jorge luis borges: histÓria social de um escritor … · sergio miceli resumo este artigo examina...

28
Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de Jorge Luis Borges, autor que teria logrado apagar as marcas de sua vida pessoal. Por meio da análise dos textos de juventude, das relações familiares e do campo literário argentino no início do século XX, o artigo deslinda novas chaves para a compreensão da obra borgeana. PALAVAS-CHAVE: Jorge Luis Borges; literatura argentina; modernismo; sociologia da cultura. SUMMARY This essay seeks the social practices that made possible the literary trajectory of Jorge Luis Borges, author who would have erased the traces of his personal life. Taking as a guide- line his early writings, family relations and the Argentine literary field in the first decades of the XXth century, the arti- cle suggests new keys to the interpretation of Borges’ work. KEYWORDS: Jorge Luis Borges; Argentine literature; modernism; sociology of culture. NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007 155 Al hijo de um amigo Ebria de significaciones La Realidad trabaja en abierto misterio Y logra a veces Que no sólo el sueño sino la vida Nos sea sueño. Y cuando tanto logra Lo que debía ser, cumplido está. Porque una vez que sueño y vida, Esas dos iluminaciones del Ser, Confundem sus fuentes bajo nuestras miradas El milagro inicial de Separación En el milagro final de Identificación se agota La Inteligencia cesa, la Visión descansa; ciérrase el círculo. JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR NATO* * Este artigo é versão do texto publicado na revista Actes de la recherche en sciences sociales, n. 168, junho de 2007.

Upload: trinhnhi

Post on 20-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

Sergio Miceli

RESUMO

Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que

viabilizaram a trajetória literária de Jorge Luis Borges, autor que teria logrado apagar as marcas de sua vida pessoal. Por

meio da análise dos textos de juventude, das relações familiares e do campo literário argentino no início do século XX,

o artigo deslinda novas chaves para a compreensão da obra borgeana.

PALAVAS-CHAVE: Jorge Luis Borges; literatura argentina; modernismo;

sociologia da cultura.

SUMMARY

This essay seeks the social practices that made possible the

literary trajectory of Jorge Luis Borges, author who would have erased the traces of his personal life. Taking as a guide-

line his early writings, family relations and the Argentine literary field in the first decades of the XXth century, the arti-

cle suggests new keys to the interpretation of Borges’ work.

KEYWORDS: Jorge Luis Borges; Argentine literature; modernism;

sociology of culture.

NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007 155

Al hijo de um amigo

Ebria de significacionesLa Realidad trabaja en abierto misterioY logra a vecesQue no sólo el sueño sino la vidaNos sea sueño.Y cuando tanto lograLo que debía ser,cumplido está.Porque una vez que sueño y vida,Esas dos iluminaciones del Ser,Confundem sus fuentes bajo nuestras miradasEl milagro inicial de SeparaciónEn el milagro final de Identificación se agotaLa Inteligencia cesa, la Visión descansa;ciérrase el círculo.

JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR NATO*

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 155

* Este artigo é versão dotexto publicado na revistaActes de la recherche ensciences sociales, n. 168,junho de 2007.

Page 2: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[1] Ver Jorge Luis Borges.Textos reco-brados, 1919-1929. Buenos Aires:Emecé Editores, 1997, pp. 132-133.

[2] Emir Rodríguez Monegal. Bor-gès.Trad. de Françoise-Marie Rosset.Paris : Seuil, 1970. Coleção Écrivainsde Toujours.

¿Para qué vino tu hijo y trae su almaCon milagrosa humildad y altíssima cortesíaA practicar Sueño,Vida y MuerteY unirse al peregrinaje de las significacionesAdvirtiéndonos humildemente de la significación que él es?A hacernos más ricos con saberloY a formular una más completa palabraDe la ciencia de lo que nos espera.Porque tal como yo le vi ayerSaludar de alma a alma a una mujerVine a comprender lo que saludar era,Que es reconocer la existencia de otro con tanta energíaComo la que pone Dios para invitar una alma a existirY esto yo no lo sabíaY en retribución de enseñanza tan valiosaYo le digo: que no tema al ocasoPorque es allí donde nacen más díasY es donde recibiremos un SaludoQue nos hará verdaderamente Nacer.Y para allí voy caminando sin congoja algunaMás seguro de mi eternidad y de la de mi hijoDesde que vi cómo saluda el tuyo.Tu hijo cuyo significado es Yo SaludoYo aplaudo todo vivir.

Macedonio Fernández1

A copiosa literatura de exaltação do escritor argentino Jorge LuisBorges se aferrou em apagar as constrições sociais de sua trajetória,como se fora seu desígnio exclusivo a rendição ao culto do escritorpuro,o mais acabado espécime contemporâneo do homem de letras,oqual teria se afirmado por força apenas do gênio literário,e cuja gênesepoderia subsistir na penumbra de alusões,anedotas e esquisitices.Osartífices da legenda borgeana converteram suas ficções em néctar dosatos de escrita,um Borges cifrado que requer a prontidão cultivada doleitor, o supra-sumo da arte pela arte, a literatura desvencilhada dasdemais práticas sociais, e buscaram constituir um repertório de con-dutas, sentenças, excentricidades, caracteres, todos eles contribuindona modelagem de um Borges tão singular e inefável.

Esse descolamento entre vida e obra lhe garantiu as roupagens sul-furosas de personas insólitas, a ponto de ser renomeado em francêscomo “Borgès”2, esse argentino ‘globalizado’, destituído de vida pes-soal, familiar,amorosa, infenso a paixões e tomadas de posição políti-

156 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 156

Page 3: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

157NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

[3] Fervor de Buenos Aires (BuenosAires:Imprenta Serantes,jul.1923,64pp.,300 exs.edição do autor;reediçãofacsimilar, Buenos Aires, Alberto Ca-sares, 1993); Inquisiciones (BuenosAires: Editorial Proa, abr. 1925); Lunade Enfrente (Buenos Aires : EditorialProa, nov. 1925); El tamaño de mi espe-ranza (Buenos Aires : Editorial Proa,jul. 1926); El idioma de los argentinos(Buenos Aires, 1928); Cuaderno SanMartín (Buenos Aires : Editorial Proa,1929,Coleção Cuadernos del Plata,II,280 exs.); Evaristo Carriego (BuenosAires,1930).

[4] Pedro Bonifacio Palacios Alma-fuerte (1854-1917), nascido numpovoado da província de BuenosAires, autodidata, alicerçou sua noto-riedade como mestre desprendido,pronto a difundir os ideais de sua mis-são civilizadora nos pampas longín-quos. Publicou apenas um volumede poesias em vida, Lamentaciones(1906),o que não o impediu de alcan-çar ampla ressonância pública porconta de composições patrióticas,quedenunciam a crise argentina e frisamsua solidariedade com os pobres ehumildes, em versos marcados porcerto tom messiânico, de fundo cris-tão. Exerceu influência perceptívelsobre poetas argentinos de fins doséculo XIX e início do XX, inclusiveLugones e Carriego.Consultar Diccio-nario de la literatura latinoamericana,Argentina, parte I (Washignton D.C. :Unión Panamericana, 1960, pp. 8-12)e ainda Vicente Osvaldo Cutolo,Nuevo diccionario biografico argentino(1750-1930) (Buenos Aires, EditorialElche,1968,tomo I,A-B,pp.94-95).

[5] Enrique J. Banchs (1888-1968),nascido em Buenos Aires, publicouaos dezenove anos o primeiro livro deversos, Las barcas, editado pela revistaNosotros em 1907. Em contraponto aAlmafuerte, Banchs se firmou como avoz lírica por excelência no entressé-culos, autor de baladas, canções, ro-manças, trovas e coplas, louvado pelamestria técnica, pelo domínio dosmodelos clássicos, com forte inclina-ção arcaizante e medievalista. La urna(1911), justamente a composição maisapreciada pelo pai de Borges,conside-rada a obra-prima de Banchs, é tidacomo o exemplo mais perfeito da líricaargentina. Consultar Diccionario de laliteratura latinoamericana, Argentina,parte II ,pp.234-238.

cas,até mesmo descolado do universo cultural nativo,como se tivessese transmutado no escritor puro por excelência, sem raízes, devotadopor completo ao cometimento de uma escrita sem máculas,sem vestí-gio das práticas sociais que a viabilizaram. Jorge Luis Borges, o únicoescritor latino-americano com status de sumidade literária, teria lo-grado cancelar as marcas históricas de sua passagem pelo mundosocial, que ele mesmo formatou como narrativa solipsista, auto-sufi-ciente, fora do tempo e do espaço.

Borges contribuiu de modo decisivo para esse esforço minudentede “espiritualização” de suas obras,apreendidas e reconhecidas comofeitos encantados de um mistagogo da narrativa ficcional. O passocrucial nesse esforço de apagamento dos sinais remanescentes dessasexperiências sociais consistiu na virtual interdição de leitura,e mesmode acesso, aos sete livros de sua autoria, publicados na mocidade, en-tre os versos de estréia (Fervor de Buenos Aires) em 1923, e a juntada deensaios sob o título Evaristo Carriego,em 19303.Teve a cautela de borrartodas as marcas de vínculos afetivos,pessoais e profissionais — ao eli-minar dedicatórias,omitir nomes de pessoas próximas,renomear cer-tos poemas, como se quisesse purgar o bagaço de uma multifacetadaexperiência social e expressiva em favor de uma escrita ora incensadacomo pura invenção criativa, um artifício luminoso. Um milagre docânon literário, que nasceu pronto e rematado, um “escritor nato”.

PATERNIDADE CONVULSIONADA NO

CÍRCULO FAMILIAR DE LETRADOS POLÍGRAFOS

Borges foi educado num ambiente familiar de letrados, os quaiscostumavam se reunir em casa de seus pais,em Palermo,nas noites dedomingo. Além do pai Jorge Guillermo e de Macedonio Fernández,acorriam às tertúlias domésticas diversos personagens marcantes naformação de Borges, bem como na orientação de lances decisivos desua repentina afirmação como liderança intelectual, a meio caminhoentre o queixume e a contestação: seu primo, o escritor Álvaro MeliánLafinur (1889-1958),animador do clã e vizinho de bairro;o poeta Eva-risto Carriego (1883-1912), conterrâneo de Jorge Guillermo, ambosoriginários da província de Entre Rios, que recitava poemas seus e deoutros argentinos famosos, como Lugones, Almafuerte4 e EnriqueBanchs5; o polígrafo Alfredo Palácios; Marcelo del Mazo6 (1879-1968), primo de Macedonio Fernández; o jornalista e poeta suíço-argentino Charles de Soussens (1865-1927). A conversa começavaantes do ajantarado e se estendia até a madrugada,em torno de assun-tos literários e políticos. A julgar pelas referências dos participantes,valorizavam-se as tiradas brilhantes e espirituosas, as intervençõespolêmicas, as réplicas cortantes, tudo isso evidenciando a fruição

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 157

Page 4: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[6] Poeta e escritor, filho do políticoIgnacio del Mazo, amigo íntimo deCarriego,e autor de uma trilogia sobreo tango,muito elogiada por Borges.

