moscariello,angelo como ver um filme praxis da visao

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    COLECQAO DIMENSOES1. A ARTE COMO OFICIO. Bruno Munari2. 0 DESIGN INDUSTRIAL E A SUA ESTETICA. Gillo Dorfles3. ARTISTA E DESIGNER. Bruno Munari .4. APRENDIZAGEM DA FOTOGRAFIA - INICIAAO. Michael Langford5. DESENHO DE PERSPECTIVA. Robert W. Gill6. DESENHO BAslCO - As Dinarnicas da Forma Visual. Maurice de Sausmarez7. PROJECTAR A CIDADE MODERNA. L. Benevolo. Tommaso Giura Longo e Carlo

    Melograni8. APRENDIZAGEM DA FOTOGRAFIA - APERFEI

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    IVPRAXIS DA VISAO

    1. Um peuee de filmo,logiaA disciplina que estuda 0 comportamento do espectador durantea experiencia filmica chama-se jilmologia. Ela nasceu como um ramoda psicologia da percepcao e daqui foi-se progressivamente emancipandoate conquistar a dignidade de ciencia autonoma. 0 que nos ensina,portanto, a filmologia? Tudo, ou quase tudo, aquilo que ha para sabersobre os processos psiquicos que se activam na nossa mente quando

    assistimos a projeccao de um filme.Ensina-nos, por exemplo, que ler um filme e uma coisa distintade ler um romance, apesar de 0 mobil que nos leva a efectuar ambasas operacoes ser quase identico, consistindo tanto num caso como nooutro no desejo de sair da nossa dimensao quotidiana para viver umaoutra vida. Ensina-nos que esta outra vida e por nos vivida - pelomenos durante 0 tempo que dura a experiencia -'- sob 0 signa deuma marcada impressao de realidade, em virtude da qual a cons-ciencia de estar a assistir a urn filme nao e suficiente para neutralizar 0poder alucinatorio que este ultimo exerce sobre nos. Ensina-nos, final-mente, que nao e apenas 0 filme que nos fala, mas que tambem nosfalamos ao filme e, coisa incrfvel, que este nos responde para da telasatisfazer as nossas solicitacoes.Mas isto nao seria ja do nosso conhecimento, mesmo que formu-lado de modo comezinho? Nao e verdade que sempre se disse que verurn filme equivale a sonhar de olhos abertos? Tudo certo, mas comurna precisao: durante muito tempo, fomos os protagonistas inconscien-tes desse sonho, isto e, vivemo-lo sem 0 conhecer; presentemente,gracas a filmologia, podemos desvendar 0 seu funcionamento e passar,portanto, de sonhadores involuntarios que eramos para sonhadores vo-luntarios, Adiferenc;a, como se pode ver, nao e pequena e e a mesmaque decorre entre uma fruicao passiva de uma determinada experien-cia cultural e a sua fruicao activa. A primeira deixa-nos indefesosrelativamente a eventuais praticas mistificantes, enquanto a segunda nos

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    permite seguir 0 comportamento dos codigos filmicos com conscienciacritica e desmascara-los quando tentam ludibriar-nos.Os processos psiquicos que se passam na nossa mente enquantoo filme se desenrola na tela reportam-se ao acto de ver em si e .naodependem, portanto, do grau de artisticidade do filme em questao,Isto significa que 0 cinema, seja qual for a maneira como pretendacomunicar connosco e qualquer que seja 0 tipo de discurso que queirafazer-nos, nao pode deixar de ter bem presentes as leis da filmologiaC' as suas aplicacoes concretas. E tern apenas a ver com 0 seu sentimentode honestidade utiliza-las para fins regressivos ou servir-se delas paraprovocar 0 nosso envolvimento intelectual e para tornar 0 sonhofautor de uma tomada de consciencia racional. A evocacao do Imagi-nario nao e perigosa em si mesma. Passa a se-lo quando e comandadapela vontade de camuflar as contradicoes do real, ou entao de lhesdar uma solucao puramente consolatoria. A mentira, no cinema, apre-senta todos os caracteres da verdade. E por isso que, perante a ficcaofflmica, e preciso estar bem desperto e nunca perder de vista os movi-mentos efectuados pela Linguagem, sem contudo renunciar ao prazerda visao. Para por em pratica esta participacao vigiada e necessariosaber nao apenas 0 que acontece na tela mas tambem 0 que acontecena nossa cabeca durante a projeccao.

