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A práxis interdisciplinar é possível? Cleusa Helena Guaita Peralta Castell * Neste trabalho, trago um breve relato sobre aspectos da prática inter e transdisciplinar em educação ambiental. Campo de múltiplas e complexas definições, a interdisciplinaridade é um desafio àqueles que desejam uma práxis pedagógica não-fragmentária e repleta de sentido. Por isso, é preciso refletir sobre a seguinte questão: _A práxis interdisciplinar é possível, dadas as condições estruturais de nossos sistemas educacionais e culturais? Em busca da resposta a esse questionamento, num primeiro momento, irei situar essa práxis em minha experiência de educadora ambiental e arte-educadora. Procurarei estabelecer relações entre minha práxis e os referenciais teóricos e metodológicos que deixaram suas marcas e indagações ao longo de dezessete anos de pesquisa sobre essa temática, interagindo com grupos sujeitos de protagonistas e pesquisadores (pesquisa-ação) e replicando essa práxis tanto à educação formal como não formal. A seguir, farei um breve recorte de algumas performances transdisciplinares que fazem parte do repertório de atividades dos programas criados pelo grupo de pesquisadores e protagonistas do qual faço parte (Ver: grupo de intercâmbio científico e intercultural INSYDE 1 ). No início, uma interdisciplinaridade complementar: artes e ciências do ambiente Essa práxis foi historicamente construída nos anos 1980 e 1990, com base na criação de performances inter e transdisciplinares em saídas de campo orientadas para a criação de programas em educação ambiental. Trata-se do Projeto de educação ambiental Utopias Concretizáveis Interculturais (PERALTA, 1997; 2002; MARONE, PERALTA, * Arte-educadora, Doutora em Educação, Mestre em Educação Ambiental. Docente do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande - FURG e dos programas de Pós-graduação: Artes Visuais (PAV/ILA/FURG); Linguagem, Cultura e Educação (LCE/ILA/FURG) e Educação Ambiental (PPGEA/IE/FURG). [email protected] 1 http://www.systembildung.de/wilhelm-walgenbach/design.pdf Acesso em 26/02/2009

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A práxis interdisciplinar é possível?

Cleusa Helena Guaita Peralta Castell∗

Neste trabalho, trago um breve relato sobre aspectos da prática inter e transdisciplinar em educação ambiental. Campo de múltiplas e complexas definições, a interdisciplinaridade é um desafio àqueles que desejam uma práxis pedagógica não-fragmentária e repleta de sentido. Por isso, é preciso refletir sobre a seguinte questão: _A práxis interdisciplinar é possível, dadas as condições estruturais de nossos sistemas educacionais e culturais? Em busca da resposta a esse questionamento, num primeiro momento, irei situar essa práxis em minha experiência de educadora ambiental e arte-educadora. Procurarei estabelecer relações entre minha práxis e os referenciais teóricos e metodológicos que deixaram suas marcas e indagações ao longo de dezessete anos de pesquisa sobre essa temática, interagindo com grupos sujeitos de protagonistas e pesquisadores (pesquisa-ação) e replicando essa práxis tanto à educação formal como não formal. A seguir, farei um breve recorte de algumas performances transdisciplinares que fazem parte do repertório de atividades dos programas criados pelo grupo de pesquisadores e protagonistas do qual faço parte (Ver: grupo de intercâmbio científico e intercultural INSYDE1). No início, uma interdisciplinaridade complementar: artes e ciências do ambiente Essa práxis foi historicamente construída nos anos 1980 e 1990, com base na criação de performances inter e transdisciplinares em saídas de campo orientadas para a criação de programas em educação ambiental. Trata-se do Projeto de educação ambiental Utopias Concretizáveis Interculturais (PERALTA, 1997; 2002; MARONE, PERALTA, ∗ Arte-educadora, Doutora em Educação, Mestre em Educação Ambiental. Docente do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande - FURG e dos programas de Pós-graduação: Artes Visuais (PAV/ILA/FURG); Linguagem, Cultura e Educação (LCE/ILA/FURG) e Educação Ambiental (PPGEA/IE/FURG). [email protected] 1 http://www.systembildung.de/wilhelm-walgenbach/design.pdf Acesso em 26/02/2009

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WALGENBACH, 1996; FLORES, J., PERES, M., PERALTA, C., WALGENBACH, W., 1994; MARONE, 2000; WALGENBACH, 2000). Essa primeira fase de estudos inter e transdisciplinares produziu, como resultado mais importante, a criação de um método de trabalho, que irei narrar mais adiante. A primeira fase desses estudos trouxe a premência de sistematizar ações que se refletissem imediatamente na rede escolar, frente a um eminente impacto sobre a natureza de nosso ambiente costeiro não construído, como as dunas, as marismas e o ambiente natural lacunar, sob forte ameaça.

Ilustração 1: Saída de campo interdisciplinar com orientação de uma professora de artes e outra de ciências do ambiente. EA na Praia do Mar Grosso, 1991, São José do Norte, RS

Já numa segunda fase desses estudos, a atual, pude trabalhar sobre o ambiente construído e impactado pela agricultura moderna, lançando mão das experiências anteriores para a criação de outra metodologia de trabalho na educação não formal (Ver minha tese: PERALTA-CASTELL, 20072).

2 Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8964/000592269.pdf?sequence=1

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Em ambas as fases pude pesquisar e formular metodologias de integração inter e trans disciplinar, provocando uma integração complementar entre artes e ciências do ambiente. Em ambas as etapas, as metodologias criadas partiram de provocações do campo das artes, iniciadoras dos processos de auto-atividade (WALGENBACH, 2000). Na primeira fase, construí uma integração a partir de oficinas coletivas de desenho e performances de corpo e movimento com orientações científicas sobre os ecossistemas estudados; na segunda, a partir de performances de teatro junto aos agricultores em transição agroecológica, com orientação interdisciplinar sobre agricultura orgânica. Essas modalidades de trabalho em equipe me são caras pelo esforço empreendido pelos parceiros envolvidos em todas as etapas e pelos belos resultados compartilhados. Esses antecedentes deixaram claro, para todos os que estiveram presentes, a importância do trabalho em parceria, concordando com Ivani Fazenda (1991), quando sugere que um projeto em parceria é condição da interdisciplinaridade. Entretanto, um projeto em parceria só é possível a partir de estudos e teorizações comuns que lhe possam dar guarida e sentido. A seguir, farei um recorte de alguns conceitos centrais nesse trabalho.