[7] Ver Diccionario de la literatura lati-noamericana, Argentina, parte I, pp.101-102.

[8] Sobre as circunstâncias de fun-cionamento do emergente campoliterário argentino no qual surgiu No-sotros, consultar o testemunho abali-zado de um dos fundadores da re-vista, o crítico e historiador literárioRoberto F. Giusti, Visto y vivido (anéc-dotas, semblanzas, confesiones y batal-las) (Buenos Aires: Editorial LosadaS.A.,1965),em especial as pp.93-103,nas quais delineia um panorama dacena intelectual portenha no iníciodo século XX,com seus cafés,cenácu-los, teatros, temporadas de ópera,cinemas,exposições de arte, livrarias,padrões de atividade editorial, pan-teão nacional e internacional etc. Verainda Manuel Gálvez, Recuerdos de lavida literária (I), Amigos y maestros demi juventud/ En el mundo de los seres fic-ticios, com estudo preliminar de Bea-triz Sarlo (Buenos Aires: Taurus,2002, ed. original, 1944 e 1961).

[9] Ver Paula Bruno. Paul Groussac,un estratega intelectual. Buenos Aires:Fondo de Cultura Económica de Ar-gentina /Universidad de SanAndrés,2005. Para aquilatar a reação de Bor-ges à contribuição de Groussac, con-sultar,entre outras fontes,o trecho daentrevista concedida a Maria EstherVázquez, Borges, sus días y su tiempo.Madri: Punto de Lectura, 2001, pp.247-257.

deleitada de uma tradição de oralidade por parte dessa geração deletrados de elite na capital argentina.

Essa dinastia familiar remontava ao primeiro poeta da tradiçãolírica argentina,Juan Crisóstomo Lafinur (1797-1824),figura destacadada época da Independência.Sua reputação literária decorreu das elegiascompostas por ocasião da morte do general Belgrano,de cuja academiade cadetes,em Tucumán,Juan fora aluno7. Apesar de não haver logradoum reconhecimento consistente, tendo sido designado pelo próprioBorges como “poeta menor”, Álvaro Lafinur ocupava posições estraté-gicas no campo literário em constituição, responsável pela seção “Le-tras Argentinas” (1912-1917) na revista Nosotros,o periódico mais repre-sentativo do establishment literário portenho, fundado em 1907 e cujaperiodicidade com breve interrupção se prolongaria até 19438.

Os mais destacados integrantes do círculo íntimo de amigos lite-rários do pai de Borges — Carriego, Soussens e Lafinur — eram letra-dos típicos dessa geração finissecular, instada a prestar serviços com-pulsórios à grande imprensa diária, a cujos dirigentes buscavam seligar. Esses magnatas lhes garantiam o sustento material, a possemomentânea de uma filiação institucional prestigiosa,salvo-condutopara o acesso aos espaços concorridos de sociabilidade, a um tempomundana e literária,e as benesses de viagens e missões internacionais.Movendo-se num recesso de confrarias remuneradas, esses intelec-tuais podiam se entregar,de tempos em tempos,aos arroubos de umaveleidade — intentos com freqüência cerceados pelos deveres profis-sionais como jornalista —, dando vazão à energia autoral em revistasliterárias ou na esporádica publicação em livro de versos e artigos jáconhecidos. Aliás,a reputação desses letrados se deveu muito mais aotrabalho de resgate memorialístico, empreendido por amigos e admi-radores, do que ao impacto exercido pelas obras. Tendo-se notabili-zado por uma única obra de repercussão, ou então, pela expectativaalgo fantasiosa de uma futura contribuição definitiva, da qual porvezes se conhecia até o título e o índice de matérias,como no caso para-digmático do extraviado “Le Château lyrique”, de Soussens, essesletrados autodidatas produziram em resposta às diretrizes convencio-nais das revistas literárias da época e raramente em função de um pro-jeto autoral reconhecível.

Borges foi se familiarizando com a vida literária pelo convívio comesses jornalistas letrados, em sintonia fina com os modelos europeusde fatura simbolista, muitos deles autodidatas que se prontificavam aexercer cargos e posições que requeriam um domínio seguro daescrita.Homens viajados,poliglotas,e como que “exilados” na Argen-tina,como Paul Groussac9,por exemplo,os quais alicerçaram sua con-tribuição no manejo fluente de repertórios cultos, cuja raridade lhesassegurava proeminência num campo intelectual em gestação.

158 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 158

Page 5: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[10]Jorge Guillermo Borges:HipotecaNaval, tese de doutorado apresentadaà Faculdade de Direito e CiênciasSociais da Universidade Nacional deBuenos Aires em 1897,63 pp.,BuenosAires: Tipo-Lito L. Franjoni); “El jar-dín de la cúpula de oro”, conto iné-dito, sem data, 1908(?), conservadonum exemplar da tese de doutoradode Wenceslao C.Azevedo Laprida,tioda mãe de Borges; “Momentos (I-III)”, Nosotros, X, 48, abr. 1913, pp.147-148, poema; “Hacia la nada”,Grand Guignol, 2, Sevilha, 10 mar.1920, pp. 1-2, teatro; “El cantar de loscantares”, Grand Guignol, 2, Sevilha,10 mar. 1920, pp. 5-7; El caudillo,Palma de Mallorca: Imprenta Mallor-quina de Juan Guasp Reinés, 1921,195 pp. (reedição com prólogo de Ali-cia Jurado, pp. 11-23, Buenos Aires:Academia Argentina de Letras, 1989,155 pp.); “Rubaiyat. Castellenizadodel inglés de Fitzgerald por Jorge Bor-ges”,(1):Proa 2,5,dez.1924,pp.55-57,tradução; Proa 2, 6, jan. 1925, pp. 61-68. Ver Carlos García. El joven Borges,poeta (1919-1930) (Buenos Aires:Cor-regidor,2000,pp.211-307).

[11] «No me abandones en el destierro dela ciudad cuadriculada y de los jovencitosque hablan de la argentinidad y delcivismo y de lo que significa el general Bar-tolomé Mitre para los siglos venide-ros. !Horror!Horror!», em carta ende-reçada ao amigo Jacobo Sureda, emmarço de 1921,reproduzida no volumeCartas del fervor (ed. cit., p. 194). O quemais o afligira às vésperas de retornar aBuenos Aires seria logo convertido emlinha diretriz de suas preocupaçõescomo ensaísta da criollidad.

O mais complexo e matizado de seus relacionamentos nessa épocaenvolveu a figura marcante do pai.Jorge Guillermo Borges (1874-1938),advogado praticante,professor de psicologia na Escola Normal para Lín-guas Modernas, era um homem culto e sofisticado, com domínio apu-rado da língua inglesa,tendo constituído uma biblioteca em cujo acervose misturavam obras científicas,filosóficas,literárias,relatos de viagens,enciclopédias, livros de estampas, um mundo à parte em cujo interiorsucedeu parcela substancial da socialização cultural do jovem Borges.

Entretanto, ressalte-se este componente decisivo na história dafamília,seu pai também parece ter nutrido,a vida toda,o desígnio per-sistente de uma carreira intelectual, como bem o demonstram algunspoucos poemas,a tese de doutorado,um conto,artigos em revistas decultura e, em especial, uma novela que chegou a publicar em livro em192110, dois anos antes do livro de estréia do filho.

Junte-se ao desmonte de tais pretensões o flagelo de uma cegueiraprogressiva, cuja gravidade exigiu decisões familiares drásticas, comoencetar uma prolongada viagem à Europa em 1914, no intuito de lo-grar a cura por meio de sucessivas intervenções, a experimentaçãode variados tratamentos e remédios, a consulta a especialistas afama-dos. E ressurge com nitidez o quadro das circunstâncias sofridas emque o jovem Borges foi como que “herdando” e assumindo como coisasua um projeto frustrado do pai.

Suas cartas de juventude e as fotos de mocidade de Borges permi-tem vislumbrar os entusiasmos,as ousadias e os modos comportadosde um rapaz de boa família, bem posto na vida, que teve de interrom-per os estudos por conta de atribulações familiares, às quais veio sejuntar o anseio paterno, desejoso de atraí-lo para o ofício intelectual.O que mais impressiona é a quase inesgotável disponibilidade detempo e recursos, que vão propiciando ao jovem Borges um sobre-investimento em termos de aquisição e aprendizado de um fenomenalcabedal literário. A intensa “europeização” de Borges transparece noapuro do vestuário — sempre de colete e paletó, camisa de colarinhoalto engomado, gravata com alfinete, ou laço borboleta, os cabelosrepartidos e cuidadosamente penteados para trás —, bem como nosestereótipos externados a respeito dos compatriotas11,sintoma de suadecepção ao se deparar com um universo político e cultural acanhadoquando do primeiro retorno em 1921.

Apesar de desnorteado por conta da deambulação dos seus, ao sehaver com constantes mudanças de rotas,metas e sentimentos,as car-tas de juventude permitem recobrar o quão intensamente Borges pas-sou a vivenciar a vocação de escritor como tábua de salvação.A entregaradical ao ofício literário,em meio a decepções e euforias,se fez acom-panhar pelo tônus de esoterismo de que se revestem suas representa-ções encantadas da atividade criativa.

159NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 159

Page 6: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[12] Leonor Fanny Borges (1901-1998), chamada Leonora, Nora e, aoque parece, mais tarde, a pedido domarido Guillermo de Torre, Norah.Macedonio Fernández costumavachamá-la de Leonorita, para diferen-ciá-la da mãe, dona Leonor.

[13] Ver Alejandro Vaccaro. Georgie(1899-1930), Una vida de Jorge LuisBorges. Buenos Aires : Editorial Proa/Alberto Casares, 1996. Verdadeiramina de informações sobre a infânciae a primeira mocidade de Borges,refere-se às casas de aluguel que a mãede Borges, Isabel de Acevedo, haviarecebido de herança. Essa biografiacontém excelente documentaçãofotográfica sobre o jovem Borges efamília. Para outras fotos, consultarNicolás Helft e Alan Pauls. El factorBorges, nueve ensayos ilustrados. Bue-nos Aires: Fondo de Cultura Econó-mica de Argentina, 2000.

