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José Severino Croatto

HERMENÊUTICA BÍBLICA

Para uma teoria da leitura como produção de significado

Tradução de Haroldo Reimer

Digitalizado por Eclesiano

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SUMÁRIO Prólogo .................................................................................................................................................................................. 5

Introdução ...................................................................................................................................................................... 6

Hermenêutica Filosófica: Três Grandes Fases ................................................................................................. 6

1. A Era Moderna ................................................................................................................................................ 7

2. A Idade Média ................................................................................................................................................. 7

3. Filão de Alexandria ....................................................................................................................................... 8

Cinco Abordagens De Leitura Da Bíblia .............................................................................................................. 8

1. Realidade Presente como "texto" primário ........................................................................................ 8

2. Concordismo ................................................................................................................................................... 9

3. Métodos Histórico-Críticos .................................................................................................................... 10

4. Análise Estrutural ...................................................................................................................................... 11

5. A Hermenêutica .......................................................................................................................................... 11

I - DA SEMIÓTICA À HERMENÊUTICA .................................................................................................................. 13

1. A linguagem como sistema e como acontecimento .......................................................................... 13

2. A linguagem como texto e como escrita ................................................................................................ 14

3. A leitura como produção de sentido. O ato hermenêutico ............................................................. 17

4. Implicações da Leitura como Produção de Sentido .......................................................................... 20

a. Transformação e Ocultamento ............................................................................................................. 20

b. Dependência Textual ................................................................................................................................ 22

c. Apropriação do Sentido ........................................................................................................................... 24

d. A Função Hermenêutica da Distanciação ......................................................................................... 26

II - PRAXIS E INTERPRETAÇÃO ............................................................................................................................... 28

1. Do acontecimento ao texto .......................................................................................................................... 28

1.1. Acontecimentos Fundantes ............................................................................................................... 29

1.2. Cânon .......................................................................................................................................................... 32

2. O "adiante" do texto ....................................................................................................................................... 36

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3. A intratextualidade da Bíblia ...................................................................................................................... 38

3.1. Novo sentido em Novas Totalizações ............................................................................................ 38

3.2. A Bíblia: Um Texto Único .................................................................................................................... 40

4. A pertença e pertinência da Bíblia ........................................................................................................... 42

III - EXEGESE E EISEGESE .......................................................................................................................................... 47

1. A releitura da Bíblia é parte de sua própria mensagem .................................................................. 47

2. Atualização da Bíblia: iluminação da realidade? ................................................................................ 48

3. Revelação terminada ou aberta? .............................................................................................................. 49

4. A linguagem da fé ............................................................................................................................................ 53

5. Recontextualização do querigma bíblico .............................................................................................. 54

6. Sobre algumas objeções ............................................................................................................................... 55

Conclusão ..................................................................................................................................................................... 56

Vocabulário ...................................................................................................................................................................... 57

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PRÓLOGO

O ponto de partida deste ensaio é a convicção de a Bíblia não ser um depósito fechado

que já "disse" tudo. É um texto que "diz"; no presente, mas que fala como texto; não como uma

palavra difusa e existencial que somente tem o sentido genérico de provocar uma decisão

minha. A tensão entre ser um texto fixado em um horizonte cultural que já não é o nosso, e ser

uma palavra viva que pode mover a história, somente se resolve através de uma releitura

frutífera. Isto equivale a enunciar o problema da hermenêutica bíblica.

Em uma pequena obra anterior,1 fizemos um exercício de hermenêutica sobre o tema do

êxodo. Ante sua boa aceitação, sobretudo na prática teológica dos países oprimidos, decidimos

ampliar e aprofundar muitos aspectos, invertendo, contudo, a ordem: se ali fazíamos uma

prática hermenêutica com poucos elementos teóricos, aqui queremos expor muito mais uma

teoria hermenêutica com exemplos tomados de muitos temas, não de apenas um, como era o do

êxodo. Se naquela ocasião tomamos um só tema, fizemo-lo precisamente para mostrar como,

por meio de reinterpretação, acontece o desenvolvimento do sentido de um acontecimento

convertido em matriz querigmática. Este é um aspecto do fenômeno hermenêutico que convém

destacar. Se agora vamos ocupar-nos com diversos temas bíblicos, é para mostrar que aquele

fenômeno é ubíquo e que expressa um elemento essencial da experiência de fé de Israel e da

primeira comunidade cristã.

Não vamos inventar nada. A hermenêutica bíblica é simplesmente um método de leitura

da Bíblia que necessita ser explicitado e organizado. Necessita ser explicitado, porque sempre se

o tem praticado, porém muitas vezes sem reconhecê-lo. Veremos que não existe leitura que não

seja hermenêutica. Sabê-lo já é um grande passo.

Esse método necessita ser organizado para que se saiba como usá-lo e dar-lhe le-

gitimidade. É um fato que, quando mais renovadora a vida cristã, conseqüentemente a teologia,

tanto mais implicitamente se exercita a hermenêutica. É também um fato que esta renovação

sofre resistência por uma prática e uma teologia tradicionais. Isto é muito mais visível nos

contextos de dominação cultural, econômica, política e religiosa. Com isso já se levanta uma

suspeita sobre quem é o verdadeiro destinatário da mensagem libertadora que a Bíblia propõe.

Por isso há necessidade e urgência de possuir um instrumental teórico que nos permita

exercitar uma releitura da Bíblia que nos possibilite explicitar a sua "reserva de sentido".

Para muitos cristãos a Bíblia é antes um problema do que uma mensagem clara. Por sua

origem distante de nosso tempo e espaço, com idéias antigas e muitas vezes díspares em seu

longo trajeto literário, com um texto final freqüentemente difícil, o que contradiz a nitidez

esperada de uma "mensagem", resulta pouco atraente na imediatez da práxis. Vale o que diz? É

necessário que "diga" algo? Se é palavra de Deus, de que Deus trata? Do nosso ou dos hebreus?

Surge uma infinidade de perguntas.

1 Liberación y libertad. Pautas hermenéuticas (Mundo Nuevo, Buenos Aires 1973; CEP, Lima 1978); em inglês: Exodus. A

Hermeneutics of freedom (Orbis Book, N. York 1981); em português: Êxodo. Uma Hermenêutica da Liberdade (Ed. Paulinas, São Paulo 1981) 197 p.

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INTRODUÇÃO

"Hermenêutica" é o correlato do termo "interpretação", mais comum. Hermeneuo, em

grego, é o equivalente de "interpretar". Em si, é a mesma realidade em dois vocábulos

diferentes, grego o primeiro, latino o segundo. Porém, como este tornou-se um termo comum e,

com isso, perdeu em precisão, prefere-se o termo "hermenêutica" para indicar sobretudo três

aspectos que devem ser explicitados.

Antes de tudo, o lugar privilegiado da operação hermenêutica é a interpretação dos

textos. Mais adiante veremos que outras coisas implica esta afirmação. Em segundo lugar,

supõe-se que o intérprete condiciona sua leitura por uma espécie de pré-compreensão, que

surge do seu próprio contexto vital. Em terceiro lugar, o ato hermenêutico faz crescer o sentido

do texto que se interpreta. Isto nem sempre se acha bem definido, mas será central no

desenvolvimento do nosso trabalho.

Cremos que toda interpretação, tanto de textos como de acontecimentos, inclui estes

aspectos. Por conseguinte, nesta exposição não nos preocuparemos em distinguir os dois

termos, nem os restringiremos aos textos. Sem com isso confundir as coisas, veremos que a

interpretação dos textos supõe outro processo, a interpretação de determinadas práticas ou

acontecimentos, e que a própria constituição dos textos se origina em uma experiência que é

interpretada. Nisto vamos além da limitação que lhe dá, por exemplo, P. Ricoeur ao definir a

hermenêutica como "a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação

dos textos"2 Texto e acontecimento, ou práxis, já se condicionam mutuamente desde o ponto de

vista hermenêutico. Isto se deve destacar justamente no caso da leitura da Bíblia que se faz a

partir de uma prática da fé, e de uma Bíblia que remete para as grandes ações salvíficas de Deus.

Com esta única frase assinalamos que a leitura dos textos bíblicos está circunscrita por dois

momentos existenciais, ou seja, por dois pólos históricos. O texto está no meio. Isto já é uma

maneira de valorizar a "centralidade" da Bíblia como texto, porém como texto alimentado em

duas "vertentes" da vida.

Não existe uma hermenêutica bíblica diferente de outra filosófica, sociológica, literária e

outras. Há apenas uma hermenêutica geral, da qual existem muitas "expressões regionais."3 O

método e o fenômeno coincidem em todos os casos. E verdade, contudo, que a hermenêutica

bíblica tem uma característica talvez inédita por assumir textos de uma longa trajetória de

criação e reelaboração, originados em um povo com um itinerário igualmente longo, unificado

por uma concepção linear e teleológica da história que exige um grande trabalho interpretativo.

Esta "fecundidade hermenêutica" será bem assinalada no decorrer deste estudo.

HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: TRÊS GRANDES FASES

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Aqui não é o lugar para fazer uma história da hermenêutica geral, nem da hermenêutica

bíblica em particular. Convém somente assinalar que a tematização da hermenêutica conheceu

três momentos relevantes, que registramos em ordem temporal inversa com o fim de mostrar

que aquilo que parece novo, de fato não o é tanto assim.

1. A ERA MODERNA

Em um contexto filosófico, o problema se coloca a partir de Schleiermacher (ca. 1800) e

Dilthey (ca. 1900), passando por Heidegger, depois por Gadamer e Ricoeur, com derivações para

o campo teológico (Fuchs, Ebeling, Bultmann e a expansão pós-bultmaniana). Nos dois

primeiros é interessante constatar sua preocupação com o que está atrás do texto (a história, o

autor), por aquilo e aquele que se expressa em um texto, não por aquilo que este diz.

Heidegger passa da epistemologia à ontologia. O "ser" que interroga é um ser-em (no

mundo), situado, o qual se pré-compreende no ato de interpretar. Há um "estar-em" o mundo4

que condiciona a interpretação. Isto aponta contra a pretensão do sujeito de ser medida da

objetividade, uma vez que à sua essência pertence o ser "habitante" deste mundo, o qual o

circunscreve. Heidegger empreende o caminho até os fundamentos, porém não retorna à

epistemologia.

Gadamer destaca que o homem está dentro de uma tradição, e que o compreender é o

resultado finito daquela tradição como forma de pertinência à história. A distância histórica

entre o texto e o intérprete exige uma "fusão de horizontes", que é possível porque se está no

interior da história.

A contribuição de Ricoeur, que por sua vez relê Heidegger, consiste em haver um desvio

pela lingüística para chegar a uma teoria frutífera da hermenêutica. As derivações para o campo

teológico, acima apontadas, são anteriores a Ricoeur e estão impregnadas de uma

supervalorização da Palavra bíblica como "acontecimento" presente (mais adiante falaremos,

invertendo os termos, de um "acontecimento feito palavra."

Estes pontos da reflexão sobre a hermenêutica contribuíram notavelmente para uma

síntese filosófica que deixa suas pegadas na teologia. No entanto, não constituem novidade

absoluta.

2. A IDADE MÉDIA

2 P. Ricoeur "La tarea de la hermenéutica", em: Vários, Exégesis. Problemas de método y ejercicios de lectura (La Aurora,

Buenos Aires 1978) 219 - 243 (cf. p. 219). 3 P. Ricoeur o evidencia, Cf. art. cit., p. 220; Idem, "Hermenéutica filosófica y hermenéutica bíblica", ib., 263-Z77 (cf. p. 263s).

4 Se o alemão não conhece a distinção lexical entre "ser" e "estar", o português o conhece. Por então, traduzir o Dasein com o

insuportável "ser aí" quando pode ser traduzido por "estar' ou "estar aí"?

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Com efeito, durante a longa tradição medieval era comum a discussão teológica sobre os

sentidos da Escritura. Junto ao sentido literal, ou acima dele, situava-se um sentido espiritual

que recebia designações diversas (alegórico, místico, messiânico, cristológico, etc.). Típica foi a

disputa sobre os quatro sentidos da Bíblia: literal, alegórico (= cristológico), moral (chamado

"tropológico", ou seja, relativo aos costumes) e escatológico (denominado "anagógico", que

"conduz para"). Surgiu uma infinidade de teorias. O significativo desse fato é que o pano de

fundo é precisamente a hermenêutica: o texto do Antigo Testamento não se esgota em sua

primeira intenção, mas diz algo mais.

3. FILÃO DE ALEXANDRIA

Outra tentativa, mais antiga, de formalizar o problema hermenêutico foi a de Filão de

Alexandria no século I a. C. Isto não somente porque interpretou as tradições hebréias a partir

de um parâmetro grego (é típico o seu comentário a Gênesis, De Opificio Mundi, mas sobretudo

pelo seu esforço em compreender o problema da linguagem.5

Dissemos que estes três momentos pertencem a tantas outras tentativas de tematizar o

problema da interpretação de textos (históricos, bíblicos) ou da existência humana como tal.

Muito bem: nem sequer isto é novo. O processo hermenêutico - ainda que não tematizado - é

constitutivo de toda tradição, religiosa ou não. A Bíblia mesma não se explica sem esse processo.

Porém, é no rabinismo da época intertestamentária onde se pode detectar a tentativa de ler um

segundo sentido sob o primeiro sentido de um texto, um sentido profundo por detrás do sentido

simples das palavras (derash e peshat na terminologia aramáica da época).6 Esta questão

reaparecerá mais adiante quando falarmos do Targum e do Midrash.

Esta breve retomada histórica motiva-nos agora a entrar no tema com uma preocupação

diretamente bíblica.

CINCO ABORDAGENS DE LEITURA DA BÍBLIA

A Bíblia tem sido objeto de diferentes abordagens, todas elas objetivando explorar seu

sentido ou sua mensagem. Algumas abordagens expressam o "problema" da leitura atual da

Bíblia, outros buscam penetrar em seu conteúdo. Apontamos cinco aproximações genéricas:

1. REALIDADE PRESENTE COMO "TEXTO" PRIMÁRIO

5 Cf. KI, Otte, Das Sprachverständnis bei Philo von Alexandrien. Sprache als Mittel der Hermeneutik (Mohr, Tubinga 1968); I.

Christiansen, Die Technik der allegorischen Auslegungswissenschaft bei Philo von Alexandrien (Mohr, Tubinga 1969). 6 Veja A. Díez Macho, "Deras y exégesis del Nuevo Testamento", Sefarad 35 (1975) 37-89; Id., EI Targum. lntroducción a las

traducciones aramaicas de Ia Biblia (SCIC, Madrid 1979).

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Frente ao texto da realidade presente, entendido como o "lugar teológico" privilegiado

para descobrir o Deus que fala e interpela o homem, pode-se relegar a Bíblia a um segundo

plano, entendendo-a como um texto "desatualizado". A realidade está tão carregada de

significado que qualquer outro "significante" teológico resulta como secundário. Quando as

opções estão claras, não faz falta alguma ir à Bíblia.

Não é essa a atitude de muitos cristãos comprometidos com a luta revolucionária contra

as estruturas injustas deste sistema em que somos obrigados a viver? Que mensagem "nova"

lhes traz o Evangelho? A pergunta é sincera. Cremos, porém, que deixa entrever uma dificuldade

metodológica para sair de uma leitura tradicional da Bíblia que a tem alienado da história real

dos homens. O obstáculo é visível em alguns teólogos da libertação, que, mais do que outros,

valorizam a práxis sócio-histórica como parâmetro da reflexão teológica.

2. CONCORDISMO

Outro caminho consiste em assumir a Bíblia como ela é, buscando nela

"correspondências" entre as nossas situações e os eventos nela relatados. Quando há

coincidências, parece que Deus está falando através do "evento arquetípico."

Logo à primeira vista, esta aproximação à Bíblia se evidencia como concordista. Bem, o

concordismo (tão difundido, sobretudo nas leituras fundamentalistas do texto sagrado) é

duplamente negativo: a) Reduz a mensagem a situações que têm equivalente na experiência de

Israel ou da primeira comunidade cristã, como se Deus não soubesse falar ou revelar-se de

outra maneira. É um reducionismo teológico. b) O concordismo torna a mensagem superficial,

colocando-a ao nível de faticidade externa, confundindo o que acontece com seu sentido.

O mesmo perigo existe quando, em algumas teologias, se busca uma continuidade entre

as idéias do Antigo ou do Novo Testamento e as de uma cultura específica, por exemplo asiática,

africana ou latino-americana. O que acontece onde não se verificam tais coincidências culturais,

pontes entre a antropologia hebréia e a grega? Para os gregos, Deus seria quase irrevelável. De

imediato, descobre-se que nas tradições africanas e em algumas pré-colombianas há muitas

semelhanças com a cosmovisão hebréia. Confunde-se o querigma com seu revestimento cultural

ou sua "contextualização".

É verdade que a busca por "sintonias" entre a Bíblia e o contexto atual (cultural, mas

sobretudo sócio-histórico) pode ser um ponto de partida para explorar a validade daquela para

o homem de hoje. O que realmente é empobrecedor é o concordismo histórico e científico, que

consiste em querer confirmar a Bíblia com determinadas descobertas das ciências modernas

(por exemplo, as grandes eras geológicas e os dias da criação do mundo) ou então equiparar

fatos históricos da Bíblia e de hoje. No primeiro caso, tal confirmação não existe; em ambos se

esvazia o texto sagrado de seu conteúdo querigmático, tornando inútil qualquer tentativa

hermenêutica para explorar o sentido mais profundo do texto. E pensar que a leitura

concordista da Bíblia tem sido tão comum, inclusive rio âmbito do fazer teológico sistemático!

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0

3. MÉTODOS HISTÓRICO-CRÍTICOS

Os métodos exegéticos formulados pela moderna crítica bíblica abriram novas

perspectivas de abordar a Bíblia, na medida em que, ao redescobrirem o horizonte histórico e

cultural no qual a Bíblia se originou, possibilitam uma melhor contextualização do sentido origi-

nal de cada passagem. A exegese crítica rompeu, em primeiro lugar, com as leituras ingênuas,

"historicistas" e concordistas da Bíblia, as quais, conforme assinalamos no parágrafo anterior,

despistam o sentido real do texto. Porém, amplia sobretudo a exploração dos textos. A crítica

literária, a crítica das formas e dos gêneros, ou códigos literários, das tradições (orais e

literárias), da redação, revolucionou os estudos bíblicos nas últimas décadas, sanando muitos

defeitos da teologia cristã e, de forma indireta, gerando uma renovação em todos os campos da

atividade teológica.

Ao lado destes indiscutíveis benefícios que convertem os métodos exegéticos em

conquista inestimável, o seu uso exagerado e às vezes reducionista comporta alguns riscos. Por

um lado, mostram o "atrás" do texto atual, a arqueologia, deslocando a atenção do exegeta ou do

leitor da Bíblia para um nível pré-canônico. O Pentateuco, por exemplo, é interpretado conforme

as teologias "javista", "eloista", "deuteronomista", "sacerdotal" ou outras. Enfatiza-se o pré-texto.

A partir da crítica literária, que permite identificar os passos da formação do texto, os outros

métodos conduzem até as mais remotas origens e, através da história da redação, reconduzem

até o estado presente de uma obra ou de parte dela. Este extenso arco, que sai do texto e volta

até ele, é muito mais uma história do texto do que a exploração do seu sentido, ou pelo menos

este se identifica com o sentido das camadas anteriores, caso nos sejam acessíveis.

Não posso, sem embaraço, entender o Pentateuco à base do "javista"', etc., seja porque

não sei quanto de sua obra foi mantida na redação atual, seja porque o autor do Pentateuco fez

uma obra nova. O sentido, portanto, não está nos fragmentos usados, mas sim, na totalidade

estruturada do novo. A crítica da redação reduz em parte este defeito. Porém, ao falar de

"redator" em lugar de "autor" e ao designar-se como "história da redação", coloca mais ênfase na

formação do texto do que no próprio texto.

Por outro lado, a preocupação em fundamentar a verdade das ciências do espírito, tão

própria da consciência ocidental desde alguns séculos,7 concentrou a atenção sobre o sentido

literal, entendido como o sentido "histórico" (a própria designação de "método histórico-crítico"

já o revela). Isto é uma forma de reducionismo.8 Por isso há o interesse pela intenção do

"redator" deste ou daquele texto, o qual é contextualizado com todos os recursos possíveis. Este

é importante, porque do contrário, conforme já assinalamos, desvirtua-se o processo por buscar

o sentido na pré-redação. No caso de ênfase muito grande na intenção do autor ou do redator

como sendo este o único sentido, corre-se o risco de enclausurar no passado a mensagem da

Bíblia, entendida como "depósito" de um "sentido fechado", coincidente com o pensamento de

seu redator ou então dos pré-redatores do texto atual. Cremos que a possibilidade significativa

de um texto não termina aqui. Apesar de sua importância imprescindível, esta abordagem

evidencia-se como parcial, especialmente para a teologia dos povos oprimidos. Por aqui é

necessário passar, porém, não parar.

07

Para uma síntese do problema, cf. P. Ricoeur, "La tarea . . ." (cf. nota 2), p. 221ss. 08

B. S. Childs, "The sensus litteralis of Scripture", em: Vários, Beiträge Zur Alttestamentlichen Theologie: Festschrift. W. Zimmerli, (Vandenhoeck & Ruprecht, Gotinga 1977) p. 80-93, esp. 88ss.