Ilustração 2: Performance de teatro com agricultores em transição agroecológica. Ilha dos Marinheiros, Rio Grande, RS, 2006.

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Elementos para a criação de uma meta-teoria de integração Por essas coisas da vida, tive a sorte de encontrar pesquisadores alemães, como Wilhelm Walgenbach, que compreenderam, valorizaram e compartilharam a pesquisa interdisciplinar que coordenava, já iniciada no final dos anos 1980 em parceria com a ONG NEMA3. A partir dos primeiros encontros, ainda no Brasil, foram formuladas diversas aproximações entre o projeto de educação brasileiro e as atividades de pesquisa sobre interdisciplinaridade desenvolvidas no Instituto de Pedagogia das Ciências – IPN da Universidade de Kiel4. Posteriormente, por conta da minha pesquisa e orientação de mestrado, estive estudando neste instituto (IPN), complementando a minha formação especificamente em interdisciplinaridade. Desde então, sinto-me comprometida com os estudos sobre o conhecimento interdisciplinar e seus desdobramentos, sempre trabalhando em equipes. Todas as modalidades de projetos em educação ambiental e em arte-educação que formulei tiveram o enfoque da interdisciplinaridade, a partir de uma elaboração anterior no nível transdisciplinar. Esse procedimento de entrelaçar a inter com a trans pode parecer, à primeira vista, um pouco complicado, mas vamos ver, adiante, como pode dar certo. Para Walgenbach (2002), fundamentado em Jantsch (1972) a elaboração e prática da transdisciplinaridade é condição para se estabelecer relações interdisciplinares orgânicas e uma efetiva articulação entre as disciplinas, em busca de um conhecimento mais integrado. Diferentes autores abordam modalidades possíveis de interdisciplinaridade. Dentre elas, a mais conhecida é a distinção realizada por Erich Jantsch. No estudo de Vilela e Mendes (2003)5, as autoras resumem esta abordagem:

Interdisciplinaridade: interação existente entre duas ou mais disciplinas, em contexto de estudo de âmbito mais coletivo, no qual cada uma das disciplinas em contato é,

3 Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental, Balneário Cassino, Rio Grande, RS. Disponível em http://www.nema-rs.org.br/ . Acesso em 18/02/2009 4 http://www.wilhelm-walgenbach.de/walgenbach/home_p.htm; Ver elementos da tese de pós-doutorado de Wilhelm Walgenbach, disponível em: http://www.systembildung.de/wilhelm-walgenbach/design.pdf 5 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692003000400016&script=sci_arttext. Acesso em 18/02/2009.

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por sua vez, modificadas e passa a depender claramente uma(s) da(s) outra(s). Resulta em enriquecimento recíproco e na transformação de suas metodologias de pesquisa e conceitos; transdisciplinaridade: é o nível superior da interdisciplinaridade, em que desaparecem os limites entre as diversas disciplinas; a cooperação é tal que se fala no aparecimento de uma nova macrodisciplina. Cita-se, como exemplo, a elaboração de marcos teóricos como a teoria geral dos sistemas, o estruturalismo, a fenomenologia, o marxismo.

Para que a interdisciplinaridade possa se efetivar, é importante que se estabeleça um marco conceitual definido no nível hierárquico imediatamente superior, o transdisciplinar. Vejamos a definição de Jantsch sobre inter e transdisciplinaridade:

Interdisciplinaridade: Axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas e definida no nível hierárquico imediatamente superior, o que introduz a noção de finalidade. [destina-se a um] sistema de dois níveis e de objetivos múltiplos [no qual há] coordenação procedendo do nível superior.

Transdisciplinaridade: Coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de ensino inovado, sobre a base de uma axiomática geral. [destina-se a um] sistema de níveis e objetivos múltiplos; [há] coordenação com vistas a uma finalidade comum dos sistemas (JANTSCH, 1972, p. 73-74. Grifos meus).

No relato das atividades a seguir, procurarei refletir sobre a importância de uma articulação entre esses dois níveis, definida acima por Jantsch, em busca de uma efetiva integração das áreas de conhecimento circunstancialmente envolvidas em programas de educação ambiental na rede municipal de Rio Grande, RS. Para Walgenbach (2000; 2002), tal integração poderá ser construída se compreendermos como se constrói conhecimento sobre o próprio conhecimento. O autor considera necessário o diálogo entre os diversos pesquisadores, neste caso, os docentes, para construir meta-teorias: referenciais comuns que possibilitam o planejamento transdisciplinar. No dizer do autor, “apenas nessas circunstâncias, dispomos dos meios para a construção da auto-organização de conhecimentos complexos, em interação com outros elaboradores de conhecimento”. Por outro lado, argumenta, ainda, também precisamos considerar que cada sujeito

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interage de forma particular no processo de construção do conhecimento coletivo, o que define como meta-cognição, já que

dispondo de algumas experiências com essas meta teorias e com o seu uso, podemos, ao menos, alcançar um estágio para reconhecer que as nossas construções dependem, em grande parte, de nossa própria personalidade, valores, convicções, normas, preferências, ideologias etc. Assim, por necessidade herdamos a visão mínima de que devemos olhar para nós mesmos e para nossa maneira de construir conhecimentos. O modo mais produtivo de produzir tais meta-cognições é fazê-lo em grupos experimentais que tentariam, em conjunto, criar o novo, de forma auto-reflexiva. [ ] Em um processo intercultural deve-se organizar procedimentos complexos e simétricos de construção de conhecimento, fundamentado em conhecimento sobre conhecimento [meta-teorias] e em conhecimento sobre si mesmo como um construtor de conhecimento [meta-cognições] (WALGENBACH, 2002).