    Os processos mentais a que nos referimos sao multiples. Algunsdeles apresentam fortes analogias com os relativos ao sonho verdadeiro,ou seja, aquele que fazemos de olhos fechados. A condensaciio, a deslo-cacao, a integracao e a identijicacdo sao dos mais frequentes, comoveremos dentro em pouco.

    2. rFelnomenol!ogiadraperc:ep~aoA sala fica as escuras. A tela ilumina-se. 0 nosso sonho deolhos abertos esta prestes a comecar, Dizemos de olhos abertos naoporque se realize sob 0 efeito de qualquer droga (exis tem, em todo 0caso, pessoas viciadas em cinema: sao os chamados cineiilosi, mas por-

    que, enquanto dura, mantemos 0 sentido da nossa presenca corporea.Mantemo-nos fisicamente presentes a nos proprios apesar de termos ailusao de viver numa outra dimensao. Por mais forte que seja 0 poderenvolvente do filme, basta um movimento do nosso vizinho ou umaavaria tecnica para nos chamar ao nosso tempo real. Entregamo-nos aofilme, mas nao de maneira incondicional. Contudo, e precisamente auma entrega total que ele muitas vezes nos convida, a menos que tenhadecidido a partida manter-nos bern despertos gracas a qualquer expe-diente distanciante.o tempo do filme sobrepoe-se ao nosso para the levar a melhor.Trata-se de urn tempo que nunca coincide com 0 real (como acontece67

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    pelo contrario, com 0 teatro) e que nao eregulavel a nosso bel-prazer(como acontece no romance). E um tempo flexlvel que pode ser dila-tado ou abreviado consoante as exigencias narrativas e a que, dada apredominancia do seu caracter mental sobre 0 cronologico, seria prefe-rfvel chamar duraciio. Nele, 0 passado e 0 futuro coexistem com 0presente, diferentemente do que acontece no tempo linear de tipoaristotelico, Gracas a isso, as coisas nunca ficam imoveis na sua colo-cacao, masdeslocam-se econdensam-se num fluxo espacio-temporalque as submete a uma continua modificacao de perspectiva. Entre asimagens estabelece-se um intercambioincessante gracas ao qual se activaumduplo movimento mental entre 0 filme enos eentre nos e 0 filme.Istosignifica que os enquadramentos nunca sao percebidos comofragmentos isolados, mas postos em relacao com os antecedentes e osseguintesnum jogo associativo que e regulado pelo nosso estado dealma e pela nossa historia pessoal, prevalecentemente a propria historianarrada pelo filme. Daqui resulta que as personagens activas na teladepressa acabam por ser aquilo que queremos que elas sejam, toman-do-se projecciies de algo que existe apenas na nossa cabeca, Isto e tantoverdade que algumas narrativas fflmicas puderam fazer de tais processosa materia das suas fabulas, 0 que resultou em representar de maneirarealista acontecimentos puramente imaginaries baseados no principioexclusivo das associacoes mentais (L'annee derniere a Marienbad, 1961,e Providence, 1977, de Alain Resnais).

    Se 0 tempo do filme e um tempo a-cronologico, tambem 0 espacoe urn espaco nao real, mas convencional. Po de ate dizer-se que esteultimo, em vez de possuir uma consistencia autonoma, mais nao e que aresultante figurativa do primeiro. 0 filme opera uma seleccao dos ele-mentos oferecidos pela realidade e restitui-no-Ios numa nova disposicaoque ja nada tern a ver com a primitiva. Esta nova disposicao e frutode uma pratica ecombinatoria> que permite a construcao de um uni-verso simetrico ao real e regulado por leis que. so a ele dizem respeito.Tambem aqui, seo mundo nao fica reduzido a pedacos e porque anossa mente integra os fragmentos individuais que aparecem na tela numcontexto espacial mais amplo que resti tui 0 sentido da sua concretici-dade. A relacao de necessidade e de solidariedade que liga oselementos visuais entre si produz a unidade espacial do filme, unidadeque e percebida por nos como tal na condicao de estarmos na dispo-sic;ao animica adequada para nos transferirmos do nosso universo parao da narrativa fflmica: E e precisamente 0 que acontece em geral noespectador devido a natureza voluntarias da fruicao fflmica. Somentequem estivesse afectado de esquizofrenia perceptiva ou de uma fasemomentanea de distraccao poderia ter a desventura de assistir nao a.urnfluxo unitario de imagens mas a urn desfile caotico de parcelas domundo visivel,68