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1

4. ANÁLISE ESTRUTURAL

Uma contribuição mais recente aos estudos bíblicos provém das ciências da linguagem,

em particular da lingüística e da semiótica narrativa. A literatura e a ciência da linguagem

sempre contribuíram positivamente para o conhecimento da Bíblia. O desenvolvimento recente

da análise estrutural está sendo aplicado aos textos bíblicos com bons resultados. O estudo da

chamada estrutura profunda, tanto narrativa (ações, funções) como discursiva (papéis te-

máticos, eixos de sentido) ajuda a "centrar" o sentido de um texto. A estrutura de superfície,

comumente chamada estrutura literária é, por outro lado, ainda mais fecunda pois nos dá certas

chaves de leitura que são resultantes da codificação do texto. Enriquecedor como é, esse método

é apenas um ponto de partida na busca pelo sentido. Mais adiante veremos como esse método

presta benefícios. Em si mesmo, porém, é reducionista ao fazer a abstração da "vida" do texto,

sua história, seu contexto cultural, social ou religioso.

5. A HERMENÊUTICA

O quinto caminho para ter acesso ao querigma bíblico é o da hermenêutica. Esse é o

tema do presente ensaio. Antes de tudo, porém, algumas considerações preliminares.

Anteriormente fizemos alusão ao matiz do termo confrontado com o termo "interpretação".

Mas, a noção bultmaniana de hermenêutica não é suficiente, nem o é a da "nova hermenêutica"

de Fuchs, Ebeling ou seus continuadores.9 Que na leitura da Bíblia haja uma pré-compreensão

(Voverständnis), isso é um dado comum e extremamente valioso para nós. Que seja um

"acontecimento da linguagem" (Sprachereignis) ou da "palavra" (Wortereignis) em toda sua

densidade presente, isso não a esgota nem é suficiente. Não se explicitam as condições objetivas

da Bíblia enquanto linguagem, desvaloriza-se o referencial original do texto10 e se fomenta uma

leitura individualista da Bíblia.

Para compreender a hermenêutica em toda a sua riqueza e seu valor metodológico, é

oportuno fazer um desvio pelas ciências da linguagem. Uma vez que a hermenêutica tem a ver

com a interpretação de textos - ou de acontecimentos codificados na linguagem -, é mister

situá-la sobre o fundamento da semiótica, a ciência dos signos, cuja expressão mais

compreensiva é a linguagem em seu sentido restrito. Outra coincidência reside no fato de que

tanto a hermenêutica como a semiótica preconizam a leitura como produção (e não repetição)

de sentido.

À primeira vista estamos diante de um paradoxo: A hermenêutica parece estar ligada à

diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação do sentido das palavras ou dos

09

Para uma visão de conjunto, C. E. Braaten, History and Hermeneutics ( Lutterworth Press, Londres 1968) cap. VI; H. Kimmerle, "Hermeneutical Theory or Ontological Hermeneutics", em: History and Hermeneutics (Harper & Row , New York 1967) 107-121; J. M. Robinson e E. Fuchs, La nuova ermeneutica (Paideia, Bréscia 1967). 10

O que alguns chamam "o parâmetro ontológico (= histórico)" . Cf. R. Lapointe, Les trois dimensions de l'herméneutique (Gabalda, Paris 1967) p. 89ss.

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textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à sincronia, à simultaneidade, às

leis estruturais que dirigem a realização da linguagem. Falamos, porém, de "desvio", não de

fusão nem de identificação. São enfoques diametralmente opostos, porém, não contraditórios,

mas sim, convergentes. Ao regressar da semiótica à hermenêutica, respeitando a

individualidade de ambas, esta última se evidenciará solidamente fundamentada.

Empreendemos, pois, um longo caminho, ao final do qual a hermenêutica bíblica se mostrará

melhor iluminada.

Concluímos esta introdução resumindo os enfoques ou acessos ao texto bíblico (como a

qualquer obra literária) com o esquema seguinte (os números remetem aos parágrafos do texto;

chamará a atenção a exclusão do nº 2):

Abordagens de Leitura do Texto (Bíblico)

A figura indica que um texto pode ser examinado a partir diferentes ângulos, estudado

com métodos diversos, que não se excluem mutuamente, mas que devem convergir para uma

melhor compreensão da obra, em nosso caso a Bíblia. A única abordagem que não tem lugar

aqui é a concordista (no 2), uma vez que não leva ao sentido, mas desvia dele.

Métodos histórico-críticos

(desde o texto até sua origem,

e retorno ao texto) vd. no 3

estrutura manifesta

TEXTO

componente Narrativo

componente Discursivo

estrutura profunda - vd. nº 4

Hermenêutica vd. no 5

(não somente da realidade

presente - vd. nº 1, mas a partir

dela até o texto e retorno à

realidade)

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I - DA SEMIÓTICA À HERMENÊUTICA

Nosso interesse está na hermenêutica, porém, como já anunciamos, esta deve inscrever-

se parcialmente no vasto campo da ciência dos signos. Textos e acontecimentos humanos são

signos que necessitam de interpretação. Aqui não é o lugar para um desenvolvimento amplo

sobre a lingüística ou sobre semiótica. Basta assinalar alguns fenômenos da linguagem que nos

auxiliem a compreender o fenômeno hermenêutico.

1. A LINGUAGEM COMO SISTEMA E COMO ACONTECIMENTO

Na lingüística é comum fazer distinção entre "língua" (langue/language) e, "fala"

(parole/speech). Aquela é o sistema de signos e leis que regulam a gramática e a sintaxe; uma

espécie de "cânone" que estabelece as regras do sentido. Sua base é a estrutura que supõe

diferenças, oposições e relações fechadas no interior de cada idioma, e que funcionam

sincronicamente mais no nível inconsciente do que no nível reflexivo. Em determinado idioma,

o repertório de signos lingüísticos é finito e fechado (há um limite de combinações). Subjacente

a isso, no entanto, há uma polissemia potencial: "volume", por exemplo, faz pensar em um livro

ou então em uma medida de capacidade na geometria. "Castanha" é um fruto ou uma cor. Em

todos os idiomas há um determinado número de vocábulos polissêmicos.

E não somente isso: mesmo os "monossêmicos", que são maioria, não dizem nada do

jeito que estão codificados em um dicionário. Também uma frase que tem sentido lingüístico ( =

o sentido é a relação entre significante - o signo ou vocábulo - e o significado ou conteúdo) pode

ser equívoca quanto ao seu referencial extralingüístico. "Jesus Cristo nos salva" é uma frase

correta, tem sentido gramatical e existencial, porém é equívoca em seu referencial (de que nos

salva? quando? etc.). Falta algo que feche o sentido para uma determinada direção. Assim é a

língua enquanto "competência", como dizem os lingüistas.

Esse sistema de signos, no entanto, deve "ser ativado" quando o usamos para dizer algo

sobre algo. Aí estamos já no momento da "fala", que pode ser entendido como o "acontecimento"

da língua. E o ato que realiza as possibilidades possíveis através do sistema de signos. Três

fatores auxiliam para "fechar o sentido" em uma única direção:

a) O emissor ou locutor que seleciona os signos (palavras, frases, códigos ou gêneros literários

possíveis em determinado idioma) que veicularão a mensagem; os signos somente se

relacionam entre si, formando uma estrutura; por isso é fundamental identificá-la para

poder decodificar uma mensagem. Disto advém a importância de toda a análise estrutural

para a exegese bíblica como para a exegese de qualquer texto.

b) Um receptor ou interlocutor determinado, a quem se dirige a mensagem codificada em uma

determinada forma, e que saiba decifrá-la, operação instantânea que é uma das maravilhas

da linguagem humana.

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c) Um contexto ou horizonte de compreensão comum ao emissor e ao receptor, que permita

fazer "coincidir" a referência ou denotação, aquilo sobre o que versa a mensagem. Sem esse

contexto comum (lingüístico, cultural, social, geográfico e de tantas outras dimensões da

realidade humana), a linguagem permanece sendo polissêmica.

Pois bem, no ato do discurso - no "ato de fala" - deve haver clausura atual da polissemia

potencial das palavras ou das frases. Do contrário é impossível falar, a não ser que se mantenha

uma polissemia deliberada, como na poesia ou na linguagem simbólica. Mesmo neste caso, o

contexto - e em todo caso o diálogo entre os interlocutores - ajuda a "fechar" o sentido de uma

palavra ou de uma proposição. Do contrário, o discurso já não é mais um "dizer algo sobre algo".

E esta é a intenção de quem fala, escreve uma carta a um amigo ou relata uma história a seus

ouvintes.

No "acontecimento da fala", o receptor da mensagem realiza um processo de assimilação

ou captação do código lingüístico selecionado pelo emissor para sua comunicação. Tal como

acontece na música, assim também se verifica na linguagem: a mensagem vem dada em uma

"chave" ou código que o ouvinte identifica de imediato. De outro jeito não haveria compreensão.

Confundir os códigos despista totalmente o direcionamento da mensagem. Da mesma forma

como é necessário sintonizar a freqüência de onda num rádio, a mensagem também deve estar

"em sintonia".

Voltaremos a essa questão ao nos referirmos ao processo hermenêutico propriamente

dito. Por ora recordemos somente que a leitura tradicional da Bíblia, ao interpretar todos os

textos em "chave" histórica, tem falhado num ponto essencial. Em nenhuma outra literatura se

cometeu erros tão elementares. É como se alguém escutasse todas as composições musicais em

uma única chave ou segundo o sentido de um único gênero! Por isso votamos a assinalar uma

vez mais a importância das ciências da linguagem - sobretudo da "semiótica narrativa", como

veremos - para afirmar a sua validade para a compreensão de textos bíblicos.

2. A LINGUAGEM COMO TEXTO E COMO ESCRITA

Da língua à fala, da competência à sua atualização, do sistema ao uso, tem lugar uma

primeira distanciação, que marca o "fechamento" do sentido. Tal "distância" não é temporal nem

espacial, é lógica.

A linguagem, todavia, não termina nesta etapa. Com efeito, produz-se uma "nova

distanciação" (que chamaremos de segunda), quando o discurso se cristaliza em um "texto"

transmitido. Entendemos este vocábulo no seu sentido amplo, uma vez que um texto também

pode ser oral. Um mito ou uma canção, por exemplo, costumam ser transmitidos de geração em

geração por via oral, antes de serem fixados por escrito. Quase todas as narrações bíblicas foram

de alguma forma tradições orais. E já eram "textos". Segundo a etimologia, texto é um "tecido",

uma trama em que os elementos da língua (palavras, frases, unidades literárias e outros

elementos) estão organizados segundo funções estruturadas que, como tais, produzem um

sentido.

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As leis lingüísticas da frase se repetem e se ampliam a nível de relato. Efetivamente há

uma gramática e um sintaxe do relato.11 Aqui sublinhe-se novamente a estrutura com suas

"diferenças" e relações e com um caráter de totalidade organizada.

Um texto é algo estruturado e acabado. Tem limites e relações internas. Esta condição do

texto tem conseqüências dignas de atenção, a primeira das quais é sua capacidade de dar

sentido por aquilo que é, como codificação de uma mensagem. Em segundo lugar, o texto oral ou

escrito se abre para uma nova compreensão graças a esta segunda distanciação já assinalada,

que acontece entre a "fala" ou ato de discurso e a inscrição do sentido neste ou naquele texto.

Esta distância tem lugar nos três fatores que antes contribuíam para o fechamento do sentido e

agora contribuem para abri-lo. Vamos enumerá-los e explicá-los na mesma ordem:

a) No texto desaparece o emissor original. O autor (se falamos de escritura) "morre" no próprio

ato de codificar sua mensagem. A inscrição do sentido em um relato ou texto qualquer é um

ato criativo, no qual, para dizê-lo simbolicamente, deixa-se a vida. Avaliar as conseqüências

deste fenômeno é significativo para a hermenêutica que faz o desvio pela lingüística e

invalida as tentativas de recuperar uma antiga formulação (veja Schleiermacher) ou o

esforço dos métodos histórico-críticos de recuperar e fazer reviver o autor de um texto.

b) Também o primeiro "receptor" ou interlocutor não está presente. Quem lê um texto escrito

ou escuta um relato tradicional, um mito ou uma passagem bíblica, não é o seu primeiro

destinatário (= narratário no léxico da semiótica). Esta troca dos destinatários da mensagem

é muito mais evidente nos textos religiosos, míticos ou não, que pretendem ter uma

significação permanente ao longo de gerações e séculos.

c) Pela mesma razão, desvanece-se o horizonte do primeiro discurso, seja porque o contexto

cultural ou histórico não é o mesmo, seja porque os destinatários atuais que recebem a

mensagem têm um outro "mundo" de interesses, preocupações, cultura, etc.

Estes três aspectos (muito assinalados por P. Ricoeur em seus últimos trabalhos de

hermenêutica),12 tomados em conjunto, contribuem para compreender o processo

hermenêutico. Com efeito, a) o autor desaparece como entidade que "fala", e a quem pode-se

perguntar pelo sentido daquilo que "diz". Em conseqüência, o narrador não é uma pessoa de

carne e osso, mas sim, um pressuposto lingüístico. Alguém narra ou escreve, porém somente no

texto é possível reconhecê-lo. Essa ausência física é riqueza semântica. O fechamento do sentido

imposto pelo locutor, modifica-se agora em abertura do sentido. O narrador é o próprio texto,

não alguém de fora a quem se pudesse pedir explicações. Esta concentração no texto permite

explorar as suas possibilidades significativas enquanto texto. b) Bem, o surgimento de um novo

11

É um elemento muito enfatizado na semiótica narrativa, analisado em detalhe por todos os que investigam a análise estrutural do relato (R. Barthes, T. Todorov, J. Kristeva, etc.). Para o caso da Bíblia, veja, por exemplo, J. Calloud, Structural Analysis of Narrative (Fortress Press, Filadélfia 1976). 12

P. Ricoeur, "Événement et sens", Archivio di Filosofia (1971) 15-34; Id., "La función hermenéutica de la distanciación", em: Vários, Exégesis (cf. nota 2), pp. 245-261, esp. p. 247ss.

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receptor da mensagem, por sua vez situado em um novo horizonte de compreensão, distancia

ainda mais o texto de seu marco original e do contato com seu autor. Quando alguém fala,

transmite uma mensagem (linguagem locucional, como se diz), fá-lo, contudo, com força ou

intensidade determinadas (linguagem inlocucional expressada pela entonação, pelos gestos,

etc.) e com um efeito que faz parte da mensagem (linguagem perlocucional).13 Pois bem, na

leitura de um texto perdem-se os dois últimos aspectos, pois, em ordem decrescente, mais

dificilmente podem ser inscritos em um código.

Por isso não é a mesma coisa ler ou escutar como primeiro destinatário ou como

segundo. Nem mesmo escutar uma gravação repete a primeira enunciação; mesmo que não

variem os destinatários, o contexto ao menos já não seria o mesmo e o texto produziria efeitos-

de-sentido diferentes. Por sua vez, quando "escutamos'' um texto, aquele que fala é o texto e não

aquele que o lê em voz alta para os outros. Este é apenas mais um dos destinatários! Tampouco

fala o autor, pois esse já não está presente. Sua presença é tão aparente como dizer que o sol

gira em torno da terra. Uma vez mais voltamos à autonomia do texto, que condicionará a

abertura hermenêutica do ato de ler.

Mas o que acontece então? Substitui-se o horizonte finito do autor pela infinidade

textual. O relato se abre novamente a uma polissemia, que não somente é potencial como ao

nível da "língua", mas sim potenciada por aquela rede de significado que é a obra. Por essa aber-

tura do texto introduz-se o novo destinatário com seu próprio "mundo".

Podemos entender que uma carta de Paulo dirigida a destinatários concretos

(colossenses, romanos, etc.), onde o autor e seus leitores se referiam a um problema específico,

teve que trocar de perspectiva quando se universalizou na igreja primitiva. Os novos receptores

do texto não estavam delimitados pela leitura prévia dos cristãos desta ou daquela igreja, nem

podiam perguntar a Paulo o que quis dizer nesta ou naquela frase.

Todo texto está aberto a muitas leituras, nenhuma das quais é repetição da outra.

Quanto maior a distância em relação ao autor, tanto maior dimensão adquire a releitura de um

texto. Inversamente, quanto maior é a riqueza semântica de um relato, mais distante está o

autor da mente do intérprete.

Por essa razão, os textos sagrados ou os relatos míticos costumam ser anônimos. Isto

não somente por às vezes serem criação progressiva de uma comunidade, mas sobretudo

porque têm mais significação por aquilo que dizem do que por aquele que o diz. Parece que sua

carga de sentido é mais densa quanto menos se sabe sobre seus autores. Assim, para o caso da

Bíblia, não temos notícia de nenhum autor dos livros do Antigo Testamento e de poucos do

Novo Testamento.14

É próprio (porém não exclusivo) dos textos religiosos a "atribuição" posterior a uma

determinada figura (p: ex.: os Salmos de Davi, o Pentateuco de Moisés, a Sabedoria de Salomão,

algumas epístolas do Novo Testamento a Paulo, etc.), quando esta já é significativa por alguma

razão. Trata-se de um acontecimento hermenêutico que será esclarecido no decorrer do

13

J. L. Austin, How to do Things with Words (Harvard Univ. Press, Mass 1975); J, R. Searle, An Essay in the Philosophy of Language (CUP, Cambridge 1969) 14

O livro de Siraque ou Eclesiástico leva o nome de seu autor, mas no texto grego (da LXX) é Jesus, filho de Siraque (50.27; 51.30), no hebraico (canônico) é seu filho Simeão. O prólogo literário do tradutor diz ser do seu avó Jesus (v. 6). Essa dupla tradição é significativa.

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desenvolvimento do nosso tema. Outra faceta do mesmo fenômeno é a ampliação de um texto

de um determinado autor através de sucessivas releituras, sem que na tradição se modifique

sua autoria. Este é o caso do Evangelho de Mateus e outros escritos do Novo Testamento.

Mateus é autor do núcleo aramaico primitivo; a forma atual do primeiro evangelho é uma

reelaboração subseqüente. Na tradição, porém, continua sendo o texto de Mateus (sobre essa

questão, veja um pouco mais adiante, em I, 3, b).

Para concluir esta parte, resumimos o tema com uma figura que retoma aspectos

centrais do que tratamos:

língua fala texto/escritura

fonemas/termos

sistemas

frase

uso/"acontecimento"

relato

códigos

narrativos/estrutura

repertório finito e fechado

repertório infinito

nome diz algo sobre algo para alguém diz algo sobre algo

a uma infinidade de

narradores

atemporal passageiro Permanente

polissemia clausura/fechamento

polissemia

1ª distanciação

2ª distanciação

3. A LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDO. O ATO HERMENÊUTICO

Na semiótica diz-se que o sentido não é algo "objetivo" e palpável que está no texto em

estado puro, de modo que o exegeta pudesse encontrá-lo graças a sua habilidade técnica e seus

recursos filológicos e históricos. Se fosse assim, bastaria descobrir o sentido de um texto. Assim,

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quando há muitas interpretações, todas menos uma estariam erradas. A decisão sobre qual é a

verdadeira viria de uma "autoridade" extratextual.

Em última instância, este esquema supõe que o sentido de um texto coincide com a

intenção de seu autor e que o leitor atual repetirá a leitura que fizeram os primeiros

destinatários. E assim nos atolamos no "historicismo" exegético. E o que é pior, a mensagem

resulta atrofiada e não pode desprender-se em novas leituras criativas. Talvez até deixe de ser

mensagem.

O processo da reinterpretação é, sem dúvida, tão pujante que as tentativas de "fixar" o

sentido de um texto bíblico acabaram terminando em fórmulas que, com o tempo, por sua vez

necessitam ser relidas, o que significa que a pretensão de fechar o sentido de um texto é vã e

irreal.

De fato, toda leitura é produção de um discurso e, portanto, de um sentido, a partir do

texto. Não se lê um sentido, mas sim um texto, um relato numa operação que coloca em ação a

competência deste, estudada pela semiótica. Desta maneira, o texto se abre para diferentes

organizações seletivas. Por um lado, a mesma análise estrutural do relato (programa narrativo:

ações, funções) e do discurso (eixos semânticos, quadrado semiótico, verificação, etc.15,

enquanto organização de um sentido em meio a outras possibilidades das palavras ou temas de

uma determinada sociedade ou cosmovisão não dá resultados matemáticos senão que se

diferencia segundo distintas combinações efetuadas. Acontece que a linguagem mesma combina

tantos elementos sêmicos que nenhuma análise pode manifestá-los por completo.

Como já assinala J. Greimas, a pluralidade de leituras sugeridas pela prática semiótica

não se deve ao fato de que um texto seja ambíguo, mas sim que é suscetível de dizer muitas

coisas ao mesmo tempo.16 E isto apesar de que a análise estrutural não é propriamente a

interpretação do texto, mas tão-somente uma etapa preparatória.