A partir dessas primeiras definições, posso a relatar um pouco dessa construção metodológica, tecendo, ao mesmo, tempo, algumas considerações sobre os problemas encontrados durante essa caminhada. Penso que uma das principais ferramentas para o corpo-a-corpo do cotidiano é a aprendizagem autoconstruída, centrada na autonomia dos estudantes. Neste processo de aprendizagem, os educandos também podem ser estimulados a produzir tais meta-cognições, buscando não só o conhecimento sobre o conhecimento, mas também o conhecimento sobre si próprio e sobre como seu grupo de trabalho constrói esse conhecimento. Considerando a velocidade da atualização das informações pelos meios informatizados, é preciso preparar os estudantes para que encontrem seus próprios caminhos. Decorre também desse fato a necessidade de uma educação continuada e permanente, que aponte para novos formatos das salas de aula e, sobretudo, das instituições. Por outro lado, a busca do conhecimento também se dá numa outra velocidade, lenta, contrária ao aparato tecnológico, em movimento retrógrado, na busca da raiz cultural das comunidades e de sua historicidade. Pode-se, então, imaginar um acesso ao saber como uma grande teia ou rede tecida a cada passo e construída a partir de cada nó ou interseção.

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Esse modelo, do conhecimento em rede (MORAES, 1997), remete-nos ao questionamento acerca dos habituais pré-requisitos que tornaram a construção de modelos curriculares o porto seguro do conteúdo dado. A hierarquização dos conteúdos, ou seja, do que se deve ensinar e em que ordem de entrada no cenário do conhecimento, está em xeque e precisamos problematizar o currículo para que seu desenho permita a inter e trans disciplinaridade. Entre os principais problemas para essa transformação aparecem as relações hierárquicas entre as áreas de conhecimento, entre as disciplinas e entre os ministrantes e usuários desses modelos. Desta forma, deparo-me com outra questão precedente: seria impossível se empreender qualquer mudança trans sem repensar a dinâmica do trabalho em equipe, que se faz necessária. Assim, tendo como ponto de partida o caminho das artes, proponho-me abordar três momentos principais, necessários para o desencadeamento da prática transdisciplinar: a constituição da comunidade transdisciplinar, a escolha de um novo ambiente e a realização das performances trans. O encadeamento desses três momentos será importante à descoberta de uma meta-teoria de integração para que os grupos sujeitos possam, enfim, avançar no processo de elaborar e praticar a interdisciplinaridade. A aventura começa: a formação da comunidade trans O problema de origem passa a ser, então, a constituição em si dos grupos que irão decidir o futuro de um programa educacional, tanto quanto daqueles que irão interagir com os estudantes no campo e na sala de aula. O desafio passa a ser vencer o isolamento habitual provocado por uma política abstrata e impessoal de decisões meramente normativas. Assim, a constituição da comunidade transdisciplinar entre os docentes de uma escola, universidade ou grupos sujeitos passa pela aventura do trabalho em grupos – condição primeira da transdisciplinaridade. Portanto, é também pressuposto básico a necessidade de um trabalho de sensibilização, que possa desencadear uma efetiva integração dos grupos. Um trabalho sensível, ao meu ver, poderá resgatar o humano em cada sujeito, marcado pela sua máscara de eficiência, e ampará-lo na leveza da responsabilidade partilhada no seio da comunidade transdisciplinar. A partir daí, as teorias começarão a fazer sentido e os conteúdos essenciais tecerão belas padronagens na trama curricular.

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Desta forma, a idéia que hoje assumo, de constituir-se o trabalho pedagógico como um evento heurístico, desencadeador de descobertas, foi, inicialmente, uma provocação. A procura de um entendimento comum, conciliador, tanto no campo teórico como empírico, ao interagir com grupos heterogêneos, que se juntavam para desencadear uma pesquisa comum, no campo da educação ambiental, levou-me a este caminho6. Foi, portanto, a experiência com métodos interdisciplinares num campo de conhecimento integrado que me auxiliou a perceber a necessidade de se descobrir dinâmicas de trabalho em grupo, as quais pudessem dar suporte à criação coletiva e me auxiliar a mediar os processos interpessoais. Tais processos se cruzavam e, não raro, se conflitavam. Os conflitos mais recorrentes deviam-se, principalmente, ao choque das especializações e à hierarquização entre as áreas de conhecimento. Por exemplo: historicamente as artes não dispunham de tempo real nos programas do ensino fundamental para interagir, em igualdade de condições, com as áreas chamadas de conteúdo, como português, matemática ou ciências, ou seja, a dose prescrita era menor, ou menos vital para o programa. Por isso, não se disponibilizavam horas disponíveis para oficinas de arte, para o cruzamento dos eixos transversais entre os conteúdos essenciais, pois não havia o entendimento do conhecimento em artes na forma de conteúdos objetivos, mas apenas na forma de procedimentos ou atitudes. Outro problema costumava ser o de considerar o ensino de arte um campo livre para leigos e autodidatas, sem formação sobre o processo criador e como se constrói o conhecimento nas linguagens específicas, saberes estes vinculados às licenciaturas em artes. Com o passar do tempo, entretanto, os programas, aos quais prestei assessoria, foram contemplados com o enfoque construtivista a partir da integração das artes com todas as áreas do saber. O equilíbrio veio com o tempo, de tal forma que hoje não se faz educação ambiental sem artes, especialmente com crianças do fundamental7.

6 Em 1991, os projetos por mim coordenados, “Água” e “Nascente” (antecedentes do Utopias) reuniram pesquisadores, docentes e discentes de todos os departamentos da FURG e o grupo de cooperação da Universidade Federal de Santa Maria num grande evento multidisciplinar sobre a temática “Água”, que inaugurou o pavilhão de exposições do Cais do Porto Velho para atividades culturais. O projeto Utopias Concretizáveis Interculturais reuniu, para esta exposição, grupos docentes e discentes da FURG, de diversas áreas de conhecimento, dos departamentos de Letras e Artes, Educação (Pedagogia e Psicologia) Física, Matemática (CEAMECIM), Engenharia e Oceanografia. Três mil pessoas, especialmente estudantes da rede pública visitaram o pavilhão de exposições durante três dias. Hoje, este mesmo pavilhão é sede da Festa do Mar, um dos maiores eventos culturais da municipalidade. Durante os anos de 1997 a 2000, foram desenvolvidas performances trans e atividades de integração interdisciplinar dentro e fora da FURG. 7 Por exemplo, os programas de EA na rede municipal, coordenados pela Secretaria de Educação e Cultura – SMEC em parceria com o NEMA, anteriormente citado. Ver a publicação “Ondas que te quero mar” (CRIVELLARO, MARTINEZ, RACHE, 2001)

