e utopias apresentadas e prometidas por este mundo excludente e
insensível. Não é que passamos a ter uma utopia e esperança, como se antes não as
tivéssemos. Nenhuma sociedade é capaz de alimentar os desejos, as esperanças e, porque
não dizer, a adesão dos seus membros se não é capaz de “vender” a sua utopia e esperança.
O que acontece é que a sensibilidade solidária com os/as que foram excluídos/as do sistema
nos faz encontrar novos desejos, esperanças e utopias.
90
Solidariedade como princípio organizador da sociedade?
Antes de continuarmos a nossa reflexão, é importante lembrarmos que não estamos
tratando de algum conteúdo “objetivo” que pouco tem a ver com o sentido da nossa
existência, como por exemplo descobrir que dois mais dois é quatro. Esses temas da
sensibilidade solidária, esperança e utopia são mais do que conteúdos teóricos, tem a ver
diretamente com o sentido das nossas vidas. Poderíamos dizer que estamos tratando de
“verdades existenciais”, verdades que são importantes para o sentido das nossas vidas e
que, por isso, são difíceis de serem tratados de uma maneira “objetiva” e racional. Há um
velho ditado que diz: “futebol, política e religião, não se discute”. Não porque não houvesse
discussões sobre esses assuntos, mas porque era e ainda é muito difícil ter um debate
racional ou razoável, e, principalmente, não passional. Estamos tratando de temas que se
aproximam desse nível de paixão. Este lembrete é importante para não nos deixarmos levar
demasiadamente por paixões e polêmicas e perder assim a nossa capacidade de dialogar
com alguém ou com alguma teoria que sejam diferentes dos nossos desejos ou propostas.
Visto isto, voltemos ao nosso tema. Uma das características importantes das
experiências de sensibilidade solidária é que estas se dão no contexto de relações
interpessoais e/ou comunitárias. É claro que também nos sentimos solidários com
multidões ou com povos, mas estas experiências não são experiências interpessoais, nem
diretas, mas geralmente são relações mediadas por algum instrumento de comunicação,
como a TV, um livro ou um jornal. Quando sentimos uma indignação ética vendo
sofrimento de povos através de uma tela de TV, não estamos estabelecendo uma relação
direta com esses povos ou pessoas, mas uma relação mediada por um dispositivo de
interação virtual, tais como TV, livros, jornais ou Internet. A nossa sensibilidade solidária
com estas pessoas se dá por uma analogia com alguma experiência “real”, imediata, que
tivemos com pessoas “de carne e osso”.
Dispositivo de interação virtual (DIV) é qualquer tipo de artefato – desde moeda a
um sistema de transporte – que se converte de forma sistemática em mediador objetivo de
interações reais ou possíveis entre agentes. DIV é como um cabide no qual podem se
sustentar interações concretas. Não cumpre um papel meramente instrumental, mas pode
chegar assumir um papel constitutivo e essencial. Algumas das suas características.
Primeira, muitos DIVs não se limitam a fomentar e facilitar as interações, senão que
chegam a possibilitar a própria existência destas. Em segundo lugar, os DIV costumam
conformar as interações, fazendo-as a adotar uma forma estereotipada ou pré-determinada.
Em terceiro, os DIV tendem a despersonalizar as interações que sustentam.
Um outro aspecto que nos interessa relembrar neste momento é que o
reconhecimento do/a excluído/a como pessoa com dignidades e direitos se dá fora das
relações sistêmicas dominantes, do sistema que o/a excluiu, e também muitas vezes com
sentimento de protesto, de indignação ou de oposição em relação ao sistema social
dominante.
Como a sensibilidade solidária é uma das fontes fundamentais do novo horizonte de
esperança, que falamos acima, é muito comum vermos essas duas características como
eixos estruturadores dos horizontes utópicos ou projetos sociais de muitos grupos. Em
outras palavras, nós tendemos a projetar no nível do horizonte utópico ou no nível do
projeto de uma sociedade alternativa as características marcantes das nossas experiências e
perspectiva de sensibilidade solidária. Desta forma, tendemos a não perceber que, quando
91
se passa de um nível micro-social para o macro-social, emergem novas propriedades que
mostram que houve uma mudança qualitativa ao passar de um nível ao outro. E sabemos
que houve esta passagem ao percebermos estas novas propriedades.
Movidos por nosso desejo, projetamos as melhores qualidades da nossa experiência
solidária no nosso horizonte de sentido e a partir dele elaboramos o nosso discurso como
deve ser uma nova sociedade. E como este discurso é um discurso afetivo, carregado de
desejo e esperança, tendemos a ser extremamente otimista quanto à possibilidade de
realizarmos os nossos sonhos e projetos. Assim, raramente nos perguntamos seriamente se
esses sonhos e projetos são passíveis de serem realizados. Como diz uma canção,
preferimos acreditar que “se o poeta sonha com aquilo que vai ser real, vamos sonhar com
as coisas boas...”.
1. Sociedade justa e solidária
Quando acreditamos que os nossos desejos são prenúncios do futuro, começamos a
propor a construção de uma sociedade justa e solidária, uma sociedade sem exploração e
desigualdade, uma civilização do amor, e coisas do gênero. Este tipo de discurso
apaixonante e sedutor é muito comum entre grupos de movimentos sociais, igrejas e
grupos religiosos que preservam e valorizam a sensibilidade social.
Tomemos como um exemplo dessa tendência alguns trechos do texto-base da
Campanha da Fraternidade da Igreja Católica do ano de 1999, que teve como tema “A
fraternidade e os desempregados”.83
Como todos documentos de uma instituição tão complexa e grande como a Igreja
Católica, podemos encontrar nesse texto-base algumas posições teórico-práticas que não
necessariamente são coerentes, pois representam visões diferentes de grupos que
participaram do processo de redação. Entretanto, este fato não nega a importância social
deste documento, principalmente tendo em vista o alcance das Campanhas de Fraternidade
como um processo educativo e social. (De um modo ou outro, estes documentos são
estudados ou usados como tema de debate em quase todas as escolas, comunidades e
paróquias católicas do Brasil.)
O primeiro dos seis objetivos da Campanha da Fraternidade de 1999 é apresentado,
na introdução do documento, desta forma: ―contribuir para que a comunidade eclesial e a
sociedade se sensibilizem com a grave situação dos desempregados, conheçam as causas e
as articulações que a geram e as conseqüências que dela decorrem‖. O tema da
solidariedade com os/as desempregados/as – um dos eixos articuladores do documento – é
apresentado através da perspectiva que chamamos de “sensibilidade solidária”. E isto é
bastante compreensível, afinal a experiência e a missão religiosa tem muito a ver com a
experiência da sensibilidade solidária.
Entretanto, o documento não reduz o problema da solidariedade à dimensão da
sensibilidade, mas diz também que “é indispensável que na distribuição da renda, da
propriedade e dos bens, os mais bem aquinhoados socialmente sejam solidários com
pobres, débeis e inferiorizados, assumindo realmente um importante ônus social. E isso
deve acontecer simplesmente porque sem solidariedade não há estabilidade social, pois o
abismo entre ricos e pobres gera automaticamente conseqüências perigosas para o tecido
social. Todos somos estreitamente ligados uns aos outros e com a natureza, e todos
83
Utilizamos a versão disponível na Internet: www.cnbb.org.br
92
partilhamos do mesmo destino.” (n.134) Assim apresenta a solidariedade, ou melhor a
interdependência, também como um fato que deve ser reconhecido. Duas formas de ver a
solidariedade que analisamos antes.
A partir desse reconhecimento da interdependência e da necessidade da
sensibilidade solidária, o documento apresenta ou anuncia um novo modelo de sociedade:
uma sociedade justa e solidária e a favor do meio ambiente preservado, baseada em novos
paradigmas, onde a pessoa humana seja o centro, e vivendo a cultura da solidariedade.
O problema aparece na hora de discutir com mais detalhes como alcançar e/ou
organizar esta sociedade.
O novo modelo de sociedade, que aos poucos se vislumbra, aponta para a
partilha igualitária e solidária da produção e de renda e para a
corresponsabilidade pelo bem comum. O universo, confiado por Deus à
administração dos seres humanos, só será fonte de humanização e de
felicidade, na medida em que as pessoas trabalharem juntas e partilharem
os frutos de seu trabalho. É preciso, portanto, repartir entre todos os bens
produzidos na sociedade e não apenas entre os que produzem ou conseguem
deles se apropriar. A solidariedade se baseia no respeito à dignidade da
pessoa humana, seja ou não produtora. (n.138)
É, sem dúvida, um texto que se funda na experiência de sensibilidade solidária e
projeta para a futura sociedade os melhores desejos de um mundo harmonioso e justo. Por
isso, sedutor e motivador de lutas mais abnegadas. E como se dará isso se vivemos em uma
economia capitalista que valoriza não a harmonia, mas sim a concorrência como a mola do
progresso e do desenvolvimento? A resposta para esta questão segue o mesmo tom do
parágrafo citado acima:
Esta nova árvore só é possível a partir de projetos muito concretos do povo,
através de pequenas organizações solidárias, que vão se somando, se
articulando, construindo laços primários de fraternidade e cooperação,
dando ênfase a valores éticos e forçando o Estado e as empresas
particulares a se humanizarem. (n.137)
Aqui aparece mais claramente a lógica da projeção que falamos pouco acima. As
experiências concretas e locais, prenhes de sentido humano e de frutos concretos, servem
como a base para acreditar que a soma e a articulação desses pequenos projetos criará uma
avalanche que obrigará ao Estado e às empresas a se tornarem senão iguais, pelo menos
parecidos com essas pequenas organizações baseadas na solidariedade. O resultado final
deste movimento seria o surgimento dessa nova sociedade.
Esta crença ou desejo pressupõe algo fundamental: que não surjam diferenças
qualitativas importantes no funcionamento destas organizações e da articulação quando da
passagem de um nível local para nível mais amplo. Ou então da passagem de uma
articulação com poucas organizações para uma articulação com um número enorme de
organizações de muitos lugares diferentes, ou quando estas organizações aumentarem
muito de tamanho por causa dos seus sucessos econômicos. Pois, se emergirem novas
propriedades quando da passagem de um nível para outro, essa projeção não terá validade.
Em outras palavras, se o crescimento e o desenvolvimento das organizações e das
93
articulações sistêmicas destas não se derem de uma forma linear, sem rupturas qualitativas
no caminho, esses sonhos não serão realizados.
Além da condição do crescimento linear, o modelo proposto pressupõe que o Estado
e as empresas particulares possam se humanizar sem perder a sua funcionalidade e
identidade.
Aliás, o penúltimo texto citado já apresenta uma cláusula de possibilidade de esses
desejos se tornarem realidade: “O universo, confiado por Deus à administração dos seres
humanos, só será fonte de humanização e de felicidade, na medida em que as pessoas
trabalharem juntas e partilharem os frutos de seu trabalho.” (n.138) Isto é, a substituição
da competição pela solidariedade e cooperação no campo econômico é a condição
necessária. Se não for possível seja por motivo de impossibilidade humana ou pela falha
nossa que as pessoas trabalhem juntas de modo cooperativo e harmonioso e partilhem eqüitativamente os frutos do trabalho, essa sociedade tão sonhada e desejada não existirá.
O documento não toma em sério este ponto fundamental: a possibilidade ou não de
se substituir completamente a competição pela solidariedade na economia. Pois, se não for
possível, não está dada a condição necessária para que o universo se transforme em fonte de
humanização e felicidade. Como crê que esta nova sociedade seja possível, parte do
suposto de que a condição necessária também será cumprida. Assim, dá por assentada a
tese de que é possível substituir plenamente a competição pela solidariedade. Esta posição
teórica é muito mais fruto do desejo e da aposta (fé) do que de uma reflexão consistente que
leve a sério as condições humanas e os limites da natureza e da sociedade.
Propor a humanização de empresas privadas e Estado é, sem dúvida, algo positivo.
Mas isto não pode significar a perda do realismo necessário para toda e qualquer ação
social. E este realismo, mesmo que de forma um pouco débil, está presente na mesma seção
onde aparecem os textos mais sedutores:
Não é possível uma cultura de justiça e solidariedade sem tomar medidas
para que o desenvolvimento seja sustentável em função das futuras
gerações. (...) O desenvolvimento sustentável, (...), só é possível se houver
uma forte disciplina na exasperação do consumo, que por sua vez requer
controle quanto à excessiva produção de benesses e conseqüente hipnose do
consumidor, através da propaganda. Para isso são indispensáveis
determinações jurídicas, econômicas, políticas e sociais, num consenso
básico ético e moral sobre os direitos humanos universais (liberdade
individual, participação social, direitos econômico-sociais e culturais), o
amparo social (necessidades elementares atendidas: educação, saúde,
assistência social...) e os direitos da terra. (n. 136)
Dizer que a sociedade justa e solidária só será possível se houver uma “forte
disciplina na exasperação do consumo” significa reconhecer a necessidade de
“determinações”, ou mecanismos institucionais no campo econômico, político-jurídico e
social. Ora, aqui aparece claramente a tensão entre os bons desejos de uma sociedade
harmoniosa, justa e solidária e as necessárias institucionalizações da sociedade. Uma forte
disciplina implica em coerção moral ou legal, imposta ou assumida. E nos sonhos da nova
sociedade não está prevista essa noção de coerção. Pois estes grupos que lutam pela
94
“sociedade justa e solidária” compartilham uma das aspirações fundamentais da
modernidade, a liberdade como ausência de coerção.
Na verdade, o realismo presente nesse trecho não modificou a identificação dos
desejos de uma sociedade harmoniosa, onde a solidariedade toma o lugar da competição e
há uma distribuição justa e eqüitativa dos bens, com o projeto de uma sociedade factível. O
reconhecimento da necessidade de determinações no campo jurídico, político, econômicos
e social não levou a reconhecer os limites que a necessária institucionalização da sociedade
impõe ao nosso desejo de substituir competição e regras sociais pela solidariedade pura. Ou
seja, reconhecer que a primeira condição necessária não se realiza. Assim, o próprio texto
nos mostra que essa nova sociedade não será concretizada, pelos menos não nos termos
propostos pelo documento.
Instituições significam a possibilidade de reprodução de um grupo social e/ou da
própria sociedade. Sem institucionalização não há sobrevivência de grupos, por mais
solidários que eles sejam. Ao mesmo tempo, instituições são o que são porque produzem e
reproduzem regras, controles, hierarquias, burocracias, etc..
O desafio é manter essa tensão entre os desejos que nascem da sensibilidade
solidária e o realismo que reconhece a necessidade das institucionalizações e assim buscar
soluções efetivas e viáveis também no campo macro-social.
Essas determinações institucionais e sociais precisam estar, como aponta o texto,
ancoradas em consensos básicos éticos sobre direitos universais de todas as pessoas. Assim,
diferenciamos três níveis: o nível dos dinamismos básicos da solidariedade, como a
sensibilidade solidária e desejos; o nível dos princípios éticos; e o nível dos princípios
institucionais.
Quando vamos do nível dos sonhos e desejos generosos para níveis mais
institucionais e/ou operacionais da realidade social, somos obrigados a abandonar uma certa
ingenuidade presentes neste tipo de sonhos e a enfrentar o desafio de traduzir a
sensibilidade solidária em políticas econômicas e sociais viáveis e eficazes.
2. Economia solidária
Uma outra seção do documento da Campanha da Fraternidade de 1999, apresenta,
baseando-se em estudos do professor Paul Singer, um conceito chave no nível da
operacionalidade econômica: a economia solidária. Ao tratar o tema da solidariedade com
os/as excluídos no nível operacional, aparece uma outra proposta que é qualitativamente
diferente da proposta, apresentada acima, de uma “sociedade justa e solidária”, isto é, onde
a concorrência seja substituída totalmente pela solidariedade.
Esta proposta de economia solidária está baseada na convicção de que é possível
organizar a produção em larga escala sem ser pelo molde do grande capital. Para isso é
preciso quebrar o isolamento da pequena e microempresa – as que proporcionalmente mais
empregam trabalhadores/as – e a falta de mercado para os novos produtores autônomos.
A idéia básica é, mediante a solidariedade entre produtores autônomos de
todos os tamanhos e tipos, assegurar a cada um mercado para seus
produtos e uma variedade de economias externas, de financiamento, e ainda
a orientação técnica, legal, contábil, etc. (n.98)
95
Dadas as dificuldades, a solidariedade é a solução racional: um conjunto de
produtores autônomos se organiza para trocar seus produtos entre si, o que
dá a todos e a cada um uma maneira de escoar a produção sem ser de
imediato aniquilado pela superioridade dos que já estão estabelecidos.
(n.99)
Dois pontos importantes a serem destacados aqui. Primeiro, a solidariedade da
economia solidária não é vivida por todas empresas e grupos da sociedade, mas sim entre
os produtores autônomos, pequena e microempresas que não conseguiriam sobreviver à
concorrência das médias e grandes empresas sem essa relação de solidariedade. Portanto, é
uma proposta de viabilização de um tipo de economia convivendo com a economia
capitalista de mercado.
A relação de concorrência não seria substituída pela relação de solidariedade em
toda sociedade, mas no interior e entre empresas que dentro dessa economia solidária
adotassem a auto-gestão ou co-gestão.
Como o próprio texto-base diz, esta proposta não é uma proposta global para
superar o capitalismo, mas sim uma estratégia contra o desemprego e a exclusão social. E
“se a economia solidária se consolidar e atingir dimensões significativas, ela se tornará
competidora do grande capital em diversos mercados.” (n.102)
A cooperação e solidariedade são vividas entre estes produtores porque conferem
benefícios ao grupo e os possibilita enfrentar a concorrência com o grande capital. É uma
forma de organização solidária que lembra o que disse o biólogo Richard Alexander: os
seres humanos cooperam para competir.
É claro que alguns poderiam reinterpretar essa proposta de economia solidária no
sentido de que é uma estratégia de médio prazo rumo a uma sociedade pós-capitalista.
Assim, pareceria que não há contradição ou diferença com a primeira proposta apresentada,
isto é a da sociedade “justa e solidária”. Contudo, é preciso não esquecer que a proposta de
economia solidária que analisamos não propõe o fim do mercado, mas sim a criação e a
manutenção de um mercado para estas pequenas e microempresas auto/co-gestionárias. E a
manutenção de relações de mercado, por mais pós-capitalistas que sejam, implica na
continuidade das relações de concorrência entre agentes econômicos, sejam produtores ou
consumidores. Isto é, não haveria a sociedade plenamente harmoniosa, justa e solidária.
Por isso, os que não aceitam essa “redução” ou “adequação” dos desejos do mundo
“justo e solidário” aos limites da realidade econômico-social, isto é, os que não percebem
ou não querem aceitar a tensão inevitável entre os desejos/utopias e as necessárias
institucionalizações na sociedade, não aceitam essa visão de economia solidária. Uma visão
alternativa é conectar a economia solidária à revolução socialista, como a apresentada por
Nuñes, em um artigo publicado na home page de uma rede de ONGs e pessoas que se
autodenomia Aliança por um Mundo Responsável e Solidário
Uma economia solidária não pode ser concebida nem desenvolvida fora do
contexto de um projeto revolucionário que lhe dê sustentação. A grande diferença,
em relação às revoluções anteriores, está em que, na economia solidária, não é
preciso esperar pela tomada do poder político para que os avanços aconteçam –
96
ela mesma é parte da tomada do poder político, ela mesma é parte da revolução,
ela mesma é parte da transição e da construção do socialismo.84
Outros, como Carlos Vainer, preferem criticar de frente essa proposta de economia
solidária dizendo que esta expressão é um paradoxo em si.
O mundo da economia tal como ele existe, o mundo da sociedade onde a economia
domina é, sobretudo, na representação dos economistas, mas não apenas – sejam eles
clássicos ou neoclássicos –, o mundo natural da guerra de todos contra todos.”85
Para ele,
“a economia é o lugar da competição e da guerra. Os espaços de solidariedade são
aqueles dominados por outros fins, por outros valores e por outras práticas. [...] Não é
possível construir uma alternativa à economia, às leis da economia, nos marcos da
economia.86
Aqui temos um exemplo claro de como, não aceitando os limites que a realidade
humana e social impõem aos nossos desejos e projetos mais generosos, podemos cair em
situações sem saídas. Ao defender a solidariedade pura nas relações sociais, Vainer acaba
reduzindo a economia a um lugar de guerra, sem reconhecer ou admitir que as sociedades
humanas puderam desenvolver-se econômica e socialmente também graças ao
desenvolvimento das relações econômicas. Negar a importância e a ambigüidade da
economia e de algumas “leis” inerentes à toda e qualquer economia, em toda e qualquer
sociedade, é um tipo de negação metafísica que não nos leva a lugar nenhum. A aparência
de radicalidade na defesa da solidariedade como valor e como princípio organizador da
sociedade acaba levando a um beco sem saída.
Como ser solidários com os/as excluídos/as, como atuar no campo econômico em
defesa dos direitos e dos interesses dos/as desempregados/as se partimos do princípio de
que é impossível conjugar a solidariedade com economia? Impossibilidade a que se chega
por opor duas escolhas radicais: economia sem nenhuma relação de concorrência, somente
com pura solidariedade, ou a separação radical entre a solidariedade e economia. Uma
visão dualista, de oposição metafísica que não compreende a complexidade da vida humana
e social e acaba, em nome da solidariedade, negando os caminhos e ações concretas de
solidariedade possível.
Paul Singer, respondendo às críticas de Vainer, diz que a proposta de economia
solidária é menos inconsistente do que a economia capitalista porque ela coloca, aberta e
diretamente, a solidariedade como princípio organizador da economia social em lugar da
competição. Contudo, Singer não crê na possibilidade do fim da concorrência no campo da
economia e também nas relações sociais. Para ele, “na economia solidária a competição é
basicamente negativa, embora, em certas circunstâncias, seja inevitável [...] pelo menos no
mundo em que vivemos”. No campo social, ele cita o exemplo da universidade. Para que se
mantenha um nível mínimo de conhecimento para pesquisa, ensino e extensão é necessário
84
NUÑES, Orlando. Os caminhos da revolução e a economia solidária. Disponível na Internet, mai/00. 85
VAINER, Carlos. “O presente de um futuro possível”. Em: GUIMARÃES, Gonçalves. Sindicalismo &
Cooperativismo. A economia solidária em debate. São Paulo: Unitrabalho, s/d (2000), pp. 37-61. Citado da p.
45. 86
Idem, op.cit., p. 47.
97
que haja algum tipo de processo de seleção, o que significa competição. “O processo social
tem limites para a solidariedade. Mas os limites são muito amplos.”87
Na resposta de Singer persiste ainda o problema da solidariedade como princípio
organizador da economia social em lugar da competição. É possível organizar uma
sociedade ou uma economia social só com um princípio? Como ele reconhece que a
competição vai sobreviver mesmo no economia solidária, podemos nos perguntar se não
seria melhor pensar em mais de um princípio organizador da economia e da sociedade.
Retomaremos este assunto mais para frente.
Reconhecidos os limites para solidariedade, voltemos ao desejo de expandir esta
economia solidária ao nível global. Aqui surge novamente a pergunta: se a economia
solidária conseguir atingir dimensões tais que possa competir com o grande capital
continuará mantendo as características de solidariedade que é possível quando se está em
uma escala pequena? Não é possível dar uma resposta definitiva a esta questão, pois esta
situação nunca aconteceu. Teoricamente podemos antecipar que dificilmente a economia
solidária em grande escala manterá as mesmas características. A razão é simples: quando
um sistema, ou uma rede, cresce muito em escala surgem novas propriedades no sistema
que modificam a suas características de funcionamento.
Mas, para vermos melhor esta questão, vejamos mais uma proposta semelhante a
estas que temos discutido.
3. Rede de colaboração solidária
Euclides André Mance apresenta no seu livro A revolução das redes o que ele
entende como “uma alternativa viável e concreta para os excluídos e marginalizados pelo
movimento de globalização econômica”, que se efetivado de modo amplo e mundial, “tende
a construir uma sociedade alternativa ao capitalismo”88
. O título dá uma idéia da sua
perspectiva teórica, e o subtítulo, A colaboração solidária como uma alternativa pós-
capitalista à globalização atual, o seu objetivo.
Como deixa subentender no título, o autor aplica as novas teorias da complexidade
na análise e na projeção das possibilidades das redes de colaboração solidária. Por isso, ele
diz que “um princípio básico dessa noção de rede é que ela funciona como um sistema
aberto que se auto-reproduz, isto é, como um sistema autopoiético”.89
Entretanto, parece
que o autor reduz esta característica de autopoiese somente à rede de solidariedade e não
reconhece no sistema capitalista esta possibilidade ou característica sistêmica. Por exemplo,
ele diz:
O capital, [...], ao gerar cada vez mais excluídos e ao desenvolver
continuamente as forças produtivas, atua em direção de sua própria
dissolução ao ir eliminando progressivamente a relação ‗capital-trabalho-
assalariado‘ como modo dominante da produção social, criando as bases e
a necessidade de expansão e desenvolvimento das redes de colaboração
87
SINGER, Paul. “Desafio à solidariedade”. Em: ”. Em: GUIMARÃES, Gonçalves. op. cit. pp. 63-76. Citado
da p. 69.
88 Mance, Euclides André. A revolução das redes. A colaboração solidária como uma alternativa pós-
capitalista à globalização atual. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 13. 89
Idem, op.cit., p. 24.
98
solidária como único modo de os excluídos poderem gerar e usufruir da
riqueza produzida com vista a assegurar o bem viver pessoal e coletivo.90
Esta análise ou predição sobre o futuro do capitalismo tem muito pouco a ver com o
conceito de autopoiese ou com outros da teoria da complexidade que ele utiliza ao falar das
redes de colaboração solidária. Parece que o autor ainda mantém as idéias centrais do
marxismo sobre o fim inevitável do capitalismo, resultado de um desenvolvimento quase
linear, e a existência de um único caminho necessário para a sua superação e para a
emancipação dos/as excluídos/as ou dos/as trabalhadores/as. É como se o capitalismo não
funcionasse também como um sistema aberto com processos autopoiéticos.
Há mais de cinqüenta nos Schumpeter mostrou que o capitalismo é um sistema
que incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro,
incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse
processo de Destruição Criativa é o fato essencial acerca do capitalismo.91
A expressão “destruição criativa” mostra bem o caráter auto-organizativo do sistema
capitalista e a emergência da ordem a partir e nos limites do caos. O que significa dizer que
a dissolução de determinadas relações econômico-sociais ou o aumento do “caos social”
nas sociedades capitalistas não podem ser tomadas como sinais do seu fim.
Além disso, quando um sistema econômico entra em sua fase de “alta
instabilidade”, com possibilidades (isto é, não necessariamente) de ser substituída por um
outro, não surge um único caminho necessário. Sempre há mais de uma possibilidade.
Teóricos como I. Wallenstein ou E. Laszlo utilizam o conceito de “bifurcação” na tentativa
de superar esta visão determinista da história e da própria evolução da natureza.
Talvez Mance tenha sido traído por seu desejo de ver o fim do capitalismo e, assim,
apresentado uma análise que pouco tem a ver com a perspectiva teórica adotada no livro,
mas que condiz mais com o seu desejo e expectativa da implantação de um novo sistema
social em escala global.
Ele afirma que a organização de redes de colaboração solidária, valendo-se dos
recursos produzidos no capitalismo, tende a construir uma sociedade alternativa em nível
global. E que
para a viabilização dessa meta somente uma condição é necessária e nada
mais, a saber, que todos os que aderirem ao projeto de uma nova ordem
mundial centrada na promoção das liberdades públicas e privadas
pratiquem o consumo solidário, isto é, que em todas as suas atividades de
consumo dêem preferência a produtos que tenham sido produzidos pelas
redes de colaboração solidária, mesmo que estes produtos custem um pouco
mais caro que os produtos elaborados sob a rede capitalista, embora, em
geral, venham a ser mais baratos, uma vez que na colaboração solidária
inexiste a figura do acúmulo privado de lucro. (...) [com o consumo
solidário] colaboramos para eliminação de toda forma de exploração dos
90
Idem, op.cit., p. 35. 91
SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1984, p.113.
99
seres humanos e para a construção de uma nova sociedade colaborativa e
solidária.92
O consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita
não apensas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o
bem-viver coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando
as pessoas compreendem que a produção encontra a sua finalidade – ou o
seu acabamento – no consumo e que ele tem impacto sobre todo o
ecossistema e sobre a sociedade em geral.93
Esta longa citação merece ser analisada com mais vagar, pois levanta um série de
importantes questões.
A primeira questão é a apresentação de uma única condição para se atingir uma
meta tão grandiosa – se é que é possível – de uma nova sociedade sem exploração dos seres
humanos. Além desta confusão entre o horizonte de desejo, de uma sociedade sem
exploração, com um projeto social concreto, o autor insiste em um dos mais graves erros da
modernidade, que foi e continua sendo a obsessão, estreita e simplista, por um único
caminho e um único princípio de organização social. O liberalismo e o neoliberalismo com
mais intensidade propõem o mercado, enquanto que o marxismo propunha a planificação
centralizada pelo Estado.
Mance não propõe a planificação como o princípio organizador da sociedade, mas
não supera a idéia de um único princípio organizador e propõe a solidariedade, ou o
consumo solidário. É importante recordarmos aqui que uma das características do
pensamento complexo é a superação dessa busca de um único princípio ou de uma única
causa dos problemas e das soluções. A realidade é mais complexa do que essas reduções.
Devemos trabalhar com uma pluralidade simultânea de diversos princípios organizativos da
sociedade.
Não há dúvida de que a idéia de uma única causa principal para os nossos
problemas e um único princípio ou caminho para a solução destes é bastante atraente, na
medida em que simplifica o nosso desafio e nos dá uma certeza que nos motiva para a luta.
Contudo, estas “vantagens” da simplificação são ilusórias e, o mais importante, não são
eficazes e nem geram resultados desejados.
A segunda questão se refere à prática concreta do consumo solidário. O autor
propõe que as pessoas e grupos solidários dêem preferência a produtos que tenham sido
produzidos pelas redes de colaboração solidária. Aliás, já existe na Europa redes de lojas
que comercializam esse tipos de produtos para pessoas que querem fazer do seu ato de
consumir um gesto concreto de solidariedade com os/as excluídos/as dos países do Terceiro
Mundo.
Se o autor estiver correto e se aos poucos essas redes substituírem a rede capitalista,
enfrentaremos um novo problema. Como escolher entre dois ou mais produtos similares da
rede solidária? Este dilema não ocorreria se houvesse uma planificação perfeita em nível
mundial que evitasse a duplicação de ofertas de mesmo tipo de produtos em mesmas
localidades. Mas, o problema é que este planejamento é impossível, pois implica em lidar
com bilhões de fatores que estão se modificando a cada instante em todas as partes do
mundo. Assim sendo, na medida em que a redes solidária fosse aumentando a sua presença
92
MANCE, E. A., op.cit., p. 13. 93
Idem, op.cit, p.29.
100
no campo econômico, os consumidores teriam que escolher entre produtos similares dessa
mesma rede. E isto aconteceria antes mesmo que a rede solidária desbancasse a rede
capitalista.
Quando a presença da rede solidária no mercado é pequena, o consumidor solidário
tem um critério claro na sua escolha entre um ou mais produtos da rede capitalista e um da
rede solidária. O critério é a solidariedade e por isso escolhe o segundo. Mas, quando o
consumidor tiver que escolher entre dois ou mais produtos similares da rede solidária, esse
critério não funcionará mais. O que obrigará ao consumidor ou aos defensores dessa
proposta elaborar um novo critério. É óbvio que o critério não pode ser meramente
econômico (como o preço, a relação entre o custo e o benefício), nem meramente a
qualidade do produto, pois assim estariam seguindo as leis da concorrência do mercado.
Existe um critério fundamental para o consumo solidário?
Aparentemente, Mance responde esta questão com a definição que ele dá sobre o
consumo solidário, a parte final da citação acima. Para facilitar o/a leitor/a, citemos
novamente:
O consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita não
apensas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o bem-viver
coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando as pessoas
compreendem que a produção encontra a sua finalidade – ou o seu acabamento –
no consumo e que ele tem impacto sobre todo o ecossistema e sobre a sociedade em
geral.
O problema se repete. Esta definição é útil quando a rede solidária é pequena, mas
não para a nossa questão que surge quando ela já é grande. Por exemplo, quando o
consumidor tem à sua frente duas opções claras, como por exemplo, uma bolsa feita com a
pele de crocodilo e uma outra feita com juta por trabalhadoras da área rural de um país
subdesenvolvido, a escolha por consumo solidário é feita sem maiores problemas. Mas,
quando o consumidor se vê diante de duas bolsas de juta, ou diante de outros produtos dos
quais não conhece os impactos sobre o meio ambiente e sobre a sociedade, como escolher?
A proposta de Mance pressupõe um conhecimento a respeito de cada produto –
desde quem os produziu, a forma como foi feita, o material utilizado e os impactos da
produção e consumo desses produtos no meio ambiente e na sociedade – que é impossível
ter. Isto exigiria um nível de conhecimento que nem os melhores centros de ciência
possuem e nem poderão possuir, por causa da complexidade da realidade e por causa do
número gigantesco de fatores envolvidos. Nem falar dos/as consumidores/as comuns.
Na impossibilidade desse conhecimento, a escolha entre produtos similares da rede
solidária se dará, provavelmente, por critérios de qualidade e preço. Critérios que fazem
parte hoje da concorrência de mercado.
Isto nos leva ao problema da concorrência entre “células produtivas” que fazem
parte desta rede solidária. Mance critica a tese de Paul Singer de que a competição entre
empresas que participam na economia solidária é imprescindível para que haja estímulo
para melhorar a qualidade e baixar os custos. Para Mance o conceito de competitividade,
que pressupõe competição, concorrência, deve ser suplantado pelo conceito de
solidariedade. Além disso, para ele,
101
o que qualificará a produção não é a competição entre as unidades laborais, posto
que é o fluxo de valores entre elas o que permite a expansão da rede, mas a
avaliação pública dos consumidores que têm autonomia, inclusive, para propor
mudanças sobre os produtos e serviços ofertados na rede.94
Para ele, a melhoria da qualidade dos produtos virá com a pressão exercida pelos
consumidores e não pela competição entre os produtores.
O que se pressupõe quando se diz que a qualidade de produtos deverá ser melhorada
somente pela pressão dos/as consumidores/as? Primeiro, que todos/as os/as
consumidores/as deverão ter acesso aos produtores. O que não é muito fácil em uma
economia globalizada, quando muitos dos produtos ou das matérias primas ou partes dos
produtos não são produzidos no mesmo local do consumo. Mesmo que não pensemos na
economia global, em um país do tamanho do Brasil essa conexão não é viável na maioria
dos produtos.
Mesmo que esta conexão fosse possível em todos ou na maioria dos produtos, como
os/as consumidores/as poderiam exercer essa pressão? Sem levar em consideração que o
conjunto de consumidores/as de um determinado produto não forma uma unidade
homogênea, temos de ver os mecanismos concretos da pressão. Uma pressão social só é
uma pressão real se o grupo que pressiona tem alguma forma de sancionar aquele que é
pressionado se não atendido nas suas reivindicações. No caso dos movimentos sociais e
políticos, uma das formas de sanção é negar votos aos políticos que não atendem a pressão
popular. E no caso da pressão dos/as consumidores/as?
A arma fundamental de pressão dos/as consumidores é mudar de produto, ou do
produtor. Uma célula produtora só levará a sério a pressão ou reclamo dos/as
consumidores/as se tiver receio de perder uma parte das suas vendas. Se as suas vendas e os
seus postos de trabalhos estiverem garantidos por algum mecanismo extra relação
vendedor-comprador, não terá motivo para ceder às pressões que significarão mais
trabalho. Em suma, a pressão dos/as consumidores/as só será eficaz se estes/as tiverem a
possibilidade de comprar produtos de uma outra célula que atenda os seus reclamos. Isto é,
a melhoria dos produtos e serviços só ocorrerá por causa da concorrência entre os
produtores.
Esta é uma das razões porque a palavra competitividade, que deriva da competência,
possui dois sentidos: um que indica a boa qualidade do produto ou da empresa,
competência; e outro que vai na direção da competição, concorrência. Em espanhol a
palavra “competencia” significa ao mesmo tempo a ação de competir e a qualidade de
competente. Em resumo, a proposta de uma rede de colaboração solidária é importante
para viabilizar muitas das atividades econômicas fundamentais para a sobrevivência de
tantas pessoas que vivem condições econômicas precárias, mas não podemos simplesmente
projetar esta proposta ao nível global. Solidariedade é e deve ser um componente
importante nas relações econômicas e sociais, mas não pode ser transformada no único
princípio organizador.
A solidariedade e competição são dois elementos indispensáveis na convivência, na
manutenção e na reprodução da vida social. Os neoliberais pretendem fazer da competição
o único princípio organizador da sociedade. Os marxistas tentaram fazer do planejamento
centralizado o único princípio. Hoje surgem muitos grupos que parecem querer fazer do
94
Idem, op.cit., p. 173.
102
conceito de solidariedade o único princípio organizador. O problema fundamental não está
na disputa pela escolha por um destes princípios, mas no pressuposto de que há ou deverá
haver um único princípio organizador e na antropologia subjacente a estas defesas.
Princípios de organização social
Uma consideração a ser feita sobre a solidariedade e o problema da organização
social é a seguinte: os princípios de organização social de uma sociedade deveriam servir
para articular, de maneira eficiente e sustentável, a garantia da produção e distribuição de
bens e serviços para a ampla maioria e, tendencialmente, a totalidade dos membros da
referida sociedade. Este enunciado aparentemente tão óbvio contém toda uma gama de
pressupostos entre os quais convém explicitar ao menos três.
Em primeiro lugar, a insistência no plural princípios, que pretende sinalizar a
suspeita, já assinalada antes, de que um dos erros mais graves da modernidade foi e
continua sendo a obsessão, estreita e simplista, por um único princípio de organização
social predominante sobre quaisquer outros, que porventura pudessem coexistir
perfeitamente com ele. Por exemplo, ou mercado, ou planificação; ou livre iniciativa e
aguerrida competitividade, ou o predomínio de políticas públicas. Os princípios de
organização social provavelmente nunca foram redutíveis a um único princípio. Mesmo nas
formas de organização social de pequenas ou médias proporções (tribal, comunitária, e
praticamente todas as formas de organização social anteriores ao Estado-nação) geralmente
houve a presença simultânea de vários princípios organizativos, ou seja, de várias formas
de relacionamento e de poder.
Só em alguns escassos países europeus logrou-se, a nível nacional, superar essa
obsessão por um único princípio e se chegou a uma coexistência frutífera da dinâmica do
mercado com políticas públicas de acentuado cunho socializante. Mas o modelo neo-
liberal, cuja crise previsível já se tornou evidente (a discreta crise já visível do
neoliberalismo não significa, como gostariam alguns, a crise do capitalismo), quis forçar a
barra em direção a um retorno radical a um único princípio organizativo predominante,
especialmente na economia, mas tendencialmente omnívoro em relação a todos os aspectos
da sociedade. O tema solidariedade - e seus conexos - nos recoloca a questão de uma
conveniente pluralidade simultânea de diversos princípios organizativos da socialidade
humana, especialmente em sociedades amplas, complexas e crescentemente urbanizadas.
Em segundo lugar, a consideração inicial, feita acima, insinua a impossibilidade e
crescente inconveniência de querer enquadrar o conjunto das múltiplas atividades humanas
em funções economicamente produtivas. No momento em que os avanços tecnológicos e o
aumento exponencial da produtividade do trabalho humano permitem antever que, no
futuro, um número cada vez menor de agentes produtivos dará conta da produção dos bens
materiais, tornou-se imperiosa uma transformação do próprio conceito de produção
socialmente relevante. Não se trata apenas de incluir prontamente nesse conceito a incrível
expansão e diversificação de bens e serviços socialmente demandados. Trata-se de acolher
nesse conceito muitas atividades até há pouco consideradas não-produtivas e de intensificar
o apreço coletivo à constante inovação em novas formas criativas relacionadas com a
acolhida, o reconhecimento mútuo, a convivialidade, a conectividade da sociedade da
informação, a aprendizagem multirreferencial transformada em forma de prazer, o lúdico, o
incentivo artístico e a dinamização da cultura e dos relacionamentos humanos em geral.
103
Em terceiro lugar, a maneira como ficou formulada a consideração inicial alertava
para um pressuposto desagradável, mas antropologicamente realista, a saber: o passado
histórico da espécie humana sugere certa cautela quanto à pretensão de estabelecer
princípios organizativos de conjuntos sociais relativamente amplos, nos quais não fique
ninguém de fora do atendimento básico de suas necessidades mais elementares. De fato não
parece ter havido jamais nenhuma organização social humana sem alguma forma de
discriminação ou exclusão social. De modo que parece recomendável ater-se a princípios
organizativos da sociedade que impliquem tendências decrescentes de discriminação e
exclusão social. Na situação socialmente desvairada do mundo de hoje de fato não se
vislumbra nenhuma convergência rápida de políticas decisórias que prometam uma
universalização do ideal da solidariedade humana, entendido como igualdade de
oportunidades satisfatórias de felicidade para todos os seres humanos.
Supondo-se que haja acordo mínimo acerca do enunciado inicial, e alguma atenção
às ponderações adicionais, podemos começar a perguntar-nos quais são as palavras e/ou
conceitos que melhor se prestam para nomear esses princípios de organização social. Como
já ficou dito acima, de fato predominou e ainda predomina a busca de uma resposta no
singular, ou seja, a de um princípio organizativo absolutamente básico e determinante. A
forma de governo foi o princípio predominante, mas nunca suficiente, para ampliar a
produtividade e o acesso aos bens e serviços até depois do final da Idade Média. A
solidariedade, entendida como solução básica para a universalização desses bens e serviços
jamais aconteceu sob qualquer regime político, embora houvesse variações umas mais
outras menos propícias a tal objetivo, aliás poucas vezes explícito. O que marca a origem
da Modernidade é precisamente a aspiração a metas sociais universalizáveis.
Praticamente até Hobbes e Maquiavel, a resposta no singular se referia ao “bom
governo”, ou seja, a solução se daria pelo caminho do poder político. Sucede então, aos
poucos, uma grande despedida – até hoje inconclusa – do sonho da solução por vias de
exercício do poder político. Com o surgimento do projeto inovador de uma solução
prevalentemente econômica – a produção suficiente de “riqueza das nações” para dar conta
das demandas/necessidades básicas de todos – a modernidade emergente se bifurca em duas
grandes vertentes: a vertente política e filosófica (ilustração, iluminismo), que voltará sua
insistência à universalização dos direitos civis e dos direitos humanos; e a vertente
econômica, buscando um matrimônio nunca indissolúvel entre mercado e democracia
(liberalismo econômico e liberalismo político).
Vale a pena insistir: desde os clássicos da economia burguesa, a resposta desviou-se
da preferência pela solução política em direção a uma saída primordialmente econômica, a
saber, a opção preferencial por mecanismos de mercado que, supostamente, emergeriam de
forma espontânea do respeito à propriedade e aos contratos. Esta proposta supõe a adoção
de uma nova e singular visão do ser humano no convício social dentro de sociedades
amplas e complexas. Os seres humanos como feixes de “paixões e interesses”, que se
regem socialmente por interesse próprio, iniciativa, industriosidade e criatividade – de
acordo ao conceito liberal de liberdade.
Portanto, uma visão antropológica que os economistas clássicos se imaginaram ser a
mais adequada a um novo contexto social, o das sociedades amplas e complexas (a “grande
transformação”, segundo Karl Polanyi). Adam Smith foi muito explícito num ponto: não se
pode conceber o funcionamento econômico de uma sociedade ampla com a mentalidade de
mendigos, que imaginam a sua sobrevivência a partir da benevolência alheia. É bom não
deixar de frisar que, aos menos nas promessas dos clássicos, o mercado tenderia à
104
universalização, ou seja, seria um novo caminho original para a criação efetiva do bem
comum. Até Marx reconhece que este sonho era explícito nos “pais fundadores” da
economia burguesa. Após duras penas, algum dia o mercado alcançaria espontaneamente a
meta do bem comum. Se não se lembra deste antigo sonho da economia burguesa, torna-se
mais difícil entender o fervor do credo neo-liberal das décadas finais do século XX.
Como é sabido, em meados do século XIX, com desdobramentos até a penúltima
década do século XX, sonhou-se com uma outra solução, a das economias planificadas por
um poder político centralizado. A saída socialista mataria de um vez a charada de dupla
cara, a econômica e a política. Só que para isso precisava de uma visão do ser humano
muito diferente daquela proposta pela economia burguesa. Agora os seres humanos deviam
ser vistos como tendencialmente generosos, naturalmente abertos a sacrifícios, entregas e
dedicações quase espontâneas, bastando para isso uns piparotes de formação da consciência
política. Simplificando um pouco as coisas, o espontaneismo auto-organizativo dos
mecanismos do mercado, pregado pela economia liberal, seria substituído por outro
processo auto-organizativo, igualmente quase espontâneo, mas dessa vez apoiado na
capacidade de adesão espontânea e consciente das massas. Estava inventada uma outra
auto-organização, a da consciência histórica coletiva.
Não por já terem ambos passado efetivamente à história, a primeira (a do “bom
governo”) e a terceira (a “socialista”) deixaram de ressoar nos debates acerca da
universalização do acesso aos bens e serviços requeridos pela “produção e reprodução
social da vida” (para usar terminologia marxista). Um ponto chave, que precisa ser
retomado em cada nova situação sócio-histórica, é a da concepção do ser humano. E essa
questão não se resolve no plano puramente abstrato. É preciso ter em contar os campos de
sentido no qual os seres humanos constróem a sua auto-percepção.
A lição mais profunda da deblacle dos socialismo – que se deu primordialmente
desde o interior, por erosão interna, e não por imposição ou intromissão de poderes
externos – seria a de que cometeram um equívoco quanto à assim chamada “natureza
humana” (afirmação na qual coincidem explicitamente o Papa João Paulo II e Zbigniew
Brezezinski). Em outras palavras, haveria um erro antropológico na proposta marxista: os
seres humanos não se preocupam apenas com suas necessidades, mas também – e
muitíssimo – com seus desejos. E é muito difícil fazer que necessidades e desejos
coincidam no imaginário coletivo, e até no individual. Foi nesse ponto que os “socialismos”
se equivocaram, porque não é fácil negar que houve ingentes esforços no atendimento
primordial das necessidades materiais elementares de toda a população, prometendo não
dar margem a discriminações de qualquer índole. Nem a metástase escandalosa da
“Nomenklatura” privilegista, nem mesmo os “gulags” hediondos anulam a presença de
certas formas institucionais surpreendentemente solidárias nos defuntos “socialismos”.
Contudo, no que se refere ao atendimento mínimo das necessidades mais
elementares da maioria da população, a atual situação da maioria dos países do Leste
europeu, tomados por um vandalismo anarco-capitalista, nos indica que o fracasso dos
“socialismos reais” não existiu, ou, pelo menos, devemos minimizar este conceito de
fracasso.
A globalização do mercado, com o comando de ponta do capital financeiro, recoloca
a temática da universalização do acesso aos bens e serviços elementares para todos os seres
humanos dentro de um quadro inédito e de dramaticidade extrema. O mercado se apresenta
como a única via institucional básica para a ampliação do referido acesso universal. Ao
mesmo tempo, ele aparece como o obstáculo maior para a criação desse acesso. De modo
105
que nos confrontamos com dois conceitos contrapostos de solidariedade prioritária: a
suposta solidariedade básica das formas institucionais geradoras da ampliação da riqueza e
do crescimento econômico, ou seja, a que se articula a partir de critérios de defesa do
mercado, enquanto solução universalizante; e, por outro lado, a solidariedade cujos critérios
básicos se articulam a partir da atenção prioritária aos que não cabem no mercado assim
como ele funciona.
Sensibilidade solidária e complexidade social
A opção por este segundo conceito de solidariedade não pode, contudo, nos levar a
repetir equívocos do passado. Em primeiro lugar, devemos evitar a tentação de retornar,
pura e simplesmente ao antigo sonho de uma solução para os problemas sociais através do
bom governo, capaz de supervisionar e direcionar todas as atividades da sociedade (esse
sonho recebeu um golpe definitivo com o colapso dos socialismos "reais"); ou a tentação de
atribuir o vigor de princípio organizativo da sociedade a uma suposta predisposição
generosa dos seres humanos para se entusiasmarem pelo bem comum ao ponto de o
transformaram, quase espontaneamente, em objetivo constante de suas ações.
Note-se que estamos falando da organização do todo social em sociedades amplas e
complexas. Ninguém pretende negar que, em comunidades relativamente pequenas e
culturalmente bastante isoladas, um conjunto de regras comunitárias tenha sido suficiente
para instigar a iniciativa e manter a coesão social. A concepção do ser humano como
membro de uma comunidade não pode ser estendida, sem mais, à sociedade ampla e
complexa. Por isso também a exigência de determinados princípios organizativos para o
funcionamento do todo social é profundamente diferente nos dois casos, ou seja, para os
contextos comunitários e para sociedades modernas.
Em segundo lugar, devemos reconhecer os limites da nossa condição humana e
social. Isto é, devemos renunciar a idéia ou projeto de soluções definitivas. Sociedades
“harmônicas, justas e solidárias”, ou sociedades sem exploração do ser humano, são
horizontes utópicos que nos motivam a lutar e a caminhar, mas devemos reconhecer que,
como todos horizontes, são impossíveis de serem atingidos. É de João Guimarães Rosa a
bela frase: "Nada devora mais que os horizontes". "Devorar" nos dois sentidos de atrair e
engolir. Os horizontes puxam e atraem, e nisso são necessários, Mas também podem ser um
sorvedouro de vidas, como se viu na Nicarágua. Não estamos propondo a renúncia dos
desejos que geram esses horizontes, mas o reconhecimento de que esses horizontes, como
todo e qualquer horizonte de perfeição ou de soluções definitivas são irrealizáveis em
plenitude na história humana.
O problema destes desejos não reside somente na impossibilidade da sua realização.
Quando pessoas e grupos sociais buscam metas impossíveis, não somente não realizam os
seus objetivos, mas – o mais importante – não realizam metas possíveis, não valorizam
ações e projetos solidários possíveis e eficazes, pois estes comparados com os seus sonhos
de perfeição definitiva parecem demasiadamente insignificantes. Muitas vezes, nesta
obsessão por “solidariedade perfeita” acabam se tornando pessoas amargas e agressivas,
que só sabem criticar propostas factíveis de outras pessoas ou grupos.
Ações que se resumem em criticar e denunciar, sem nenhuma ação ou proposta
positiva dentro das possibilidades existentes, não passam de “pseudo-profetismo
apocalíptico” que mais paralisa do que mobiliza a sociedade para um caminho menos
excludente e insensível.