    o duplo processo de integracao e de intercambionecessitavparase desenrolar de maneira irreversfvel, de. uma representacao do espacofilmico que seja homogenea e obedeca. a uma mesma logica estilistica.Em suma, a convencao escritural estabelecida no inicio da narrativa naodeve ser trafda por um inesperado volte-face dos codigos, Na realidade,basta um enquadramento superfluo ou urn angulo injustificado paraafectar a fuga harmonica das imagens provocandoem nos uma sensa-c;ao desagradavel de despertar brusco. Despertar,note-se, que tambempode ser causado propositadamente pelo filme para dar as nossas facul-dades reflexivas a possibilidade de entrarem em funcao. Mas tam-bern neste caso de provocacao intelectual os elementos de perturbacaodevem manter-se solidarios com a totalidade do comportamento lin-guistico do filme, sob pena de, caso tal nao aconteca, a narracaofalhar no plano da organicidade semantica.o espaco fflmico e, portanto, um espaco selectivo. Contudo, apercepcao que dele temos e global. De facto, e impossivel retalharum ou outro aspecto particular no interior de urn enquadramento.o fragmento de realidade e-nos apresentado sempre na sua totalidade,contrariamente ao que acontece no romance escrito onde uma frasepode delimitar 0 campo visual para sublinhar urn. elemento e apagar:outro. Isto significa, para usar a terminologia de Jean Ricardou, queenquanto a leitura de urn romance se baseia numa sintese dijerida, aleitura de urn filme baseia-se numa sintese imediata. 1 Assim seexplica porque e que 0 cinema nunca pode falar em abstracto, ao con-trario da literatura a qual, por seu tumo, esta vedada .a esfera doconcreto. A maior concretic idade do cinema nao significa, porem,que este ultimo deva ser necessariamente mais realista que a litera-tura. E preciso nao esquecer que apesar de ele produzir sempre umaimpressao de realidade, isso nao basta para nos fazer confundir arealidade da Vida com 0 imaginario do Cinema, mesmo que confiraao segundo a mesma evidencia que a primeira possui.A vocacao do cinema para a concreticidade condiciona a escolhado material filmavel e justifica 0 destacado gosto pela accao queencontramos nas narracoes cinematograficas. Nao podendo exprimirpensamentos (a menos que queira recorrer ao expediente facil de vozoff), 0 filme tem deempenhar-se em transmitir 0 abstracto atraves doconcreto. Isto e, deve representar os sentimentos humanosatraves dadescricao dos comportamentos ffsicos que lhes correspondern. Pondoem cena 0 visfvel, 0 cinema deve conseguir representar 0 invisivels ,numa dialectica entre 0 abstracto e 0 concreto que corresponde plena-mente a sua natureza de arte simultaneamente realista e irrealista.