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Apesar do esforço inicial dos grupos em tentar chegar a uma proposta comum, seja para um programa de curso, seja para a criação de um novo campo de saber, sabe-se que ainda não dispomos de outra vivência antecedente que não a usual: o planejamento teórico solitário ou, no máximo do requinte, em colegiados, o que decididamente não funciona para propostas transdisciplinares. Esse esforço inicial não consegue superar a falta de uma meta-teoria integradora e de uma linguagem comum que possa, enfim, mediar e contextualizar as diferenças individuais e as idiossincrasias das áreas de conhecimento sem, contudo, reduzi-las ou totalizá-las. Se pensarmos em formas transdisciplinares de trabalho, chegaremos facilmente à conclusão de que a palavra final sobre o que e como deve ser ensinado – sem o qual pontes e prédios cairiam, sistemas entrariam em colapso ou a vida passaria a não fazer sentido – dependerá de decisões coletivas. Esse envolvimento de largo espectro produzirá um vínculo muito forte, centrado na responsabilidade e nas decisões compartilhadas. Entretanto, por um problema metodológico, é preciso reduzir o universo do primeiro grupo de trabalho, que, no futuro, na medida das necessidades, poderá ser ampliado ou multiplicado, gerando novos inícios. Walgenbach (2000; 2002) considera que o modo mais produtivo de produzir meta-cognições (conhecimento sobre como construímos conhecimento) é fazê-lo em pequenos grupos de cooperação, que tentariam, em conjunto, criar o novo, de forma auto-reflexiva. Quanto maior a diversidade – como no caso das artes e das ciências naturais – mais enriquecedor será o mútuo processo de descoberta. Vejo, portanto, a necessidade de se adotar um cenário, um espaço coletivo de trabalho, a partir do qual uma nova realidade possa emergir. A saída para o ambiente transdisciplinar: cuidado com o limo das pedras! Em relação ao ambiente de trabalho, já se tornou um hábito na comunidade universitária abandonar os muros acadêmicos em busca de uma maior oxigenação, em ocasiões nas quais se promovem encontros e eventos especiais. Este modo produz um clima de aparente descontração, contrastando com a habitual rotina das salas de aula e das saídas de campo convencionais. Isso ajuda um pouco, mas a saída por si só não é suficiente, pois, embora fisicamente distantes da matriz, os participantes podem cair na tentação de repetir padrões e manter um certo resguardo profissional.

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O que se pode buscar, entretanto, é um espaço de trabalho no qual o grupo possa não só interagir profissionalmente, mas também exercitar um convívio mais estreito, promovendo uma aproximação mais interpessoal e menos hierarquizada. Um espaço a ser trilhado, de igual importância, é o espaço interno de cada um, ou seja, o resguardo da subjetividade e dos momentos de privacidade, no sentido do entendimento das fronteiras desse âmbito comum. A vantagem de sair do campus da universidade, da escola ou do bairro para um trabalho de formação é provocar nos grupos um estado de prontidão e de maior receptividade a novas situações de aprendizado. Em atividades transdisciplinares propostas por minha equipe de trabalho, optamos por saídas ocasionais aos ambientes naturais preservados, sempre que foi possível o deslocamento dos grupos a estes ambientes8, intercaladas com oficinas pedagógicas dentro da instituição. Tenho adotado este método por acreditar que é uma provocação pertinente restaurar o contato dos sujeitos com o ambiente natural externo, restaurar, ainda, a relação natureza interna/externa, dentro/fora, não como uma atitude meramente recreativa, mas reflexiva, investigativa. Creio que o nosso modo de ver o mundo muda intensamente quando restauramos esse contato: Pensaremos, sentados em nossa sala de aula, da mesma forma como se estivéssemos com os pés mergulhados numa cristalina água de corredeiras? O que poderá ser mais provocador na busca do sentido do conhecimento do que uma caminhada reflexiva à mercê dos quatro elementos? Não raro os participantes descobrem, em situações de saídas ao ambiente, que seu próprio corpo esteve, há muito tempo, alienado, à parte do seu processo intelectual, e que não tínhamos, enquanto professores, o mesmo ponto de referência dos nossos educandos. As crianças não podem prescindir do contato imediato com o ambiente natural, que lhes dá não só o vigor físico, mas também a referência para a formação de seu imaginário. As crianças pensam e se expressam com todo o corpo, até que, mais tarde, o próprio sistema de ensino contribuirá para corroborar, na histórica cisão corpo-mente, a clássica atitude fragmentária, à qual nos adaptamos sem questionamento. Por outro lado, essa perda de contato físico com o ambiente natural se dá pelo próprio meio de vida urbano. Em decorrência, crianças e

8 Recanto dos Coswigs, colônia agrícola do município de Pelotas, RS; Camping do Pesqueiro, zona rural do município do Rio Grande; Eco-museu da Picada, patrimônio cultural e ambiental preservado no Arraial, zona rural do município do Rio Grande; Lagoa dos Patos, Cidade de São Lourenço do Sul, RS, entre outros.