106
Quando se busca a “solidariedade perfeita”, ou “soluções definitivas”, impõe-se
sobre pessoas e grupos sociais um fardo pesado demais para carregar. Sacrificam-se vidas
de pessoas em nome do fim de sacrifícios de vidas humanas. Os “efeitos colaterais” desta
busca de “construir a utopia” são demasiadamente dolorosos. Como também é dolorosa a
vida das pessoas que se entregam à lógica insensível da sociedade atual e não conseguem
nem sonhar ou desejar um mundo diferente do que conhecemos hoje.
Para não cairmos nessa postura imobilizante, é fundamental distinguirmos teórica e
existencialmente o desejo que nasce da sensibilidade solidária dos princípios organizativos
e as instituições necessárias no nível da sociedade. Este é o terceiro ponto. Entre o desejo
do novo que nasce da sensibilidade solidária e a institucionalização da solidariedade na
sociedade existe uma relação complexa e contraditória.
Sem a institucionalização, a sensibilidade solidária não se torna real e operacional
no âmbito social. Necessitamos de mecanismos institucionais que encarnem o espírito de
solidariedade como coesão social e que gere normalmente, de modo auto-organizado, a
produção e a distribuição do suficiente para todos/as da sociedade. A sensibilidade solidária
precisa ser transformadas em normais sociais e mecanismos institucionais automatizados
para que funcione em sociedade ampla e complexa.
Entretanto, a institucionalização da solidariedade mata um pouco da sensibilidade
solidária, pois a solidariedade é realizada de modo institucional, isto é, com regras baseadas
em mecanismos ao mesmo tempo auto-organizativo e burocrático. Mas não há outro jeito.
Para entendermos um pouco melhor esse paradoxo, tomemos como exemplo para
análise um caso de aparente contradição que está no Antigo Testamento. Há um consenso
entre os estudiosos do tema que o Decálogo representou um avanço na consciência social
da época. Num contexto social onde a força era um critério fundamental, o Decálogo
significou uma tentativa de ordenamento social baseado no reconhecimento dos direitos dos
mais fracos. Não podemos esquecer que foi o primeiro ou um dos primeiros códigos legais
a defender o direito ao descanso semanal dos/das trabalhadores/as livres e escravos/as. Em
outras palavras, o Decálogo expressa um princípio organizativo baseado na sensibilidade
social. No Decálogo há um imperativo central: “Não matarás.” (Livro do Êxodo, 20, 13).
Um princípio fundamental para a nova organização social que estava sendo construída
pelos israelitas e todos/as aqueles/as que aderiram a este projeto social. Contudo, logo no
capítulo seguinte, no Código da Aliança (um código mais amplo que, em uma linguagem
moderna e não-técnica poderíamos dizer, regulamentava o Decálogo e dava prescrições
mais concretas para a vida cotidiana) há uma outra determinação: “Quem ferir a outro e
causar a sua morte, será morto” (Livro do Êxodo, 21,12)
Esta aparente contradição é a condição de operacionalidade do princípio “não
matarás”. Como o grupo sabia que o estabelecimento de um novo princípio social e legal
não modificava automaticamente as pessoas, tiveram que estabelecer as penas para aqueles
que não cumprissem estes novos princípios e regras sociais. Para um princípio fundamental,
a sanção teria que ser proporcional à importância do princípio. É a gravidade da sanção que
mostra a importância e o peso social da regra. Por isso, para a consciência social daquela
época, o avanço que significou “não matarás” deveria ser garantido com uma sanção à
altura: “quem matar, morrerá”. A diferença entre a primeira e a segunda morte é que a
segunda não é fruto de uma vontade, interesse ou paixão de um indivíduo ou grupo, como é
a primeira, mas representa a forma institucional da comunidade garantir a segurança de
todos/as. Neste caso, nós temos uma clara suspensão do princípio “não matarás” para
107
garantir o cumprimento desta mesma lei. A violação da norma frente àquele que a violou é
consubstancial à existência de qualquer norma.
Usamos este exemplo mais simples do que as relações econômicas e de uma
sociedade pré-moderna (menos ampla e complexa do que a nossa sociedade) para mostrar
que mesmo nesse caso a contradição entre um princípio ético ordenador das relações
sociais e a sua necessária institucionalização é inevitável. Faz parte da complexidade das
relações sociais.
Voltando ao nosso tema, quando as relações e redes de solidariedade vão se
tornando mais amplas, extensas, e complexas emergem novas propriedades nas relações e
sistemas que vão introduzindo a necessidade de novos tipos de soluções institucionais que
continuarão em tensão contraditória e complexa com o princípio de solidariedade.
Isto nos leva ao quarto ponto. Devemos definitivamente abandonar a idéia de um
único princípio organizador da sociedade e assumir a necessidade de articulação de vários
princípios, como o mercado, políticas públicas por parte do Estado visando metas sociais
solidária, sensibilidades solidárias encarnadas em redes de organizações solidárias e outras
mais. Pois, não podemos nos esquecer que qualquer sistema organizador que seja escolhido
ou imposto como um único princípio para toda vida social, é de fato um sistema auto-eco-
organizador, isto é um sistema autônomo/dependente em relação ao seu/s ecossistema/s.
Como dizem Morin e Kern, não podemos
considerar a economia [ou qualquer outro sistema] como uma entidade fechada. É
uma instância autônoma/dependente de outras instâncias (sociológica, cultural,
política), também eles autônomas/dependentes umas das outras.95
É claro que essas novas formas de articular os princípios organizativos vão exigir
novas culturas, que levem as pessoas e a sociedade a serem capazes de assumir a
solidariedade como um valor social, de viver em ambiente de tolerância e respeito mútuo,
de criatividade e vigilância para sanar os efeitos não-intencionais negativos de qualquer
ação bem intencionada ou de qualquer sistema auto-organizativo. Pois todos os sistemas
auto-organizadores produzem por si mesmo as suas próprias regulações, em desfavor e a
favor de evidentes e inevitáveis desordens, em favor e em desfavor aos interesses de
determinados grupos sociais e econômicos.
A introdução do fator cultural e, conseqüentemente, do ético na compreensão dos
sistemas econômicos e sociais a partir da noção de auto-organização nos leva a tomarmos
cuidado para não negarmos as diferenças entre a auto-organização no nível biológico e no
nível social. Até mesmo Francis Fukuyama, famoso pela sua tese de que o capitalismo
liberal é o ápice e o fim da evolução da história humana, diz que a precondição para a auto-
organização de uma sociedade extensa e complexa como a nossa sociedade baseada na
informação “são regras e normas de comportamento interiorizadas”.96
Também não podemos esquecer que dizer que algo funciona de modo auto-
organizativo não significa necessariamente que seja algo bom. Próprio Paul Krugman, um
dos economistas mais influentes no mundo hoje, após dizer que o mercado capitalista,
embriões e furacões tem em comum o fato de funcionarem de modo auto-organizativo, (não
explicitando as diferenças entre os níveis físico, biológico e social – podendo assim levar a
95
MORIN, Edgar & KERN, Anne B., Terra-Pátria, Lisboa: Instituto Piaget, s/d. [1993], pp. 53-54.. 96
FUKUYMA, F. A grande ruptura. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.19.
108
uma interpretação naturalizante do mercado capitalista) reconhece que “auto-organização
não é necessariamente, ou mesmo presumivelmente, uma coisa boa”.97
O quarto ponto é a questão antropológica. A visão antropológica do neoliberalismo
prioriza, acima de tudo, a liberdade da iniciativa empreendedora e a industriosidade e supõe
um ser humano incapaz de solidariedade no âmbito social, movido somente pelos interesses
próprios. Deposita toda a sua confiança na “mão invisível” do mercado que geraria
espontaneamente o bem comum a partir dos egoísmos dos participantes do mercado. O
marxismo e muitos defensores da solidariedade como o único princípio organizador da
sociedade supõe um ser humano essencialmente solidário, capaz de grandes generosidades,
desde que liberto das alienações do mundo capitalista. Precisamos ser realistas. O ser
humano é um feixe de paixões e de interesses, de necessidades e desejos, de egoísmo e com
potencialidade de solidariedades mais generosas. Em outras palavras, o ser humano é um
ser complexo que não pode ser reduzido a nenhum princípio bom ou mau, que vive da e na
convivência dessas características distintas, mas inseparáveis.
Quando se tem em mira a construção de linguagens socialmente significativas,
deve-se ter sumo cuidado em não supor, como normais e "naturais", aqueles consensos e
comportamentos convergentes que exigem profundas mudanças de mentalidade e de
atitudes. Devemos tomar consciência de que não existem automatismos do amor. Este
sempre exigirá a difícil construção de campos do sentido, mediante a convergência de
dinâmicas do desejo social da felicidade.
A ligação muito estreita, que estamos tentando estabelecer, entre competências
sociais e sensibilidade solidária refere-se a um “projeto antropológico”, que pretende juntar
a liberdade de seres empreendedores, respeitados em suas iniciativas, com a construção
democrática de consensos a respeito de uma felicidade comum vista como verdadeiramente
desejável para todos. Para isto precisamos de conceitos complexos acerca da subjetividade
individual e da “subjetividade social”. O conceito de “subjetividade social” só parece ter
algum sentido quando a noção de consciência e de sujeito deixar de ser um racionalista da
modernidade para fundir-se com a noção de dinâmicas do desejo, ativadas por interfaces
comunicativas
Complexidade, ética e educação
Se há uma palavra que resume os nossos pontos é a complexidade. A nossa
educação, se queremos fomentar a sensibilidade solidária, deve trabalhar com um
conhecimento pertinente capaz de enfrenta-la.
Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade
quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o
econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico),
e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto
de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as
partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a
multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos
97
KRUGMAN, Paul. The Self-Organizing Economy. Malden: Blacwell Publisher, 1996, p.5.
109
confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os
desafios da complexidade.98
A compreensão desta complexidade é fundamental não somente para articularmos
de uma maneira mais correta a relação entre o nível de princípios dinâmicos básicos (a
sensibilidade solidária e o desejo de solidariedade) e o nível de princípios organizativos da
sociedade (determinações institucionais), mas também para articularmos o nível de
princípios éticos. Edgar Morin diz, com toda propriedade, que as mentes formadas pelas
ciências disciplinares
perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que
para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do
global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a se
responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento
da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos).‖99
Em um mundo cada vez mais complexo e globalizado, é cada vez mais difícil
perceber as conexões, as causas e os efeitos de uma ação ou omissão. O aumento da
complexidade da divisão do trabalho social em uma economia em escala global e a
manutenção da concepção disciplinar, compartimentada, da nossa educação, das ciências e
da nossa maneira de ver o mundo nos leva a uma situação que Morin chamou de
“enfraquecimento da responsabilidade”.
Para evitar mal-entendidos, diferenciamos o conceito de responsabilidade da culpa.
O sentimento de culpa deriva da idéia de que erramos moralmente por ignorância, fraqueza
ou intenção de fazer o mal. A moral que coloca no seu centro este sentimento de culpa é
uma moral da paralisia, da omissão, da indiferença ou da submissão a uma palavra alheia
que nos diz dogmaticamente como agir, sem que tenhamos que pagar o preço de nossas
decisões.
Outra coisa é a noção de responsabilidade. A responsabilidade pode ou não estar
ligada à culpa. Está ligada à culpa quando somos agentes de infração ou omissão e de nós
depende a seqüência dos efeitos reprovados. Mas podemos ser responsáveis por
conseqüências de atos que não foram de nossa autoria e sobre os quais também não
podemos ser acusados de omissão. Esta responsabilidade nasce do reconhecimento da
interdependência que há no nosso mundo, na nossa sociedade e nas nossas vidas.
Responsabilidade é uma conduta, atitude ou disposição para agir maior e mais vasto do que
a mera culpabilidade. A culpabilidade põe em jogo o erro moral pessoal, mas não
compromete com acontecimentos que não lhe digam respeito.
Zygmunt Bauman, no seu livro Modernidade e Holocausto100
, nos mostra como o
enfraquecimento da noção de responsabilidade ética foi importante para que muitas pessoas
“mentalmente sãs/normais”, e não somente os nazistas convictos, tivessem participação no
holocausto. A divisão crescente do trabalho faz as pessoas perderem a noção de conexão
entre os seus atos e omissões e os resultados finais. Cada um se prende ao seu trabalho,
98
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,
2000, p. 38. 99
Idem, Os sete saberes..., pp. 40-41. 100
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
110
burocrática ou tecnicamente determinado por outras pessoas distantes, e assim a sua
responsabilidade ética se transforma em uma mera responsabilidade técnica. Cada um é
responsável somente pelos resultados visíveis e imediatos das suas ações.
Quando, por exemplo, um economista burocrata do F.M.I, ou um economista do
nosso governo, passa adiante o receituário de cortes nos programas sociais por conta de
programa de ajustes econômicos, ele não vê pessoas concretas sofrendo no seu corpo e dos
seus familiares as conseqüências dessas medidas, mas somente números, gráficos e índices.
A desumanização começa no ponto em que, graças ao distanciamento, os objetos
visados pela operação burocrática podem e são reduzidos a um conjunto de
medidas quantitativas. [...] Reduzidos, como todos os outros objetos de
gerenciamento burocrático a meros números desprovidos de qualidade, os objetos
humanos perdem sua identidade. [...] Só os humanos podem ser objetos de
proposições éticas. [...] Os seres humanos perdem essa capacidade assim que
reduzidos a cifras.101
Uma educação baseada no pensamento complexo nos ajuda a entender melhor a
relação complexa e contraditória entre os desejos que nascem da sensibilidade solidária e os
princípios organizativos da sociedade. Além disso, nos permite entender um pouco melhor
as razões do enfraquecimento da noção da responsabilidade na nossa sociedade e também
nos mostra caminhos para o fortalecimento do sentimento de responsabilidade ética e da
solidariedade. Para Morin,
O emprego do princípio de complexidade esclarece as virtudes da
solidariedade. Quanto mais uma sociedade é complexa, menos rígida ou
duras são as obrigações que pesam sobre os indivíduos e os grupos, de
modo que o conjunto social pode se beneficiar das estratégias, iniciativas,
invenções ou criações individuais. Mas, numa situação extrema, [como a
que vivemos hoje] o excesso de complexidade destrói qualquer obrigação,
distendendo o laço social até o ponto em que a complexidade, em seu
extremo, se dissolve na desordem. Nessas condições, a única salvaguarda de
uma complexidade muito alta, que não pode ser apenas a obrigação,
encontra-se unicamente na solidariedade vivida, interiorizada em cada um
dos membros da sociedade.102
Estas sensibilidades solidárias vividas, que fazem emergir novos desejos, precisam
se tornar atratores de novos princípios éticos solidário. Estes princípios éticos não podem
ficar somente em formulações abstratas e gerais, mas precisam também se concretizar em
normas de comportamentos éticos. E estes princípios éticos precisam ser “corporificadas”
em princípios organizativos da sociedade norteando o funcionamento das instituições da
sociedade.
Estes três níveis não formam esta seqüência linear apresentada acima por razões
didáticas. Na verdade, eles “dançam” como atratores estranhos interagindo entre si, sem
perder as suas diferenças específicas. (Para entender isso melhor talvez convenha aplicar o
101
Idem, op.cit, p. 127. 102
MORIN, Edgar, Meus demônios, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997, p. 99.
111
conceito de teoria de campo ao funcionamento das motivações éticas e das construções
sociais de mundos do sentido. É uma temática que não aprofundamos especificamente neste
livro, mas à qual fazemos alusões exemplificadoras, como neste caso).
O ser humano é um ser complexo, como também é a sociedade e o meio ambiente
no qual vivemos. Educar para sensibilidade solidária pressupõe e implica em ajudar as
pessoas a perceberem a complexidade da realidade e da nossa vida social, a tomarem
consciência da nossa condição humana, a relativizarem as suas certezas, a aprenderem a
tolerar aos outros e a si próprio nas suas limitações e falhas, a aceitar e conviver com a
“resistência” da realidade social em se adaptar aos nossos mais sinceros e honestos desejos
de uma vida baseada na justiça e solidariedade. Ao mesmo tempo em que persevera em
suas ações solidárias, materializações da sensibilidade solidária, como caminho de ser fiel
aos seus desejos mais profundos de um mundo mais solidário e humano.
112
Capítulo 5
O ALCANCE SOCIAL DO DESEJO
Subjetividade e conhecimento
Edgar Morin, ao tratar do que ele considera “problemas centrais ou fundamentais
que permanecem totalmente ignorados ou esquecidos e que são necessários para se
ensinar no próximo século”103
, diz que
todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve
enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão. O maior erro seria
subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da
ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a
ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais.104
Este perigo de erro e ilusão do conhecimento vem do fato de que todo
conhecimento, seja na forma de palavras, idéias ou teorias, é fruto de uma
tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento. O que implica na
introdução da subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de
conhecimento. E para Morin – queremos chamar atenção – “a projeção de nossos desejos
ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os
riscos de erros.”105
O reconhecimento do papel do desejo, medo e emoções no campo do conhecimento
e, o mais importante, na multiplicação dos riscos de erro, nos obriga a tomarmos em sério o
tema do desejo no campo da educação e na discussão sobre a sensibilidade social solidária.
A solução pretendida por muitos, no passado e ainda hoje, de eliminar esse risco recalcando
a afetividade não é possível, pois o desenvolvimento da inteligência é inseparável do
mundo da afetividade, tanto no mundo mamífero, quanto mais no mundo humano. Sem
curiosidade, paixão, interesses e desejos, as pesquisas filosóficas ou científicas não teriam
como avançar, nem o processo de aprendência.
Isso significa que não há conhecimento sem erro ou ilusão, pois “as deformações da
realidade produzidas por ação do desejo, embora variem em qualidade e grau, não são
próprias desta ou daquela patologia, mas próprias da existência de desejo e do recalque, o
que significa próprias do humano, como o inconsciente também é‖.106
O que podemos
fazer é ter consciência do tipo de desejo que está em jogo no processo de conhecimento e
verificar se é compatível com o bem estar de toda humanidade. Pois, o não reconhecimento
dessa intrínseca relação pode nos levar a um conhecimento que, por ser cego de suas
motivações mais profundas, se transforme em um perigo à humanidade e ao meio ambiente.
103
MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília:
UNESCO, 2000, p. 13. 104
Idem, op.cit., p. 19. 105
Idem, op.cit., p. 20. 106
KEHL, Maria Rita. O desejo da realidade. em: NOVAES, Adauto (org). O desejo. São Paulo: Cia das
Letras, 1990, pp. 363-382, citado da p. 365.
113
Por isso, como Morin já havia dito antes, “as ameaças mais graves em que a humanidade
incorre estão ligadas ao progresso cego e descontrolado do conhecimento”.107
Esta é a razão pela qual “a educação deve-se dedicar, por conseguinte, à
identificação da origem de erros, ilusões e cegueiras.”108
Isto é, devemos nos debruçar
sobre a “mola” propulsora do conhecimento e da sociedade contemporâneas que tem nos
levado para caminhos nem sempre mais humanos e solidários. Aqui devemos enfrentar o
tema do desejo.
Antes, é útil nos relembrarmos do duplo estatuto do ser humano. O ser humano é
um ser marcado pela sua natureza biológica, física e cósmica, ao mesmo tempo que
também pela sua cultura, ou seja do universo da palavra, do mito, da idéia, da razão e da
consciência. O ser humano é um ser biológico-natural, mas que se realiza plenamente como
ser humano pela cultura e na cultura. A cultura é possível por causa do cérebro humano,
mas a mente, isto é, a capacidade de consciência e pensamento, não seria possível sem a
cultura. Sem esta tríade em circuito entre cérebro/mente/cultura não seria possível o ser
humano se realizar como ser humano.
Isto significa que o desejo nos seres humanos tem um fundamento biológico, mas
também é cultural. Pois, a própria concepção da idéia do desejo e a forma como se deseja
está condicionada pela cultura. Somos seres naturais e culturais (naturalcultural; cerebral
psíquica). Portanto, para além das projeções de desejos que multiplicam os riscos de erro do nosso conhecimento, precisamos discutir a própria noção de desejo humano que
subjaz à nossa cultura ocidental. Pois, o que nós os seres humanos desejamos
concretamente está delimitado pela nossa natureza biológica e pela forma como a nossa
cultura interpreta e constrói a noção primordial de desejo. E esta noção de desejo pressupõe
e veicula uma visão do ser humano.
Adam Smith e o “homem econômico” competidor
As novas linguagens das reformas educacionais, mundo afora, ao insistirem em
juntar três tipos de competências básicas (competências cognitivas, competências sociais e
competências sócio-afetivas) estão veiculando novos pressupostos antropológicos, ou seja,
essas linguagens mexem com a visão do ser humano. Podemos interpretar estas reformas de
um modo generoso, mas não ingênuo, como tentativas de superar a visão do ser humano
que os economistas inventaram sob a ficção do Homo Oeconomicus. As novas linguagens
pretendem conduzir-nos a uma visão unificada de dois aspectos aparentemente
contraditórios das habilidades que necessitamos para o convívio social: a capacidade de
competir e ser eficientes no mundo do trabalho e a necessidade de sermos solidários.
Para aprofundar um pouco mais essa arrojada tentativa de uma nova visão do ser
humano é importante que tomemos consciência de que a visão antropológica, que
predomina na modernidade, especialmente no pensamento econômico, é terrivelmente
redutivista. A dimensão solidária do ser humano foi esvaziada de uma maneira tão radical
pelo pensamento econômico e pela filosofia social predominante que qualquer pessoa que
se der conta da gravidade do que sucedeu precisa tomar alento para recuperar-se do
espanto. Talvez sirva para isso um pequeno esforço para entender um pouco melhor as
razões que levaram ao cancelamento praticamente total do desejo de solidariedade nas
107
MORIN, E., Introdução ao pensamento complexo, Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p.13. 108
Idem, Os setes saberes...., p.21.
114
teorias sobre a produtividade e a organização de uma sociedade com mercado. Se não
entendemos quão radical foi esse ocultamento da solidariedade, podemos facilmente
cometer o equívoco de achar que bastaria voltar a insistências gerais sobre a dignidade
humana universal como um conjunto de direitos e deveres básicos que, supostamente,
todo ser humano poderia atribuir-se e exigir e difundir um discurso vibrante sobre a sensibilidade social, para chegarmos a transformações significativas do triste panorama de
exclusões em que nos encontramos.
O que precisamos entender é que a ausência da menção explícita da solidariedade
no discurso econômico, e em grande parte do discurso filosófico moderno, deriva de
pressupostos geralmente não explicitados e que se referem precisamente à concepção dos
seres humanos situados em sociedades amplas e complexas e acerca da maneira como eles
se relacionam entre si. Trata-se de entender que uma determinada visão redutivista do que
se passou a considerar o comportamento normal e predominante dos seres humanos na
produção, circulação e consumo de bens e serviços (portanto, o aspecto econômico-social)
foi expandida e imposta como a única visão cabível acerca do ser humano.
Em outras palavras, o próprio conceito de dignidade humana, de relacionamento
social e, indo mais fundo ainda, do que significa o desejo como dimensão básica do
relacionamento inter-humano, foi profundamente deturpado mediante um determinado
redutivismo. A partir do fato de que somos um tipo de seres fundamentalmente marcados
por paixões e interesses, o mundo moderno passou a supor que o princípio organizativo
predominante na concepção da economia e da sociedade teria que ser inevitavelmente o
interesse próprio. É este conceito que precisamos rastrear como elemento fundamental de
uma determinada concepção do convívio social possível em sociedades amplas e
complexas. Isso, porém, implica numa pesquisa relativamente longa e exigente para a qual
daremos somente algumas pistas em outro momento. Nesta altura da nossa reflexão vamos
tomar como premissa um fato inegável: o de que o pensamento econômico confia que os
próprios mecanismos do mercado resolverão, mediante tendências intrínsecas para a busca
do bem comum, o problema da solidariedade básica na sociedade, sobrando apenas alguns
remendos ocasionais e emergênciais para intervenções mais diretas de instâncias políticas
públicas. Notemos que, semelhante visão cria uma estranha sinonímia entre ser competitivo
e ser solidário. Quem sabe competir já estaria sempre realizando tarefas fundamentais
relacionadas com a solidariedade básica de uma sociedade eficiente na produção de bens e
serviços. Dito de maneira mais direta ainda: para semelhante visão da economia e da
sociedade a solução do problema da solidariedade já estaria fundamentalmente embutida
nos próprios mecanismos do mercado.
É espantoso que essa concepção tenha chegado a obter uma adesão tão inabalável e
tão ampla no nosso tempo. É evidente que a exclusão não é uma conseqüência marginal ou
como às vezes se pretende insinuar um “resto” ainda não suficientemente atingido pela
dinâmica dos mecanismos de mercado, mas tem a ver com a própria lógica da atual
organização econômica e social. Como temos insistido, a crítica a esta concepção não pode
nos levar a uma postura ingênua de propor a solidariedade como o único princípio
organizador da sociedade, tomando o lugar da defesa do interesse próprio no mercado. Se
queremos confrontar-nos criticamente com o espantoso redutivismo antropológico da
modernidade, devemos pensar conjuntamente duas coisas. Primeiro, que mecanismos de
competitividade e, portanto, de livre iniciativa e mercado, são provavelmente
indispensáveis em qualquer sociedade ampla e complexa. Isso porque mecanismos auto-
115
organizativos são indispensáveis nas sociedades amplas e complexas e também porque os
seres humanos efetivamente aspiram a que sejam tomados em conta enquanto
empreendedores. Segundo, que é inaceitável que se queira impor o critério da eficiência
produtiva a todos os aspectos da vida humana.
Deixando para outro momento algumas referências adicionais sobre a consolidação
histórica do referido redutivismo antropológico (uma distorção espantosa que não pode ser
tomada como acontecimento banal no avanço da modernidade) passemos agora a destacar
alguns elementos que possam predispor-nos para saber contra-argumentar acerca desse
assunto. A premissa da reflexão que segue é a de que estamos efetivamente urgidos como
nunca para uma grande virada na concepção do ser humano como um ser que precisa dos
outros para a sua própria identidade e felicidade individual. Estaremos, pois, trabalhando
com a tese de que a felicidade individual e a sobrevivência do planeta terra requer que o
desejo de solidariedade se transforme em necessidade vital personalizada como
experiência própria em um número crescente dos habitantes deste planeta.
Todo o pensamento ocidental está atravessado por uma tendência ao predomínio da
concepção dos seres humanos como fundamentalmente competitivos, concorrentes e
virtualmente inimigos entre si. Esta definição do ser humano como predominantemente
competitivo fez com que a dimensão social, isto é, o fato de estarmos sempre convivendo
com outros seres humanos, não seja geralmente visto como algo que determina a nossa
própria natureza ou, se quiserem, a “essência” do ser humano. É claro que não se alardeia
explicitamente que se está defendendo a tese de que poderíamos viver como seres solitários
ou indivíduos isolados. Semelhante tese saltaria logo à vista como bastante absurda, embora
muitas coisas do mundo dos valores ocidentais tenham precisamente como matriz básica a
concepção do indivíduo autônomo, responsável isolado por seus pecados ou méritos. A tese
que perpassa o pensamento ocidental é, junto com a do indivíduo isolado, a idéia de que
esse indivíduo, na hora em que se encontrar com o seu semelhante, se transformará
inevitavelmente em competidor pelo simples fato de haver encontrado um outro que
também é concebido como competidor.
Notemos que essa concepção da competitividade enquanto marca essencial do ser
humano não entra necessariamente em choque com as famosas afirmações de Aristóteles:
O homem que é incapaz de ser um membro de uma comunidade, ou que não
sente nenhuma necessidade disso porque é auto-suficiente, não forma parte
de modo algum da cidade-estado e conseqüentemente é ou um deus ou um
bruto. (Política, 1253 a)
Para nós o bem implica um relacionamento com o outro (Ética Nic.,1245 b).
Todorov, comentando esta concepção, diz: “Os animais e os deuses são auto-
suficientes. Podemos imaginá-los como estando sozinhos. Quanto ao ser humano, ele é
irremediavelmente incompleto e precisa dos outros.”109
É importante destacar que a socialidade essencial do ser humano, afirmada por
Aristóteles, passou a ser subsumida dentro de uma visão relacional sumamente estreita, ou
seja, o ser humano precisa de algum tipo de companhia com outro ser humano. Em
Aristóteles e Platão essa socialidade se estende à pequena amplitude da Polis grega. Pode-
se sustentar, com certo vigor, que a Paidéia grega de fato visava a formação do cidadão,
109
TODOROV,Tzvetan. Living Alone Together. Texto disponível na Internet, junho/2000.
116
entendido como integrante da elite, considerado numa perspectiva para além da simples
relação dual de ter alguém como companhia.
Se não tivermos em conta algo dessas sutilezas, poderíamos ter sérias dificuldades
em entender como essa socialidade, tão claramente afirmada, fosse reduzida, mais tarde, no
pensamento ocidental à visão do ser-humano-competidor. A visão da filosofia grega não
parece fornecer-nos base suficiente para evitar semelhante reducionismo, já que a
socialidade afirmada não é contraditória com uma visão competitiva e até guerreira das
relações entre os seres humanos em organizações sociais situadas numa amplitude maior
que a do relacionamento entre poucos indivíduos.
Vamos dar um grande salto por cima das formulações antropológicas como a de
Hobbes: Homo homini lupus que prepararam a antropologia do homem competitivo que subjaz ao pensamento econômico e social moderno e chegar em Adam Simith, pai fundador
da economia burguesa.
De Adam Smith, se reteve, antes de mais nada, a sua famosa formulação acerca do
predomínio do interesse próprio nas relações socialmente produtivas:
O homem, entretanto, tem necessidade quase constante de ajuda dos
semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência
alheia. [...] Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do
padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo
seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-
estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das
vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-se a
depender sobretudo da benevolência dos semelhantes.”110
Nas últimas décadas, entretanto, surgiram abundantes tentativas de resgate de um
pensamento mais benevolente em Adam Smith. A sua visão do ser humano competitivo
estaria historicamente condicionada pela resistência da igreja e da nobreza contra a
implantação de uma economia regida pela livre iniciativa. Por outro lado, Adam Smith
estaria preocupado em enunciar um princípio rector importante para a dinâmica econômica
e não pretendia impor esse princípio como o único princípio organizativo da sociedade em
geral. Certas afirmações dele, formuladas sobretudo em sua Teoria dos Sentimentos
Morais, servem de sustentação a essa interpretação mais generosa de seu pensamento.
“Todas as vantagens que podemos apontar como derivadas (da busca de
humanidade) devem ser observadas, atendidas, e tomadas em conta com simpatia,
complacência e aprovação.”111
O fato de cada um de nós ser levados em consideração é, ao
mesmo tempo, “a esperança mais agradável e o desejo mais ardente da natureza
humana”.112
Não há preço que não estejamos dispostos a pagar para obter
reconhecimento, posto que “os homens chegam a dar a sua própria vida para adquirir,
após a morte, um renome que não puderam desfrutar mais na vida”113
(esta é uma das
citações mais famosas para mostrar que Adam Smith admitia que existiam paixões que
110
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigações sobre sua natureza e suas causas. Vol 1, São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 50. 111
SMITH, Adam. The Theory of Moral Sentiments. Oxford: Clarendon Press, 1976, p. 50. 112
Idem, op.cit.,p. 51. 113
Idem, op.cit., p. 116.
117
estavam acima do interesse próprio). Ausência de reconhecimento é vista como o mal
maior que pode atingir-nos: “comparados com o fato de que a humanidade nos venha a
desprezar, todos os demais males externos são facilmente suportáveis”.114
Para Todorov
Adam Smith tem o mérito de superar, dessa forma, uma oposição, transmitida de
século a século, entre nossas vãs aspirações por um lado e nossas aspirações
utilitárias, pelo outro, ou, para usar a frase sintética de Albert Hirschman a
oposição entre paixões e interesses.115
Há autores, como Dupuy, que são ainda mais generosos com Adam Smith:
Smith se recusa a cair e ficar preso na armadilha do individualismo burguês ou do
interesse próprio egoísta.116
Como deu para notar, para Adam Smith não se trata de admitir, sem mais, uma
propensão geral dos seres humanos para a solidariedade. Na sua visão, é simplesmente o
desejo de prestígio e fama que pode superar a estreiteza do interesse próprio. Fica, portanto,
a pergunta se essa concessão serve de base para uma visão da dinâmica social atravessada
por diversos outros elementos do desejo humano claramente distinguíveis do interesse
próprio. Ao que tudo indica Adam Smith não se preocupou diretamente com motivações
tão acentuadamente sociais como as que hoje costumamos inserir no conceito de
solidariedade. O fato de ele visualizar um ser humano que supera a sua situação de
competidor confrontativo com outros competidores, admitindo que possa agir
generosamente por motivos alheios aos estrito interesse próprio, não significa que ele o
esteja situando na amplidão de convergências solidárias. Basicamente a sua visão do ser
humano capaz de sacrificar-se para não perder o reconhecimento alheio continua
configurada dentro de um esquema de competitividade, só que agora de competição pelo
prestígio como valor maior que a lucratividade material. O caráter confrontativo continua
sendo a marca determinante dessa visão do ser humano.
Podemos perguntar-nos se a reinterpretação generosa de Adam Smith supõe nele um
início da percepção do/a outro/a enquanto fonte originante da própria possibilidade de
termos uma identidade enquanto indivíduos. Parece que, na perspectiva de Adam Smith,
não se configura nenhum caráter primordial do/a outro/a na constituição do eu-próprio de
cada um de nós, elemento antropológico determinante para uma teoria substancial da
solidariedade. Adam Smith parece estar sugerindo unicamente uma espécie de construção
abstrata de um espectador bem informado acerca daquilo que nos move a agir, e que talvez
não coincida sempre com um estreito interesse próprio. Muitos autores se referiram ao
imaginário desse espectador abstrato, suposto observador indiscreto do nosso íntimo, ou
seja, uma espécie de deus secular. George Herbert Mead o chama de “o outro
generalizado”; Mikhail Bakhtin o visualiza como “o super interlocutor” (the
superaddressee).
114
Idem, op.cit., p. 61. 115
TODOROV, T. Loc. cit. 116
DUPUY, J.P. Le sacrifice et l'envie. Paris: Calmann Lévy, 1992, p.102.
118
Um grande trecho separa essa visão sumamente abstrata e genérica do outro de uma
afirmação do outro enquanto fonte originadora da identidade do eu. Para chegar lá, veremos
que a metáfora do olhar será fundamental, mas ela também terá que passar por diversas
transformações. É longo o caminho desde o olhar supostamente vigilante de um outro
generalizado, internalizado como olhar vigilante dos demais sobre nós, e olhar
reciprocamente admirativo e existencialmente constitutivo de identidades que se aceitam e
dialogam sobre a base da aceitação de serem diferentes. Este será, de certa forma, o ponto
de chegada da nossa reflexão. Antes, porém, convém avaliar um pouco melhor todo o peso
de uma tradição antropológica e filosófica que constitui um sério obstáculo para chegar a
uma concepção radicalmente nova do que devemos entender por reconhecimento do/pelo
outro. Para enxergar melhor os obstáculos que existem para um pensamento solidário
radical, é inevitável desmontar a distorção do conceito de reconhecimento que encontramos
num tipo de pensamento exemplificável por Hegel.
O reconhecimento do/pelo outro em Hegel
Rousseau usou para isso o conceito de consideração. Adam Smith o chamou de
atenção. Hegel prefere o conceito de reconhecimento (Anerkennung). Fiquemos atentos ao
fato de que Hegel pretende estar definindo aquilo que caracteriza o ser humano enquanto
ser humano, diferente dos outros animais. Segundo ele, o ser humano aspira ser
reconhecido em seu valor e esse reconhecimento só lhe é possível a partir do olhar dos
outros. Para Hegel, o propriamente humano se iniciaria lá onde “o desejo biológico de
preservar a própria vida” é subordinado ao “desejo humano de reconhecimento”.117
Nas palavras claras de Kojève , expondo o pensamento de Hegel: “em outras
palavras, a humanidade do homem 'vem à luz' somente se ele arrisca a sua vida (animal)
por causa do seu Desejo humano.”118
A necessidade de reconhecimento é o fato constitutivo
do humano. É nesse sentido que o homem não existe como anterior à sociedade senão que o
humano se funda no inter-humano e que sua realidade só pode ser social. “Se eles
pretendem ser humanos devem ser ao menos dois em número”.119
O homem deseja
algo que vai além da realidade dada. Ora, a única coisa que vai além da realidade
dada é o próprio Desejo. (...) Portanto, para ser antropogenético o Desejo deve
estar dirigido para um não-ser (para algo que ainda não é), isto é, para um outro
Desejo, um outro vazio que atrai e cobiça, um outro Eu.120
Como se pode notar, Hegel concebe o pólo atrator do olhar do outro como um olhar
competitivo e potencialmente voraz. O eu não se constitui, enquanto identidade, a não ser a
partir do olhar cobiçante do outro. A isto – por espantoso que possa parecer – Hegel
chama de reconhecimento. Portanto, na própria concepção teórica dessa reciprocidade ,
embora ela seja vista como constitutiva da identidade do eu, já está pré-incluída a
conflitividade e a competição. Na verdade, como veremos ao examinar mais de perto a
dialética do senhor e do escravo, – fundamental para entender o que Hegel entende como
117
KOJEVE, Alexander. Introduction to the Reading of Hegel. Ithaca: Cornell, 1980, p. 7 118
Idem, Loc.cit.. 119
Idem, op.cit., p. 43. 120
Idem, op.cit., pp. 5 e 40.
119
reconhecimento – se trata de um reconhecimento no qual aquele que reconhece ou anula o
reconhecido ou é por ele anulado. No fundo, não haveria jamais espaço para uma
convergência solidária e não conflitiva. Segundo Hegel, todo reconhecimento significa um
julgamento valorativo que termina fatalmente numa apreciação de que o outro vale ou não
vale para mim. Para que alguém de nós obtenha reconhecimento, é o outro que deve perder
o seu reconhecimento. Ou, para chegar logo à metáfora central do pensamento hegeliano, a
demanda de reconhecimento implica necessariamente numa luta de confrontação.
É quase impossível exagerar quão profunda é, no pensamento ocidental – desde
uma série de mitos antigos, passando pela mitologia religiosa, e culminando, de certa
forma, no pensamento hegeliano – a obsessão de transformar a todos os seres humanos em
competidores rivais e inimigos. É, na verdade, relativamente pequena a margem de
variações dentro dessa concepção fundamentalmente antagônica dos seres humanos. Nas
palavras de Kojève,
o encontro entre eles só é possível como luta até a morte”; “a luta até a morte por
puro prestígio”; “Uma luta de vida e morte. Uma luta já que cada qual vai
pretender subjugar o outro, todos os outros, mediante uma ação negadora e
destruidora.121
Para o pensamento hegeliano, obter reconhecimento significa estar metido numa
luta por poder. Quando a relação humana é concebida nesse registro inevitavelmente
confrontativo, todo olhar se transforma em olhar julgador e todo desejo é um desejo-valor,
isto é, deseja-se algo porque este tem valor. Com isso deixou de ser um “valor”-desejo, isto
é, algo tem valor porque é desejado. O desejo perdeu a batalha diante da crua valorização
em chave de poder. Valor é, para Hegel, o valer (o fazer-se valer) da imposição
confrontativa.
O pensamento de Hegel é, em seu cerne, o de um voyeur-filósofo, que parece estar
sentindo um estranho prazer em reduzir tudo à confrontação. Essa é, até certo ponto, uma
antropologia muito mais radicalmente bélica do que a da competitividade do mercado. Há
algo de estranhamento pré-moderno, quase atavicamente primitivo e animalescamente
ancestral, ou, na melhor das hipóteses, de colonialista-escravagista, na obsessão de Hegel
por tomar a dialética do senhor e do escravo como a referência chave para a sua visão do
que caracteriza o propriamente humano.(Cabe perguntar-se se na obsessão de Marx pela
luta de classes não continua igualmente presente esse elemento pré-moderno de um tipo de
competição reciprocamente anuladora, em relação à qual a competitividade do mercado
poderia ser vista como um jogo de confrontações virtualmente mais branda, e nesse sentido
realmente moderna).
É importante que se entenda que, na dialética hegeliana do senhor e do escravo, a
emergência do humano é a emergência de um vencedor num conflito confrontativo. O outro
aparece como o ponto de referência para o auto-reconhecimento, ou seja, a gênese da
identidade do eu, mas esse outro será fatalmente um perdedor, se eu não o for. Neste caso,
se eu for o perdedor, não surge verdadeiramente um eu como Hegel o concebe. O
pensamento de Hegel se move basicamente dentro de uma confrontação dual (como
continuará dual a confrontação marxiana entre burguesia e proletariado, classes dominantes
e classes dominadas). Enquanto persiste a dualidade confrontativa, não surge o
121
KOJÈVE,A. Introduction to the reading of Hegel. Ithaca: Cornell, 1980, p. 140-41.
120
plurirrelacionamento do social amplo, que admite simultaneamente a presença de
divergências e convergências.
O social de Hegel está submetido à dualização confrontativa. O outro só emerge
como meu potencial anulador, dando-me uma chance de eu ser o seu anulador. Se o outro
for perdedor, minha identidade surgirá, e ele, se não for morto, se transformará em meu
dependente ou escravo. Os escravos sobrevivem preferindo salvar a sua vida em lugar do
seu reconhecimento. Ao adaptar-se à submissão, renunciam à condição especificamente
humana.
Como se pode notar, a visão de Hegel é essencialmente trágica, porque o
reconhecimento ao qual se aspira, não se cumpre como reconhecimento provindo de outro
ser humano, já que este ficou reduzido a uma condição infra-humana. Novamente com
palavras de Kojève, o senhor “é reconhecido por alguém que ele mesmo não reconhece (...)
por isso a atitude do senhor resulta num impasse existencial.”122
Todorov sintetiza a
frustração desse desejo intrinsecamente trágico: “a vitória não traz nenhuma satisfação
porque não pode ser coroada com o reconhecimento-admiração”.123
Ou na formulação de
Kojève: “O homem surgiu e a história começou com a primeira luta que terminou com a
aparição de um senhor e um escravo”.124
Segundo Hegel, toda a história humana nada mais seria do que a evolução dessa
relação senhor-escravo. Mas Hegel sonhava com a manifestação do Espírito mediante
comandos ilustrados como o de Napoleão ou do governo emergente da Prússia. No fundo
uma espécie de retorno à solução pré-moderna de um governo sábio, capaz de administrar a
incontornável conflitividade humana. Também Marx fica preso a uma visão da dinâmica
evolutiva da história marcada por uma violência confrontativa, sonhando com uma saída
utópica na sociedade sem classes. O pensamento econômico burguês visualiza a
competitividade como princípio organizativo da dinâmica produtiva, com a tentação
persistente de estender esse princípio organizativo à própria dinâmica da sociedade como
um todo. A socialidade humana é, assim, concebida como estruturada por dentro por um
princípio que preserva a contraposição dos atores como elemento dinamizador
fundamental.
Fukuyama: o desejo de reconhecimento e a luta econômica
Fukuyama no seu famoso livro O fim da história e o último homem, propôs uma
leitura que podemos chamar de benévola e otimista desta visão hegeliana de socialidade e
de história. Seguindo Hegel, ele diz que os seres humanos diferem fundamentalmente dos
animais porque desejam algo a mais do que objetos externos, como comida, bebida, abrigo
e a preservação do corpo. O ser humano “deseja o desejo dos outros homens, ou seja, quer
ser 'reconhecido'. Especialmente quer ser reconhecido como ser humano, isto é, como um
ser com certo valor ou dignidade.”125
A sua tese do fim da história está ancorada na sua leitura de Hegel:
122
KOJÈVE,A. op. cit. p.19. 123
TODOROV, T. loc.cit. 124
KOJÈVEA. op. cit. p.43. 125
FUKUYAMA, F., O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 17.
121
Para Hegel, a ―contradição‖ inerente à relação entre domínio e servidão
foi superada finalmente em conseqüência da Revolução Francesa e,
devemos acrescentar, da Revolução Americana. (...) O reconhecimento
intrinsecamente desigual de senhores e escravos é substituído pelo
reconhecimento recíproco e universal (...) Hegel conclui que a história
chegou ao fim porque a aspiração que impulsionou o processo histórico - a
luta pelo reconhecimento - está agora satisfeita numa sociedade
caracterizada pelo reconhecimento universal e recíproco. Nenhum outro
ajuste das instituições sociais humanas é mais capaz de satisfazer essa
aspiração, e portanto não é possível nenhuma outra mudança histórica
progressiva.126
É importante ressaltar que, para Fukuyama – na sua leitura de Hegel –, “o primeiro
motor da história humana não é a ciência natural moderna ou o horizonte constantemente
em expansão do desejo que a potencializa, mas um impulso totalmente não-econômico, a
luta pelo reconhecimento”.127
E é este reconhecimento por outros seres humanos como
homem que possibilita ao indivíduo tornar-se autoconsciente, isto é, consciente de si como
ser humano distinto.
Para Fukuyama, a sociedade liberal permitiu que esta busca de reconhecimento se
desse por outros mecanismos que não mecanismos violentos ou conflituosos que levam a
uma relação de dominação de um sobre outro. O reconhecimento recíproco e universal teria
substituído, nas sociedades liberais, a luta violenta pelo prestígio. Ele reconhece, entretanto,
que
A megalothymia - o desejo de ser reconhecido como superior - vive ainda
no nosso cotidiano sob uma variedade de disfarces, (...) grande parte do que
consideramos satisfatório em nossa vida não seria possível sem ela. Mas em
termos do que dizemos de nós mesmos foi eticamente derrotada no mundo
moderno. (...) O que substituiu a megalothymia foi uma combinação de duas
coisas. A primeira é o desabrochar da parte desejante da alma, que se
manifesta como uma completa e constante economização da vida. (...) A
segunda coisa que substituiu a megalothymia é uma isothymia
generalizada, isto é, o desejo de ser reconhecido como igual aos outros.128
Antes ele havia afirmado que o motor da história é um impulso não-econômico, a
luta pelo reconhecimento. Agora, ele afirma que a conflitividade e a violência no interior
dessa luta pelo reconhecimento é superada pela economização da vida e o desejo de ser
reconhecido como igual aos outros. A segunda parte da combinação que tornou possível a
substituição do desejo de ser reconhecido como superior, megalothymia, por desejo de
reconhecido como igual, isothymia, é uma mera tautologia. Ele simplesmente repete que a
megalothymia foi substituída por isothymia. Isto é uma constatação, mas não uma
explicação das causas da mudança ocorrida. Pior. Como ele havia reconhecido que a
megalothimia sobrevive de muitas formas no nosso mundo e que “grande parte do que
126
Idem, op.cit.¸ p.19. 127
Idem, op.cit., p. 176. 128
Idem, op.cit., p. 235.
122
consideramos satisfatório não seria possível sem ela”, na vida social não houve esta
substituição, pelo menos em grande escala. O que ele afirma na verdade é que
megalothymia foi derrotada eticamente, seja no campo da discussão filosófica, seja no
campo da democracia formal. Em todo caso, se aceitamos a sua hipótese de que ocorreu a
derrota ética da megalothmya, e que essa derrota ética já caracterizaria o fim da história,
toda a solução aparente está ancorada na economização da vida.
E como se daria o reconhecimento pelo outro no campo econômico? Na aquisição
de propriedades ou de determinados objetos:
O homem lockiano adquiria propriedades para satisfazer seus desejos. (...)
O homem [hegeliano] sente satisfação possuindo propriedade não apenas
pelas necessidades que ela satisfaz, mas porque outros homens a
reconhecem. (...) Hegel vê a propriedade como um estágio ou aspecto da
luta histórica pelo reconhecimento, algo que satisfaz tanto thymos, quanto o
desejo.129
Fukuyama não se pergunta por que o reconhecimento pelo outro se dá na posse de
uma propriedade. Uma resposta bastante plausível é que a propriedade de um determinado
bem gera o reconhecimento pelo outro porque o outro que reconhece também deseja e
valoriza esta propriedade. Sendo assim, o meio para realizar o desejo de ser
reconhecimento pelo outro é desejar e possuir o objeto desejado pelo outro para que assim
ele me reconheça. O que René Girard chama de desejo mimético de apropriação.
O desejo de reconhecimento através desse mecanismo é essencialmente conflitivo.
Quando uma pessoa deseja um objeto, porque este é desejado por um terceiro que vai
reconhece-lo se o possuir, estabelece-se necessariamente uma relação conflitiva. Pois, um
objeto passa a ser desejado por duas pessoas. O próprio conflito vai reforçar o desejo de
posse, pois serve como a comprovação do valor do objeto desejado. Nesta lógica o
reconhecimento só se realiza através da concorrência com o outro que vai me reconhecer se
eu for vitorioso no confronto. Não ocorre um reconhecimento recíproco entre iguais. Só
ocorreria se todas as pessoas pudessem ter as mesmas propriedades que possibilitam o
reconhecimento pelo outro. Mas isto é economicamente impossível. E mesmo que fosse
economicamente possível, uma propriedade que todos possuem não pode funcionar como
indicador de reconhecimento. A economização da vida nas sociedades capitalistas não
substituiu a relação conflitiva e cofrontativa na luta pelo reconhecimento.
Próprio Fukuyama reconheceu isso, em uma obra posterior, quando diz que a
batalha pelo reconhecimento antes travada em
...plano militar, religioso ou nacionalista é agora desfechada no plano econômico.
Os príncipes que outrora procuravam derrotar uns aos outros arriscando suas
vidas em sangrentos embates, agora arriscam seu capital erguendo impérios
industriais.130
Com isso,
129
Idem, op.cit., p. 240. 130
FUKUYAMA, Francis, Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade, Rio de Janeiro: Rocco,
1996, p.381.
123
o que geralmente passa por motivações econômicas não é de fato uma questão de
desejo racional, mas uma manifestação do desejo de reconhecimento. Os desejos e
as necessidades naturais são pouco numerosos e facilmente satisfeitos,
particularmente no contexto de uma economia industrial moderna. Nossa
motivação pelo trabalho e para ganhar dinheiro se relaciona muito mais
intimamente com o reconhecimento que essa atividade nos confere, atividade na
qual o dinheiro se torna símbolo não de bens materiais, mas de status social ou
reconhecimento.131
Quando se diz que estamos no fim da história e identifica a luta pelo
reconhecimento com a luta pelo status econômico- social está assumindo que o
reconhecimento recíproco não confrontativo ou conflitivo é impossível. O/a outro/a só pode
ser olhado como meu/minha competidor/a na luta por uma posição mais privilegiada na
sociedade. Assim, Fukuyama, apesar de sua tentativa de uma leitura otimista e benévola de
Hegel e da história, não consegue superar a dialética de senhor e escravo, não consegue
olhar o o/a outro/a como outro/a, num reconhecimento verdadeiramente recíproco. A sua
noção de desejo continua dentro das tradições ocidentais, continua sendo no fundo o desejo
de dominar o/a outro/a.