Por isso acontecem, por outro lado, no nível propriamente interpretativo, leituras que se

fazem a partir de diversas disciplinas. Um mesmo texto pode ter uma leitura fenomenológica,

histórica, sociológica, psicológica, literária, teológica e outras mais. Cada uma das leituras do

mesmo relato é uma produção de um discurso a partir desse texto. Isso é possível porque o

discurso coloca em jogo uma pluralidade de códigos que cada leitura seleciona e organiza. Por

sua vez, as leituras feitas a partir daqueles níveis não são exclusivas de um intérprete que

descobre o sentido. Cada leitura é uma produção de sentido. Já sabemos que o autor "morre" em

benefício daquilo que ele cria como texto: este inscreve em si mesmo - enquanto estrutura de

códigos - a instância de produção e a instância de leitura e interpretação. Em outras palavras,

faz-se polissêmico, mesmo olhando somente a partir do ponto de vista da semiótica. Tem várias

possibilidades de sentido, que afloram quando se o lê selecionando os códigos nele

armazenados. Se tiver experiência na leitura de textos, o leitor pode tomar consciência de que o

fenômeno da leitura é assim.

Porém, para completar nossas observações, poderíamos exemplificá-las com uma

passagem bíblica. Tomemos por exemplo Jo. 1.35-51. Quanto se tem dito sobre este texto nos

15

Para estes termos, cf. Grupo de Entrevernes Análisis semiófico de los textos. Introducción-Teoria-Práctica (Cristiandad, Madrid 1982); Id., Signos y parábolas. Semiótica y texto evangélico. (ib. 1979); Vários, Iniciación en el análisis estructural (Verbo Divino, Estella 1980). 16

Cf. Signos y parábolas (nota anterior) p. 236.

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comentários exegéticos e quanta inspiração tem recebido a prática cristã do seguimento a Jesus!

Sempre se pode voltar ao texto e uma ou outra vez produzir sentido. Uma maneira de fazê-lo

consiste em identificar os diferentes códigos que se entrecruzam nesta perícope. Tomemos o

relato em sua forma atual e isolemos os papéis temáticos à medida em que vão entrando em

cena. "No dia seguinte" liga com o relato anterior (v. 29, que, por sua vez, remete ao "quando" do

v. 19) e se repete no v. 43 para então completar-se com a expressão "três dias depois" de 2.1.

Este código, que parece artificial, vai tecendo uma teologia da primeira semana da nova criação,

na qual o Logos é preexistente (Jo. 1.1) como a Palavra na criação do mundo (Gn. 1.1 na releitura

do Targum). Este tema não está dito em uma fórmula assim como o acabamos de descrever,

porém através da estrutura do relato; estrutura esta que, por sua vez, se combina com os outros

códigos de maneira tal que mutuamente se dão sentido. Este é o jogo do relato.

Logo segue uma situação de encontro humano: João encontra dois discípulos seus (v.

35b). Estes logo se encontram com Jesus (v. 39). Um deles, André, encontra-se com seu irmão

Simão (v. 41a) e lhe testemunha que "encontramos o Messias" (v. 41 b). No v. 43 começa uma

nova série de encontros: Jesus com Felipe, logo em seguida, este com Natanael e lhe diz:

"encontramos aquele de quem escreveram... ," (v. 45). No final de cada série, o "encontrar" oscila

entre o físico e o espiritual, sendo enfatizado o segundo com o sentido de "reconhecer" (o

Messias, aquele de quem escreveram Moisés...). Tal "encontro" somente é possível em um plano

superior.

Muito bem, este deslocamento também se dá com outros códigos. Notável é o visualizar

(ver, fixar-se) que; a partir de um simples plano corporal (vv. 36, 38, 39 x 2, 42, 46, 47, 50) até

outro mais profundo (w. 48, 50 "verás coisas maiores"), termina com um "ver" teofânico (v. 51 ).

É evidente que este motivo, nas seqüências seguintes, liga-se com o da aceitação dos sinais (cf.

2.1 1 e os outros relatos de milagres). Os sinais efetivamente "são vistos". Este "ver" joanino

remete à fé, não em sua dimensão física (cf. v. 50 e seu correlato de 20.29),17 mas sim porque a

encarnação da Palavra mediatiza as realidades da fé através das coisas humanas. Por isso há em

João tanta relevância no tema da fé no Enviado.

No nosso relato é visível também o código onomástico (há abundância de nomes

próprios), em especial da dupla menção de "Jesus", definido como o filho de José, o de Nazaré (v.

45). Bem, no texto total do quarto evangelho, os personagens vão recebendo títulos ou

identificações de valor teológico. Assim temos, portanto, o código das identificações,

provavelmente o mais significativo neste lugar. Jesus é "cordeiro de Deus" (v. 36), "mestre" (v.

38, que mantém a forma hebraica rabbi para inseri-lo na tradição magisterial judaica e não

confundi-lo com um didáskalos grego), "messias" (v. 41 ), "aquele de quem escreveram Moisés,

na Lei, e os profetas (v. 45), "filho de Deus/ rei de Israel" (v. 49), "Filho do homem" (v. 51 ).

Este número de seis identificações, que preparam para relatos posteriores, já é im-

portante como simples registro. Isso, porém, não é tudo. Além disso estão dispostos nos lugares

certos. Abrem e fecham o relato total dos w. 35-51. Cada série, presidida pela referência

temporal "no dia seguinte" (w. 35-42 e 43-51 ), contém três identificações de Jesus e outra de

um agente humano: Simão = Cefas/pedra, na primeira; Natanael = verdadeiro israelita, na

segunda (w. 41 e 47). Na segunda série, as identificações de Jesus se contrabalançam com o

"sentido" do AT e de Natanael como verdadeiro israelita, referência evidente ao "sentido" de

Israel.

17

Na estrutura atual do quarto evangelho, Jo. 1-2 tem sua correlação em 20-21.

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0

Por fim, existe um código de movimento (ir, vir, seguir: w. 37, 38, 39, 40, 43, 46) que

remarca o seguimento a Jesus e que, por sua vez, semanticamente se contrapõe, porém

teologicamente se complementa como o "ficar/permanecer" do v. 39. Este em outro nível,

prepara o ménein ou "permanecer" em Jesus, tão tipicamente joanino.

Pode-se, todavia, explorar ainda mais este relato tão bem "tecido" por diferentes códigos

e tão fecundo à luz da semiótica. Manifesta-se aí a aventura de ler um texto como produção

inesgotável de sentido e, portanto, como recriação constante da mensagem. Na parte II

abordaremos outros caminhos de exploração da mensagem de um texto reforçados pela

contribuição da semiótica.

4. IMPLICAÇÕES DA LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDO

Nesta relação entre semiótica e hermenêutica, entre força do texto e força da vida,

verificam-se certos efeitos e certas exigências que convém expor para tomar melhor consciência

dos alcances de uma leitura interpretativa dos textos bíblicos:

a. TRANSFORMAÇÃO E OCULTAMENTO

Em todo texto há um "adiante", esse mundo de sentidos que se abre em virtude de sua

polissemia, potenciada por sua própria condição de estrutura lingüística e, como sabemos, pela

"morte" de seu autor. O sentido está no texto e não na mente de seu autor. No texto, por sua vez,

não está como entidade separável, mas sim "codificado" em um sistema de signos que

constituem o relato e que "dizem algo sobre algo" por sua manifestação como determinado

discurso.

Em boa parte, isto resume os pontos anteriores. Agora queremos destacar até que ponto

cada leitura de um texto que "diz" transforma aquilo que diz e aquilo sobre o que diz, ocultando

precisamente esta transformação. Vamos tematizá-lo com os relatos intitulados de "Servo de

Javé", de Dêutero-Isaías. As passagens em questão são Is. 42.1 -7; 49.1-9a; 50-4-1 1; 52.13-

53.12.

Pressuposta esta uma independência original destes poemas com relação à composição

de Isaías 40-55 (Dêutero-Isaías), e também da formação do atual "livro" de Isaías 1-66, é

possível neles discernir um personagem de traços reais (de rei), que recebe de Deus a missão de

libertar o povo de Israel cativa entre as nações. É perseguido e humilhado até a morte, ao final,

porém, é exaltado. Seu sofrimento era vicário, uma vez que "eram nossos os males que levava,

nossas as dores que suportava (53.4), por nossas transgressões foi entregue à morte (v. 8),

carregou o pecado de muitos (v. 12)". O discurso é portador de um sentido que resulta da

organização de códigos profundos (ações e funções) e de superfície (símbolos, recursos

estilísticos, gêneros literários, etc.). O texto dá sentido pela disposição de tais significantes

lingüísticos que remetem a significados que permanecem no interior do próprio relato, ainda

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que não mais tenhamos notícias sobre seu "referente" extralingüístico (Joaquin? Zorobabel? O

próprio Israel? Algum profeta? Um sábio?).18

Os métodos críticos da exegese bíblica nos ajudam a identificar, um possível referente

para estes poemas, porém não está aí a chave de leitura. É apenas uma tentativa de recuperar o

"atrás" do texto, a situação de vida que o originou como primeira produção de sentido.

Importante como é a leitura "histórica" destes textos, permanecer nela é um risco que se deve

evitar. O que se pretende, na verdade, é reduzir o sentido à sua primeira produção, e isso esgota

o texto no momento em que começa a mostrar sua polissemia. E o mais sério é atrelar-se a uma

forma de "historicismo" do qual logo surgem os concordismos exegéticos que, sob pretexto

ingênuo de destacar a relevância da Palavra de Deus para o presente, imobilizam-na em sua

primeira referência. Dessa maneira, práticas tão opostas como a exegese crítica e o concordismo

fundem-se na tentativa de cristalizar o sentido dos textos. Com isso, por fim, privilegia-se o

"referente" (fenômeno extra-língüístico) em detrimento do significado do próprio texto. Bem, é

deste e não daquele que emanam as releituras. Eis aqui um princípio importante que novamente

conjuga a semiótica com a hermenêutica. O "referente" de um texto é um fechamento de sentido

no próprio momento de sua produção. Um texto, como toda linguagem em ação, somente pode

comunicar uma mensagem através de alguma forma de clausura que lhe imprime justamente o

"referente" extralingüístico, aquilo a que o texto se refere para dizer algo a alguém. Em

contraposição, o próprio texto, enquanto estruturação, de significantes e significados que geram

sentido, é polissêmico e demonstra uma tendência muito forte a não reter o "referente" histó-

rico, sobretudo nos textos religiosos e naqueles que são interpretados uma e outra vez. Aquele

acaba sendo um peso que necessita ser lançado fora.

Cremos que este é justamente o caso dos cânticos do "Servo" dêutero-isaiânico. Por que

não se reteve o personagem histórico a que se referiram alguma vez? Por que há necessidade de

identificá-lo através de tantas hipóteses já conhecidas para compreender estes magníficos

relatos? Hipóteses que, por seu lado, talvez nos remetem ao estado pré-redacional que não

constitui o nível do texto querigmático atual. Saber se a figura do "Servo" era Joaquin ou algum

outro personagem apenas esclareceria a gênese do texto, não, porém, o texto mesmo. É um erro

de perspectiva.

O próprio fato de que os poemas em questão não indicam o referente de maneira

explícita deixa mais aberta a própria interpretação. A própria expressão poética e simbólica

aponta para essa direção. Ainda que a favoreça, esta não é a única condição da polissemia do

sentido. Os relatos são polissêmicos por sua própria estrutura lingüística. Assim projetam-se até

o "adiante", reclamando a manifestação de um excesso-de-sentido. Por isso sua leitura será uma

produção de sentido, nunca uma repetição do primeiro sentido. Isto é fundamental para

entender o processo hermenêutico. Não é estranho, então, que nossos cânticos tenham sido

relidos por gerações sucessivas em normas tão diferentes. Vamos apontar quatro etapas:

1. A recensão canônica já tem alguma marca de atualização do referente como recurso para

fechar o sentido dos poemas. Em Isaías 49.3, o texto hebraico transmitido identifica o Servo com

Israel ("E tu, Israel, és meu servo"). A nível de releitura não importa muito a contradição interna

com os vv. 5-6, que mencionam seu envio para Israel. Para a crítica literária, trata-se de uma

18

Cf. ultimamente P. Grelot, Les poèmes du Serviteur. De la lecture critique à I'herméneutique (Cerf, Paris 1981) 67-73.

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"glosa incoerente". Hermeneuticamente, essa glosa é rica como transposição do sentido a um

referente atualizado pelas necessidades da comunidade que transmitiu o texto.

2. Na Septuaginta (LXX) predomina a interpretação coletiva: os poemas são constantemente

referidos ao Israel perseguido da diáspora, deixando também claro a sua missão salvífica.19

3. O Novo Testamento novamente retoma a interpretação individual, favorecida pela própria

simbologia dos textos, que falam de uma pessoa singular (isso não significa, digamo-lo uma vez

mais, que os poemas se refiram a um indivíduo). Dessa forma, não é difícil passar à leitura

cristológica. Essa releitura à luz do fato Crístico tem sido tão forte que impregna muitas páginas

do Novo Testamento.20

4. O Targum de Jonatã (século II d, C.) retoma a exegese coletiva ( = Israel ) para Isaías 49.7;

aplica ao Messias o oráculo de Isaías 42.l ss, ao profeta Isaías o texto do capítulo 50.4-11. Evita,

no entanto, fazer qualquer alusão ao Messias no quarto poema (Is 52.13-53.12).

Como foram possíveis tantas releituras de um mesmo texto sagrado, se de alguma

maneira o texto não estava aberto? Pela mesma razão nós podemos relê-lo sem estar limitados

pela leitura cristológica d Novo Testamento, entendida como definitiva e única para nós. O" '

próprio Paulo, no seu tempo, estendeu a si mesmo, como pregador perseguido, a figura do

"Servo", luz das nações (GI 1.15; em um dos relatos lucânicos sobre a vocação de Paulo, Atos

26.18; e no episódio de Antioquia, At 13.47). Também hoje existem situações de pessoas, grupos

ou povos que reclamam um nova interpretação destes poemas, que tão bem trasladam a

presença de Deus e a confiança de quem trabalha em seu serviço. Todas estas releituras do texto

dêutero-isaiânico não estão condicionadas pelo primeiro referente do relato, inexoravelmente

perdido, mas pelo próprio texto em virtude se sua polissemia literária codificada.

b. DEPENDÊNCIA TEXTUAL

O que chama a atenção em toda interpretação de um texto é o fato de que ela necessita

partir do texto. Não pode aparecer como um adendo arbitrário e acidental; ela pretende ser

leitura do texto transmitido. Quando Jesus ressuscitou, dirigiu-se aos discípulos de Emaús e,

para censurá-los ("Ó insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas

anunciaram. Não era necessário que o Messias sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?"

19

Por exemplo, Is. 49.6b diz assim na LXX: "E eis que te estabeleci como luz das nações, para que sejas a salvação até os confins da terra" (o grifado marca o desvio em relação ao texto hebraico, modificando profundamente seu sentido). Cf. P. Grelot, op. cit., p. 82ss. 20

Lista de passagens e comentário à luz do texto hebraico, em P. Grelot, op. cit., p. 138-189 (encontra no Novo Testamento reminiscências, imitações, citações diretas; os textos onde se retoma os Cânticos são: Paulo, Hebreus, 1 Pedro, Lucas e Atos, Mateus, João e (provavelmente) Marcos.

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Lucas 24.25s), remete a um texto, o qual está interpretando. Muito bem, não existe nenhum

relato profético do Antigo Testamento que contenha o referente messiânico que, segundo Lucas,

Jesus afirma. Por outro lado, é evidente sua alusão aos cânticos do "Servo" de Isaías 40.45 (cf.

também o v. 46 "assim está escrito que o Messias padeceria e ressuscitaria dentre os mortos ao

terceiro dia"). É difícil crer que Lucas se faça eco da tradição rabínica sobre o Messias filho de

José, Messias efraimita que, segundo alguns textos, deveria padecer.21 Evidencia-se, pois, clara-

mente a dependência de Lucas em relação às tradições messiânicas davídicas (nascimento de

Jesus em Belém; referências a Davi, Lc. 1. 32,69; 3.31; 20.41-44; teologia de Jerusalém). Por

outro lado, esse recurso hipotético não é necessário. Para ser mais exato, a citação lucânica

mostra um "remendo" ao texto profético que é efeito reversível tanto do fenômeno lingüístico

da polissemia (cf. parágrafo anterior) como da dependência "textual" do ato hermenêutico. A

releitura se faz "texto". A releitura que o Jesus de Lucas 24 faz de Isaías 53 é uma produção de

sentido e se expressa como um discurso sobre um outro discurso anterior incorporado naquele.

Em perspectiva, parece que houve um só discurso, um só texto.

O texto grego da LXX que citamos na parte a) não é uma tradução mecânica do original

hebraico, qualquer que tenha sido a recensão utilizada. É, isto sim, uma adaptação do original

hebraico. E isto não por desconhecimento da língua hebraica naquele tempo. Mas por que então

não verteram literalmente, deixando para um relato diferente a interpretação almejada? De

forma alguma: a sua leitura se origina no texto isaiânico (e nunca como interpretação paralela)

e, por outra parte, tem que expressar esse texto, consagrado pela tradição. O texto do LXX é,

portanto, um discurso (no sentido semiótico da palavra) sobre um outro discurso (o texto de

Isaías), que, porém, se manifesta como um único discurso (= o texto de Isaías).

Pela mesma razão, a interpretação que Lucas põe nos lábios de Jesus remete ao texto de

Isaías 53. Na versão targúmica deste poema há tantas divergências com relação ao hebraico que

a fazem mais parecida a um midrash. Quem compara o texto hebraico com o aramaico, constata

que talvez somente 50% deste último correspondem àquele.22 Apesar disto, convém destacá-lo,

o texto assim apresentado é, na tradição rabínica, o texto de Isaías. Não interessa a pessoa

histórica de Isaías. Interessa apenas esse texto canônico transmitido pela tradição e que é tido

como "palavra de Deus".

Disto advém a suma importância que tem toda leitura como leitura de um texto. Esse

fenômeno - e já estamos no coração da hermenêutica - não faz outra coisa senão pôr em relevo

duas coisas já reiteradamente expressadas: 1) que todo texto concentra uma polissemia que,

21

Veja R. Pietrantonio, "EI Mesías asesinado. EI Mesías ben Efraim en el evangelio de Juan", Revisfa Blblica 44,1, n° 5 (1982) 1-64 (resumo de tese) (para os textos targúmicos, p. 24ss). 22

Compare-se Is 50.4-5 no texto hebraico e no Targum:

Hebraico: "O Senhor Javé me deu língua de discípulo para que faça saber ao cansado uma palavra de alento. Manhã após manhã, desperta meu ouvido para escutar como os discípulos. O Senhor Javé me abriu o ouvido" (queixa do servo perseguido).

Targum: "Javé-Deus me deu a língua dos que ensinavam, para saber ensinar os justos que langüidescem pelas palavras de sua Lei, a sabedoria. Assim, cada manhã, envia cedo seus profetas no caso de que os ouvidos dos pecadores estejam abertos e que acolham seu ensinamento. Javé-Deus me enviou para profetizar". (queixa do profeta perseguido).

Aí encontram-se apenas alguns vocábulos do texto original. Em realidade, é um meta-texto. Is 53.10, um texto tão decisivo na releitura cristológica do Novo Testamento, perde totalmente a sua fisionomia original. Coloquemos os dois textos em paralelo:

Is 53.10 (hebraico) "Todavia agradou a Javé quebrantá-lo com dores. Se se dá a si mesmo em expiação, verá descendência, prolongará seus dias e o que agrada a Javé se cumprirá por sua mão."

Is 53.10 (Targum) "Agradou a Javé refinar e purificar o resto de seu povo a fim de limpar suas almas dos pecados: verão o reino do seu Messias; multiplicar-se-ão seus filhos e filhas, prolongar-se-ão seus dias; e os que cumprem a Lei de Javé prosperarão se-gundo seu beneplácito."

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por sua condição de "tecido" estrutural de códigos lingüísticos, abre-o até o "adiante"; 2) que

toda leitura de um texto é uma produção de sentido em códigos novos que, por sua vez, geram

outras leituras como produção de sentido e assim sucessivamente. A interpretação é um

processo em cadeia, não repetitivo, mas ascendente. Há uma reserva-de-sentido sempre

explorada e nunca esgotada.

c. APROPRIAÇÃO DO SENTIDO

A partir de um outro ponto de vista, a leitura como produção de sentido significa

também uma apropriação do sentido. Estabelece-se uma espécie de dependência em relação ao

texto interpretado e surge uma exigência de possuir todo o seu significado. Esse fenômeno é de

uma violência tremenda na leitura de textos que têm muito impacto sobre a prática, como por

exemplo textos religiosos, políticos ou ideológicos. A pretensão pelo sentido é totalitária e

exclusiva: nada é compartilhado. Isto justamente por se tratar de uma "apropriação". Não se

pode deixar fissuras para outras leituras. No próprio ato de afirmar implicitamente uma

reserva-de-sentido inesgotável no texto, o intérprete procura esgotá-lo, não deixando nada para

a outra leitura.

Disto advém o "conflito de interpretações". Como cada interpretação crê ser a

interpretação, não aceita a outra. Aí nasce a luta. Este é um fenômeno típico que resulta dos

grandes textos que inspiraram movimentos históricos ou originaram grupos com uma

cosmovisão própria.

Pode-se exemplificá-lo com os textos de Marx, a tradição bíblica ou a hindu. Na Índia,

doutrinas muito díspares entre si remetem-se aos livros sagrados dos vedas. É significativo o

fato de que o vedanta, especulação filosófica que apenas ressoa como fazendo parte da doutrina

religiosa dos vedas, porém, com uma distância de dois mil anos daquela, apresente-se como a

interpretação daqueles. O seu próprio nome, vedanta (= "fim dos vedas"), expressa uma

pretensão de esgotar o seu sentido.