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adultos perdem o contato imediato com os meios de produção como, por exemplo, a agricultura e a pecuária. A terceirização dos alimentos pode produzir a ilusão de que a vida brota dentro de um supermercado, caso os programas escolares ou os pais superocupados não se lembrem de explicar o óbvio: o leite não nasce dentro da caixa longa vida. Da mesma forma, perdemos o contato com as fontes primordiais de criação: os elementos, a pulsação da vida nas nascentes dos rios, a terra de todas as colorações, as pedras, os cristais brotando nos veios, o aroma da folhagem, o céu estrelado, o ar puro, o calor e o frio. Essa perda de contato, a meu ver, especialmente na infância, acarreta, para os nossos tempos, algo espantosamente danoso: o empobrecimento das matrizes do nosso imaginário. Após as contribuições de Vygotsky (1993; 1996; 2001) sobre a mediação simbólica, especialmente pela sua contribuição à pedagogia contemporânea, seria temeroso pensar que os meios indiretos de comunicação como a televisão, os vídeos e as redes de computadores possam passar a ser os únicos meios ou instrumentos capazes de gerar imagens e fatos – ideologicamente selecionados – que possam vir a povoar o nosso imaginário. Para Vygotsky (1996), o sentido da palavra imaginar significa processar imagens, cujos significados variam de acordo com as diferenças culturais. Em minha percepção, se não vivermos no mundo concreto, se não povoarmos nossa mente com as pedras cristalinas brotando nos veios ao toque de nossas mãos, não possuiremos nosso próprio repertório imaginativo, ou seja, perderemos nossa autonomia para bebermos da fonte escolhida, fora do conforto habitual. Isto porque é preciso provocar a não dissociação ou a complementaridade entre a visão de natureza urbana e construída e seus impactos culturais (cada vez mais disponíveis em acesso rápido na web) e o cheiro da terra molhada, da geada nos lençóis esquecidos na noite. Neste sentido, tanto para as artes como para as ciências, o que fica faltando é critério subjetivo, é subjetivação, que se dá quando nos vemos imersos na grande complexidade em busca do conhecimento. Desta forma, somos convidados, pelo impacto direto com os elementos da natureza, ou pelos vídeos sobre a natureza na grande mídia, a realizarmos nossas próprias escolhas. Esse retorno às matrizes do imaginário é estimulante, e nesta caminhada, muitas vezes, podemos testar o nosso poder de imaginação, o nosso repertório e a nossa autonomia. O processo de criação é autônomo, livre, mas depende de repertório, de imaginação que se constrói pela via de nossa experiência imediata e pelo que absorvemos vinte e quatro horas por dia, incluindo nossa herança

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cultural como um todo. Por isso, o percurso heurístico é, ao mesmo tempo, tão desejado e temido, pois pode abrir meandros e caminhos desconhecidos, além do que, se pode correr o risco de escorregar no limo das pedras! Desta forma, a saída para o ambiente natural pode ser importante, na medida em que nos traz de volta às matrizes do nosso imaginário – as formas elementares da natureza – que irão somar-se às matrizes da nossa cultura de informação digital. Muitos dos meus parceiros de trabalho me perguntam se essas saídas ao campo são mesmo imprescindíveis para o sucesso do trabalho transdisciplinar. Penso que sim, pois não vejo a orientação de toda a educação tornar-se ambiental como uma metáfora, como mera figura de linguagem. Penso que é preciso mesmo pôr o pé na terra, sem criar uma plataforma intelectual de proteção. E isto é bem difícil, pois desestabiliza as barreiras hierárquicas e burocráticas, criadas pelas divisórias das repartições dos ambientes construídos das instituições de ensino. O que estou buscando mesmo é o contato, seja com as matrizes de criação, seja com os sujeitos criadores. Uma vez constituído o grupo de trabalho e escolhido o ambiente externo, iniciamos as oficinas pedagógicas e as vivências, as quais chamamos de performances educacionais. As performances trans: ponto de partida para descobertas As performances trans, no contexto deste trabalho, são vivências em tempo real, em geral, fora das instituições de origem, para desencadear o processo de criação no nível transdisciplinar. Estas performances não têm o objetivo de serem levadas aos educandos diretamente. O trabalho direto em sala de aula pertence ao nível interdisciplinar. Isto quer dizer que as performances ou vivências fazem parte de um patamar anterior à sala de aula e se constituem como um trabalho de sensibilização e formação de professores ou técnicos. A performance trans se dá no nível meta-teórico, experimental, embora detenha todas as características de uma práxis, ao proporcionar experiência imediata com os conteúdos essenciais dos campos de conhecimento que se apresentam ao grupo. Entretanto, esta experimentação se dá no grupo de planejamento, o qual irá espelhar os efeitos dessa atividade, junto aos educandos. Esses dois universos, o da pesquisa no grupo trans e o da pesquisa inter, junto aos educandos,

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penso, diferem substancialmente, na medida em que nem toda atividade proposta a grupos de adultos pode ser aplicada diretamente a grupos de crianças e adolescentes. Constituindo-se, portanto, como um recorte na grande complexidade, a performance trans, como um evento heurístico desencadeador de descobertas, promove um vivenciar em tempo presente de diversas situações de aprendizagem. Essas vivências, quando estruturadas a partir de uma linha mestra de objetivos claros, como, por exemplo, buscar um elemento gerador trans para um futuro programa curricular, podem funcionar como uma pré-estréia, como uma visão preliminar, ou ainda como uma simulação de uma situação de aprendizagem, que dará suporte metodológico e crítico a futuras intervenções dos profissionais envolvidos. Ao mesmo tempo, estará dando suporte teórico para a prática interdisciplinar e para a difícil tarefa da triagem dos conteúdos essenciais – ponto de partida para a diluição das fronteiras entre as tradicionais disciplinas. Trago, agora, alguns relatos de performances trans realizadas, com o intuito de mostrar um pequeno recorte do método de trabalho transdisciplinar. Para isso, é preciso, ainda, acrescentar um derradeiro conceito, também sistematizado por Walgenbach, que é o de miniatura. Em seu método, considera como miniatura um objeto ou um conjunto de elementos que, juntos, formam uma idéia-chave a ser vivenciada, simulada ou desenvolvida pelo grupo. Uma miniatura pode ser um ambiente, um cenário, ou um caminho a ser trilhado. Desta forma, um caminho em forma de labirinto constitui-se numa miniatura em forma de espiral, como a nossa galáxia ou um desenho fractal. É também, portanto uma idéia-chave, uma metáfora do universo: Imagine uma caminhada por um campo aberto, bastante verde e preservado. Imagine, ainda, no meio deste campo, um labirinto construído com pedras e outros obstáculos naturais, como árvores, pedaços de troncos secos e buracos cavados na terra. Esses obstáculos estarão colocados em determinados pontos do labirinto, com a finalidade de jogar com a nossa capacidade de encontrar a saída. Ao sugerir como objetivo para uma caminhada pelo labirinto, um tema como minha professoralidade, estarei provocando em cada sujeito desta caminhada, de forma figurada, a oportunidade de rever seus próprios objetivos em seu percurso profissional. Essa provocação, uma vez consentida pelo protagonista que faz a caminhada, pode desencadear descobertas (atividade heurística), objetivar formas de refletir sobre as possíveis dificuldades de sua história pessoal, realizando, portanto, uma crítica e uma síntese. Mais adiante, esse protagonista poderá construir sua narrativa pessoal e refletir sobre como se deu seu próprio processo de conhecimento na performance (meta-cognição).