Ao propor a economização da vida, a expansão dos critérios de racionalidade e
eficiência econômica para todos aspectos da vida, como o único caminho para superar a
megalothymia, Fukuyama acaba defendendo a tese paradoxal de que a única forma de
realizar o desejo de reconhecimento recíproco entre iguais é desejar ser reconhecido como
superior por outros. Em outras palavras, se contradiz e não consegue sair do impasse
existencial, dessa contradição trágica. A sua proposta otimista da realização do
reconhecimento pela economização da vida não consegue escapar da visão trágica do
pensamento hegeliano, pois o reconhecimento que se aspira não provêm de outro ser
humano reconhecido, mas sim de um ser derrotado, reduzido à condição infra-humana. É
reconhecido por alguém que ele não reconhece.
Desejo e consumo
Quando Fukuyama reduz os caminhos concretos do reconhecimento ao campo
econômico, ele está propondo fundamentalmente a competição econômica, isto é, a
acumulação do patrimônio e/ou a ostentação do consumo. Com isso, na verdade, está
expressando e legitimando aquilo que diversos sociólogos caracterizam como algo
distintivo do nosso tempo: a cultura de consumo. Mike Featherstone diz que “usar a
expressão ‗cultura de consumo‘ significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus
princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade
contemporânea”132
e que, na dimensão cultural da economia, a simbolização e o uso de
bens materiais funcionam como “comunicadores”, e não apenas como utilidades. Ou como
diz, Canclini, “no consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e comunicativa
de uma sociedade”.133
131
Idem, Confiança..., op.cit., pp.379-380. 132
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 121. 133
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores y ciudadanos. Conflictos multiculturales de la globalización.
México: Grijalbo, 1995, p.80
124
Quando o consumo passa a ser um dos critérios fundamentais na construção da
identidade e ocupa um lugar importante no processo de comunicação social, ele passa a ser
um dos ordenadores fundamentais do desejo na sociedade. Pois nenhuma sociedade ou
grupo social suportam demasiada irrupção errática dos desejos, nem a conseguinte incerteza
de significados. O desejo de reconhecimento pelo outro no confronto econômico necessita
de estruturas nas que se pense e ordene aquilo que desejamos.
É neste jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem
também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo no
qual os desejos se convertem em demandas e em atos socialmente regulados.134
Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, o caminho do reconhecimento
e da dignidade humana, então nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes
têm qualquer chance de trazer a satisfação de manter-se ao nível dos padrões exigidos. Pois
não há padrões a cujo nível se manter quando a linha avança junto com o corredor. Em
outras palavras, nem o vencedor na luta pelo reconhecimento encontra o seu “repouso”, a
sua satisfação. Ele também precisa correr atrás de uma meta que como um horizonte teima
em distanciar-se cada vez que pensa que chegou mais perto.
A redução da realização do desejo humano de reconhecimento ao campo da
economia é um caminho sem fim e sem saída. A única forma de superar essa concepção
trágica do desejo humano é o reconhecimento do/a outro/a enquanto outro/a no desejo
solidário, desejo de cooperação e de inclusão dos/as excluídos/as, dos/as “perdedores/as”.
Só assim a pessoa pode ser reconhecida por alguém que ela mesma reconhece. Quando
todos se vêem somente como consumidores, a solidariedade é impossível. A recuperação da
multirreferencialidade da nossa identidade é fundamental para que possamos sair dessa
aporia que essa visão hegemônica no ocidente nos colocou.
A nossa crítica à cultura de consumo que reduz o ser humano ao consumidor não
pode ser entendida como uma crítica ao consumo como tal. Isso seria uma outra forma de
reducionismo. Um dos problemas fundamentais dos pobres é o seu baixo nível de consumo.
O que significa dizer que as lutas solidárias são no fundo lutas voltadas para aumentar o
nível de consumo dessas pessoas. E este consumo não pode ser restrito ao que se chama de
“cesta básica” para suprir as necessidades básicas. Pois, um outro ponto importante,
freqüentemente esquecido pelas esquerdas, é que o ato de consumir também proporciona
prazeres sensitivos e é um meio de realização dos desejos.
Marx obsessionado por detectar a forma primeva, inicial, (Urform) ou a forma
seminal (Keimform) do capitalismo fixou-se na forma-mercadoria como a mais seminal e
originante. Por isso as relações mercantis passaram a ser vistas como o mais determinante
das relações sociais, e, no interior dessas, das relações de produção. Essa opção teórico-
analítica contém vários pressupostos que podem ser problematizados de muitas maneiras.
Vamos a alguns exemplos: tem-se a impressão de que Marx concebe a forma inicial e/ou
originante como uma espécie de ponto euclidiano ou ponto inicial de uma linha. A própria
forma de indagação teórica estaria inscrita, nesse caso, numa linearidade, ao menos no que
se refere ao momento de arranque da análise. O que segue de uma concepção linear do
início do pensar geralmente se desdobra depois numa espécie de abertura de raios ou linhas
decorrentes. Perguntemos até que ponto semelhante lógica está condenada fatalmente a
134
Idem, op.cit., p.48.
125
uma determinada aplicação do princípio de causalidade, ou seja, uma seqüência da
causalidades lineares. A concepção do “início” ou princípio originante muda
completamente se, em vez de um ponto, se imagina um campo. Nenhuma teoria de campo
cabe dentro do enfoque linear de causalidades. Para que o início (ou a dinâmica) de
qualquer fenômeno seja visto como um campo, e não como um ponto, a própria forma de
pensar esse início deve ser complexa ou, o que vem a ser o mesmo, deve saber lidar com
interrelações complexas de “causalidade”. O cerne da teoria da complexidade consiste
numa concepção diferente já não linear da causalidade.
Um segundo exemplo: como conceber o detonante inicial de um processo de
desejos? Como definir analiticamente a forma-desejo-originante (Urwunsch)? Parece que
somos chamados imediatamente a pensar muito mais num campo do que num ponto.
A pergunta venenosa é a seguinte: será que Marx nunca pensou que a forma-
mercadoria só poderia ser forma-originante de vastos processos de relações sociais se
fosse, primordialmente, a expressão concreta de uma prática histórica desejante? Se a forma
originante coincide com a forma desejante e efetivamente nela se constitui, e se não se trata
de um ponto mas de um campo, a pergunta analítica se transformaria fantasticamente em
algo parecido à seguinte formulação: quais foram e são os complexos campos de desejos
humanos que encontraram na forma mercantil das relações capitalistas um caminho de
desencadeamento e ampliação jamais oferecido por outras formas de organização social?
Esse “conjunto versátil” de necessidades e desejos humanos é, sem dúvida, extremamente
complexo, mutante, aberto a constantes transformações e exposto a inevitáveis
manipulações.
A economia e a manipulação histórica dos desejos
O que segue agora é um intermezzo de reflexão um pouco mais analítica acerca de
crenças sumamente estranhas que o pensamento econômico continua arrastando consigo e
cujo cerne é abstrato e mítico. É uma temática um pouco mais exigente, mas que precisa ser
encarada sem medo para podermos resgatar, em meio a tantas manipulações históricas dos
desejos humanos, uma dimensão radical de intencionalidade solidária, que impregna toda a
evolução da nossa espécie, a pesar da terrível cadeia de brutalidades anti-solidárias que a
história registra. (Quem se sentir pouco a vontade, nesse terreno mais árido, pode saltar à
seqüência mais amena da seção seguinte).
Será que os humanos precisamos de grandes mundos ficcionais do sentido para
sentir-nos capazes de esperança? Será que nossos desejos, quando se tornam coletivos,
buscam inevitavelmente um ponto de fuga numa espécie de infinito simulado, em lugar de
se comportarem como ânsia de alegria compartida nesta vida e neste mundo? Há deveras
semelhanças muito estranhas entre a confiança no poder da Igreja na Idade Média e a
confiança de hoje no mercado mundializado com seu carro-chefe, o capital financeiro.
Nos dois casos trata-se de mediações sumamente abstratas e virtuais. Mas que
podem assumir uma arbitrariedade e um poder de arbítrio terrivelmente implacáveis. A que
se deve isso? Parece que se deve à "colaboração" (pelo visto, imprescindível) de uma
confiança quase cega. Não é à toa que sempre de novo se desemboca na exigência da
confiança (cf. Fukuyama). Parece até que os humanos, quando precisamos de ações
coletivas conjuntas, sempre tendemos a inventar algum tipo de mediação abstrata. Somos,
ao que parece, inventores profissionais de ídolos.
126
A construção arbitrária do mito do crescimento econômico - como premissa e
panacéia, como base para todas as postergações de mudanças substantivas - tem muito a ver
com esses níveis fetichizadas da confiança. Trata-se de uma ingente indústria de distorção
dos nossos desejos relacionais. Praticamente todos os critérios macro-econômicos
(estabilidade da moeda, controle da inflação e do déficit público, taxa de juros,
direcionamento das ajudas financeiras, etc.) levam embutidas doses cavalares de simulação
da confiabilidade.
Em tudo isso evidentemente nunca se trata apenas de economia. Está em jogo uma
usurpação do sentido de nossos desejos e ações. Reconstruir os campos do sentido implica,
portanto, remexer a fundo os referenciais históricos das nossas esperanças. Isso não será
possível sem apostatar dos ídolos usurpadores do nossos profundos anseios de confiar uns
nos outros. E provavelmente não basta que esta apostasia sela manejada no plano dos
argumentos racionais. A "racionalidade" humana tem ainda outras dimensões. A apostasia
dos ídolos provavelmente deverá enraizar-se em experiências desejantes, cujos referenciais
concretos em nosso cotidiano nos tornem vivencialmente evidente que os ídolos não são
portadores de uma "boa nova" (um evangelho), mas nos enganam descaradamente. E com
isso retornamos ao tema do auto-engano135
.
O lugar do desejo de algo incondicionalmente gratuito, porque relacionalmente
concreto, jamais deveria ser ocupado totalmente pela confiança necessária em princípios
organizativos. A esperança precisa de uma reserva do desejo não integralmente cedido às
instâncias mediadoras da socialidade organizada ampla136
. Há uma relação de
convergências e divergências sumamente complexa entre ter confiança e ter esperança. Este
assunto está ainda muito pouco aprofundado em nossas concepções antropológicas.
O imaginário cristão acerca da graça contém muitos pressupostos, à primeira vista,
estranhos. Um deles é o de um misterioso inter-fluxo de benevolências invisíveis entre os
fiéis, algo muito próximo do que hoje muitos denominam o campo Psi. Este pressuposto de
um inter-agenciamento de benevolências recíprocas subjaz às grandes metáforas
eclesiológicas do Corpo Místico de Cristo e da Comunhão dos Santos.
Se é correta essa visão de um pressuposto de solidariedade congênita entre os "fiéis"
e "santos" , é bastante estranho que os cristãos tenham admitido, com tamanha naturalidade,
que houvesse excluídos radicalmente afastados da salvação, isto é, condenados. Como pode
coexistir um pressuposto geral de includência e solidariedade com semelhante aceitação da
exclusão sobretudo se ela era/é usada como recurso de cobranças à submissão a doutrinas e
esquemas organizativos específicos? A resposta talvez se encontra na coexistência desses
imaginários da solidariedade com o seu complemento truculento: o tema da "eleição" -
Deus teria seus preferidos, os eleitos. O resto pode perder-se nas "trévas".
Quando se chegará a tomar consciência de que o conceito ocidental de Deus nunca
parece estar isento desse dualismo da confrontação com um reino oposto? Não é, pois, de
estranhar que isso reapareça por todo lado: nas teorias do desejo, na antropologia
econômica. Se o deus ocidental é um competitivo, por que seus fiéis não o seriam? Mas não
se trata de acusar os deuses. A (psico-)análise dos deuses é impossível, porque eles não são
135
GIANNETTI, Eduardo, Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 136
Algo disso começa a perfilar-se em relação a franjas da assim chamada "Nova Economia", onde aparecem
franjas de "conveniência do gratuito", porque certos softwares e aplicativos da informática já entraram no
"reino da não escassez" e seria quase impossível reintegrá-los nas mercadorias com preço. Estão surgindo
também ensaios sobre a "economia da dádiva". Cf. GODBOUT, Jacques T. O espírito da dádiva. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.
127
convocáveis a isso. São os seres humanos os que precisam entender por que em sua
evolução emergiu a "revelação" de tais mitos e deuses. Trata-se de entender as razões
"evolucionárias" que levaram a nossa espécie a inventar esse tipo de auto-concepção
projetada em seus mitos e deuses. Haveria que examinar até que ponto os antropólogos já
conseguiram entrelaçar as funções explicativas dos mitos (os mitos são bons para serem
comidos, nos ajudam a "explicar" o mundo, etc.) com seu papel enquanto pontos de fuga de
nossos desejos. (Mas isto é assunto para outros divertimentos).
As teorias econômicas têm estranhos pontos comuns com as teorias teológicas
acerca da salvação e da graça. Nos dois campos, existem constantes apelos à confiança, e
esses apelos parecem remeter, sempre de novo, a um pressuposto oculto de que o reino da
salvação e o reino da economia contariam com uma solidariedade já garantida, em última
instância. Tanto a teologia como a economia promovem uma crença básica ingênua num
mundo benévolo, como último determinante "ecológico" de nossas existências. Mas, nos
dois campos, essa promessa de uma solidariedade básica, apesar de jamais se cumprir na
prática, continua reclamando validade.
Por que - nesse plano sumamente abstrato - as mentiras repetidas nunca parecem
desnudar-se completamente? Mais estranho ainda é a auto-validação desses "poderes"
consiga, tantas vezes, "fazer crer" que as promessas continuam válidas apesar de não se
realizarem a não ser para alguns privilegiados (os "eleitos"). Parece até que o tema dos
"eleitos", tão antigo nas religiões, sobrevive na moderna economia. Pode-se comprovar um
jogo, nem sequer tão sutil, de exigência da confiança continuada, mesmo quando se admite
que não todos "couberam" (por enquanto...) nas promessas feitas. Os que ficaram de fora da
solidariedade anunciada sempre serão culpados como aqueles que não tiveram suficiente
confiança na crença básica da solidariedade. Não se salvam porque não confiaram em que a
salvação lhes tocaria também a eles.
Para a teologia e para a economia todos devem nascer e perseverar como confiantes.
Os desconfiados não se salvam. A exclusão, pode então, ser apresentada como culpa de
descrença. Mas que fazer se o mundo social nos condena inevitavelmente a desconfianças?
A exigência básica continuará sendo que se exerça a confiança. Este parece ser um dos
aspectos mais misteriosos do funcionamento dos campos do sentido na vida social.
Existem, aparentemente, campos do sentido que foram estruturados a partir de pressupostos
cuja verificação histórica estava, de antemão, proibida. Quando o vazio (ou a mentira) do
pressuposto se manifestam com toda a sua crueldade na vida cotidiana, sempre aparecem
rapidamente surpreendentes formas para recriar a confiança naquilo que a realidade já
desmentiu infinitas vezes, a saber: que haveria uma solidariedade básica, na qual o sentido
de nossas vidas poderia apostar confiadamente, ilimitadamente.
Caberia examinar historicamente as maneiras, muitas vezes até engraçadas, pelas
quais os profissionais da salvação conseguiram refazer a confiança na disponibilidade da
"graça de Deus", mesmo em meio a contextos que pareciam desmentir completamente essa
disponibilidade da graça. Como é sabido, o recurso à salvação num "outro mundo" foi o
mais usado pelas religiões. Mas como é que os economistas lidam com este assunto do
esvaziamento sócio-histórico da confiança, exigida com tanta insistência, mas de tão difícil
cumprimento?
Na realidade, os economistas nunca desistem de trabalhar com o pressuposto de
uma solidariedade básica, ou seja, uma crença de que, apesar de todos os desmentidos
factuais, é possível continuar afirmando que existe, no bojo mais profundo das atividades e
dos projetos econômicos, uma tendência congênita em direção ao bem-comum. Dito de
128
outra maneira, a economia provavelmente nem funcionasse na prática sem doses
apreciáveis de confiança de que, mesmo com tantos enganos, algo há que não nos engana.
Esse algo oculto, seria o ponto de convergência das confianças cobradas, e acerca desse
algo - um algo totalmente indefinido - se poderia manter, sempre ainda e apesar de tudo, a
crença de que se trata de um dinamismo solidário.
Valeria a pena examinar os extremos mais aberrantes a que pode conduzir essa
doutrina da confiança imprescindível numa solidariedade de última instância, supostamente
já inserida na história evolutiva da nossa espécie. Exemplos: confiar na bondade
fundamental de sistemas de crença (religiosos ou outros) que visivelmente se desdobram,
na prática, na mais descarado distanciamento das necessidades e desejos da maioria dos
seres humanos envolvidos no vasto campo semântico imposto mediante semelhante sistema
de crença. A porção maior do capital financeiro, na fase atual de mundialização do
mercado, nem se preocupa com sua eventual relação com a produção de bens e serviços.
Em si, isso não deveria parecer-nos tão inédito. Houve longos períodos da história humana,
nos quais os valores apregoados pelos sistemas de crenças estavam de fato em gritante
oposição às demandas mais cotidianas da produção e reprodução social da vida E apesar
disso - coisa que nenhum historiador negará - tais sistemas sobreviveram por séculos.
Talvez não seja absurdo supor que a nossa espécie tem um desejo atávico da
solidariedade, embora, a sua história evolutiva não comprove a sua capacidade de ser
solidária para além de limites relacionais bastante estreitos. Esse desejo solidário atávico,
provavelmente persiste precisamente apenas enquanto desejo, apoiado em experiências de
convivialidade indispensáveis nos grupos humanos primitivos. Persiste como desejo, mas
não como um ethos prático, ou um conjunto de valores para cuja execução houvesse
predisposições adequadas em nossa corporeidade.
A persistência atávica do desejo solidário talvez faça parte de um escindimento, de
uma fissura original que se foi constituindo no desdobramento evolutivo da nossa espécie
na medida em que os nichos vitais comunitários e cooperativos se foram transformando,
através da própria multiplicação dos grupos, em campos operacionais de competitividade e
confrontação. Dito de maneira muito resumida: algo do campo de sentido primordial, que
tinha características solidárias (cf. Neotenia, no final deste livro), continuou sendo arrastado
pela evolução da espécie como saudade persistente de experiências agradáveis de
solidariedade nos contextos primevos da evolução humana, constituindo a "sobra de um
sentido" cujas demandas operacionais foram sendo substituídas por outras demandas
operacionais marcadas pela competitividade e pela confrontação.
Somos um animal que acumulou filogeneticamente propensões à destrutividade e
agressividade, como herança genética e cultural de múltiplas e difíceis lutas pela
sobrevivência, mas que também guarda ainda - sob a forma de um desejo atávico,
enquanto Urform (forma originante) do desejo - um pendor para a solidariedade, que,
embora operacionalmente tão vazio, é tão forte que sobre ele se podem erigir vastos
constructos religiosos e econômicos (a hiatória o comprova).
Possivelmente a operacionalização concreta da esperança deva resgatar também
essas raízes profundas - incrivelmente manipuladas ao longo da história - das nossas ânsias
de convivialidade. Por que não explicitar melhor para a nossa espécie, e propor-lhe como
projeto, nessa virada civilizatória, uma coerência prática com a nostalgia da convivialidade
que, porventura, ela ainda guarda como saudade da Primeira Neotenia? Por que não falar
que, no passo para uma verdadeira Humanização, existem certas analogias com o passo
129
evolutivo efetivamente dado em nossa Hominização? É claro que uma Segunda Neotenia
não emergirá do prosseguimento da evolução sem a nossa participação explícita.
Amizade e inveja: uma crônica do cotidiano
Retomando o tema das concepções de desejo e de ser humano dominantes na nossa
cultura, fica mais clara a sua importância se lembramos do que dissemos antes acerta do
nosso duplo estatuto de seres biológicos e culturais. Nós tomamos contato com nossos
sentimentos, emoções e desejos por meio da cultura na qual estamos imersos. Essas noções
de ser humano e do desejo humano de reconhecimento conforma a nossa percepção de
nossos desejos e sentimentos, e o modo como vemos a nós mesmos e a outros/as.
Uma crônica de Danuza Leão – que retrata a vida social do Rio de Janeiro –,
publicada em alguns dos maiores jornais do país, nos dá uma idéia de como essas teses
estão presentes e conformam o nosso cotidiano.
Tem graça jantar com Madonna e ninguém saber? Claro que não. Aliás, de
que adianta ter todas as glórias da vida - não que jantar com Madonna seja
uma delas, apenas um exemplo -, se as amigas não vão saber e se esse
acontecimento não chegar aos ouvidos das inimigas, sobretudo? [...] qual o
interesse em desfilar usando jóias, ter uma BMW ou aparecer na televisão?
Para que vejam e comentem, com admiração ou inveja; e também - por que
não dizer? - para dar raiva nos outros. [...]Viver dá trabalho, e é uma pena
pensar em como são poucas as coisas feitas apenas para nosso prazer
pessoal, sem precisar de platéia para aplaudir ou cobiçar.137
Para que “batalhas econômicas” se não podemos causar invejas em amigas/os e,
sobretudo, em inimigas/os? Os bens ou a exposição na mídia não valem por si, mas pelo
reconhecimento que se dá na inveja ou admiração provocadas principalmente em
inimigas/os. Assim, a admiração da amiga vale mais se for carregada ou misturada com
inveja. Por isso, o tom da crônica dá muito mais acento na inveja do que na admiração. E a
vida dá trabalho porque não se vive para prazer pessoal, mas para sentir o prazer que nasce
do provocar inveja em outros/as. Assim, a noção de amizade é profundamente modificada.
Amiga é aquela que sente inveja de nós, sem ser inimiga declarada. Na verdade, não há
amigas/os no sentido mais profundo da palavra. Só concorrentes na luta pelo
reconhecimento de ser ou melhor ter o que outros gostariam de ter.
Essa é a razão pela qual, na segunda parte da crônica, Danuza Leão se pergunta pela
atitude das pessoas que “sabem das coisas”:
Elas não costumam ter amigas íntimas, nem contam coisa alguma de suas
vidas ou de seus sentimentos para ninguém [...] Elas sabem que os grandes
momentos de felicidade, aqueles muito preciosos e muito intensos,
dificilmente podem ser compartilhados. Talvez no momento em que eles
acontecem, talvez por uma fração de segundo, talvez o tempo de um olhar,
em silêncio; talvez. Os momentos mais verdadeiros de uma vida - assim
137
LEÃO, Danuza. “Ah, aqueles momentos”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 15/03/1999.
130
como as grandes dores - são pessoais e intransferíveis; e, apesar do que
dizem, não podem ser compartilhados
.
Pessoas que “sabem das coisas” não se preocupam, pelo menos aparentemente,
com a opinião dos/as outros/as, mas também não olham outro/a como um/a possível
amigo/a com quem possa compartilhar o reconhecimento recíproco, compartilhar os
momentos importantes da vida. Sensibilidade solidária, amizade gratuita, cooperação,
reconhecimento recíproco, conceitos assim não fazem parte de um mundo que não ensina a
olhar as pessoas simplesmente como pessoas com quem devemos aprender a conviver e a
cooperar, que não ensina que a vida vale a pena ser vivida porque encontramos prazer de
viver no encontro com a/o outra/o, no compartilhar e no cooperar, apesar de todas as
dificuldades.
Quando, alguém imerso nesta cultura do “eu contra o/a outro/a”, por um “acaso” ou
“descuido” sente compaixão pela dor do/a excluído/a, isto é, quando emerge um desejo de
ser solidário/a e se deslumbra que a felicidade humana está intimamente ligada ao
reconhecimento do/a outro/a enquanto outro/a, vai provavelmente interpretar este desejo
como irracional, sem sentido, ou não-prático economicamente falando.
Sem uma teoria de desejo que se abra ao/à outro/a como tal, que não olhe ao/à
outro/a com olhar de confrontação, sem que uma teoria assim seja parte da nossa cultura,
as pessoas terão muita dificuldade em tomar contato e perceber mais corretamente os
sentimentos de compaixão e empatia, e desejo de reconhecimento recíproco que continuam
brotando entre nós humanos. A cultura conforma a nossa maneira de percebermos a nós
mesmos e a outros/as, mas a cultura que nos conforma não é na verdade “a”, mas sim
“uma” cultura, que pode ser modificada. Além disso, a dimensão cultural não esgota o
nosso ser. Somos também seres naturais, isto é, sem cérebro (natureza) não haveria cultura.
A tríade cérebro-cultura-mente nos permite ver que cultura tem um papel importante, mas
não é a única fonte da nossa humanidade e da nossa socialidade. Voltaremos a este tema.
A ambivalência e o desejo da ordem na modernidade
Por que esta forma de conceber o ser humano e delimitar dessa forma as
multifacetadas possibilidades de desejo tornou-se a hegemônica no nosso mundo? Para
respondermos a esta questão precisaríamos fazer uma longa e extensa pesquisa, que com
certeza não esgotaria a questão. Vamos somente oferecer algumas idéias ou pistas.
Provavelmente, autores que propuseram teorias como as expostas acima acabaram
se tornando hegemônicos porque as suas propostas estabeleceram uma relação de
convergência e de mútuo reforço com o processo histórico assumido pelos Estados e
sociedades modernas.
Principalmente a partir de Hobbes, a sociedade deixou de ser concebida como um
reflexo de algo transcendentalmente pré-definido e externo, e passou a ser concebida como
uma entidade artificialmente ordenada pelo Estado soberano. O mundo em fluxo passou a
ser considerado como algo natural que devia ser restringido pela ordem. A crença de que a
comunidade, como a ordem, é uma criação humana foi fundamental para a
reconceitualização da sociedade.
O mundo moderno descobriu o conceito e o problema da ordem ao mesmo tempo
em que descobriu que a ordem não era natural. Assim, dentre muitas tarefas impossíveis
131
que a modernidade se atribui (como o conhecimento perfeito e a “construção” da utopia),
sobressai a ordem como tarefa. Esse mundo moderno que luta pela ordem é, segundo
Bauman,
moldado pela suspeita da fraqueza e da fragilidade das ilhas de ordem projetadas e
construídas pelo homem num mar de caos [...]A luta pela ordem não é a luta de
uma definição contra outra, de uma maneira de articular a realidade contra uma
proposta concorrente. É a luta de determinação contra a ambigüidade, da precisão
semântica contra a ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da
clareza contra a confusão. [...] O outro da ordem não é uma outra ordem: sua
única alternativa é o caos.138
Se fossemos resumir em um único ponto, é a luta contra a ambivalência que vai
marcar toda a razão moderna e também a sociedade moderna. A ambivalência é a
possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, o que provoca a
ambigüidade e confusão no processo de comunicação e nas relações sociais. Esta
possibilidade de ambivalência nasce de uma das principais funções da linguagem: a de
nomear e classificar. Ao mesmo tempo em que um dos objetivos fundamentais da função
nomeadora/classificadora é a prevenção da ambivalência.
Como a modernidade colocou como uma das suas tarefas fundamentais a construção
da ordem, o que implica em uma racionalização do mundo sem lugar para o acaso e o
imprevisto, buscou aperfeiçoar o processo de classificação visando o fim da ambivalência.
O aperfeiçoamento do processo de classificação – que significou o aumento da
especialização das ciências e, no campo educacional, a disciplinarização da educação – não
levou e nem pode levar ao fim da ambivalência porque nomeações e classificações mais
precisas pedem operações mais precisas ainda e, com isso, dão lugar a mais ambigüidade. É
uma corrida sem fim.
Contudo, como a ambigüidade gera experiências de indecisão e ansiedade, ela é
experimentada como desordem. Experiências de desordem em um mundo que busca a
ordem demanda ainda mais a luta contra a ambigüidade, o que gerará por sua vez mais
ambigüidade que será experimentada como desordem. De novo uma corrida sem fim.
Na teoria é mais fácil dizer que é uma corrida sem fim. Só que na prática, nenhuma
pessoa ou sociedade pode viver por muito tempo com essa sensação de ansiedade e
indecisão que geram o medo da desordem e do caos. Em termos práticos, ou se abdica deste
projeto da ordem sem ambivalência, abdicando do projeto da modernidade e da razão
moderna e aprende a viver com experiências de ambivalência e ambigüidade ou
acredita que esta corrida um dia terá fim.
Para que isso ocorra, é preciso acabar com a ambivalência e expulsar o medo. Para
isso, é preciso esforçar-se para definir com precisão e eliminar tudo ou todos que não pode
ser precisamente definido. Uma sociedade que busca isso vai ter naturalmente uma
inclinação à intolerância, negação dos direitos e das razões de tudo e de todos que não
podem ser assimilados. A busca pelo fim da ambivalência, das definições e classificações
precisas leva à deslegitimação do outro. Como diz Bauman, “Na medida em que a ânsia de
pôr termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é
intolerância – mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que
138
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 14.
132
muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver.”139
(Aqui vale a pena lembrarmos de nossas obsessões pelas definições precisas,
divisões/classificações claras entre e no interior das disciplinas/ciências que compõe o
currículo – a luta pelo fim da ambivalência – nas nossas escolas em todos os níveis.)
A intolerância se expressa em primeiro lugar contra aqueles/as que foram
colocados/as na parte “exterior” da necessária divisão/classificação entre interior-exterior
na construção de uma ordem artificial. O fato de que toda ordem produz necessariamente
uma determinada classificação interna e uma delimitação entre o interior-exterior não
significa que todas ordens irão produzir intolerância como prática social. A intolerância
nasce da busca do fim da ambivalência e, por isso, se volta contra os/as que são
considerados/as inadaptáveis, incontroláveis e ambivalentes. Aqueles/as que chamamos de
excluídos/as.
Nas práticas de intolerância é muito comum ouvirmos os/as intolerantes afirmarem
que as vítimas eram ou são ameaças para a ordem estabelecida, para as pessoas “boas” da
sociedade. Isto ocorre porque toda ordem social produz determinadas fantasias dos perigos
que lhe ameaçam a identidade. Por causa da dificuldade de conviver com a ambivalência e
a ambigüidade, inerentes à condição humana – dificuldade que é agravada pela crença de
que é possível acabar com a ambivalência –, as ansiedades e os medos são projetados
nos/as que estão à margem ou fora da ordem social e esta projeção torna essas pessoas uma
ameaça à ordem.
A extrojeção da ambivalência e ambigüidade interna da ordem social leva a
sociedade e as pessoas inseguras da sua ordem, do seu modo de vida, a desenvolverem
mentalidade de uma fortaleza sitiada. Os/as excluídos/as aparecem assim não mais como
interpeladoras da nossa sensibilidade social e cooperação, mas sim como ameaça à ordem e
a preservação do modo de vida desejada pelas pessoas integradas no mercado. Os/as
amigos/as não são mais para compartilhar reconhecimentos recíprocos, na gratuidade da
amizade, mas concorrentes na luta por provocar invejas em uns e outros, na busca da
realização do desejo de ser superior aos demais. Quem aparentemente não busca
reconhecimento nesta luta, quem “sabe das coisas”(Danuza Leão), se fecha na sua
fortaleza, pois “sabe” que o segredo da vida consiste no isolamento, na apartação
existencial de todos/as que lembram a sua condição humana, a impossibilidade de superar a
ambivalência e a ambigüidade.
Precisamos desejar um desejo diferente, olhar o ser humano de um modo distinto e
pensar com uma razão diferente; senão o mundo humano não terá futuro. (Não teremos
debates frutíferos sobre a sensibilidade social ou sensibilidade solidária se não soubermos
articular de um modo complexo e transdisciplinar os temas do desejo, epistemologia e
antropologia.) Não somente porque o nosso mundo não terá mais um sentido humano, mas
fundamentalmente porque a voracidade do consumo, a enorme capacidade produtiva e
destrutiva possibilitada pelo avanço tecnológico, o progresso cego do nosso conhecimento
científico-tecnológico, a intolerância com os/as inadaptáveis à sociedade da informação e
com estrangeiros/as (em particular nos países ricos), a insensibilidade frente à exclusão
social e outros sintomas da profunda enfermidade que está cometida a nossa espécie nos
levarão a um mundo em que muitas e muitas vidas humanas serão sacrificadas. Alguns
pensadores chegam a falar na possibilidade de uma crise tal que levaria ao fim da
civilização humana como nós conhecemos hoje.
139
Idem, ibidem, p. 16.
133
O cinismo e o desejo de cuidar
É possível um desejo diferente do que conhecemos na nossa tradição ocidental? A
princípio sim. Pois, o modo de conceber o ser humano e o desejo que prevaleceu no
Ocidente não esgotou as possibilidades humanas. Foi uma perspectiva que se tornou
hegemônica e se apresenta como “natural”. Alguns até apresentam essa visão do ser
humano e da sociedade com certo orgulho.
Paul Krugman, em um artigo onde analisa a vitória do capitalismo sobre o
socialismo soviético, se pergunta “porque um sistema que funcionou suficientemente bem
para competir com capitalismo nos anos 40 e 50 caiu nos anos 80. O que aconteceu de
errado?”140
Para ele a mudança tecnológica e a globalização da economia não explicam o
colapso dessa antiga potência econômica e militar. Na sua opinião, “o problema básico não
foi o técnico, mas moral. Comunismo faliu como um sistema econômico porque o povo
parou de acreditar nele‖.
A diferença fundamental do sistema de mercado e a sua superioridade consistiria,
Para Krugman, no fato de que esse sistema “funciona o povo acreditando nele ou não. (...)
O capitalismo pode funcionar, mesmo florescer, em uma sociedade de cínicos egoístas.
Mas uma economia de não-mercado não pode”.
Como conclusão ele diz:
capitalismo triunfou por ele ser um sistema que é resistente ao cinismo, que assume
que cada homem é feito por si próprio. Por mais de um século e meio os homens
tem sonhado com algo melhor, com uma economia que se utilizasse do melhor da
natureza do homem. Mas sonhos, isso ficou provado, não pode manter um sistema
funcionando a longo prazo; o egoísmo pode.
Em parte ele tem razão, mas o problema central é que uma sociedade não pode se
basear somente no egoísmo e na competição. A vitória no campo econômico hoje não
significa que essa sociedade seja social e ecologicamente sustentável por muito tempo.
Apesar do ufanismo dessa visão redutivista do ser humano, o crescente número de
pessoas excluídas das condições de sobrevivência digna e o aumento da instabilidade social
pelo mundo afora exigem de nós a elaboração e difusão de um modo diferente de ver o ser
humano e o desejo que seja operacional e eficaz em sociedades amplas e complexas.
É preciso urgentemente resgatar a socialidade cooperativa detrás desta
predominância das relações competitivas e confrontativas. Antes que seja tarde demais.
Mas devemos reconhecer que precisamos dar um salto verdadeiramente enorme para situar
a socialidade cooperativa como princípio articulador da coesão social. A visão de mundo
que predomina e que, de certo modo se radicaliza com o neo-liberalismo, continua
submetida a uma cadeia de mitos fundadores acerca do humano e da história, nos quais, a
confrontação e a competição exercem a função de chave interpretativa predominante. Na
realidade não se trata de teorias sociais científicas, no sentido popperiano de teorias
falseáveis. Elas se movem num plano mítico de especulações acerca da origem e da
140
KRUGMAN, Paul. Capitalism‘s Mysterious Triumph. Publicado em Nihon Keizai Shimbun. Disponível na
internet, jun/00. As citações seguintes são deste texto.
134
dinâmica dos processos sociais crescentemente mais complexos ao longo da história.
Enquanto mitos, e não hipóteses científicas de teoria social, não podem ser nem
confirmadas nem refutadas. O terrível é que podem perfeitamente ser objeto de adesão no
plano das crenças mais profundas.
Precisamos efetivamente de um novo começo para pensar a socialidade humana. De
pouco ou nada serviria erigir um novo mito no qual apenas se pudesse crer. A solidariedade
não deveria ser rebaixada a enunciados míticos. Ela, no entanto, deverá ser incrementada
num mundo de seres propensos tanto a crer que eles são potencialmente adversários entre
si, como a crer que as adversidades reais poderão ser ocultadas com o manto de simulações
que só servem para nos iludir. O novo início de um pensamento alternativo talvez deva ser
discreto e começar com a reflexão sobre situações humanas, concretas e efetivamente
vivenciáveis, e que não encontram nenhuma explicação dentro da lógica dos mitos de luta,
confrontação e competitividade. Há muitos exemplos da vida real que não se enquadram
dentro da lógica da competição. O problema é que, somos cegos diante de muitos
acontecimentos relacionais humanos que não cabem dentro da lógica mercantil
confrontativo.
Retomemos a metáfora da reciprocidade do olhar, tão terrivelmente distorcida tanto
por Adam Smith e mais ainda por Hegel. Para redescobrir o que significa olhar, enquanto
fonte constitutiva da identidade do indivíduo, e para resgatar um sentido verdadeiramente
humanizador no reconhecimento mútuo, nada melhor do que começar com uma breve
reflexão sobre o que acontece entre a mãe e a criança no início da vida humana.
Note-se que não estamos, nessa altura da reflexão, à busca de nenhum princípio
organizativo que se preste para pensar a organização global de uma sociedade, seja em sua
eficácia efetiva de bens e serviços, seja na imensa variedade de outros aspectos da vida
social. O que se pretende destacar é simplesmente a serventia praticamente nula do
princípio da competitividade para entender fenômenos tão básicos como as relações entre
mãe e filho/a nos meses iniciais da vida de um ser humano. O aspecto específico sobre o
qual queremos concentrar nossa atenção é precisamente a emergência do caráter humano
nessa relação. Praticamente todos os ingredientes relacionais das experiências iniciais da
vida humana escapam a um modelo interpretativo que tome como dinâmica articuladora a
competitividade. Cabe aqui uma citação de Todorov, sumamente ilustrativa por seus
detalhes e pela vinculação forçada à linguagens mercantis, precisamente para revelar que
elas não cabem:
Os primeiros movimentos recíprocos entre a mãe e a criança não tem em si
nada de especificamente humano. A criança ―demanda‖ ser alimentada e
mantida em quentura acolhedora. Numa palavra, quer ser protegida. A mãe
―demanda‖ dar proteção. Essa relação inicial tem muitos equivalentes no
mundo dos animais. Isso é indiscutível. Contudo, ao cabo de poucas
semanas, começam a ocorrer fenômenos especificamente humanos. A
criança começa a trocar olhares com a mãe (ao que parece, a focalização
da imagem dela só se aperfeiçoa ao longo de três a quatro meses) ... já não
apenas para que a mãe a alimente e conforte, mas também porque esse
olhar recíproco começa a significar para ela a descoberta de um mundo
novo que ela experimenta como complemento indispensável. Esse olhar
confirma para a criança a sua própria existência. Em outras palavras,
agora a criança 'demanda' o reconhecimento da parte da sua mãe (o de um
135
adulto que assuma essa função, que pode ser também o pai ou uma terceira
pessoa). A mãe procura conceder a sua criança esse reconhecimento,
dando-lhe segurança da sua existência. E ao mesmo tempo, mesmo que não
tenha nenhuma consciência disso, ela se sente reconhecida em seu papel de
agente do reconhecimento através da troca de olhares com sua criança.
Portanto, a existência do indivíduo, enquanto especificamente humano, não
se inicia num campo de batalha ou numa confrontação competitiva, mas no
pedido, que a criança está fazendo, de que a mãe olhe para ela, uma
situação evidentemente ―menos heróica‖. Para evitar mal-entendidos
convém acrescentar que a palavra ―olhar‖ está sendo usada aqui para
expressar o conjunto de fluxos de comunicação que começam a intensificar-
se no contato recíproco entre ambos. Mas na ausência do olhar (como no
caso da criança cega) outros sentidos, especialmente o tato e a audição,
cumprem o mesmo papel.141
Tentemos, agora, de analisar brevemente essa relação entre a mãe e a criança, na
linguagem do desejo. O que se pretende é provocar a sensação nítida de um contraponto
evidente com a teoria do desejo, que encontramos em Hegel. Para Hegel, a reciprocidade
dos desejo de reconhecimento - analisada na dialética senhor-escravo - está marcada
estruturalmente por uma dinâmica de confrontação competitiva. Essa matriz interpretativa
não é apenas questionável mas evidentemente ridícula e insultante, quando aplicada às
relações iniciais entre a mãe e sua criança (o que não significa que não possa haver
posteriormente entre eles relações conflitivas e até mesmo edipianas). Nem Freud ousou
aplicar sua famosa obsessão pelo complexo de Édipo ao surgimento das primeiras relações
de reconhecimento mútuo entre mãe e filho/a.. Voltemos a citar Todorov:
Será que a criança deseja o desejo de sua mãe? Ela deseja seu olhar, sua
presença, numa palavra: seu reconhecimento (sua acolhida). Mas, em
termos apropriados, esse reconhecimento somente pode ser chamado desejo,
no sentido competitivo, forçando muito a imaginação.142
Portanto, temos que falar do desejo num sentido completamente diferente daquele
que Hegel dá a essa palavra. Esse conceito alternativo de desejo nos servirá para
fundamentar tanto a abertura acolhedora ao outro/a, como, sobretudo, para frisar que é
possível querer a felicidade alheia como parte integrante da felicidade própria, ou seja, que
é possível sonhar com uma profunda unidade entre o desejo e a necessidade de sermos
solidários. Na visão de Hegel - e na de muitos outros autores, inclusive René Girard, com
sua teoria do desejo mimético fundamentalmente competitivo -, o entrejogo dos desejos
humanos sempre é potencialmente voraz, porque submetido a uma inescapável
contraposição. O exemplo do entreolhar-se da mãe e da criança nos serve apenas como um
exemplo gritante de que precisamos de uma outra teoria do desejo para poder conferir
substância a uma visão não-competitiva daquelas muitas formas de relacionamento humano
que não cabem no esquema das relações mercantis. Poderíamos ter seguido adiante com
uma teoria sobre o surgimento das primeiras trocas de sorrisos entre mãe e filho/a, e assim
141
TODOROV, T. loc.cit. 142
TODOROV, T. loc.cit.
136
chegar aos poucos a entrever uma vasta gama de experiências humanas de reciprocidade, às
quais não cabe aplicar o princípio organizativo da competitividade. Note-se bem que, em
nenhum momento, se pretende negar a abundante presença da competição na socialidade
humana. Podemos até mesmo admitir que ela represente, até certo ponto, um forte princípio
organizativo, entre outros, na dinamização da produtividade social de bens e serviços. Não
se trata de objetar a presença importante de mecanismos de mercado na sociedade.
Pretende-se apenas sublinhar que a expansão da dominância da competitividade econômica
para todos os aspectos da vida social é um equívoco antropológico tão grande ou maior que
o equívoco antropológico que consiste em imaginar os seres humanos como naturalmente
solidários, bastando para isso alguns piparotes de conscientização acerca de metas sociais
comuns, cujo planificação e execução se entregaria generosamente às mãos de vanguardas
iluminadas.
O amor e a humanização
As primeiras relações entre mãe e filho/a, usado até agora como um exemplo para
criticar a concepção confrontativa do desejo, nos traz um outro ponto muito sugestivo: o
imprinting cultural. Konrad Lorenz propôs o termo imprintig para falar da marca indelével
que as primeiras experiências imprime no animal recém-nascido. Por exemplo, filhotes de
passarinhos que, ao sair do ovo, seguem como se fosse a sua mãe o primeiro ser vivo que
passe por ele. A partir desse conceito de Lorenz, Edgar Morin fala de imprinting cultural
nos seres humanos: “O imprinting cultural marca os humanos desde o nascimento,
primeiro com o selo da cultura familiar, da escolar em seguida, depois prossegue na
universidade ou na vida profissional.”143
Não queremos debater aqui até que ponto é possível utilizar esta metáfora que vem
da biologia para falar dos seres humanos. Mas, não devemos esquecer que próprio Lorenz
buscou a metáfora do imprinting fora da biologia. Aliás, as ciências costumam elaborar
seus conceitos novos buscando alguma metáfora de uma outra área. O que nos interessa
aqui é mostrar que é possível pensar desejo de outra forma que não seja essa visão
redutivista hegeliana. Mais importante do que a “cientificidade” das teorias sobre a
estrutura fundamental do desejo, é a elaboração de teorias ou conceitos que dêem conta da
multifacetadas possibilidades do desejo humano e que nos ajude a superarmos este sistema
econômico-social que se orgulha do seu cinismo e egoísmo.
Voltando, podemos dizer que o imprinting cultural primário é esse reconhecimento
que vem do olhar da mãe (ou de quem faz este papel), que é um olhar do cuidar, do zelar,
guardar. Um olhar de reconhecimento baseado na reciprocidade e não na confrontação
competitiva. Por sobre este imprinting cultural primário são impressos sucessivos selos da
cultura familiar, das escolas, dos grupos de amigos, universidades e dos ambientes
profissionais.
Sobre esta experiência maternal-acolhedora vão se sobreescrevendo marcas
patriarcais competitivas e confrontativas. O problema não está nestas camadas ou selos
posteriores, mas no fato de essas marcas posteriores ir ocultando essa experiência de desejo
fundante. A solução não é retornar a essa experiência original maternal e querer organizar
toda a vida social a partir desse princípio. Nós já vimos que isso não é possível e nem
desejável. Não podemos cair novamente no dualismo: patriarcalismo versus
143
MORIN, Edgar. Os sete saberes..., op.cit., p. 28.
137
matriarcalismo. O problema está exatamente no desencontro que aconteceu na nossa
civilização entre estes dois princípios necessários à vida em sociedade ampla e complexa.
Os imprintings culturais, por serem culturais, não são indeléveis nem totalmente
apagáveis, e nem deterministas. Podem ser revistas, reformuladas e/ou recuperadas.
Processos educacionais podem reforçar unilateralmente as marcas patriarcais-
confrontativas ou podem ajudar a recuperar a experiência originante do desejo de
reconhecimento recíproco no olhar do cuidar, o desejo de felicidade alheia como parte
integrante da felicidade própria. Este imprinting cultural primário, esta experiência do
amor maternal, pode ser recuperado porque está lá, no fundo do desejo humano. É claro que
para isso é preciso que se propicie à pessoa um ambiente acolhedor e relações de
reconhecimento recíproco que aceite a ambivalência, os limites e as potencialidades de
cada um/a.
Estas reflexões nos mostram que a essência humana do desejo não se reduz à
contraposição conflitiva desses desejos. Ao contrário, muito embora alguma dose de
conflitividade quase sempre esteja presente no entrejogo dos desejos humanos, é
perfeitamente possível descobrir neles uma dimensão convergente mais fundamental do que
todas as formas de competitividade. Esta é a nossa tese fundamental que diverge, como é
óbvio, radicalmente da concepção hegeliana, e mesmo freudiana, da dinâmica do desejo. É
a dimensão convergente dos desejos que os eleva a algo eminentemente humano e
humanizador, sem que devamos reclamar uma exclusividade especificamente humana para
todas as formas de trocas desejantes. Os outros animais também realizam e provavelmente
experimentam trocas desejantes. Mesmo assim cabe ousar a hipótese de que o “algo mais”,
que surgiu na evolução da nossa espécie, provavelmente é interpretável de uma forma
melhor não com esquemas racionalistas, que situam na razão a nossa especificidade
humana, mas com uma apreciação positiva da nossa capacidade de desejarmos uns/umas
para os/as outros/outras uma verdadeira alegria de viver. Se aplicarmos a isso a palavra
amor, embora excessivamente trilhada, talvez se perceba intuitivamente que esse amor já
não pode ficar confinado em dualidades, mas exige irradiar-se socialmente como amor
solidário, isto é, troca desejante coletiva que anela a construção de ecologias sociais de
felicidade compartida, nas quais se torne efetiva, de alguma forma, a nossa limitada
possibilidade de transformar nossos desejos de reciprocidade em necessidades vitais.
Para Humberto Maturana a linguagem, que está na origem do ser humano, “se
origina em uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual esses nossos antepassados
conviviam compartilhando alimentos, na sensualidade, em grupos pequenos, na
participação dos machos na criação das crianças, no cuidado com as crias, nas
coordenações de ação que isso implica.”144
E o que tornou esta convivência possível foi o
fundamento básico do emocionar-se do mamífero e do primata. “A emoção que torna
possível essa convivência é o amor, o domínio de ações que constituem o outro como
legítimo outro na convivência.”145
Por isso ele diz:
Emocionar, em cuja conservação se constitui o humano ao surgir a
linguagem, centra-se no prazer da convivência, na aceitação do outro junto
a nós, ou seja, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no
qual aceitamos o outro na proximidade da convivência. Sendo o amor a
144
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997, p.46. 145
MATURANA, Humberto. Loc.cit.
138
emoção que funda a origem do humano, e sendo o prazer do conversar
nossa característica, resulta em que tanto nosso bem estar como nosso
sofrimento dependem de nosso conversar.146
Amor e o olhar materno-filial como imprinting cultural primário, amor e o
conversar, ouvir o/a outro/a mutuamente na sua alteridade, como fundamento biológico-
cultural da origem e evolução da nossa espécie. Perspectivas que nos revelam que é
possível pensar o desejo de uma outra forma do que a brutal conclusão de Hegel-Kojève:
“Por isso a existência humana, histórica e auto-consciente, somente é possível onde há ou -
ao menos - houve lutas sangrentas, guerras pelo prestígio.”147
Para evitar qualquer mal-entendido, queremos deixar claro novamente que não
estamos propondo uma volta romântica ao passado da nossa espécie, nem propondo, como
Maturana faz, que o amor seja o único princípio organizador da sociedade, sem nenhuma
relação de concorrência. Isso não é possível, nem funcional, nas sociedades amplas e
complexas. Competição, competências e solidariedade são ingredientes necessários em toda
sociedade ampla e complexa que quer garantir a todos/as a produção e a distribuição do
suficiente para uma vida digna e prazerosa.
A evolução da espécie e o surgimento de sociedades cada vez mais amplas e
complexas fizeram emergir novas propriedades, como também o crescimento de uma
criança faz surgir novos tipos de relacionamento familiar e social. Contudo, isso não
significa que o amor materno ou o amor que fez possível o surgimento da espécie humana
devam ser esquecidos ou substituídos completamente por uma noção de desejo
confrontativo ou pelas relações de concorrência. Pelo contrário, a vida madura de uma
pessoa ou a sobrevivência saudável da nossa espécie depende da nossa capacidade de
reordenar a vida integrando esse amor com outros tipos de relações – incluindo a
competição – que vão surgindo.
Essa nossa tese vai frontalmente contra aquela apresentada pelo Hayek, o “papa” do
neoliberalismo no último livro da sua vida, A fatal arrogância. Para ele a nossa sociedade
“nunca teria chegado a surgir se não tivesse sido ignorada a recomendação de que todo
semelhante seja tratado com o mesmo espírito de solidariedade que se dedica a quem
habita o entorno mais próximo‖.148
Para ele não há outro caminho do que a concorrência,
que diz estar presente em toda evolução, e que, portanto, devemos desistir da solidariedade
e nos submetermos às leis do mercado.