Os textos de Marx são eloqüentes com relação à luta interpretativa, ideológica, política,

que seguem engendrando. Cada corrente marxista é, de acordo com sua própria avaliação, a

leitura dos grandes textos de Marx. Citamos este caso, que não tem nada a ver com a religião,

para mostrar com evidências claras que o agregamento de partes a um texto do passado não é

própria da cosmovisão religiosa e que acontece também em uma práxis sócio-política que,

aparentemente, nega toda outra fonte de significado que não seja esta mesma práxis.

Voltemos agora aos poemas do Servo de Javé de Dêutero Isaías. As leituras praticadas

pelas LXX, pelos essênios do Mar Morto (Qumrã), pela igreja primitiva (Novo Testamento) ou

pelo Targum, não foram, para esses grupos, leituras "possíveis" entre outras, mas sim, foram o

sentido do texto profético. Este aspecto totalitário da exegese é mais visível, por exemplo, na

interpretação targúmica, onde se pode reconhecer uma polêmica anticristã, uma tentativa de

bloquear a leitura cristológica desse texto tão carregado de significação. Dessa maneira, os

tradutores do texto isaiânico ao vernáculo aramaico daquele tempo (a que se tem dado o nome

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técnico de "Targum") despistaram toda referência possível de Isaías 53 ao sofrimento de um

Messias individual. Assim não confirmaram uma exegese já atualizada pelos cristãos na pessoa

de Jesus de Nazaré. E não se trata apenas de um fato ideológico. Foi facilitado pela condição do

próprio texto, polissêmico por um lado, mas que produz somente um sentido enquanto

estrutura narrativa orientada a "dizer algo sobre algo". Não existem sentidos múltiplos numa

mesma leitura. A interpretação rabínica de Isaías 53 anula a que fizeram os primeiros cristãos;

não a admite nem sequer como possível. E a leitura que aqueles praticavam, deslocava a

anterior da LXX. Em outras palavras, toda leitura é "enclausuradora" de sentido. Que paradoxo

esse jogo de alternância entre polissemia do texto e monossemia da leitura! (veja o diagrama no

final desta parte I).

Assim também a leitura da Bíblia feita pela teologia da libertação resulta conflitiva em

relação a outras "apropriações" do sentido do querigma. Este fato supõe outras causas que

comentaremos em seguida. A causa menos importante não é, porém, a que se fundamenta no

caráter "enclausurador" de toda leitura. Isto é tão básico como O outro fenômeno (cf. b) da

dependência em relação ao texto.

Esta conjugação entre o sentido do texto e sua leitura "enclausuradora" pode chegar a

situações extremas frente a outras leituras. Voltemos, porém, ao Targum de Isaías 53. A

interpretação que este faz do texto de Isaías (e o relevante é que seja de Isaías!) não pode partir

do texto hebraico desse profeta. A versão aramaica teve que modificá-lo estruturalmente,

convertendo-o em outro relato, diferente do original, mas que é reproduzido na leitura

sinagogal como o texto autêntico do profeta Isaías. Essa releitura (muito mais midráshica do que

targúmica)23 segue sendo "enclausuradora", fazendo desaparecer o relato que permitiria outras

leituras. O conflito de interpretações está aí vivamente expresso, porém não "dito". Alguém

poderia até se perguntar pelo que pensavam os rabinos que conheciam também o texto

hebraico, tão modificado na versão aramaica. Esta pergunta carece de interesse. O texto feito

"tradição" e normativo já não era outro do que o texto do Targum. Era o texto canônico daquele

momento. Não é o dirigente, mas a comunidade quem aceita um texto como normativo e atual.

Coisa bem diferente acontece, quando se abandona o uso do Targum e se volta ao texto hebraico

(quando o aramaico já não mais é a língua viva para o judaísmo palestinense). A polissemia dos

poemas do "Servo" dá lugar a uma outra leitura que, por sua vez, intenta absorver todo o

sentido. Nessa leitura tampouco cabe uma interpretação cristológica.24 Nós vamos nos deparar

com o mesmo fenômeno, quando enfocarmos o ato hermenêutico a partir da perspectiva da

práxis (parte II).

Terminaremos com duas observações. Por um lado, o leitor há de ter-se dado conta de

que o conflito das interpretações gera divisão, a qual nem sempre acontece no nível ideológico.

23

Targum significa a varsão (interpretativa) do texto hebraico ao aramaico; o midrash é a ampliação de um texto ou passagem até tomar um novo relato. Um e outro obedecem normas hermenêuticas, só que o midrash tem mais possibilidades de expandir-se e, portanto, de atualizar um texto. Cf. R. Le Déuat, "Un phénomène spontané de I'herméneutique juive ancienne: le "targumisme": Bíblica 52 (1971), 505-525; Id., "La tradition juive ancienne et I'éxegèse chrétienne primitive", Revue d'Histoire et de Philosophie Religieuses 51 (1971) 31-50; A. Díez Macho, cf. nota 6; E. Levine, "La evolución de la Biblia aramea", Estudios Bíblicos 39 ( 1981) 223-248 (aspectos interessantes sobre o Targum). 24

Nada estranha, neste sentido, que um H. M. Orlinsky negue o fundamento para uma leitura cristã de Is. 53. Cf. "The So-Called "Suffering Servant" in Isaiah 53", Vários, Interpreting the Prophetic Tradition (KTAV Publishing House, N. York 1969) 225-273; Id.. "The So-Called "Servant of the Lord" and "Suffering Servant" in Second Isaiah" na obra conjunta com N. H. Snaith, Studies on the Second Part of fhe Book of Isaiah (Brill, Leiden 1967) p. 66ss, esp. p. 73 e 118 (em suas expressões, Orlinsky está afirmando o princípio elementar da eisegese hermenêutica!).

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Nem toda divisão, porém, é negativa. Pode também ser criativa. A grande unidade, às vezes, é

amorfa, indolente. Por outro lado, a "apropriação" do sentido pretensiosa pela totalidade como

é, nunca o é na realidade. Se há muitas interpretações de um mesmo texto, todas partem do

mesmo texto, e então deve haver alguma forma de convergência. As leituras se comunicam

subterraneamente. Isso faz com que a divisão que, para ser tal, deve gerar-se em algo comum,

conserve sempre um fator de reunião. Também os mitos são conflitivos uns em relação aos

outros. Ainda que se estruturem sobre o mesmo tema, cada um se cristaliza dentro de uma

cosmovisão e pretende esgotar o sentido da realidade que interpreta. Comunicam-se, todavia, a

nível dos símbolos que contém e ao nível de uma experiência humana profunda.25

d. A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DA DISTANCIAÇÃO

Antes de completar esta parte, convém fazer uma referência à função da hermenêutica

da distanciação. Havíamos feito menção a uma dupla distância aberta entre a língua e a "fala",

por um lado, e entre esta e o texto/escritura, por outro (veja o diagrama no final de I, 2). Se a

primeira é formal, a segunda é concreta e, de alguma maneira, temporal e espacial. O

desaparecimento do autor de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de

vida que engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à

primeira produção de sentido, a do ato do discurso.

Muito bem, quanto maior é a distância, maiores são as perspectivas de releitura do texto.

Isto se fará mais evidente na parte II, 1, quando falarmos dos fatos fundantes de uma tradição.

Por ora queremos indicar somente que uma terceira "distanciação" hermenêutica se produz

entre o texto/Escritura e sua releitura (veja-se o diagrama seguinte, que completa o de I, 2). Esta

distanciação se dá de uma leitura à outra: cada leitura parte do texto, porém esse efeito é

aparente, pois está condicionada por aquela leitura que a precede e a qual justamente quer

apagar. De fato, porém, absorve-a ou a suprime.

Por isso, por mais conflitiva que seja, em cada leitura há algo de convergente. Por outro

lado, a cadeia de releituras da Bíblia, ou de outro texto, significa, em última instância, uma

acumulação de sentido. Quanto maior é a distância, mais fecunda pode ser a exploração da

reserva-de-sentido do texto. Por causa disso se pode afirmar que a "distanciação" cumpre uma

função interpretativa.26 A partir de um ponto de vista "historicista", este fenômeno assusta,

porque parece que se perde em proximidade e em exatidão em relação ao sentido original. A

partir de um ponto de vista hermenêutico, no entanto, é um fenômeno fecundo e criativo. Vamos

constatá-lo novamente em II 1.

Para resumir o que analisamos nesta parte I, completaremos a figura anterior:

25

Sobre o tema da comunicação subterrânea de mitos irredutíveis entre si, o que aqui fazemos valer para toda interpretação de fatos ou textos, cf. P.Ricoeur, La simbólica del mal (tomo II de Finitud y Culpabilidad) (Taurus, Madrid 1964) p. 649ss. 26

P. Ricoeur, "La función hermenéutica de la distanciación" (cf. nota 12).

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língua fala texto/escritura (re)releitura

polissemia clausura polissemia clausura

1ª distanciação

2ª distanciação

3ª distanciação

sentido

possível

sentido

ativado

reserva-de-

sentido

exploração

do sentido

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II - PRAXIS E INTERPRETAÇÃO

A pergunta que surge neste momento é a seguinte: Se a pluralidade de leituras é viável

pela própria condição lingüística do texto, o que, então, concretamente, as desencadeia e

diversifica?

1. DO ACONTECIMENTO AO TEXTO

O ponto de partida de um texto é alguma forma de experiência: uma prática, um fato

significativo, uma cosmovisão, um estado de opressão, um processo de libertação, uma vivência

de graça e salvação, etc. Chamamos isto de "acontecimento". Toda ação humana individual,

comunitária, nacional - é uma forma de acontecimento. Acontecimento também é um fenômeno

natural na medida em que incide sobre a vida do homem. Da infinita rede de práticas humanas,

de experiências sócio-históricas, surgem algumas práticas, por uma razão ou outra,

especialmente significativas, que são logo recolhidas em uma palavra.

Há dois fenômenos hermenêuticos que se operam neste momento: Por um lado, a

palavra que surge do acontecimento para narrá-lo ou celebrá-lo está efetuando uma seleção,

privilegiando uma experiência e deixando na sombra muitas outras. É uma forma de "clausura"

e, portanto, de interpretação: esse fato, e não outro, reclama a palavra.

Por outro lado, esta palavra está interpretando este acontecimento no próprio ato de

narrá-lo. Nunca é uma simples crônica, ainda que se o pretenda! Isso se houver crônica que não

seja já interpretação. Toda leitura dos fatos se faz a partir de um determinado lugar e, portanto,

com uma determinada perspectiva. Já o sabemos, porém convém destacar o que implica aquele

fenômeno de seleção/clausura e de interpretação.

Um acontecimento se torna significativo por alguma razão determinada, pelo contexto

no qual tem lugar, ou pelo que por ora poderíamos denominar de "efeito histórico",27 isto é, sua

influência nas práticas de um determinado grupo humano. Não se trata, convém destacar isto,

de uma relação de causa e efeito, onde a primeira desaparece, uma vez produzindo o segundo.

Trata-se, isto sim, de uma relação de sentido. Neste nível, um fato é compreendido como

expressão de sentido de outro, que, por sua vez, vai se configurando como fato "fundante". A

passagem do Jordão é interpretada pela tradição israelita (cf. o livro de Josué 3-5) à luz da

passagem do mar na saída do Egito. Ninguém, contudo, pode afirmar que aquela é efeito desta. É

importante, por isso, diferenciar entre causalidade e sentido.

Vemos, então, que um acontecimento pode produzir sentido e manifestar-se em outro

fato distinto daquele. E assim é visto como "gerador" em relação aos outros. Segundo o que já

dissemos, vai sendo compreendido como "fundante". Porém, é "fundante" somente à distância, à

luz de suas projeções em novos acontecimentos. Há uma espera pela doação de sentido. Ao ser

27

Para este conceito, veja H. G. Gadamer, Verdad y Método. Fundamentos de una hermenéutica filosófica (Sígueme, Salamanca 1977) 370ss. E uma pena que o tradutor tenha traduzido a expressão alemã Wirkungsgeschichte por "história efectual". Se a versão é literalmente correta, literariamente é confusa. Preferimos a fórmula "efeito histórico", ao menos para nosso caso.

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retomado na "palavra" como fato significativo, este manifesta um "mais-de-sentido" que não era

visível no momento de sua própria realização.

Neste ponto é que a leitura "historicista" dos textos bíblicos é empobrecedora. Querer

ler os fatos como se tivessem acontecido na forma em que estão contados é roubar-lhes a

distância hermenêutica que novamente os fez ser significativos. A redação atual dos relatos

bíblicos tem a vantagem hermenêutica de estar muito distante dos acontecimentos. Essa

distância os enriqueceu e recarregou de sentido. Por isso encaramos novamente o papel

hermenêutico da "distanciação", o qual não deve ser reduzido somente aos textos. Tem lugar

também na compreensão dos fatos históricos. Mais adiante veremos a correspondência

hermenêutica entre os dois níveis.

Se um "fato original" amplia sua significação através das leituras que nele se fazem à

distância, incorporando nele novos fatos, (a passagem do Jordão é "retroprojetada" para a

passagem do mar no Egito), verifica-se também o processo inverso. Aquela "leitura

enriquecedora", por sua vez, recarrega de sentidos os acontecimentos ou as práticas a partir das

quais se opera. O êxodo difunde sua significação sobre a posse da terra. O símbolo da passagem

das águas funciona nas duas direções e une os acontecimentos da libertação e da posse da terra.

Estamos diante de outro "círculo hermenêutico", correlato daquele que se dá na interpretação

dos textos. Tem lugar na primeira palavra que surge e "diz" o acontecimento, não importando se

sob a forma de crônica, epopéia, hino, ou outro código lingüístico. Também uma festa é uma

forma de "leitura" de um acontecimento.

Na Bíblia, a "memória" do ato de libertação da escravidão egípcia é recolhida em todos

os gêneros literários possíveis e em todas as épocas. Porém nunca é repetição do sentido do

êxodo original, mas sim exploração de sua "reserva-de-sentido". Os acontecimentos que dão

origem a um povo não se esgotam em sua primeira narração, mas "crescem" em sentido através

de suas projeções na vida daquele. Muito bem, para expressar esse "mais-de-sentido", a

"palavra" do acontecimento o redimensiona e reelabora: a vocação de Moisés, as pragas do

Egito, a páscoa apressada, o cruzar do mar não são episódios do acontecimento da libertação,

mas expressões de seu sentido, como projeto e atuação de Deus, ou como memória festiva (a

páscoa). Se o êxodo tivesse acontecido assim como está relatado, teríamos um documentário e

não uma interpretação, um fato qualquer sem significado teológico, nada mais do que essa

presença fantástica de Deus. Mais especificamente, o povo hebreu viveu aquela experiência de

libertação (que não há razão de considerar-se exteriormente estranha) como "projeto" em

contínua realização. Necessitou remeter-se a ela para realimentar sua esperança, quando

reincidia na opressão, ou para aprofundar sua fé-conhecimento, quando celebrava novas

situações de libertação.

1.1. ACONTECIMENTOS FUNDANTES

É notável o fato de que, na maioria dos povos, as festas nacionais são, mais do que outra

coisa, celebrações de acontecimentos de libertação. Isto é típico na América Latina. Estes

acontecimentos se constituem em fundantes ou arquetípicos em um processo interpretativo à

medida em que esses povos vão desenvolvendo a sua história. A "memória" de uma vitória a

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recarrega de sentido. E o próprio sentido dos fatos que o gera, seja originando-os

concretamente ou que a interpretação os coloque em sintonia. Não se pode afirmar que a volta

do exílio seja gerada pelo êxodo; todavia, a tradição hebraica a interpreta como um novo êxodo

(cf. Is. 11.15s; 19.16-25; 43.16-21; 51. 9-1 1 ).28 O primeiro êxodo revela uma dimensão

significativa mais profunda, quando o povo, em novas situações de opressão ou de cativeiro,

rememora-o como projeto de libertação. As leituras que dele foram fazendo o povo hebreu, logo

a comunidade cristã e, hoje, a teologia da libertação, mostram que é inesgotável em sua

inspiração e em seu sentido. Da mesma forma, os povos retomam seus próprios fatos fundantes

(como suas epopéias de libertação) como inspiração e sentido de sua práxis sócio-histórica. Ao

menos, quando há consciência nacional e projeto histórico.

Aqui reaparece o "conflito das interpretações" que já assinalamos anteriormente ao nos

referir à leitura dos textos (cf. I, 3, c). O mesmo conflito se dá também na leitura dos

acontecimentos, seja porque sempre têm um excesso-de-sentido que não se esgota em sua

primeira realização (são polissêmicos e não têm porque coincidir às interpretações), seja

porque são interpretados desde posturas diferentes. E como sabemos, cada interpretação é

totalizadora, exclusiva, "apropriadora" do sentido.

As lutas de um povo por sua independência são lidas tanto para dinamizar e motivar um

processo de libertação quanto para legitimar a repressão desse mesmo processo. Uma leitura

exclui a outra; ambas, porém, remontam a um só acontecimento "original" e "significativo".

Ambas as leituras obedecem a práticas diferentes - o lugar a partir de "onde" se lê -, por isso a

sua conflitividade. Nenhuma interpretação é inocente, e menos ainda, "objetiva". O

acontecimento interpretado nunca é "objetivo". Isto, porém, não implica que seja "subjetiva" a

leitura. Tem que haver "algo" no acontecimento que permita derivar esta ou aquela

interpretação. O decisivo, mais explicitamente, é a práxis que gera a leitura. Os conceitos "obje-

tivo" e "subjetivo" não servem para expressar o que acontece no ato hermenêutico, e é melhor

não adotá-los (cf. mais adiante, em III, 6,a).

O conflito das interpretações tem seu reverso no conflito das práticas que inspiram o ato

interpretativo. Disto advém que a seqüência de acontecimento/palavra, que até agora estamos

analisando, não termina aqui, mas tem outros elos. Antes de prosseguir nesta análise,

reforcemos alguns pontos daquilo que foi tratado.

Da Clausura à Polissemia

Antes de tudo convém ressaltar que no fenômeno hermenêutico do "acontecimento feito

palavra" nos deparamos novamente com a alternância de polissemia/monossemia, ou, em

outros termos, de reserva-de-sentido/clausura do sentido que havíamos assinalado com relação

à linguagem em seus aspectos semiótico e hermenêutico (cf. a figura de II, 3, ch). Esta

alternância vamos reencontrar em todo o processo que vamos explicar a seguir. O que agora

28

Temos citado textos que são todos do livro de Isaías, porque ali constam. Há muitos estudos sobre o tema do "novo êxodo" em Isaías, especialmente em Dêutero-Isaías (Is 40.55). Cf. por exemplo C. Stuhlmueller, Creative Redemption in Deurero-lsaiah (Pont. Inst. Bíblico, Roma 1970); J. Blenkinsopp, "Objetivo y profundidad de la tradición del éxodo en Déutero-Isaías 40-55", Concilium (dezembro 1966) 397-407. Recentemente, K. Keisov, Exodustexte im Jesajabuch. Literarkritische und

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constataremos é o fato de que em cada elo da cadeia a ordem é da clausura à polissemia. Que

quer dizer isto? Se o acontecimento com que começamos a construir a cadeia é polissêmico, a

"palavra" que o interpreta é uma clausura de sentido. De outro modo não seria uma leitura

inteligível, nem mensagem. Em uma segunda instância, todavia, a referida "palavra" se abre

novamente a uma outra leitura, porque, como "texto" que de alguma forma é, recobra seu valor

polissêmico.

Tradição

A segunda observação que queremos adiantar - sem desmerecer o tratamento explícito

(cf. mais adiante, parte III, 3) - refere-se às conseqüências teológicas que tem aquela constatação

hermenêutica de que o acontecimento se faz "palavra". No caso da Bíblia, significa que este livro,

antes de ser palavra de Deus, foi acontecimento de Deus. A experiência salvífica de Israel é

interpretada em um relato que põe em relevo uma presença de Deus que, seguramente, não se

deu faticamente como está literariamente registrada.

Muito bem, esse relato, dentro de um grupo determinado, converte-se em tradição viva.

A distância com relação à sua primeira inscrição de sentido abre-o outra vez à releitura. Por isso

dissemos há pouco que essa "palavra" enclausuradora da mensagem do fato torna-se

polissêmica em um segundo momento. É a continuação de um mesmo processo hermenêutico. A

tradição, então, que se reveste de muitas formas, desde práticas determinadas até textos orais

ou escritos, é a releitura organizada de anteriores leituras de acontecimentos fundantes. O

adjetivo "organizada" deve entender-se no sentido de uma estruturação social de práticas, mitos

ou relatos sobre as origens, cosmovisão, leis, ritos, etc., que aglutinam um grupo humano. Isto

pode se exemplificar no caso de Israel, de outras religiões, ou de tradições filosóficas, políticas

ou de qualquer signo. A realidade social e o fenômeno hermenêutico subjacente

interrelacionam-se em todos os casos. Não importa aqui a dimensão ou a quantidade de

tradições. Em seu tempo, a tradição "javista" do Pentateuco certamente entrou em conflito com

a tradição "eloísta". Na redação atual, no entanto, confluem em uma nova tradição que as

engloba sem conflito. Este fenômeno tem mil ramificações.