O nomadismo familiar, a busca constante de cura, as interrupçõesprovocadas pelas inúmeras cirurgias, tudo isso deve ter infundidocerta dose de suspense e irrealidade na educação dos filhos, como setais circunstâncias negativas pudessem redundar em vantagens ines-peradas, como um terreno de ousadia, um frescor de invenção, umasuspensão escapista das servidões terrenas, uma capacidade criativamais atilada dele e de sua irmã Norah,dois anos mais moça,a qual tor-nar-se-ia mais tarde gravadora e artista plástica12. Como se sabe, Bor-ges interrompeu os estudos após concluir o colegial em Genebra e nãochegou a prestar o concurso para agregação em letras, num momentoem que pensou em se tornar professor de inglês para poder se casar.

A educação de Jorge Luis e de Norah sucedera num regime um tantosegregado,mesmo levando-se em conta as condições peculiares em quese dava a formação escolar dos filhos de algumas famílias da elite argen-tina. Desejosos de lhes proporcionar um ensino que fosse superior aovigente nos estabelecimentos da época, os pais contrataram uma pro-fessora particular estrangeira, a inglesa miss Tink, a qual ministravadiversas matérias em inglês. Nos anos em que a família Borges morouem Palermo,na casa da calle Serrano,vizinha à residência da avó paternainglesa,Fanny Haslam,falava-se espanhol e inglês,e Jorge Luis era cha-mado pelo apelido de Georgie. Instalaram-se nessa rua em 1901 e nelaresidiram até 1914,quando viajaram pela primeira vez à Europa.

Georgie tinha quinze anos no momento da primeira viagem fami-liar à Europa, em fevereiro de 1914. A família residiu em Genebra até1919, daí empreendendo inúmeros deslocamentos entre Madrid,Sevilha e Palma de Mallorca, entre 1919 e 1921. Por conseguinte, suaformação intelectual e literária ocorreu em meio a tumultuadas expec-tativas familiares no tocante às perspectivas de remediar a cegueirapaterna. Muito embora as fontes disponíveis sejam reticentes, e bas-tante parcimoniosas a respeito da situação material da família Borges,pode-se aventar a hipótese de que, nesse projeto de vilegiatura euro-péia para tratamento médico,o pai deve ter decidido lançar mão do pe-cúlio acumulado e da parcela patrimonial que lhe coube por herança13.O empenho de comentaristas e críticos e, em especial, as reiteradasalusões do próprio Borges, ao longo da vida, intentaram transmutaressas razões práticas em inclinações intelectuais,como se o pai de Bor-ges tivesse desejado se afastar da Argentina para se consagrar porinteiro às atividades do pensamento, a uma prática reflexiva desinte-ressada, apenas acessível a um diletante dotado de recursos e de umaabundante disponibilidade de tempo.

A confiança inabalável do jovem Borges em seu potencial efetivocomo intelectual sucedeu em meio à turbulência dos deslocamentosfamiliares, girando o tempo todo em torno dos avanços da cegueira,doença congênita que havia atingido seis gerações da família paterna,

160 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 160

Page 7: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

a qual,muito provavelmente,ele deve ter se dado conta,acabaria por semanifestar no seu caso.De fato,mais tarde,quase aos cinqüenta anos,após oito intervenções cirúrgicas, Borges ficaria cego, embora tivesselogrado até mesmo transmutar essa desgraça em matéria-prima deelucubrações em torno de certas peculiaridades de sua apreensão domundo circundante.

Por melhor que tivesse transcorrido a prolongada primeira estadiados Borges na Europa (1914-1921), pouco deve ter contribuído parasanar as fragilidades físicas do adolescente postulante à carreira letrada.Além do descolamento da retina quando criança e da necessidade de usaróculos desde pequeno, Borges padecia de uma gagueira da qual só con-seguiu se livrar já adulto. A piora da cegueira paterna parece ter sido con-comitante ao destape da voz literária do filho.Quanto mais se inviabili-zavam as pretensões intelectuais paternas, tanto mais estridentes asousadias do emergente veio autoral de Borges. Enquanto a orfandadeprecoce do pai lhe obrigara a arranjar desde cedo uma profissão que lhegarantisse a sobrevivência,Borges foi tendo de lidar com uma espécie deorfandade diferida, na medida em que a cegueira paterna lhe infundiuum sentimento irrefreável de urgência no tocante à definição precoce deuma vocação literária. Tal decisão se fez secundar pela “opção” do celi-bato, pré-requisito que deve ter lhe parecido indispensável ao êxito deum projeto criativo de tal vulto.

A identificação de Borges com o pai lhe permitiu sondar e ajuizar asexperiências de outros parentes e antepassados, que também haviammanifestado pendores literários.Existem indicações de que seu pai teriaproduzido muito mais do que o pouco que se conhece — originais queficaram inéditos ou então destruídos pelo autor, entre os quais umaseleta de ensaios,um livro de histórias orientais e um drama.Parece difí-cil dissociar as lendas a respeito do Borges pai como escritor bissexto daassunção,por parte do filho,das prerrogativas inerentes à sua posição deescritor bafejado pelos lampejos do recluso mago letrado. Havia, semdúvida,uma interconexão perceptível entre,de um lado,a falência físicae o esboroamento do projeto intelectual do pai e,de outro,a intensida-de quase fervorosa com que o filho abraçou o ofício de escritor.

O quiasma desses dois itinerários foi transferindo energias erecursos do pai para o filho, tanto no plano dos trunfos familiaresmobilizados, como em termos da convicção íntima de ambos quantoao desfecho desses caminhos cruzados. Aliás, o confronto entre asfotos de Jorge Guillermo adulto e do jovem Jorge Luis revela fortíssimasemelhança de traços — o rosto largo e ovalado, a testa imensa, oscabelos negros lisos e repuxados para trás,o pescoço carnudo,os olhospenetrantes — e sugere algum empenho do filho em arremedar o jei-tão másculo do pai, como se os laços de continuidade pudessem sertirados a limpo pela impressionante parecença física.

161NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 161

Page 8: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

O pai foi aos poucos abrindo mão das ambições literárias, acos-sado pelo avanço da cegueira, que já o atingira em cheio antes mesmodos quarenta anos, justo no momento em que dispunha de algumafolga financeira. Os diagnósticos desencontrados e as sucessivasintervenções não lograram nenhum alívio e decerto aguçaram emambos uma percepção distinta dos impasses: as frustrações paternasatiçando os dilaceramentos filiais.

Tamanha sintonia com a figura paterna remonta à primeira infân-cia,quando Georgie se tornou bilíngüe,transitando com facilidade doespanhol — associado à linhagem materna, aos feitos dos militaresevocados pela memória familiar — ao inglês, que lhe fora transmitidopelo pai e pela avó paterna, inglesa de origem. O espanhol lhe soavaentão como a língua inferior dos serviçais de seu país de origem; oinglês ostentava o status de língua culta,pulsante nos livros maravilho-sos de poetas e viajantes, que podia consultar na biblioteca caseira.

Durante a temporada familiar na Suíça, Georgie aprendeu francêsno colégio,que dominava por completo,na fala e na escrita,como ates-tam as cartas de juventude; e investiu ainda numa aprendizagem auto-didata do alemão, da qual se saiu tão bem a ponto de ousar traduzirpoemas expressionistas. Ao chegar a Madrid, quando a família deci-diu iniciar o retorno por etapas, Georgie ficou surpreso ao constatarque os poetas espanhóis de sua geração liam os autores franceses emtraduções e jamais no original, pois não dominavam nenhum outroidioma. Deve ter sido um dos primeiros choques no processo grada-tivo de auto-reconhecimento, como integrante poliglota de uma eliteperiférica de educação tão esmerada.

Por maior que fosse o valor da moeda argentina em 1914, Borgesnão pôde se equivocar quanto à condição material efetiva de sua famí-lia, tampouco se esquivar a compará-la à abastança de outros clãsargentinos em temporada européia naquela época. As mostras de umaprogressiva tomada de consciência das injunções de sua situaçãosocial estão na raiz das hesitações do que pretendia fazer como intelec-tual: quais os gêneros que lhe atraíam como mais rentáveis, de maiorrepercussão, os temas que lhe incitavam o tirocínio político, os auto-res e obras que lhe permitiam achegas à atualidade política internacio-nal — a Revolução Russa, a Guerra Mundial, as ideologias radicais.

Não resta a menor dúvida de que ele tentou com empenho e serie-dade duas cartadas: o ofício poético, dando continuidade aos feitosdos modernistas hispano-americanos Darío, Nervo, Lugones sobre-tudo, sem esquecer os heróis líricos da infância, Almafuerte, Carriegoe Banchs; o ensaísmo culturalista, de fundo politizado e messiânico,em formato inspirado em Schopenhauer, a influência decisiva sobre aintelectualidade espanhola em fins do século XIX e, por conseguinte,nos segmentos educados dos países hispano-americanos.

162 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 162

Page 9: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[14] Ver E.Inman Fox.La crisis intelec-tual del 98 (Madri, Editorial Cuader-nos para el Dialogo, 1976); DonaldShaw. La generación del 98 (Madri,Cátedra, 1997); José Luis CalvoCarilla. La cara oculta del 98, místicos eintelectuales en la España del fin de siglo(1895-1902) (Madri, Cátedra, 1998).

[15] Guillermo Juan Borges (1906-1965), chamado «Willie» ou «Willy»,era filho do irmão do pai de Borges, omilitar Francisco Eduardo Borges(1872-1940).

A formação intelectual de Georgie ocorreu num momento de criseaguda da sociedade espanhola, conjuntura marcada pela perda deCuba,a última colônia na América, em meio à derrota sofrida na guer-ra com os Estados Unidos. A chamada geração de 98, da qual faziamparte alguns dos intelectuais reverenciados pelo jovem Borges, emespecial Unamuno e Pío Baroja, emergiu nesse contexto e aí definiu aagenda de trabalho e a visão de mundo, norteadas pelo voluntarismoderivado do idealismo alemão14.