Segundo Hayek, propor solidariedade ou justiça social em sociedades amplas é
desconhecer o processo de evolução e o funcionamento do mercado. Solidariedade seria
possível somente em comunidades pequenas, antes do surgimento da economia de
mercado. Após a evolução humana ter atingido o capitalismo, qualquer proposta que
levante a questão social “é radicalmente incompatível com uma ordem de mercado
competitivo e com o aumento e inclusive a manutenção da população e a riqueza atuais.
Deste modo, por meio de tais erros, se chega a chamar ‗social‘ o que na realidade
constitui o principal obstáculo para a boa marcha da ‗sociedade‘. O ‗social‘ deveria mais
bem tachar-se de anti-social.”149
146
Idem, ibidem, p. 175. 147
KOJÈVE, A. Op.cit. p.41. 148
HAYEK, Frederich. La fatal arrogancia: los errores del socialismo. Madri: Unión Editorial, 1990, p.43. 149
Idem, op.cit., p. 188.
139
Em nome da evolução ele inverte o sentido da solidariedade. Ser solidário é não ser
solidário. Em nome da eficiência do e no mercado ele reduz a relação humana à
concorrência e o/a outro/a a concorrente a ser vencido.
Desejo de solidariedade como necessidade vital
Nós estamos falando com os sentidos voltados para a percepção da realidade atual
do mundo da necessidade de superar, em nossa apreciação do potencial desejante humano, semelhantes visões auto-mutiladoras. O ponto de incidência direta da nossa crítica
se refere a fusão indevida do desejo humano com uma suposta vontade de competição
onipresente, como se todo desejo, pela simples razão de ser desejo de reconhecimento pelo
outro, sempre já estivesse sob o império da oposição entre desejos contrapostos e
virtualmente guerreiros entre si. Precisamos de uma teoria do desejo que inclua, junto à
existência de propensões competitivas, uma radical propensão humana para o encontro e o
reconhecimento solidário mútuo. Não somente para criticar – já basta de criticar/denunciar
por criticar/denunciar – , mas para possibilitar que as pessoas e a própria sociedade possa
perceber melhor lampejos de desejos de reconhecimento solidário que iluminam de vez em
quando as noites escuras das nossas vidas marcadas pela competitividade e insensibilidade.
Pois, sem essas novas concepções de desejo e de ser humano, estes lampejos podem ser
interpretados como ameaças que vêm do exterior, do mundo onde habita os/as outros/as, os
que não cabem na razão econômica estendida a todos os aspectos da vida.
É preciso urgentemente resgatar relações de solidariedade e de cooperação por trás e
deste predomínio das relações competitivas e confrontativas. O desequilíbrio entre de um
lado a capacidade produtiva e de geração de riquezas virtuais e de outro a fragilidade do
tecido social e graves problemas sociais que atingem bilhões de pessoas em todo mundo
está nos mostrando que o ser humano está se convertendo no grande inimigo da
humanidade. Aqui não importa precisar qual ser humano está se convertendo nesse inimigo,
pois – mesmo reconhecendo as diferenças de poder e influência que existe em toda
sociedade – todos nós devemos enfrentar esse fato: nós somos inimigos de nós mesmos.
Mecanismos de projeção e extrojeção não podem continuar sendo usados para defender um
presumível inocência de um determinado grupo social e para a criação de um bode
expiatório da crise. Não há um salvador inocente a descobrir ou a criar, como não há um
bode expiatório que possa carregar todas as responsabilidades e culpas e com a sua morte
salvar a humanidade. Utilizar-se destes mecanismos seria reproduzir a luta pelo fim da
ambivalência e o olhar confrontativo que criticamos acima.
No interior de cada um de nós, de cada grupo social e de cada sociedade vive a
ambivalência e a ambigüidade. Todos/as nós somos responsáveis e, por isso, podemos fazer
algo para recriar, resgatar e revalorizar a sensibilidade social e redescobrir o desejo do
reconhecimento recíproco. Desejo que nos faz desejar a felicidade alheia como parte
integrante da nossa felicidade, por isso que faz o desejo de solidariedade se tornar uma
necessidade vital.
140
PARTE II
EDUCAR PARA
A ESPERANÇA SOLIDÁRIA
141
Capítulo 6
COMPETÊNCIA E SOLIDARIEDADE:
RENOVAÇÃO DO DISCRUSO PEDAGÓGICO
Novas interfaces entre competência e solidariedade
As reformas educacionais, mundo afora vêm insistindo em juntar vários tipos de
competências básicas para criar, através delas, um patamar mínimo para que as novas
gerações estejam preparadas para aprender a aprender e aprender por toda a vida. A virada
se refere, portanto, à própria concepção do que é educar. Do predomínio da visão
instrucional (ensinar) passou-se à ênfase maior nas experiências de aprendizagem (aprender
a aprender).
Doravante a relevância da escola será avaliada de maneira diferente da tradicional,
que avaliava cursos concluídos, notas, atestados e títulos. Provavelmente essas referências
continuarão a existir. Mas aquilo que a sociedade tenderá a cobrar doravante à escola será,
mais e mais, aquilo que - na linguagem atual do MEC - leva o nome de competências e
habilidades. No contexto de todas as demais instâncias da sociedade, que também têm a ver
com a cultura e formação da socialidade humana, a escola terá que provar que é capaz de
proporcionar às novas gerações um patamar de iniciações básicas para saber aprender;
manter acesa a curiosidade de aprender mais e incrementar o desejo do conhecimento;
fazer sentir, na prática escolar, a importância de saber acessar e construir
conhecimentos;
mostrar que a informação, a ciência e a cultura deixaram de ser bens escassos na era das redes e da Internet.
Está implicada nisso uma questão relacionada com a visão do ser humano. Pela própria
dificuldade de expressá-la, sem incorrer em ambigüidades de cunho ideológico, esta
questão é geralmente silenciada. Tentemos formulá-la em forma de pergunta: como
incorporar nas linguagens pedagógicas, de maneira crítica mas também positiva e
motivadora, referências explícitas acerca dos princípios organizativos e dos critérios ético-
políticos mais gerais da sociedade? A educação precisa ter a coragem de superar o dualismo
persistente entre formação para o bom desempenho profissional, e isso numa era de
profunda transformação do próprio conceito de trabalho, e formação ética para a
sociabilidade humana?
Cremos que é precisamente esta junção de competências que está sendo tematizada e
encaminhada, de alguma forma, pelas novas linguagens pedagógicas. Não há por que
silenciar que o pomo da discórdia - por absurdo que pareça - ainda é, para muitos, o
balanceamento de linguagens positivas e linguagens críticas acerca do mercado. Mas fixar-
nos apenas nisso nos conduziria a um simplismo inaceitável. Para além da questão da
aceitação afirmativa de mecanismos de mercado, no plano da economia, está um conjunto
de problemas mais radicais da atual encruzilhada civilizatória da humanidade.
Trata-se de questões éticas verdadeiramente radicais como a paz, a liberdade entendida
como oportunidades sociais efetivas, a união entre interesse próprio e abertura aos outros, a
superação da pobreza enquanto privação de capacidades, e outras similares. Esse tipo de
questões é geralmente escamoteado, porque implica numa visão realista do ser humano e de
142
suas limitações sócio-históricas, que não é fácil de reconciliar com o discreto otimismo
antropológico e pedagógico, já que educar pressupões que se acredite na educabilidade do
ser humano, pois sem isso educar não teria muito sentido. Pensamos que uma abordagem
sincera de temas como competência humana, competências sociais, sensibilidade social e
solidariedade pode levar-nos a um marco de referências bastante inovador.
Os analfabetos de amanhã não serão os que não aprenderam a ler e a escrever, mas os
que não aprenderam a aprender por toda a vida. E aprender por toda a vida não significa
apenas manter-se em estado aprendente diante de novas formas de atividade humana.
Significa igualmente continuar criativo e aprendente no que se refere aos relacionamentos
interpessoais e a convivialidade humana, tanto no plano interpessoal imediato quanto em
perspectiva ampla e planetária.
Especialmente desde 1996, quando a UNESCO os assumiu em seus documentos150
,
passaram a ser referência quase obrigatória
Os quatro pilares da educação aprender a aprender -> priorizar as experiências de aprendizagem aprender a fazer -> ênfase nas competências e habilidades aprender a viver juntos -> juntar competência e solidariedade aprender a ser -> realizar-se como indivíduo e ser social
Quem lê com a atenção a proposta da UNESCO há de convir que ela não é, de forma
alguma, um documento fechado ou um "tijolo ideológico". Ela abre Horizontes (título da 1ª
parte), aponta Princípios pedagógicos inovadores e elásticos (2ª parte) e formula
Orientações (3ª parte). O destaque do papel da educação na luta contra a exclusão, a ênfase
na participação democrática, o alerta de que o crescimento econômico perde sentido sem o
desenvolvimento social e a insistência na visão de um mundo solidário evidenciam que se
trata de uma visão que certamente não pode ser acusada de neoliberal. Por outro lado, é
óbvio que não fantasia acerca de um mundo sem emulações competitivas e mecanismos de
mercado.
Um assunto que permeia todo este livro é o dos supostos antropológicos que existem
em qualquer proposta educacional, econômica, política e cultural. Trabalhamos com a
hipótese de que está havendo, em nossa época, mudanças significativas na auto-percepção
do ser humano e na construção das identidades subjetivas. Ao transformar-se tão
sensivelmente o mundo à nossa volta, como poderíamos escapar à tarefa de re-situar-nos
nele?
Este capítulo se restringe a tentar uma amostragem, em textos relacionados com a
educação (e teorias da gestão), da emergência de novas linguagens acerca do que é preciso
aprender e fazer para sentir-se mais à vontade em meio às complexas exigências do mundo
de hoje. (Note-se que não vamos ocupar-nos diretamente das assim chamadas competências
cognitivas, assunto inseparável do nosso, mas com ênfase diferente). Nossa amostragem se
limita a ser precisamente o que o termo expressa: apenas uma amostragem, como incitação
para que cada qual a complemente com suas buscas pessoais. Haverá apenas algumas
poucas insinuações para aprofundar as implicações antropológicas dessas novas linguagens.
Selecionamos, um tanto a esmo, quatro atratores semânticos (polarizações do sentido)
que sinalizam que se está explicitando, com ênfase crescente, o vínculo entre o aprender
escolar e o aprender a se mover competentemente num mundo social cada vez mais
150
DELORS, Jacques e Outros. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão
Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC- UNESCO, 3ª ed., 1999.
143
exigente e complexo. Dedicaremos depois um capítulo inteiro (o que segue a este) aos
conceitos sensibilidade, sensibilidade social, razão sensível e sensibilidade solidária. Com
isso esperamos estar contribuindo para superar o desencontro, que ainda persiste, entre as
linguagens que se referem às competências e habilidades e as que apontam para uma
sociedade solidária. O próprio título deste livro evidencia essa intenção. As quatro
expressões escolhidas são: competência humana competências sociais aprendizagem social
inteligência social
Não pesquisamos muito o lado cronológico do surgimento dessas expressões. Por
isso apenas nos arriscamos a insinuar que parece ter havido, por parte do MEC, uma
preferência crescente pela formulação Competências e Habilidades. A expressão
competências sociais, inicialmente usada, talvez soasse para alguns como demasiado ligada
à eficiência ou marcada por uma relação mais direta com a competitividade do mercado de
trabalho (no espanhol, que não usa a nossa palavra "concorrência", este seria o sentido mais
imediato).
Discreto deslocamento? (sujeito a mais pesquisa)
1994 em diante Plano Decenal: Educação para
Todos
competências cognitivas e
competências sociais
1996 em diante PCNs - Ens. Fundamental Competências cogniticas, competências
sociais, competências e habilidades
1998 em diante PCNs - Ens. Médio Competências e habilidades, competências
cognitivas, sócio-afetivas e psicomotoras
De qualquer maneira, uma linguagem explícita acerca da competência e das
habilidades, relacionadas com a inserção do/a aprendente na vida social e do mundo do
trabalho, começou a ocupar um lugar importante nos documentos do MEC. Cremos que
realmente vale a pena conferir, nas seções sobre Competências e Habilidades dos PCNs,
notável um esforço por encontrar linguagens expressivas e frisar entrelaçamentos
transdisciplinares sobre os diversos assuntos tratados. Como veremos, nos escritos e
debates sobre a educação e nas teorias gerenciais são ainda bem mais abundantes os
diversos atratores semânticos que polarizam novos enfoques antropológicos e pedagógicos.
Competência humana
Este bairro tem problemas. (Imagens de miséria e violência).
A gente deste bairro é boa (Imagens de conversas, idas e vindas).
Mas às vezes faz coisas não boas (Novas cenas de agressão e violência).
Mas a gente deste bairro está aprendendo o valor de uma coisa: a competência!151
Esta expressão não tem algo de engraçado em si mesma? Uma ironia para cima da
gente? Parece dizer - ou diz mesmo! - que a gente, não por ser gente, já tem garantia de ser
tido como gente. E que para ser reconhecido como gente, precisa primeiro tornar-se gente.
Ou então, que o mundo que está aí, requer da gente mais do que a gente está preparado para
151
Paráfrase de uma publicidade de uma revista semanal na CNN em Espanhol, junho/2000
144
ser "normalmente"... Que vai ser preciso dar um jeito de atender essa exigência de virar
gente, gente mesmo, ou ao menos gente etiquetável como alguém na vida. Enfim, tudo
meio estonteante e complicado.
Que a gente não nasce pronto, isso todo mundo sabe. Não nascemos como o
patinho, que sai da casca e sai nadando, ou como o carneirinho e tanto outro bicho, que se
ajeita de pé e sai andando em menos de meia hora. Nós não nascemos prontos, e o fato de
nascermos prematuros, exigindo um útero externo acolhedor, marcou toda a nossa
evolução, principalmente a do cérebro. Disso vamos tratar mais adiante (no final do livro,
seção sobre Neotenia). Hoje a humanidade se encontra numa guinada civilizatória e, para
chegarmos a uma Humanização de alcance planetário, a nossa espécie tem que enfrentar
uma esforço evolutivo que permite certas analogias com a Hominização.
A questão é entender por que nos voltam a cobrar competência humana
precisamente hoje. Se não é porque não nascemos prontos (coisa já mais que sabida,
embora não sempre entendida e devidamente atendida), deve ser por outro motivo. E parece
que esse motivo é levemente maldoso: é que nos querem dizer, às claras, que não é
qualquer um/a que está preparado/a para enfrentar as exigências que a vida nos coloca hoje.
Lá atrás, por exemplo há apenas um século, se a gente nascia com saúde, mamava
direitinho, encorpava e crescia, aprendia as "primeiras letras", dependendo de onde a gente
vivesse, talvez nem precisasse preocupar-se muito com "segundas" e outras letras. Bastava
gostar das melodias da vida. Hoje, ficou difícil tirar as coisas "de letra". Por isso, toda essa
conversa nova sobre o aprender a aprender e aprender por toda a vida.
Mas vejamos algo da cotação da competência humana no mercado de moda das
linguagens. Quantitativamente, a vigência da expressão é apreciável. Para avaliar o
conteúdo da embalagem vai ser preciso conferir a "mercadoria" mais de perto. Pedro
Demo, aí pelos anos 1995 a 1997, nutria sintomáticas suspeitas acerca da invasão dessa
linguagem, mas por outro admitia que ela viera para ficar152
:
O tema da competência humana sempre aparece com alguma suspeita, porque
nasceu no berço dos órgãos das Nações Unidas, que, como se sabe, exsudam laivos
neoliberais fartamente. Mesmo assim, pode-se considerar um ganho importante este
tipo de conceituação, sobre o panorama pertinente do desenvolvimento humano e
do desenvolvimento como oportunidade. É irônico que isto se proponha no espaço
capitalista neoliberal, mas é a mesma ironia que aparece nos horizontes dos
direitos humanos, quase um espólio particular do Ocidente capitalista.
Por outro lado, percebia que
Talvez seja o resultado mais consistente das modernas teorias da aprendizagem a
descoberta de que aprender é uma das marcas mais típicas da competência
humana...
O tema se prestava, obviamente, para iracundas diatribes políticas, já que tudo
parecia girar em volta da "competência humana para trabalhar". Mas. após alguns rodeios,
152
DEMO, Pedro. Cf. os textos Aprendizagem reconstrutiva e Educação profissional - Desafio da
competência humana para trabalhar - encontráveis na Internet; ou seus livros da fase 1994-1998; em livros
mais recentes o tom muda bastante.
145
Demo acabou valorizando a expressão, injetando-lhe, contudo, uns quantos recheios da sua
lavra pessoal (o resumo apertadíssimo é nosso):
construir a concepção importante de competência humana, fundada instrumentalmente no
manejo da educação e do conhecimento;
competência humana inclui competitividade, mas a esta jamais se reduz;
desafio da competência para a dimensão política, a "qualidade política";
combate à pobreza política - é problema mais profundo que a carência material;
emergência do sujeito histórico capaz de projeto próprio coletivo ;
cidadania é mal posta na assim dita "qualidade total";
competência humana é saber humanizar o conhecimento;
que não descambe em mera instrumentação da competitividade;
competência humana é apenas outro nome para a cidadania;
consciência crítica, sem o que não nasce o sujeito histórico;
um projeto alternativo, com base em educação e conhecimento críticos;
organização política transforma a consciência crítica em competência humana.
Este é um tema de tal relevância que seria uma pena se ele encalhasse em miragens
ideológicas ou manipulações pseudo-gerenciais, como a que segue:
Os gerentes continuam sendo escolhidos, na maioria dos casos, pela competência
técnica ou por decisões políticas, raramente pela competência humana. O gerente
emocionalmente inteligente tem capacidade para conduzir pessoas harmonizando-
as, para que produzam qualidade com baixo custo, levando à competitividade e ao
lucro. O nível de qualidade de vida dos funcionários traduz-se num baixo
absenteísmo, desperdício e retrabalho, além da supressão total de todo e qualquer
tipo de sabotagem, fatores muito presentes nas empresas que atuam sem
inteligência emocional153
.
O conceito de competência humana tem um leque de referências muito aberto e não
se contra-distingue nitidamente de outros afins como habilidade humana, competência
comunicativa e mesmo competência social. Goza, porém, de um uso bastante freqüente em
diversos idiomas, especialmente em inglês. Nas teorias gerenciais aparece em ligação com
os critérios de melhoria do relacionamento interpessoal nas empresas, que supostamente as
transformaria em "organizações aprendentes" (learning organizations). O Certificado de
Qualidade ISO 14000 se refere explicitamente a tais critérios. Alguns autores definem a
competência humana como "a natureza das novas competências que estão emergindo" e
falam de um novo modelo de competência. Acreditam que este será, cada vez mais, um dos
critérios de medida do prestígio e, por essa via, da própria competitividade das empresas154
.
É interessante observar que competência humana é uma das expressões que
contracenam, com certa freqüência, com competência técnica ou profissional, para
sublinhar a insuficiência desta, na ausência da humana. Por exemplo, um Colégio Lassalista
faz propaganda destacando que seus educadores procuram unir "zelo pela competência
humana e profissional". O verbete viaja desde discursos do Papa até folhetos de propaganda
153
De um texto dos Virtual Entrepreneuring Teams| - disponível na Internet, junho/2000. 154
"the nature of the new competencies which emerge". Cf. DOHERTY, P. & NYHAN, B.Human
Competence and Business Development. Emerging Patterns in European Companies. Berlim/Heidelberg,
Springer-Verlag, 1996 - ISBN: 3540199721.
146
de cursos de reciclagem de municípios, por exemplo um de Curitiba, que define o conceito
da seguinte maneira:
COMPETÊNCIA HUMANA inclui:
- Saber intervir na realidade com autonomia e competência.
- Uma cultura de reconstrução permanente do conhecimento e doa saberes necessários à
competência humana.
- Desenvolver atitudes de competência emocional e político-social.
- Compreender a importância da aprendizagem permanente...
- Vivenciar o processo de reconstrução do conhecimento com autonomia individual e
coletiva.
- Desenvolver atitudes de pesquisa e de expressão elaborada do conhecimento.
- Vivenciar a proposta para, posteriormente, disseminá-la na Prefeitura Municipal de
Curitiba.
Competências sociais
A definição dos princípios faz parte de um momento inicial necessário para se
pensar na atualização de um projeto para a escola, voltado para a objetivação das
competências sociais, cognitivas, motoras, afetivas e intersubjetivas. A
intervenção pedagógica busca o aprofundamento dos saberes considerados
escolares e daqueles trazidos do social, ampliando as esferas de atuação dos
alunos. ( MEC- PCNs Ensino Médio)155
.
A presença do conceito de competências sociais nos textos do MEC - nessa
formulação ou outras similares - tem uma ligação comprovável com os de cidadania e
solidariedade. Considerando a ênfase explícita nesses dois tópicos nos textos sobre os
Temas Transversais, percebe-se uma tendência a tomar certa distância crítica do atrator
semântico "competitividade". Nota-se um cuidado em evitar tanto o tom politizante, como a
escorregada para dentro da perspectiva mercadológica. As duas cautelas merecem
encômios em textos desse tipo. Como veremos, havia tentações à mão, porque o conceito é
de farto emprego nas teorias gerenciais.
É importante perder o medo a conceitos que se referem explicitamente à
competência e à capacidade de tomar iniciativa. Não há nada de errado em falar
abertamente que a educação visa ajudar as pessoas a se tornarem empreendedoras. O apelo
à solidariedade só atinge a vida cotidiana das pessoas quando é relacionado com
transformações concretas e possíveis dos comportamentos sociais em que elas se
encontram. O ser humano é um ser de relações sociais concretas e não um sujeito receptivo
para mensagens que pouco têm a ver com elas. Este deveria ser um pressuposto óbvio para
uma pedagogia preocupada em juntar competência e sensibilidade social156
.
A escola evidentemente não tem influência direta em todos os fatores que
interferem na constituição da competência social. Alguns dos fatores principais
relacionados com o amadurecimento relacional e social das crianças e dos jovens não estão
sob o controle da escola. Basta pensar no papel formador da competência social que
representa uma família acolhedora e incentivadora, o apoio de pessoas criativas e
155
MEC EnsMédio - Linguagens., Códigos e Suas Tecnologias (p. 66). 156
Cf. STRIEDER, Roque. Educar para a iniciativa e a solidariedade. Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2000 (no
prelo).
147
esperançadas, contextos de aprendizagem de hábitos sociais, o papel significativo da mídia
eletrônica na difusão de valores e anti-valores sociais.
A seguir vamos sintetizar e reelaborar uma "chuva de idéias" recolhidas numa
pesquisa relativamente ampla sobre aa expressão competência social em diversos idiomas,
na Internet.
O espírito de cooperação não se improvisa. Também a competência social precisa ser
aprendida.
O conceito de competência social geralmente é definido como um leque muito aberto de novas qualificações emergentes.
Na criação da competência social cabe um papel importante às sensações de prazer de estar juntos e ao sentimento de pertença recíproca.
O tema da competência social deve ser tomado como chance educativa para orientar
as pessoas conjuntamente para a competência, a capacidade de iniciativa, a coragem
de enfrentar desafios novos, e a preservação de uma acentuada sensibilidade social.
Os déficits sociais e os déficits pragmáticos estão associados, uma vez que o pragmatismo é parte da competência social.
Criar a sinergia que nos dará força para nos sentirmos socialmente interligados.
Alfabetização sociocultural é muito mais do que alfabetização no uso das novas
tecnologias.
É preciso que as pessoas aprendam a inserir-se em processos de estruturação e criação de novos sentidos socialmente perceptíveis e vivenciáveis.
É preciso dar aos jovens ocasiões de participar em atividades físicas e lúdicas agradáveis e não-competitivas para que o comportamento social positivo, ao qual se dá
o solene nome de competência social, não se concentre exclusivamente, nem
prioritariamente na formação de um agressivo ânimo de competitividade
mercadológica.
Relações humanas também se aprendem. Já não bastam as espontâneas...há o risco de ser presa fácil de relações calculadas, estratégias de manipulação...
Competência social significa responsabilidade, know-how flexível em certos tópicos,
prestígio, reconhecimento, responsabilidade.
Competência social é a habilidade de ampliar seus pontos de vista, de enxergar e sentir as necessidades dos demais, de ter êxito ao mesmo tempo em diversos níveis: o
profissional, o pessoal e o social.
Um elemento importante na competência social é saber avaliar a sua própria competência social. O lado pessoal da competência social não deve ser abandonado ao
jogo fortuito das circunstâncias. Pergunte-se até que ponto você é capaz de aceitar as
outras pessoas do jeito como elas são, de aprender a imaginar-se no lugar delas, de
procurar olhar o mundo com o olhar delas, de reconhecer o talento e as habilidades
alheias? competência social significa que deveríamos parar de preocupar-nos com
competir para ganhar vantagens sobre os demais, de comparar-nos com os demais
para calcular maneiras de dominá-las. Precisamos elaborar um conceito de
competência social que inclua a capacidade competitiva mas não tenha nela a sua
referência prioritária.
O segredo do sucesso em nossa sociedade consiste na harmonia da nossa mente,
intuição, sinceridade e habilidade para comunicar-se. Competência social significa que
148
deveríamos integrar as nossas habilidades e chegar a uma verdadeira sinergia com os
outros. Conecte a sua competência social com a sua competência profissional.
Não cair na mediocridade relacional de um modelo comunicativo caracterizável como
modelo de processamento da informação aplicado ao comportamento social.... input,
codificação, programação, processamento central, estágio de decisões, ouput
A competência social implica predominantemente um modelo cognitivo, que confira muita importância ao lado emocional.
Sentir-se ligado, estar-em-relação, viver relacionado humana e tecnologicamente, assumir um papel estruturador em relacionamentos coletivos sem tornar-se chato.
Competência social deve incluir retroalimentações inovadoras, 'transformações
significativas das condições iiniviais (teoria do caos), níveis relacionais não previstos e
planejados mas randômicos (dar lugar à auto-organização do vivo).
Geralmente existe em cada sociedade um consenso relativamente amplo acerca do que é considerado desejável e que serve de base para um determinado leque de relações
consideradas socialmente positivas. Não se trata de encarar essas expectativas
relacionais da sociedade como um código ideal de comportamentos. Muito ao
contrário. A competência social deve ser entendida como capacidade criativa para
contribuir para a transformação dos comportamentos e da cultura socialmente existem,
visando torná-la mais apta para ensejar a felicidade das pessoas. Mas as expetativas
sociais existentes não devem ser desconsideradas, porque elas fazem parte das
condições de possibilidade da transformação dos comportamentos sociais.
Para chocar, por vezes a competência social deve ser definida a partir da sua ausência, ou seja, competência social é a superação da incompetência social.
Não existe, ao menos por ora, nenhuma definição de competência social aceita
universalmente. Mas ao ouvir a expressão, muita gente já se dá conta de que ela se refere a um conjunto de desafios dos quais já experimentaram algo em sua própria
vida.
Vamos trazer agora a tradução de alguns breves textos sobre competência social mais
ligados ao contexto empresarial. Comecemos com o sociólogo austríaco Otto Nigsch,
que tenta responder à pergunta: Que é competência social?157
Hoje em dia as empresas esperam de seus futuros empregados um alto grau da
assim chamada competência social. Em cursos de reciclagem de trabalhadores a
questão da competência social é abordada de várias maneiras. Existe, sem dúvida,
certa confusão semântica sobre o assunto. (...)
No jargão das empresas, competência social é, sobretudo, a habilidade dos
empregados para identificar-se com os interesses e objetivos da empresa em que
trabalham, e só depois pode ter também outros sentidos somo um padrão de
pertencimento a uma certa classe social ou setor profissional, e só por último como
estado/processo de consciência reflexiva acerca de relacionamentos e perfis
sociais, ou a capacidade de adaptar-se a diferentes situações sociais.
Deste modo, a expressão competência social na realidade forma parte de dois
universos de discurso bastante diferentes. Por um lado, forma parte da retórica
157
NIGSCH, Otto, Was ist Sozialkompetenz ? Österreichische Zeitschrift für Soziologie, nº 1 / 99 -
disponível na Internet, junho/2000.
149
administrativa de novas teorias gerenciais que propõem novas estratégias para
tornar as empresas mais competitivas, incluindo a dimensão participativa humana.
Por outro lado, a expressão competência social se refere à melhoria de um
conjunto de habilidades comunicativas e relacionais das pessoas, seja no trabalho,
seja na vida social em geral.
Mas o que queremos dizer com competência social? Nossa definição provisória de
competência social é: possuir e saber usar a habilidade de integrar pensamento,
emoção e comportamento para cumprir tarefas sociais e obter resultados que sejam
valorizados pelo contexto sociocultural em que as pessoas se encontram. Num
conjunto escolar, essas tarefas e resultados incluem saber acessar com êxito o
currículo da escola, satisfazer necessidades pessoais de cunho social emocional, e
desenvolver aptidões e atitudes que sejam valorizadas para além da escola.
Contextos diferentes requerem e valorizam competências sociais muito diferentes.
Comportamentos que são disfuncionais e reprovados num contexto talvez sejam
funcionais e aprovados em outro contexto. A pessoa socialmente competente é
capaz de selecionar e controlar, com o pensamento e a emoção, quais
comportamentos evitar ou suprimir, e quais utilizar e incrementar, para chegar aos
objetivos que se propõem elas mesmas ou que outros/as lhes prescrevem.
Segue um texto auto-promocional de um Centro para Competência Social da
Alemanha158
:
Hoje não bastam habilidades profissionais e técnicas para atender as exigências
do mercado de trabalho. Para nomear uma série de novas aptidões sociais
requeridas pelo contexto flexibilizado do mundo do trabalho foi criado o conceito
de competência social. Ele não se refere apenas a um conjunto de novas
qualificações emergentes. Refere-se sobretudo à mudança requerida na capacidade
das pessoas de se relacionarem de modo flexível e inovador em contextos sociais
submetidos a constante transformação. Por exemplo: comunicação inter-humana
efetiva, capacidade de argumentação, ser confiável, coerência e autenticidade
como base da confiança recíproca, sensibilidade para mudanças comportamentais,
trabalho construtivo em equipe, a capacidade de relacionar auto-estima e projetos
pessoais com contextos de colaboração coletiva, saber expressar críticas e
exigências em linguagem positiva, saber organizar a sua vida e seus
relacionamentos de modo a não magoar constantemente os demais, saber utilizar
horários estritos sem entrar em estado de estresse.
Os velhos conceitos de aptidões ou habilidades sociais devem ser atualizados em
confronto com o número crescente de novas teorias e pesquisas sobre a
competência social. As dimensões cognitivas e comportamentais dos processos de
aprendizagem devem ser vistos de maneira unificada. Hoje o cultivo de
competências sociais faz parte da "pedagogia da empresa"
Para encerrar esta seção nos parece interessante mencionar que uma das emendas ao
assim chamado Toque Inicial (Head Start - linhas mestras oficiais para o início da
158
ALTRICHTER, Herbert, Kommentar zum Vorschlagpapier "Zentrum für soziale Kompetenz" Ver
também WAGNER, Franz, Sozialkompetenz - Disponível na Internet, junho/2000.
150
escolaridade, nos EUA), votadas pelo Congresso norte-americano em 1998, diz
literalmente:
(Verificar) se os programas do Head Start têm, em termos gerais, impacto
consistente com a sua finalidade principal que é a de incrementar a competência
social das crianças159
.
Aprendizagem social
Como fizemos na seção anterior, vamos a uma "chuva de idéias" colhidas e
reelaboradas a partir de pesquisa sobre os verbetes na Internet.
Aprendizagem social é a mudança relativamente permanente na capacidade para
determinados comportamentos. Mudança duradoura dos mecanismos de
comportamento envolvendo estímulos e/ou respostas resultantes de uma experiência
anterior com estímulos e respostas similares (definição behaviorista) - Claro que sobre
a aprendizagem definida desse jeito se poderia afirmar que ela "é relativamente
incomum na natureza".
Aprendizagem social evolucionária: dentro da Evolução a aprendizagem social cumpre uma função adaptativa. Muitos animais tiraram enorme vantagem evolutiva do
seu potencial de aprendizagem social. Na evolução da espécie humana, a neotenia [da
qual trataremos em outro capítulo], ou seja, o nascimento "prematuro" e
"despreparado", dispôs o ser humano para uma aprendizagem extra-uterina que
envolve suma flexibilidade adaptativa e enorme dependência cognitiva do meio-
ambiente natural e social.
A cultura humana nada mais é do que uma complexa capacidade adaptativa das linguagens e dos campos do sentido.
A aprendizagem social é especialmente importante para poder lidar com variações
ambientais imprevistas, tanto sob ponto de vista social-humano, como em relação às
variações espaciais e temporais.
A aprendizagem social deve tornar-se um recurso para economizar o uso de energias humanas no constante enfrentamento de desafios que implicam tentativa e erro
A aprendizagem social depende da conexão com redes horizontalmente estruturadas de intercâmbio de experiências de aprendizagem e conhecimentos adquiridos.
Incentivos para a aprendizagem social são importantes para criar um clima de
confiança e colaboração que fomente a aprendizagem social.
Toda aprendizagem é social, mas hoje as aprendizagens devem tornar-se
conscientemente sociais, porque estamos imersos numa aceleração dos potenciais de
conectividade tecnológica e inter-humana da sociedade do conhecimento.
Toda a competência social precisa ter um enraizamento em contextos locais concretos.
A inteligência social é fundamentalmente inteligência localizada.
159
"...if, overall, the Head Start programs have impacts consistent with their primary goal of increasing the
social competence of children…" (Head Start Amendments of 1998).
151
Inteligência social
Os conceitos de "inteligência social"(IS)160
e "inteligência socialmente situada" são
menos freqüentes em textos relacionados com a educação, no Brasil. Seu uso em inglês é
relativamente abundante. Mas, IS ainda não parece haver emplacado como categoria
analítica, dada a enorme discrepância sobre indicadores aferíveis. Vamos limitar-nos, por
isso, a algumas observações, mais com o propósito de sentirmos que tipo de questões são
ventiladas mediante uma certa profusão de conceitos similares.
As tentativas de circunscrever o conceito de IS apontam para questões como:
- perspicácia e iniciativa no relacionamento social;
- sagacidade para a pronta captação do meio social;
- aguçamento das preocupações com os problemas relacionados com a melhoria
da convivialidade humana ; etc.
Portanto, é um conceito bastante próximo ao de competência social e se presta para
falar das características distintivas de uma aguda pró-socialidade ou um conjunto de
propensões, mais ou menos espontâneas, para um comportamento socialmente benfazejo e
uma visão da realidade condizente com semelhantes comportamentos. Definida desta
maneira, a IS serve como referencial, ou uma espécie de modelo interpretativo, para
averiguar teores comportamentais diferenciados de sensibilidade social. Na ponta dos
critérios mínimos, o conceito de IS serve para ironizar e criticar a estupidez dos
comportamentos auto-destrutivos ou ostensivamente perniciosos. O indivíduo chato, o que
irradia uma "aura ruim", carece evidentemente de IS.
Um uso expressivo da noção de IS precisa incluir um conjunto de qualidades
comportamentais explicitamente ligadas à melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e
seus contextos sociais. Esta ênfase nos parece analiticamente significativa. Mas convém
acrescentar, de imediato, um alerta para que quaisquer indicadores dessa compaixão
interpessoal, que se pretendam distinguir como características pesquisáveis, não derrapem
para dentro de pré-julgamentos e/ou preconceitos marcados por posicionamentos
ideológicos e sectários.
Dentro de uma perspectiva de aproximação do conceito de IS ao de sensibilidade
social e capacidade solidária, podemos explicitar alguns dos seus ingredientes básicos:
1. saber avaliar e enxergar para além dos mitos e preconceitos culturalmente
herdados e/ou impostos pelas formas de organização social imperantes;
2. entender a necessidade de um constante retorno reflexivo da nossa inteligência
sobre critérios relacionados a qualidade de vida e a felicidade própria e alheia;
3. saber discernir oportunidades propícias e obstáculos na melhoria do
relacionamento interpessoal;
4. estar aberto ao uso, não ingênuo mas crítico, de termos e expressões que
favoreçam a criação de campos semânticos positivos e motivadores de
relacionamentos interpessoais humanamente saudáveis.
Em resumo, o conceito de IS, embora não tenha prosperado como "instrumento" analítico,
parece proveitoso para remexer os significados - muitas vezes já seqüestrados por
ideologias - de expressões como "consciência social", "compromisso social", "engajamento
160
Para uma história desse conceito e bibliografia atinente, ver: ELIANE GERK-CARNEIRO, E. e ROSA
ZIVIANI, C. A pessoa inteligente no mundo social Disponível na Internet, junho/2000.
152
social", etc. O conceito de IS também aponta para a necessidade de uma re-aprendizagem
da convivialidade e socialidade humana por toda a vida. Tomado nessa amplitude, o
conceito de IS se torna dinamicamente mais amplo que o de consciência política, opção
ideológica, motivação psicossocial e similares.
153
Capítulo 7
O PAPEL COGNITIVO E SOCIAL DA SENSIBILIDADE
O progresso de uma civilização se mede
pelo aumento da sensibilidade para o outro.
Teilhard de Chardin
Sensibilidade e socialidade humana
A convivência social humana precisa ser construída com empenho explícito em
cada contexto histórico. Ela não conta com suportes instintivos ou "naturais" de índole
genética, nem surge espontaneamente em aprendizados mais ou menos formalistas. Dito de
forma ainda mais incisiva: para tornar-se gente civilizada - o que quer dizer: pessoas
buscadoras da felicidade própria e alheia - precisamos aprender a gostar explicitamente
deste mundo e desta vida. A individualidade pró-social precisa nascer e estruturar-se junto
com o conhecimento. Em francês, conhecer e conhecimento se fala co-nascer, co-
nascimento (connaître, connaissance).
Nosso propósito, neste capítulo, é bastante modesto, pois queremos apenas
predispor-nos um pouco melhor para o que virá depois, a saber, um tratamento específico
do tema da epistemologia solidária. Visamos, em primeiro lugar, plantar a inquietude
acerca da carência de conceitos e linguagens sobre o perigo de desencontro entre as
linguagens sobre a competência e as que pretendem explicitar as urgências solidárias. Em
segundo lugar, buscaremos sinalizar alguns indícios de que a tematização explícita da
sensibilidade social e/ou solidária começa a ser demandada pelos/as educadores/as. Num
terceiro momento juntamos alguns fragmentos de meditação sobre o tema
O ser humano é social no sentido de que tem potenciais para transformar-se em ser
convivencial, se as circunstâncias da sua vida propiciarem essa conversão em ser social..
Esta não lhe advém de predisposições genéticas instintivas, a não ser sob a forma de uma
potencialidade aberta à aprendizagem da socialidade. Requer-se para isso um verdadeiro
desenvolvimento, um crescimento comunicativo para dentro da socialidade. Sem processos
de socialização somos socialmente incompetentes e relacionalmente inviáveis. E é no cerne
dessa questão crucial da nossa habilitação para a convivência que se corre o risco do
desencontro entre a competência para sobreviver e a competência para conviver
socialmente.
As expressões já incorporadas, de alguma forma, na renovação das linguagens
pedagógicas - e que registramos no capítulo anterior - colocam essa problemática de
maneira bastante inovadora. Mas o risco do desencontro continua presente nas próprias
linguagens na medida em que elas enfatizam, por um lado, a relevância das competências
(ou das habilidades) humanas, sociais, ou sócio-afetivas, mas, depois, dão um salto quase
acrobático para conceitos éticos como cidadania e solidariedade (salto e "aterrissagem" que
ficam, aliás, muito por conta dos chamados "temas transversais").
Nossa pergunta é se não existe aí uma espécie de elo-que-falta e que consistiria num
trabalho mais direto com a ponte experiencial entre a competência e a preparação humana
154
para valores solidários. Quais são os apoios necessários, enquanto experiência
peronalizada da importância e da validez comprovada dos valores solidários, para que as
pessoas desenvolvam uma sensibilidade social consistente e perseverante?
Arriscamos apostar positivamente na expextativa de que, no futuro próximo, haverá
uma ênfase crescente nesse elo faltante, ou nessa carência. Só temos para ele um nome
provisório: o de sensibilidade solidária. É preciso devolver à sensibilidade um papel
fundante, uma dimensão primordial e generativa no conhecimento. É uma temática que
exigirá certamente uma pluralidade de linguagens tentativas.
Oxalá se chegue pronto a retomar a própria noção de consciência, porventura em
direção a algo parecido a "conciência (socialmente) sensível". O tema da "razão sensível" já
desponta por diversos lados. No meio disso estarão sendo remexidas, provavelmente,
algumas questões antropológicas fundamentais, como a da própria concepção moderna da
razão e das racionalidades.
Mas é preciso preservar uma certa frieza analítica diante da enxurrada de festejos
verbais que ameaça sufocar-nos. A sensibilidade social é um tema tão candente que é bom
prevenir-se contra a banalização do assunto numa espécie de gelatina geral chamada
simplesmente "sensibilidade", sem mais explicações.
A educação liberal atribuía um papel mediador peculiar à sensibilidade, como deixa
bastante claro a seguinte citação de Wright Mills161
:
Na educação liberal existe uma escala no que se refere a habilidades e valores.
Numa ponta situam-se as capacitações, na outra, os valores. Mas no meio dessa
escala que convém situar o que poderíamos chamar sensibilidades, e elas são que
há de mais importante para o público no sentido clássico. (...) (trata-se) daquelas
sensibilidades culturais, políticas e técnicas que transformam as pessoas em
genuínos membros da sociedade civil, posto que são elas que entrelaçam a
capacitação em habilidades e a educação em valores. (...) E o produto final dessa
educação das sensibilidades redunda simplesmente no homem e na mulher que
aprendeu a auto-educar-se e auto-cultivar-se.
Apesar de o percurso evolutivo das propostas educacionais ser geralmente lento,
estivemos assistindo, nas últimas duas a três décadas, a uma seqüência e mistura
surpreendente de ênfases que, apesar da mixórdia, testemunha a vitalidade das buscas de
atualização. Com uma dose de humor podemos constatar que já tivemos um pouco de tudo:
- predomínio do conhecimento intelectual, a fase da valorização da memória. o destaque ao
raciocínio lógico, a idéia da construção do conhecimento, os estudos sobre o processo
cognitivo, as técnicas de transmissão e a da tecnologia na aprendizagem, a construção do
conhecimento para a construção do sujeito. Como nos resume Vera Rudge Werneck162
,
Chega-se agora a uma nova constatação: é preciso educar a sensibilidade. Como
por encanto, ao mesmo tempo, surgiram de todos os lados educadores dizendo a
mesma coisa: não basta desenvolver a razão. É preciso estimular, desenvolver,
161
WRIGHT MILLS C., The Power Elite (A Elite do Poder). Oxford Univ. Press, 1956 (Capítulo: A
sociedade de massas). 162
WERNECK, Vera Rudge. A educação da sensibilidade. Texto disponível na Internet,
junho/2000.
155
aprimorar a sensibilidade do homem do futuro. De pouco adianta o processo
educacional trabalhar a racionalidade do aluno se o valor, o que importa na vida,
não é conhecido pela classicamente chamada inteligência, mas pela sensibilidade.
Percebe-se agora ser a sensibilidade uma faculdade cognitiva, um meio para
conhecerem-se os valores, ou seja, o que de qualquer modo vale para o ser
humano.
Corre-se, porém, o risco de apenas multiplicar fraseologia, mais ou menos,
repetitiva e superficial sobre o tema da sensibilidade. Trata-se de um conceito tão
importante e analiticamente exigente que não convém desgastá-lo mediante a mera
multiplicação de frases como: sensibilidade para a verdade. sensibilidade para a beleza,
sensibilidade para a moral, sensibilidade para o sagrado. sensibilidade para o valor do
símbolo, sensibilidade para o "outro", para a pessoa do próximo com seus sentimentos,
necessidades e peculiaridades, enfim, sensibilidade para o crescimento afetivo e social.
Vamos por isso começar "mais embaixo" e ir criando aos poucos um referencial
exigente para os conceitos de sensibilidade humana, sensibilidade social e sensibilidade
solidária.
O mapeamento do genoma humano e o conceito de corporeidade viva
Na era da decodificação do genoma humano corremos o risco de novos
reducionismos. Tanto as biociêncais, quanto as ciências humanas e sociais precisam de
conceitos que recubram, simultaneamente, toda a complexidade dos procesos bio-
orgânicos, psíquicos e sócio-relacionais da nossa corporeidade viva. A interferência tanto
na subjetividade das pessoas, quanto em suas bio-sócio-ecologias pode partir de qualquer
um desses níveis, inseparáveis na prática.
O "humano", enquanto conquista civilizatória, não é um simples resultado de
heranças filogenéticas da evolução da nossa espécie. As diversas vertentes de teoria
evolucionária do conhecimento e dos comportamentos nos mostraram como são
indissociáveis os fenômenos bio-orgânicos e os sócio-culturais163
. Não parece consistente
nenhuma pretensão de erigir a especificidade humana como ruptura totalmente inovadora e
distanciamento do resto do reino da vida. Se muitas vezes se quis fundamentar um
exacerbado antropocentrismo a partir da ênfase unilateral na assim chamada cultura, hoje
corre-se o risco de um biologismo banalizador, que aliás entra em choque com os avanços
das próprias biociências. Nesse contexto vale a pena retomar uma conceituação exigente de
corporeidade viva.
Ao contrário do que, por vezes, parecem insinuar os noticiários superficiais e alguns
ufanistas da bio-engenharia, a assim chamada decodificão do genoma humano não significa
a descoberta de "tábuas da lei" biológica e comportamental da nossa espécie. Representa
tão somente - e isso é certamente fantástico - um passo importante para develar algo das
predisposições bio-orgânicas da nossa corporeidade.. Esta, no entanto, não está circunscrita
aos fluxos comunicativos intra-corporais ligados a fatores genéticos. E mesmo esses não
163
Cf. LORENZ, Konrad. Os fundamentos da etologia. São Paulo: Editora da UNESP. 1975; do mesmo autor
Die Rückseite des Spiegels - Versuch einer Naturgeschichte menschlichen Erkennens. München: DTV, 1977.
Encontra-se facilmente um bibliografia apreciável sobre Evolutionary Epistemology, e verbetes similares, na
Internet.
156
parecem, de forma alguma, interpretáveis dentro do cauce estreito de causações lineares,
atribuíveis a genes individuais. Também os genes funcionam "em rede". Não, porém, como
rede estritamente computacional. A teia da vida inclui inumeráveis novelos ou bucles
recursivos de retroalimentação. As funções ignoradas do genoma humano continuam sendo
tantas que - como se começa a reconhecer - o próprio nível bio-físico da corporeidade
demanda uma análise complexa de múltiplos fatores interligados.
Falar de corporeidade viva e historicamente situada significa englobar, no próprio
conceito de corporeidade, além dos níveis, até certo ponto, bio-fisicamente analisáveis por
sofisticados instrumentos, também todos os demais fluxos comunicativos da energia, que
nos mantêm em processo de vitalidade ativa. Somos, enquanto corporeidade viva, um
processo de vitalidade sumamente complexo, porque ele inclui o querer continuar vivos
(sobrevivência estrita), o querer vida em aumento (autopoiése dinâmica) e o querer achar
nosso lugar em meio aos inúmeros processos de vida que nos circundam (por exemplo, a
dimensão comunicativa do desejo, assunto que nos ocuprá mais adiante neste livro).
Somos seres simbolizadores, seres gestuais, seres relacionais, enfim, seres bio-
sócio-culturais, nos quais os níveis das múltiplas linguagens - todas elas conformadoras da
corporeidade viva e historicamente situada - englobam, num único sistema dinâmico e
complexo, integrado por uma quantidade enorme de subsistemas comunicativos no ser
individuado e nos bio-ecosistemas que formam seu nicho vital.
As descobertas científicas relativas ao genoma humano são, sem dúvida,
importantíssimas enquanto vislumbre de predisposições bio-orgânicas. Mas a modéstia
continua sendo uma premissa obrigatória da pesquisa, porque a auto-organização do vivo
não se deixa linearizar numa concepção estreita de relações causa-efeito. Aliás, convém
recordar que, no cerne do próprio conceito de complexidade, se re-equaciona
profundamente o clássico princípio da causalidade, que foi estreitado pelo cientificismo em
direção ao predomínio exclusivo de apenas uma - a causalidade eficiente - das quatro
causalidades da filosofia clássica.
Razões para falar abertamente da sensibilidade social
...a gente só se torna sensível com a condição de ter sido sensibilizado - dito de
outro modo, se a sensibilidade concreta não é um dado natural universal e
intemporal e se uma história da sensibilidade não é apenas possível mas
necessária, é bastante normal que a imensa maioria dos seres humanos seja
insensível às questões filosóficas, sem com isso tacharmos rodo o mundo de
hipócrita . Jean Pierre LALLOZ164.
Sobre o pano de fundo dessa breve insistência num conceito exigente e complexo de
corporeidade viva, podemos agora avançar mais rapidamente para dentro da questão da
sensibiliade social. Convém iniciar com um alerta: sensibilidade é um termo resvaladiço.
Com razão alguns apontam para o risco de cair em trivializações sentimentalonas de uma
questão em si altamente relevante.
164
LALLOZ,Jean Pierre, Sincérité et vérité, texto disponível na Internet, junho/2000. (... on peut seulement
être sensible à la condition d'avoir été sensibilisé - autrement dit si la sensibilité concrète n'est pas un donné
naturel universel et intemporel et qu'une histoire de la sensibilité est non seulement possible mais nécessaire,
vous allez trouver normal que l'immense majorité des êtres humains reste insensible aux questions
philosophiques, sans qu'on puisse pour autant taxer d'hypocrisie la terre entière).
157
Boa parte da infindável oferta de literatura de auto-ajuda opera com esquemas
extremamente simplistas e de escasso valor científico. Por isso mesmo, o consumo
impressionante desse tipo de mercadoria requer uma análise atenta de carências sócio-
afetivas reais, mas também a atenção à força irradiadora de certos campos semânticos, que
provavelmente cumprem o papel de "suplência de sentido" num mundo, no qual os campos
de sentido, socialmente realizáveis, porque individualmente apropriáveis, estão sumamente
rarefeitos.
Hoje a hiperexcitação coexiste com a dessensibilização e a indiferença. As elites se
"enmuralharam" há muito em seus privilégios. As capas médias multiplicam os muros por
toda parte. Mesmo antes de circundarem as suas casas (aliás, muitos começam a construção
com o muro), os muros já existem nas mentes e nos corações. Os poucos pontos de
encontro entre setores sociais diferentes são aquelas interfaces do consumo que podem ser
ainda compartidas por (quase) todos: os shopping centers, os hipermercados e alguns
lugares de coletivização do lazer como as praias, os estádios esportivos, os poucos cinemas
que sobram. (na Europa, o transporte coletivo dos trens).