Por isso, de forma genérica, falamos em tradição para ilustrar o que acontece a nível de

interpretação se partirmos de um acontecimento significativo. Como cada tradição, ou cada

momento de uma tradição maior, entra em conflito com outra tradição atual que remonta ao

mesmo fato interpretado, defrontamo-nos novamente com o que denominamos de luta pela

apropriação do sentido, com pretensões de totalidade e exclusividade.

Em um novo passo, a tradição, que era clausura de uma leitura anterior dos

acontecimentos originais, tende a fazer-se polissêmica, a abrir-se à interpretação. Pois nenhuma

tradição viva é estática. Isto seria sua morte. O próprio fato de falar de "tradição", porém,

implica que há um contexto que a delimita, controla, marcando suas fronteiras. Aqui, sua

releitura significa muitas vezes a divisão. Costumam haver duas saídas, quando a tradição chega

ao momento de maior tensão em seu crescimento de sentido: ou se divide ou se "enclausura"

Motivgeschichtliche Analysen (Orbis Biblicus et Orientalis, Friburgo 1979). Nega a presença deste tema no Dêutero-Isaías: H. Simián, "Exodo en Deuteroisaías", Bíblica, 61 (1980) 530-553, com bastante argumentos, mas muitos extratextuais.

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em um cânon, o qual também excluirá aspectos da tradição, o que equivale a originar alguma

divisão.

1.2. CÂNON

O surgimento de um "cânon" de escrituras se verifica em toda tradição, seja religiosa,

filosófica, histórica, política, ou de outro nível. Necessita-se estabelecer quais são os textos

autênticos de Platão, de Tomás de Aquino, de Marx, como dos livros sagrados nas religiões (os

Vedas, o Alcorão, a Bíblia, este ou aquele ciclo de mitos). Poder-se-ia crer que nas religiões sem

Escrituras Sagradas não existe alguma forma de cânon; no entanto, os mitos, dentro de uma

determinada cosmovisão religiosa, não são ilimitados nem incoerentes entre si. Ao contrário,

são perfeitamente coerentes e se explicam uns pelos outros, sendo, como conjunto,

semanticamente irredutíveis aos de outra cosmovisão. É uma forma de cânon, de mitos, não de

Escrituras. Em todo caso, trata-se de textos.

O cânon é um fenômeno de "clausura" que exclui outras leituras de uma tradição

antecedente e orienta a interpretação de novas práticas. Toda clausura do cânon, portanto, é

parte de um longo processo hermenêutico. Em um determinado momento de seu percurso, faz-

se um "corte" e uma delimitação dos textos (orais ou escritos) que representam a interpretação

dos acontecimentos que deram origem a essa mesma tradição. Se são muitos textos, assumem-

se como totalidade, voltando ao ponto de vista lingüístico antes desenvolvido, que constituem

um novo e único texto. Assim, da "intertextualidade" (um texto relacionado com outro, um mito

compreendido por outro da mesma comunidade, etc.) passa-se à "intratextualidade" (tudo o que

está dentro de um só grande texto). Desta maneira, em um certo momento, a Bíblia parece ser

um só livro, e desde o Gênesis até o Apocalipse há um só sentido querigmático, apesar de suas

múltiplas variações ou manifestações. Este fato explica por que na Bíblia há tantas pequenas

tradições díspares, tantas correntes teológicas, sem que isso tenha afetado sua aceitação global.

Constatação idêntica se pode fazer também no interior de cada livro, que recolhe tradições

anteriores em um novo nível: trata-se sempre de converter à intratextualidade o que até então

era uma relação intertextual.

Ainda uma reflexão a mais sobre o cânon. Admitimos que sua constituição vem

acompanhada de alguma forma de divisão. O cânon samaritano das Escrituras (reduzido ao

Pentateuco) contrapõe-se a outro cânon, judaíta, do sul, onde a seleção dos textos "sagrados" se-

guramente se processou com critérios políticos e não somente religiosos. No ano 90 d.C., os

rabinos reunidos no Concílio de Jâmnia (local da atual cidade de Tel-Aviv) estabeleceram um

cânon "definitivo" dos livros sagrados, porque sentiram a necessidade de delimitar o

crescimento de textos religiosos e, ao mesmo tempo, opor-se à formação de uma literatura

cristã que era uma releitura do Antigo Testamento. Os livros sagrados deveriam ser aqueles

usados como tais, escritos na Palestina, em hebraico ou aramaico, até a época de Esdras, e que

não possibilitaram aos cristãos fazer sua leitura cristológica do Antigo Testamento. Este fato

não apenas selou, a nível de literatura sagrada, a divisão com um cânon cristão. Dividiu também

a comunidade judaica, pelo menos de duas maneiras: rechaçou-se o cânon alexandrino (a LXX)

usado pelas comunidades judaicas helenistas e seguramente provocou também rechaços e,

portanto, exclusões de grupos de judeus palestinos.

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3

A formação do cânon do Novo Testamento teve também suas vicissitudes, oposições e

divisões. Durante a Reforma protestante criou-se uma nova divisão no cânon: os protestantes

assumiram o cânon hebraico da tradição judaica e os católicos (e ortodoxos) o cânon ale-

xandrino a LXX, que já se usava na Igreja desde sua expansão inicial pelo mundo de cultura e

língua gregas. Trata-se sempre do mesmo fenômeno hermenêutico com variação apenas de

conteúdos ou de nomes.

O leitor certamente já terá notado que a esta altura nos encontramos novamente com o

nível de linguagem do qual havíamos partido. O acontecimento-sentido está recolhido agora em

um texto-sentido que tem a força de ser uma Escritura. Já a "palavra" nos transpõe ao plano da

linguagem (cf. o esquema em II, 4). A criação do cânon, por sua vez, reforça a inscrição da

mensagem em um texto escrito e delimitado. Os eventos salvíficos vividos pelo povo de Israel

voltam a estar presentes na medida em que são lidos, ouvidos e interpretados na forma como

estão mediados pelas leituras prévias que convergem em um texto atual (intratextualidade), que

se faz normativo. E nesta etapa que se cria o teologúmeno dos "livros sagrados" e inspirados.

Inspiração

Do que até aqui analisamos, resultam algumas observações sobre o tema da inspiração.

A relevância outorgada ao texto bíblico como revelação de Deus nos faz esquecer o processo de

sua produção, que expusemos. Em III, 3, vamos nos demorar sobre o tema da revelação. A

teologia da inspiração bíblica é uma vertente da revelação enquanto esta está contida nos livros

sagrados que chamamos Bíblia. A doutrina da inspiração afirma que Deus inspira os autores

para escrever os livros que logo formarão o cânon bíblico. A referida presença de Deus é uma

garantia de inerrância. Somente posteriormente, sem precisar muito a questão dos códigos

lingüísticos, discute-se os limites desta inerrância.

Pois bem, à luz do que vínhamos estudando sobre semiótica e hermenêutica, esta ênfase

nos autores dos textos nos parece ultrapassada. Não toma em consideração que o autor morre

na produção do texto. Uma pessoa lê um texto e não seu autor. Resumir a inspiração bíblica nos

hagiógrafos é uma forma de "historicismo" e, por mais que se suponha o contrário, deixa o texto

desprotegido desse véu sagrado. Que validade tem, então, a releitura desses textos que

recolhem uma reserva-de-sentido não prevista pelo autor?

Também em um segundo aspecto a doutrina tradicional da inspiração parece deficiente:

provoca um curto-circuito entre "Deus-que-fala/hagiógrafo/texto". Deus inspira o hagiógrafo

para que escreva o texto. Estamos percebendo que o caminho de chegada ao texto, sobretudo ao

texto canônico, tem como ponto de partida o "Deus-que-atua" na história. O "Deus-que-fala" (= a

palavra de Deus) é a leitura, a partir da ótica da fé, do Deus da história salvífica. De qualquer

forma, se a inspiração, como símbolo, tem relação com a verdade dos textos bíblicos, não se

deveria centrá-la sobre os autores, mas nos próprios textos. A inspiração se entende melhor

como fenômeno textual. Se o texto é inspirado, toda releitura da Bíblia adquire um sentido de

alguma forma inspirado, mesmo naquilo que tem de "reserva" e ultrapassa a intenção de seu

autor.

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4

Canonicidade e Re-criação

Embora fosse pretensão, nem tudo se fechou com o cânon. Se o cânon procura

enclausurar o sentido de um acontecimento-relato, no mesmo instante pressiona a polissemia

do acontecimento e do próprio relato. Há um excesso-de-sentido que transborda e deve ser

recolhido em novas práticas e em novas palavras. Os novos acontecimentos são vividos à luz das

Escrituras normativas, porém ultrapassam-nas. O que acontece então, se o cânon é uma

clausura que não admite reaberturas ou inclusões de novas tradições? Como texto que é, a

polissemia está presente no cânon e é uma ilusão impossível deter aí a interpretação.

Há diversas saídas. O texto canônico não pode ser modificado nem ampliado. Surgem, no

entanto, os comentários, por exemplo. Assim, as Upanishadas são uma interpretação da

"revelação" (sruti, em sânscrito) contida nos Vedas, do mesmo modo como mais tarde o será o

Vedanta. O Talmude é o comentário autêntico da Torá. Os escritos dos Pais da Igreja são uma

interpretação autorizada do cânon cristão, e assim sucessivamente. Há também um "cânon" dos

textos de Marx, atrás do qual estão as interpretações.

Além do comentário, existem outros tipos de literatura que sobrevivem à constituição de

um texto sagrado que não se pode modificar: o targum é uma forma atenuada da releitura; o

midrash é um novo texto que interpreta outro texto em função de novas situações. Os poucos

dados sobre a infância de Moisés (Exodo 2) são ampliados em um midrash. O mesmo acontece

com os evangelhos da infância de Jesus (Mateus 1-2 e Lucas 1-2) em relação à tradição recebida,

que tratava da vida de Jesus do batismo em diante. Fora do cânon do Novo Testamento,

conhecemos muitos apócrifos que "completam" a vida de Jesus. Na verdade, busca-se alcançar o

texto sagrado até em situações nele não claramente contempladas.

Por vezes, a força recriadora de um acontecimento-relato (como o Novo Testamento

enquanto releitura do Antigo) é tal que, devido ao conflito das interpretações que pressupõe,

incorpora-se ao próprio cânon. Este processo, no entanto, somente pode ser instaurado pelo

grupo que faz a releitura do Antigo Testamento (a igreja cristã). Como conseqüência, o cânon

cristão entra em conflito com o cânon judaico. Em ambas as leituras pretende-se a

"apropriação" do sentido dos eventos salvíficos, e a divisão advém como normal. Como se vê, a

história do cânon das Escrituras é parte de um processo hermenêutico e este é parte da história

das tradições.

O cânon não é nem o início de uma tradição, nem o seu fim. É um momento de seu

itinerário ininterrupto. Quando se fala de "inspiração do cânon", está-se expressando um novo

ato hermenêutico: é uma interpretação dessa clausura do sentido que é a opção histórica de

uma comunidade, vista como indicação do próprio Deus. A partir de então, não é mais possível

retirar nem acrescentar nenhum livro ao cânon normativo. Temos, contudo, enfatizado que o

processo interpretativo não pode ser fechado. Gera-se uma vasta produção literária, desde uma

simples tradução (como a LXX ou outras) até o targum, o pescher ou o midrash. O targum é a

versão do texto hebraico para o aramaico, porém com algumas liberdades hermenêuticas que

introduzem naquele atualizações imprescindíveis da mensagem. O pescher é um comentário a

um texto bíblico, versículo por versículo ou escolhendo passagens específicas. Cita-se o

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versículo e o comentário começa dizendo: pesher ou pishrô, "a explicação" ou "sua explicação" é.

. . Nos rolos do Mar Morto, este gênero literário pareceu como característico.29 E uma forma de

releitura do texto canônico. O midrash, conforme falamos acima, é a ampliação livre de um texto

bíblico na forma de uma história nova. O midrash é parte da literatura rabínica que remonta,

senão antes, pelo menos à época de Jesus. Existem muitos midrashim (N.T. Plural de midrash). O

midrash, porém, além de ser um gênero literário, é um método hermenêutico usado para

explorar o sentido profundo de um texto bíblico. Neste nível é denominado de derash.30

Estes são exemplos de transbordamentos do cânon, uma vez produzida sua imobilidade,

tradicional ou oficial. Existe também o comentário exegético ou homilético dos textos bíblicos,

ou as sistematizações teológicas e filosóficas que se inscrevem em uma determinada tradição e

excluem a outra. O cânon, então, que, no momento de sua constituição era um expressão

"enclausuradora" do sentido, férrea e autoritária, converte-se em polissêmico pelo fato de ser

um texto, pela distância que se produz entre ele e as gerações sucessivas que o lêem e pela vida

da comunidade que o transmite. Temos assinalado várias maneiras de como a releitura

desembaraça o sentido de um texto que não reescreve.

É importante anotar também que a releitura da Bíblia não se opera somente como

trabalho literário, em nível de especialização. Nunca. Nem o midrash ou a pesher foram produto

da especialização rabínica ou dos doutores da Lei. Foram gerados em uma comunidade, em

muitas comunidades, ou no seio de correntes teológicas de grupos religiosos.

A aspiração do exegeta - por vezes explicitada - de isolar o sentido objetivo, histórico, do

texto bíblico é uma ilusão. Além disso, é difícil que possa redescobrir o "atrás" do texto. Esta é

sua pretensão quando usa os métodos histórico-críticos não complementados pela crítica

literária em sentido amplo, nem pela semiótica e a hermenêutica. O que na verdade explora são

as possibilidades do texto de ser interpretado de uma maneira sempre nova. Analisa-se o pen-

samento de Paulo em uma de suas epístolas, mas Paulo é conhecido apenas através de textos.

Nenhum exegeta o conheceu de outra maneira. Coisa diferente é quando a crítica histórica pode

contribuir com elementos extratextuais para conhecer o autor de um texto, ou o seu contexto

cultural. Tudo isto é positivo, conforme já assinalamos na introdução. A reserva-de-sentido de

um texto, no entanto, não depende desse conhecimento, mas sim do texto mesmo e da vida que

orienta a pergunta pelo mesmo. É o que vínhamos afirmando e seguiremos dizendo como

objetivo deste ensaio.

É necessário também reconhecer que o exegeta está imerso em uma tradição, em um

contexto histórico, é sujeito de determinadas práticas sociais. Tudo isso condiciona sua leitura

da Bíblia como releitura. O mesmo faz a Igreja ao interpretar a palavra de Deus: sua leitura é

"enclausuradora" porque se faz a partir de um certo lugar; em outras palavras, a partir de uma

determinada prática, ao mesmo tempo religiosa e política. E o que acontece com o povo? A sua

leitura da Bíblia está mediada pelos "conhecedores" (o teólogo, o especialista) ou pelos

"poderosos" (a autoridade da Igreja). Fora de dúvida, quando toma acesso a esse livro, tantas

vezes vedado, sem aquelas mediações, sua leitura tem uma fecundidade insuspeitada. O mesmo

se realiza a partir de um processo de libertação ou a partir de outra situação em que o povo ou

uma comunidade são o sujeito tanto da história quanto da leitura do querigma bíblico. Que é

29

Sobre o "conhecimento do mistério" que inclui o pesher (um aspecto hermenéutico!) cf. F. García Martínez, "EI pesher: interpretación profética de la Escritura", Salmanticensis, 26 (1979) 125-139. 30

Veja nota 6.

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isto que acontece aqui? Esta pergunta nos introduz no novo ponto de aprofundamento do

fenômeno da releitura da Bíblia. Antes, porém, resumiremos em um diagrama o que analisamos

neste ponto.

ACONTECIMENTO

Palavra-

Relato

Tradição/ões

CÂNON

(Re)leitura

Polissemia Clausura

polissemia

Clausura

polissemia

Clausura

polissemia

Clausura

(o acontecimento se abre para muitas leituras, cada uma das quais fecha o sentido, para

novamente abrir-se, e assim sucessivamente).

2. O "ADIANTE" DO TEXTO

Se toda leitura é produção de sentido e se faz a partir de um determinado lugar ou

contexto, então resulta que o verdadeiramente relevante não é o "atrás" histórico de um texto -

o qual por certo não podemos renegar -, mas sim o seu "adiante": o que ele sugere como

mensagem pertinente para a vida daquele que o recebe ou busca. Como texto polissêmico que é,

a sua leitura é sempre exploradora. O texto desprende "para diante" um "mundo" de

possibilidade, que o leitor pode sintonizar com seu próprio "mundo". Chamaremos a isto de

"fusão de horizontes"31 ou como se queira. O importante é o fato de que o "adiante" de um texto

nega sua rigidez e o bloqueio do sentido passado como o único sentido fechado.

A Bíblia é um texto aberto. Já como texto ela o é. Para isso devemos estar advertidos, se

queremos que ela seja mensagem viva também hoje. Aqueles que mais necessitam realimentar-

31

H. G. Gadamer op. cit., p. 377s, 453s, 477.

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se com a mensagem libertadora da Bíblia, os oprimidos de toda espécie, são aqueles que menos

acesso têm tido a ela. Ora, o que chamamos releitura da Bíblia - um aspecto do complexo

fenômeno da hermenêutica - diz respeito especialmente a eles. Por isso a conscientização sobre

a teoria hermenêutica é vital para a teologia da libertação, a reflexão da fé feita a partir das

esperanças e das lutas dos oprimidos.

A partir desta perspectiva de uma leitura da Bíblia a partir "da base", há algumas

dificuldades e vantagens. Assinalamos duas desvantagens: a) Antes de tudo, a Bíblia é um livro

muito extenso; nele há de tudo e nele se pode encontrar de tudo. Existe uma contribuição por

parte da semiótica narrativa e da hermenêutica a esse respeito? Vamos ver que sim. b) A Bíblia é

um livro em sua maior parte terminado e estruturado por uma classe social acomodada e

distante do povo. Isso é mais visível no Antigo Testamento, que reflete mais fortemente a

ideologia do sul (Judá), de Jerusalém em particular, onde atuava a classe dirigente do país.

Aquela situação geral se prolongou através dos séculos no processo de transmissão catequética

e teológica. A teologia clássica tinha os recursos para reproduzir-se ao infinito e não podia sair

de seu círculo.

Quais seriam as vantagens da Bíblia, assim como a herdamos, para uma leitura criativa e

libertadora? Há uma vantagem inapreciável: Originou-se, na origem do seu próprio povo, em um

processo de libertação. A concepção israelita de Javé, o Deus do povo hebreu, está

indissoluvelmente ligada à experiência de libertação da escravidão no Egito. Em tal contexto, o

Deus salvador se identifica com o Deus libertador. Após narrar os feitos memoráveis da

saída/fuga do Egito, o texto comenta: "E Israel viu a poderosa mão com que Deus atuou no Egito,

e o povo temeu a Javé e creu nele e em seu servidor Moisés" (Ex. 14.31). É um crer que surge da

experiência de libertação.

Este será daí por diante o "referente" no projeto histórico-salvífico de Israel. Por isso, no

relato da vocação de Moisés como líder da libertação dos hebreus (Ex. 3.1-20) - relato que

também é "palavra" do acontecimento do êxodo relido por gerações, o Deus que fala assegura

"estar com" Moisés na luta de libertação (3.12). A glosa dos vv. 13-14, que segue; não identifica

Javé como "aquele que é", mas como "aquele que está (com Moisés/Israel)". É um comentário ao

v. 12, ligando o nome conhecido de "Javé" com sua presença salvífica naquele acontecimento.32

O conceito que a Bíblia tem de Deus é uma releitura da vivência do êxodo.

Por isso também suas instituições, as festas, a crítica profética à ruptura da aliança, o

anúncio de uma nova ordem de justiça, a esperança messiânica, a proclamação de Jesus,

recuperam a "memória" do êxodo como conteúdo libertador. Mesmo aquilo que foi adotado do

universo cosmovisional mítico terá um novo sentido: o templo, muitos ritos, a linguagem sobre

Javé, etc. Trata normalmente de uma transposição da linguagem simbólica das religiões vizinhas

de Israel (sobretudo na hinologia de Israel e na disputa profética pela identidade de Javé).

A isto se junta, para reforçar a teologia do Deus da libertação, o teologúmeno das

cosmovisões vizinhas sobre Deus (e o rei como seu representante) como aquele que distribui e

garante a justiça e o bem.33 Tudo isto constitui um "eixo semântico" a nível de texto, que, ao

32

Ver "Yavé, el Dios de la "presencia" salvífica. Ex 3.14 en su contexto literario y querigmático", Revista Bíblica 43:3, n° 3, (1981) 153-163. Mais amplamente "Yo Estaré (Contigo). Interpretación de Ex 3.13-14" em: V. Callado e E. Zurro (eds.). EI Misterio de Ia Palabra (Cristiandad, Madrid, 1983), pp. 147-159. 33

Cf. H. H. Schmid, Gerechtigkeit als Weltordnung (Mohr, Tubinga 1968); A. Gamper, Gott als Richter in Mesopotamien und in Alten Testament (Wagner, Innsbruck 1966). O tema aparece especialmente nos documentos legais e nos títulos reais; S. H. Paul, Studies in the Book of the Covenant in the Light of Cuneiform and Biblical Law (Brill, Leiden, 1970); M. J. Seux, Epithètes

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mesmo tempo, é um "eixo querigmático" a nível de mensagem. Central no Antigo Testamento, o

referido eixo se prolonga no Novo Testamento, através da mensagem salvífica de Jesus dirigida

preferencialmente aos oprimidos de qualquer espécie; em sua opção pelos pobres; em sua

morte como profeta rechaçado por causa de sua palavra e dos seus feitos.