    1 Of. J. Ricaedou, Probleme du nouveau roman, Seuil, Paris, 1967,pp. 70 e segs,

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    E esta a base comportamentista da linguagem filmica a que se refere apsicologia da percepcao e cujo reconhecimento por parte dos cineastasinfluenciou grande parte da poetica subjacente as varias nouvelles voguesnascidas urn pouco por toda a parte nos finais dos anos cinquenta.A consciencia da base comportamentista sugeriu ainda aos cineas-tas uma abordagem do real ja nao do tipo psicologico mas do tipo[enomenologico. Tal abordagem exclui a manipulaccao do mundo visi-vel em beneficio de urn seu registo 0 mais discretos possivel, 0 espacodeixa de ser fragmentado, procurando-se respeita-lo na sua continuidadecom 0 objectivo de conseguir que a relacao que a personagem vaiestabelecendo progressivamente com 0 ambiente ffsico que a circunda sejainterrompida 0 menos possivel, 0 significante desta pratica fflmica eo plano-sequencia, ou seja, 0 procedimento que consiste em retomaruma accao em continuidade e que se repetc com tanta frequencia nasobras de urn Rossellini, de urn Godard ou de urn Jancso,So que, .mesmo estando subjacentesa tecnica do plano-sequencia,o Iespaco e 0 tempo do filme nao conseguem mesmo assim coincidircom os reais. Nova forma de montagem invisfvel, oplano-sequen-cia mais nao faz que reestruturar de dentro 0 mesmissimo espaco ffl-mico que a montagem soberana estruturava do exterior.Tambem neste ultimo caso de justaposicao camuflada, a nossapercepcao do espaco mantem-se, portanto, regulada pelos processospsiquicos atras referidos, predominantemente pelos da integracao e dointercambio. Daqui resulta que a diferenca entre uma util izacao selec-tiva do espaco fflmico, ..como a que se verifica por exemplo num textoinspirado nos criterios da cinelingua como Tchelovek s Kinoapara-tom (0 homem da ciimara, Dziga Vertov, 1929), e a sua utilizacaodeinspiracao fenomenologica, como a que preside por exemplo em A boutde souffle de Godard ou em Le depart (Jerzy Skolimowski, 1967), repor-ta-se exc1usivamente ao plano da poetica dos respectivos autores e naotoea 0 plano da estetica geral do cinema.Finalmente, no que se refere aos exemplos de minimal cinema,fautores de urna coincidencia exacta do tempo fflmico com 0 real(veja-se, por todos eles, Empire de Andy Warhol, 1964), cabe referirque neles 0 espaco se torna uma funcao do tempo e que a objectivi-dade inicial depressa se transforma numa acentuada subjectividade quelhe altera a ordem espacial sem que haja relativamente a eia qualquerintervencao numa fase previa ao. filme.As observacoes feitas ate agora confirmam uma verdade que jativemos oportunidade de sublinhar, e que consiste no facto de 0 cinemaser a arte que, melhor que qualquer outra, se presta ao procedimentoda alusiio. Ora, para que uma tal atitude seja valorizada, e necessariorecorrer a praticas escriturais baseadas na subtraccao quedeixamespaco a intervencao oomplementar do espectador. Se 0 intercambiosnao for facilitado, existe entao verdadeiramente 0 risco de uma nossa70

    queda na dimensao do onmsmo regressivo. Em tal lastimav~l ocor-rencia, 0 filme passaria da condicao de portador de luz a veiculo detreva intelectual e de espectacularidade nefasta.

    3. Identifkome, mas com que?o regime do olhar seguido pelo cinema e, como ja referimos,

    de tipo misto. Is to significa que 0 processo identificador accionadona nossa mente durante a visao nunca e univoco, mas recai ora sobreurn ora sobre outro elemento da representacao num jogo de variaccesque depende tanto da complexidade da narrativa como da capacidadeevocativa de que dispomos,o t ipo de identificacao mais elementar e 0 que se reporta a .umadas personagens da tabula. Vemos 0mundo com os seu~ olhos, partilha-mos a sua posicao e vibramos ate enquanto os acontecimentos por elavividos nao tiverem urn desfecho feliz. Isto e realmente 0 que acontece,mas apenas em parte. De facto, em caso algum 0 herois conseguemonopolizar a nossa projeccao ,afectiva em detrimento total das .?utr~spersonagens. Tambem estas ultimas reclamaIl?- a nossa part~clpagao,cada qual no seu sentido e com argumentos igualmente convincentes,Isto explica-se facilmente se considerarmos que cada personagcm pre-sente nurna fabula nao e mais que a concretizacao de urn aspecto donosso caracter, quer seja bom ou mau. 0 esquematismo psi colo-gico de muitos filmcs corresponde, no fundo, a uIl?-aexigencia _por.assimdizer didactica, que exacerba os aspectos morais com 0 objectivo detornar a moral do discurso mais compreensivel. Por isso nos acontecevibrarmos pelo heroi, mas sem que fiquemos completamente indiferen-tes as raz6es de quem faz de mau. Uma atitude unica e inabalavelda nossa parte implicaria a perf'eicao consumada ou, pelo menos, urnsentido de superioridade humana verdadeiramente pouco humano. Deresto, nao e verdade que por vezes podernos ate tomar 0 partido de ur;nanimal, desde que tenha sido suficientemente humanizado pelo reali-zador? E essa mesma projeccao nao pode recair inclusive sobre os pro-prios objectos, na condicao de terem sido oportunamente carregadosde sentimento?Identificacao variavel, portanto. Mas variavel nao significa inter-mitente. Neste caso, 0 nosso sonho seria urn tantoagitado e pri-vado da necessaria continuidade. Ora, salvo 0 caso ja referido de per-turbacoes intencionais devidas a intervencao do autor em pessoa,sabemos bern que 0 processo identificativo actua ao longo de :toda aduracao do filme, embora mudando 0 objecto a que se destina. Mas,sendo assim, com quem e que verdadeiramente nos identificamos du-rante o tempo que dura a visao? Responder com tudo urn poucoseria simplista, na medida em que existe sempre urna linha de leitura