A hiper-excitação mercadológica de sensações - muitas vezes intensas e
relativamente acessíveis, embora geralmente transitórias e. por último, tendencialmente
frustrantes - forma parte da "estetização" das relações mercantis. De pouco serve repetir,
em nome de uma suposta consciência crítica social, que se trata de fenômenos de
"infantilização regressiva". Precisamos entender por que funcionam tão bem e quais são os
vazios na convivialidade humana, que são parcialmente preenchidos pela indústria das
sensações.
Em linhas gerais, tem-se a impressão de que o pensamento crítico tem preferido
acomodar-se em estratégias de resistência. Talvez conviesse analisar a produção
multifacética de excitações da sensibilidade como parte integrante de um vasto fenômeno,
fundamentalmente positivo, de desconstrução de antigos hábitos de inibição da
sensualidade humana e da pesada ideologia moralista contrária à afirmação do direito
humano ao prazer. E também como sintoma da passagem a um mundo positivamente
pluriawnauL. A música - esse dilúvio de prazerosidade massageante - é talvez um dos
aspectos mais reveladores dessa passagem à plurisensualidade no cotidiano.
É correto continuar ajuizando, como socialmente nociva, a eliminação dos freios
coercitivos da comunicação e dos comportamentos, que destruíram tanto potencial sócio-
afetivo em muitos contextos familiares e sociais? A repressão afetiva não foi apenas o
apanágio de ambientes culturais religiosos. Também as ideologias de esquerda se
mostraram freqüentemente repressivas no tocante à manifetação aberta do apreço às
emoções. Corpo, sexo, prazer e temas similares foram tabus básicos em toda um tramação
de supostos valores éticos e sociais pregados por muitas gera;cões.
Recentemente, uma propaganda de um Shopping Center insistia na seguinte
imagem: não somos um mero centro de venda de produtos de alta qualidade, somos um
espaço de experiências de vida de alta qualidade. Não somos apenas um centro no qual
você vai conhecer muitos produtos, somos um centro no qual você vai descobrir o quanto
podem aumentar os seus desejos.
Francamente, se alguém quisesse chacotear semelhante publicidade como o cúmulo
da exploração dos sentimentos humanos provavelmente teria entendido muito pouco do que
está acontecendo hoje no mundo do consumo. O caso citado foi colhido de uma revista
alemã e a expressão composta "experiências de vida de alta qualidade" utilizava um termo
vivencialmente apelativo: Qualittätserlebnisse (algo assim como "avivamento experiencial
158
da qualidade"). A publicidade fala a um ser humano que os livros didáticos praticamente
desconhecem: o ser humano experiencial. Será que não é preciso enraizar nesse nível as
experiências de aprendizagem e da sensibilidade soludária?
O "superego" produzido pelos ambientes de intenso consumo é um fenômeno social
extremamente complexo no qual se entrelaçam uma quantidade apreciável de elementos
cognitivos (não simples informação, mas formas de conhecimento novo), um entrejogo
mutável de sensações e uma intensa produção de desejos, que não se deixam reduzir a
meras relações competitivas (que certamente também existem, e como!), porque são, em
boa parte, desejos de imersão em mundos do sentido experiencialmente desejado. Em
resumo, muita gente se sente sumamente bem, como pessoas humanas, nesses ambientes
coletivos do consumo moderno. A crítica azeda ao consumismo não tem sabido encarar
positivamente esses fenômenos relacionais da atualidade. Quando, mais adiante,
abordarmos o tema do consumo, veremos que o assunto não deve ser banalizado,
No mundo de hoje coexistem, em muitas situações concretas, formas de excitação
com chances de crescimento na sensibilidade. Não todo o crescimento em sensibilidade
deve ser cobrado imediatamente como sensibilidade voltada para o social. Isto seria uma
espécie de exagero moralista facilmente imbuído de estreiteza ideológico-política. As
pessoas se excitam pelos mais variados motivos e suas experiências de sensibilização
devem ser avaliadas fundamentalmente enquanto incremento da busca pessoal da
felicidade, como direito de todas as pessoas.
Num mundo no qual se apregoam da maneira acima referida os centros inteiramente
voltados para a circulação de bens e serviços, como poderia a escola desconsiderar as
formas de socialização do desejo e de interrelação das experiências humanas?
Na miséria extrema nem "solidariedade mecânica" funciona
Retomemos, sem muita atenção a nuanças, o conceito durkheimiano de
"solidariedade mecânica". É a solidariedade culturalmente óbvia e "mais que natural",
porque é a que se dá naturalmente entre semelhantes ou iguais. Émile Durkheim criou o
conceito de "solidariedade mecânica" para mostrar que ela não basta, e pode ser até
socialmente nociva (por exemplo, a corporativista) quando se contrapõe ao objetivo de uma
coesão mais ampla da sociedade (que ele concebia, entenda-se bem, dentro do modelo
spenceriano de organismo social). Poderíamos chamá-la também de solidariedade quase-
instintiva. Aplicável, portanto, à auto-preservação familiar, tribal, grupal e corporativista.
A terrível útilidade desse conceito irrompe da realidade da miséria extrema.
Noticiário da TV Globo de 30/06/2000: mulher acusada de vender sua filha-bebê por 2
quilos de comida. Fulana de tal já teve anteriormente 20 filhos de três homens diferentes.
Vizinhos a denunciaram à polícia (notícia com a imagem de uma mulher supostamente de
43, mas com aparência de quase anciã). Seria possível, diante de um caso desses, que se lhe
aplicasse alguma crítica moralista, do tipo: por que tanto descontrole sexual? Perguntamos:
Que mais teve ela na vida?
O caso pasmoso revela a fragilidade dos vínculos mais primários de solidariedade.
O exemplo pode atrapalhar-nos a visão por suas características extremas. Mas uma ruptura
semelhante dos vínculos mais elementares da solidariedade imediata - de curto alcance, é
claro - está acontecendo um pouco por todo lado no mundo de hoje. Quantas mulheres
pobres tiveram que "bancar", com sacrifícios extremos, a preservação dessa fidelidade
solidária, na qual muitas outras espécies nos superam. Lembremos quadros angustiantes da
159
África, das favelas e "villa-miserias" da América Latina, e das tragédias bélicas mundo
afora.
Não existe imprinting filogenético que garanta a proteção dos "semelhantes", como
salvaguarda da solidariedade instintiva ou porventura genética generalizável, em situações
de miséria extrema e luta cega pela sobrevivência. As exceções heróicas, testemunhadas
por sobreviventes de campos de concentração, não se prestam para qualquer generalização.
Pelo visto, é inegável a degradação solidária devida à total ausência de condições humanas
mínimas para comportamentos solidários elementares.
Nossa espécie continua lenta em adquirir sensibilidade "humana"
Nos Estados Unidos da América do Norte (e não só por lá), ainda em meados do
século XIX, era bastante comum entre os brancos a convicção de que negro-escravo não
tem sentimentos humanos. Houve, porém, uma escritora jovem, de família puritana, que
executou a façanha de provar que escravo também tem sentimentos. Aliás, "provar" não é
bem a termo correto.. Ela fez muito mais que isso. Ela fez sentir, o que é bem mais do que
provar, porque é quase convencer. Fez que muitos sentissem que era verdade que os negros
escravos também tinham sentimentos. Uma de suas pesonagens admitia que eles até têm
"sentimentos cristãos".
A escritora norte-americana Harriet Stowe (1811-1896) construiu, em A Cabana do
Pai Tomás (1852), uma estória que mostrava, de forma impactante, como de fato muitos
brancos achavam que "Esses negros não são como nós", gente sensível. Mostrou que isso
era algo mais brutal que os próprios maus tratos da escravidão. Era a falta de
reconhecimento da plena humanidade dos negros, e era nisso que consistia a raiz mais
abominável e hedionda da aceitação da escravidão como algo normal. Era isso que
precisava ser des-contruído. e ela o conseguiu mediante a desconstrução e reconstrução dos
sentimentos de suas personagens. O livro influenciou profundamente a consciência popular
contra a escravidão. Traduzido a mais de 20 idiomas, foi prontamente adaptado ao teatro e
enchia as platéias da época. Abraham Lincoln, o presidente abolicionista que morreu
assassinado, enalteceu como "a jovem que provocou a guerra civil"165
.
No seu encontro com teólogos latino-americanos em Piracicaba, em 1991, o famoso
pensador René Girard expressou, numa roda de conversa, o pensamento chocante de que, se
o transplante de órgãos humanos tivesse sido uma técnica conhecida pelos egípcios, gregos
e romanos, ou mesmo pelos espanhóis e portugueses que descobriram a América Latina e o
Brasil, sem dúvida alguma eles teriam usado, sem maiores escrúpulos, os corpos de
escravos como "bancos de órgãos". Comentário de um integrante do grupo: É, a gente não
quer se lembrar de quantas coisas horríveis já foram consideradas como perfeitamente
aceitáveis!.
Historicamente, o cultivo da sensibilidade humana. é efetivamente bastante recente.
Como vimos no capítulo sobre a dignidade humana, muitas brutalidades arrepiantes do
século XX foram praticadas por gente que se considerava "normal" (por exemplo, as
barbaridades do Holocausto e as das guerras e guerrilhas). Algumas dessas coisas a gente
165
STOWE, Harriet B., A Cabana do Pai Tomás. (Texto em português de Herberto Sales). Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, 13ª ed., 1969. Lincoln se refere,obviamente, à Guerra da Secessão, na qual se enfrentaram o
Leste-Norte mais "modernizante", com o olho na industrialização e o "livre" mercado da mão de obra, e o Sul
ainda aferrado ao escravagismo.
160
chegou a ver de perto. Dá vontade de traçar um paralelo com a higiene corporal que, como
é sabido, evoluiu muito lentamente, sobretudo na Europa. A "higiene social", sob a forma
da sensação de repúdio psico-somático a espetáculos de tortura, execuções públicas e outras
cenas, que hoje nos parecem instintivamente horripilantes, evoluiu e ainda está evoluindo
de maneira assustadoramente lenta. Ainda hoje se pratica a tortura, existem massacres
coletivos, continua a violência das guerras e campeia a violência urbana.
Mas a maior prova do atraso da nossa espécie, no tocante à sensibilidade,
adjetivável como social no sentido amplo e massivo, é a invisibilização da miséria. A
cultura do mercado tende a invisibilizar a pobreza. Para amplos setores das populações dos
países ricos e para os setores acomodados de países, como o Brasil, os pobres são tão ou
mais imperceptíveis como as entidades imaginárias. Antigamente, anjos e demônios eram
seres praticamente ao alcance das percepções sensoriais daqueles que acreditavam na sua
existência. O fenômeno brutal e amplíssimo da exclusão social é para muitos "mais
distante" dos que os anjos, santos e demônios na cultura religiosa tradicional.
A imperceptibilidade dos seres humanos marginalizados é provavelmente maior na
experiência cotidiana dos ricos e acomodados. Para perceber os pobres requer-se muita
força no olhar do coração. E como tentou demonstrar José Saramago no seu Ensaio sobre
a cegueira, hoje a humanidade está ameaçada de cegeira generalizada. Seu testemunho, em
seu discurso ao receber o Prêmio Nobel, merece ser evocado:
Tudo o que fiz foi com plena consciência de um ser humano que busca relatar sua
identidade. Preciso indagar que diabos estou fazendo aqui na vida, na sociedade e
na história.
Cresce a ênfaze nos temas "sensibilidade" e "razão sensível"
Esta sub-seção lamentavelmente ficará restrita a uma espécie de convite ou
motivação para ampliar os conhecimentos em relação à importância, que o tema da
sensibilidade está adquirindo no debate cultural de hoje. Estamos diante de um fenômeno
complexo, com aspectos desafiadores, mas também com não poucas ambigüidades. Em seu
conjunto, o fenômeno é tão extenso e relevante que só o podemos tangenciar com algumas
anotações alusivas. Vale a pena conferir essas coisas mais de perto, em buscas pessoais. Na
Internet, os verbetes - simples ou compostos - sobre essa temática rendem uma enorme
safra de acessos disponíveis nos diferentes idiomas.
Temos, primeiramente, a explosão da onda acerca da assim chamada "inteligência
emocional", que vem desde meados dos anos 1980. No Brasil prosperou na esteira de
alguns livros-sensação, como o de Daniel Goleman, que já vai pela octogésima edição. Não
sabemos quantos o acompanham até os detalhes mais sonsos das sugestões de testes do
quociente de Inteligência Emocional. A questão não está nesse tipo de detalhes e nem
sequer em aceitar ou não certas distinções discutíveis que ele estabelece entre sentimentos e
emoções. Nesse aspecto, achamos que Merleau-Ponty nos deu embasamentos bem mais
sólidos em sua Fenomenologia da Percepção e demais obras. Nesta linha nos parece
relevante o estudo de James Ostrow por assumir um ponto de vista fenomenológico na
161
busca de uma superação do subjetivismo e do cognitivismo mecanicista em direção a uma
teoria fenomenológica da sensibilidade social166
.
Á onda da "inteligência emocional" - e uma série de temas afins, sem ignorar a vasta
difusão dos esquematismos da PNL (Programação Neuro-Lingüística), e até mesmo a
literatura de auto-ajuda - tem tudo a ver com a crise da racionalidade moderna. Para
amarrar esse nó, de forma indissolúvel, o livro de António R. Damásio, O Erro de
Descartes veio a calhar, permitindo estabelecer, além do mais, uma boa conexão inicial
com as neurociências.
Este assunto deveria ser visto como um sub-aspecto da crise epistemológica e da
mudança de paradigmas nas ciências, assunto sobre o qual existe uma vasta literatura e há,
a nosso entender, algumas leituras obrigatórias, como Thomas Kuhn, Ilya Prigogine,
Humberto Maturana e Francisco Varela, Fritjof Capra etc. Como podem notar, estamos
sugerindo uma ponte explícita, que nos parece imprescindível, com o fascinante mundo das
biociências.
O retorno do "sensível" nas ciências humanas é um fenômeno hoje bastante
incontestável e já documentado, ao menos de forma incipiente, por autores como René
Barbier167
. O tema "cognição afetiva" vem se espalhando América Latina afora em livros
como O direito à ternura de Luis Carlos Restrepo, de apreciável difusão em vários
países168
. Michel Maffesoli nos brindou com uma problematização filosófica e sociológica
bastante abrangente, embora não sempre analiticamente aguda, da crise da razão moderna e
da emergência oportuna do tema da "razão sensível" na atualidade. Sua rápida abordagem
da "forma social" da razão sensível ficou demasiado parca, mas o conjunto do livro abre um
leque razoável de questões relacionadas com a epistemologia e a educação169
.
Para muitos foi certamente uma surpresa o livro de Pierre Lévy - em co-autoria com sua
companheira Darcia Labrosse -, O Fogo Libertador, no qual esse autor, mais conhecido por
seus abundantes escritos sobre tecnologias da inteligência, o virtual, o ciberespaço e a
inteligência coletiva, se abre sobre seu itinerário de experiências emocionais e espituais170
.
O aprofundamento filosófico do desafio, que a face do/a outro/a representa para a
própria constituição dos fundamentos da ética, passa necessariamente por Emmanuel
Lévinas, principalmente por sua aguda explicitação do tema da sensibilidade solidária
radical.171
Fragmentos de meditação sobre sensibilidade social
1. Sensibilidade é um conceito abstrato que é preciso existencilizar
O conhecimento científico e a sensibilidade e habilidade artística precisam
unificar-se numa única visão do conhecimento e não como aspectos simplesmente
166
James M. Social Sensitivity - A Study of Habit and Experience. New York: SUNY (State Univ. of New
York Press), 1990 . 167
Barbier, René. l'Approche Transversale, l'écoute sensible en sciences humaines, Paris,Anthropos
(Economica), 1997, 350 p.; do mesmo autor, Le retour du "sensible" en sciences humaines - e oputros textos
disponíveis na Internet, junho/2000. 168
RESTREPO, L. C. O dieito à ternura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 169
MAFFESOLI. Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 170
LÉVY, P (com a colaboração de Darcia Labrosse). O fogo libertador. ão Paulo: Ed. Iluminuras, 2000. 171
Cf. DUSSEL, E. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000,
p. 363-372 (n. 259-266) - ["Sensibilidade"e "alteridade"em Emmanuel Lévinas].
162
coexistentes ou de alguma forma complementares... Precisamos educar (e auto
educar-nos) para a sensibilidade social, a compaixão e a responsabilidade social.
Somente se tivermos essas três habilidades seremos capazes de agir moralmente.
Valdemar W.Setzer 172
À primeira vista, a palavra sensibilidade não parece ser um conceito abstrato, mas
é. Enquanto conceito, trata-se uma construção reflexiva do cérebro/mente acerca de
sensações experimentadas, aos quais se conferiu um nome. É bastante plausível que, na
evolução da nossa espécie, tenha havido longas demoras ou intervalos temporais entre o ter
e o distinguir sensações (o sentir experiencial, a sensibilidade como tal) e o conseguir dar
nomes específicos a essas sensações (os conceitos acerca da sensibilidade).
É mesmo provável que os nomes dos sentimentos só tenham surgido bastante tarde,
e aos poucos em nossa evolução, lá por volta de entre 60 e 40 mil anos atrás, quando se
acelerou o surgimento de linguagens. Pelo que dizem os que pesquisam esses assuntos, o
salto das linguagens humanas para a criação de campos semânticos mais elaborados, e
posteriormente para as linguagens lógicas e formais, se deu nos últimos 12 ou 10 mil anos,
quando o início da agricultura e do intercâmbio de produtos exigiu que o ser humano
soubesse explicar, para si mesmo e para os outros, o que estava pretendendo.
Fica, porém, uma discreta suspeita de que algo esteja mal contado nessa história.
Porque a maneira de contá-la se prende por demais à troca das coisas, deixando de
mencionar a troca dos afetos (e seu contrário), que certamente veio acompanhada de gestos,
sons e palavras desde lá atrás, desde os hominídios.
***
2. Alerta contra patrulhamentos ideológicos e moralistas
Quando se introduzem exigências éticas de conversão ao social sem acentuar ao
mesmo tempo a dimensão de busca de felicidade nessa conversão ao social, corre-se o
perigo de criar monstros supostamente conscientizados para o social, mas esquecidos da
necessidade de cada indivíduo de buscar a sua própria realização173
. Essas coisas devem ser
ditas e reditas de muitas maneiras, posto que os equívocos em relação a uma problemática
tão fundamental surgem facilmente porque as próprias linguagens sobre a felicidade e o
prazer estão marcadas por tabus, enquanto muitas das linguagens sobre o social estão
imbuídas de prevenções, suscetibilidades e patrulhamentos ideológicos.
***
3. A obstrução ideológica da sensibilidade
Experiência ideológica e experiência solidária, será que essas duas experiências são
compatíveis? Por experiência ideológica podemos entender muitas coisas, mas
provavelmente alguns de nós sabemos para onde aponta essa formulação. Alude a temas
como: a "certeza" subjetiva de que há um "grande inimigo"; o pressuposto de que "tudo
será diferente" quando ele for removido; as crenças rígidas no interior de grupos coesos e
172
SETZER, V. W. The Mission of Technology - Disponível na Internet, junho/2000. 173
Uma semi-confissão pública de equívocos dos sandinistas neste assunto se porde conferir no livro do ex-
vice-presidente da Nicarágua e grande escritor, Sérgio RAMÍREZ, Adiós Muchacos - Una memoria de la
revolución sandinista, México: Aguilar, 1999..
163
voltados para objetivos precisos; a adesão intensa a um núcleo rigidamente formulado de
crenças; a necessidade de eliminar supostos obstáculos; a militância fortemente
hierarquizada; etc. Poderiam dar-se exemplos tanto para grupos numericamente reduzidos
como para amplos processos de fanatização das massas. Não se deveria desconsiderar,
porém, que existem concepções mais brandas e menos nocivas da experiência ideológica,
no sentido de adesão forte a um conjunto de princípios éticos, que muitos consideram
imprescindíveis para uma visão humanista.
Em muitos casos a chamada clareza ideológica continha, sem dúvida, o bom
propósito de lidar com horizontes de esperança e fazer experiências participativas. que
merecessem o nome de experiências da esperança possível. Nos anos 70, do século XX,
alguns grupos latino-americanos usaram, ao menos por algum tempo, a consigna "organizar
a esperança!". Nesses mesmos grupos era sumamente frequente um uso positivo do
conceito de ideologia (como se sabe, para Marx e para a maioria dos cientistas sociais,
ideologia é um conceito prevalentemente negativo). Deixemos flutuar a pergunta: em que
medida um conceito positivado de ideologia tende a substituir, deformar e devorar o
conceito de experiência da esperança?
Nenhuma experiência da esperança pode pretender esgotar ou conter completamente
o horizonte utópico. Como seres humanos abertos a mundos futuros, precisamos de um
horizonte de sonhos mais dilatado que as realizações previsíveis num futuro de curto ou
médio alcance.
***
3. Os racionalismos impedem que se entenda o que é sensibilidade
Não quero faca nem queijo.
Quero a fome.
Adélia Prado
Os teóricos da educação tentam explicar-nos em que consiste, "principalmente", o
desenvolvimento da inteligência. A ênfase costuma recair sobre as aptidões cognitivas para
entender linguagens, captar conteúdos, articular perguntas sobre o que não se entendeu
direito, dizer as coisas com as palavras certas, formular pensamentos corretos, articular
raciocínios lógicos, enfim, desenvolver a inteligência de um modo racional. A didática
tradicional estava tão apegada a uma determinada concepção racionalista da inteligência
que muita gente ficou animada quando esse desenvolvimento das aptidões cognitivas
começou a ser visto como algo que acontece dentro de condições sociais e históricas.
O racionalismo continuou, só que agora ele vinha inserido na história social. Mas
essa história social continuou sendo vista em termos quase exclusivamente confrontativos,
ou seja: como luta contra a desumanização capitalista e, mais recentemente, a denúncia do
neoliberalismo. O tema da cidadania já não está dando conta - pelas razões já insinuadas -
da superação do fosso existente entre a necessária aquisição de competências para um
mundo com mercado e a formação para a sensibilidade social.
Hoje constatamos que não se trata apenas de uma lacuna, mas - em muitos casos -
de um verdadeiro bloqueio ideológico que condiciona os acessos ao tema da cidadania (já
amplamente esvaziado por ideologizações de todos os matizes) e ao da solidariedade
(também tendencialmente co-optado). É preciso abrir um novo acesso, teoricamente mais
amplo e - por que não? - ético-politicamente mais radical, por que o "buraco" do político
está mais embaixo, isto é, tem tudo a ver com a estruturação dos campos do desejo e sua
164
relação com a construção de campos do sentido. Mas este novo caminho - sinalizado por
expressões somo sensibilidade social - já não deveria admitir escamoteamentos em relação
à exigência de competências humanas e sociais efetivas, articulando a partir delas, e não à
margem delas, a sensibilidade solidária. A competência humano-social é um ingrediente
indispensável da abertura solidária.
165
Capítulo 8
EPISTEMOLOGIA SOLIDÁRIA
Só a descoberta desperta. Só a invenção prova que se pensa de verdade a coisa que
se pensa, seja qual for essa coisa... Só o sopro criativo dá vida, pois a vida
inventa.
Michel Serres174
Eu quero pensar algo diferente, eu quero criar algo diferente para a minha vida,
eu quero me exercitar como ser humano de uma forma diferente Um de participante de curso na Fundação Petrópolis, RJ
Em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro175
, Edgar Morin
volta aum dos seus temas centrais já em Introdução ao Pensamento Complexo176
, isto é: a
inteligência cega ou as formas de conhecimento que geram cegueira. Ele nos convida a
levar muito a sério o fato de que o desenvolvimento histórico das formas de conhecimento
e de acumulação de saberes humanos carrega consigo uma profunda deformação anti-
solidária, que ele volta a denunciar como "as cegueiras do conhecimento". Não é apenas
pelo avanço das ciências e das novas tecnologias ou por causa da mundialização do
mercado que precisamos repensar as formas usuais do conhecimento. Trata-se de entender
que, no cerne da nossa concepção do conhecimento, e nas formas com as quais ele foi
sendo historicamente sistematizado, há diversas ausências cruciais.
Em nossa concepção usual do conhecimento prepondera a linearidade. Precisamos
rever a nossa obsessão por causalidades lineares. Imaginemos concretamente meia dúzia
de acontecimentos concretos nos quais estamos pessoalmente envolvidos: um fato alegre,
um susto, uma nova amizade, algum problema que nos preocupa, etc. Será que
conseguiríamos aplicar a tais experiências pessoais o esquema linear de causa e efeito que
prevalece em tantas coisas que e como se ensinam na escola?
Ignorar a causa de algo parece ser prova de ignorância ou até de burrice. Será que
não há algo de profundamente errado na mania de querer estabelecer relações causais
lineares a cada momento? O pensamento complexo é, no que tem de mais desafiador, uma
tentativa de reequacionar totalmente nossos esquemas racionais relacionados com o jogo de
causalidades. O pensamento filosófico e científico modernos nos viciaram em manias e
obsessões pela causalidade claramente definível. Ficamos tão viciados em explicações
causais que até construímos uma série de frases, aparentemente óbvias, como a seguinte:
por algo será, alguma causa deve haver; alguma explicação deve existir...
Esse tipo de fraseado revela que nos sentiríamos incômodos se tivéssemos que
deixar em suspenso a questão da causalidade. Ficamos frustrados em nossa racionalidade
quando não conseguimos nomear integralmente as causas de qualquer acontecimento. Isso
revela muito acerca da maneira como nos imaginamos "causa". Blindados nesse tipo de
racionalidade, nem nos ocorre que as energias ativas nos processos na natureza e da história
174
SERRES. Michel., Filosofia mestiça. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, pp. 108-109 175
MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez/UNESCO, 2000. 176
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget. s.d.
166
talvez sejam tão complexamente entrelaçadas que a palavra causa não dê conta das
fantásticas interrelações entre a ordem e o caos.
Nosso propósito básico, neste capítulo, é mostrar que precisamos transformar
aspectos fundamentais em nossas maneiras de aprender e de pensar para podermos dar a
guinada em direção à cultura solidária, que o próprio futuro da espécie humana e a saúde do
planeta Terra exigem de nós. Na linguagem de Morin, precisamos dar-nos conta das
"cegueiras do conhecimento", na forma como ele nos é geralmente proposto.
A perfectibilidade e educabilidade humana
O agir pedagógico e o próprio conceito de aprendizagem e de construção do
conhecimento supõem que se trata de um empreendimento humano que faz sentido para os
seres humanos. Numa frase: educar, aprender e conhecer implicam numa aposta positiva na
perfectibilidade e educabilidade "humanizante" do ser humano. Ao pressupormos que o ser
humano é "melhorável", estamos afirmando implicitamente que ele sempre se encontra
ainda num processo de "vir-a-ser", que admite avanços, mas jamais se estagna numa
plenificação totalmente alcançada. Sem esse pressuposto não teria sentido a afirmação de
que educar, aprender e conhecer valem a pena e são processos humanizadores.
Esse pressuposto admite dosagens variadas de ingenuidade, otimismo e
eventualmente até um certo pessimismo. Essas dosagens diversificadas geralmente têm
tudo a ver com os contextos esperançadores ou desalentadores nos quais os aprendentes
estão inseridos. Na atual situação do mundo, todos os desafios da educação passaram a ter
uma relação sumamente estreita, mas também ambígua, com a própria viabilidade social
das vidas humanas envolvidas nesses processos educativos.
Hoje educar significa realmente salvar vidas. Mas vale a pena salvar vidas para que
se mantenham nos níveis mínimos da sobrevivência? A educação certamente pretende mais
do que isso, embora muitas vezes sua função se limite quase a isso. Os sentidos e limites da
educação se transformaram em questão ético-política, que adquiriu ressonâncias imediatas
para dentro da questão mais radical de nosso tempo: a virada imperiosa para uma
civilização solidária que assegure não apenas a preservação da espécie humana e do planeta
Terra, mas amplie as possibilidades de uma vida feliz para todos os seres humanos.
O próprio envolvimento ativo em processos de aprendizagem e construção do
conhecimento, ou seja, a educação como tal, joga com pressupostos antropológicos que
convém chamar à consciência. Já que se trata de um assunto vasto e exigente, preferimos
abreviar seus detalhes citando uma parte do índice do livro de Hubert Hannoun, Educação:
Certezas e Apostas177
:
Os pressupostos da educação: Pressupostos fundamentais
que a humanidade seja obreira da felicidade
que seja positiva a imagem do homem que vai ser formado
que a pessoa humana seja perfectível
que a pessoa humana esteja capacitada para a liberdade
Pressupostos instrumentais
que a educação não seja "conversa fiada"
que a finalidade da educação seja fundamentada
177
HANNOUN, H. Educação: Certezas e Apostas. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
167
que as estruturas escolares sejam adequadas
que os conteúdos escolares sejam cientificamente determinados
que a avaliação escolar seja objetiva
que quem ensina seja capaz de ensinar
que quem ensina tenha vontade de ensinar
que a mensagem coletiva atinja o aluno-indivíduo
que a motivação do aluno seja real
que a competência adquirida se tornará aptidão
que a comunicação interindividual seja possível e válida
que a educação não seja manipulação
que a virtude possa ser ensinada
Educar é uma aposta "enactante"
Se acreditamos na educabilidade do ser humano estamos fazendo uma aposta na
possibilidade de unir percepção, desejo, ação. O conceito de enaction, proposto por
Francisco Varela, se refere à necessidade de abandonarmos o conceito de representação
mental em nossa concepção do conhecimento e da ação. Nossos sentidos não são apenas
"janelas" para o mundo. São muito mais do que isso porque nossos sentidos participam
ativamente não apenas na recepção de informação desde o meio ambiente, mas também na
construção da realidade percebida.
A percepção humana - como já insistia em demonstrar-nos Maurice Merleau-Ponty
- implica simultaneamente numa atividade aferente (trazer informação "de fora") e eferente
(construir o real mediante intervenções criativas da própria percepção). Segundo Varela, o
equívoco principal das teorias da representação mental consiste em não saber unificar
"representação" e realização, as duas faces simultâneas da percepção humana. Em outras
palavras, no mesmo instante em que percebemos o mundo, nós o estamos construindo.
Como já afirmava Kant, para a nossa razão o que chamamos objetivo de fato se constitui na
subjetividade do cognoscente.
Aposta enactante da educação significa, pois, que a educação não é uma atitude
expectante diante do mundo, como se houvesse um mundo totalmente pré-definido a ser
transformado em objeto do conhecimento. O próprio ato de conhecer implica muito mais do
que aferir dados externos à subjetividade de quem conhece. Conhecer é experimentar
conjuntamente uma relação cognitiva e desejante, porque todo conhecimento traz consigo
uma busca de sentido do próprio ato de conhecimento para aquele que está conhecendo.
Conhecer, enquanto experiência desejante do sentido, é muito mais que recolher dados
sobre o mundo, porque conhecer já contém a intencionalidade do querer apostar, avaliar se
vale a pena ou não prosseguir nesse conhecimento, enfim, conhecer é perceber
possibilidades do sentido para mim e para outros.
Na epistemologia tradicional, o ato de conhecer estava marcado por um esquema
dualista de relação entre sujeito e objeto. Dentro desse esquema dualista era bastante óbvia
a exigência de um conceito como o de representação, porque se as coisas estão num âmbito
fora de mim, com o qual busco estabelecer uma relação confrontativa entre sujeito
cognoscente e objeto por conhecer, é compreensível que essa relação seja concebida como
um processo de espelhamentos, em cujo cerne sempre já existe o falso pressuposto de que
possa haver, no conhecimento humano, um devoramento cognitivo pela avidez devorante
do sujeito cognoscente.
168
Tudo muda radicalmente quanto se admite cancelar, de uma vez por todas, essa raiz
agressiva da epistemologia tradicional, que pode ser identificada claramente na busca voraz
da coincidência ou concordância perfeita entre quem conhece e os supostos objetos do
conhecimento. Não há nada a devorar, a não ser a vacuidade da projeção humana que se
denomina equivocadamente de representações do real.
O real não é devorável, só é reconhecível enquanto parte de um processo de
relacionamentos ativos entre nossa percepção e cognição por um lado, e os in-fluxos e e-
fluxos de energia que fluem, por múltipla via, entre os seres cognoscentes e os mundos do
sentido que eles constróem em seu processo de conhecer.
Apenas um destaque ainda: as teorias da representação não conseguem estabelecer
uma relação intrínseca entre atividade desejante e atividade cognitiva. A expressão "aposta
enactante" - que Hubert Hannoun elabora a partir do conceito de enação de Francisco
Varela - nos parece bastante feliz porque ela redefine, ao mesmo tempo, tanto a própria
concepção do conhecimento como da atitude básica requerida para educar, já que ambas
passam a ser entendidas como "concepção", no sentido literal de conceber, gestar, e colocar
ou "pariri" para dentro de um mundo de sentido tudo aquilo que conhecemos ou ensinamos.
A inserção da percepção na ação de construir o sentido - como nos propõe Varela
mediante seu conceito de enação - significa a recuperação positiva da dimensão desejante
no interior do próprio ato de conhecer. Note-se, porém, que essa dimensão desejante é,
agora, concebida como uma busca relacional (uma busca de que a relacionalidade e a
conectividade que constitui e atravessa o conhecimento) e não como um desejo concebido
como confrontação.
Esta é uma remexida profunda no próprio conceito de desejo, porque o conceito de
desejo que predomina no pensamento ocidental contém uma presunção de ameaça, um
medo acerca da própria liberdade de desejar e um medo dos caminhos pelos quais esse
desejo poderia levar-nos. O medo do ocidente sempre já foi também um medo na aposta de
um sentido possível, mesmo que inevitavelmente transitório, dentro de um mundo marcado
pela finitude (Este assunto do desejo voltará, sob diversos enfoques, ao longo deste livro e
haverá, mais adiante, um capítulo especial dedicado a este importante tema)..
No fundo, o pensamento ocidental, que tanto insistiu na fé e, complementarmente
no amor, dificilmente conseguiu apostar no sentido do amor finito, porque o medo do
abismo da sua finitude impedia fruí-lo como plenitude existencial profundamente
satisfatória, apesar da sua finitude. Talvez a esperança tornada difícil seja apenas um
aspecto da incapacidade do ocidente de valorizar como satisfatórias e profundamente
realizantes para o ser humano aquelas experiências do sentido que de fato são possíveis
dentro do horizonte espaço-temporal da cotidianidade humana.
Retornando ao tema da educação, vale a pena frisar que ela não tem a missão de
colocar ordem em tudo, nem na cabeça dos/as estudantes, e muito menos no mundo inteiro.
Seu papel é, por um lado o de possibilitar habilidades e acessos mínimos para construir
mundos de significação e por outro, o de propiciar experiências humanas da capacidade
desejante em relação a mundos relacionais desejáveis. Seria difícil expressar isso de um
modo mais pertinente do que o fez Hubert Hannoun, a quem voltamos a citar:
A educação é um empreendimento fundamentado em apostas enactantes que
constituem a unidade e o sentido de seus componentes. É coordenação significante
daquilo que, disperso ou sem relações aparentes, se apresentaria sem significado.
No plano do corpo, é coordenadora dos componentes da motricidade pessoal em
169
torno de uma imagem física que propicie o melhor desenvolvimento possível e a
melhor adaptação ao meio ambiente. No plano da bioafetividade, é coordenadora
dos afetos como motores onipresentes do comportamento em sua relação
permanente com o prazer e com a dor. No plano das relações pessoais, prepara
para a substituição da agressividade segregativa pelo relacionamento que une e
enriquece, por se basear em certa idéia de coesão interindividual e social. No plano
da moral, tenta organizar as tendências humanas fundamentais segundo uma
norma de bem que, mesmo variando de uma cultura para outra, não deixa de existir
na base de nossas ações178
.
Aprendizagem à luz de novos estudos sobre o cérebro/mente179
Talvez a mais chocante "cegueira" da concepção tradicional da aprendizagem seja a
inibição sistemática do fantástico potencial de nosso cérebro para construir experiências
cognitivas e sociais de maneira multirreferencial, estruturalmente aberta e relacionalmente
complexa. Muitas formas usuais de concepção da aprendizagem e do conhecimento mal
tomam em conta o potencial cognitivo, que o nosso cérebro/mente adquiriu ao longo da sua
evolução. Por isso vamos dedicar um pouco de atenção a esse incrível potencial. Vamos
elencar alguns "princípios" para o respeito ao potencial do nosso cérebro/mente.
1. Nosso cérebro/mente é um sistema complexo adaptativo
Provavelmente o aspecto mais maravilhoso do cérebro é a sua capacidade de funcionar simultaneamente em muitos níveis e de muitos modos. Esta é uma razão pela qual buscamos superar visões mais estreitas (como a de que o cérebro é um processador paralelo). Aprender é um processo que envolve toda a fisiologia cerebral. Pensamentos, emoções, imaginação, desejos, memorizações e tudo o que chamamos aprender acontece dentro da fisiologia neuronal. Trata-se de processos interligados que operam de forma interativa, e às vezes de forma concorrente e competitiva, à medida que todo o sistema vivo do cérebro interage e troca informação com seu meio-ambiente. É importante compreender que, quando se está aprendendo, emergem no cérebro propriedades novas. E isto acontece no cérebro como um todo e não pode ser reconhecido nem entendido quando se observam unicamente determinadas partes do mesmo. A escola precisa tomar em conta que o aprendente humano aprende melhor quando ativa seus neurônios de maneira complexa e multifacetada.
2. Nosso cérebro é um cérebro social No primeiro ano da vida fora do útero, nossos cérebros são extremamente impressionáveis,
receptivos e versáteis. Essas disposições poderão ser preservadas vida afora, dependendo das circunstâncias nas quais o ser humano se desenvolve. O potencial do cérebro/mente é imenso e começamos a desdobrá-lo em contato com nosso meio-ambiente inicial e com nossas primeiras relações interpessoais. Vygotsky se empenhou em revelar-nos essa construção social do conhecimento. Todas as formas de educação e/ou terapia trabalham, a rigor, com essa dinâmica básica. Hoje sabemos que nosso cérebro/mente está em processo ativo ao longo da nossa vida, num constante envolvimento com outros. Portanto, os indivíduos devem ser vistos como parte integral de sistemas sociais interagentes mais amplos. Na realidade, boa parte de nossa identidade depende da maneira como estabelecemos laços comunicativos e encontramos formas de pertencimento. Por isso, o processo de aprender sempre está profundamente influenciado pela natureza das relações sociais em meio às quais a gente se encontra.
3. A busca do sentido é uma tendência intrínseca do cérebro/mente
178
HANNOUN, H. op.cit. p.175. 179
Texto elaborado a partir de pesquisa em várias fontes, entre as quais se destacam: Caine,R. e Caine,G.
Making conexions. Teaching and the human brain, Addison-Wesley, 1994. e textos da 21st Century Learning
Initiative, disponíveis na Internet.
170
Em termos gerais, a busca do sentido refere-se à nossa propensão a querer que nossas experiências façam sentido para nós. Essa tendência de busca do sentido é algo básico no cérebro/mente. Convém, portanto, entender que há algo mais que a mera orientação para a sobrevivência no próprio modo de funcionar de nossos neurônios. Quanto à maneira como opera essa busca do sentido em nossa experiência ao longo do tempo, um primeiro aspecto básico é que se trata de algo que tende a ser persistente ao longo da vida inteira. Naquilo que tem de mais profundo, essa busca de sentido parece conter uma espécie de propósito e parece orientar-se a valores. Valores são, em última instância, aquilo que pode ser vivenciado como algo que faz sentido. (Já nos longínquos anos 50, Maslow fazia e enfatizava a extensão e intensidade dessa intencionalidade humana em suas teorias sobre motivação externa e motivação interna). Incluem-se nisso questões básicas como "quem sou eu?" e " por que eu me encontro aqui?". De maneira que a busca do sentido se estende desde a necessidade de alimentar-nos, encontrar acolhida e segurança, construindo uma identidade mediante relacionamentos, até a exploração de nosso potencial e a própria busca de algo transcendente.
4. O sentido emerge através da "criação de parâmetros" (patterning)
Na criação de padrões ou parâmetros se incluem todos os tipos - bastante diferenciados e complexos - de formas de percepção e categorias com as quais construímos o nosso real, quer sejam tendências inatas ou aprendizagens adquiridas. O cérebro/mente precisa registrar, e o faz automaticamente, o que lhe é próximo e familiar, enquanto busca simultaneamente indagar e responder a todo tipo de impressões novas. De certo modo, portanto, o cérebro/mente é ao mesmo tempo, cientista e artista: tenta discernir e entender sequências e padrões na medida que ocorrem em sua experiência, mas - o que é muito importante - aproveita as circunstâncias favoráveis (quando elas existem) para inovar novos padrões únicos e criativos que ele próprio vai criando. O cérebro/mente resiste naturalmente à imposição externa de sentidos rígidos e, sobretudo, à imposição de ausências ou vazios de sentido. Por ausência de sentido entendemos todo tipo de informação ou instrução desrelacionada daquilo que faz sentido para aquele/a aprendente particular. Uma educação realmente efetiva precisa dar aos/às aprendentes a oportunidade de criar, desdobrar, e formular seus próprios padrões de entendimento.
5. As emoções são decisivas na "criação de parâmetros" do sentido Tudo o que aprendemos é influenciado e organizado também por emoções e "configurações"
emocionais que envolvem expectativa, preferências, prejulgamentos pessoais, auto-estima e a necessidade / carência de interação social. As emoções e os pensamentos são um processo tão inseparável que dão literalmente forma uns aos outros. As emoções colorem o sentido. É nesta direção que Lakoff destaca a importância das metáforas. Além disso, o impacto emocional de uma aula ou experência de vida pode continuar reverberando muito tempo depois do evento específico que o detonou. Daí decorre que é fundamental e indispensável para a educação que ela se dê num clima emocional apropriado.
6 .Todo cérebro/mente percebe e cria ao mesmo tempo as partes e o todo
Embora haja algo de verdade na distinção conhecida entre "cérebro direito" e "cérebro esquerdo", isso não representa toda a história. Numa pessoa saudável, os dois hemisférios interagem em cada atividade, desde a prática artística até a formalização do pensamento organizado, e isso tanto numa simples compra como no bate-papo entre amigos/as e na mais sisuda aula. A teoria dos "dois cérebros" serve especialmente para lembrar- nos que o cérebro desmonta qualquer informação até o ponto de servir-lhe para integrar um todo que faça sentido para ele. A percepção, portanto, tende a alcançar sempre uma abrangência holística. Um bom treinamento e uma boa educação sabem reconhecer isso. Por exemplo, introduzindo e tornando perceptíveis projetos "globais" desde o início.
7 . Aprender implica atenção focalizada e percepção periférica "Prestar atenção" precisa de uma dosezinha de distração para não forçar os neurônios e
continuar criativos. O cérebro absorve a informação da qual se dá diretamente conta, mas absorve também, e diretamente, informação que se refere a coisas que estão além do seu foco de atenção imediata. Na realidade o cérebro/mente continua em sintonia com e responde a um contexto sensorial mais amplo dentro do qual estão ocorrendo o ensino e a comunicação. "Sinais periféricos" são extremamente potentes. Mesmo os sinais provindos do inconsciente e que manifestam nossas próprias atitudes e crenças interiores, possuem um poderoso impacto no/a aprendente. É por isso que os/as educadores/as podem e devem prestar atenção ampla a todas as facetas do meio-ambiente educacional (ecologia cognitiva).
8 . O aprender envolve sempre processos conscientes e inconscientes Um aspecto da consciência é o dar-se conta. Muito da nossa aprendizagem é inconsciente na
171
medida que os ingredientes da aprendizagem, enquanto experiência de idéias e emoções, se processa por debaixo do nível do dar-se conta. Isto significa que boa parte do entendimento possivelmente não aconteça durante a aula, já que pode ocorrer horas, semanas, ou até meses mais tarde. Significa também que os educadores devem organizar aquilo que fazem de maneira tal que facilite o processamento inconsciente posterior da experiência de estar aprendendo por parte dos/as aprendentes. Na prática isso inclui uma proposta adequada de contextualização, a incorporação de reflexão e atividades metacognitivas e, ainda, indicações que ajudem os/as aprendentes a elaborar criativamente suas próprias idéias, capacitações e experiências. Fica, pois, evidente que o processo de ensinar deve transformar-se, em boa medida, numa tarefa de ajudar os/as aprendentes a conseguirem, por si mesmos, tornar visível o que é invisível.
9. Nós temos ao menos duas maneiras de organizar a memória
Embora existam muitos modelos e propostas acerca da memória, um dos que proporcionam uma excelente plataforma para educadores consiste na distinção (feita por O'Keefe e Nadel) entre memória taxonômica e memória local. Sugerem eles que, o ser humano conta com um conjunto de sistemas para evocar / chamar informações relativamente desrelacionadas (sistemas taxonômicos, da palavra "taxonomia"). Estes sistemas estariam motivados por prêmio e castigo. Os mesmos autores sugerem também que nós temos uma memória espacial / autobiográfica a qual não necessita refazer pesquisas e possibilita a evocação "instantânea" de experiências. Tal é, por exemplo, o sistema da memória que registra os detalhes da nossa janta de ontem à noite ou de alguma festa, mas sobretudo todas as vivências mais marcantes. Ele está sempre, por dizê-lo assim, "engatado", é inesgotável e costuma estar motivado para o novo e diferente.. É dessa forma que estamos biologicamente supridos por uma capacidade de registrar experiências como um todo. A aprendizagem do que faz sentido ocorre mediante os dois jeitos de funcionamento da memória. De maneira que, a informação que faz sentido e a que não faz sentido estão organizadas e registradas de maneira distinta.
10. Aprender é um processo que se vai desenvolvendo aos poucos
O desenvolvimento ocorre de diversas maneiras. O cérebro/mente tem a característica básica da plasticidade. Isto significa que grande parte de suas predisposições neuronais se forma através das experiências que as pessoas adquirem. Existem, porém, igualmente sequências do desenvolvimento adquiridas na infância, incluindo "janelas" de oportunidade que foram criando as predisposições para a capacidade de continuar aprendendo mais adiante. Essa é uma das razões porque as crianças deveriam ter, bem cedo na sua infância, o acesso a uma variedade de linguagens incluindo as da arte. Finalmente, convém insistir que, sob muitos aspectos, não existe limite para o crescimento e o potenciamento da aprendizagem nos seres humanos. Os neurônios continuam capazes de estabelecer conexões novas ao longo da vida inteira. Descobertas científicas recentes comprovam inclusive a regeneração dos neurônios e a possibilidade da emergência de novos conjuntos neuronais.
11. Os desafios fomentam e as ameaças inibem a aprendizagem complexa
O cérebro/mente busca otimizar a aprendizagem - ou seja, tende a estabelecer o máximo de conexões - quando é adequadamente desafiado por um meio-ambiente que o encoraja a assumir riscos. Mas, por outra parte, o cérebro/mente "reduz" sua disponibilidade quando se sente ameaçado. Nesse caso torna-se menos flexível e retorna a atitudes e procedimentos mais primitivos. É por isso que precisamos criar e manter uma atmosfera de alerta desinibido, que inclua baixos níveis de ameaça e altos níveis de desafio. Note-se, porém, que um nível reduzido de ameaça não é sinônimo de "sentir-se bem". O elemento chave da percepção de ameaças consiste na sensação de carência de ajuda ou cansaço. Estresse e ansiedade ocasionais são inevitáveis e são algo que deve estar previsto em qualquer genuína aprendizagem. A razão é que toda aprendizagem genuína implica em mudanças que levam a uma reorganização do eu aprendente. Tal aprendizagem pode, às vezes, ser de fato exigente, e neste sentido, estressante, independentemente da capacidade e do oferecimento de apoio existentes por parte de quem ensina.
12. Cada cérebro/mente está organizado de forma única
Todos nós temos o mesmo conjunto de aptidões neuronais básicas e, mesmo assim, somos todos diferentes. Algo dessa diferença deve-se às consequências do nosso embasamento genético. Muito, no entanto, é consequência da diferença das experiências e dos contextos, que formaram o nicho vital de cada um. As diferenças se expressam em termos de estilos de aprendizagem, talentos e inteligências diferentes e assim por diante. Um corolário importante disso é a valorização da necessidade e do direito dos estudantes a formas diversificadas de aprendizagem. É necessário assegurar que eles/elas sejam expostos a uma multiplicidade de chances. Inteligências múltiplas e um vasto leque de diferenças nas formas de aprender são, portanto, uma característica normal dos seres humanos.
172
Plasticidade do cérebro e elasticidade dos mundos do sentido
Existe uma cooperação neuronal como base constitutiva de todas as nossas formas
de conhecimento. Isso exige que nos situemos no interior de uma visão complexa, cujo
elemento central é a exigência de refazer completamente nosso modo de entender as
causalidades. Os novelos e imbricamentos dinâmicos de nossos neurônios operam, em cada
processo cognitivo, como um vasto sistema dinâmico e adaptativo de interações e
cooperações. Se o funcionamento dos nossos neurônios é basicamente solidário - o que não
exclui formas de concorrência performativa -, também as formas do nosso conhecimento
deveriam ser solidárias no interior da própria maneira como se articulam. Já se consegue
fazer, hoje, imagens desse processo neuronal de inumeráveis conexões simultâneas e
interativas. Será que não chegou a hora de entender que a própria saúde do nosso
cérebro/mente exige que nossa maneira de aprender e de pensar contenha sempre uma forte
dimensão solidária?
Apontada a plasticidade do cérebro, pensemos agora na elasticidade enorme dos
sentidos das palavras. Em todos os ditos há numerosos não-ditos (por vezes quase
infinitos). Também - e talvez sobretudo - nas linguagens existem "astúcias da razão" (e da
des-razão e sobretudo da emoção) e "mãos ocultas". Esta é uma questão mais ampla e mais
radical do que a dos assim chamados "atos-falhos". Indo a um exemplo concreto,
provavelmente é importante, do ponto de vista dos nossos neurônios, que se lhes permitam
as flutuações da busca, o estabelecimento de parâmetros do sentido apropriados a suas
temporalidades diferenciadas, em suma, que a tentativa e o erro sejam considerados parte
integrante da opção por campos do sentido personalizados.