Ainda motivada pela recidiva da cegueira paterna, a segunda via-gem dos Borges à Europa (1923) fora a tentativa derradeira de sustar orebaixamento social como pior das ameaças. Nesse aperto, o jovemBorges herdou, paulatina e irreversivelmente, os haveres tangíveis eintangíveis do pai,a biblioteca,as disposições culturais sofisticadas,odomínio de línguas estrangeiras, as ambições literárias, as veleidadespolíticas do círculo de elite a que pertencia sua família,os fumos de umcriollismo acendrado e, ainda, os amigos e as diversas modalidades deapoio que se revelaram indispensáveis ao deslanche bem sucedido dacarreira de jovem tão promissor.

O fato de que a assunção de legado tão impressionante, desse ca-bedal invejável de trunfos complementares, tenha ocorrido em con-texto propício à absorção de outras linguagens e repertórios expressi-vos, deve ter intensificado o apuro de suas habilidades no ofícioliterário. Essa mescla raríssima de elevado capital cultural como queaguçou a percepção sensível dos impasses a que estava exposto o pai,relativamente jovem e já compulsoriamente aposentado por conta dacegueira.Some-se a isso o acesso simultâneo a figuras estratégicas,deamplo trânsito no interior da elite nativa,dando liquidez às investidasousadas do postulante.

Georgie foi educado num ambiente familiar consagrado à litera-tura, tendo sido,amiúde,encorajado em sua precoce vocação literária.Estava ciente desse suporte familiar,do apoio proporcionado pela redede parentes e amigos que acompanharam o despertar e o amadureci-mento de suas pretensões, bem como dos privilégios decorrentesdessa proximidade social de um círculo intelectual tão bem posicio-nado na cena cultural portenha. E a prova contundente dessa tomadade consciência pode ser aferida pelo exame dos seus empreendimen-tos mais ambiciosos no exercício de uma liderança inconteste naquelageração de vanguarda.

Assim,a fatura e a difusão dos manifestos de vanguarda se esclare-cem no contexto de uma parceria familiar. A proclama divulgada nolançamento da revista mural Prisma, afixada nas paredes da capitalargentina, em novembro de 1921, logo após o retorno da Europa, eratambém subscrita pelo primo irmão Guillermo Juan Borges15,filho dotio paterno, Francisco Eduardo Borges, único irmão de seu pai, pelo

163NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 163

Page 10: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[16]Esta antologia foi publicada narevista Cosmópolis, Madrid, n-o 36,dez. 1921, reproduzida no volume jámencionado, Textos recobrados, pp.132-141.

[17] Esta seleta de versos ultraístasconstava do texto «Ultraísmo», Noso-tros, Buenos Aires, ano 15, vol. 39,n-o 151, dez. 1921, reproduzido novolume Textos recobrados, pp.126-131.

[18]Adiante, Borges redigiu umaresenha elogiosa, ainda que um tantoevasiva, das narrativas reunidas porLafinur no volume Las nietas de Cleo-patra (Buenos Aires: Gleizer), publi-cada na revista Valoraciones, La Plata,n-o 12, fev. 1927, retomada no volumeTextos recobrados, p. 283.

crítico espanhol Guillermo de Torre, futuro cunhado, e ilustrada pelairmã Norah Borges. A revista mural constituiu, de fato, uma iniciativaviabilizada, de cabo a rabo, pela chancela familiar. Afora o já citadomanifesto,cujo mentor fora Borges,o mural incluía poemas do primoGuillermo Juan, e do amigo íntimo da estadia em Mallorca, JacoboSureda. A mãe emprestou baldes de cola, brochas e escadas para o tra-balho no centro de Buenos Aires.

Ou então as antologias poéticas que teve a oportunidade de orga-nizar e divulgar na primeira mocidade,antes mesmo de haver estreadoem livro. Os autores e os poemas selecionados constituem a respostatácita aos apoios que vinha recebendo dessa rede de letrados com osquais partilhava afinidades de fundo e de forma. Em dezembro de1921, Georgie publicou a antologia “Lírica argentina contemporânea”numa revista espanhola prestigiosa16. Assim como já fizera ao incluirum poema do primo Guillermo Juan na seleção de versos demonstra-tivos da estética ultraísta,encartada no artigo-proclama do novo credoestético, divulgado na revista Nosotros, em dezembro de 192117, destafeita Georgie erige um panteão de poetas, referidos, em maioria, aouniverso familiar de socialização literária.

A antologia se abre com um poema de Macedonio Fernández, “Alhijo de um amigo”,que lhe fora dedicado,como que intentando lastrearuma linhagem literária cultivada em âmbito caseiro e confiada peloamigo querido do pai à sua guarda,como líder inconteste da nova gera-ção.Como Georgie é o objeto afetivo do recado,o poema se encerra coma louvação de sua figura como elo entre a geração emergente e a turmade letrados veteranos,da qual faz parte Macedonio,o autor da homena-gem. Ressalte-se a razão invocada pelo mentor para comprovar o valordiferenciado de Georgie: a superioridade era afirmada pela cortesia dotratamento conferido às mulheres.Ora,Macedonio perscrutava atribu-tos singulares do protegido na conduta de sociabilidade em vez de cra-var seu cabedal em dotes de natureza intelectual.

Não tendo como reverenciar a obra de Macedonio, àquela alturaainda inexistente, quase toda inédita, mais alardeada do que tangível,Georgie elabora o escorço biográfico desse luminar nativo a partir dasfeições da personalidade excêntrica, salientando o prumo de polemistaimbatível, a postura de ente filosofante, a prática extravagante de mili-tante anarquista bissexto,os dotes de pensador ousado e original,o qualse impôs muito mais pela vida do que pelas obras,pelos encantos da con-versação,da expressiva oralidade,do jeito pessoal de tocar guitarra.

A seleção feita por Georgie reteve ainda versos de Marcelo delMazo, primo de Macedonio e comensal dos domingos em Palermo,um soneto de Enrique Banchs, autor do livro de versos preferido dopai, e um poema do primo Álvaro Melián Lafinur18. Uma antologiareferida quase por inteiro às coordenadas de suas experiências de

164 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 164

Page 11: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[19]As resenhas de 1919 saíram em LaFeuille. Journal d’Idées et d’Avant-Gar-de,II,306,20 ago.1919,p.6;os traba-lhos de 1920-1921 foram difundidosnas revistas Grecia, Gran Guignol,ambas de Sevilha, no jornal ÚltimaHora e nas revistas Baleares (Palma deMallorca), Cervantes, Ultra, Tableros eCosmópolis (Madri).

socialização literária,como que um acerto visando retemperar afinida-des por meio de contraprestações,marcadas pelo espírito de clã e pelosjuízos personalistas e idiossincrásicos do jovem Borges, desejoso deretribuir préstimos e equilibrar trocas nessa parceria.

Interpreto o ensaísmo borgeano dos anos 1920 como fruto dacuriosidade em apreender, de dentro de um universo de tradiçõesculturais, as peculiaridades de uma condição social e política peri-clitante. Na medida em que os trunfos de linhagem e de antigüi-dade na classe dirigente não conseguiam sustar a rápida deteriora-ção das expectativas de futuro social dele mesmo e dos familiares, aqual tendeu a se acelerar tanto mais por força da invalidez paterna,Borges mergulhou por inteiro na atividade intelectual. Era o únicoescape, a saída honrosa ao alcance de um jovem brilhante, cujasperspectivas de promoção classista se haviam embaçado por contados impasses familiares.

Entre fins de 1919 e o primeiro trimestre de 1921, com vinte e pou-cos anos, Borges realizou uma produção intelectual de envergadurapara a sua idade, testando habilidades num espectro diversificado degêneros e formatos expressivos. Em 1921, ano miraculoso em matériade produtividade literária, Borges escreveu poemas e prosas poéticas,resenhas e diatribes,contos curtos,ensaios e manifestos,realizou tra-duções de poesias alemãs19.

As viagens do clã Borges teriam assim lhe propiciado a oportuni-dade rara de iniciação prática e com riscos elevados em diversas fren-tes da atividade intelectual, como que glosando, ao seu modo, osgestos pregressos de atrevimento paterno, ou então, o que dá nomesmo, os reptos da criatividade paterna que ele reelaborou emchave cada vez mais idealizada à medida que envelhecia. Não estavaao alcance de qualquer um, àquela fase da mocidade, poder transitarentre o ensaio crítico, com intentos de intervenção estética e doutri-nária, o virtual domínio técnico de outras linguagens e estilosexpressivos por meio de traduções, a militância petulante em revis-tas de vanguarda, a fatura poética audaciosa e o exercício desaforadoda liderança intelectual.

No curto período de estadia em Buenos Aires,entre as duas viagensà Europa, Borges parece ter se apaixonado e ficado quase noivo deConcepción Guerrero, dando mostras de querer estabilizar-se noplano profissional. Conhecera a noiva em casa da família Lange, daqual era aparentado por intermédio do tio militar.Pensou em se tornarprofessor de inglês, a fim de garantir o sustento, plano que por si sóesclarece as perspectivas travadas do futuro que então conseguia vis-lumbrar. Não soa, pois, tão descabido aventar a hipótese de que umadas finalidades tácitas da segunda viagem familiar teria sido apartá-loda amada, fazê-lo esquecer tal envolvimento, convencê-lo dos engui-

165NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 165

Page 12: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

ços a que se expunha um jovem com tantos embargos, no intuito deque não descurasse da atividade intelectual como meta central de vida.

As viagens familiares, encetadas por razões práticas imperativas,quase todas ligadas à busca por socorro médico capaz de reverter a galo-pante cegueira paterna,foram sendo repensadas por Georgie como per-curso iniciático.Tal itinerário encantado lhe propiciou inflar os propósi-tos dessa “vocação” insuflada pelos familiares, pelos amigos próximosdo círculo doméstico e, ao fim e ao cabo, cultivada por ele mesmo, comrequintes de autodidata excêntrico. Nessa movida de energias se con-fundiam os intentos paternos, imperativos e compensatórios, e osempenhos do herdeiro ao se apropriar dos haveres do pai e da família.

Tudo se passa como se o projeto literário de Borges tivesse se viabili-zado por incitações derivadas de uma confluência excepcional de expec-tativas dos seus,convertidas em pulsões próprias,a começar pelos desíg-nios projetivos do pai, atiçados pelas esperanças difusas manifestadaspelos demais parentes letrados, pelos escritores que freqüentavam suacasa,até a adoção do jovem tão promissor por parte de amigos chegadosdo pai,quase como o objeto dileto de seus investimentos afetivos e inte-lectuais. O fecho dessa herança presuntiva, trabalhada de parte a parte,consistiu no financiamento paterno do livro de estréia de Georgie, cujaimpressão de uma tiragem de trezentos exemplares custou 130 pesos.