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    ao longo da qual caminhamos no meio do' fluir heterogeneo das ima-gens. Na realidade, nao e com urn quem que nos identificamos, massim com uma coisa. Esta coisa e a maquina de filmar. E atraves dosseus olhos e nao atraves dos desta ou daquela personagem que vemoso mundo. E pela sua sorte e nao pela do heroi que acabamos por vibrar.A trajectoria de um travelling, a conclusao de uma panoramica, 0encontro entre dois enquadramentos, a interrupcao imprevista deuma frase musical: sao estes os verdadeiros responsaveis pela nossatensao emotiva e pela identificacao com que seguimos a narrativa.A narrativa, note-se, e nao a simples fabula. Se a primeira nao fun-ciona, a segunda tao-pouco consegue prender-nos, mesmo que nopapel seja de cortar a respiracao.Por conseguinte, a maquina de filmar e apersonagem principaldequalquer narracao filmica. As outras, as de carne e osso, nao pas-sam de pretextos narrativos ao service da sua actividade fabulatoria .Retomando a distincao de Seymour Chatman ja referida, podemosconcluir que a identificacao no cinema nao tern por objectoos exis-tentes - isto e, as personagens que fazem parte do enredo - masunicamente 0 discurso - isto e, 0 comportamento da maquina defilmar ao escrever 0 texto filmico. Saber ler 0 cinemaequivale a expe-rimentar uma especie de panismo filmico portador de um prazerbem mais profundo que 0 que e proporcionado pela sua simples visao.No cinema podemos ver tudo sem sermos vistos. Ou seja - para usar aexpressao de um neofilmologo ilustre como Christian Metz - tornamo--nos observadores nao autorizados 2. 0 que equivale a dizer quenos identificamos com a mira da maquina de filmar para espiar 0mundo com 0 olhar omnipresente e omnisciente de um demiurgo.

    4. 0 fjlme e a su'a auraCad a um dos processos psiquicos ate agora .analisados precisade determinadas condicoes ambientais para ser activado. Estas condi-

    c;oes estao ligadas com 0 clima particular que reina em qualquer salade cinema quando esta a decorrer a projeccaov.Mergulhados no escuro,isolados dos rumores exteriores e comodamente sentados na posicaoque mais nos agrada, estamos prontos a responder ao apelo que noschega da tela iluminada. Basta .um comentario ruidoso de um dospresentes, ou a entrada de um retardatario para tornar-nos impacientes.Arte colectiva por excelencia, 0 cinema, mais que qualquer outra formade comunicacao, dirige-se a pessoa singular numa relacao privada quenao tolera intromissao.