Cabe neste contexto relembrar a cena programática de Lucas 4.16-30: Jesus relê como

"cumprido" nele o grande texto de Isaías 61.1-2 sobre o anúncio da boa nova aos pobres, da

libertação aos cativos, da visão aos cegos, da liberdade aos oprimidos (v.18). Se o relato encerra

com uma nova menção da "boa nova" (v.43), esta continua sendo a mensagem aos pobres e

oprimidos e não um conteúdo genérico e difuso qualquer. O texto conclui: "pois para isso é que

fui enviado" (v. 43b). Não é preferencial, senão até exclusiva, esta opção pelos oprimidos?34

O mistério pascal, elo articulador do querigma cristão, justamente devido a sua reserva-

de-sentido como acontecimento e como texto da tradição que culmina na narração dos

evangelhos; pode ser interpretado e avaliado em diversas perspectivas pelos relatos do Novo

Testamento35. De uma forma ou de outra, percebe-se a força da esperança por libertação

aninhada na consciência do povo da Bíblia. Mesmo com as transposições de contexto, a

mensagem de libertação impregna as páginas do Novo Testamento, percebendo-se às vezes,

ainda que à distância, os ecos da teologia do êxodo.

3. A INTRATEXTUALIDADE DA BÍBLIA

3.1. NOVO SENTIDO EM NOVAS TOTALIZAÇÕES

O desenvolvimento do nosso tema nos obriga a fazer uma precisão, originada na

semiótica, mas proveitosa para a hermenêutica. A "semiótica narrativa" nos ensina que a

mensagem de um texto não está em um fragmento do relato, mas em sua totalidade como

estrutura que codifica um sentido. No relato do sacrifício de Isaque em Gênesis 22, por exemplo,

não é uma "frase principal" que evidencia a significação do episódio, mas sim toda a seqüência

de funções narrativas intervêm na produção de sentido por parte da leitura subseqüente. Porém

um relato "tecido" com outro produz um novo relato, não uma soma dos dois, e o sentido estará

nessa nova totalidade codificada que constitui um texto e não mais é a soma das duas unidades

literárias ou de suas significações originais. A produção de sentido se modifica, e assim

sucessivamente, à medida em que um texto entra no outro texto, à medida em que da

intertextualidade passa a uma intratextualidade maior.

royales akkadiennes et sumériennes (Letouzey et Ané, Paris 1967); N. P. Lemche, "Anduràrum and mišarum: Comments on the Problem of Social Edicts and their Applications in the Ancient Near East", Journal of Near Eastern Studies 38 (1979) 11-22; H. J. Boecker, Law and the Administration of Justice in the Old Testament and Ancient East (Augsburg Publishing House, Minneapolis 1980); havíamos feito uma síntese do problema em "EI Mesías liberador de los pobres", Revista Bíblica, 32, n° 137 ( 1970) 233-240. 34

Uma boa leitura exegética de Lc. 4 é a de C. Escudero Freire, Devolver el Evangelio a los pobres (Sígueme, Salamanca 1978) p. 138-141 e esp. 259-277. 35

Para uma ampliação, veja J. C. Maraschin, "Boas novas aos pobres e libertação aos presos e oprimidos", Simpósio, 21 (1980) 36-51; J. Pixley, "EI Reino de Dios, ¿buenas nuevas para los pobres?", Cuadernos de Teología, 4:2 (1976) 77-103; para o Jesus dos evangelhos, cf. Liberación y Libertad (nota 1) cap. V.

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Através dos métodos críticos pode-se reconhecer acréscimos ou interpolações nos

textos. No Salmo 78, o v. 9 destoa do contexto. Faça o leitor uma prova, lendo-o sem esse

versículo e verá que o hino é uma confissão nacional de pecados, com ênfase na ruptura da

aliança e na infidelidade à Lei. Os verbos na 3ª pessoa do plural dos vs.10ss referem-se aos

"pais", à geração do êxodo e do deserto (cf. vv. 4b-7). Em uma segunda leitura, que é a atual,

reponha o v. 9 que diz: "os filhos de Efraim, destros arqueiros, retrocederam no dia do

combate". Isto nada tem a ver com aquilo que o hino vinha dizendo, no entanto produz um

efeito de sentido estrutural: os verbos que seguem (v. l0ss) referem-se agora aos efraimitas, aos

israelitas do norte. Dessa maneira, todo o salmo é modificado em sua estrutura e em mensagem.

Esta mudança recebe a sua confirmação no complemento dos vv. 67-72 que exaltam a eleição de

Judá e de Jerusalém, ou seja a ideologia do sul, e rechaçam o Israel do norte.

Qual texto nós devemos ler? Sem dúvida alguma, e por pouco que isso nos agrade, o

texto em sua forma atual. A reconstrução crítica do relato nos ajuda a pôr em relevo a sua nova

redação. Contudo, o acréscimo já não é o mesmo no texto transmitido: é um novo texto que,

assim como é, produz sentido. Porém sempre terá o seu "adiante" hermenêutico aquilo que ele

nos diz a partir de um novo horizonte, que de certa maneira é uma "nova intratextualidade".

A passagem da intertextualidade à intratextualidade pode ser ilustrada

excelentemente com o livro de Amós. É conhecida a divisão do relato profético em duas seções

distintas. Enquanto 1.1-9.10 contém oráculos dirigidos a Israel, todos de crítica e denúncia dos

pecados sociais dos poderosos contra os humildes, em 9.11-15 anuncia-se a restauração da

dinastia davídica e uma grande prosperidade futura. Sem qualquer dúvida, estes vs. finais são

posteriores a Amós (as figuras, o conteúdo, a oposição ao restante do texto, são provas suficien-

tes). Porém, o que resulta disso? Pensar que um redator justapôs oráculos de épocas diferentes

é uma constatação banal. Outra coisa é reconhecer aí um evento lingüístico e um fenômeno

hermenêutico de profundo valor teológico. Com efeito, o livro de Amós, em sua forma atual, é

um texto e como tal deve ser lido para se captar toda sua mensagem. Não importa que já não

seja o texto do Amós histórico, mas sim que é um texto de Amós (cf. a análise de I, 3, b).

Os oráculos de salvação finais modificam a posição narrativa e, portanto, o

significante dos castigos. O que estes últimos significavam antes (em sua proclamação pelo

profeta, ou como obra literária), a saber, o juízo definitivo e a destruição do povo de Israel,

significam agora que o castigo não é total e que obedece a um desígnio profundo que é o de

possibilitar a continuidade da própria promessa: Deus não pode suportar o pecado e a falsidade,

nem a injustiça (Amós 1-9) que invalidam o projeto histórico reconhecido na libertação do

êxodo (veja a tematização de 2.6-16). Israel não se converte por causa da denúncia profética,36

mas sim no sofrimento da ruína, situação em que recupera sua fidelidade ao Deus libertador

que, uma vez mais, salva de uma nova opressão (a do exílio).

Repetimos: Amós 1.1 até 9.15 é um texto que deve ser lido como totalidade narrativa

e estrutural que modifica a mensagem das partes integradas. Em outras palavras, não é a mesma

coisa se 9.11-15 tivesse se constituído em livrete em separado ou fosse uma das seqüências

narrativas do grande relato de 1.1 a 9.1 5. Como fenômeno hermenêutico, o texto de Amós dá a

entender que o acontecimento do cativeiro ou da situação de povo dominado do Judá pós-exílico

36

Veja "Palabra profética y no-conversión: la tematización bíblica del rechazo al profeta" (a ser proximamente publicado no ISEDET, Buenos Aires).

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o conduziu a reinterpretar a antiga mensagem do profeta (já concretizada na sua expressão de

juízo) à luz de uma nova esperança de libertação.

Entretanto, o leitor ter-se-á dado conta de que a redação atual não se dirige mais ao

reino do Norte, Israel, mas a Judá. A releitura implicava esta transposição. Reler não é evacuar o

sentido, mas explorar sua sobre-abundância latente em sua polissemia textual. Amós 9.11-15

destaca com toda clareza a exigência de justiça de 1.1-9.10, como núcleo querigmático que se

projeta à nova etapa anunciada nos versículos finais do relato.

3.2. A BÍBLIA: UM TEXTO ÚNICO

Muito bem, o que este exemplo nos mostrou em pequena escala pode ser estendido a

toda a Bíblia. De alguma maneira, este é um texto, sobretudo desde que constitui um cânon

delimitado de obras literárias. Esta clausura instaura novas relações entre as diferentes partes e

entre os diferentes "corpora" (legal, histórico, profético, sapiencial, evangélico, epistolar,

apocalíptico, etc.). Assim como toda obra estruturada, tem um começo e um fim

(Gênesis/Apocalipse) e uma ordem interna.

A justaposição do cânon judaico e da produção cristã primitiva produz também um

efeito-de-sentido, que é o de apresentar o Novo Testamento como uma formidável releitura do

Antigo. A justaposição externa converte-se, assim, em totalidade fechada. Continuar falando de

"Antigo" e "Novo" Testamentos tem uma utilidade prática (distinguir blocos, tradições, épocas),

mas é um tipo de linguagem que destrói o esforço hermenêutico, da igreja primitiva de

constituir um único texto. Melhor seria empregar termos como "Bíblia", "Escrituras". Tampouco

se pode ser especialista em "Antigo" ou "Novo" Testamentos. Isso é um desmembramento

antissemiótico. Pode haver uma dedicação maior nesta ou naquela parte da Bíblia. Porém

estudar ou ensinar "Antigo Testamento" sem entrar no chamado "Novo Testamento"; estudar

ou ensinar este sem buscar suas raízes no chamado "Antigo Testamento" significa uma ruptura

epistemológica que anula especialmente o sentido daquele como releitura das tradições de

Israel. Seria, ironicamente falando uma nova releitura da Bíblia como se fossem duas obras

distintas. Uma coisa, por certo, bastante estranha.

Por isso a Bíblia é um texto, não é, por adição, a soma de muitas unidades literárias, mas

a unificação de um querigma central, lingüisticamente codificado. Desde então, é possível

reconhecer neste grande relato os "eixos semânticos" que orientam a produção de sentido que é

a nossa leitura da Bíblia. Esta é uma tarefa quase nova, infinitamente importante, sobretudo

frente à dificuldade assinalada no começo da seção anterior no parágrafo 2 (a extensão e

diversidade de tradições e conceitos teológicos da Bíblia). Ao final dessa seção havíamos

sugerido um desses "eixos de sentido" da Bíblia como totalidade (o querigma da libertação dos

oprimidos). Outros "eixos" que estruturam toda a Bíblia como grande relato são os de justiça, o

amor e a fidelidade, a esperança, a aliança, a profecia, a presença de Deus como graça, o juízo, a

liberdade, etc. A tarefa não consiste em registrar temas relevantes, mas registrar sua

estruturação na obra total que é a Bíblia.

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1

Retomar a Bíblia como um texto enriquecerá em muito as leituras fragmentárias de

perícopes ou livros. De saída há necessidade de rechaçar os estudos limitados ao léxico, pois

transferem a mensagem do relato como totalidade para as palavras em seu valor semântico, o

que às vezes é uma regressão ao estado da língua ou do dicionário! As palavras têm sentido

somente em um texto que o enclausura. Se em um relato maior há muitos micro-relatos, o

sentido de um mesmo vocábulo não se unifica. A palavra "justiça", por exemplo, não tem um

mesmo sentido ao longo de toda a Bíblia. Seria um erro de perspectiva que às vezes se comete,

forçando a significação dos vocábulos e esquecendo que o importante não é o vocábulo, mas o

relato. Quando falamos de "eixos semânticos" não estamos afirmando que "justiça", "libertação",

etc., têm somente um sentido em toda a Bíblia, mas sim que nesta, entendida como totalidade

narrativa, há uma nova produção de sentido, onde muitos sentidos de alguns vocábulos ou

idéias, que não se desprendem de seus próprios contextos literários, estruturam-se de maneira

tal que produzem um efeito-de-sentido novo.

Buscar na Bíblia os "eixos semânticos" é fazer uma nova leitura, hermenêutica por

pressuposto, graças à contribuição da semiótica. Por exemplo, há narrações bíblicas, ou textos

soltos, que defendem o rei como representante de Deus, por ele designado para governar Israel,

e há outros que o apontam como rival de Javé ou que o criticam como infiel em sua função. Há

textos que rechaçam a autoridade e outros que exortam a obedecer as autoridades. Na

totalidade da Bíblia, no entanto, não é assim que o poder - do rei, do juiz, etc. é um instrumento

para salvar os desvalidos, aqueles que não têm poder e por isso são explorados, aqueles que não

o têm e por isso não podem libertar-se? Não resulta disso, ao mesmo tempo, que o poder em

mãos humanas é frágil e facilmente se corrompe e se degenera em opressor?

Convém relembrar que a sinagoga compreendeu o cânon das Escrituras como uma

totalidade. Quando alguns textos aludem à "Lei", não se limitam ao Pentateuco somente, mas

referem-se a todas as Escrituras enquanto são estatuto divino para Israel. Também o termo

"Profetas" às vezes se refere à totalidade dos livros de cânon que são entendidos como

mensagem escatológica. Essa foi também a perspectiva da igreja primitiva que releu todo o

Antigo Testamento como texto total e único (nível semiótico) com uma chave hermenêutica

única (o mistério pascal). Essa releitura não consistiu em despojar o Antigo Testamento dos

livros menos apropriados ou das passagens que realçassem o valor da Lei e que às vezes

inclusive contradissessem a práxis cristã (como por exemplo o anátema ou hérem, o ideal de

domínio de Israel sobre as outras nações: Dt.15.6; Is 60.12, etc.). O normal teria sido excluir o

Levítico e muitos outros textos que regulam a ordem sacerdotal perimida (N.T. sem significado)

para os cristãos. Não foi assim. O chamado Antigo Testamento, como uma unidade, é a palavra

de Deus que transborda a contextualização de cada uma das passagens e se orienta a um télos

(N.T. de teleios, fim, propósito, objetivo completo) querigmático, que é Cristo (Gl. 3.24 com Rm.

10.4).

Se tivesse recortado o cânon judaico, a Igreja teria produzido outro texto cuja leitura

já não poderia ser a apropriação do sentido das tradições de Israel. Este era um ponto decisivo,

pois a igreja emergente não tinha consciência de ser outra "criação", mas a reinterpretação de

Israel. Mais ainda: ser a interpretação de suas tradições (a clausura hermenêutica esperada),

como se vê na apropriação de todo o simbolismo de Israel nos escritos cristãos (canônicos e

patrísticos), no esforço missionário em mostrar que Jesus era o Messias esperado por Israel, na

primeira pregação aos judeus, etc. A Igreja era, então, o novo Israel e por isso devia reler

suas Escrituras como totalidade, sabendo descobrir nelas os grandes "centros de gravidade".

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2

Enquanto a exegese rabínica estava mais presa aos textos pequenos, às palavras (cf.

o Talmude), a exegese cristã buscava sintonizar com o sentido total dessas Escrituras. Tinha-se

situado em sua intratextualidade, anexando a ela logo novos textos (evangelhos, espístolas,

outros), que eram sua releitura, formando assim outra intertextualidade (estes textos se

interrelacionam com aqueles). A distância, nossa releitura deve assumir novamente a Bíblia em

seu caráter de intratextualidade nova, para assim podermos redescobrir seus novos eixos

semânticos e relê-la a partir de nossa vida.

4. A PERTENÇA E PERTINÊNCIA DA BÍBLIA

Acima havíamos feito alusão ao fato de que a Bíblia tem uma vantagem intrínseca

para sua leitura a partir da ótica do oprimido ou da libertação, a saber, que sua origem esteve

marcada por profundas experiências de sofrimento e opressão, de libertação e graça, onde a fé

israelita soube reconhecer o Deus salvador em uma dimensão libertadora. Alguns momentos

dessa fé-reconhecimento de Deus foram recolhidas nos "credos" (Dt. 6.20-24; 26.5-9, etc.), nos

grandes relatos, nos profetas, no culto. Se a tradição de Israel prolongou esta temática através

de tantos séculos, foi porque o povo viveu numerosos processos de opressão-libertação.

Inclusive em sua última etapa histórica, coincidente com a formação dos textos sagrados (o pós-

exílio), o país esteve politicamente dominado por impérios estrangeiros - persas, selêucidas,

romanos -, e economicamente oprimido por pesados tributos externos e internos.

É um fator sociológico que nos ajuda a contextualizar a fixação de algumas antigas

tradições de opressão-libertação em códigos de história e promessa. A situação descrita em

Neemias 9 é significativa. Com o retorno do exílio de uma caravana de ex-cativos, acaba por

organizar-se a nova comunidade. O acontecimento está centrado em torno da Lei - um país

politicamente dominado não tem outra forma de agregar-se do que a expressão religiosa:

templo, culto, instituições sagradas, tudo expressado em um código - e celebra-se uma

renovação da aliança (Ne. 8.10). Seu "prólogo histórico"37 comenta as ações de Deus desde a

criação até a história de Israel e a situação de sofrimento e quebrantamento que também é

encarada como intervenção divina. O hino de Ne. 9 assume a forma literária de uma "confissão

nacional de pecados", na qual se reafirma a esperança de libertação. Por isso é tão eloqüente em

seu final:

"Eis que hoje somos servos, e até na terra que deste a nossos pais para comerem o seu

fruto e o sem bem, eis que somos servos nela. Seus abundantes frutos são para os reis,

que puseste sobre nós, por causa de nossos pecados, e segundo a sua vontade dominam

sobre os nossos corpos e sobre o nosso gado; estamos em grande angústia!" (v. 36s).

37

Sobre este elemento da estrutura dos contratos internacionais de soberania/vassalagem retomado na Bíblia, cf. Historia de /a salvación (Ed. Paulinas, Buenos Aires 1983b ) p. 50ss.

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3

Pode-se sugerir que esta situação é a mesma que se reflete na estruturação atual do

Pentateuco. Este é o livro da promessa, da esperança, que inclusive narra os eventos

memoráveis da libertação do Egito como ponto de partida para a terra, ou seja, para a realização

daquelas promessas (terra, povo, descendência). Porém, neste ponto, o Pentateuco se fecha sem

narrar esse cumprimento. Tudo termina às margens da Transjordânia, nas estepes de Moabe,

em frente a Jericó. Frente a este paradoxo, não faltaram exegetas que apresentaram a hipótese

de um Hexateuco (= seis livros, incluindo o de Josué), cuja existência, contudo, ninguém nem

remotamente conseguiu provar.

O paradoxo, contudo, tem sua explicação: como o Pentateuco foi concluído num

momento crítico da história de Israel, após a grande ruína que o exílio significou, somente em

uma etapa de reorganização sem independência política nem econômica (povo diminuído, terra

invadida, sem governo próprio) a promessa feita aos pais se abriu. O povo "todavia não" chegou

à terra da liberdade, segue caminhando na esperança de seu cumprimento. Se o Pentateuco

tivesse sido fechado com a narração da conquista da terra, teria sido um documento do passado;

do jeito como está atualmente formado, reflete a esperança de ver cumprida a promessa. A

estrutura então é parte da mensagem.38 Em outros termos, o Pentateuco foi fechado a partir da

ótica do oprimido. Não é essa constatação tremendamente importante para sua releitura atual,

onde o homem se encontra em tantas situações de quebrantamento, de não-realização, de

esperanças não cumpridas, de frustrações, de opressão de toda espécie? Isto é outra faceta

daquele "eixo semântico" da Bíblia como grande texto tal como o temos assinalado.

Voltamos, assim, a expressar a convicção de que a Bíblia se origina sobretudo em

experiências de sofrimento/opressão, de graça e libertação, e que foi escrita com uma profunda

esperança de salvação. Isto não significa que não se dirige a todos. Ninguém está isolado dos

outros; cada classe social é interdependente com a outra. Na Bíblia há textos dirigidos

explicitamente aos ricos e opressores, e como tais também os pobres e oprimidos os escutam,

porque sua situação existe por causa daqueles. Se a Bíblia destaca com tanto relevo a prefe-

rência de Deus pelos oprimidos, marginalizados, doentes, pecadores, etc... a sua mensagem é

recebida por estes como esperança, ao mesmo tempo que aqueles que são responsáveis por

essa realidade recebem-na como juízo, se já não como convite à conversão.

Como a realidade das pessoas é muito mais de sofrimento, miséria, pecado, opressão,

não é difícil reconhecer que os pobres e oprimidos possuem á "competência" e a "pertinência"

mais adequada para reler o querigma da Bíblia. Este lhes pertence preferencialmente. Como

pode, então, que por tanto tempo este livro foi "possuído", controlado, explicado, "interpretado"

somente por aqueles que representam uma camada dominante da sociedade (hierarquia da

Igreja, teólogos profissionais, especialistas em exegese, homens "cultos")? Que direito têm ele de

autoqualificar-se como os intérpretes da Bíblia? Aqueles que sofrem devem esperar que os que

estão bem lhes expliquem o sentido da mensagem de libertação da palavra de Deus? A questão

da "apropriação" do sentido também se coloca neste caso.

Por outro lado, os humildes da terra estão em um horizonte de compreensão que faz

"pertinente" a eles o querigma bíblico, cujo "horizonte de produção" lhes é equivalente. É

necessário haver um marco referencial comum entre o emissor da mensagem e seu receptor.