O caso Borges atesta a seu modo o papel estratégico desempe-nhado pelo declínio material e político de certas famílias desse setorcriollo empobrecido da elite argentina, nas quais foram recrutadosalguns integrantes destacados da primeira geração da vanguarda. Avanguarda portenha reuniu jovens de famílias ilustres — alguns atéendinheirados, em estágios variáveis de retrocesso econômico — aosfilhos de famílias de origem imigrante.Os moços criollos preferiram seconsagrar aos gêneros elevados, a poesia e o ensaio, ao passo que osdescendentes de imigrantes se arriscaram na prática de novos forma-tos literários como as crônicas, as reportagens, a crítica militante delivros, filmes e espetáculos,os folhetins, e os relatos ficcionais curtos.O diferencial dessas propensões era decerto o manejo desempenado ealtivo da língua pátria por parte dos herdeiros criollos.

Enquanto Borges, Girondo e Bernárdez teimavam em testar osdotes expressivos na inovação de gêneros legítimos,a poesia e o ensaio,Arlt, por sua vez, se aventurou em novos feitios paraficcionais, a meiocaminho entre a reportagem,a chaga viva do documento,e um fio maisou menos esquálido de trama romanesca.Os vanguardistas de boa cepainfundiam aos escritos os prumos estrangeirados e a substância doaprendizado europeizante. Os contemporâneos de procedência imi-grante permaneciam atados às agruras desse itinerário atribulado e nãoconseguiam sequer nublar a memória dessa carga de humilhações natranscrição literária da história sofrida de suas famílias.

166 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 166

Page 13: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[20]A tese de Macedonio se intitu-lava De las personas, feita sob a orien-tação de Carlos Malalagarriga, jorna-lista e jurista espanhol então exiladoem Buenos Aires devido a atividadesrepublicanas, tradutor de Bergson.Ver Álvaro Abós. Macedonio Fernán-dez, la biografía impossible. BuenosAires: Plaza & Janés, 2002.

[21] Entre os letrados consagradosdessa turma, destaca-se EnriqueRodríguez Larreta (1875-1961),nove-lista, poeta, dramaturgo e ensaístaargentino cuja reputação se firmoucom a novela histórica La gloria deDon Ramiro, una vida en los tiempos deFelipe II (1908). Ver Diccionario de laliteratura latinoamericana, parte II,cit., pp. 311-315.

[22] A partir de 1901,a família Borgesresidiu nessa rua, primeiro em casa(n-o 2135) de propriedade da avópaterna, Fanny Haslan, em seguidanuma casa nova (n-o 2147) que man-daram erguer num lote vizinho.

[23] Alguns dos textos mais antigosconstam do primeiro volume das obrascompletas de Macedonio Fernández,Papeles antiguos (Escritos 1892-1907),Datos para una biografía. BibliografíaCompleta (Buenos Aires: Corregidor,1981).

PADRINHO EXCÊNTRICO (MACEDONIO FERNÁNDEZ)

E APRENDIZAGEM DE ESTESIAS

O exame das relações entre o jovem Borges e o letrado MacedonioFernández permite recuperar uma segunda fornada de energias pro-pulsoras do dispositivo vocacional borgeano. Nascido em BuenosAires no mesmo ano de seu pai,filho de um estancieiro,Macedonio foicolega de turma e amigo íntimo do pai de Borges, tendo freqüentadojuntos o Colégio Nacional de Buenos Aires no secundário e, maistarde, a Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade deBuenos Aires,na qual ambos se formaram e defenderam a tese de dou-torado, em 189820. Pertenceram a uma turma famosa da faculdade, aqual incluía nomes ilustres que se tornaram figurões da economia, dapolítica e da cultura argentinas21. Além dos diversos amigos emcomum, o pai de Borges freqüentava a casa dos pais de Macedonio,local de encontro de políticos e homens de letras, muitos dos quaisparticiparam da criação do Partido Socialista em 1896. O modo defuncionamento desses encontros deve ter contribuído para as feiçõesde sucessivos círculos de amigos letrados que se organizaram emtorno da tutela exercida por Macedonio.

Julio Molina y Vedia, outro integrante das tertúlias, herdeiro deuma dinastia de grandes proprietários de terras,também amigo do paide Borges,interessado em filosofia e literatura,era arquiteto,o respon-sável pela construção da casa dos Borges na calle Serrano22, revestidacom elementos art nouveau na fachada.Jorge Guillermo viria a resenharum livro de poemas de Julio, em 1929. Macedonio, por sua vez, com-parecia com regularidade às tardes de domingo na casa dos Borges.

Entre os tempos de universitário e os primeiros anos da década de1920,quando começam a ser divulgados alguns de seus textos em revis-tas de vanguarda,a produção intelectual esparsa de Macedonio se asse-melha em toda linha àquela do pai de Borges: ensaios sobre costumes elogradouros argentinos,sonetos bissextos, escritos filosóficos de eso-térico teor metafísico, sem falar do aceso interesse de ambos por psico-logia.Macedonio tinha gosto em conceber aforismos e reflexões inusita-das,mesclando tais lampejos com citações de leituras em seus cadernos.Entre 1897 e 1920,ou seja,entre os 23 e os 46 anos de idade,Macedonioproduziu apenas alguns poemas e artigos,tendo firmado presença quasemítica muito mais por intervenções orais,pela fluência e pelas tiradas desua conversa,pela boa estrela de sua imagem entre os amigos23.

Ao emitir o juízo de que “o talento de Macedonio era eminente-mente verbal”, Borges contribuiu para a tendência crítico-historio-gráfica de apreender o veterano letrado como conversador de pri-meira, tornando esse virtuosismo, em meio aos embates daoralidade, uma forma sutil de detração dos dotes como escritor. O

167NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 167

Page 14: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[24] Macedonio Fernández: No todoes vigilia la de los ojos abiertos (BuenosAires: Manuel Gleizer, 1928); Papelesde recienvenido (Buenos Aires: Cua-dernos del Plata, 1929).

[25] Trata-se da novela El hombre queserá presidente, projeto comum deMacedonio e Jorge Luis por volta de1921, referido nas cartas trocadasentre ambos,publicadas no volume jámencionado.

[26] Macedonio Fernández.Museo dela novela de la eterna. Buenos Aires:Centro Editor de América Latina,1967, edição póstuma. Republicadaem 1975 pelas Ediciones Corregidor,no volume VI das obras completas eem 1982 em Caracas, na BibliotecaAyacucho.Ver a edição crítica coorde-nada por Ana María Camblong eAdolfo de Obieta, escritor filho deMacedonio (Edusp/Coleção Archi-vos, 1996, 591 pp.).

fundo de verdade nessa aposta borgeana pode ser atestado peloexame de certas modalidades de sua expressão literária nos doislivros publicados no final dos anos 192024.

Assim, em Papeles de recienvenido, os breves escorços autobiográfi-cos nos quais infunde uma tagarelice afetada,permeada por uma refle-xividade ácida e auto-irônica, deixam aflorar lampejos de auto-repre-sentação, como a declaração de pertença às antigas famílias criollas, osolhos azuis como faiscante traço recessivo do rentista discreto. Essemesmo volume comporta falas e improvisos pré-fabricados, enuncia-dos em jantares comemorativos,de homenagem a escritores e artistasamigos (“Brindis de recienvenido”), um epistolário endereçado aosamigos íntimos (“Correo casero de recienvenido”),sem falar da “Mis-celânea” ao final do livro e das centenas de revelações íntimas eufemi-zadas naqueles textos em que se misturam arroubos filosofantes,intervenções jornalísticas, poemas e contos dedicados à esposamorta. Advogados atuantes, especialistas em psicologia, casados, namesma época, com mulheres procedentes de famílias prestigiosas daelite nativa, Jorge Guillermo e Macedonio também desfrutavam deacesso aos mesmos espaços de sociabilidade da nata de bacharéis: oJóquei Clube, as festanças comemorativas da formatura em direito, astemporadas de verão nas propriedades de parentes. Ao que tudoindica, Macedonio deve ter se correspondido com Jorge Guillermodurante a estadia dos Borges na Europa,o que permitiu ao jovem Bor-ges seguir de perto as peripécias políticas e espirituais dessa espécie demago politiqueiro iniciado nos recessos da psique humana.

Os traços que o distinguiam devem ter impressionado um bocadoBorges, a começar pelas investidas políticas de Macedonio, que teriachegado a ponto de externar a pretensão de lançar-se candidatoextrapartidário à Presidência da República nas eleições vencidas porMarcelo de Alvear.Gozação ou intento frustrado,tal projeto foi levadotão a sério por todos os circunstantes, que acabou por integrar-se aoanedotário canônico sobre Macedonio. Conforme dão a entender ascartas trocadas com o primo e confidente, Marcelo del Mazo, essaaventura — para a qual mobilizou uma legião de amigos, inclusive opai de Borges, então em Madri, e na qual fica difícil deslindar a reali-dade da fabulação — alimentou sucessivos projetos literários,desde anovela projetada em colaboração com o jovem Borges25, até a faturacaprichosa do personagem presidencial em sua novela mais ambi-ciosa, publicada muitos anos depois26.

Macedonio foi se convertendo num duplo da figura paterna,réplica positiva e isenta das deficiências do modelo, encarnada numvulto de homem com traços análogos de geração e de classe. Tais van-tagens decerto lhe infundiram o desejo de assumir a missão de comoque perfilhar o jovem Borges, quer em termos de sociabilidade, quer

168 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 168

Page 15: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

em chave literária, como fez questão de registrar no poema “Al hijo deun amigo”,composto nessa época e de pronto acolhido pelo homena-geado na antologia mencionada. Os versos de abertura nessa compo-sição ungem o jovem Borges como o messias em defesa da doutrina doprojeto abortado pela geração dos veteranos.

Essa paternidade vicária foi assumida pelo escritor bissexto e pelopupilo, com conseqüências de peso para a imagem pública e a fortunacrítica do padrinho literário e existencial, incensado como precursordo Borges maduro e realizado, dando margem a certo rearranjo dopanteão literário argentino. Borges precisava dessa mexida de posi-ções: entronizar Macedonio como o mestre da geração inovadoraequivalia a derrubar Lugones do pódio prevalecente na década de1920. O empenho em alardear a oralidade criolla de Macedonio, tantopor parte do jovem Borges como pelos vanguardistas da revista Mar-tín Fierro, dotou-o de uma efígie enigmática, homem misterioso, queteria se afastado dos familiares e dos círculos exclusivos em que foraeducado,notabilizado por idiossincrasias e tiques do argentino de altaestirpe.Macedonio seria quase a antítese do escritor convencional fes-tejado, como Lafinur, outro arrimo de Borges.