    2 Cf. C. Metz, Cinema e psicanalise.72

    Urn espectaculo teatral tambem pode tirar partido das luzesacesas na sala, mas um filme so pode ser seriamente prejudicado porisso. E e compreensivel: vai-se ao cinema para ver sem sermos vistos,ao contrario do que aconteceno teatro, onde e importante estar frentea frente com os actores enquanto se desenrola 0 ritual cenico, Os basti-dores do palco delimitam 0 espaco dramatico, lugar magico da accaoteatral, denunciando 0 seu caracter convencionale. As margens do.enquadramento, pelo contrario, prolongam-se para 0 espaco circundante,sugerindo a sua presenca invisivel. Menos perceptivel e a realidadeIisica da sala, sendo maiores as possibilidades de 0 filme nos arrastarconsigo para a tela. A diversidade de condicoes necessarias para que osdois rituais se cumpram leva a uma consequencia paradoxal relativa aomodo de fruir urn e. outro. A representacao teatral, .irrepetivel pordefinicao, pode na realidade ser objecto de replica em condicoes am-bientais nao exactamente identicas as existentes da primeira vez e istosemque 0 espectaculo resulte desnaturado; a representacao filmica,tambem por definicao duplicavels ate ao infinito, necessita decondi-c;oes optimas do ponto de vista tecnico sempre que for repetida. Masnao apenas, um espectaculo teatral pode ser vis to mais do que uma vez,nao sendo por certo 0 como acaba 0 elemento que desperta maiorcuriosidade; um filme exerce toda a sua carga somente da primeira vez,salvo casos em que se sinta necessidade de reve-lo para esclarecer me-lhor 0 discurso. Isto significa que, enquanto 0 teatro - arte, nao 0esquecamos, mais earistocratica do que 0 cinema - suporta melhorum tipo de fruicao popular, 0 cinema, que e mais popular doque 0 teatro, exige pelo contrario ser fruido em condicces mais aris-tocraticas. No teatro, os actores podem interromper uma recita paravoltar a retoma-la mudando de registo ou modificando os tempos ini-cialmente previstos. Os actores de urn filme continuam a seguir 0 seudestine narrativo mesmo se a sala estiver vazia e 0 projeccionista apassar pelas brasas, desde que na sala continue porem a reinar a obscu-ridade silenciosa. 0 acender das luzes esvaziaria a sua presenca, trans-formando-os em simples manchas desbotadas sobressaindo de umtelae branco.Sala as escuras, ausencia de interferencias sonoras, isolamentopsicologico dos demais. So se desfrutarmos estas condicoes e que 0filme nos pode revelar 0 seu segredo. Caso contrario, perde qualquercoisa de precioso e de exclusive. Nao a palavra, pois bastaria queerguesse a voz para continuarmos a ouvi-la. Perde a sua aura. Isto e,perde aquela aureola fascinadora gracas a qual pode transportar-nospara qualquer outro mundo cuja promessa nos levou a entrar na sala.Naturalmente que quem se ressente de tal perda nao e decerto 0 planoda fabula. Na realidade, este ultimo pode inclusive ser seguido demodo intermitente, ou ate mesmo substituido por uma sua versao resu-mida que lhe antecipe os aspectos mais salientes do conteiido. Quem

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    sofre os maioresdanos e, sim, a narrativa, a qual, COmoresultado deuma eventual dispersao da energia semantica devida a uma visaoincorrecta do texto fflmico, acabaria por ficar nao apenas seriamentediminuida mas tambem completamente dissolvida nos seus valores lin-guisticos originais. Assistir a uma projeccao do Deserto rosso a preto ebranco em vez de a cores, ou com as lampadas quase gastas, .nao signi-fica ver mal 0 filme, mas nao 0 ver de todo. Ver-se-a, quando muito,urn filme completamente diferente que tern apenas a fabula em co-mum com 0 primeiro.Por conseguinte, 0 caso dos realizadores que cuidam pessoal-mente decada projeccao de uma obra sua nao deve ser confundidocom uma manitestacao de perfeccionismo exacerbado. Sao ciosos daaura que envolve a obra e temem a sua dispersao motivada pelascausas anteriormente referidas. E na mesma ordem de 'ideias que se devecompreender os que se recusam a ver os filmes transmitidos pela tele-visao. Efectivamente, no video a story tambem pode sobreviver as milinterferencias devidas ao ambiente quotidiano em que se da a frui-gao. Mas 0 discurso, pelo contrario, nao pode deixar de ficar mal-tratado e esvaziado pelo conjunto das praticas queregulam a fruicaotelevisiva, praticas que, por definicao, sao inimigas de qualquer inter-cambio ou identificacao. Sentados em frente da televisao, talvezcom a luz acesa e a mesa posta, n6s nao estamos preparados para verurn filme, ao contrario do que aconteceria numa sala de cinema, maspara ver 0 aparelho de televisao em cujo visor ira passar urn filme.Passara para morrer por suas pr6prias maos ou, na melhor das hipo-teses, para ser acompanhado distraidamente e quase por obrigacao ateao seu ansiado fim. E isto sem contar com a possibilidade de ser aban-donado a meiodo percurso em favor. de urn seu concorrente em exibicaono canal vizinho.A cumplicidade a que a sala de cinema nos convida e frustradapelo televisor. Perante de, enquanto 0 filme se desenrola, vemos osnossos familiares enquanto vemos 0 filme. A observacao passa deproibida a caseira. 0 telecomando fragmenta 0 discurso e afugentaa sua aura relativa. A narracao atinge as raias da loucura e 0 delirioaudiovisual inunda 0 video despedacando implacavelmente qualquerresistencia do sentir.