Exemplificamos isto biblicamente: Não tem coerência alguma que os "oráculos sobre as nações"

38

Veja "Una promesa aún no cumplida. Algunos enfoques sobre la estructura literaria del Pentateuco", Revista Bíblica, 44:4 no. 8 (1982) 193-206.

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(cf. Am. 1.3-2.5; Is. 13-23; Jr. 46-51; Ez. 25-32) tenham sido proclamados a essas nações

assinaladas no texto. Não teria "sentido" um egípcio ou babilônio escutar seu conteúdo. Trata-se

muito mais de mensagens dirigidas a Israel mediante um recurso literário específico, que

mostra o destino desse povo no conjunto das nações. Ditos para Israel, esses discursos têm

"pertinência", estão em um horizonte de compreensão coerente. O mesmo acontece, em outro

nível, com a Bíblia como totalidade, cujo querigma tem uma incrível propriedade de ser

escutado e compreendido pelos carentes deste mundo.

Esta compreensão da Bíblia por parte do povo pobre, dos humildes, sofredores,

pecadores e marginalizados, como seu livro e como mensagem que privilegiadamente se dirige

a eles (pertinência), inscreve-se na linha de uma leitura totalizadora daquela, através de seus

"eixos de sentido", os quais oferece em sua condição de texto único ou grande relato. Não é

estranho escutar às vezes da boca de gente de base, comprometida na vida, frases como esta:

"De Bíblia temos bastante". Não é uma expressão de desprezo nem de saturação bíblica. Sig-

nifica muito antes que a releitura da Bíblia a partir da vida permite captar com suficiente clareza

a linha da mensagem como pertinente e o que mais rapidamente faz falta é a concretização na

ação. Esta expressão por fim é feliz, porque nos faz recobrar a consciência de que compreender

a Bíblia não implica uma especialização, mas sim a captação de suas grandes linhas de sentido. É

uma forma de lê-la como um texto, onde o sentido se simplifica em relação à infinidade de pe-

quenos relatos que o compõem.

A nossa leitura da Bíblia na formação cristã, na liturgia e na pregação, nos seminários e

faculdades de teologia, é uma infinita fragmentação do texto (que portanto já não é "texto", mas

uma infinidade de textos) que coloca em nossas mãos um "acúmulo" de sentidos, valiosos por

certo, mas que despistam a compreensão do sentido totalizador daquele "eixo" do qual

vínhamos falando. Este, por certo, o cristão de base identifica com maior facilidade.

Cada prática/práxis constitui um horizonte de compreensão a partir do qual se lê uma

mensagem, no caso a Bíblia. Por isso, o processo hermenêutico que temos analisado na parte 1

situa-se mais propriamente no nível lingüístico (apoia-se nas condições do relato como

estrutura e totalidade): o desenvolvimento na parte II está no nível da práxis. Não são duas

linhas paralelas que se prolongam indefinidamente. Condicionam-se mutuamente, estando o

ponto decisivo na segunda. Em outras palavras, o que realmente gera e orienta a releitura da

Bíblia são as sucessivas práticas. Estas fazem crescer o sentido dos textos, o que logo se

expressa em novos textos, os quais por sua vez condicionam novas práticas e assim

sucessivamente numa rotação hermenêutica progressiva e enriquecedora. A figura seguinte

sintetiza os pontos principais desenvolvidos até o momento:

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Língua

Fala

Nível lingüístico

Palavra

Tradição(ões

)

CÂNON (Re)leitur

as

Acontecimen

to

Nível da práxis efeito histórico

= N O V A S P R Á T I C A S

Explicação: A "palavra" que interpreta o acontecimento tem uma vertente lingüística (é a

palavra-relato ou texto), que "vem" da língua e "vai" sendo tradição, cânon, nova leitura, e uma

outra vertente que vem da práxis, a qual, uma vez confluída com a primeira, desenvolve-se e se

recria mutuamente com ela. Na "palavra" marca-se a transição da lingüística à hermenêutica.

A releitura volta ao acontecimento - do qual, em última instância, emana - pela via das

leituras (textos) anteriores. Uma pergunta que surge é a seguinte: Pode-se fazer um atalho

diretamente ao acontecimento? Sim e não. O acontecimento, na verdade, está integrado no texto

e em toda palavra que o lê. Isto por um lado. Por outro lado, está imerso nos "efeitos históricos",

os quais, por sua vez, estão mediados por suas interpretações (=palavra/texto). A partir daí,

será uma nova prática, muito mais do que o estudo intelectual dos textos do passado, que abrirá

o sentido do acontecimento fundante. Não está aí, por exemplo, a chave para uma leitura

renovada da Bíblia nas comunidades eclesiais de base?

Convém observar também que a religiosidade popular latino-americana tem uma

ambigüidade básica, que advém não somente de seus elementos de consciência mítica, mas

também do fato de haver-se cristalizado junto a uma experiência originária de domínio e

exploração por parte dos europeus que trouxeram o cristianismo. A fé (?) latino-americana

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nunca pôde ter o vigor da fé de Israel, fundamentada em um acontecimento paradigmático de

libertação. A partir desse ponto de vista, somente quando o homem de base latino-americana

participar como sujeito nos processos de sua própria libertação, poderá ele recriar sua

religiosidade e ativar seus valores (que são muitos) em uma nova dimensão.

(No esquema anterior, a flecha vertical indica que a releitura dos textos sagrados se faz a

partir de uma determinada práxis.)

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III - EXEGESE E EISEGESE

Havendo chegado até este ponto, deve ficar firmemente estabelecido que a exploração

do sentido de um texto não se reduz a um trabalho crítico, puramente literário e acadêmico.

Existe também uma práxis, do crítico ou do seu contexto sócio-histórico, que indica o parâmetro

da leitura. Não se "sai" do texto (ex-egese, do grego ago, "conduzir/guiar"), trazendo um sentido

puro nele recolhido, como um mergulhador traz um coral à superfície do mar ou como se tira

um objeto de um cofre. Antes, a partir de um horizonte vivencial novo que repercute

significativamente na produção de sentido que é a leitura, "entra-se" no texto (eis-egese) com

perguntas que nem sempre são as de seu autor. Já estudamos por que toda leitura é "releitura"

do sentido de um texto.

1. A RELEITURA DA BÍBLIA É PARTE DE SUA PRÓPRIA MENSAGEM Neste momento convém recordar que toda a Bíblia, assim como a temos atualmente, é o

resultado, o produto melhor dito, de um longo processo hermenêutico, no qual atuaram

conjuntamente os dois níveis tratados nos parágrafos anteriores: a) o nível da práxis sócio-his-

tórica de Israel, vivida e refletida por gerações sucessivas em continuidade com a promessa e os

grandes eventos salvíficos, e b) o nível do "recolhimento" da presença de Deus em forma de

discurso (aspecto lingüístico da revelação) nos relatos históricos, os "credos" e tantos outros

gêneros literários existentes na Bíblia, até terminar na formação dos textos isolados, os

"corpora" legal, profético, sapiencial, histórico, litúrgico e, por último, o texto canônico final.

Nem a revelação de Deus (nos acontecimentos mais do que em palavras, cf. mais adiante o ponto

nº 3), nem a inspiração (nos textos mais do que nos autores) são fenômenos isolados. Muito

antes, complementam-se e se recriam dialeticamente. A "palavra de Deus" é gerada no aconteci-

mento salvífico, interpretado e enriquecido através da palavra que o recolhe e o transmite em

forma (ou em diversas "formas") de mensagem. A correlação entre o "efeito histórico" (do

acontecimento) e o "efeito de sentido" (do texto) é muito estreita e se prolonga na relação entre

práxis e leitura de uma tradição, texto ou, em nosso caso, da Bíblia.

A exegese crítica procura compreender a produção dos textos, enquanto que a leitura

teológica que se faz a partir da experiência de fé se concentra no texto produzido, explorando

sua "reserva-de-sentido" lingüística e como "palavra de Deus". No entanto, também aquela se

pratica a partir de um determinado lugar (social, teológico), ou seja, a partir de uma concepção

da realidade e, então, a exegese é, ao mesmo tempo, eisegese. A releitura teológica de base, por

outro lado, está condicionada pela estrutura, os códigos, a polissemia do texto (não qualquer

polissemia! ) que se deve explorar incansavelmente. Desta vez a eisegese é exegese. Uma e outra

são inseparáveis no ato de produção do sentido que é a leitura. Toda leitura é um ato

hermenêutico, trate-se da Bíblia ou de qualquer outro texto sagrado ou não sagrado.

É importante reconhecê-lo. Quando, por exemplo, se critica a leitura política (que não é a

única) da Bíblia que a teologia da libertação faz, está-se fazendo uma opção política (a partir de

uma determinada prática que não tem reflexos políticos) e hermenêutica: quer-se "enclausurar"

uma leitura, porque seu lugar é ocupado por uma outra leitura da mesma espécie, porém com

conteúdos diferentes. Também com relação à leitura realizada pela igreja popular suspeita-se

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que seja sociológica ou política. Por que não é sociológica e política a leitura tradicional e

imposta? Ignora-se que a Bíblia é um texto "produzido" em correlação hermenêutica com a

realidade sócio-histórica de todo um povo e que, por isso mesmo, está saturada do "político". É a

palavra de Deus para um povo que quer realizar um projeto histórico de paz, justiça, fidelidade

e amor, bem-estar e liberdade.

Será oportuno retornar ao que já desenvolvemos na parte II: o acontecimento gera uma

"palavra" interpretante e - na direção inversa - converte-se em acontecimento fundante ao ser

recarregado de sentido pelas sucessivas leituras (diagrama de II, 1). E é no nível das práticas em

que estas mesmas leituras, que buscam "entrar" na palavra-tradição (o texto em seu sentido

semiótico e hermenêutico), se contextualizam e por isso são eisegéticas (diagrama de II, 4). Este

fenômeno explica a formação do Antigo Testamento sobre a grande experiência de fé de Israel e

também do Novo como releitura daquele (e não como literatura paralela) na vida da primeira

comunidade cristã.

Muito bem, esse processo hermenêutico é parte da própria mensagem da Bíblia. Vale

dizer: a Bíblia, tomada como "produto" de um processo hermenêutico, facilita-nos uma

importante chave de leitura, a saber, que seu sentido querigmático somente é entregue no

prolongamento do mesmo processo hermenêutico (=acontecimento > palavra) que a constituiu.

Desta maneira, pretender "fixar" definitivamente seu sentido ao momento de sua "produção" é

negar sua própria condição de sentido aberto. Em contrapartida, lida a partir da realidade sócio-

histórica (política, econômica, cultural, religiosa, etc.), revela dimensões antes não vistas, raios

de luz não captados pelas leituras anteriores. O não dito do "dito" do texto é dito na inter-

pretação contextualizada. Esta é a medula do ato hermenêutico e de alguma maneira sintetiza o

que analisamos até aqui.

2. ATUALIZAÇÃO DA BÍBLIA: ILUMINAÇÃO DA REALIDADE? É mister afinar algumas noções. Em primeiro lugar, aquilo que vínhamos afirmando é

mais do que uma "atualização" da mensagem bíblica, e muito mais também do que uma

"iluminação" de nossa realidade histórica com todas as suas manifestações. Note-se o caráter

disjuntivo destes dois termos tão empregados, mas que não conduzem ao centro do fenômeno

hermenêutico. Ou pelo menos não o explicam em sua totalidade.

a) O que implica atualizar a mensagem bíblica? Expressá-la em termos novos? Usar uma

linguagem popular? Verter os semitismos em moldes mais próximos a nós? Diluir os termos

"densos", mas culturalmente contextualizados, mediante glosas explicativas? Este último

acontece às vezes com as versões populares da Bíblia. Não se pode negar seu benefício, mas é

necessário ter consciência de que estas modernizações semânticas são fugazes e não podem

durar muito (é o problema de uma versão popular da Bíblia que se torna tradicional). De

fato, as formas de atualização mencionadas não ultrapassam os limites de uma "tradução"

ainda que, com esta última, beirem o âmbito da hermenêutica, mas sempre sem entrar em

seu núcleo.

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Tratar-se-á de tornar eficaz o querigma bíblico para nossas situações? Disto se trata,

evidentemente. Mas como se faz eficaz uma mensagem expressa em outro tempo para um

povo de outro contexto social e cultural? Esta exigência pressupõe que se faça algo com o

texto em que está inscrita a mensagem. É aplicando as leis da lingüística do discurso (parte I)

e recordando o processo do acontecimento que-se-faz-palavra (parte II) que se desembaraça

no texto bíblico um sentido que transborda seu primeiro referencial. E é também o modo

como se descobre uma mensagem não esgotada em sua primeira realização. Assim

desembocamos em uma novidade de sentido, característica de toda leitura hermenêutica,

muito notável no seio de todas as tradições religiosas. A simples "atualização" lingüística do

querigma não tem este alcance, mesmo que esteja orientada para uma boa direção. Acaso

não havia uma novidade na releitura cristológica do Antigo Testamento praticada na época

apostólica e refletida nos livros do Novo Testamento? Por que não haveria de ser nova a

nossa interpretação da Bíblia feita no marco de novas experiências históricas e de fé?

Devemos recriar a mensagem bíblica e não somente atualizá-la. Não propomos nada

desconhecido. Estamos, isto sim, aclarando as implicações e a riqueza de uma leitura que já

está se fazendo a partir de uma igreja popular, a partir de processos históricos inéditos, a

partir de contextos culturais ou religiosos diferentes dos do mundo semítico ou ocidental, ou

por teólogos que escutam, se é que não estão imersos na vida do povo.

b) O que acabamos de assinalar esclarece por sua vez a questão da "iluminação" da história de

nossos povos, ou de nossa realidade, a partir da Bíblia, entendida como palavra de Deus. Não

há um caminho único que vem do texto bíblico. A circularidade hermenêutica implica

também um itinerário inverso como complemento do primeiro, pois a práxis da fé em um

determinado contexto social tem também algo a contribuir para o "sentido" da Bíblia,

justamente abrindo-o enquanto "palavra de Deus". Por exemplo: uma valorização, a partir de

dentro, das religiões e culturas de dentro, das religiões e culturas da Ásia, África e América

Latina nada tem a contribuir frente a tantos textos bíblicos que desprezam os símbolos

religiosos dos povos vizinhos de Israel? O clamor dos setores oprimidos não clama também

contra uma leitura excessivamente "espiritualizante" e escatologizante do Novo Testamento?

3. REVELAÇÃO TERMINADA OU ABERTA? O leitor talvez já terá se perguntado se tudo isso não significa "reacrescentar" ou

"retirar" algo da palavra de Deus. É claro que neste ponto tropeçamos com o teologúmeno da

revelação concluída e encerrada com Cristo, com o último apóstolo e com o último livro do Novo

Testamento, segundo as várias versões desse conceito.

Antes de tudo, estas três possibilidades não são sinônimas. A primeira (a revelação

concluída em Cristo) indica algo qualitativo, a segunda, um espaço temporal, a terceira, um

limite textual e lingüístico. Porém, explicam-se mutuamente: Cristo é o ápice da revelação, mas o

texto canônico que culmina no Apocalipse recolhe a experiência pós-pascal e apostólica da

comunidade cristã primitiva. A revelação tem, então, uma duração limitada na vida de Israel,

durante a vida dos apóstolos: testemunhos da atuação, morte e ressurreição de Jesus.

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Tudo isto está correto, contudo não satisfaz. Cristo é o ponto culminante, o mais alto, da

manifestação de Deus na história da salvação. No entanto, Deus não se manifestou antes (e antes

de Israel!) e não se manifesta depois de Cristo? Ou "revelar-se" significa somente dizer palavras?

O problema começa por aí e tem sua explicação que não é menos do que "hermenêutica", a

saber, que o acontecimento é recolhido na palavra-relato e esta é posta em circulação como

mensagem ou sentido do acontecimento primeiro, logo como sentido ou mensagem em forma de

linguagem (mensage "lenguágico"). Esse fenômeno, já estudado, é muito significativo e é a

matriz do processo hermenêutico. O acontecimento tem "sentido" enquanto é interpretado.

Depois, o transporte do sentido é um texto (oral ou escrito, e finalmente escrito). Isto até que o

texto, por uma opção hermenêutica, é assumido como "cânon" que enclausura outras tradições.

Em uma derivação degenerada, o cânon pretende inutilmente enclausurar sua própria releitura:

quando se o considera como "depósito" da revelação .39

Assim como um acontecimento pode converter-se em "fundante" à luz de seus efeitos

históricos, também um texto se faz normativa e arquetípico dentro de uma comunidade que já

vive em sua atmosfera. O cânon muda somente quando o conflito das interpretações chega a um

grau tal que se produz a divisão. Os novos grupos necessitam então recompor ou reafirmar um

texto de referência, um "cânon de Escrituras", se se trata de área religiosa. Por isso, o fato,

afirmado pela fé, de que a Bíblia é nosso texto paradigmático como palavra de Deus é

tremendamente significativo. Não nos fazem falta novos livros que pudessem ser adicionados à

Bíblia e, por outro lado, as práticas cristãs estão definitivamente orientadas pela prática de Jesus

e por seus ensinamentos (interpretadas, logicamente, em um texto canônico).

Aqui, porém, não acaba tudo. Acabe talvez um desenvolvimento, hermenêutico. Um dos

"eixos semânticos" da Bíblia é, precisamente que Deus se revela antes de tudo nos

acontecimentos da história dos homens. Essa presença é captada pela fé e a cria

simultaneamente, enquanto que inicialmente (como nos relata a Bíblia) é um "reconhecimento"

da presença de Deus nos acontecimentos humanos. A fé como adesão a uma palavra ou a uma

pessoa é um "depois" hermenêutico. Muito bem, tudo aquilo do acontecimento recolhido na

palavra - ponto chave da hermenêutica, sobretudo bíblica - tem a ver com essa fé

"reconhecimento" de Deus. Antes do que na palavra, Deus se manifesta no evento salvífico e em

suas conseqüências ou "efeitos históricos" que prolongam essa mesma epifania. Que a revelação

de Deus seja expressa em uma palavra ou em um texto é também um "depois". Inclusive a

palavra bíblica da "promessa" está neste momento mediada por um texto que a orienta ao

evento do êxodo, o qual supõe como experimentado e do qual já é uma forma de releitura.

Paradoxalmente, a promessa - enquanto texto atual - é teologicamente elaborada a partir do

evento que anuncia! Os relatos de vocação profética (veja Amós 7.10-17; Is. 6; Jr. 1; Ez. 1-3) são

posteriores à atuação do respectivo profeta. Repetimos: posterior é o relato, não a vocação

mesma. Aquele é uma releitura da mensagem do profeta, segundo a tradição que o transmite.

Voltamos à questão do limite da revelação. Quando um profeta de Israel fala em nome de

Deus (e menciona sua "palavra"), na realidade o está "lendo" ou escutando na vida de seu povo,

em sua infidelidade ou no seu sofrimento, codificados como juízo ou como promessa de

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Poderia se objetar que a idéia de um "depósito" da fé seja bíblica (I Tm. 6.20; II Tm. 1.14). Porém, o texto destas epístolas intenta precisamente uma "clausura" da doutrina frente a outros grupos, e não se refere à Bíblia já constituída. Seu contexto é específico. Por outro lado, pode-se também prescindir do termo "depósito" e usar o grego paratheke. Cf. El Libro del Pueblo de Dios. La Biblia (Ed.Paulinas, Madrid-Buenos Aires, 1980): "Conserva o bem que te foi confiado" (I Tm. 6.20); "conserva o que se te confiou" (II Tm. 1.14, neste caso a tradução é mais difusa, mas evita, talvez, o vocábulo "depósito")

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salvação. Deus está no acontecimento e o profeta elabora "em palavra" essa presença divina na

vida.

E, se o "Verbo se fez carne" (Jo. 1 .14), isso também não significa uma negação de todo

intento de enclausurar a palavra de Deus na Tora, ou seja, na Lei? Como reflexo e expressão

múltipla da revelação de Deus na história, a Tora chegou a ser negada como sentido ao ser

totalizada como palavra autônoma, fechada, impermeável a novas manifestações de Deus que

modificam suas leituras já fixadas (aparentemente!) pela tradição. Cristo foi o acontecimento

novo de Deus que impôs uma releitura da Tora.

Incapazes de "reconhecer" a esse Deus nas palavras de Jesus, muitos judeus de seu

tempo surpreendentemente tornaram-se "desconhecedores" dele. "Se me (re)conhecesseis a

mim, também conheceríeis a meu Pai" (Jo. 8.19); "E quem me vê a mim, vê aquele que me

enviou" (Jo. 12.45, cf. 14.7). Chama bastante a atenção o fato de que Jesus pôde dizer - no relato

joanino que os "teólogos", os conhecedores de Deus naquele momento, subitamente

converteram-se em seus "desconhecedores".

Com efeito, Deus se revela no Jesus histórico. Cabia à fé identificá-lo ali. Mas é fé essa

clausura de Deus na Tora? Deus está em um texto ou na vida? Conflito hermenêutico por um

lado, mas reducionismo da revelação por outro. Tal foi o drama dos judeus que deixaram

"passar" o acontecimento de Deus em Jesus sem captá-lo e, a partir dele, reler as Escrituras

transmitidas como "palavra" desse Deus.

Esse ciclo se repete na história da Igreja. O teologúmeno da revelação "terminada", com

todas as suas boas intenções e toda a verdade que contém como expressão simbólica, produz

um curto-circuito no processo da própria revelação: Deus/ palavra, em vez de

Deus/acontecimento/palavra.