Não tendo jamais pisado em algum país europeu ou latino-ameri-cano, Macedonio foi se conformando às feições do eterno “recienve-nido”,candidato plausível e,a um tempo,inviável como liderança polí-tica ou ideológica, uma referência emblemática no cultivo dessamística do criollo que se basta a si mesmo.Tocava guitarra,apreciava osromânticos alemães e os prelúdios de Rachmaninoff,vivia trocando depensão ou residindo em casas afastadas do centro, cultivando asmanias e as maquinações do gênio recluso.

O rentista Macedonio Fernández del Mazo conseguia sobreviver davenda de terras no campo e de terrenos na capital,uma calculada dilapi-dação do patrimônio familiar. Apesar das feições narrativas pouco con-vencionais do famoso relato autobiográfico,de 1929,as esparsas ache-gas do livro manejam esses fumos de prestígio por meio de predicadosinerentes à sociabilidade oligárquica,tendo logrado acionar os recursosexpressivos que lhe permitiram simular o rechaço do cotidiano repro-dutor de seu grupo de origem.O Macedonio de olhos azuis,que redigiacadernos secretos de reminiscências,nunca divulgados,tomava mate eacolhia os amigos nos cômodos escuros em que morava, cultuando aconversa, o humor, as tiradas paradoxais, as charadas, numa curtiçãoinveterada da “amizade” como credo existencial.

As excentricidades de Macedonio em diversos domínios, que sehaviam intensificado após a viuvez em 1920 — a troca constante de locaisde residência, as paixonites por prostitutas, um trem de vida inusitadopara o ramerrão burguês — como que avivaram em Borges a empatia pelopersonagem e o interesse crescente por seus escritos. Borges acabou

169NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 169

Page 16: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[27] Macedonio Fernández, No todoes vigilia la de los ojos abiertos, ensayometafísico e Papeles de recienvenido.

enxergando-o como uma espécie de pai substituto,ou melhor,o sucedâ-neo senhor de si, sem os óbices paternos, igualmente imaginativo, masdestrambelhado,propenso a condutas intempestivas e surpreendentes.

Macedonio se correspondeu com o filósofo francês Arréat em tornoda substância do ego e, por quase seis anos, com o filósofo norte-ame-ricano William James. Depois de formado, ele e outros colegas, entu-siastas do ideário socialista romântico, inspirado em Lasalle e Saint-Simon, tentaram estabelecer uma comunidade utópica e anarquistanuma ilha selvagem do Paraguai — em terras pertencentes à famíliaMolina y Vedia —, primeira evidência do interesse candente pela ativi-dade política.A exemplo do pai de Borges e de tantos bacharéis e letra-dos dessa geração nos países latino-americanos, leitores convictos deSpencer e infensos aos poderes do Estado, Macedonio se enquadravano perfil dos membros da elite dirigente de livres pensadores e anar-quistas,atentos aos grandes acontecimentos do momento.

Por conta desses ligamentos,não é de se estranhar que o jovem Bor-ges tenha se afeiçoado a Macedonio e o tenha convertido em modelo deexcelência “clandestino”.Nos primeiros anos dessa amizade um tantoassimétrica, o mestre “subterrâneo” e o discípulo “afilhado” aprecia-vam os mesmos filósofos — em especial,Schopenhauer —,e partilha-vam tantas afinidades políticas que formularam o projeto,jamais ence-tado, de escrever uma novela fantástica que abordaria os meiosempregados pelos maximalistas — a multiplicação de muitas peque-nas moléstias — para provocar uma neurastenia geral em todos oshabitantes de Buenos Aires e abrir assim caminho ao bolchevismo.

Com o regresso dos Borges em 1921,e sob a instigação maravilhadade Jorge Luis pelo quase mítico guru e por seus escritos,Macedonio seincorporou à vida literária portenha, colaborando em diversos perió-dicos e ampliando o rol de fervorosos jovens admiradores na van-guarda. Em 1927, Macedonio deve ter instado Borges a aderir à candi-datura de Hipólito Yrigoyen, tendo ambos participado do ComitéIrigoyenista de Intelectuales Jóvenes. Os dois primeiros livros deMacedonio foram editados no final dos anos 1920, o primeiro delescusteado pelo autor, numa tiragem de apenas duzentos exemplares, osegundo com selo das edições Proa27.

Macedonio também fez as vezes de intermediário entre Borges e osintelectuais veteranos da geração precedente,os quais detinham o con-trole dos principais periódicos e empreendimentos editoriais de van-guarda,como as revistas Proa 2 e Martín Fierro e a Editorial Proa.Refiro-me ao condomínio de interesses e frentes de investimento envolvendoEvar Méndez, Ricardo Güiraldes e Oliverio Girondo, esse último oúnico da geração de Borges.Num campo intelectual ainda em gestação,como o argentino,no qual a fortíssima ingerência do poder econômicodeixava espaço restrito aos rompantes de autonomia por parte de seus

170 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 170

Page 17: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

integrantes,mesmo daqueles mais trunfados social e intelectualmente,a proteção conferida pelos grandes investidores — tanto mais valiosaquando esses empreendedores exerciam em paralelo uma atividadeliterária,como nos casos de Güiraldes e Girondo — constituía a moedadecisiva das relações de força e de sentido naquele universo restrito detrocas. Macedonio aproximou Borges dos figurões no universo literá-rio argentino da década de 1920.De imediato,Borges soube consolidarlaços de amizade com cada um deles, passando a colaborar na revistadirigida por Girondo e Evar Méndez, tornando-se parceiro de Güiral-des e Evar Méndez no projeto da Editorial Proa e, por fim, ajudando apromover a empreitada latino-americanista dos martinfierristas lidera-dos por Girondo em sua viagem de 1924.

As diversas intervenções no debate em torno dos graus de origina-lidade de Macedonio acabaram por ricochete se transmutando emindagações a respeito de Borges como plagiário de Macedonio.Daí emfrente, ao longo de toda a vida, Borges jamais deixou de endossar asinfluências recebidas de Macedonio, os empréstimos sucessivos deseus achados,aforismos,reinações,de seu léxico chacoalhado por sig-nificações forjadas.Em retrospecto,a interação tão estratégica de Bor-ges com Macedonio lhe permitiu testar expectativas e intentos, comopretendente trunfado à carreira intelectual entre os muitos egressosdos antigos ramos da elite argentina, como integrante de uma famíliaorgulhosa de sua linhagem, dos feitos militares e políticos dos ante-passados,buscando guarida num modelo de escrita pouco convencio-nal, fora dos parâmetros daquela geração. Tal exemplo lhe proporcio-nou um modelo de intelectual destoante, de leitura difícil, cujosatributos mais ostensivos procediam de uma inserção social aciden-tada, e não de uma prática intelectual profissional.

O convívio próximo com Macedonio lhe permitiu uma sondagemmais distanciada do imaginário e dos padrões de sensibilidade dos cír-culos sociais a que pertenciam aquelas famílias criollas.Esse relaciona-mento lhe espicaçou o empenho em discernir os impensados e asexcentricidades daquela mentalidade, em deslindar os meandros desuas preferências políticas e doutrinárias ou os esquadros de aprecia-ção da tábua de valores do que se considerava então autenticamente“argentino”.Macedonio fez a ponte entre a primeira socialização fami-liar, demasiado turvada pelos sentimentos tumultuados de Borgesdiante dos reveses familiares, e a tomada de rumos para uma carreiraintelectual em sintonia com seus “iguais”.

A recepção crítica favorável a Borges, desde a arrancada de sua tra-jetória intelectual,ao longo dos anos de 1920,deveu-se às relações pri-vilegiadas que logrou estabelecer com os letrados veteranos da geraçãopaterna — Macedonio Fernández, Evar Méndez, Ricardo Güiraldes,Roberto Giusti — e também com lideranças de peso na cena cultural

171NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 171

Page 18: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[28] Oliverio Girondo. Obras/ Poesía(8a ed. Prólogo de Enrique Molina.Buenos Aires: Editorial Losada,1998); Jorge Schwartz. Vanguarda ecosmopolitismo na década de 20: Olive-rio Girondo e Oswald de Andrade (SãoPaulo: Perspectiva, 1983); Homenaje aGirondo (Buenos Aires: Corregidor,1988); Rogelio Barufaldi. FranciscoLuiz Bernárdez (Buenos Aires:Edicio-nes Culturales Argentinas/ Ministe-rio de Educación y Justicia, 1963);Diccionario de la literatura latinoameri-cana (parte II, verbete sobre Bernár-dez, pp. 245-247).

espanhola e latino-americana.Primeiro com o poeta Rafael Cansinos-Assens, os ensaístas Ramón Gomez de la Serna e Guillermo de Torre,logo adiante Ortega y Gasset, Alfonso Reyes e outros nomes destaca-dos do establishment cultural e literário hispano-americano. A rigor, oúnico companheiro de geração literária que mereceu sua atenção foiOliverio Girondo,por razões que pouco têm a ver com as preferênciasliterárias ou pessoais de Borges. A caracterização desses letrados per-tencentes ao círculo do pai de Borges,em especial Macedonio Fernán-dez, propicia um flagrante matizado da rede de interdependências aque estavam conectados,naquele espaço social trincado pelas incerte-zas quanto ao futuro dessa fração da elite argentina, detentora de umsuperavit de capital cultural que lhe permitiria infundir energias explo-sivas na modelagem do projeto criativo de seus herdeiros.

Borges adquiriu prontidão técnica e ideológica por meio desse cír-culo de letrados, o qual fazia as vezes de microcosmo vibrante do uni-verso de interações ao alcance de seus calouros.Não se podem descarnaros desígnios doutrinários dos primeiros livros, tingidos a cada páginapelos ideais e ruminações queixosas daqueles homens cultos criollos,relegados pela nova dinâmica de oportunidades econômicas, nostálgi-cos da herança prestigiosa das antigas gerações familiares, tão orgulho-sos dos políticos, militares e periodistas, entre seus ilustres antecesso-res.Não foi por acaso,capricho ou apenas vontade própria que Borges seempenhou com garra nesse estrondo expressivo. Sua primeira décadacomo escritor altamente produtivo evidencia o intento de assumir adianteira como ideólogo traquejado, capaz de viabilizar a redenção dosvalores conservadores,sob ameaça iminente de serem desfibrados.