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A partir de uma atividade lúdica, reflexiva e simbólica, os sujeitos estarão, de forma prazerosa, incitando a si próprios a buscar novos pontos de referência para o seu trabalho ou consolidando aspectos positivos de sua práxis, com o respaldo e a cumplicidade do grupo de discussão. Ao mesmo tempo, a caminhada pelo labirinto só surtirá efeito se experienciada. Essa caminhada pelo labirinto não poderá ser apenas imaginada, terá que ser performatizada, pois cada sujeito a realizará num tempo determinado, específico, de acordo com o seu próprio ritmo. Cada um a realizará tendo em mente situações concretas de sua trajetória de vida, positivas ou não. Esta é uma atividade que se desenrola com todo o nosso corpo, com o contato das plantas dos nossos pés com a terra, com a grama e com as pedras, com as nossas mãos soltas, sem o peso de nenhum objeto, com a consciência da nossa pulsação, que acelera a cada novo obstáculo, com o auxílio de nossa respiração, com o auxílio de nossa memória, que se expressa em todo o nosso corpo e que se projeta em cada pedra do caminho, plena de significado. Os depoimentos posteriores do grupo, sobre o que se passou durante a caminhada, costumam dar conta de significados importantes, que brotam nas falas. Estes significados, individuais e coletivos, serão, no momento posterior da avaliação, relacionados nas redes semânticas, geradas pela performance. Essas redes de significados, construídas pelo grupo com a nossa supervisão, trarão à tona categorias a serem trabalhadas como pontos de partida para a construção meta-teórica de uma proposta transdisciplinar futura. As expectativas do grupo no campo da pesquisa, serão contempladas, seja na elaboração de um plano de estudo, seja na triagem de conteúdos essenciais, seja na elaboração de um currículo . As dinâmicas das performances trans – as miniaturas – contextualizadas numa proposta de construção de programas curriculares, por exemplo, organizam-se seqüencialmente, em procedimentos, a partir de uma abordagem que parte do sujeito e evolui para as relações interpessoais e de grupo. Tal abordagem tem o objetivo de situar os sujeitos como pontos de partida dos processos de aprendizagem e como agentes desencadeadores dos processos de aprendizagem de seus educandos. Desta forma, as primeiras performances são aquelas que buscam promover um encontro com a subjetividade e o histórico de vida, buscando conteúdos ou saberes, considerados mais importantes e fundamentais para o processo formativo. A segunda etapa propõe a

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criação de miniaturas que estimulem a confiança básica entre os sujeitos, estruturando a base do trabalho interdisciplinar e buscando consolidar as relações interpessoais. Atividades que envolvam cooperação mútua fazem parte desta etapa. A performance A história do rei9 propõe a figura de um narrador que conta a lenda de um rei doente, que pede aos seus três filhos que busquem a água da vida, única possibilidade de cura para ele, em outro país. Em um dado momento, o narrador cria uma ponte entre o universo imaginário – dado pela narrativa – e a vida real. Retira de uma bolsa, inesperadamente, uma ânfora antiga e diz: “Aqui está a água da vida!” Começa, então, a derramar na terra a água da vida. Motivados pela história, os participantes tentam segurar, com as mãos em concha, o pouco de água que conseguem reter. Como uma decorrência natural, todos tentam amparar a água que escorre das mãos em concha, uns dos outros, colocando suas mãos embaixo umas das outras, como se fossem estágios de um sistema. Como resultado final, todos os participantes montam, em grupamentos menores, agregados, um sistema integrado para represar a água que cai e, não raro, a bebem e a compartilham (Ilustração 3). Recria-se, assim, a partir desta performance, a metáfora da água da vida.

Performances narrativas como a História do rei e outros (Peralta, 1997) fazem parte da sistematização de Walgenbach e já foram realizados em

9 Historieta de origem nórdica: Água da Vida. (ANONIMO, s/d). Para salvar seu pai, o jovem príncipe sai em busca da água da vida, capaz de curar quem a bebesse. Mas para conseguir seu intento, ele vai ter que enfrentar muitas dificuldades e perigos. A história é longa, o jovem encontra diversos obstáculos e é ludibriado pelos irmãos mais velhos. Disponível em: http://www.submarino.com.br/produto/1/9230/agua+da+vida,+a#A. Acesso em 13/02/2009.

Ilustração 3. Performances “A história do rei – a água da vida”em dois momentos: à esquerda em 1998 comunidade trans – Pesqueiro. À direita: grupo trans Ilha dos Marinheiros, em 2006 .

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nosso meio e em diversos países, com resultados surpreendentes em grupos heterogêneos. É importante ressaltar que essas vivências têm a função de desencadear os processos de descoberta nos educandos, desdobrando-se, posteriormente, em atividades de ensino das artes e das ciências do ambiente, em relação à interdisciplinaridade em educação ambiental. No caso de um programa a ser desenvolvido, já numa segunda etapa, diretamente com crianças, a performance costuma ser desdobrada em atividades integradas interdisciplinares, construindo-se, por exemplo, com o auxílio dos materiais artísticos como a argila, represas e fontes para guardar a água da vida.

Ilustração 4. INSYDE: Performances no Congresso do Conselho Internacional de Educação Através da Arte – INSEA, Congress Center Hamburgo, De, 1987.

Como decorrência, conteúdos essenciais, como: a própria vida no planeta e a sua relação com a preservação das nascentes naturais; a argila como um material natural, importante para restaurar a competência simbólica ancestral das crianças, são trabalhados em profundidade e com grandes chances de vinculação afetiva e responsabilidade.