Para a pedagogia é de suma relevância que se tome em conta que nossos
conhecimentos não surgem como encaixes de formas oriundas de fora, por via puramente
transmissiva. As formas do nosso conhecimento promanam e emergem de um surgimento
de formas (morfogênese) à dinâmica do nosso sistema neuronal. Isso se aplica também à
emergência das redes de significação em nosso manejo de linguagens. Por isso falamos da
conveniência de se cultivarem formas de abertura solidária internas ao nosso modo de
pensar. Trata-se de respeitar e incentivar uma espécie de vocação congênita do nosso
cérebro/mente. Isso deveria deslumbrar-nos como algo maravilhoso. Variados mundos do
sentido são a ecologia cognitiva mais propícia ao desabrochar do potencial aprendente dos
seres humanos.
Nossas idéias deveriam permanecer abertas à parceria mundos do sentido em
constante transformação. Nosso mundo do conhecimento deve ser um mundo no qual
caibam muitos outros mundos de conhecimentos diferentes. Nosso desejo de conhecer não
ser cabresteado para tornar-se unidirecional no que se refere aos mundos do sentido. Aliás,
geralmente as nossas linguagens são atraídas simultaneamente por vários atratores
semânticos, isto é, por polarizações mutantes em direção a campos de significação
instáveis.. Chamamos de campos semânticos as relações reciprocamente interativas de um
determinado conjunto de linguagens (gestos ou palavras).
Nem sempre os campos semânticos, constituídos por um conjunto de signos
estruturados, coincidem rigidamente com os campos do sentido socialmente constituídos ou
em processo de constituição. Os campos de sentido interpessoal flutuam para além dos
campos semânticos verbais. Mas existe, obviamente. uma plausibilidade de que estejam
próximos entre si. O equívoco de certas teorias da linguagem consiste em postular uma
total equivalência ou correspondência entre os campos semânticos e as estruturas
comunicativas do sentido. Isto significaria querer que o que se diz também se chegue
173
sempre a comunicar. Todos sabemos, de alguma forma, que as coisas não funcionam assim
no mundo das relações interpessoais. Por isso o agir pedagógico precisa transformar-se em
processo comunicativo, para além do mero fluxo de linguagens, seja lá de que tipo forem.
Para não demorar-nos demais nessa digressão, tentemos resumir: os campos
semânticos das linguagens têm uma relação transversátil com os mundos vivenciais do
sentido. Trata-se de um jogo complexo de interfaces e de superposições geralmente apenas
parciais. A comunicação humana é tão fascinante, precisamente, porque raras vezes é um
interfluxo de significações inteiramente precisas. O mais das vezes é apenas um
intercâmbio de tentativas recíprocas para comunicar-nos. Nesse processo a presença ou
ausência do desejo de entender-nos cumpre um papel fundamental. No fundo todos
sabemos que, em geral, não estamos "negociando" o mero sentido de palavras ou frases.
Efetivamente, "negociamos" - e negaceamos - entre nós as nossas entradas e saídas em
mundos do sentido.
Claro que alguém poderia objetar que essa complexa permuta de interfaces de
nossos mundos do sentido não se aplica às linguagens supostamente omni-expressivas e
totalmente formalizadas, como as da matemática e as digitais. Objeção aceita, mas com a
ressalva de que a todas elas se aplique também o teorema da incompletude de Gödel, ou
seja, a situação de constructos formais confinados a seu respectivo mundo de formalização.
É por isso que não dão conta, em seu idioma particular, nem sequer de seus próprios
pressupostos filosóficos. Os algoritmos genéticos e recursivos da mais avançada
computação evolucionária, com parciais processos de auto-organização emergente, já são
uma questão bastante diferente.
Dito de outra forma, as linguagens rigidamente formalizadas representam recursos
instrumentais sumamente úteis para auxiliar-nos no encaminhamento de cadeias parciais de
significação em nossas permutas de linguagens, mas elas jamais recobrem todas as
interfaces de nossos múltiplos campos semânticos e, menos ainda, as dos mundos do
sentido peculiares da comunicação interpessoal humana.
O papel do desejo na emergência do sentido
Nosso jeito humano de experimentar sentidos se dá por rumos plausíveis, e não
mediante garantias antecipadas. Francisco Varela inventou para isso o termo enação
(enaction), que pretende compactar um denso significado inovador. Enação quer dizer que
nosso significar se adentra nos campos semânticos, apostando - enactando - criativamente
em mundos do sentido que achamos que valem a pena para a nossa vida. Por essa aposta
transita, portanto, nosso desejo pessoal de responder a, e ser responsáveis por mundos do
sentido partilhados por outros, com quem nos encontramos em processo de interlocução.
Há, portanto, uma dimensão desejante, que constitui uma dimensão solidária, no
âmago do nosso aprender e do nosso conhecer. A intensificação do desejo de entender-nos
aumenta as chances de nossas interfaces comunicativas. O pensamento intensamente
desejante é mais saudável, do ponto de vista da solidariedade, do que o pensamento menos
vivificado pelo desejo do encontro com nossos parceiros na evolução. Aprendemos e
conhecemos mediante processos solidários de co-presença e co-participação em mundos do
sentido para os quais não apenas nós mesmos mantemos interfaces comunicativas.
Pode-se afirmar que é fundamentalmente o desejo que en-dobra e desdobra, implica
e ex-plica (plica é dobra, em latim) os mundos do sentido, resgatando-os da sua fragilidade
e instabilidade. Nesse sentido, é o desejo de significar - isto é, de conhecer com vistas à
174
comunicação mútua - que estabelece e salva o sentido. Em última instância, sem desejo
comunicativo nenhum também não existe nenhum mundo partilhado do sentido, já que
estamos falando de milagres deste mundo, o dos dialogantes humanos.
Nessa direção nos parece que vale a pena continuar refletindo. Mal começamos a
intuir que o aprender, o conhecimento, a existência humana enfim, deveriam ser
experienciados como um transitar corajoso e confiante por interfaces. Nossos mundos do
sentido surgem a partir de interfaces com os mundos dos outros. Os nossos não poderão
existir sem que os dos outros sejam simultaneamente afirmados, embora as interfaces de
entrada e saída sejam diferentes. Se não houvesse a partilha solidária de mundos do sentido,
ao menos substancialmente idênticos, que sobraria? Trincheiras, contraposições, senhor e
escravo, etc. numa disputa feroz por "nomear" o mundo com o seu poder?
A noção de interface não inclui nenhuma dimensão adversativa, porque o
sublinhado, pela própria força da palavra, é a dimensão conjugativa do encontro. Por isso
interface não tem nada a ver com trincheira ou campo de guerra. Não desaparece a
competitividade. Mas o mundo do/a outro/a aparece como mundo co-afirmado. Seres
dialogantes se instituem reciprocamente mediante a criação de mundos do sentido. Nessa
perspectiva, fica para trás toda a lúgubre - e no fundo medrosa e covarde - "filosofia do
outro" visto predominantemente como contrincante, competidor, ameaça. O aprendente já
não precisa considerar-se vítima potencial. E o/a ensinante pode transformar-se em parceiro
na construção comum de mundos do sentido. A aprendência passa, então, a ser vivência
compartida. Hoje a própria tecnologia computacional nos evidencia o caráter
imprescindível das interfaces na construção de qualquer campo semântico. Quanto mais,
então, nas trocas comunicativas do relacionamento humano e social.
Aprender é abrir-se ao mundo e aos outros
Nós inventamos o outro como o outro nos inventou.
Paul Eluard
A estratégia da vida consiste em relacionar-se com o diferente de maneira não
somente apropriadora, mas também de maneira respeitosa. O respeito da diferença é
essencial à solidariedade que tem em conta os princípios básicos da vida marcados pela
infinita diversidade dos comportamentos dos seres vivos. Admitamos, porém, que na
experiência possível da relação com o diferente nunca falta completamente um certo tipo de
apropriação.
É melhor ser honestos: é muito difícil amar sem nenhuma mistura de auto-afirmação
dos que amam. Mas o maravilhoso na aceitação do diferente é que o diferente é
"apropriado" de uma forma tal que ele continua sendo diferente "dentro" de mim. Não é,
portanto, simples apropriação ou assimilação, porque acontece a auto-transformação do ser
solidário pelo que lhe é diferente, e este passou a fazer parte, com a sua diferença, da nova
identidade do ser solidário. O ser humano, que se torna solidário, se transforma enquanto
aprende a "incorporar" em si o diferente.
O/a outro/a é, enquanto diferente, a chance do meu projeto de ser. O meu projeto de
ser não pode existir sem essa relação fundante com o outro-diferente. A diferença do
diferente constitui o processo de des-afirmação da minha condição de isolamento
ameaçador, ou seja, o outro-diferente me indefere enquanto mônada. O meu isolamento fica
175
socialmente desaprovado pela existência do/a outro/a. É a existência dos demais que me
transpõe ao mundo relacional, no qual as mônadas ficam abolidas.
Num certo sentido, portanto, o/a outro/a é a parte mais objetiva da minha realidade
porque não há invenção/descoberta do eu sem invenção/descoberta do tu. E - maravilha das
maravilhas - o/a outro/a é uma invenção que, ao menos em boa medida, não preciso
inventar sozinho porque ela, até certo ponto, se auto-inventa diante de mim.
Há perguntas fascinantes mas quase irrespondíveis, como as seguintes: o que é que
acrescento ao outro para que ele vire o meu outro, que me possibilita enquanto identidade
pessoal? Existe a possibilidade do "salto unilateral" para dentro desse milagre da
constituição simultânea do outro e do eu, ou é imprescindível que - ao menos de vez em
quando e em temporalidades intensas - dois saltos simultâneos, o do eu e o do tu, convirjam
num mesmo processo de constituição de identidades? Seria possível a construção de uma
ponte para o "universal" (o que se supõe que valha para todos) sem a constituição vivencial
de processos comunicativos do sentido em relações interpessoais concretas?
O/a outro/a é inevitavelmente inatingível para nós. Mal e mal conseguimos roçar a
"outridade" (o ser-outro diferente) com nossa experiência, posto que ela sempre preserva
uma espécie de misteriosa identidade intocável. Este aspecto de não plena fusão faz parte
da contingência dos relacionamentos humanos. É importante que não se faça disso, no
plano da experiência pessoal, um pretexto para distanciar-nos dos demais por serem eles,
em última instância, mistérios inatingíveis. É fundamental entender que não existe
identidade pessoal que não tenha sido construída através de relacionamentos com outros/as.
A identidade pessoal só é possível nesse relacionamento. A identidade de cada um de nós
se constitui através de múltiplos acolhimentos de outros em relação a nós e nossos em
relação a eles. O que era diferente, distinto de mim, passou a ser o diferente em mim, e já
não é o diferente "fora" de mim ou separável de mim. A diferença da outridade que entrou
em mim foi determinante para que surgisse a minha identidade diferente.
Aprender é transformar-se
É preciso saber saborear esperanças miúdas, esperanças ao alcance da mão, do tato,
do olfato, do gosto, dos nossos 77 sentidos (ou você se contenta com apenas os 5 sentidos
catalogados?) Esperanças compartidas alicerçam a solidariedade entre as pessoas. Há, no
entanto, uma tentação perniciosa de exagerar nas esperanças possíveis. Custa-nos muito
admitir que não podemos transformar o mundo como desejaríamos. Não é bom arrastar
consigo, por demasiado tempo, esperanças completamente ilusórias. É saudável admitir
que, sob muitos pontos de vista, a Esperança não existe. Aceitá-lo não implica, de modo
algum, negar a possibilidade esperanças tópicas. Se precisamos da Esperança (com
maiúscula) para vivenciar esperanças tópicas é porque há algo de pouco humano - e, nesse
sentido, de doentio - em nossa maneira de entender a esperança.
Na efetivação das esperanças humanas sempre fica omitido algo de muito
importante. Pode-se omitir coisas por querer ou por cálculo. Sejamos honestos: no convívio
social sempre se intrometem também omissões calculadas. E isso dói muito. Mas, por outro
lado, há omissões que não quisemos cometer. Simplesmente acontecem porque, no fundo,
sempre há algo importante que nos escapa.
Talvez ser humano/a também signifique precisamente isto: dar-se conta de que,
felizmente ou infelizmente há coisas incríveis e importantes que ainda nos escapam. Saber
disso pode ajudar-nos a melhorar nossos anseios. Mas obsessionar-se com isso pode gerar
176
desgastantes frustrações existenciais. Muitas frustrações não são outra coisa que a não-
aceitação do milagre de que há coisas importantes que ainda não foram devidamente
adivinhadas por nossa limitada curiosidade. O que a educação nunca deveria fazer - mas
que, talvez, seja o que ela mais tem feito - é limitar a curiosidade.
Aprender a aprender é manter acesa a curiosidade. O mero ensinar, ou a mera
entrega de saberes supostamente prontos, mata a curiosidade. É neste ponto que a escola
mais peca, porque muitas vezes ela extirpa a curiosidade, em vez de alimentá-la. Por isso é
bom lembrar que apagar curiosidades é despotenciar neurônios do cérebro humano.
Por uma epistemologia intrinsecamente solidária
Que vem a ser uma epistemologia solidária? Um modo de conhecer, pensar e
interrelacionar pensamentos que seja complexo e aberto desde a sua mais profunda raiz, e
ao longo de seu desdobramento. Formas de conhecimento que sejam, congenitamente,
formas de relacionamento, e que os aprendentes se possam dar conta disso. Que haja uma
dimensão solidária na própria forma de aprender, no cerne do próprio pensamento. Edgar
Morin tem insistido na relação intrínseca que existe entre pensamento complexo e
solidariedade.
Precisamos ensaiar formas do pensar e do aprender que impliquem simultaneamente
a afirmação da subjetividade dos aprendentes e a abertura à intersubjetividade e à
sensibilidade social.. Falar é querer comunicar-se. Querer comunicar-se implica
reconhecimento mútuo entre os dialogantes, Negociar linguagens e significados implica
que vale a pena o intercâmbio dialogante. Gestos e palavras não são nunca mera emissão de
sinais, porque pressupõem que faz sentido emitir sinais comunicativos. Dizer que faz
sentido emitir sinais comunicativos significa estar à espreita ou na expectativa de obter
respostas comunicativas. Esperar respostas significa sentir-se um ser "respondente",
"responsável" (capaz de responder). Sentir-se em estado de "respondente", significa supor
que a gente não está só no mundo.
Em suma, falar, fazer gestos e comunicar-se pressupõe que "algo em nós" já conta
com a possibilidade de estar em contato, em diálogo. Agora, o que é realmente maravilhoso
é que nós sejamos, no que temos de mais profundamente nosso, uma "construção" provinda
de olhares, carinhos, atenções, gestos e palavras que possibilitaram a nossa identidade
enquanto seres "respondentes" e dialogantes. E que sucede quando as identidades não
podem emergir porque não há contexto dialogal que possibilite seu surgimento?
Vale a pena falar sobre esses implícitos, essas pressuposições comunicativas da
própria estrutura de nossas linguagens e do próprio fato de as usarmos. Precisamos
aprofundar a questão da relação dialoga; enquanto elemento originante da abertura às
diferenças desde o interior das próprias experiências da aprendizagem. Por exemplo:
construir campos do sentido nos quais se perceba imediatamente que eles foram articulados
a partir de um desejo solidário e de uma sensibilidade solidária.
A aprendizagem solidária quer atender ao jeito cooperativo de funcionar dos nossos
neurônios. São morfogeneticamente solidárias as linguagens e idéias que já nascem
brincando com linguagens e idéias diferentes. A própria maneira de vincular palavras e
significados pode ser aberta a conexões, assim como os hipertextos da Internet estão cheio
de links. O jeito solidário de pensar não exclui pensamentos contraditórios. Tolera-os como
algo natural, mas não os persegue obsessivamente como se fossem uma imposição cruel da
qual nos deveríamos livrar a todo custo.
177
Que significaria, por exemplo, pensar transdialeticamente? Uma dialética de opostos
rígidos, na qual não se pressinta nem uma convergência dos contrários, é possivelmente a
tentação atávica da nossa espécie de não tolerar diferenças, cuja harmonização pareça estar
fora do alcance da nossa ação. Ou talvez essa rigidez dialética seja o sintoma de que a nossa
cultura ainda não sabe lidar com a morte como parte dos processos vivos. Querer levar o
jeito solidário de pensar até as vertigens mais radicais que a finitude e transitoriedade da
vida implicam não precisa ser um processo sádico e autotorturante. Trata-se de lidar
naturalmente com problemas relacionados com limitações naturais em nossa vida
cotidiana. Só podemos ser solidários se tivermos uma profunda capacidade de tolerância
em relação a soluções imperfeitas de problemas muito comuns. O pensamento solidário
deve ser complacente com os paradoxos.
Conhecimento como aposta ética transdisciplinar
Ética é, no fundo, saber situar-nos neste mundo como seres solidários. Hoje ainda
prevalece, por muitos lados, a tendência de situar as questões éticas num campo de
referências ou princípios distinto do campo dos princípios operacionais. Tudo o que se
refere ao agir operacional visaria a eficácia prática. E tudo que se refere ao ordenamento
geral das relações entre as pessoas e das relações sociais na sociedade estaria submetido,
numa nebulosa instância separada, a princípios éticos cuja validez, novamente em última
instância, seria de alguma forma superior aos meros princípios operacionais.
Este é um estranho dualismo entre a operacionalidade voltada para a eficácia e os
princípios éticos orientadores das relações entre as pessoas e do bem comum. É
efetivamente incrível como se possa separar as coisas dessa maneira. Esse tipo de dualismo
está de fato muito presente na mentalidade geral das pessoas, inclusive no pensamento de
muitos/as educadores/as. Recentemente ainda escutamos a seguinte ponderação de um
educador : "Os valores éticos devem ser ensinados por separado e não misturar-se com os
conteúdos formais de cada disciplina. Uma pedagogia da solidariedade só é possível se
funcionar bem essa instância ética com sua finalidade própria."
Como se pode notar, esse pedagogo aplicou coerentemente o princípio da separação
entre as disciplinas - cada disciplina confinada em seu terreno próprio - à formação em
princípios éticos. Segundo esse tipo de concepção da Educação, é impossível, além de
desnecessária, uma preocupação com a dimensão solidária no interior do próprio processo
do conhecimento. Não existiria uma questão epistemológica relacionada diretamente com a
solidariedade, posto que ela seria assunto de um compartimento separado, chamado ética.
Não basta, porém, pretender uma impregnação ética transdisciplinar. O caráter
transdisciplinar deve ser postulado em relação a todo conhecimento, como uma dimensão
presente em todas as disciplinas, e não apenas no que se refere aos princípios éticos.
Acostumar-se ao pluralismo teórico em tudo
A solidariedade deve enraizar-se na pré-disposição de nossa forma de pensar - da
nossa forma mentis - à admissão e aceitação tolerante das diferenças no interior do próprio
mundo das idéias, posto que chegamos definitivamente à era do pluralismo teórico, do
pluralismo ético e do inevitável pluralismo das preferências individuais. Ser solidário
significa, portanto, estar constantemente aberto a negociar consensos possíveis dentro de
estruturas do sentido muitas vezes discrepantes em relação a um mesmo assunto.
178
A situação atual das ciências, das teorias de qualquer tipo, e portanto também, e dos
problemas ético-sociais é de pluralismo irredutível em muitos casos teóricos e práticos. A
questão da democracia não é apenas uma questão de ordenamento social. O princípio da
democracia deve penetrar até o fundo as nossas formas de pensar de maneira que elas se
tornem radicalmente abertas ao diálogo com posições diferente sobre um mesmo tema ou
uma mesma opção. É neste contexto que surge uma faceta bastante nova da questão da
solidariedade. É insuficiente qualquer solidariedade que seja apenas uma espécie de apelo,
ad-hoc para uma circunstância social determinada. Isso não significa que as formas
transitórias e até eventualmente oportunistas de solidariedade não possam cumprir um
papel importante em situações emergenciais.
Precisamos levar a solidariedade ao interior do pensar até aquele nível de pluralismo
que admita a impossibilidade de chegar a uma unificação do sentido enquanto vivência
pessoal de pessoas que vivem situações diferentes. Essa questão é sumamente complexa e
delicada porque implica em admitir que não existe um sentido único nem uma verdade
única das coisas em nossas vidas tão diferenciadas. A tendência para continuar agarrados à
meta nunca atingível de um sentido unificado para todos é muito forte, porque é uma
herança típica de toda nossa tradição ocidental cristã. É sumamente difícil para as pessoas,
que estruturam suas percepções do sentido a partir de verdades religiosas, admitir que é
necessário abandonar, na teoria e na prática, a obsessão pela verdade única e pelo sentido
único, para poder chegar a uma abertura solidária desde o interior de nossas formas de
pensar.
É preciso meditar sobre a nossa perda de aberturas multirreferenciais - e nesse
sentido, de radical democraticidade no modo de pensar - através de nossas uniformizações
nas línguas. A excessiva unificação das capacidades lingüísticas, já foi percebida por
Ferdinand Saussure como gênese de comportamentos fascistas. Solidariedade no pensar
significa também estar conscientes do caráter relativo e da precariedade de todas as nossas
formas de expressão.
Aprender requer uma chispa lúdica
"São os seus olhos!" Essa modéstia feminina não só nos diz que a beleza precisa do
olhar para ser percebida. A frase nos dá uma lição epistemológica: A verdade sempre
precisa do olhar. Tudo o que faz sentido - a saúde, o morar, a alegria de viver, a amizade, a
paixão e tanta coisa mais - só faz sentido porque houve a aposta enactante do olhar,
conferidor de sentido.
Nada pode ser totalmente esclarecido, se pretendermos que essa palavra tenha um
sentido radical. Nada pode ser reduzido a um feixe de pura luz. A "laserização" do
conhecimento é impossível. Aliás, seria humanamente prejudicial. Cuidemos com isso de
pensamentos afiados e verdades cortantes. A obsessão aos idiomas ocidentais (só os
ocidentais?) têm pela metáfora da luz - esclarecer, iluminar, à luz de, vir à luz, focalizar,
etc., etc. ...até o iluminismo - é uma patologia não apenas lingüística, mas epistemológica.
O reconhecimento de que existem muitas coisas não totalmente claras é um aspecto
fundamental da maneira humana de conhecer. Será que as sombras são o elo perdido entre a
claridade e as trevas? Por que inventamos nascimentos de deuses na noite mais longa (na
Europa, é claro)? A sombra não é a escuridão, mas a prova de que a pretensão da pura luz é
humanamente enganosa.
179
Um/a professor/a que acha ter esgotado uma explicação certamente ainda não
entendeu que toda a realidade tem infinitas dobras. Ex-plicar significa desdobrar (plica é
dobra, em latim). No mundo real da nossa experiência, no qual toda realidade é realidade
construída, nada é totalmente desdobrável - ex-plicável - nem sequer nas melhores
linguagens formais da matemática e da geometria euclidiana. Tudo tem outros
endobramentos, não sabidas im-plicações. Ensinar não significa pretender ser um ex-
plicante encarregado de repassar saberes prontos. Ensinar talvez seja mostrar algumas
dobras de tal maneira que os aprendentes aprendam a desdobrar e a endobrar os assuntos
sérios e gostosos da sua vida e do mundo à sua volta. Ensinar é, também, não eliminar
nunca o momento-chave para insistir que, no mesmo assunto, ainda há outras dobras não
desdobradas. Quem disser que isso significa complicar demais as coisas não entendeu que
com-plicar (relacionar dobras) faz parte do respeito à realidade, que jamais deve ser
enrijecida ou congelada.
As coisas não nos dizem o que são. Os seres humanos, muito menos. Mesmo porque
nem saberiam dizê-lo. O poeta alemão Goethe elaborou uma famosa teoria das cores. Nela
insinua, entre muitas outras coisas divertidas, que as cores são uma atribuição nossa aos
"objetos" exteriores, e isso em pelo menos dois sentidos: primeiro, porque olhar é
construção do cérebro inteiro e não só da retina (coisa que Goethe mal sabia, mas nós bem
sabemos hoje); segundo porque existem aspectos emocionais em nossa percepção das
cores. Vamos dar um exemplo brincalhão: quão vermelhos são os verdes? (quão de
esquerda são os ecologistas?). A teoria relativista das cores do poeta Goethe inclui a teoria
recepcionista de Newton, mas a de Newton não inclui a de Goethe.
Conhecimento e esperança180
A esperança, como experiência pessoal, tem uma relação profunda com a
capacidade de aprender e com as formas que o conhecimento assume na vida de cada
pessoa. Quem perde a esperança perde também potencial cognitivo. A esperança é, entre
outras coisas. uma invasão benéfica dos outros em nossa identidade. Esperança inclui o
reconhecimento do diferente sob dois aspectos: o diferente enquanto possível e o diferente
que já existe. O diferente enquanto possível, é o diferente ainda inédito. É a esperança que
o institui como possível. A esperança inova realidades. No cerne da esperança sempre
palpita o desejo. Muitas vezes chamamos de esperança aquilo que desejamos inovar. Mas
será que o diferente inovador pode surgir para mim quando depende inevitavelmente de
tantas coisas fora de mim? Para mim só será um diferente novo na medida em que
despontar dentro de mim. Quem espera é inevitavelmente um ser criador dos "objetos" do
seu desejo.
No fundo, talvez nem importe tanto saber se os desejos podem cumprir-se
adequadamente. A sua simples existência é mais importante que esse cumprimento. Isso
também vale em parte para a esperança, embora essa precise ser um pouco mais cautelosa
que o desejo, já que é uma experiência que anseia ser compartida com outros. O desejo
evidentemente também almeja o encontro. Mas ele desponta sem fazer desse trajeto de
chegadas e acolhidas uma precondição da sua existência. A esperança é mais que um
180
Aqui gostaríamos de registrar que Paulo Freire deu muita importância ao tema da esperança na fase final
da sua vida. Ele havia visto de perto tantos esforços generosos e também não poucos equívocos. Cf. seu livro
Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
180
simples desejo porque inclui uma aposta em trajetos de caminho compartido. O desejo
pode arriscar-se a ser, e muitas vezes é um auto-engano. Existem auto-enganos saudáveis.
O auto-engano desejante provavelmente faz parte da estratégia de auto-incremento da vida.
Não há nenhum problema em admitir que a verdade do desejo pode ser perfeitamente uma
ilusão consentida. Mas todos sabemos que não convém exagerar na dose de ilusões. A
esperança, por ser um mundo de desejos criativos compartidos, precisa vigiar um pouco
mais os seus auto-enganos.
A ligação da esperança com a solidariedade pode ser expressada em múltiplas
linguagens. Muitos preferem as das ciências humanas (a sociologia, a antropologia, a
psicologia, etc/) façamos um esforço de utilizar linguagens mais próximas às biociências.
Ter esperança solidária significa compartir ecossistemas do sentido, que têm muitas
semelhanças com os ecossistemas naturais. Os ecossistemas da esperança são habitats do
sentido. Esperar significa morar neles como quem se sente à vontade em sua casa (o
filósofo Heidegger escreveu coisas muito profundas e lindas sobre esse "morar" que faz
parte do viver).
Os ecossistemas naturais são constituídos por nichos plurais que abrigam formas
diferenciadas de vida. Os ecossistemas do sentido obedecem igualmente a esse princípio da
diversidade e da diferença dos seres que compartem um mesmo habitat do sentido. Nós
construímos nossos mundos do sentido capazes de abrigar nossas esperanças. Esperança é
como já dissemos uma apreensão do possível enquanto parte do mundo construído por nós.
Dizendo a mesma coisa em forma de pergunta: Há esperança fora de nossos constructos do
sentido, fora dos nossos campos de energização?
Esperança implica num sábio uso da energia humana disponível. Quando se torna
um desgaste excessivo dessa energia deixa de ser esperança vitalizadora. Os ideais
solidários devem respeitar este princípio para que a esperança "profetizada" (isto é
introduzida pela linguagem em ações comunicativas) não se transforme em desesperança
destruidora.
A ousadia faz parte da esperança, mas pode destruí-la quando desconhece um uso
sábio da energia humana disponível. Não basta, pois, empurrar-nos reciprocamente para
dentro de caminhos supostamente esperançadores. Ao momento do impulso e do incentivo
deverá seguir o da reflexão sábia sobre nossos desgastes e nossas disponibilidades reais.
Insistir nisso não significa desvalorizar o júbilo do começar. A vida também é um
recomeçar continuado. Trace o seu caminho, a vida se encarregará dos meandros
necessários. A parada asfixia. Olhe para longe, mas não deixe de tocar o que está perto.
Tocar é uma forma profunda de admirar. O conhecimento não se reduz à percepção sensual,
mas jamais existe sem ela.
Sonhar é preciso, sempre. Mas também nas interações sociais a coragem de sonhar
deveria preservar o sábio uso de energias que geralmente preservam os nossos sonhos
durante o sono. Se não está sonhando bem, porque estás mergulhado num pesadelo,
geralmente despertas. Também nos sonhos coletivos, se não estamos sonhando bem,
convém despertar.
Manter viva a curiosidade
O que a escola nunca deveria fazer - mas que, talvez, seja o que ela mais tem feito -
é limitar a curiosidade. Na aprendizagem personalizada a curiosidade tem um papel
fundamental. Ela mantém viva a dimensão desejante do conhecimento. Com isso, ela
181
estimula a esperança para ter a coragem de ir além daquilo que é trivial ou facilmente
executável. A curiosidade e a esperança fazem que o possível aumente de tamanho, tornam
o possível elástico.
A curiosidade é fundamental para lidar com os limites do possível. Na efetivação
das esperanças humanas sempre fica omitido algo de muito importante. Podem-se omitir
coisas por querer ou por cálculo. Sejamos honestos: no convívio social sempre se
intrometem também omissões calculadas. E isso dói muito. Mas, por outro lado, há
omissões que não quisemos cometer. Simplesmente acontecem porque, no fundo, sempre
há algo importante que nos escapa.
Talvez ser humano/a também signifique precisamente isto: dar-se conta de que,
felizmente ou infelizmente, há coisas incríveis e maravilhosas que ainda nos escapam.
Saber disso pode ajudar-nos a melhorar nossos anseios. Mas obsessionar-se com isso pode
gerar desgastantes frustrações existenciais. Muitas frustrações não são outra coisa que a
não-aceitação do milagre de que há coisas importantes que ainda não foram devidamente
adivinhadas por nossa limitada curiosidade. Por isso o aprender de hoje deve ser uma
predisposição para o aprender de amanhã.
Aprender a aprender é manter acesa a curiosidade. O mero ensinar, ou a mera
entrega de saberes supostamente prontos, mata a curiosidade. É neste ponto que a escola
mais peca: ela extirpa a curiosidade, em vez de alimentá-la. É bom saber que apagar
curiosidades é despotenciar neurônios do cérebro humano.
A ousadia faz parte da esperança, mas pode destruí-la quando desconhece um uso
sábio da energia humana disponível. Não basta, pois, empurrar-nos reciprocamente para
dentro de caminhos supostamente esperançadores. Ao momento do impulso e do incentivo
deverá seguir o da reflexão sábia sobre nossos desgastes e nossas disponibilidades reais.
Insistir nisso não significa desmerecer o júbilo do começar. A vida também é um
recomeçar continuado. Trace o seu caminho, a vida se encarregará dos meandros
necessários. A parada asfixia. Olhe para longe, mas não deixe de tocar o que está perto.
Tocar é uma forma profunda de admirar . O conhecimento não se reduz à percepção
sensual, mas jamais existe sem ela.
Sonhar é preciso, sempre. Mas também nas interações sociais, a coragem de sonhar
deveria preservar o sábio uso de energias, que geralmente caracteriza os nossos sonhos
durante o sono. Quando, durante o sono, a gente não está sonhando bem, porque está
mergulhada num pesadelo, geralmente desperta. Também nos sonhos despertos, individuais
e coletivos, se não estamos sonhando bem, convém despertar. Mas despertar não tem nada
a ver com a perda da curiosidade. É um modo de reavivá-la.
Compreender a sociedade ampla e complexa
Nossa herança cultural é ainda espantosamente primitiva e inclui muito poucos
elementos relacionados com o que se poderia chamar genericamente de princípios
organizativos em sociedades amplas, complexas e urbanas. Em contrapartida, nossa
herança cultural arrasta consigo uma quantidade enorme de princípios organizativos válidos
em contextos grupais e comunitários, que se limitavam a um número bastante escasso de
membros. Somos ainda carentes de sabedoria ética para o mundo complexo no qual
vivemos, que de certa forma, nos apanhou de surpresa.
Os princípios organizativos pós-comunitários têm uma história de menos de três
séculos. Os fenômenos auto-organizativos dos processos vivos de caráter social carecem
182
ainda de uma linguagem ética correspondente à sua dinâmica. Existe um descompasso entre
os princípios organizativos das sociedades complexas e seus princípios éticos. Para não
assustar-se demasiado com tão pavorosa constatação talvez seja útil compará-la com os
grandes saltos nas exigências da Educação letrada.
Faz pouco menos de um século que a humanidade começou a dar-se conta de que a
cultura letrada se estava transformando em pré-requisito cada vez mais universal para a
habilitação para o trabalho. Somente nas últimas duas décadas começamos a perceber que a
própria noção de trabalho foi transformada intrinsecamente não apenas por uma exigência
genérica de cultura letrada, mas por uma noção profundamente nova do conhecimento.
Essa nova noção do conhecimento é tão dinâmica que já nem parece comparável
com o fácil uso do plural "conhecimentos", no sentido de saberes acumulados, manejado
ainda hoje por muitos/as professores/as. A partir do momento em que conhecer passou a
significar, basicamente, estar em condições de continuar aprendendo pelo resto da vida, o
próprio conceito de cultura, assim como a própria função da Educação se transformou
completamente.
183
Capítulo 9
O IMPACTO SÓCIO-COGNITIVO
DAS NOVAS TECNOLOGIAS
Este capítulo é uma introdução sumamente compacta aos novos espaços e às novas
modalidades do conhecimento ensejados pelas novas tecnologias da informação e da
comunicação. A espécie humana alcançou uma fase evolutiva inédita na qual os aspectos
cognitivo e relacional da convivialidade se estão transformando numa rapidez nunca vista.
Isso se deve em boa parte à função mediadora, quase onipresente, dessas novas tecnologias.
Junto às oportunidades enormes de incremento da sociabilidade humana surgem também
novos riscos de discriminação e desumanização.
No tocante à aprendizagem e ao conhecimento, chegamos a uma transformação sem
precedentes das ecologias cognitivas, tanto das internas da escola como das que lhe são
externas, mas que interferem profundamente nela. As novas tecnologias não substituirão
o/a professor/a, nem diminuirão o esforço disciplinado do estudo. Mas elas ajudam a
intensificar o pensamento complexo, interativo e transversal, criando novas chances para a
sensibilidade solidária no interior das próprias formas do conhecimento.
Tecnologias versáteis facilitam aprendizagens complexas e cooperativas
As novas tecnologias da informação e da comunicação já não são meros
instrumentos, mas feixes de propriedades ativas. São algo tecnologicamente novo e
diferente. As tecnologias tradicionais serviam como instrumentos para aumentar o alcance
dos sentidos e ações mais externos (braço, visão, movimento, etc.). As novas tecnologias
ampliam o potencial cognitivo do ser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam mixagens
cognitivas complexas e cooperativas. Uma quantidade imensa de insumos informativos está
à disposição nas redes (entre as quais ainda sobressai a Internet). Um grande número de
agentes cognitivos humanos podem interligar-se num mesmo processo de construção de
conhecimentos. E os próprios sistemas interagentes artificiais se transformaram em
máquinas cooperativas, com as quais podemos estabelecer parcerias na pesquisa e no
aviamento de experiências de aprendizagem.
Para evitar mal-entendidos é importante prevenir: a crítica à razão instrumental
continua sendo um desafio permanente. Nada de redução do Lógos à Techné. Mas
doravante já não haverá instituição do Lógos sem a cooperação da Techné. As duas coisas
se tornaram inseparáveis em muitas das instâncias – não em todas, é claro - do que
chamamos aprender e conhecer. Estamos desafiados a assumir um novo enfoque do
fenômeno técnico. Na medida em que este se tornou co-estruturador de nossos modos de
organizar e configurar linguagens, penetrou também nas formas do nosso conhecimento.
Isto significa que as tecnologias da informação e da comunicação se transformaram
em elemento constituinte (e até instituinte) das nossas formas de ver e organizar o mundo.
Aliás, as técnicas criadas pelos homens sempre passaram a ser parte das suas visões de
mundo. Isto não é novo. O que há de novo e inédito com as tecnologias da informação e da
comunicação é a parceria cognitiva que elas estão começando a exercer na relação que o
aprendente estabelece com elas. Termos como "usuário" já não expressam bem essa
184
relação cooperativa entre ser humano e as máquinas inteligentes. O papel delas já não se
limita à simples configuração e formatação, ou, se quiserem, ao enquadramento de
conjuntos complexos de informação. Elas participam ativamente do passo da informação
para o conhecimento.
Está acontecendo um ingresso ativo do fenômeno técnico na construção cognitiva
da realidade. Doravante, nossas formas de saber terão um ingrediente – um entre muitos
outros, é bom frisar - derivado da nossa parceria cognitiva com as máquinas que
possibilitam modos de conhecer anteriormente inexistentes.
Em resumo, as novas tecnologias têm um papel ativo e co-estruturante das formas
do aprender e do conhecer. Há nisso, por um lado, uma incrível multiplicação de chances
cognitivas, que convém não desperdiçar mas aproveitar ao máximo. Por outro lado, surgem
sérias implicações antropológicas e epistemológicas nessa parceria ativa do ser humano
com máquinas inteligentes.
Que é que muda no próprio sujeito do processo criativo do aprender, quando ele
acontece numa parceria co-instituinte e co-estruturante na qual a máquina, que é um “novo
objeto” definível como feixe de propriedades cognitivas? Como se entrelaçam o papel ativo
do ser humano e as funções não puramente passivas ou comandadas, mas parcialmente
ativas e geradas autonomamente pela máquina? Tudo indica que chegou a hora de colocar
em novas bases a própria questão do sujeito epistêmico. Ou será que isso nos parece tão
novo só porque nunca havíamos levado a sério a evolução, nunca havíamos pensado de
forma conseqüente o que implica aceitar que somos fruto dos nichos vitais que nos
acolheram, ou que construímos para nossa espécie, ao longo de toda a evolução?
Essas coisas devem parecer bastante estranhas, ou não ter nenhum sentido, para
quem usa o computador apenas como máquina de escrever com alguns recursos a mais.
Talvez já comecem a fazer sentido para quem redige textos com o recurso abundante a
deslocamentos porções de texto, recurso constante a muitos arquivos, abertura de
multitelas, etc. Creio que aumentará de sentido para quem é cibernauta, isto é, navegante
mais ou menos assíduo da Internet, pesquisando com os robôs de busca (AltaVista, HotBot
e tantos outros) no ciberespaço cada vez mais ilimitado. Mas o que eu disse só adquire um
sentido forte para quem trabalha com sistemas multiagentes, onde aparecem a relativa
autonomia e os níveis cognitivos emergentes propiciados pelo uso de algoritmos genéticos
(ou seja, programas que se auto-organizam e auto-re-programam).
Hipertextualidade: a chance do estudo criativo
Não vamos deter-nos longamente neste tópico, já que se trata de um assunto
conhecido para qualquer navegador/a da Internet. Do ponto de vista técnico, o hipertexto
foi a passagem da linearidade da escrita para a sensibilização de espaços dinâmicos. Como
conceito de conectividade relacional mediada pela tecnologia, podemos definir a
hipertextualidade como um vasto conjunto de interfaces comunicativas, disponibilizadas
nas redes telemáticas. No interior de cada hipertexto nos topamos com um conjunto de nós
interligados por conexões, nas quais os pontos de entrada podem ser palavras, imagens,
ícones e tramações de contatos multidirecionais (links). É importante destacar que o
hipertexto contém geralmente suficientes garantias de retorno para que os sujeitos
interagentes se sintam seguros em sua navegação.
Do ponto de vista diretamente cognitivo, o hipertexto não é uma simples metáfora
de novas atitudes aprendentes, que buscam criativamente novas maneiras de conhecer. É,
185
também e sobretudo um desafio epistemológico, ou seja, o processo do conhecimento se
transforma intrinsecamente numa versatilidade de iniciativas, escolhas, opções seletivas e
constatações de caminhos equivocados ou propícios. Isso permite analogias diretas como as
coisas acontecem em nosso cérebro/mente, capacitado para apostas enactantes em mundos
diversificados do sentido. Mas da mesma maneira como se pode seguir numa utilização
meramente instrumental e pouco criativa das novas tecnologias, é também sinistramente
plausível que, em muitas escolas, o potencial dos aprendentes continue submetido a um
verdadeiro apartheid neuronal.
Em síntese, a tecnologia do hipertexto e a sucessiva incrementação de sua dinâmica
interna, criou uma enorme facilidade para a pesquisa criativa, porque transformou os modos
de tratar, acessar e construir o conhecimento. Dessa forma, também ensejou um novo
entendimento da própria realidade enquanto realidade discursiva, construída mediante
nossas maneiras de enactá-la, isto é, de apostar ativamente em mundos do sentido,
ingressando neles através de nossos processos do conhecimento181
.
A passagem a um paradigma cooperativo do conhecimento
Mediante o uso de memórias eletrônicas hipertextuais, que podem ser consideradas
como uma espécie de prótese externa do agente cognitivo humano
As redes funcionam como estruturas cognitivas interativas pelo fato de terem
características hipertextuais e pela interferência possível do conhecimento que outras
pessoas construíram ou estão construindo. Com isso, o/a aprendente pode assumir o papel
de verdadeiro gestor dos seus processos de aprendizagem.
Precisamos visualizar conjuntamente os agentes humanos e a tecnologia versátil de
modo a superar uma concepção demasiado maquínica da interação entre seres humanos e
ambientes cognitivos artificiais. Trata-se de entender que, embora preservando uma série de
aspectos típicos das racionalidades instrumentais e das linguagens reducionistas, as
tecnologias adquiriram tamanha versatilidade e disponibilidade cooperativa que podemos
chamá-las sistemas cooperativos ou interfaces de parceria entre o homem e a técnica.
Marvin Minsky não duvida em aplicar aos sistemas multi-agentes artificiais uma
forte característica criativa:
...o surpreendente surgimento, a partir de um sistema complexo, de um fenômeno
que não parecia inerente às diferentes partes desse sistema. Esses fenômenos
emergentes ou coletivos mostram que um todo pode ser superior à soma das
partes182
.
Aprendentes humanos podem, agora, situar-se no interior de ecologias cognitivas
nas quais a morfogênese do conhecimento passa a acontecer sob a forma daquilo que Pierre
Lévy denomina inteligência coletiva183
. A construção do conhecimento já não é mais
181
Para maior bibliografia e abordagem pedagógica do tema, ver GONÇALVES DE SOUZA, C.R. As
implicações pedagógicas de uma visão hipertextual da realidade. Piracicaba, Unimep. dissertação de
mestrado, 2000. (Orientador: Hugo Assmann) 182
Apud. LINK-PEZET, Jo. De la représentation à la coopération: évolution des approches théoriques du
traitement de l'information. Disponível na internet, cf. Solaris, Sommaire du dossier no. 5. 183
LÉVY, P. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 1998; do mesmo autor: As tecnologias da
Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
186
produto unilateral de seres humanos isolados, mas de uma vasta cooperação cognitiva
distribuída, na qual participam aprendentes humanos e sistemas cognitivos artificiais. Isso
implica em modificações profundas na forma criativa das atividades intelectuais. Doravante
precisamos incluir a cooperação da técnica em nossos modos de pensar184
. Segundo alguns
autores, já começou a acontecer uma experiência aprendente profundamente inovadora, na
qual já não se trata de uma relação de dependência recíproca entre o sujeito cognoscente e
seus instrumentos técnicos, mas de uma "auto-constituição ontológica de um novo sujeito a
partir dos seus objetos185
" que são agora versáteis e cooperantes.
A criação de memórias eletrônicas coletivas obedece ainda normalmente a um
esquema estrito de linguagens formais. Mas a co-presença de agentes cognitivos humanos e
artificiais, na ativação das interfaces comunicativas entre os agentes humanos e aquilo que
está disponibilizado nas, e que é ativável por máquinas cooperantes, já constitui uma
ecologia cognitiva surpreendentemente criativa. Já não cabem dúvidas de que nesse
processo cognitivo surgem fenômenos de descobertas imprevistas, cujas características não
estavam pré-programadas daquele jeito nas máquinas, nem previstas na expectativa dos
agentes humanos. É a essa versatilidade criativa que muitos autores se referem quando
usam conceitos como auto-organização e emergência186
para referir-se às inovações
criativas do conhecimento, que se tornaram possíveis mediante a cooperação humana com
organizações hipercognitivas hipertextuais nas máquinas inteligentes.
O agenciamento cooperativo dos campos do sentido
Já vimos que o hipertexto enseja uma libertação e explosão do pensamento criativo.
Vimos depois como acontece uma presença ativa de outros agentes cognitivos - humanos e
máquinas cooperantes - num mesmo processo de construção cooperativa do conhecimento.
Apontamos que essa dinâmica cooperativa do conhecimento apresenta fenômenos de auto-
organização e níveis criativos emergentes. Passemos agora explicitamente da questão das
formas sintaticamente complexas e cooperantes, na constituição dos campos semânticos,
para a questão mais de fundo, que é a do caráter igualmente cooperativo dos mundos do
sentido que emergem e do papel solidário dos agentes que interferem campos do sentido.
Comecemos com uma citação de Jo Link-Pezet:
Para Piaget, o conhecimento acontece no momento em que o pensamento lógico do
racionalismo e a experiência sensorial se encontram num processo dialético e
dinâmico do pensamento, no qual essa dualidade co-existe. Essas duas visões se co-
especificam uma à outra em um movimento de vai-e-vem, superando a rigidez do
pensamento cartesiano e pondo em evidência a relação constitutiva que existe entre
184
Lopes Guimarães Jr., M J. A cibercultura e o surgimento de novas formas de sociabilidade. Disponível na
Internet, junho/2000. 185
LINK-PEZET, Jo., Loc cit.; ALLIEZ, E. La signature du monde. Paris: Ed. Du Cerf, 1993. (Trad. port.
pela Editora 34). 186
Para uma análise mais detida do tema e ampla bibliografia conf. SKIRKE, Ulf. Technologie und
Selbstorganisation, Disponível na internet, junho/2000. Para uma história dos usos do conceito de emergência
ver STEPHAN, A. Emergenz - Von der Unvorhersagbarkeit zur Selbstorganisation (Emergência. Da
impredictibilidade à auto-organização), Dresden-München: Dresden University Press, 1999.
187
o homem e o seu ambiente, entre o sujeito (que conhece) e aquilo que é conhecido
(objeto do conhecimento), entre o homem, seu corpo e sua experiência187
.
Esta é uma descrição, que julgamos bastante fiel do ponto no qual se estagnou o
construtivismo de Piaget. Ele ainda está marcado por uma visão da racionalidade
fortemente intelectualista ou, se quiserem, pela razão formalizante, preocupada
prioritariamente com os níveis de explicitação consciente das formas do conhecimento.
Dentro de uma certa continuidade, mas também com alguns lances de ruptura com o
pensamento construtivista piagetiano, surgiram várias propostas inovadoras acerca da
morfogênese do conhecimento.
É neste contexto que, a nosso modo de ver, a relevante contribuição de Humberto
Maturana e Francisco Varela188
, que supomos relativamente conhecida, nos situa num
patamar novo. Gostaríamos de enfatizar que eles nos propiciaram a visão de
entrelaçamentos fecundos entre as redes neuronais, a teia da vida em geral e as redes
telemáticas.
Cabe mencionar agora, de passagem, a direção para a qual se orientam as
contribuições do assim chamado pensamento pós-formal. Ele busca abordar certos aspectos
que rompem com as concepções racionalistas de construção do conhecimento. A ênfase é
posta, agora, nos aspectos aleatórios, nas turbulências neuronais, nas perturbações
imprevistas da atenção, nos elementos de indeterminação, enfim, na dinâmica de constante
mudança propiciada por novelos de retroalimentação, que acontecem efetivamente em
nosso sistema neuronal e que já podem ser simulados parcialmente por máquinas
inteligentes.
Muito próximo a esse tipo de problematização está o pensamento de Michel
Polanyi189
, que distingue entre os níveis tácitos e os níveis explícitos na construção tanto
dos campos semânticos, quanto, sobretudo, dos mundos do sentido. Já Merleau-Ponty
ponderava que os níveis implícitos e explícitos do conhecimento são complementares e,
portanto, tão intimamente ligados à experiência e à corporeidade que não é possível separá-
los. A novidade do pensamento de Michel Polanyi nos parece consistir na relevância que
ele atribui àquilo que denomina níveis tácitos. Torna-se, assim, evidente que, doravante, é
recomendável alinhar-se com a apreciação positiva daquilo que Michel Maffesoli190
denomina "razão sensível".
Demos ainda um pequeno passo adiante. Queremos tornar perceptível que o
agenciamento, cognitivo e experiencial, dos mundos do sentido é um processo marcado por
uma dimensão solidária ativa de vários agentes cognitivos cooperantes. Para expressar isso,
nada melhor que o conceito de enação de Varela.
187
LINK-PEZET, Jo. loc. cit. 188
MATURANA, H., VARELA, F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995; Para
aprofundar o conceito de enação, ver o longo prefácio de Francisco Varela à segunda edição de
MATURANA, H. VARELA, F. De máquinas e Seres Vivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997; VARELA,
F. et al. The Embodied Mind. Massachessetts: The MIT Press, 1991; VARELA. F. et al. A mente inclusiva:
ciência cognitiva e a experiência humana. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. De MATURANA, H. A
ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997; Emoções e linguagem na educação e na
política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. Os dois autores têm sites na Internet. 189
Entre a várias obras de M. POLANYI destacaríamos A dimensão tácita (The Tacit Dimension). Em
francês, Paris: PUF, 1966. 190
MICHEL, M. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.
188
Na esteira de Merleau-Ponty, Varela nos convida a considerar-nos como estruturas
internas e externas, biológicas e fenomenológicas, e a considerar a corporeidade
da nossa experiência como nosso verdadeiro contexto cognitivo. A enação é uma
ação encarnada que se situa nesse contexto (experiencial e corporal). Ela se refere
ao fenômeno da interpretação, entendida como "um fazer-emergir da significação
sobre o pano de fundo da compreensão". (...) A emergência das significações
acontece através de agenciamentos coletivos 191
.
A experiência da superação da escassez
A expetiência da abundância e da liberdade de escolha no que se refere à música, à
televisão, aos poucos também a outras tecnologias informacionais, passou a fazer parte do
cotidiano de muitíssima gente. Trata-se de um tipo de experiência da superação da
escassez. As pessoas com razoáveis ingressos estão expandindo rapidamente esta
experiência a vários outros campos.