Na tentativa de fundir,nessa prática poética e ensaística,a bandeirapatriótica e o estro lírico tão fortemente associado às figuras de Banchse Almafuerte,o jovem Borges quis por à prova o calibre de seu cabedal,então a serviço de um programa recessivo, o qual pudesse trazeralento,ou ao menos sustar o esvaimento das pretensões de influênciapolítica dos círculos criollos a que pertenciam ele próprio e todos osseus. A apreensão do caráter, do estilo e da substância temática dasobras dos anos 1920 deve, pois, estribar-se no resgate dos laços ínti-mos do estreante Borges com esses setores, no interior dos quais elefoi socializado e, no limite, convencido quanto à legitimidade e àurgência das palavras de ordem de sua redenção. Tais experiênciasmodelaram as feições e os feitos extraordinários desse talento fulgu-rante, como que empurrado, alçado mesmo, desde os escritos dejuventude,à condição privilegiada de porta-voz e herdeiro das “ilumi-nações” alardeadas pelos mentores e patronos.

Girondo, Borges e Bernárdez28 foram alguns dos escritores vincu-lados à vanguarda martinfierrista que, de fato, se formaram em contatoe proximidade com as propostas de renovação da cultura européia no

172 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 172

Page 19: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

período de entreguerras. Eles tiveram o privilégio de empreender, nomais das vezes em companhia de suas famílias, sucessivas viagens àEuropa. O envolvimento crescente com linguagens e procedimentosdas vanguardas locais, em especial na França e na Espanha, mas tam-bém na Alemanha e na Itália, abriu-lhes oportunidades de veicularseus textos em revistas européias, e ainda lhes propiciou uma reaçãocrítica favorável naqueles espaços estratégicos de difusão. A vocaçãoliterária de todos eles resultou, portanto, do embate entre constriçõescontrastantes: de um lado, as expectativas dos círculos sociais e inte-lectuais a que pertenciam na Argentina,as obras e os autores festejadosdaquela tradição cultural, a agenda de temas e prioridades derivadosde uma dada conjuntura histórica; de outro, os modelos de inovaçãoestética e literária em vigência na cena européia de vanguarda.

Nas condições de operação do campo literário argentino nos anos1920 e 1930,em lugar de priorizar o significado estético das iniciativase obras dessa geração de vanguarda,os arroubos criativos de juventudese tornam inteligíveis nos marcos da socialização desses “herdeiros”,em especial nos casos exemplares de Girondo e Borges, impregnadospor completo pelo universo de valores,padrões de gosto e expectativasde suas famílias,ou seja,dos círculos de elite em que se modelaram taisprojetos intelectuais. Basta atentar às inúmeras modulações com queBorges intentou manejar o gênero biográfico, a começar pelo experi-mento multifacetado que desaguou no ensaio Evaristo Carriego,para nosdarmos conta da incessante reciclagem de sentidos a que foi tentandosujeitar os retratos hirtos dos antepassados,os relatos memorialísticosdas grandes figuras do Centenário,mesclados às representações perso-nalizadas de personagens prensados, literalmente,entre a legenda his-tórica,a memória familiar e de classe,e o enredo ficcional.

Fervor de Buenos Aires foi recepcionado por uma dúzia de resenhas,na Argentina e na Europa, algumas delas subscritas por escritores decerta reputação,como Enrique Díez-Canedo,Salvador Reyes e RamónGomez de la Serna, este último tendo publicado a sua na prestigiosaRevista de Occidente. O livro seguinte de Borges, Inquisiciones, mereceuresposta de voltagem idêntica, tendo feito jus a resenhas em periódi-cos locais e àquelas assinadas por Cansino-Assens, Guillermo deTorre e Pedro Henríquez Ureña em publicações espanholas. Luna deEnfrente, o segundo livro de versos, suscitou resenhas pelos compa-nheiros de maior prestígio na turma vanguardista — Bernárdez eMarechal —, além do artigo firmado pelo crítico e futuro cunhado,Guillermo de Torre, outra vez na Revista de Occidente. Tais reaçõesgarantiram a Borges um cabedal invejável de prestígio,um lugar de pri-mazia,abrindo-lhe oportunidades e iniciativas que ele jamais poderiater sem respaldo dos veteranos, os quais lhe permitiram calçar umaposição de força no comando da geração argentina de vanguarda.

173NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 173

Page 20: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[29] A respeito das obras do jovemBorges, consultar as análises em-preendidas por Víctor Farías:La meta-física del arrabal (Madri, 1992); Lasactas secretas, Inquisiciones y El idiomade los argentinos, los otros libros proscri-tos de Jorge Luis Borges (Madri, Anaya& Mario Muchnik, 1994); e RafaelOlea Franco. El otro Borges. El primerBorges (Buenos Aires : Fondo de Cul-tura Económica de Argentina, 1993).Embora ambos os autores recorramsobretudo a modelos filosóficos e decrítica literária genética, lograndoassim formular interpretações aoarrepio de constrições sociológicas,suscitam indagações valiosas e lan-çam pistas de ligamentos até entãoinsuspeitos.

FERVOR DE BUENOS AIRES: IMAGINÁRIO DE CLASSE

Da perspectiva daqueles círculos letrados, nenhum dos registros,proclamas e tomadas de posição assumidos pelo jovem Borges soavade todo como novidade. A geração intelectual precedente, a do Cente-nário,vinha batendo naquelas teclas doutrinárias com que se apruma-ram as principais frentes de combate ideológico e cultural. Nummomento de crise e de baixa do prestígio político e simbólico da Espa-nha após a humilhante derrota sofrida diante dos Estados Unidos, osintelectuais hispano-americanos haviam cerrado fileira em torno dadefesa do hispanismo, alardeando a centralidade espiritual da almamater da ex-metrópole e forjando um linguajar de nomeação dos laçospreferenciais.Na Argentina,os escritores veteranos haviam realçado alinha divisória entre nosotros, os argentinos de pura cepa espanhola,descendentes dos antigos colonizadores,os verdadeiros criollos,donoslegítimos do país,e ellos,os imigrantes adventícios,potenciais diluido-res da identidade criolla. A língua espanhola era o suporte quase mís-tico dessa comunhão de valores, tanto mais exaltada quanto maior aconcorrência que lhe faziam os idiomas falados pelos imigrantes, oupior, os dialetos mesclados como o cocoliche ou o lunfardo.

Em contraponto ao influxo irresistível dos imigrantes como forçasocial “dissolvente” do caráter argentino idealizado, o gaúcho incen-sado como alicerce da “argentinidade” fora associado a um passadonacional anterior ao fluxo migratório,às reformas educacionais e elei-torais empreendidas pelos dirigentes da República liberal e, maisimportante de tudo, à predominância da agricultura intensiva deexportação como ponta de lança de um novo estágio de integração daeconomia argentina no capitalismo.

Nessa atmosfera política e cultural de resistência às transforma-ções em curso no plano econômico,propagadas nas feições renovadasdo sistema político-eleitoral e nos lineamentos de uma estruturasocial em ebulição, a nova geração da vanguarda literária não conse-guiu se esquivar dos sentimentos ambivalentes de rancor e ressenti-mento, os quais pareciam predominar em certos círculos declinantesda antiga elite criolla de onde procedia a maioria de seus integrantes.Os poemas e ensaios de Borges dos anos 1920 se enquadravam, pois,nesse prumo afinado com os desafios e questionamentos suscitadospelo criollismo29. Em meio às rivalidades geracionais, as ameaças àsobrevivência desse legado nacionalista estavam a exigir uma defesadesabrida e consistente das linhagens e obras representativas da lite-ratura gauchesca, uma revisão corajosa do passado histórico ajuizadopela ideologia modernizadora dos liberais e, no tranco, um resgatesimbólico do mundo social de um setor de classe sitiado,o qual se sen-tia acossado pelos imigrantes emergentes.

174 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 174

Page 21: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[30] Consultei exemplares da ediçãooriginal de Fervor de Buenos Aires eInquisiciones,conservados na seção delivros raros da biblioteca da Universi-dade de Stanford,que tive a oportuni-dade de freqüentar durante minhaestadia como fellow do Center forAdvanced Studies in the BehavioralSciences entre 2001 e 2002.

Ao contrário do que postula certa literatura promocional da van-guarda literária argentina, o jovem Borges nunca esteve confinado àsrevistas de vanguarda e, desde os primeiros tempos do retorno a Bue-nos Aires,fora convidado a colaborar em diversos espaços controladospelo establishment literário portenho. A maturação desse relaciona-mento culminou com o convite para assumir uma coluna mensal nodiário La Prensa. A intensa circulação no interior do campo intelectuale jornalístico argentino contribuiu decisivamente para realçar oimpacto de seus escritos, divulgados, quando calhava, em jornais eperiódicos vinculados aos grupos dirigentes.

A leitura atenta dos livros de estréia de Jorge Luis Borges, nos doisgêneros em que exercitou os pendores nacionalistas — a poesia e oensaio — permite apreender a teia de significados que infundiu emseus escritos e na militância intelectual à testa do movimento de reno-vação literária na década de 1920. Fervor de Buenos Aires 30 e Inquisicionessão livros aprontados em sintonia apurada, lances complementares deum mesmo projeto intelectual e político, a serviço de desígnios idênti-cos de revigoramento de uma identidade criolla autêntica e no qual sereconheciam os círculos da elite cultivada aos quais estava endereçado.

O cerne do argumento nacionalista do jovem Borges está patentena versão revisionista da história pátria, ora ministrada em versosnativistas, em preitos de homenagem a heróis familiares, ora vazadanuma reapreciação de figuras históricas controversas.O caudilho JuanManuel de Rosas serviu como medida de argentinidade dessa pers-pectiva militante. A derrota de Rosas em Caseros (1852) fora a senhapara a paulatina destruição do mundo criollo,com a ocupação dos pam-pas pela agricultura de exportação, pela construção das ferrovias epelas políticas incentivadoras da imigração.Esse esquema de contras-tes gritantes vai adquirindo feições que se resumem,de um lado,numacondenação dos gringos,do elemento estrangeiro,da cultura européiae,de outro,numa exaltação do gaúcho,de uma ignorância telúrica tidacomo depositária dos atavios autênticos do nativismo.