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Costurando o método de pesquisa A partir daí iniciamos a estruturação do método de pesquisa, baseado nas narrativas dos interlocutores do processo, o grupo transdisciplinar, na análise dos depoimentos gravados, bem como na apreciação da escrita comum do grupo, somadas à nossa própria produção. O objetivo passa por buscar eixos ou categorias comuns às diversas áreas do saber para se elaborar uma linguagem mediadora, que possa refletir as reais confluências entre os campos de saber trabalhados. Quando alguém expressa, pela fala, suas impressões acerca de uma vivência, de uma performance, consideramos sua narrativa uma tematização. Esta tematização está repleta de informações, que costumam dar conta de referenciais teóricos e vivenciais que aquela pessoa traz consigo e que não são necessariamente os mesmos dos demais componentes do grupo. Este método nos propõe o exercício de um pensamento divergente (ARRUDA, 2005)10 , na medida em que lançamos a mesma proposta de experimento para todo o grupo, mas cada participante poderá reagir a ele de uma forma particular. Desta forma, a dinâmica de trabalho irá propor uma reflexão acerca das abordagens – convergentes e divergentes – utilizadas usualmente em sala de aula. É bom lembrar que, especialmente nas artes, os estudantes são incitados à criatividade e à originalidade, exercitando diferentes formas de solucionar problemas, e apresentando, por sua vez, dificuldade no exercício da convergência. As narrativas abrirão espaço para ambos os enfoques, na medida em que os sujeitos refletirão sobre a sua prática. Cunha reconhece a importância do método centrado em narrativas:

Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos significados. Assim, a narrativa não é a verdade literal dos fatos mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode ser transformadora da própria realidade (CUNHA, 1998, p. 39).

Assim, a partir da provocação das performances (como a História do rei acima), o grupo buscará uma linguagem comum (meta-teoria), orientada no sentido do registro de sua oralidade e de sua escrita. Estes registros produzirão uma análise categorial, isto é, serão extraídas das 10 Cf. ARRUDA (2005), fundamentado em COON (1989): O Pensamento divergente produz muitas idéias ou alternativas e desenvolve muitas possibilidades a partir de um único ponto de partida; e o pensamento

convergente é dirigido para a descoberta de uma única resposta correta. Usualmente o pensamento divergente é associado à criatividade e o convergente ao pensamento convencional.

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tematizações aquelas categorias que constituirão a temática daquele grupo e daquele programa curricular em particular. Estas categorias nortearão a escolha de eixos temáticos principais, que irão assegurar a transversalidade dos programas. Exemplificando, se emergir de uma performance o eixo temático vida, este enfoque convergente do grupo em questão poderá ser considerado um elemento gerador, a ser desdobrado em conteúdos essenciais, que poderão ser trabalhados integradamente – e não isoladamente em cada disciplina .

VIDA

PERFORMANCE TEATRO: A PUSAÇÃO, O SOM DA VIDA NO CORPO PERFORMANCE CIÊNCIAS: O NASCIMENTO – A VIDA NOS REINOS

VEGETAL, ANIMAL... PERFORMANCE MATEMÁTICA: O TEMPO DA VIDA

VIDA

Numa perspectiva interdisciplinar, no contexto deste trabalho, a palavra “vida”, que apareceu das categorizações feitas a partir das performances trans, passa a ser um eixo trans a ser trabalhado em sala de aula, em parcerias entre professores que trabalharão juntos determinados conteúdos essenciais. No exemplo acima, a professora de artes estará acompanhada da regente de classe, no caso do currículo dos anos iniciais, ou das professoras de ciências e matemática no currículo por área. A cumplicidade gerada pelo convívio estreito do grupo, provocada pela dinâmica adotada, promoverá uma maior familiaridade e confiança entre os participantes para o exercício da integração interdisciplinar. Para Walgenbach (2000), as performances educacionais são, ainda, dinâmicas de trabalho em grupo, desenvolvidas com o objetivo de promover uma pesquisa no campo teórico da educação. Diferem do que conhecemos como pesquisa aplicada, que se dá diretamente com os educandos. Neste caso, as teorizações acerca desta temática passarão a ser consideradas, a partir desse encontro, elaborações coletivas. Esta atitude poderá resultar na criação de um novo conhecimento, ou de uma meta-teoria. Concordando com Cunha (1998) usar a linguagem como pedagogia nos proporciona o exercício dialético entre a narrativa e a experiência; entre

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a história e a realidade, entre a teoria e a prática. Desnecessário afirmar que a meta-teoria de integração emergirá naturalmente do próprio grupo. Em meu entendimento, portanto, um caminho em busca de um desenho inter e trans disciplinar coletivo para um simples programa de unidade pedagógica, ou ainda um currículo mais extenso, poderia ser trilhado a partir dos seguintes passos:

• A constituição da comunidade de trabalho trans; • A escolha dos ambientes para o contato heurístico com o

ambiente natural e cultural; • A produção e a fundamentação das performances trans.

As performances transdisciplinares, por sua, vez, sendo o ponto de partida para o desenvolvimento da pesquisa, poderiam gerar as tematizações e suas análises categoriais, até se chegar ao desenho dos programas curriculares, a partir das etapas:

• A realização das próprias performances junto ao grupo, a partir das miniaturas preparadas de acordo com os objetivos do programa;

• Nova produção de performances a partir dos resultados dos relatos e narrativas;

• Análise das narrativas; elaboração das redes temáticas, identificando-se pontos de interseção de objetivos, significados e conteúdos essenciais comuns ao grupo;

• Análise categorial das tematizações junto ao grupo; • O desenho coletivo do programa curricular; • As atividades interdisciplinares em sala de aula, geradoras de

novas performances e problematizações e assim por diante. A partir da elaboração do programa curricular centrado em eixos temáticos e não em disciplinas, inicia-se a segunda etapa do programa, sendo ministrado, também em formatos heurísticos, junto aos grupos de educandos. Para exemplificar, o programa de educação ambiental do Projeto Utopias Concretizáveis Interculturais, desenvolvido por diversas oportunidades, em diferentes escolas e comunidades, e também fundamentado por Walgenbach, tinha como grandes módulos temáticos encadeados: 1. Os sujeitos; 2. Os grupos culturais; 3. O ambiente; 4. O planeta Terra.

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Existe uma outra lógica na construção desse currículo. Ele propõe, num primeiro momento, uma provocação, que desencadeia um processo de descoberta nos educandos (auto-atividade para Walgenbach, 2000) em cada eixo transdisciplinar, por exemplo, os grupos culturais. A partir dessas descobertas, os educandos elegem pontos ou nós, a partir dos quais o conhecimento vai ser acessado, em rede. Desta forma, o caráter subjetivo e intersubjetivo dos saberes fica contemplado de forma indissociável do conteúdo objetivo.

Enfim, as práxis inter e trans podem dar certo?