    devera ter 0 cuidadode expor antes de dar inicio a accao porele imaginada. Portanto s6 a hipotese de partida e fruto de invencao.Tudo 0 resto, depois desta definida, sera accite como pcrfeitamentecrivel, qualquer que sejaa materia da fabula e a sua adesao a reali-dade quotidiana. 0 importante e que a narracao seja coerente com aspremissas e desenvolva com rigor as consequencias nelas implicitas, sobpena de resultar forcada e com incongruencias fatais para a legitimacaoda obra em sentido realista.o principio arras enunciado tambem se aplica, obviamente, aocaso do filme. Obra de Ticcao que se inspira no verosimil, 0 filmeserve-se da mesma reserva de material narravel que 0 romance, semque se ponha 0 problema de aquilo que pretende narrar-se ter ou naoacontecido verdadeiramente a alguem em qualquer lugar numa deter-minada epoca historica. Procurando corresponder as exigencias da mi-tografia e nao as da historiografia, 0 filme inscreve a sua narracaosempre a partir de uma hip6tese. Antes de iniciar a accao, ele nao nosdiz em tal ana aconteceu neste pais aquilo que vereis dentro em pouco,e se dissesse mentiriaconscientemente. Diz-nos, pelo contrario, quese urn dia se verijicassem estas condicoes, s6 poderia acontecer aquilaque vereis dentro em pouco. Uma vez aceite a hip6tese inicial, ossucessivos desenvolvimentos nao tern dificuldade em fazer-se passar porcrfveis, 0 que importa numa narracao - fflmica, mas tambem litera-ria - nao e que os factos sejam possiveis mas sim que 0 sejam oscomportamentos provocados nos protagonist as por tais factos. 0 motivode urn filme - como ja foi dito - nao passa de urn pretexto que servepara por a maquina da narrativa em movimento e dar inicio a aven-tura nao tanto dos herois como da propria linguageme das suasfiguras. Daqui resulta, entao, que uma narrativa que funcionepode fazer com que 0 impossivel se tome crivel, ao contrario de umanarrativaque nao funcione que torna incrivel inclusive aquilo que, defacto, e possivel. .A unica verdade que urn filme deve respeitar nao e , portanto, ainerente a esfera do acontecido, mas a relativa a esfera do acontecf-vel. So que, neste ponto, poe-se um problema: como e que 0 nossofilme procedera para nosconvencer de que 0 caso por ele narrado podeverdadeiramente acontecer e nao e, por exemplo, fruto de urn merocapricho? A falta de provas concretas poder-nos-ia 1evar justamente aduvidar da sua palavra, tanto mais que nao existem testemunhas pron-tas a jurar sobre a sua veracidade. E entao? Entao, evidentemente, 0grau de verdade da sua narrativa devera ser medido nao com 0 metroda investigacao historica ou judicial, mas exclusivamente com 0 daindagacao critica com 0 proposito de avaliar 0 grau de poeticidade daaccao narrada pelo filme. 0 impossivel s6 se torn a possivel em vir-tude dopoder magicoa da palavra poetica, 0 que significa que umanarracao so se torna verdadeira na condicao de, nela, 0 plano da