É certamente aconselhável proceder com certa cautela nesse assunto porque, antes
de fazer afirmações contundentes acerca do caráter inédito daquilo que as novas tecnologias
propiciam, convém refazer, talvez de maneira nova, algumas perguntas antigas. Por
exemplo: será que as nossas linguagens e nossas formas de conhecimentos foram alguma
vez inteiramente nossas ou estiveram desde sempre em estado de parceria, sofrendo
variadas intervenções internalizadas em sua própria gênese e constituição? Que trazem,
então, de efetivamente novo as novas máquinas cognitivamente cooperantes? Por acaso os
mitos, os tabus, os campos do sentido embutidos em nossas linguagens e as formas da
cultura não exerceram, desde milênios atrás, uma ativa parceria genética com os seres
simbolizadores que somos? Não acontecia já isso mesmo desde quando, há milênios, a
nossa espécie conseguiu criar meios para inventar e simular mundos, vivenciados como
reais, embora apenas virtuais, como é o caso dos mitos, dos dogmas, dos campos
semânticos de nossas linguagens, do dinheiro, etc.? Estamos presenciando algo realmente
novo?
Há certamente continuidades, como sói acontecer (p. ex. a "janelização" continua
ainda tecnicamente imprescindível para estabelecer conexões (links) telemáticos). O
próprio "fim da escassez" é uma característica aplicável apenas a alguns aspectos da
cibercultura. Os mitos também fingiam uma certa superação da escassez (p. ex. o mito da
redenção). Mas as novas tecnologias nos oferecem acessos não mediatizados por terceiros
(sacerdotes, mestres, etc.) à superabundância da informação. Queremos explicitar um alerta
crítico em relação a um tecno-otimismo desvairado, que geralmente recai em visões
gnósticas ou platônicas de um mundo soberanamente auto-organizativo, com escassa
previsão de interferência ativa dos sujeitos humanos, alentados por uma sensibilidade social
conscientemente cultivada192
.
Uma certa experiência do fim da escassez - ainda tão distante em tantos outros
aspectos da vida em sociedade - se tornou possível e repetível como experiência pessoal do
aprendente no mundo da informação e dos acessos à cultura. Palavras meio esdrúxulas
191
LINK-PEZET, Jo. loc cit. 192
É a impressão que nos dá o pensamento, aliás não isento de contradições, de DELFIM SOARES, em seu
Glossário de Sociocibernética e vários outros textos seus disponíveis na internet, junho/2000.
189
como hipertextualidade, conectividade, transversa(tili)dade aludem sobretudo a esse caráter
experiencial que o fim da escassez está adquirindo. Será que há, finalmente, um tópos, um
lugar experiencial, no qual a exclusão está desaparecendo?
Parcerias epistemológicas de alto nível
Passemos a um exemplo de parceria transdisciplinar de alto nível entre
pesquisadores da área das Ciências Sociais e Peritos das Ciências Computacionais. O
exemplo que se aduz presta-se para deixar bastante claro que o problema de fundo não é
juntar esforços no plano do uso de máquinas cognitivas sofisticadas (sistemas multi-agentes
com forte recursividade algorítmica). Trata-se disso também, porque o pessoal da área de
Humanas e Sociais geralmente sub-utiliza os recursos computacionais disponíveis. O
problema de fundo, no entanto, é de índole epistemológica e ética. Trata-se do problema do
controle humano (e neste sentido, “racional”) das decisões e julgamentos que – como já o
velho Kant sabia muito – aparecem no interior da própria constituição das formas (da
morfogênese) do conhecimento. De que podemos abrir mão, e que não deveríamos delegar
jamais, à parceria ativa com máquinas cognitivas?
Em 1988, nos EUA, um grupo de sociólogos e peritos da Informática mais avançada
(Inteligência Artificial Distribuída) publicou uma série de ensaios com o estranho título The
Unnamable (Aquilo que não tem nome ou O [ainda] Inominável). Os estudos versavam
sobre a região teoricamente fronteiriça – ou, se quiserem: a interface epistemológica – entre
os pressupostos filosóficos e os modelos explicativos das Ciências Sociais e das Ciências
Computacionais. A partir do momento em que se começa a usar conceitos como
Inteligência Artificial, Vida Artificial, Sistemas Multiagentes, Algoritmos Genéticos,
Sistemas Complexos e Adaptativos , e por aí afora, estamos confrontados com implicações
filosóficas muito sérias.
Dez anos depois, na Alemanha, essa região sem nome passou a ter um nome,
oficializado (precariamente) em 1998 pela DFG (Deutsche Forschungsgemeinschaft – algo
parecido ao nosso CNPq, mas com recursos bem mais vultosos). O nome, agora
oficializado, é Sozionik (Sociônica).
Assim como na Biônica se tomaram as funções corporais como modelo para novas
técnicas, na Sociônica se trata da questão de como é possível tomar exemplos da
vida social para desenvolver, a partir deles, novas tecnologias computacionais.193
O “Programa-Eixo: Sociônica” (Schwerpunktprogramm: Sozionik) destina-se a
Expertos em Informática e Sociólogos e visa apoiar projetos de parceria (“projetos
tandem”) para a pesquisa e a modelização de socialidade artificial. Anotem o conceito
aparentemente ousado: künstliche Sozialität (socialidade artificial). Cito:
Trata-se da questão de como é possível tomar exemplos da vida social e
desenvolver, a partir deles, programas computacionais inteligentes. O Programa-
Eixo: Sociônica concentra-se em dois problemas básicos quando se trata da
interface entre Inteligência Artificial Distribuída e Sociologia: 1. Emergência e
193
DFG, Edital Nº 14 de 14 de julho de 1998. cf. Internet.
190
Dinâmica de sistemas sociais artificiais; 2. Comunidades híbridas de agentes
humanos e agentes artificiais194
.
Os documentos tornados públicos até o momento são muito explícitos quanto à
incorporação de conceitos-chave da discussão sobre sistemas vivos enquanto sistemas
aprendentes, sobre organizações aprendentes, sobre sistemas complexos e adaptativos ou
sistemas dinâmicos, formas de socialidade artificial e temas similares. Pelo que consigo
perceber, já se manejam como óbvios uma série de conceitos que tem sérias implicações
filosóficas, como é o caso dos conceitos emergência e auto-organização (supostamente
espontânea). O debate parece deslocar-se explicitamente do plano técnico e operacional (as
formas de programação computacional) para o campo das implicações filosóficas, éticas e
políticas, ou seja: que tipo de níveis decisórios são podem ser “delegados” à crescente
“relativa autonomia cognitiva” dos sistemas multiagentes eletrônicos.
Perspectivas acerca do "homem simbiótico"
Para encerrar este condensado capítulo transcrevemos um texto sumamente
instigante, mas não isento de pontos polêmicos, de Joël de Rosnay195
.
As dez regras de ouro do homem simbiótico - Joël de Rosnay
Estas dez regras resumem e procuram tornar viáveis os princípios fundamentais
apresentados no decorrer do livro O Homem Simbiótico. Cada um poderia, assim, traduzí-
las em ações, estratégias e políticas em diferentes níveis de organização da sociedade. 1. Fazer emergir a inteligência coletiva: numerosos agentes obedecem a regras simples, e ligados por redes
de comunicação, podem resolver coletivamente problemas complexos. A inteligência coletiva é
catalisada pelas interconexões, criatividade individual, aceitação de regras e códigos, participação em um
projeto de conjunto, transmissão de uma cultura.
2. Fazer co-evoluir as pessoas, sistemas e redes: as relações que se estabelecem no quadro de uma co-
evolução entre indivíduos, organizações e máquinas favorecem as adaptações mútuas de estruturas e
funções. O ajuste e a regulação das evoluções por um conhecimento mais profundo da dinâmica dos
sistemas, assim como a sincronização e coordenação das operações, criam condições favoráveis a uma
co-evolução.
3. Garantir simbioses em diferentes níveis de organização da sociedade: inspirando-se em mecanismos
naturais da simbiose, convém procurar as condições que favoreçam o equilíbrio e o desenvolvimento
harmonioso de associações constituídas para benefício mútuo dos parceiros. Por exemplo, graças à
distribuição das tarefas segundo as competências, à economia dos metabolismos ou à partilha das redes
de comunicação.
4. Construir organizações e sistemas por camadas funcionais sucessivas: uma das regras de base da
evolução biológica é a estratificação das estruturas e das funções. Se um sistema funciona corretamente
em seu nível e confere ao organismo (ou organização) uma vantagem evolutiva, é conservado pela
seleção natural. Em vez de construir de novo sistemas complexos que implicam homens, máquinas e
redes a partir unicamente dos planos dos engenheiros, convém fazê-los crescer e complexificá-los por
empilhamento de funções e estruturas interdependentes. Se um subconjunto é satisfatório, a camada
superior e construída a partir dessa base.
5. Garantir regulação dos sistemas complexos por um controle descendente(hierárquico) e
194
DFG, Loc. cit. 195
ROSNAY,J.de. O Homem Simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997. (p. 391-394). Vale a pena conferir
também, de KISHO KUROKAWA, The Philosophy of Symbiosis, Disponível na Internet, mai/00.
191
ascendente(democrático): as microiniciativas não coordenadas podem levar à anarquia; as diretrizes
impostas de cima, à ditadura. O compromisso necessário à governança do futuro baseia-se na
complementaridade entre controle descendente(top-down) e ascendente (bottom-up). O primeiro garante
as grandes orientações simbióticas , tais como a manutenção e desenvolvimento de parcerias; o segundo
faz emergir a inteligência e a criatividade coletivas.
6. Pôr em prática as regras da subsunção: a arte da subsunção consiste em integrar a individualidade em
"algo maior do que a própria pessoa" para que esta tire partido de tal situação e dê sentido à sua
existência. Ao abandonar uma parte do individualismo (ou soberania) que inibe as relações entre as
pessoas e entre as nações, torna-se possível criar associações simbióticas equilibradas. Cada um se
beneficia de regras conhecidas por todos e, assim, pode ter acesso a um nível superior de liberdade e
responsabilidade.
7. Saber manter-se à beira do caos: a simulação em computador da auto-organização de sistemas
complexos e respectiva evolução no tempo faz sobressair a importância de uma fase de transição entre a
turbulência estéril e a ordem rígida. A arte da condução de tais sistemas baseia-se na capacidade do piloto
de mantê-los "à beira do caos", isto é, um equilíbrio entre a Caribde da Desordem e a Cila da esclerose.
É nessa zona frágil e instável que podem surgir as estruturas, funções e organizações do mundo de
amanhã. O segredo de tal pilotagem: aceitar os riscos da mudança, embora conservando a estabilidade
das estruturas e funções.
8. Favorecer as organizações em paralelo: à semelhança do mundo vivo, convém pôr em prática o
paralelismo de tarefas nos processos de criação, produção e regulação. A abordagem analítica e taylorista
herdada do século XIX inibiu o desenvolvimento de redes humanas que funcionam como
multiprocessadores. Com o advento dos computadores pessoais poderosos e das redes mundiais de
telecomunicação, torna-se possível a colocação em paralelo de múltiplas funções societais. Esfuma-se a
compartimentação entre setores e aumenta a segurança com a redundância das operações. 9. Pôr em prática círculos virtuosos: a economia tradicional concentrou-se, sobretudo, na análise dos
mecanismos que determinam os rendimentos decrescentes: saturação de um mercado, redução das
margens, efeitos de concorrência... No entanto, os mecanismos que levam à auto-seleção de uma espécie
ou à criação de um mercado são de natureza autocatalítica. São círculos virtuosos. Para favorecê-los, é
necessário criar "nichos" de desenvolvimento, indispensáveis para a respectiva ampliação, assim como as
redes de comunicação que multiplicam os efeitos de sinergia. 10. Fractalizar os saberes: daqui em diante, comunicação, educação e culturas modernas não podem basear-
se em uma concepção linear e enciclopédica do conhecimento. A produção e transmissão de saberes
complexos e interdependentes têm necessidade de uma abordagem fractal e hipertextual da organização
das informações. A fractalização desses saberes cria germes de conhecimento reconstruíveis por cada um
segundo sua abordagem pessoal.
192
Capítulo 10
MÍNIMA PAEDAGÓGICA
Este capítulo foi elaborado para servir como instrumento de trabalho em situações
nas quais se necessita de um apanhado breve e condensado, que ajude a refrescar a
discussão sobre o papel da educação numa perspectiva animadora, mas ao mesmo tempo
reflexiva e crítica.
Desejo e conhecimento
1. Que é para nós humanos o "real"?
Só se conhece aquilo que tem nexo com o mundo do desejável. Com variações
circunstanciais, a porção maior de nossos mundos desejáveis é bordada por linguagens que
borbulham desde o imaginário, e apenas uma parte menor delas obedece a costuras mais
exatas do nosso intelecto. Para os seres humanos o real não se reduz nunca a coisas ou
objetos. Para nós, o real - o real "mesmo"! (como enfatizamos dentro da idiossincrasia
lingüística típica do nosso português) - é aquilo que pode ser afirmado enquanto percepção
desejante, ou seja, como aquilo que vale a pena. O mais real para nós é sempre aquilo que é
o mais intensamente desejável e desejado. As mais recentes teorias da aprendizagem frisam
muito este ponto.
Como educadores/as, a nossa preocupação mais permanente tem que ser: como criar
- através da educação e por muitos outros meios - um intenso desejo compartido que aponte
para um Brasil solidário para todos? Sob muitos aspectos, ainda hoje vivemos imitando o
mau exemplo do primeiro suposto "descobrimento": decepcionados por não acharem de
cara o que buscavam, os portugueses nos desconsideraram e adiaram por muitas décadas. E
hoje ainda somos um país que está sendo adiado, já que nele se continua postergando a
qualidade de vida, e até a simples sobrevivência, de multidões de brasileiros.
A força de sonhar, que precisamos para não seguir nessa postergação, vai ter que
passar fundamentalmente pela educação. Seremos um país desejado e valorizado, pelos "de
fora" e por nós mesmos, se nos tornarmos um Brasil aprendente, para o qual o conhecer
esteja imbuído de desejos intensos.
Os humanos nos caracterizamos como seres desejantes, já no plano biofísico, mas
sobretudo enquanto seres-com-linguagem. Isto significa que nossos desejos se constituem,
comunicam, realizam ou frustam via símbolos e linguagens, numa unidade indissolúvel
entre os aspectos biofísicos e os sócio-lingüísticos. Embora os possamos distinguir para
efeito de análise, na prática esses aspectos são inseparáveis.
O termo corporeidade busca abarcar conceitualmente esta multiplicidade de
aspectos do nosso “estar imersos” no entrejogo de necessidades e desejos mediado por
linguagens. Sempre estamos jogados na água dos desejos e paixões, porque tudo o que nos
sucede e tudo o que fazemos acontece nessa corporeidade. Não existem processos
puramente mentais, sem a mediação dessa corporeidade.. Nadamos, a todo momento, em
processos comunicativos de toda índole – biofísicos, sócio-lingüísticos, multimidiáticos
(imersos nas modernas tecnologias da comunicação).
Existir-em-corporeidade implica, portanto, estar imersos em pactos simbólicos (para
usar uma expressão de Lacan). Não existe comunicação “descorporeizada”, como
193
movimento comunicativo puramente espiritual de mente a mente. Toda comunicação,
mesmo a mais refinadamente reflexiva – por exemplo, quando se discutem conceitos,
distinções, definições – está submetida a condições biofísicas e sócio-lingüísticas, ou seja, a
condições – favoráveis ou adversas – de comunicabilidade.
Podemos lançar duas hipóteses fascinantes sobre este assunto. Uma se apoia
naquilo que os inter-comunicantes têm a ganhar (vitalmente, e enquanto fruição) com seu
processo comunicativo. Trata-se da hipótese de que sempre está em jogo um possível plus
ou ganho enquanto fruição ou gozo. A hipótese da "fruição aumentada" (vamos chamá-la,
como Lacan, de “plus-gozo”) refere-se apenas a um aspecto do processo inter-comunicativo
dos seres desejantes. Fazendo eco ao conceito de maisvalia (plusvalia) de Marx, Lacan
chega a afirmar que é a busca desse plus-gozo que, de certo modo, determina e comanda a
estrutura dos significantes. Em outras palavras, segundo essa visão lacaniana, a própria
materialidade das linguagens – isto é, sua gramática de sons, imagens, grafias – estaria
embebida e conformada por um dinâmica de plus-gozo.
Este é apenas um aspecto, porém fundamental. Convém pensá-lo juntamente com
todos os demais elementos, arbitrários e até calculistas, das linguagens formalizadas. Por
isso mesmo convém explicitar, de imediato, uma outra hipótese complementar, que Lacan
explicita mediante seu conceito de “pactos simbólicos”. Ele supõe como óbvio algo que
nem sempre temos presente: toda comunicação ocorre sob a égide de acordos, tácitos ou
convencionais, acerca de como convém comunicar-se. A busca da mais-fruição está
condicionada pela flexibilidade ou rigidez dos pactos simbólicos. Uma hipótese
complementa a outra. Lacan nos recorda que, junto à busca do plus-gozo, existe o mal-estar
próprio de todo pacto simbólico.
A análise do processo comunicativo - por exemplo da relação pedagógica - pode
deter-se mais num ou mais noutro desses dois aspectos: o lado gostoso ou o lado regrado da
comunicação. A sabedoria pedagógica consiste em saber fundi-los. Mas quando prevalece
um contexto de pessimismo pedagógico, porque predomina no ambiente um clima pesado
de ter que cumprir com desagradáveis imposições, a inchação arbitrária do pacto simbólico,
com seu mal-estar próprio como Lacan ressalta, tende a impedir a mais-fruição, ou seja, o
prazer de estar aprendendo.
2. Um alerta para não banalizar as linguagens motivacionais
Quanto ao conjunto de linguagens mais incentivadoras e otimistas que estão
surgindo, pensamos que se trata de um fenômeno interessante quando comparado com o
negativismo azedo de muita literatura acadêmica sobre a educação. Neste sentido, creio que
se trata de um saudável contrapeso. O problema que estamos tocando evidentemente não se
resolve pela magia de palavras alternativas. O que está em jogo é muito mais que a
renovação da linguagem. A mudança deve ocorrer na maneira de criar as estruturas de
sentido ou campos de significação, que precisam ter nexos e interfaces com o que os
aprendentes percebem como algo que faz sentido para a sua vida. Precisa haver esse elo
entre os campos de significação daquilo que se ensina e os campos de sentido da vida dos
envolvidos (docentes e alunos/as). Precisamos de linguagens pedagógicas que ajudem os
aprendentes (professores/as e alunos/as) a se sentirem bem no meio dos mais árduos
esforços de aprender.
Não se trata, de forma alguma, de “baratear” as exigências de estudo ou de nivelar
por baixo. Na educação, existem muitos níveis de campos do sentido. Cada disciplina ou
194
matéria implica em campos conceituais, ou seja, em construções do conhecimento. Mas
esses campos particulares do sentido de cada assunto só se articulam com as experiências
pessoais de cada aprendente quando eles são jogados num campo do sentido vitalmente
envolvente e maior: o das próprias perguntas pessoais e existenciais de cada pessoa.
Quando falta este campo semântico maior, ou quando nele faltam as referências com sabor
a vida, então surge inevitavelmente aquela sensação de um grande vazio, mesmo em meio a
um acúmulo aparentemente bem estruturado de saberes formais.
Falar, por exemplo, de "reencantar a educação"196
não deve ser jamais um discurso
irresponsável e superficial, que não saiba dar conta de si mesmo, de suas implicações, seus
usos e abusos. Existe, sem dúvida, o risco de um marketing esvaziador e banalizante dessa
linguagem sobre o encanto de educar. Mas, por outra parte, precisamos de linguagens
afirmativas e antipessimistas sobre o agir pedagógico. Há certamente muitas maneiras de
fundamentá-las. Da nossa parte, preferimos geralmente instaurar a argumentação a partir de
um diálogo exigente com as ciências da vida (biociências), os estudos sobre o
cérebro/mente e os novos espaços do conhecimento propiciados pelas novas tecnologias da
informação e da comunicação. Como alguns vêm entendendo corretamente, essa
abordagem visa um "sentido sobretudo político" (como adverte Pedro Demo197
). Mas dado
o risco de “sonsas banalizações”, insistimos neste alerta prévio.
As palavras nos enfeitiçam facilmente. Os humanos somos seres simbolizadores.
Existimos não apenas porque nos alimentamos, mas porque estamos imersos em
significações. Sem isso não sobreviveríamos enquanto animais simbolizadores. Ora, assim
como o alimento pode ser pouco e ruim, ou abundante e bom, também os fluxos
comunicativos podem criar bem-estar ou mal-estar. Mas até nessa questão dos alimentos e
fluxos do sentido pode infiltrar-se o auto-engano.
Nossa hipótese de base é que o ser humano vive e se comunica melhor quando
consegue romper o complô lingüístico das linguagens patogênicas. Aprender também
significa melhorar nosso sistema imunológico mediante linguagens saudáveis. Pensar é
lutar contra o feitiço de racionalidades que aprisionam a nossa mente; pensar é curar nossos
jeitos de falar sobre a vida e o mundo.
Educar é, fundamentalmente, criar condições para e acessos a experiências de
aprendizagem. O fruto da educação não pode resumir-se a alguns saberes formalizados.
Hoje isso evidentemente não basta para a vida de ninguém, e a escola nem poderia
transmitir todos os saberes requeridos ao longo da vida. Portanto, não basta a
disponibilidade funcional e burocrática da educação (o mero acesso à escola).
Para que surjam e se desenvolvam experiências de aprendizagem, os aprendentes
devem ser atingidos por um envolvimento que não seja apenas algo que se lhes oferece
como lição a aprender, matéria a ser incutida e absorvida. Requer-se uma transação
comunicativa de envolvimentos pessoais no processo de aprendizagem enquanto sinônimo
de processos de vida possível e felicidade possível. Por isso, a escola deve preocupar-se
com criar e recriar as condições para que docentes e aprendentes se sintam em estado de
196
Ver ASSMANN, Hugo. Metáforas Novas para Reencantar a Educação: Epistemologia e Didática.
Piracicaba, SP: Editora UNIMEP, 1996, 2ª ed. 1998; Reencantar a Educação: Rumo à Sociedade
Aprendente. Petrópolis, RJ: Editora Vozes,1988, 3ª ed. 1999; Id. “Paixão pela educação com os pés no chão”,
na Revista de Educação AEC, ano 28, nº 110, 199, p. 9-24; Id. "A dimensão estética do conhecimento: A
aprendizagem como experiência da beleza" em: Comunicações - Caderno do Programa de Pós-graduação em
Educação, UNIMEP. ano 6, nº 2, nov. 1999, 29-41). 197
DEMO, Pedro. Educação e Desenvolvimento. Campinas, SP: Papirus, 1999, p. 40.
195
apaixonamento por aquilo que irá proporcionar-lhes vida, ou seja, a unidade – em sua
própria vida e no convívio com os demais – entre processos vitais e processos de
aprendizagem. Esta é, no meu entender, a lição maior que temos que aprender das
biociências.
Mas convém prevenir mal-entendidos e confusões. A linguagem sobre o desejo e a
paixão, quando é usada neste sentido amplo e aplicada à educação, precisa formar parte de
um campo do sentido com o qual as pessoas possam também identificar-se em suas vidas
concretas. Deve ser, por exemplo, uma linguagem não descolada da valorização efetiva da
carreira profissional do/a professor/a no que se refere a melhorar as condições salariais,
incentivar o aperfeiçoamento, reconhecer os esforços e prover os meios para uma
continuidade profissional que possibilitem uma opção razoavelmente tranqüila no sentido
de “é isto mesmo que eu gosto de fazer‖.
As linguagens sobre a motivação, o desejo e a paixão ficam artificiais e se
pervertem, sem chances de constituir um campo vivenciável do sentido, quando são usadas
como uma espécie de chantagem moralista (os direitos dos alunos exigem que vivas
“apaixonada/o” por tua nobre missão...) ou, pior ainda, como chantagem descaradamente
mercadológica (“ou te apaixonas por teu trabalho ou outros tomarão teu lugar...). Cobranças
à consciência do dever exigem contextos propiciadores da satisfação em cumpri-lo. Isto
vale especialmente quando nos referimos a milhares de profissionais com histórias de vida
muito diferentes, como no caso do professorado. Normas excessivamente rígidas e
interpelações agudas à consciência do dever só funcionam em grupos pequenos e bastante
fechados.
Parece que, entre os seres humanos - especialmente na era das sociedades
complexas e prevalentemente urbanas - as convergências em comportamentos coletivos
funcionam melhor com doses relativamente altas de satisfação (contentamento, entusiasmo
e até certa euforia) e doses baixas de cobranças impositivas. As modernas teorias de
administração e gerenciamento falam muito de ambientação e clima organizacional. O
contágio motivacional passou a formar parte do conceito de liderança.
“Dá prazer trabalhar com quem trabalha com prazer”, repete, com freqüência,
Deming, um dos gurus no assunto. Mas, ao mesmo tempo, costuma-se deixar claro que as
fascinações de indivíduos isolados em relação a suas tarefas específicas, embora
importantes, não bastam para constituir “organizações aprendentes” (learning
organizations). Para tanto requer-se a disseminação articulada de todo um clima no qual,
junto à “reengenharia” técnica, se vá dando uma re-alocação dos potenciais de eficiência
nos recursos humanos no plano das disposições psíquicas, das motivações e, no plano da
renovação das linguagens cotidianas.
Convém, por isso, enfatizar que a literatura de nível mais sério sobre “organizações
aprendentes” não se pauta por propostas de indução de entusiasmos artificiais e sem base
sustentável. As novas teorias gerenciais, embora abordem com muita insistência o tema da
satisfação no trabalho, não desconhecem que as fascinações pelas tarefas, que exigem
árduo esforço, não são o mais “normal”.
A referência básica é que as novas formas de trabalho incluirão, doravante,
aprendizagem permanente e flexibilidade adaptativa. Isto implica um investimento
permanente de energias humanas. Para esse esforço se requerem condições ambientais
favoráveis, porque para um problema de tal porte seria ingênuo apostar apenas nos aspectos
facilmente manipuláveis da sensibilidade. e emocionalidade das pessoas.
196
3. Pano de fundo: a luta contra a exclusão passa pela educação
De alguns anos para cá, assistimos à intensificação de linguagens mais animadoras e
motivadoras acerca da educação e acerca da profissão de educador/a. Por décadas haviam
prevalecido, no Brasil e na América Latina, as linguagens críticas e denunciatórias acerca
do descalabro da educação e do vilipêndio do trabalho educativo. A carreira docente havia
baixado a uma das menos apetecíveis no mercado de trabalho. Não poucos acusavam os
poderes públicos de serem culpados de um sucateamento, aparentemente intencional, da
educação pública. A expansão vertiginosa da educação privada era vista por muitos como
uma espécie de queima dos credos constitucionais, tantas vezes reiterados, de que a
educação é um direito de todos e um dever do Estado.
Que foi que mudou para que surgisse essa efervescência de linguagens menos
negativistas, quando tão pouco mudou no descaso das políticas educacionais públicas?
Teria havido um desgaste das análises meramente críticas, um cansaço crescente e até um
início de aberta rejeição no que se refere ao torrencial de eternas denúncias e
reivindicações, carentes de alternativa plausível? Este é um terreno de quase inevitáveis
mal-entendidos, mas a quem interessam polêmicas estéreis?
Creio que não é fantasioso afirmar que, no Brasil, a maioria do povo não se dá bem
com o mal-estar que gera o negativismo centrado na "consciência infeliz". A "consciência
infeliz" não pega no Brasil. Em termos gerais, só a pequena burguesia intelectual se deixa
contaminar pelo negativismo eternamente amargurado. Talvez por isso mesmo, e a partir
desse pendor para o positivo, somos também presa fácil de visões ingênuas. No Brasil, até
os miseráveis lutam não apenas para sobreviver, mas para sobreviver na alegria. Num plano
profundo de nossa capacidade desejante, vida e alegria são para nós radicalmente
inseparáveis.
Esta é uma temática exigente que aqui apenas podemos bordejar, pois nela está em
jogo um aspecto básico que atravessa toda a cultura ocidental: o da "consciência infeliz".
Suas raízes filosóficas e religiosas e suas múltiplas manifestações no chamado "pensamento
progressista" exigiriam uma análise detida, que não é possível nesta brevidade. Valha uma
citação:
Todas as culturas produzem algum mal-estar, mas a nossa é a única que está
fundada no mal-estar. Se sentir inadequado, sofrer com a distância entre nós e os
ideais culturais é indispensável para o funcionamento social. Sem esse mal-estar
cotidiano, nosso mundo pararia.198
4. Estabelecer uma relação entre competência e sensibilidade solidária
Falar em campo do sentido significa entender que nossas linguagens são algo
parecido a casas ou lugares que se podem habitar. Queremos educar para um mundo
habitável, porque solidário. No panorama educacional, muitas das palavras que mais se
usam não se prestam para morar nelas. Não criam espaços vitais. Não servem enquanto
espaços do conhecimento. Enfim, não formam uma ecologia cognitiva (como diriam Edgar
198
CALLIGARIS, Contardo. Folha de S. Paulo de 05/11/1999, p. 3/8.
197
Morin e Pierre Lévy). Com palavras ruins para habitar só se podem criar ambientes ruins
para ter experiências de aprendizagem.
Para os jovens, parte maior da humanidade e deste nosso país, qualquer sobrevida
desejável depende em muito do acesso à educação. Eles sabem que as novas tecnologias da
informação e da comunicação, assim como a globalização, que é basicamente um projeto
político de mundialização do mercado, vieram para ficar. Adivinham também que terão de
conviver com os mecanismos cruelmente competitivos dessa configuração da economia de
mercado e suas tendências excludentes. Não há à vista nenhuma alternativa completamente
distinta. Ajudá-los a preparar-se para atuar num mundo com esse feitio, e manter viva, ao
mesmo tempo e a todo transe, a sensibilidade solidária - eis o que deveria ser a meta maior
da educação hoje.
Ninguém é ingênuo ao ponto de acreditar que esse ideal maiúsculo se encarna de
maneira espontânea e óbvia nas instituições educacionais existentes no Brasil. Por outra
parte, poucos duvidam da primazia da educação em meio às nossas urgências sociais. As
esperanças socialmente possíveis, enquanto politicamente negociáveis em consensos
democráticos, requerem embasamentos sólidos e muita energia e motivação ética. Aos
poucos chegamos a entender que, nessa direção, já não convém desgastar-se em meras
denúncias. Estas se revelam estéreis e contraproducentes quando não acompanhadas de
uma visão estratégica acerca das melhorias plausivelmente implantáveis, suposta a
articulação da requerida vontade política.
A brevidade não nos permitirá explicitar aqui todos os alertas críticos necessários
em relação a muitos dos conceitos que estarei usando. Quando falamos de tecnologias da
comunicação é bom não esquecer que nelas, e nos conceitos que tramitam, aparece
inseparável o que Lucien Sfez denomina "tecnologias do espírito"199
. Nesta nossa conversa
nos ocuparemos de alguns elementos que talvez sirvam como ingredientes de um cauteloso
e prudente otimismo pedagógico.
No panorama da mundialização do mercado, com a marca do predomínio
praticamente descontrolado do capital financeiro sobre o capital comprometido com o
crescimento e a melhoria das condições de vida da população, a educação se transformou
em recurso de sobrevivência. Não se vislumbram, nem no cenário mundial e menos ainda
no brasileiro, potenciais políticos para reverter esse quadro assustador. Com isso, tornou-se
aguda a consciência de que a luta contra a exclusão e por uma sociedade onde caibam todos
passa fundamentalmente pela educação. Creio que este é o verdadeiro pano de fundo sobre
o qual vale a pena articular a discussão sobre muitos novos desafios para a educação.
Elementos para um quadro de valores educacionais solidários
1. Sociedade do Conhecimento / Sociedade Aprendente
Conhecimento virou assunto obrigatório. Conhecimento passou a ser a nova matéria
prima principal (e a nova forma de "capital"?). Sabemos que o conceito de trabalho mudou
muito. Hoje trabalhar significa basicamente estar aplicando e/ou gerando conhecimentos.
Portanto, a transformação do trabalho tem tudo a ver com o conhecimento. A expressão
199
Cf. art. de L. Sfez em: MENEZES MARTINS, Francisco . e MACHADO DA SILVA, Juremir (Orgs.).
Para Navegar no Século XXI - Tecnologias do Imaginário e Cibercultura. Porto Alegre: EDIPUCRS / Sulins,
2ª ed., 2000; ver também MARQUES, Mário Osório. A Escola no Computador. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1999.
198
Sociedade do Conhecimento quer dar a entender que entramos na era das redes de
interconexão entre ecologias cognitivas. Refere-se, pois, ao aspecto cognitivo e educacional
da globalização, que, por sua vez, é fundamentalmente a mundialização do mercado.
Portanto, um fenômeno econômico e político, e não meramente tecnológico. Este é o
enredo amplo, e não isento de ambigüidades, no qual devemos situar a relação entre novas
tecnologias e mudanças profundas na educação.
Do conceito de Sociedade da Informação passou-se, por vezes sem as convenientes
cautelas teóricas, ao de Knowledge Society e Learning Society. Em francês prevalece, por
ora, Societé Cognitive. Nas teorias gerenciais avança o discurso sobre learning
organisations (organizações aprendentes - cf. Peter Senge e outros). A incrível abundância
e variedade de linguagens acerca desse processo tecnológico e, ao mesmo tempo,
ideológico-político é um fenômeno deveras impressionante.
2. As novas tecnologias transformam os modos de aprender
As novas tecnologias interativas (computador, multimeios, Internet, etc.) já não são
meros instrumentos como o lápis, o giz, a máquina de escrever. Seu caráter versátil e
interativo as eleva a co-estruturadoras das formas do saber. Tornaram-se máquinas
ativamente colaboradoras nos processos de aprendizagem. Com isso a formatação
predominante dos conhecimentos mudou bastante. Surgem, assim, novos espaços e novas
formas do conhecimento. A paixão de aprender pode contar, agora, com novas formas de
criatividade. O prazer de aprender acessos para o aprender. O prazer de navegar na
versatilidade e interatividade.
É fundamental que se entenda que as novas tecnologias da informação e da
comunicação rompem, até certo ponto, com a submissão a espaços pré-configurados e
instauram uma versatilidade que não existia na folha de papel, na lousa, no giz e no lápis. O
jogo criativo tem agora muitas novas possibilidades. Isso é óbvio para quem elabora textos
no computador com o uso de várias telas, múltiplos arquivos, recursos gráficos, pesquisa na
Internet, etc. Não é exagerado dizer que os novos recursos tecnológicos têm um papel ativo
e constitutivo da própria morfogênese do conhecimento no que se refere às suas formas de
criação, expressão e comunicação. A extraordinária versatilidade dos multimeios os
transforma em “agentes cooperativos” das formas de aprendizagem.
3. Redes telemáticas e teia da vida
As tecnologias informáticas buscam replicar, simular e até produzir processos
cognitivos artificiais (Inteligência Artificial, Vida Artificial, Robótica). Com isso nos
brindam, pela primeira vez na história evolutiva da nossa espécie, a chance de entender
melhor a relação intrínseca entre processos vitais e processos de aprendizagem. Hoje se
tornou possível aprofundar reflexões - filosóficas, éticas, pedagógicas - sobre as
características únicas da teia da vida "natural", já que é possível confrontá-la e compará-la
com os produtos mais avançados da tecnologia. Tanto as semelhanças quanto as diferenças
nos possibilitam enxergar, de maneira nova, muitos aspectos do agir pedagógico.
Paradoxalmente, as tecnologias informáticas e as ciências da vida, dois campos
outrora academicamente distantes, convergem hoje, na teoria e na prática, compartindo
muitos de seus conceitos (emergência, auto-organização, sistemas aprendentes, evolução
cognitiva, aprender, etc.). A própria tecnologia nos impele a levar a sério, no plano da
199
educação, a lição das biociências de que todos os seres vivos são "sistemas aprendentes".
Mantêm-se vivos e crescem em vitalidade na medida em que continuam aprendendo. Existe
uma unidade básica entre processos vitais e processos cognitivos. As ciências da vida e as
ciências computacionais usam o termo cognição para todos os níveis de aprendizagem,
desde a ameba até Einstein. Que tal inventar para isso o termo aprendência (como
apprenance, em francês)?
As novas tecnologias já começam a simular aquilo que as biociências tardaram em
reconhecer: a constância básica de que a vida “se gosta” naturalmente. Só deixa de querer-
se quando sofre bloqueios e é reprimida em sua dinâmica vital. Existe um nexo profundo
entre dinâmica da vida e dinâmica do prazer. Por isso a prazerosidade é um aspecto
vitalmente importante da aprendizagem. O objetivo da educação é criar experiências da
paixão de aprender, ou seja, da paixão de viver. Nesta mesma linha é preciso enfatizar que
a dimensão estética do conhecimento é um tema pedagogicamente importante porque nos
leva a entender a aprendizagem como experiência da beleza.
4. Enfrentar conjuntamente os vários analfabetismos
Os analfabetos de amanhã não serão os que não sabem ler; serão os que não tiverem
aprendido a aprender.
O pior analfabetismo é a falta de curiosidade de aprender. Encontram-se em
situação análoga os que foram alfabetizados, mas perderam a curiosidade de ler e continuar
aprendendo.
A alfabetização "instrumental" deve estar a serviço da alfabetização vital, isto é, a
experiência gostosa de poder aprender e estar aprendendo. Por isso a atividade escolar, em
todos os seus aspectos e participantes, deveria visar, como fruto, experiências de
aprendizagem.
A alfabetização "instrumental" inclui hoje a superação conjunta de vários
analfabetismos:
da lecto-escritura (o sentido clássico do termo) – incluído, aí, o “funcional”;
analfabetismo em novas tecnologias (info-analfabetismo -> computer (i)literacy);
analfabetismo sociocultural (ignorar os mecanismos que funcionam na sociedade na qual se vive, p. ex., mercado);
analfabetismo emocional (-> corporeidade.; lihar com os temas “inteligência
emocional” e “razão sensível”)..
Professor/a é alguém que a ajuda a olhar, e não só a abrir os olhos. - ―Mãeêê, me
ajuda a olhar!", gritou a criança ao correr pela primeira vez até a praia.
5. Do repasse de saberes às experiências do aprender a aprender
Hoje a educação não deve ser mais entendida como transmissão de conhecimentos e
saberes prontos. A educação, aliás, nunca foi boa quando foi apenas instrução, transmissão
de saberes. Educar significa criar experiências de aprendizagem e não transmitir coisas já
prontas, saberes já supostamente definidos. Ninguém aprende se não cria junto com aquele
que ensina o conhecimento. Aprender significa construir experiências de aprendizagem. As
200
mudanças mais profundas que eu vejo que estão acontecendo hoje na educação têm a ver
com este novo conceito de aprendizagem que efetivamente muitas escolas ainda não têm.
Muitas escolas continuam pensando que ensinar é transmitir saberes prontos. O fruto da
escola deve ser aprender a aprender, aprender a acessar formas de aprender. Aprender a
fazer experiências de aprendizagem. Aliás, hoje é impensável que a escola dê conta de
repassar (mesmo que já estivessem disponíveis) todos os conhecimentos que os/as
alunos/as precisarão em suas vidas.
Chegamos a um tempo pedagógico peculiar no qual a educação deverá concentrar-
se primordialmente na ambientação das experiências de aprendizagem. Educação passa a
significar empenho carinhoso na criação de ecologias cognitivas - para empregar essa bela
expressão cunhada, pelo que me consta, por Edgar Morin e profusamente empregada por
Pierre Lévy. Ecologia é o conjunto das circunstâncias propícias a nichos vitais, onde seres
vivos possam sobreviver e incrementar-se em mais e melhor vida. Os novos espaços do
conhecimento não devem ser encarados, nem única nem primordialmente, como
reconfigurações tecnológicas, mas como ecologias cognitivas que propiciem o salto do bom
ensino - imprescindível - à efetiva experiência de aprendizagem, com processo
personalizado de construção do conhecimento.
Nós estamos em uma época na qual a escola já não consegue passar toda o
“conteúdo” ou a "matéria" necessários para a vida das pessoas. Seria uma tarefa
inabarcável, um sonho impossível. O volume dos conhecimentos aumenta tanto e tão
rapidamente que a escola se torna cada vez mais formadora de um colchão básico de
aptidões (competências cognitivas e competências sociais, na linguagem do MEC). No
mais, a escola deve iniciar processos de descoberta e propiciar ensaios do aprender formas
de acender ao conhecimento.
6. A relação entre educação e empregabilidade se complicou muito
Hoje a educação já não representa uma garantia para o acesso ao emprego, mas é
uma condição indispensável tanto para o trabalho como para o lazer. Não há mais previsão
de pleno emprego no sentido tradicional de trabalho. A nova empregabilidade está ligada à
flexibilidade na capacidade de aprender. Só mesmo uma visão reacionária, conservadora e
excludente aborda este aspecto real do mundo de hoje sem fazer uma análise crítica da
ideologia de abandonar tudo aos mecanismos do mercado, supondo que eles conduzam
automaticamente ao bem comum. O papel das políticas públicas é fundamental no que se
refere à educação, saúde e todos os direitos humanos básicos. Mas nas hodiernas
sociedades amplas, complexas e urbanizadas o mercado veio para ficar.
7. Educação como forma destacada de compromisso social
Sobre o pano de fundo da Sociedade Aprendente com economia de mercado e
formas mutantes de empregabilidade, não cabe dúvida que educar é lutar contra a exclusão
Nesse contexto, educar significa realmente salvar vidas. Por isso, ser educador/a é hoje a
mais importante tarefa social emancipatória. Mas se o/a educador/a não se atualiza, o que se
atrasa é a vida de seres humanos concretos. O agir pedagógico é, hoje, o terreno mais
desafiador do agir social e político, e isso num sentido bastante diferente, e provavelmente
mais exigente do ponto de vista ético e humano, do que o clássico reclamo do primado do
201
político. Gravemos fundo em nossa consciência: hoje educar significa salvar vidas; hoje
educar é engajamento social de avançada. Os educadores devem orgulhar-se disso.
8. Educar para a iniciativa e a solidariedade
Os "pais fundadores" ou clássicos da economia de mercado (Adam Smith. David
Ricardo, etc.) elaboraram uma visão do ser humano que não é fácil refutar. Ela é uma
espécie de acordo faustiano com a coexistência do bem e do mal. O assunto é complexo,
mas resumo a provocação básica. Os humanos seríamos, nessa visão, inevitavelmente
feixes de paixões e interesses. Em sociedades amplas e complexas, a melhor saída seria, por
isso, apostar num "pacote antropológico" resumível em: apostar no interesse-próprio, na
iniciativa, na industriosidade (industry: empenho, esforço), na criatividade e no respeito
mútuo (respeito aos contratos). O bem-comum e, portanto, a solidariedade decorreriam de
"mecanismos de mercado" engendrados espontaneamente pela adoção de semelhante visão
da convivência social.
Todos sabemos que há nisso uma série de falácias, mas também há um fundo de
verdade (ou seja, não somos naturalmente solidários e não costumamos renunciar a ser
tomados em conta). Sabemos também que a suposta solidariedade congênita dos
mecanismos de mercado é uma idolatria200
porque diviniza uma suposta mão oculta
providencial. Por outra parte, será que sabemos realmente como juntar, no conceito de
cidadania, a educação para a iniciativa e para a solidariedade? Dessa tarefa crucial não se
escapa com festejos de palavras altissonantes ou arroubos revolucionários.
―Nos han enseñado tantas cosas, pero no nos enseñaron lo que significa tomar la
iniciativa‖ - confidenciava-nos um casal cubano (que vive em Cuba). Os apelos à
solidariedade têm – compreensívelmente – pouca ressonância quando as pessoas, a serem
amparadas, não dão mostras de que aprenderam a tomar iniciativas. Pode parecer estranho,
mas – com exceção de situações emergenciais onde todos devem ajudar (e elas são muitas
na situação atual do Brasil) – a educação para saber tomar iniciativa faz parte das condições
de possibilidade de uma educação para a solidariedade. Esta simplesmente não funciona,
como constante social, onde falta a criatividade e a disposição para tomar iniciativas.
9. Resgatar a alegria do ser educador/a
Transformar a escola em organização aprendente. As novas teorias da gestão
empresarial falam muito em clima de aprendizagem. Enxergam a empresa como
“organização que está aprendendo”. Ora, isto deveria valer muito mais para a escola. A
empresa produz bens ou serviços. A escola visa um “produto” diretamente humano: ela visa
criar experiências de aprendizagem. Na escola tudo deveria estar voltado para esse objetivo.
Transformar a sala de aula em ecologia cognitiva. Ecologia significa nicho vital.
Ecologia cognitiva quer dizer nicho vital para as experiências cognitivas. A sala de aula
deve ser um nicho vital para experiências de aprendizagem. Um espaço de construção do
gosto de estar aprendendo. Aprender a aprender, e aprender vida e mundo. Hoje, estudar
significa aprender caminhos e acessos. O objetivo da escola é criar: experiências de
200
ASSMANN, Hugo & HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado - Ensaio sobre economia e
teologia. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1989 (traduzido a vários idiomas).
202
aprendizagem; não mero acúmulo de saberes. Convém meditar sobre o que tarefas a escola
já não pode cumprir (nem precisa).
Conceitos/lembretes - Uma boa teoria vale mais do que muitos conceitos isolados.
Tente integrar numa teoria pedagógica os seguintes conceitos:
unidade entre processos vitais e processos cognitivos
a auto-organização do vivo
aprender é um processo emergente que se auto-organiza
novos conhecimentos como níveis emergentes
organizações aprendentes como sistemas dinâmicos
a escola como organização aprendente
ecologia cognitiva; nichos vitais do conhecimento
pensamento complexo que não fique preso a causalidades lineares
Perceber a relevância social do resgate da subjetividade - Quando levado a sério -
e não banalizado como em muita literatura de "auto-ajuda" -, bem-vindo seja o retorno dos
temas que servem para unir, de maneira nova e desafiadora, o resgate da subjetividade com
o engajamento social irradiante:
auto-estima, auto-apreço, auto-confiança
incentivo à capacidade de tomar iniciativas
ensinar a inovar (pedagogia da criatividade)
despertar aspirações, motivações
aumentar os níveis de expectativa
10. Aprender a sonhar com horizontes amplos
"Educar é acreditar na perfectibilidade humana, na capacidade inata de
aprender e no desejo de saber que anima os seres humanos; ...acreditar que
os seres humanos nos podemos melhorar uns aos outros através do
conhecimento..."
(Fernando SAVATER. El valor de educar).
Para jogar tudo isso em horizontes motivadores retomamos aqui o texto da
contracapa do livro Reencantar a Educação: rumo à sociedade aprendente:
A evolução da humanidade chegou a uma fase na qual nenhum poder econômico ou
político é capaz de controlar ou colonizar inteiramente a explosão dos espaços do
conhecimento. A Internet é apenas um exemplo sinalizador do que se pretende dizer com
essa hipótese. É por isso que a dinamização dos espaços do conhecimento pela educação
tornou-se uma tarefa social tão importante.
Doravante só será possível sonhar com uma sociedade onde caibam todos se
também nossos modos de conhecer conduzirem a uma visão do mundo no qual caibam
muitos mundos do conhecimento e do comportamento. A educação se confronta com essa
apaixonante tarefa de formar seres humanos para os quais a criatividade, a ternura e a
solidariedade sejam ao mesmo tempo desejo e necessidade.
Reencantar a educação significa, também, vivenciar as implicações pedagógicas dos
avanços científico-tecnológicos, o fato de que os processos cognitivos e os processos vitais
203
são no fundo a mesma coisa. Trata-se de um encontro desde sempre marcado do viver com
o aprender, enquanto processo de auto-organização, desde o plano biofísico até as esferas
societais.
204
HORIZONTES
RECONTRUIR NOSSOS CAMPOS DO SENTIDO
No final deste livro não temos conclusões, mas horizontes. Nosso texto pretende ser
um convite a continuar a reflexão sobre a gravidade e a beleza do desafio de participar
numa verdadeira virada civilizatória. Aludiremos de passagem, à Primeira Neotenia - a da
Hominização - para transformá-la em metáfora para uma "Segunda Neotenia": a da
Humanização. Ousamos falar de uma dimensão profunda dos nossos desejos enquanto
abertura relacional. E nos despedimos com um quasi-poema meditativo sobre a esperança
que nos habita.
Estamos numa virada civilizatória
No planeta Terra se intensificaram vários processos que têm uma relação direta com
a continuidade e a qualidade da vida que nele é viável. Qual é o choque maior, a
mundialização do mercado, sob a égide do capital financeiro, ou a explosão científico-
tecnológica? Não há como separá-los. Ambos estão vinculados a uma determinada visão do
ser humano e a um conjunto de valores. Este vínculo é de mútua sustentação, ou seja, eles
se engendraram e agora se reforçam reciprocamente. É este todo sistêmico que se revela
cada vez mais em dissintonia com praticamente todos os sistemas vivos do planeta.
As regras de funcionamento desse conjunto tecnológico, econômico e político
usurparam para si a definição dos mundos do sentido. E será a partir da reconstrução de
nossos mundos do sentido que poderemos perceber o caráter histórico dessa usurpação. A
crise civilizatória, que enfrentamos, se refere a crenças muito enraizadas em grande parte
da cultura mundial de hoje de que esse é um sistema de coerências dificilmente
desmontável. Mas isso não é verdade.
É provavelmente ilusório querer construir mundos alternativos do sentido, que não
levem em conta a necessária triagem dos benefícios e dos malefícios do mercado. Não faz
muito sentido pretender situar-se num suposto pólo alternativo exterior ao sistema
capitalista mundial por duas razões muito simples: primeiro, porque semelhante pólo
exterior se tornou (não que o tenha sido sempre) algo ficcional; segundo, porque há
igualmente muito de ficcional na suposta adesão planetária à visão do ser humano e aos
valores em que o sistema se apoia. O neo-liberalismo se está revelando como uma vitória
de Pirro,: barulhenta e transitória.
Está acontecendo, embora lentamente, algo de verdadeiramente inédito quanto aos
mundos do sentido na atualidade. Pela primeira vez na história humana um sistema sócio-
econômico-político, depois de haver alcançado o auge de sua mundialização, começa a ser
questionado - de forma pública e razoavelmente democrática - em seus pressupostos
antropológicos e éticos. Isso teria sido inimaginável nos socialismos, como continua
praticamente impossível no interior da maioria das igrejas. O radicalismo neo-liberal tem
poucas chances de persistir. E isso significa que existem algumas chances de retomada de
um trabalho significativo em direção a metas solidárias.
Os campos do sentido voltaram a flexibilizar-se um pouco mais. E - como julgamos
haver mostrado, de alguma forma, neste livro - a educação (UNESCO, PCNs, etc.) está
205
entrando nessa brecha com razoável faro político. Sem entregar-nos a otimismos
exagerados, cremos que é demonstrável que as políticas educacionais de diversos países
europeus, e do próprio Conselho da União Européia, assim como setores dos Ministérios de
Educação de vários países latino-americanos, inclusive do Brasil, estão alguns passos na
frente em relação ao resto das políticas. Isto nos parece ser, no mínimo, uma hipótese
bastante sugestiva.