Ilustração 5. Projeto Utopias Concretizáveis Interculturais. Escola Maria Angélica: artes e ciências integradas, Taim, Rio Grande, RS, 1991.

Procurei, de forma sintética, expor experiências com a interdisciplinaridade – sempre partindo do nível transdisciplinar – com as quais tenho convivido diuturnamente em minha rotina acadêmica. Os resultados desses estudos podem ser mais bem compreendidos em minha dissertação de mestrado (PPGEA/FURG) e tese de doutorado (PPGEdu/UFRGS)11, a primeira no campo da educação formal (artes e ciências do ambiente) e a segunda na educação não formal (teatro e agroecologia). Apesar da complexidade da temática, procurei buscar as raízes teóricas e metodológicas construídas ao longo do processo de pesquisa historicamente construída. Essas raízes, um tanto aéreas, podem ser encontradas no Brasil e na Alemanha (Walgenbach e grupo INSYDE), bem como na Áustria (Erich Jantsch), sem falar em minha influência

11 Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8964/000592269.pdf?sequence=1

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histórico-cultural, transparente o tempo todo, bem como a abordagem problematizadora freireana. Ao escrever este texto, assumo determinados conceitos ainda pouco trabalhados no Brasil, como a busca de uma meta-teoria para a integração dos saberes, numa perspectiva inter e trans. Se as experiências deram certo? A resposta ainda é parcial. No plano pessoal, penso que as metodologias centradas na intersecção inter-trans disciplinar deram certo, na medida em que programas de educação ambiental (educação formal) puderam ser criados, experienciados e estudados12 de forma dinâmica e prazerosa. Deram certo porque agricultores em transição agroecológica, grupos sujeitos de pesquisa-ação, teatralizaram suas demandas e dilemas, repensando sua prática agrícola numa perspectiva emancipatória. Novas organizações sociais de trabalho foram pensadas, legitimando essa práxis. As escolas e grupos, com os quais interagimos, nem sempre conseguiram adotar uma práxis inter devido ao engessamento de seus programas institucionais. Esse é o ponto mais crítico da interdisciplinaridade. A minha preocupação, o tempo todo, tem sido possibilitar que uma pesquisa sobre interdisciplinaridade, não corra o risco de se desgastar no mero debate teórico, polifônico, múltiplo. Por outro lado, a ausência de relatos sobre trabalhos articulados com um enfoque teórico e metodológico claro, pode permitir a proliferação de um pensamento ingênuo – especialmente quanto a um desenho curricular de fato, interdisciplinar. É comum a confusão conceitual de ser possível fazer interdisciplinaridade sem o corpo-a-corpo e as relações interpares.

12 Os referenciais teóricos e metodológicos do Programa Utopias Concretizáveis Interculturais, bem como das investigações e performances do Grupo INSYDE, acima citado, foram estudados em diversas teses e trabalhos de graduação, entre elas: Tese de pós-doutorado do Dr. Wilhelm Walgenbach: Interdisziplinäre

system-bildung. Instituto de Educação da Universidade de Hamburgo, Alemanha; dissertação de mestrado da Profª. Cleusa Helena Guaita Peralta: O conceito utopias concretizáveis: elemento gerador de um programa

de educação ambiental centrado na interdisciplinaridade – Programa de Mestrado em Educação Ambiental, FURG, Rio Grande; dissertação de mestrado da Profª. Nara Regina Crizel Marone: Espelho: um recorte na

grande complexidade – um estudo de uma alternativa transdisciplinar como possibilidade para formação de

professores – Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Pelotas; dissertação de mestrado da Profª. Ivane Almeida Duvoisin: A educação ambiental na rede telemática – Programa de Mestrado em Educação Ambiental, FURG; monografia de graduação da Profª. Luciane Germano Goldberg: Arte – Pré-Arte, um aporte interdisciplinar em arte e educação ambiental – Graduação em Artes Visuais – Licenciatura – FURG, e dissertação de mestrado da Profª. Luciane Germano Goldberg: O despertar da

consciência estética e a formação de um imaginário ambiental na perspectiva de uma ONG – Programa de Mestrado em Educação Ambiental, FURG, Maria da Graça Carvalho do Amaral: dissertação de mestrado: UFRGS, RS, 2006; Suzanne Rey Zanella: Heuristiken für eine ästhetisch-wissenschaftliche Grundbildung: tese de doutorado Universität Kiel 2005, entre outros.

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Ivani Fazenda deixou claro, desde sempre, a importância de um “projeto em parceria” (FAZENDA, 1979; 1991). Por isso, pela mão de muitos mestres e companheiros, trouxe até aqui esta práxis em construção, que não “saiu do papel” para a prática, já que fez o caminho inverso, “partindo da prática para a complexidade do pensamento”. Referências ANONIMO. Água da Vida. Rio de Janeiro: Itatiaia/sd. Disponível em: http://www.submarino.com.br/produto/1/9230/agua+da+vida,+a#A. Acesso em 13/02/2009. ARRUDA, S.M. et al. O pensamento convergente, o Pensamento divergente e a formação de professores de ciências e matemática. Cad. Brás. Ens. Fís., v. 22, n. 2: p. 220-239, ago. 2005. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br. Acesso em 19/02/2009. CRIVELLARO, Carla; MARTINEZ NETO, Ramiro; RACHE, Rita. Ondas que te quero mar- educação ambiental para comunidades costeiras. Porto Alegre: GESTAL/NEMA, 2001. COON, D. Introduction to Psychology, exploration and application. St. Paul: West Publishing Company, 1989. CUNHA, Maria Isabel. Conta-me agora! As narrativas como alternativas pedagógicas na pesquisa e no ensino. Revista da Faculdade de Educação, v. 23, n. jan.-dez. 1997. FAZENDA, Ivani. Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: Efetividade ou ideologia. São Paulo, Loyla, 1979. _____. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. São Paulo: Loyola, 1991. FLORES; José, PERES, Mônica, PERALTA, Cleusa, WALGENBACH, Wilhelm: Utopias Concretizaveis - Um Conceito Interdisciplinar e Intercultural de Formação para a Educação Ambiental. Institute for Science Education (IPN), Kiel 1994. JANTSCH, E.: Towards Interdisciplinarity and Transdisciplinarity in Educations and Innovation. In: Centre for Education Research and Innovation (CERI). Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD) S. 97 – 121. 1972.

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