    5. 0 imposSlve,ltolrna-se posslvelComo se sabe, pelo menos desde os tempos da Poetica de Aristo-teles, a materia da arte nao deve ser 0 verdadeiro mas. 0 verosfmib ,o objecto de representacao artistica nao deve ser aquilo que aconteceumas sim aquilo que podera acontecer. 0 que podera acontecer nacondicao de se verificarem algumas condicoes particulares que 0 artista

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    narrativa conseguir ser orgiinico do ponto de vista semantico, salida-rio com 0 plano estrutural e revelador do poetico-ideologico, Em suma,para que 0 discurso fflmico seja digno de fe e necessario que seja 0mais possivel polivalente de sentido e nao univoco (caso em queresultaria talvez crivel numa sala de tribunal, mas certamente poucodigno de credibilidade numa sala de cinema). E aqui reside a explica-9ao para 0 facto de no cinema todas as historias vividas nos parece-rem pontualmente falsas, enquanto somente as inventadas nos parecemverdadeiras a ponto de estarmos dispostos.ajura-Io.Ora, tudo isto pode acontecer mesmo que nao tenhamos cons-ciencia disso ou so nos apercebamos de uma maneira vaga. 0 filme,pelo contrario, sabe-o bem e poe-no constantemente em pratica paraactivar na nossa mente os processos, essenciais a sua existencia, sobreos quais momentaneamente nos detemos. A nossa partic ipacao, emo-cional e intelectual, no destino dos existentes num filme esta subor-dinadaa densidade linguistica do discurso em que eles se manifes-tam, e nao decerto a uma qualquer verdade apurada relativa ao dominioda efabula. Como conclusao, resta-nos apenas referir 0 facto de numanarracao filmic a so poder existir alguma verdade no plano do con-teudo se, no plano da forma, existir aquilo a que Galvano dellaVolpe chamava a contextualidade organica 3.

    Vo FILME E...

    3 GallvanJO della Vope, Il v'elrosimilefilmico ed altri saggi, Savell1,Roma, 1962 (pp. 45~55).

    Depois de termos visto como e que 0 filme se comporta relati-vamente a Realidade e como e que nos nos comportamos relativamenteao filme, vejamos agora quais as relacoes que este ultimo tem com asoutras praticas significantes. Tambem neste caso as coisas se apre-sentam de modo urn tanto mais complexo do que poderia parecer aprimeira vista. De facto, a relacao concorrencial que vimos interpor-seentre 0 filme e a esfera do real e a mesma que vamos encontrar inter-posta entre este e as outras formas de expressao artfstica, sempre nacondicao de nao optar por colocar-se relativamente a elas numa posi-c;:aopassivamente mimetica,Ninguem impede que 0 filme se inspire, para alem da realidadedas coisas, num texto preexistente que essa realidade tenha previamentepersonificado. Texto esse que pode ser literario, teatral, pictorico e atefflmico (como demonstram os exemplos de metacinema ja citados).Porem, tratando-se desta vez de urn tipo de concorrencia relativa alinguagens de algum modo aparentadas entre si, existe 0 serio perigode 0 confronto se transformar emchoque e de a temporaria coexisten-cia dos diversos pontos de vista conduzir fatalmente a desavenca daslinguagens. Para 0 evitar, e necessaria que a filme se limite a ir buscaras outras artes aquilo que nao e essencial a sua sobrevivencia, tendo 0cuidado de respeitar os seus caracteres constitutivos originais. Pode ser-vir-se da sua fabula, na condicao de se abster de lhes tocar no dis-cursa. Efectivamente, se e verdade que a diferenca entre as artesreside na divers idade do seu estatuto semantico, e nao na variedade dosconteudos representados, daqui resulta necessariamente que qualquerrelacao que 0 filme pretenda estabelecer com uma das praticas artfsticascom vista a um resultado verdadeiramente proffcuo devera basear-se nocriterio Iinguistico da equivalencia e nao no da simples reproducac.Equivalencia entendida como recriacao servindo-se dos pro-prios instrumentos poeticos de valores ja expressos num outre. sistema

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