Ficamos somente com uma palavra que "ilumina" os eventos humanos, as vicissitudes

dos povos? Não está Deus dizendo nada de novo nas lutas dos oprimidos, nos processos de

libertação, na contribuição das ciências humanas para o conhecimento do homem e seus

problemas, da realidade e suas estruturas opressivas, das possibilidades criativas do homem,

nos impulsos por construir um homem novo em uma nova sociedade? Não se trata apenas de

uma novidade na ordem do conhecimento da revelação já realizada, nem somente de que Deus

se manifesta com modalidades inéditas e não experimentadas antes (pelo aprofundamento em

sua primeira revelação: nível do conhecimento, em última instância, de uma gnose humana),

mas sim e sobretudo de que se revela nos acontecimentos.

Se é assim, então a referida epifania de Deus deve gerar um processo hermenêutico que

produzirá sua palavra: o discurso da fé em todas as suas modalidades (oração, "credos",

proclamação, teologia), uma nova palavra, na verdade. Não simplesmente uma iluminação da

história presente com a luz projetada a partir de trás (o texto bíblico), mas a captação do rosto

de Deus que se delineia na história dos homens. A própria Bíblia nos orienta para a leitura de

Deus nos acontecimentos do mundo e nos ensina justamente a reconhecê-lo como se manifesta

agora e não como repetição do passado. A história humana é uma novidade constante e a

presença de Deus, que a acompanha, também o é.

Cristo, como acontecimento central e máximo da história, é um acontecimento

inacabado. A apocalíptica cristã o espera uma segunda vez para "fechar" esta história. A crítica

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judaica, dirigida a nós cristãos que reconhecemos em Jesus o Messias e Salvador, de que o

mundo segue da mesma forma, então, baseia-se naquela concepção, segundo a qual Cristo é o

telos da revelação e da ação salvífica de Deus. Tudo está dito e tudo está feito, só que na história

subseqüente se explicita e aprofunda o dito e se produzem os efeitos do feito.

Não está mais de acordo com o Novo Testamento afirmar que com Cristo começa a

escatologia e a nova ordem, que ele é uma chave hermenêutica para descobrir Deus na nossa

história? Cristo mesmo, que é a Palavra do Pai (Jo. 1.18 diz magnificamente a respeito do Logos

= Palavra que o Pai revelou =exegésato), não disse tudo. Deixou seu Espírito para que nos

ensinasse (Jo. 14.26) e nos conduzisse à verdade plena (Jo. 16.13 hodegései humas en te alethéia

pase). A Bíblia é a leitura da fé dos eventos paradigmáticos da história salvífica, a leitura

paradigmática de uma história de salvação que ainda não terminou.

A Bíblia, como mensagem paradigmática e normativa, não exclui sua própria releitura à

luz de novos acontecimentos. Se não tem sentido (porque se opõe à própria mensagem bíblica)

enclausurar a revelação de Deus na história passada, tampouco o tem converter a Bíblia em um

"depósito" fechado, do qual somente é possível "tirar" coisas. Como texto normativo, canônico,

da mensagem salvífica de Deus, e precisamente por ser normativo, incorpora - por sua releitura

- o sentido novo dos novos acontecimentos da história.

Interpretar, na verdade, é acumular sentido. Exegese é eisegese, é "entrar" no texto

bíblico com uma carga de sentido que recria o primeiro sentido justamente porque é posto em

sintonia com ele, seja pelo continuum de uma práxis de fé (nível do "efeito histórico") seja pelo

continuum das sucessivas releituras (nível da tradição hermenêutica).

Este caráter decisivo do acontecimento - a história - como lugar primeiro da revelação

de Deus ontem e hoje coloca em relevo a fragilidade e parcialidade de uma teologia

fundamentada somente na(s) fonte(s) transmitida(s) da revelação. Seja o "sola Scriptura", ou

acompanhado da Tradição, não há muita diferença. Se a tradição fosse viva, coincidiria com o

que chamamos a revelação presente de Deus na história. A visão católica da Tradição, no

entanto, de acontecimento converte-se em um texto (os Pais da Igreja, a liturgia, etc.), que

prolonga um pouco mais a revelação bíblica, mas que se enclausura em algum momento e é

controlada por uma autoridade magisterial. Desde então estamos novamente em uma "teologia

das fontes", que epistemologicamente, não se diferencia da "teologia da Tora" rabínica, na

medida em que canaliza toda a revelação de Deus por canais já ocupados, fechados e colocados

em "depósito".

Quão difícil é o caminho de uma "teologia aberta"! Por isso uma teologia como a latino-

americana resulta conflitiva. O mesmo acontece com o novo falar sobre Deus (=teologia) que

surge da práxis da fé entre os cristãos comprometidos. Um magistério eclesiástico (no

catolicismo) ou uma tradição confessional (no protestantismo) somente têm sua razão de ser

enquanto unificam e enclausuram momentaneamente o sentido de uma tradição e de uma

práxis, mas, simultaneamente, à luz dessa alternância entre práxis e texto que constitui o

processo hermenêutico, permitir passar a uma nova abertura. A clausura total de uma leitura do

querigma, ou seu controle puramente autoritário, não é bíblico nem hermenêutico.

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4. A LINGUAGEM DA FÉ É importante assinalar que a revelação de Deus no acontecimento, e não somente na

palavra transmitida, ajuda a compreender mais profundamente a própria tradição bíblica. A

linguagem desta participa das características de toda linguagem religiosa e, por isso, mediante

símbolos literários e códigos narrativos, expressa o sentido que a fé descobre nos

acontecimentos humanos, os quais, à primeira vista, não têm nada de extraordinário. O

acontecimento da libertação da escravidão egípcia foi o mesmo, tanto para os egípcios como

para os hebreus, e pode também ter acontecido entre escravos cananeus ou líbios dessa mesma

época. Em contraposição, a representação do evento, assim como a "passagem do mar" ou

outros relatos que o anunciam e descrevem, constitui parte da "palavra-do-acontecimento", a

palavra que "diz", afirma uma presença do Deus que atua na história, concretamente nesse

processo de libertação.

Essa reflexão tem três conseqüências que saltam aos olhos:

a) O acontecimento salvífico fica melhor "centrado": é a experiência da libertação, não a

passagem do mar nem as pragas. Estas representações não repetem o evento, interpretam-

no.

b) Valoriza-se o texto ou relato que interpreta e amplia as dimensões querigmáticas e teológicas

daquele evento de libertação: uma vez que este é "lido" em uma "palavra", ele se integra nela;

seus "efeitos históricos" (as práticas que gera), por sua vez, também o serão numa seqüência

dialética e criadora-de-sentido (parte II). O texto, então, é portador da mensagem porque

está constantemente incorporando as leituras de si mesmo que são exigidas pelas práticas e

pelos trabalhos da fé, que sempre de novo vai descobrindo Deus na história.

c) É necessário enfatizar que a fé é decisiva para formular e confessar a presença de Deus nos

eventos humanos. Pensar que ele deve manifestar-se com milagres e fenômenos

extraordinários, como nos conta o relato do êxodo ou outros, é cair numa ingenuidade

própria de quem ignora como se instaura o discurso religioso. Este é um "depois" do

acontecimento. É leitura do acontecimento. Acaso a libertação da Nicarágua ou dos povos

africanos, na atualidade, não são eventos salvíficos e, a partir de uma ótica cristã,

manifestações de Deus? Afirmar que são eventos políticos humanos (o que certamente o são),

e fazer disso uma afirmação teológica (que Deus não se revela neles), é ficar com uma

revelação "em depósito" e repetir a atitude (por certo plenamente "hermenêutica") dos

fariseus que apresentaram o acontecimento de Jesus como "demoníaco" (Lc. 11.15-19).

Há pouco fizemos alusão à linguagem religiosa. A teologia tradicional difundiu a crença

de que o querigma bíblico se expressa através de conceitos. Sabe, porém, muito bem falar de

símbolos (mal denominados de "sinais") ao referir-se aos sacramentos. Ignora-se que sobre

Deus somente se pode falar por meio de símbolos (as coisas naturais que, em transparência,

remetem a um segundo sentido, que, de alguma maneira, transcende a experiência

fenomenológica) ou mediante o mito (facetas de símbolos construídos como "relato", que

remete às origens para expressar o sentido de uma realidade, instituição, costume, etc., atuais).

A fé de Israel estabeleceu uma ruptura com a cosmovisão mítica (fragmentação do sagrado nos

fenômenos da natureza, derivando daí o seu esquema cíclico), mas nunca com a linguagem do

mito, forma imprescindível do discurso religioso. Em virtude de sua polissemia semântica, o

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símbolo remete a outra esfera; o mito é uma linguagem quebrada que elabora uma "história" de

feitos maravilhosos no mundo divino, que instauram a ordem atual: esse recurso justamente

serve para "dizer" o transcendente ou simplesmente o nível de "sentido" que há nas coisas,

naquilo que é relevante na vida do homem inserido no grupo (não há mitos individuais).

Em uma palavra, a linguagem sobre Deus não pode fazer abstração da imagem. Deus não

se pode enquadrar em conceitos (o dogma é uma forma de gnose que rebaixa a experiência da fé

ao plano racional da interpretação)40 representa-se-o em imagens. E a Bíblia é, de ponta a ponta,

uma representação de Deus, seja na linguagem remetente do símbolo e do mito (mesmo os

relatos mais "históricos" estão interpretados e "quebrados" para dizer uma dimensão da fé),

seja nos tantos códigos lingüísticos ou gêneros literários que são expressão da "imagem" (no

sentido de que cada gênero comunica uma mensagem por sua estrutura lingüística e não

somente pelo conteúdo; pela "forma" e não somente por conceitos).

5. RECONTEXTUALIZAÇÃO DO QUERIGMA BÍBLICO Assim entendida, a revelação (parágrafo 3) é um desafio porque impele a descobrir no

acontecimento uma riqueza de sentido que não tem por que "coincidir" com o que aconteceu em

Israel. Mas, por outro lado, por causa de sua própria fecundidade, a linguagem da fé tem dois

condicionamentos significativos:

a) Por um lado, parte de uma experiência ou de um acontecimento, por si mesmo, fugaz e

irreversível: o discurso da fé se desloca continuamente ao contemplar determinado

acontecimento a partir de novas experiências ou práticas. É a distância desimplicadora da

reserva-de-sentido do acontecimento ou do relato, que já o leu. Por isso parece estranha a

preocupação desmedida em imobilizar os dogmas. Não os negamos; na verdade, eles têm

uma função "enclausuradora" em um determinado momento da discussão teológica sobre a

interpretação da práxis. E uma forma através da qual a comunidade defende sua identidade.

O que é anti-hermenêutico é a constituição rígida dos mesmos em fórmulas definitivas.

b) Por outro lado, a linguagem da fé somente pode ser cultural e literariamente limitada. Isso é

condição de toda linguagem. Todo discurso - ao pretender dizer algo a alguém sobre alguma

coisa - supõe uma clausura contextual que o torna inteligível. De outra forma, não é

mensagem. Efetivamente, não há línguas universais. Tampouco a Bíblia foi escrita acima dos

tempos e das culturas. Foi escrita por e para o povo hebreu. Somente mediante profundas

releituras, chegou a ser o livro dos primeiros cristãos em um reduzido âmbito geográfico.

Isto significa que a mensagem bíblica está fortemente contextualizada. Para que seja

compreendida a partir de outras situações históricas, deve ser "recontextualizada". Se o

cristão é capaz de ler os sinais dos tempos, a referida leitura deverá estar em sintonia com os

"eixos querigmáticos" da Bíblia, por sua vez, codificados nos "eixos semânticos" (nível do

texto) que já foram mencionados.

40

P. Ricoeur, "Introducción a la simbólica del mal", em: El conflicto de las interpretaciones (La Aurora, Buenos Aires 1976) t. II, p. 25ss.

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Esta perspectiva hermenêutica - fortalecida com as contribuições do desvio pela

semiótica - garante a legitimidade das teologias de base, como é para nós a teologia da

libertação. Se esta parte de uma análise correta e conscientizadora da realidade social, não é por

isso que se converte em "sociologia" nem em "antropologia". Acaso não importa conhecer a

realidade na qual Deus se revela? As próprias ciências sociais não podem entender-se como

instrumento para recontextualizar a mensagem de Deus? Mas é certamente a fé que reconhece

nas situações de cativeiro, marginalização e opressão, e em toda situação humana, um chamado

de Deus para uma realização plena.

6. SOBRE ALGUMAS OBJEÇÕES A ênfase na "recontextualização" da Bíblia - teologia da libertação, comunidades eclesiais

de base, cristãos comprometidos na transformação social, etc. - suscita algumas objeções.

Assinalamos:

a) Poderia parecer que a leitura da Bíblia se torna subjetiva; pouco fundamentada na própria

Bíblia, para valer-me de um paradoxo. Cremos que acontece justamente o contrário. A

acusação de subjetividade lançada contra a hermenêutica bíblica valeria então para toda a

teologia, uma vez que não existe teologia alguma que seja "objetiva". Nem a exegese

acadêmica pode sê-lo.

Como vimos, o "desvio pela semiótica" assinala que a hermenêutica dos textos está

condicionada pelos próprios textos. Efetivamente, o texto indica o limite (por mais amplo que

seja) do sentido. Polissemia do texto não significa uma coisa qualquer. Um texto diz o que

permite dizer. A sua polissemia surge de sua clausura prévia. A partir disto, é preciso situá-lo

em seu próprio contexto por meio dos métodos histórico-críticos e explorar sua capacidade

de produzir sentido (leis da semiótica) para, assim, a partir da vida, fazer aflorar o seu

"adiante".

b) Costuma-se também acusar a teologia comprometida, e em especial a latino-americana, de

usar mais o Antigo do que o Novo Testamento. Em primeiro lugar, toda a Bíblia é palavra de

Deus e, portanto, existe o direito de se usar o Antigo Testamento tanto quanto se queira.

Segundo, a Bíblia é um texto que destaca a continuidade de um projeto soteriológico, o qual

passa por determinados eixos narrativos e querigmáticos. Terceiro, o Antigo Testamento

contém uma teologia narrativa mais extensa, proporcionando numerosos exemplos de

eventos históricos vistos à luz do acontecimento fundante do êxodo. Quarto, ninguém pode

negar que a Bíblia é um livro sumamente variado e rico, no qual se encontram muitas

correntes teológicas. Daí a importância de assimilá-lo como um grande relato (veja acima, em

II.3).

Por outro lado, há um princípio hermenêutico que se deduz da análise feita, a saber, que

o querigma que é relido e aprofundado não se perde, mas pode sempre de novo ser retomado.

Se o Antigo Testamento é relido no Novo, isto não significa que deve ser anulado ou colocado de

lado. Essa fecundação hermenêutica motiva ainda mais a recuperação do seu sentido

inesgotável.

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Além disso, é necessário também recordar que algumas leituras do evento crítico

recolhidas no próprio Novo Testamento deixam obscuros importantes aspectos querigmáticos

do Antigo: Destaca, por exemplo, muito mais o pecado individual do que as estruturas sociais

(caso dos profetas de Israel), a escatologização do Reino (não em Lucas!) parece relativizar a

luta por uma ordem neste mundo. Paulo contempla a escravidão a partir de um plano tão

elevado que não afeta em nada a realidade concreta do escravo (1 Co. 7.20-24; 1 Tm. 6.15), e

exclui as mulheres do direito de fazer uso da palavra nas assembléias eclesiais (1 Co. 14.33b-35,

compare com 11.2-15). Recomenda aos cristãos de Roma a obediência à autoridade (do império

opressor daquela época) (Rm. 13.1ss).

Cada texto é, na intenção de seu autor, uma clausura de sentido. Além disso, sua

mensagem é contextual e "conjuntural". Em sua transmissão, no entanto, morre o autor e

emerge sua polissemia. Isto traz um risco e uma vantagem: o risco está na própria

"descontextualização" que acontece na posterior releitura do texto. Tomemos o caso de 1 Co

14.33b-45: ao escrever a uma igreja grega, é possível que Paulo tivesse considerado oportuno

não negar de imediato uma práxis cultural, baseada, sem dúvida, na cosmovisão órfico-platônica

que idealiza o homem e despreza a mulher. A universalização descontextualizada do texto eleva

à categoria de "doutrina" o que pode ter sido uma mera indicação circunstancial. Isso salvaria

Paulo, porém não o texto! E nós não lemos Paulo, mas o texto por ele escrito!

E qual seria a vantagem de passar do autor ao texto? Recordemos que, a nível lingüístico,

este relato está dentro de outro relato, a Bíblia como totalidade (relembremos o conceito de

intratextualidade). Neste único texto, outra afirmação paulina (Gl. 3.28s "... nem homem nem

mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus") estabelece um princípio mais radical que

encampa a anterior e remonta ao Antigo Testamento (Gênesis 1.26, e cf. Efésios 5.31s). Na recir-

culação que se estabelece nesta intratextualidade (se já não na própria intertextualidade) da

Bíblia, o Antigo Testamento não esgotou seu sentido precisamente porque se o relê através do

prisma cristológico. Não pode haver, portanto, nenhum abuso do Antigo Testamento.

CONCLUSÃO

A Bíblia é nossa "palavra de Deus". É o recolhimento do sentido das ações salvíficas de

Deus. Não é somente um texto para ler. É também uma palavra proclamada que reinterpreta a

vida. Vimos que se o acontecimento se faz "palavra", e esta desemboca em um "texto", o texto,

por sua vez, reclama uma nova palavra que o releia. Há, portanto, uma rotação seqüencial em

que a palavra engendra o texto e o texto a palavra.

Essa relação se dá também entre a Escritura como totalidade e a palavra que proclama o

querigma: a Escritura foi antes proclamação e também o é depois. Cristo também é a Palavra

que as Escrituras interpretam; mas, por sua vez, é interpretado em novos textos que formam o

Novo Testamento. Chega-se, aí, a uma nova Escritura que, outra vez, descende à proclamação.

Em suma, a Escritura se faz Palavra, a Palavra se faz Escritura. Não se pode nunca terminar esse

movimento, porque atrás dele está a presença de Deus na vida. Deus de vivos e não de mortos

(Mt. 22.32).

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VOCABULÁRIO

Derásh - interpretação que explora o sentido profundo e oculto de um texto. Veja II, 1 e nota 6.

Derásh se opõe a peshat.

Diacronia - o caráter cronológico ou sucessivo de uma realidade ou de um texto e sua

significação. Opõe-se a sincronia.

Eixo de sentido/eixo semântico - tema ou motivo que perpassa e estrutura um texto como

totalidade.

Eisegese - a "entrada" no texto a partir do horizonte de compreensão do leitor. Não se opõe à

exegese, mas sim, é a explicitação de um aspecto desta. Veja a parte III.

Fusão de horizontes - a mutua relação entre o horizonte do texto (mais do que do autor) e o do

intérprete no ato de leitura.

Hagiógrafo - autor de um texto sagrado.

Intertextualidade - o sentido de um texto à luz de outros textos dentro de uma mesma

cosmovisão (é o correspondente lingüístico de "analogia da fé"). Distingue-se de

"intratextualidade ".

Intratextualidade - o sentido do texto em si mesmo, tomado como uma totalidade estruturada.

Distingue-se de "intertextualidade".

Midrash - como método de interpretação é o mesmo que derásh, com a diferença de que o

midrash alude a textos concretos. Veja II, 1 e a nota 23.

Monossemia - sentido único de um texto/frase/acontecimento. É equivalente a "clausura" do

sentido (a nível de interpretação) e se opõe a "polissemia".

Narratário - o destinatário de um texto enquanto não identificado como um ente

extralingüístico. Diferencia-se justamente do "destinatário" enquanto este é extralingüístico.

O narratário é o receptor intralingüístico da mensagem.

Pertença/Pertinência - qualidade de um texto ou discurso de ser próprio de um destinatário

determinado/de ser atinente a seu horizonte de compreensão. Veja II, 4.

Peshat - na terminologia rabínica, o sentido "simples", imediato, superficial, de um texto, que

responde ao contexto de seu autor. Opõe-se a derásh. Veja nota 6.

Polissemia - pluralidade de sentidos de um texto/frase/acontecimento. Opõe-se a monossemia

ou "clausura" do sentido.

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Releitura - a leitura interpretativa de um texto, que faz "crescer" seu sentido original.

Recontextualização - o ato de, na releitura, fazer referir o texto ao horizonte significativo do

leitor.

Referente - a realidade extralingüística a que se "refere" o texto e que é diferente do "sentido"

próprio deste (o sentido é um fenômeno intralingüístico).

Reserva-de-sentido - as possibilidades de um texto de dizer mais do que pensou seu autor. É o

equivalente textual da releitura.

Semântica-semiótica - Diferenciam-se. Enquanto "semântica" conota a evolução e crescimento

do sentido de uma palavra/texto, a "semiótica" analisa seu sentido como estrutura.

Significante/significado - Relacionam-se como o signo e sua mensagem, o texto como

estrutura/ e "o que diz".

Sincronia - o caráter simultâneo da significação, quando se lê e interpreta um texto como

totalidade.

Targum - versão aramaica da Bíblia hebraica. É interpretativa, mas com menos

desenvolvimento do que o Midrash. Veja II, 1 e nota 23.

Torá - o Pentateuco; por extensão, toda a Escritura (especialmente o AT) enquanto norma

divina e instituição fundante de uma comunidade.