***
Em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro201
, Edgar Morin
nos convida a levar muito a sério o fato de que o desenvolvimento histórico das formas de
conhecimento e de acumulação de saberes humanos carrega consigo uma profunda
deformação anti-solidária, que ele volta a denunciar como "as cegueiras do conhecimento".
Morin sugere que, para conseguirmos dar a virada para formas de conhecimento e de
comportamento intrinsecamente solidários, será preciso partir do reconhecimento das
cegueiras e das lacunas da concepção tradicional de conhecimento.
A trajetória que Morin sugere para a profunda conversão a um modo de conhecer e
a uma visão ética radicalmente solidários incluiria rever nossos pressupostos acerca da
condição humana, levar a sério o caráter terreno da nossa identidade, aprender a lidar com
incertezas, tornar-nos seres compreensivos e acolhedores e, despedir-nos de éticas do
absoluto para aderir a uma ética do gênero humano. Como é fácil perceber, esta é uma
linguagem secular que se move em direção a uma radicalidade espiritual superior inclusive
a muitos discursos religiosos historicamente deteriorados.
***
Nas últimas décadas nos fomos acostumando a doses fortes de símbolos
relacionados com ameaças de destruição global da vida no planeta. Começamos a tomar
consciência, mas já não sob a pressão de velhos mitos apocalípticos, de que somos
precários e contingentes neste mundo. Embora talvez ainda predominem, no imaginário
coletivo, os temores relacionados com causas advindas de fora da órbita terrestre, ou de
alguma loucura nuclear, aos poucos começamos a entender a fria dureza da advertência do
Clube de Roma, em seu documento A Primeira Revolução Global, de 1991: "O inimigo
comum da humanidade é o próprio homem"202
. Um tom semelhante teve a "Advertência à
Humanidade" de um grupo de mais de 200 cientistas, em 1992203
.
É duvidoso que advertências desse tipo mobilizem as consciências para as
mudanças profundas de índole global, quando não acompanhadas de perspectivas
esperançadoras acerca da viabilidade das mesmas. Que elas urgem, isso já foi dito e redito à
saciedade. Como encaminhá-las? - esta é a agenda cuja definição, além de sempre de novo
escamoteada e adiada, continua sem consensos significativos. Existem sinais que alentem
nossa esperança? A própria possibilidade de visualizá-los provavelmente depende da nossa
maneira de olhar o mundo e encarar o futuro. Se apostarmos apenas em cintilações de
consciência dos assim chamados "poderosos", posicionando-nos como meros espectadores,
nosso olhar ficará frustrado. Eles - que nem sequer existem como entidades isoláveis e
201
MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2000. 202
CLUBE DE ROMA, The First Global Revolution (Ed. Alexander King & Bertrand Schmeider). New York;
Bantam Books, 1991, p. 115. 203
Cf. World Scientists' Warnung to Humanity (da Union of Concerned Scientists), 1992. - Texto disponível
da Intrnet, junho/2000.
206
inculpáveis por separado - , assim como nós, estão envoltos em campos de sem-sentido e
campos de sentidode acordo aos referenciais específicos que invocarem.
Só nesse lance de reflexão inicial, já vão para três ou mais as questões relacionadas
com a esperança possível. Um, as consciências não existem, como responsáveis ou
inculpáveis, se não forem concebidas como vetores dependentes de seus campos de sentido
e falta de sentido. Poderosos são os campos do sentido em que todos, de alguma forma,
estamos imersos. Dois, que é que se nos afigura como atratores benéficos para vislumbrar o
que realmente faça sentido para a humanidade de hoje? Três, quais são as nossas
conviccões pessoais sobre atratores sinistros da ausência ou negação do sentido no mundo
de hoje?
Por onde começar? Talvez pela criação inicial de um clima sensível. Retomemos a
frase já citada de Teilhard de Chardin :
O progresso de uma civilização se mede
pelo aumento da sensibilidade para o outro.
Para melhor interiorizá-la, talvez ajude o sério hom-humor de Caetano Veloso:
:
Cada um sabe
a dor e a delícia
de ser o que é.
***
O que está ocorrendo hoje, no planeta Terra, provavelmente é algo mais decisivo do
que a simples passagem a uma nova época ou simplesmente um novo período histórico. É
provável que se trate de desafios tão sérios que, em termos comparativos, todas as
anteriores crises tenham tido proporções menos globais. Foram crises na co-evolução das
diferentes formas de vida, todas em seus respectivos nichos vitais, mesmo quando já
afetavam nichos vitais tão amplos como a geografia de nações e continentes inteiros. Hoje,
porém, estamos diante da primeira crise civilizatória com amplidão realmente planetária.
E ela é terrivelmente desproporcional. Há vastos bolsões onde as "baixas sociais" se
intensificam. E um pouco por toda parte reina uma gélida indiferença.
Já lá atrás, nos anos setenta, Marvin Gave dizia na canção "Salvem as crianças":
I just want to ask a question: - Wo really cares?
(Eu só quero fazer uma pergunta: - Quem é que realmente se importa?)204
Pois, nós nos importamos, porque - como educadores/as - acreditamos que a
educação tem a missão de criar acessos para a construção de campos do sentido para a vida
e o desmantelamento dos campos do sem-sentido da anti-vida. A educação é chamada a ser
a fronteira avançada do salvamento concreto de vidas humanas concretas. É a frente de
avançada mais relevante do engajamento social solidário.
Isto não são frases de consolo ilusório num mundo lançado em reta para o abismo.
Só onde a educação se omitir o desastre humano pode tornar-se irreversível. Onde ela
204
Marvin Gave, na canção Save the Children, do album What's Going On, 1971.
207
atuar, com criatividade e esperança, emergirá a efervescência das buscas de um sentido
solidário para nossas vidas. Só a educação pode levar-nos a entender que a humanidade já
não pode postergar a pergunta: como passar da Hominização para a Humanização?
Um cenário futurológico
Observação: Não endossamos acriticamente, nem concordamos com todos os
detalhes do Cenário que o quadro abaixo apresenta. Nele se refletem vários elementos
típicos da futurologia dos anos 80 do século XX. Há alguns "atrasos" e não pouca
especulação, especialmente sobre a segunda metade do século XXI. A reprodução
(parcialmente adaptada) desse quadro tem o propósito de deixar entrever algo bastante
usual nos cenários futurológicos e cuja razão deveria ser decifrada em termos de
sensibilidade social: há um evidente pessimismo acerca do presente, seguido de décadas de
sufoco pessimista, desembocando - como era de esperar - numa fase posterior menos
apocalíptica, mas com rasgos de um estranho otimismo que prevê a assimilação "realista"
de pessimismos inevitáveis. Isso fica sintomaticamente evidenciado no seqüenciamento da
suposta característica dominante da sociedade: produção, consumo, espetáculo, educação,
criação. Os/as educadores/as certamente torcem para que as etapas projetadas lá para a
frente, em termos cronológicos, se antecipem desde já, e que a educação seja desde agora
verdadeiramente criativa, e não o pesadelo dos controles retardados, que o esquema nos
apresenta. Vale a pena perguntar-se: que significa, do ponto de vista antropológico e de
sensibilidade solidária, semelhante Cenário e quais de seus elementos representam deveras
desafios incontornáveis?
CENÁRIO DE PREVISÕES - Quadro de Supervisão
205
Data 1900-1940 1940-1980 1980-2020 2020-1960 2060-2100
Habitantes do
planeta Terra
De 1-6 a 2.4
bilhões de hab.
De 2.4 a 5.0
bilhões de hab.
De 5.0 a 8.0
bilhões de hab.
De 8.o a 8.5
bilhões de hab.
De 8.5 a 7.0 (!)
bilhões de hab.
Contexto Geral
Característica
Predominante
da Sociedade
A Sociedade de
Produção (Production
Society)
A Ssociedade
de Consumo (Consumption
Society)
A Sociedade do
Espetáculo
(Show Busi-
ness Society)
A Sociedade da
Educação (Education
Society)
Sociedade da
Criação (Creation
Society)
Tendências de-
mográficas;
quem dá o
"tom"?
Dominação
européia dobre
um mundo
colozidado
Crescimento no
"Sul";
diminuição no
"Norte".
Migração Sul-
Norte; popul.
aumenta nas ex-
colônias;
anticoncepcio-
nais se espalham
pelo "Sul
Controle
sistemático da
matalidade;
inversão da
pirâmide
demográfica
Redução
demogáfica
global;
envelhecimen-
to; opções
reprodutivas
genéticas
Saúde
Começa a
vacinação
massiva
Antibióticos;
redução da
mortalidade
infantil nos
países pobres
Doenças
moleculares;
cancer, doenças
cardiovascula-
res, AIDS
Auto-medicação
e prevenção de
psicopatolo-gias
Biotecnologia:
órgãos bio-
compatí-veis,
"reincarnação"ar
tificial
Urbanização
Rede de grandes
cidades dos
países ricos
Crescimento
urbano em vol-
ta de centros
industriais
Cidades
gigantes; mais
da metade da
humanizada
Inicia-se a
relocalização;
cidades de porte
médio,
Nomadism;
acomodações
emergenciais;
cidades
205
Resumido e adaptado de 2100.org - Disponível na Internet, junho/2000.
208
urbanizada;
favelização
tecnópolis,
cidades no mar
"verdes";
"bioesferas"
Transportes
Ferrovias;
hidrovias
Automévil.
ônibus, avião
Trens de alta
velocidades,
metro, yates,
começa o carro
híbrido
Moradias
móveis;
aerotransporte
de residências;
teletrabalho
desterriitorili-
zado
Turismo em
planetas
artificiais;
explorações fora
do sistema solar
Meio-ambien-te,
agricultura
Mercados locais
tradicionais
Industrializa-
ção, superpro-
dudução em
países ricos
Começa o
reflorestamen-
to; diversifica-
ção, qualidade;
produtos mais
compactos
Retorno à
"natureza"; bio-
dinâmica;
turismo
ecológico
Polícia ecoló-
gica mundial;
jardins
planetários in-
clusive no mar
Comércio,
Indústria
Taylorismo-
fordismo;
comércio por
distribuição
setorial
Indústrias com
muito emprego;
deslocamento de
indústrias;
eomeça a
automação
Economia de
serviços;
diminui
gigantismo,
empresas
menores com
alta tecnologia;
shopping
centers e
hipermercados
Indústrias
educacionais,
culturais, de
lazer; design:
forma é produto;
telecompras
Expansão das
bio-indústrias;
robótica no
cotidiano;
corpos vivos
artificiais
Energia,
matérias primas
Carvão,
minerais
Petróleo,
eletrificação das
cidades ricas
Conservação de
energia;
aumenta uso
dehidrogênio
Força elértrica
no mundo
inteiro;
diversifica-se a
energia, energia
solar
Exploração da
lua e asterói-des
para maté-rias
pri-mas e
energia do e
para o espaço
Comunicação
Rádio popular;
telefone para a
elite
Televisão se
generaliza;
telefone
profissional
Fax, telefone
portátil se glo-
baliza; Inter-net;
memória a laser;
começa o
videofone
Bases globais de
dados; tu-rismo
intenso;
multimeios
educativos
portáteis
Telepatia
artificial; uso de
sonhos vir-tuais;
terapia
comunicativa
Finanças
Padrão ouro;
crise de 1929
Padrão dólar;
fusão de bancos
Sistema tripolar:
dólar, yen, euro
moeda de in-
terconexão
mundial; etno-
bancos (múl-
tiplas moedas)
sistema "han-
seático" ("por-
tos" financei-
ros); moedas
privadas se
difundem
Conflitos
Duas guerras
mundiais entres
estados-nação;
força aérea;
tanques
Guerra Fria en-
tre dois blocos;
intimidação
nuclear
recíproca
Conflitos tri-
bais e religio-
sos; terrorismo e
sequestros;
influência de
máfias
Lutas pela inf-
luência e com-
trole psíquico;
virus de com-
putador
Conflitos acerca
da "ad-
ministração"do
esquecimento;
combates
cibernéticos
Educação
Educação
fundamental
pública (Europa,
EUA, Japão)
Desenvolvi-
mento das uni-
versidades;
institucionali-
zação da pes-
Desordem e
competição na
mídia; falta de
conhecimento
prático no coti-
Vigorosa reto-
mada do com-
trole; educação
secundária pa-ra
todos; mun-dos
Desenvolvi-
mento pessoal
através do
edutainment;
manejo de
209
quisa diano virtuais tecnologias de
sobrevivência
Espiritualidade
e Religião
Cristianismo dos
coloniza-dores
Domina o
"cientismo";
ascenso do Islã
Fundamentalism
os versus
Espitualidade da
Nova Era
Ciências
cognitivas;
racionalização
do irracional
Três vias do
conhecimento{R
acionalidade,
Transe,
Criatividade
Cultura
Globalização da
cultura eu-ropéia
Cultura popu-
lar; predomí-nio
do inglês
Ressurgem as
culturas locais;
vídeo popular;
jogos eletrôni-
cos
Tradução
transcultural
estandarizada
Criação artís-
tica mediante
vida virtual
O mal-estar da civilização está dentro de nós
Atraso civilizacional
Sensação de comiseração, de atraso civilizacional.
Mas por quê? Não me falta casa, comida e banho
(ainda tenho emprego, trabalho numa escola
as crianças e os jovens sonham em chegar aonde cheguei.
Vou ter que dizer-lhes...)
Tenho ainda colchão (multi-uso, por ora)
frigorífico, microondas, carro, tv e vídeo
e navego na Internet.
Usufruo do «melhor da "civilização
onde as premissas para o sucesso são:
ter, possuir, acumular, não partilhar para subir
e continuar a ter mais e mais pois quem não tem
não é pessoa, é vadio, pobre, mendigo, louco…
(até lhes ateiam fogo mas lamentam se for um índio...)
Sou acordado pelo despertador (deperta a dor!)
Passo o dia correndo e não sobra tempo
nem para mim, nem para os outros.
Será que fez sol? Senti o perfume de uma flor?
Identifiquei o canto de um passarinho?
Deslumbrei-me com alguém? Tive gestos cordiais?
Pude parar e deixar o tempo fluir? Pude eu fluir e fruir?
- Não!
(É, vou ter que contar para eles...)
Mahatma] Ghandi :
SABER VIVER E CONVIVER
Um amor radical à paz e a convivência cordial eram, para o grande líder indiano Mahatma Ghandi valores máximos de civilização que a espécie humana precisa ainda aprender. Seu neto Arun Ghandi nos conta: Para [Mahatma] Ghandi, quem não sabe conviver também nunca saberá qual é a sua própria filosofia da vida. Contou-me várias vezes a história de um colega, brilhante nos estudos, sempre com as notas mais altas. Passou em tudo com distinção, arranjou logo um bom emprego. Só que nunca achou tempo para aprender a viver. Não soube conviver com sua mulher, nem com seus filhos, nem com ninguém. Acabou amargurado e na miséria. Saber viver e conviver - dizía ele - é o que mais se precisa aprender
206.
Tem cego que enxerga mais que a gente
Um massagista cego da Praça Benedito Calixto me falou: - Pôxa, como custa desbloquear os meridianos de energia
Cegos massagistas
Aos sábados funciona um mercado "Tem de Tudo" na Praça Benedito Calixto de
206
Prafraseado de O'DOHERTY, Stephen . Educating for hope - Texto disponível na Internet, juno/2000
210
de intelectual e professor...
Generoso e benevolente, acrescentou:
- Graças a Deus que não é o seu caso.
Acho que entendi. Não vou esquecer mais.
São Paulo. Lá existe um posto de massagem anti-stress. Os massagistas são cegas e cegos. Praticam de preferência massagens orientais.
***
A Neotenia Humana
1. Que vem a ser neotenia?
Neotenia.é noção científica de espesso conteúdo desafiador. De neotenia humana se
fala há mais de meio século e, ultimamente, com um leque de analogias cada vez mais rico,
para aludir ao fato de que a espécie humana reteve e incorporou ao seu cadedal genético
uma série de características juvenis para poder permanecer extremamente flexívef e
aprendente pela vida afora. Somos uma espécie que se viu obrigada, evolucionariamente, a
preservar uma huvenilidade adaptativa. Cerebralização e juvenilização evoluíram juntas.
Em 1926, o anatomista holandês Louis Bolk publicou a sua teoria
sobre."fetalização" e "juvenilização" na evolução humana. Fez estudos comparativos com
vários outros animais, que retêm e prolongam aspectos juvenis, como o axolotl, um anfíbio
do Golfo do México Constatou que o crânio de um chimpanzé jovem e de um homem
adulto possuem várias características em comum, um crânio globuloso, face sem arestas
proeminentes, etc. Mas enquanto o crânio do chimpanzé mudará quando adulto, o do ser
humano conserva um aspecto juvenil. A partir desse fato Bolk presumiu que o crescimento
das formas do ser humano se tornou mais lento no decurso da evolução. Essa teoria,
chamada de Neotenia conta hoje com muito interesse especialmente nos Estados Unidos e
na Europa.
Em síntese, para poder continuar sua evolução a espécie homo teve que transpor os
desafios-limite implicados no aumento da capacidade cerebral (o processo de
cerebralização), nascimento prematuro, epiderme nua, total dependência do acolhimento
("útero externo") pelos cuidados maternos ou de outros, retenção de características fetais e,
depois, juvenis, extrema capacidade adaptativa. O prolongamento da infância e os cuidados
maternos prolongados favoreceram a complexificação neurnal e social.
Um aspecto fundamental da neotenia: o cérebro desenvolveu simultaneamente sua
complexificação interna e sua complexificação social. Os automarismos instintivos foram
sendo deixados para trás, substituídos pela aprendizagem.
Outros aspectos importantes da neotenia: a coesão do grupo, o alento à ludicidade
("filhotes" humanos brincalhões, consensos sociais mínimos acerca da fragilidade e do
inacabamento dos recém-nascidos e das crianças, preservação da curiosidade, o papel
fundamental da adolescência, enfim: a "ecologia da ternura", isto é, o reconhecimento de
responsabilidades e "cuidados neotênicos". O resultado dessa "opção" pode ser resumido
nas seguintes frases:
O homem é, ao nivel corporal, um feto de primata que alcançou a maturidade
sexual (Bolk)
Os etólogos mostraram que os seguintes são alguns traços da neotenia humana: o
homem é um ser aberto ao mundo, um especiaista da não-especialização, um ser
211
lúdico que aprende por curiosidade ativa, (...) um ser da álea, do acaso, do risco,
do perigo e da crise, em aprendizagem permanente a demandar que se desenvolva
uma flexibilidade e uma plasticidade comportamentais.
...os animais não-especialistas como os seres humanos desenvolveram um antídoto
contra as opiniões pré-concebidas da aprendizagem por imitação: a curiosidade.
Trata-se de mais uma faceta de nossa evolução neotênica207
.
2. A neotenia foi uma superação de limites evolutivos
Parece inegável que o aumento gradual do cérebro dos primatas, ao longo de
milhões de anos. levou invitavelmente a um impasse relacionado também com a facilitação
do parto. Limitados pela forma da pélvis feminina, os humanos evoluímos de um modo que
permitisse a continuação do crescimento do cérebro após o nascimento. Já que o cérebro
cumpre um papel fundamental no desenvolvimento do resto do corpo, é compreensível que
também se tenha chegado evolutivamente a um adiamento, para a fase após o nascimento,
de boa parte de nossas pré-disposições biofísicas, de nossas capacidades relacionais e da
própria percepção e sensoriamento do entorno através dos sentidos.
Enquanto muitos animais manifestam a capacidade perceptiva de seus sentidos num
tempo extremamente curto após o nascimento, os sentidos da criança precisam de longos
períodos adaptativos para aprenderem o seu próprio potencial, por exemplo, o olhar da
criança humana precisa de vários meses para enfocar com maior nitidez as pessoas e os
objetos.
Uma das hipóteses mais fantásticas é a de que a construção das formas percebidas
pela criança não acontece, como no adulto, a partir de parâmetros configurativos das
formas-limite, ou seja, dos contornos externos; ela acontece - diz a hipótese - a partir da
cosntrução perceptiva da boca, do olhar e do mamilo da mãe, num processo complexo de
sensações agradáveis de atendimento de expectativas da corporeidade da criança.
Refletindo sobre detalhes desse tipo, a gente se dá conta de quão equivocados estão
aqueles que se imaginam o relacionamento humano como comunicação mental de
propósitos conscientes e lingüisticamente expressados numa espécie de ponte transmissiva
entre um pólo emissor e um pólo receptor.
A construção do espaço e das temporalidades é igualmente um processo lento. Os
nexos causais dos acontecimentos são construídos pela criança mediante uma lenta e
complexa rede de relacionamentos, na qual os fatores propícios ou impeditivos podem ter
conseqüências determinantes.
Outro exemplo: parece que o sorriso da criança nasce, num primeiro momento,
como rictus facial e manifestação orgânica relacionada com o bem-estar derivado da
sensação de satisfação por ter recebido alimento. Ao ser percebido pelos pais e
circunstantes como expressão de satisfação, estes o interpretam espontaneamente como elo
207
Cit, de L. BOLK, apud MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. Rio de Janeiro. Zahar, 1975, p. 89 ( ver aí
todo o cap. sobre "cereblralização" e "juvenilização". A segunda frase é de PAULA CARVALHO, J.C.de. A
hermenêutica da ética de "photos" e da antropolítica da "neotenia humana". Revista Reflexão. Campinas,
no.70, p.106-117, janeiro/abril/1998, auto-citação (resumida) de Id., Antropologia das organizações e
educação: um ensaio holonômico.RJ: Imago, 1990). A terceira frase é de MORRIS, D. O macaco nú. São
Paulo: Ed. Edibolso. 1975..
212
comunicativo. Na própria criança, porém, o sorriso é construído lentamente como forma de
comunicação imbuída de esperança e alegria. Em outras palavras, o sorriso da criança é
uma construção tipicamente inscrita no desenvolvimento neotênico da fase inicial da vida.
Sua riqueza expressiva nos deveria servir de base para inúmeras reflexões acerca do papel
instituinte do relacionamento lúdico e alegre na conformação peculiar da identidade de cada
ser humano.
Em outras palavras, as carências peculiares desse "prematuro" levaram à
necessidade da criação de prolongamento do útero, enquanto contexto de acolhida e amparo
após o nascimento...Esse contexto sócio-generativo tornou-se a base para a preservação dos
elementos de juvenilização em vários sentidos do termo: no sentido estritamente biofísico e
- aspecto que jamais se poderá exagerar - no sentido relacional humano. Uma teoria da
ludicidade, enquanto dimensão essencial da espécie humana, pode encontrar apoio
fundamental na descoberta da Neotenia Humana.
Como se pode ver o fenômeno da neotenia tem ressonâncias muito mais amplas do
que aquilo que é captado por biólogos que se limitam a um ou outro elemento parcial da
neotenia, por exemplo, à retenção de características de imaturidade para além do
nascimento, já que a criança nasce prematuramente, e seu cérebro permanece nessa
condição por muito tempo por exigência das próprias condições da gestação e do parto.
Sem o fenômeno evolutivo chamado neotenia, a nossa espécie jamais teria evoluído
para seu complexíssimo potencial cerebral e lingüístico-cultural. Fica evidente que a
Neotenia Humana tem, como implicação básica, o "útero continuado" da ecologia cognitiva
e comunicativa, que esse ser prematuro carece para desenvolver-se. O fenômeno da
neotenia deve, portanto, ser compreendido como a base antropológica mais evidente da
exigência de um contexto solidário para a saúde física e psicológica dos seres humanos.
A neotenia não é uma teoria sem aspectos ainda não devidamente explicados. Por
exemplo, como entender a retenção de formas juvenis não apenas na fase inicial da vida
humana, dadas as condições peculiares do parto, mas ao longo da vida inteira? E ainda:
como pensar conjuntamente a incrível aceleração da capacidade perceptiva do ser humano
nos seus primeiros anos de vida com a persistência - quando não destruída pelo entorno -
de uma juvenilidade lúdica e uma capacidade adaptativa neotênica, isto é, incrivelmente
aberta à complexidade e como que exigindo uma constante superação de explicações
obsessionadas com a causalidade meramente linear? O desafio pode ser resumido em dois
pontos: neotenia humana e teia complexa da vida relacional dos seres humanos208
.
3. O papel da mulher na Neotenia Humana
No contexto deste livro, o tema da Neotenia Humana é evocado por três motivos
Primeiro, para recordar que a espécie humana já conseguiu realizar uma vez, na fase
evolutiva da Hominização, uma fantástica ultrapassagem de limites, que leva o nome de
208
Além da longa análise de Morin (loc. cit.), o tema "neotenia" aparece em muitos outros autores: Stephen J.
GOULD disponibiliza, num site da Internet, uma extensa análise bibliográfica, com centenas de autores, que
tratam do assunto cf. Library of Excerpts [www.neoteny.org/a/stephenjgould.html]. Cf. tamném Fritjof
CAPRA (A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 204s.), Stephen Jay Gould (O Sorrisoo flamingo, A falsa
medida do Homem). Ashley Montagu, Tocar, o significado humano da pele. SP:Summus Editorial, 1988 e
outros livros de Montagu; DEAG, J. M. O comportamento social dos animais. SP: Edusp/EPU,1981;
THEVOZ, Michel. The Painted Body. New York: Rizzoli International Publications Inc.. 1984; JOHNSON,
D.R. Retardation and neotony in human evolution - Disponível na Internet, junko/2000.
213
neotenia.
Segundo, para enfatizar que novamente nos defrontamos com desafios-limites e que,
para encarar a virada civilizatória da atualidade, poderíamos inspirar-nos em algumas
lições já uma vez aprendidas por nossa espécie, em contextos evidentemente bem
diferentes dos de hoje
Terceiro, para destacar a urgência de retomarmos, hoje, sobretudo, três "re-atualizações neotônicas": 1. A "rejuvenilização", lembrando que a maior rejuvenilização foi, e há de
ser novamente, a do nosso cérebro/mente; leia-se: o papel dos jovens desta e das
próximas gerações deve ser uma referência forte do futuro da educação. 2. O papel da
mulher, que foi decisivo na Primeira Neotenia e não o será ainda mais na "Segunda
Neotenia". 3. A complexificação neuronal neotênica e a "solidariedade neotênica" de
outrora podem servir de analogia inspiradora para a urgência do pensamento complexo
e da solidariedade, hoje e no futuro.
A neotenia oferece elementos explicativos para o crescimento exponencial da massa
cerebral nos hominídeos, o desenvolvimento surpreendentemente rápido da linguagem, o
desenvolvimento ideosincrático de diversos traços humanos incluindo, sobretudo, os da
sexualidade. Alguns sugerem uma espécie de estrutura evolutiva matrifocal (constituída
primordialmente por influências maternais e femininas) na consolidação genética da
neotenia humanam.Aliás, já na formação da célula-ovo, a mulher contribui com mais de
50% dos genes, já que o óvulo fornece todo o citoplasma celular e não só o núcleo, como o
faz, ao que parece, o espermatozóide
Em relação à neotenia, algumas feministas vem apresentando idéias sugestivas sobre
como reler evolutivamente o surgimento das características da sexualidade especificamente
humana. As visões patriarcais e masculinas da evolução sexual costumam omitir aspectos
relacionais e comunicativos da sexualidade, não redutíveis a uma visão como a de Freud e
menos ainda a uma visão de análise puramente anatomista das formas sexuais. A
persistência da sexualidade como característica comunicativa ao longo de toda a vida
humana, desde a infância até a velhice, exige uma "leitura" neotênica da evolução da
sexualidade humana, ou seja, requer que se dê atenção à juvenilização constante do
erotismo ao longo da vida inteira.
Vários outros aspectos: o papel da mulher no imprinting da ludicidade, da
curiosidade e "juvenilização" dos gestos comunicativos da espécie humana. Parece também
fora de dúvida que houve uma importante contribuição feminina na preservação ou
recuperação da neotenia nos animais domesticados. Por exemplo, os cães são lobos
neotenizados209
. A maior proximidade e peculiar influência das mulheres na domesticação
de certos animais contribuiu para acelerar e diversificar as raças e variantes
comportamentais dos animais domesticados.
Os homens saíam para caçar e talvez por isso mesmo, nem teriam sido capazes de
desenvolver as formas de tratamento carinhoso dos bichos, que as mulheres, que ficavam
mais próximas dos animais domésticos, desenvolveram normalmente no seu
relacionamento com eles. As mulheres se compadeciam dos filhotes e ajudavam a garantir a
sua sobrevivência. A domesticação dos animais se deu sempre como um ato solidário,
relacionado principalmente com a preservação da vida e a garantia de crescimento dos
filhotes. Nesse sentido, a domesticação dos bichos só foi possível mediante
comportamentos solidários e de compadecimento. Enquanto os machos se exercitavam no
209
P. ex. o documentário O enigma dos cães transmitido pelo Discovery Channel de 12/junho/2000.
214
arremesso certeiro de pedras, paus, flechas, etc., as mulhers desenviam a ternura. Cuidemos,
porém, de não imaginar cenários excessivamente idílicos. A vida sempre foi uma luta.
4, Neotenia Humana e Solidariedade
O ser humano nasce e se desenvolve como um ser carente de solidariedade. A
metáfora da neotenia serve, pois, para falar dos desafios atuais da solidariedade. A espécie
humana está precisando de uma espécie de SEGUNDA NEOTENIA, desta vez
conscientemente assumida como desafio da complexidade e da solidariedade. Nosso
problema já não é o da sobrevivência quantitativa, mas o da humanização relacional.
Em termos amplos, as carências vitais dos excluídos em geral, crianças e adultos,
não encontram acolhida solidária no mundo de hoje como um todo. A exclusão não é
apenas econômica. Trata-se de uma exclusão social, ligada à econômica, mas que a escede
em muitos aspectos. É uma exclusão da acolhida e do reconhecimento. Eles são seres que a
espécie já não precisa para se preservar enquanto espécie. Incluí-los numa acolhida
solidária, que represente a afirmação concreta de todas as vidas ameaçadas pela desatenção
e falta de reconhecimento requer o desenvolvimento urgente de uma Segunda Neotenia, à
qual se vem aludindo com expressões como: cultura solidária, justiça e solidariedade, etc
As próprias linguagens emergentes, que se referem a essa exigência de uma acolhida
neotênica e solidária, já parecem estar insinuando que não haverá tempo suficiente para que
a espécie humana desenvolva geneticamente predisposições para a solidariedade requerida.
Portanto, trata-se de uma exigência que deverá ser atendida, de forma urgentíssima, por
meio de uma transformação sócio-cultural de nossos comportamentos.
Como realizar essa "Segunda Neotenia" num contexto de mercado mundializado e de
extremas resistências à retomada de projetos de economia social de mercado, quando esta
foi testada com êxito somente por alguns próprios países europeus e por cima ainda, de
maneira tímida e transitória?
A "Segunda Neotenia": da Hominização à Humanização
1. Nossa esperançada socialidade inicial
Nossos sonhos crescem mais sadios quando entendemos como eles se originam.
Somos animais desejantes de mundos interativos porque interativa foi a evolução da nossa
espécie. Como animais neotênicos, nosso truque foi nascer prematuros, confiantes de que o
útero materno teria continuidade lá fora. Nascer tão dependentes em tudo foi um ato de
confiança ilimitada no acolhimento necessário para terminar de nascer e poder crescer.
O nascimento teve um lado traumático porque saltamos despreparados para um
útero externo com fluxos de energia mais complexos. Daí para frente os gestos e os sons, as
verdades e mentiras das linguagens fariam parte da nossa percepção do mundo. Depois de
um começo de dependência total do carinho, nascemos para buscas próprias, com o sentir
dos sentidos e os sentidos das linguagens. Enredos vitais e enredos de aprendência se
tornbaram inseparáveis pelo resto da vida.
Cada um de nós é uma mistura diferente de abertura e fechamento a energias,
cautelas e ousadia, anseios e desconfianças. À medida que fomos crescendo, o que sobrou
da confiança inicial prosseguiu num desdobramento de curiosidades. E o desejo de confiar
215
teve que achar suas muitas veredas. Como nunca estivemos sozinhos, nos fomos tornando
aos poucos a busca de ser aquilo que imaginamos que os outros pensam a nosso respeito.
Por puro divertimento, vamos tentar dizer isso de um jeito intelectualoso. Nossa
identidade subjetiva se constitui mediante um desejo mimético, que nos impulsiona, ao
mesmo tempo, a "negociar", com o nosso nicho vital, sonhos e ações interativas e a
competir com coisas e sonhos. Mas competir com quem ou com quê? Pois, a competir com
a visão que supomos - por alguns indícios ou signos percebidos como ingredientes da troca
recíproca de gestos e linguagens - que os outros (especialmente alguns outros
determinados: os das nossas ambiências, tangíveis ou imaginárias) tenham do mundo em
que convivemos, de nós e deles mesmos.
No fundo, se trata de um entrejogo de construções (simulações) de mundos do
sentido ou em processo de construção, mas que sempre ainda se podem "renegociar" e
descontruir. Um certa desconstrução criativa - o economista Schumpeter falou de
"destruição criativa" - faz parte do nosso jeito humano de criar mundos, que sonhamos
como acolhedores. As dinâmicas identitárias subjetivas estão constituídas por um entrejogo
mimético competitivo de constructos de mundos com seus respectivos constructos de
habitantes desses mundos. A competência de sonhar se tornou inseparável do sonho de
competir.
Mas é plenamente legítimo e até aconselhável conferir os palpites de variadas
teorias, e não de uma só, acerca dessa complexa tramação de identidades, cuja "realidade" é
construída em planos tão impressionantemente abstratos, embora essas abstrações mexam
concretamente com nossos hormônios e neurônios.
2. Nossa difícil transformação em animais sociais
Educação vem de educere, educare, em latim. O termo grego correspondente é
êxodo, de ek-hodos (caminho para fora). A educação implica um "sair de si". O fundamento
profundo do sair-de (êxodo) é, por uma parte, a capacidade de estranhamento do seu
próprio eu (atenção consciente em/para si mesmo) e, por outro lado, a capacidade para a
alteridade, para pensar o/a outro/a em sua radicalidade, enquanto algo mais que um
semelhante ou um "igual", Ele/ela é um ser radicalmente diferente.
Como desenvolver nossa sensibilidade para o/a outro/a? Não se trata de elaborar
uma teoria abstrata, mas de uma espécie de "exercício espiritual". É claro que há muitos
caminhos possíveis para desenvolver semelhante sensibilidade. Mas um deles certamente é
o que se refere à capacidade de prestar conscientemente atenção na riqueza experimental -
positiva ou negativa, esperançadora ou até, por vezes, repelente. Saber prestar atenção no/a
outro/a implica, antes de mais nada, tomar consciência de que nós mesmos estamos
precisando, a cada momento, desse carinho ao qual estamos aludindo com a palavra
atenção.
Nunca chegaremos a ser atentos aos demais se não tivermos capacidade de estar
atentos a nós mesmos. Só que é preciso entender que nosso desejo/necessidade de atenção
já é, no que tem de mais vital, uma abertura para conexões com a natureza e a vida.
Desejamos e esperamos, no mais fundo do nosso ser enquanto sistema vivo e aprendente,
que sejamos tomados em conta e que aquilo e aqueles que nos envolvem - que constituem
nosso nicho vital - saibam como cuidar da preservação e da alegria de viver em cada um de
nós.
216
Sabemos muito bem que isso não acontece "naturalmente" em muitos contextos.
Esses contextos estão prejudicados enquanto nichos vitais propícios para aquilo que lateja
dentro de cada um de nós sob a forma de desejo de atenção e cuidado210
.
Estar à espera de que se nos envolva com cuidado é uma dimensão aparentemente
ingênua e ilusória dentro de um mundo cheio de agressividade e indiferença. No entanto,
todos nós sabemos que qualquer ser vivo, pelo menos na fase inicial da sua vida, grita para
dentro da sua ecologia essa sua esperança de ser respeitado em sua dinâmica vital. Convém
meditar seriamente sobre as razões que explicam a tragédia, lamentavelmente tão freqüente,
do arruinamento emocional de muitas pessoas nos seus níveis de expectativas e na sua
capacidade desejante.
3. Sensibilidade social e esperança mínima Só saberás quem és se tiveres sido amado
Pierre Lévi / Darcia Labrosse211
Feitas essas considerações, desde a perspectiva do ser vivo individual em direção a
seu meio ambiente e aos demais seres vivos, podemos agora perguntar-nos mais claramente
até que ponto nem sequer se trata de uma expectativa unilateral. A característica talvez
mais fascinante dessa expectativa de cada ser vivo consiste na dimensão de diálogo, de
interpelação e contato, de abertura e conectividade que lhe é inerente e que caracteriza, na
sua dinâmica mais profunda, isso que chamamos sede de acolhida.
Pelo fato de ser uma sede de algo que o indivíduo não possui em si, nem pode
preencher por si mesmo, não se trata de uma simples busca de resposta a um
desejo/necessidade do indivíduo, mas de uma demanda de envolvimento em reciprocidades.
A ausência de percepção disso, ou a aberta negação disso constitui a grande lacuna e
distorção (ou como se queira chamar) que vicia todas as teorias do desejo obsessionadas
pela dimensão competitiva do entrejogo dos desejos entre os seres humanos (desde Adam
Smith, passando por Hegel, Freud e até Lacan, inclusive). É preciso apontar, positiva e
afirmativamente, e não apenas sob o aspecto concorrencial, um aspecto constitutivo
fundamental da própria pulsão que move as interfaces desejantes das pessoas em direção a
uma reciprocidade na busca de uma construção historicamente plausível do sentido.
Trata-se de uma dinâmica desejante cuja referência final é, em última instância,
convergente e não-confrontativa ou competitiva, precisamente porque não apenas aceita a
inclusão do/a outro/a nessa parceria de busca do sentido, mas está potencialmente aberta a
admitir que os campos do sentido possam - ou até devam - ser articulados a partir do
"sentido impedido" nas capacidades desejantes que foram historicamente anuladas, porque
vitimadas enquanto capacidades desejantes.
A pobreza e a miséria humana mais radical talvez consista na anulação da
capacidade de afirmar a própria vida, Não é fácil falar disso com as velhas linguagens
lineares (evidentemente insuficientes), mas tentemos. No cerne mais radical da dinâmica
desejante, que se ativa em direção à construção de mundos do sentido compartidos, já não
se trata de uma simples flecha que parte do indivíduo em direção a seu entorno. A própria
210
Embora Leonardo BOFF não mencione explicitamente a neotenia, salvo engano, ele entendeu
profundamente este assunto. Cf. BOFF, Saber Cuidar; A águia e a galinha; O despertar da águia (todos da
Ed. Vozes) - livros que, no seu estilo intencionalmente simples, mexem com temas humanos e sociais de
grande alcance. 211
LÉVY, P./ LABROSSE, D. O fogo libeador, p. 12.
217
comparação com a flecha apenas nos serve aqui para mostrar que não é possível entender
os desejos/necessidades do ser humano como demandas unidirecionais.A própria
capacidade desejante inclui em si o envolvimento de atendimentos extra-individuais na
constituição da capacidade desejante.
A capacidade de atenção aos demais implica, portanto, uma consideração
constitutiva de nossa própria expectativa de acolhida, enquanto busca e expectativa
(frustrável, é claro) de respostas advindas da nossa ecologia vital. É nesse conjunto
interrelacional que se devem situar os dois aspectos do "saber cuidar", isto é a esperança de
que se cuide de nós, que, por sua vez, fundamenta nossa sensibilidade possível para cuidar
dos/as outros/as e da natureza.
Seres vivos nos quais ficou mutilada ou praticamente extinta a expectativa de que
haja uma envoltura de acolhida existencial para eles, dificilmente poderão desenvolver uma
disponibilidade básica constante para a sensibilidade solidária.
A dimensão profunda dos nossos desejos
Todo processo vivo inclui tendencialmente sua continuidade e seu desenvolvimento.
Isso parece fenomenologicamente inegável. Mas sabemos que essa expectativa de vida
continuada e mais vida não sempre se cumpre e, do ponto de vista da evolução,
provavelmente nem sempre poderia cumprir-se. A perecibilidade da vida iniciada faz parte
da própria evolução da vida.
Pode parecer uma reflexão excessivamente fria, mas é de perguntar-se por que a
vida humana deveria distinguir-se do resto dos seres vivos por um conjunto de direitos e
garantias vitais mais asseguradas ou reclamáveis com um direito naior do que o simples
"direito de querer sobreviver", impresso no próprio comportamento orgânico-vital de
qualquer ser vivo. Existe um "direito ao amor" ou já estamos entrado, com tal "direito" num
mundo onde as leis da autopoiése da vida são apenas uma pré-condição, mas não uma
garantia suficiente? Entramos no campo da conversão a algo mais?
Se estivermos dispostos a agüentar humildemente essa "igualdade biológica" com
todos os demais seres vivos, não há por que adjudicar ao ser vivo humano qualquer
privilégio especial, no plano dos direitos a garantias de sobrevivência e expansão da
vitalidade. Esse pensamento, que pode parecer brutal, só o é desde o ponto de vista de um
antropocentrismo já consagrado por muitos inventos simbólicos e míticos da nossa espécie.
Depois se tomar "consciência" de nossa filiação à Mãe-Terra ou Mãe Natureza,
fomos postulando, aos poucos, direitos especiais frente aos demais seres vivos. Começamos
a traçar fronteiras de distinção e referências demarcatórias da nossa "superioridade" em
relação ao resto do reino animal. Chegamos ao ponto de achar-nos tão diferentes dos
demais seres vivos que, sem haver-nos dado conta, de repente estávamos sozinhos.
Terrivelmente sozinhos entre nós mesmos, os do ramo filogenético homo sapiens sapiens.
E demorou muito - até ontem, diríamos - até que descobréssemos que também somos
homo demens e homo complexus (para usar expressões de Edgar Morin).
Fomos tomando distância - até hoje, efetivamente sabemos muito pouco sobre tudo
isso - do homo afarensis, o bicho humano sem fala. Como sem fala? Não gesticulava, nem
emitia sons, nem se comunicava com seus pares? Nós o inventamos, para poder inventar-
nos como seres-com-linguagem. Desde que nos descobrimos como falantes e gesticulantes,
proclamamos petulantemente a nossa superioridade. Superioridade em quê, para falar a
218
verdade? Em sensibilidade, em carinho, em potencial de ternura e fraternura? Isso não
parece nada evidente, nos poucos milênios de memória conservada da nossa história.
Mas uma coisa é certa: fomos excelentes inventores de deuses, planos divinos e
mitos os mais variados acerca da nossa "eleição" como seres vivos "muito especiais". E
quem ousaria pôr em dúvida essa nossa "superioridade" em multiplicar, enfeitar e
racionalizar nossas teorias acerca de nós mesmos? Chegamos a colocar quase todos os
nossos inventos na boca de deuses. Nós inventamos até o direito de atribuir a nossa
destrutividade a instâncias superiores, às quais obedecíamos devotamente.
As razões para brigar entre nós e maltratar-nos uns aos outros foram adquirindo o
tamanho de fantásticos sistemas explicativos de nossos auto-enganos. Esses sistemas de
dissimulação foram muitas vezes maiores e mais fascinantes do que nossos sonhos acerca
da beleza, da ternura e do amor. Mas todas essas coisas sempre estiveram muito misturadas
em nossos mundos do sentido.
Mundos do sentido? Mas por que chamá-los assim? Por acaso os demais seres vivos
inventaram igual solenidade para suas fantásticas inclinações para gostar de sons, cantos,
ritos, galanteios, anseios, desistências, acomodações e surpreendentes retomadas da
vitalidade, que parecia extinguir-se em momentos? Pelo visto, nós estamos muito pouco
preparados para esse tipo de atrevidas comparações. Dá-nos vertigem pensar nos golpes
que o antropocentrismo já recebeu nos últimos breves 500 anos.
Deixemos a outras instâncias e momentos de reflexão o mergulho mais corajoso na
teoria evolucionária do aprender, do conhecimento e dos comportamentos da nossa espécie.
Uma coisa parece fora de discussão: a mania da busca do sentido incorporou-se em nossos
hormônios e neurônios. Não nos largará mais e nós tampouco temos a menor vontade de
largá-la. Sigamos, pois, em frente. Somos, ao que tudo indica, animais doentes da
necessidade do sentido pelo resto da nossa história futura. Essa história só se tornará
previsível na medida em que o desdobramento da nossa busca do sentido se tornar, de
doença que parece ser (ao olharmos para trás), uma promessa de um mundo saudável (ao
olharmos para a frente).
Talvez convenha distinguir -ao menos para adquirir uma visão mais abrangente do
que significa sensibilidade social - os aspectos dessa nusca do sentido que se referem a
hábitos que fomos adquirindo, dos demais aspectos dependerão, em cada momento, de
nossa atenção consciente. Essa distinção serve apenas para visualizar melhor os diversos
níveis nos quais devemos exercitar a nossa sensibilidade social. Não estamos sugerindo, de
forma alguma, uma espécie de separação entre comportamentos de socialização já
adquiridos e opções inovadoras em cada momento, sob um suposto comando central da
consciência. As coisas sempre se dão juntas e seria equivocado imaginar-se uma
consciência aguda da abertura aos demais como fenômeno separável dos hábitos
adquiridos.
Aquilo que chamamos atitude consciente em geral é apenas uma discreta "melhoria
possível" no interior do conjunto de nossos hábitos de socialização e relacionamento já
adquiridos. Em outras palavras, é difícil imaginar-se ou querer comprovar uma ativação de
níveis conscientes de sensibilidade social sem tomar em conta o potencial de sensibilidade
já adquirido em nossos comportamentos anteriores ao longo de nossa vida.
Os parâmetros da nossa memória não estão limitados ao neo-córtex. Isto é, a parte
evolutivamente mais recente do nosso cérebro triádico. A memória está distribuída pelas
diversas regiões do nosso cérebro e até em nossa corporeidade inteira... As pernas sabem
como andar mesmo quando a cabeça está distraída...
219
Portanto, educação para a ensibilidade social significa, ao mesmo tempo, aquisição
de hábitos comportamentais pró-sociais e desenvolvimento da capacidade de prestar
atenção na alteridade que nos interpela desde nossos contextos (nossos nichos vitais) e até,
como vimos, desde o próprio interior de nossas vibrações neuronais.
Talvez precisemos ainda de palavras novas e conceitos novos para expressar -
holograficamente - como é que acontecem nossas "conversões ao sentido" dentro de
processos de construção do sentido. Não podemos esquecer que essa imersão nunca é uma
imersão em águas cristalinas, posto que - em meio à construção de mundos do sentido -
sobrevivem também - e quanto! - os mundos do sem-sentido.
Mas é fundamental que reconheçamos, em nós e nos outros, a nossa fome comum
do sentido e que e lutemos para que ela seja reconheciada como um desejo que virou
necessidade.
Vivenciar a esperança
Já não haverá mais redentores, nem messianismos plausíveis.
A esperança será obra nossa, nosso trabalho principal, nosso mais energizante lazer.
A tarefa, doravante é nossa. Nesta vida, neste mundo.
Amaremos o presente,
que não é a incidência imperial da eternidade em nossos instantes fugazes.
É tão somente o presente-finitude,
feito para ser aceito, já que a vida é um presente.
O presente-duração (dur-ação), intensa, processual, embora finita e transitória.
É nossa existencial inserção no limiar do caos e da ordem, onde a vida acontece
como revolvência, en-dobramento e desdobramento
(ex-plicação, im-plicação, com-plicação)
dos mais estranhos atratores do sentido, num mundo evolutivo que não pára.
Dele somos parte e participantes
e sua saúde e suas patologias agora dependem também de nós.
Sobretudo de nós, neste planeta por nós colonizado.
Após tantas violências e equívocos, já é hora de despertar para a esperança ainda possível.
Vamos torná-la elástica e maior
construindo valores-pão (bens que nos sirvam, serviços que nos avivem)
valores-brinquedo, brinquedos para comer,
brinquedos para pensar (filmes, livros, canções, danças e esporte).
valores-poesia, valores-ternura, valores-paixão, valores-loucura, valores-fruição.
Pelo simples fato de estarmos vivos,
com vida que se quer expandir em mais vida, vida em abundância e alegria de viver,
já lateja em nós o desejo da imersão
na aventura de construir campos do sentido,
mundos do desejo-valor e do valor-desejo: cenários da esperança.
Cenários imbuídos de todos os mistérios:
os gozosos, os dolorosos e os gloriosos.
De mistérios quem mais entende são certamente as mulheres,
nossas supremas sacerdotisas.
Por isso precisamos tanto que elas nos olhem sempre de novo,
com carinho e misericórdia infinita.
220
Porque se elas não nos olharem, como chegaremos a perceber-nos a nós mesmos
e encantar-nos por elas, pela vida e pelo mundo?
Como aprenderemos a "saber cuidar"
dos sonhos frágeis dos nossos filhos,
que hão de ser nossos melhores sonhos
e que farão amanhecer um futuro solidário?
Queremos aprender a celebrar juntos o estado de graça de acreditar
que nossas energias saberão entrelaçar-se, na dor e na alegria,
para que siga em seu fluxo o rio do mais-sentido.
O rio que os nossos sentidos
- os muitos sentidos da corporeidade viva inteira,
corpo/mente e irradiação de desejos -
já sabem que nunca é o mesmo rio,
mas que é o rio das nossas esperanças
com as quais fecundaremos o futuro.
221
Uma breve bibliografia sobre SOLIDARIEDADE
Obs: Inclui apenas textos explicitamente relacionados com solidariedade. Para as outras referências
bibliográficas, consultar as notas de rodapé.
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224
Sobre os co-autores
Hugo Assmann - Brasileiro. Filósofo, sociólogo e teólogo. Durante os 12 anos que se viu
obrigado a viver fora do país, foi professor visitante na Universidade de Münster, na
Alemanha, e lecionou em universidades do Uriguai, do Chile e da Costa Rica. Desde 1981
é professor no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UNIMEP. Autor
de mais de 20 livros, alguns traduzidos para vários idiomas. Entre os mais recentes:
Metáforas novas para reencantar a educação (Ed. Unimep) e Reencantar a educação -
rumo à sociedade aprendente (Vozes). E-mail: [email protected]
Jung Mo Sung - Coreano de nascimento, brasileiro naturalizado. Estudou Administração
de Empresas. Formado em Filosofia e Teologia, com doutorado em Ciências da Religião.
Leciona atualmente no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP e
na UMESP. É também pesquisador do IFAN-USF. Autor de diversos livros, alguns
traduzidos para vários idiomas, entre eles Desejo, mercado e religião (Vozes) e Teologia e
Economia (Vozes). E-mail: [email protected]