O jovem Borges não desdenhou o combate ideológico travadoinclusive na arena conceitual das classificações, conferindo voltageme personalidade à noção arcaica de criollidad em lugar de “argentini-dade”, e buscando situar, designar e qualificar os suportes materiais esimbólicos desse modo de ser na cultura popular,na tradição literária,nos autores que lhe pareciam encarnar e sustentar o vigor dessa origi-nalidade civilizacional. Em lugar da apreensão passadista, quepudesse se contentar em repor as perdas de substância assinaladas,Borges intentou garantir outros fundamentos à renovação dos mitoscriollos, adaptando-os, na medida do factível, às circunstâncias cam-biantes das lutas ideológicas naquela conjuntura. Logo, a representa-ção literária de traços típicos do que ele designou como “lírica criolla”

175NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 175

Page 22: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[31] Ficaram de fora cerca de duasdezenas de poemas de inequívocaentonação política,compostos entre1919 e 1922,alusivos aos horrores daPrimeira Guerra Mundial e às trans-formações acarretadas pela revoluçãosocialista de 1917 — «Trinchera»,«Rusia», «Gesta maximalista» —, osquais não correspondiam mais às in-clinações doutrinárias do jovemBorges.

é bastante similar às idéias sustentadas por Lugones, em especial atendência a explicar a lírica gauchesca em função de peculiaridades dageografia dos pampas e do estilo inconfundível de vida.

Em vez de salientar a herança racial e cultural da criollidad, comofaziam alguns luminares da geração precedente — Gálvez, Rojas,Lugones —,o jovem Borges equacionou o dilema em termos de enga-jamento político, a começar pela audácia de revirar de ponta cabeça oantigo debate entre civilização e barbárie.Recusou as arengas liberais,sobretudo a postura modernizante sustentada por Sarmiento, e recu-perou uma civilização criolla que o estadista indigitara como atraso ecarência de progresso. A linguagem dos primeiros poemas encampa alinha nacionalista expressa em Inquisiciones, podendo-se, assim,enxergar Borges como exegeta de um grupo social específico, a gentedecente e “bem nascida”, os integrantes do seu círculo íntimo de con-vívio, mostra representativa da elite cultural argentina.

Fervor de Buenos Aires reúne 45 composições já bastante demarcadasem relação ao credo ultraísta, nas quais predominam o tom intimista,as lembranças da infância, da família, da casa dos pais, do bairro ondecresceu e de outras vizinhanças na cidade de Buenos Aires,da históriae da civilização argentinas31. O assunto substantivo da coletânea, queperpassa todos os eixos temáticos abordados, é a evocação nostálgicada classe de origem por meio das experiências,lembranças e valores deseu círculo de sociabilidade.

Um terço dos poemas tematiza a Buenos Aires das vizinhanças declasse média e alta nos bairros da região nucleada em torno de Palermo,alheando-se do rebuliço do porto e dos logradouros agitados do centrocomercial. Borges prefere mirar as ruas tranqüilas dos bairros afasta-dos, daqueles arrabaldes onde o campo ainda resiste ao avanço dacidade, como bem o demonstram inúmeras incursões líricas ao longodo livro. A opção pelo sítio urbano contemplado pelo estro lírico se fazacompanhar pela compaixão endereçada aos pares criollos, em detri-mento dos imigrantes, em especial os italianos. Essa predileção poruma Buenos Aires do descampado,dos quarteirões retilíneos,de casasbaixas,é o reverso do rechaço da região portuária,da agitação mercantildos negócios, dos anúncios luminosos, dos prédios altos. O poetaestreante enxergou Buenos Aires da perspectiva de sua casa e do bairrode Palermo em que estava situada,região apartada do centro,entrecor-tada de praças vazias e povoada de casas térreas, providas dos elemen-tos arquitetônicos e decorativos característicos da vivência criolla —vestíbulos,balaustradas,balcões,beirais de telhado,pátios e cisternas.

Nesses ambientes, a ritmação do cotidiano era medida pelas pau-sas impostas pelo estilo de vida, como os momentos de fruição domate, por exemplo, e não pelos relógios modernos. As referênciasesparsas aos imigrantes embutem lamúrias de um mundo que está se

176 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 176

Page 23: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[32] Ver Beatriz Sarlo.Borges, un escri-tor en las orillas.Bueno Aires:Seix Bar-ral, 2003.

esboroando, dando alento às queixas pela perda de traços nativos. Ojovem Borges assumiu uma postura lírica defensiva,resistindo a tratarliterariamente dos elementos modernos e cosmopolitas de BuenosAires, então em ritmo frenético de mudança.

Borges é um andarilho antenado,munido de lentes possantes pararegistrar o próprio universo social. Sua perambulação descarta osespaços em que transitam os trabalhadores imigrantes, na buscaquase obcecada pelos poentes fantasmagóricos tão bem exaltados nolivro.Tais preferências e idiossincrasias foram anotadas pelos primei-ros críticos e resenhistas da obra, e mais tarde reprocessadas comomatéria-prima em análises centradas na dimensão ideológica dasobras de Borges naquele período.

Os poemas se repartem em torno de cinco eixos temáticos — Bue-nos Aires, reminiscências familiares, “argentinidade”, metafísica evivência amorosa —, embora alguns deles possam ser encaixados emdiversas rubricas.Quero interpretá-los aqui em termos de uma apreen-são muitíssimo apurada de suas experiências de classe,como expressãodos reclamos daquela parcela derrotada da elite de onde provinha e coma qual se identifica. Ele estava imbuído do sentido doutrinário de seuproselitismo literário e da relevância estratégica de seu experimento,por assim dizer,de delegação poética.Se a originalidade da poesia bor-geana, como sugere Beatriz Sarlo32, reside na conjunção de vetorespotencialmente contraditórios — a postura do resgate criollista tempe-rada pelas inovações da linguagem de vanguarda —, frise-se o quantoesse recado fervoroso logrou vocalizar os queixumes classistas.A reto-mada dos mesmos temas equacionados em chave poética nos termosdiscursivos dos ensaios reforça a incidência contundente do vetor ideo-lógico por detrás de ambas modalidades de expressão.

Contraposta ao alvorecer dos operários para outra jornada detrabalho, a tarde constitui o momento ideal para as andanças dopoeta, como que realçando e infundindo cores nostálgicas aos pro-cedimentos da memória classista. Os poemas consagrados ao trata-mento elegíaco de Buenos Aires são, em maioria, reconhecíveis pelonome dos logradouros nos títulos. Tais sítios configuram um cintu-rão em torno de Palermo, o bairro mítico em cujo território foierguida a casa dos pais, o espaço de socialização afetiva, modelo noqual se podem rastrear os componentes mágicos desse cenário degênese de uma sensibilidade criolla.

“O Jardim Botânico”,por exemplo,se localiza na divisa de Palermo,bem próximo da calle Serrano, demarcando o território urbano em quetransitam nosotros, aqui evocados por meio de sensualidades ajustadasà posição e à idade dos “viventes”: a conjugal, tingida pelo travo inces-tuoso; a libidinosa, travada por interditos. “A praça San Martín”, dedi-cado a Macedonio Fernández, “espectador apaixonado de Buenos

177NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 177

Page 24: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[33] «Lo anterior: escuchado, leído,meditadolo realicé en la Recoleta, junto al proprio lugar donde han deenterrarme.» («A Recoleta»)

[34] «Intimo y entrañableera el milagro de la calle claray solo despuésentendí que aquel lugar era extraño,que es toda casa un candelabrodonde arden con aislada llama las vidasque todo inmediato paso nuestrocamina sobre Gólgotas ajenos.» («Ruadesconhecida»)

[35] Em 1923,o pai já estava cego,aos44 anos, e Jorge Luis já começava aenxergar mal.

Aires”,o modelo masculino do autor, relança o poeta numa apreensão,em câmera lenta,dos espaços privilegiados dessa interação entre iguais.“A Recoleta”, nome do cemitério encravado na região elegante da altaburguesia, insinua certa impregnação daquela criollidad ameaçada deextinção,incitando-o a fazer um paralelo entre a morte dos entes próxi-mos e a tomada de consciência de sua sina33. A imagem do cemitérioprovoca uma reversão de expectativas,o hálito estranho de uma ressur-reição das esperanças mundanas por meio do ofício poético.

“Vila Urquiza” enaltece o bairro da periferia, o arrabalde que estádeixando de ser rural.“Caminhada” aprofunda essa errância do bardo,agora exposto aos vestígios tangíveis de um mundo social em desagre-gação: o perfume dos vapores do mate, os cheiros do mato, as hortasrecobertas pelo asfalto, a especulação imobiliária. O fecho torna opoeta espectador vicário de um mundo fantasma, dessorado, esgar-çado, habitado por vultos reminiscentes de uma sociabilidade preté-rita. “Rua desconhecida” chafurda nos devaneios decepcionados doautor, como que prensado entre as constrições familiares, que oempurram para o refúgio do trabalho intelectual, e as servidões tem-porais com escassas rotas de escape à desdita social34.O vislumbre docandelabro judaico metaforiza o contraponto entre as gerações fami-liares, cujo convívio caloroso não logrou reverter o destino social dosmais jovens, premidos pelos impasses derivados da cegueirapaterna35.Vidas cúmplices, interdependentes,os moços atingidos emcheio pelas vicissitudes dos adultos.

As evocações familiares ancoram outro conjunto de composições eesclarecem as motivações mais doídas do poeta,como se fora o ventrí-loquo de uma classe acossada. “Sala vazia” exibe flagrantes de umcômodo desgastado, no qual os restos do passado de ostentação per-mitem recompor os laços de família.

Los muebles de caoba perpetúanentre la indecisión del brocadosu tertulia de siempre. (“Sala vazia”)

Os versos do terceto inicial remontam uma conversa entre fantas-mas, em que os dialogantes são os móveis com tecido puído.

Los daguerreotiposmientem su falsa cercaniade vejez enclaustrada en un espejoy ante nuestro examen se escurrencomo fechas inútilesde aniversarios borrosos.

178 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 178

Page 25: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[36] «es el azoramiento ante el milagrode que a despecho de alternativas tan ini-finitaspueda persistir algo en nosotrosinmóvil» («Final de ano»)

[37] «Lindo es vivir en la amistad oscurade un zaguán, de un alero y de un aljibe.»(«Um pátio»).

A estrofe seguinte focaliza os retratos emoldurados, penduradosna parede,imagem de grande impacto,cujos personagens,remoçadosnas fotos, recobram suas ligações numa verossimilhança desbotada.Estampas de gente que era moça naquele tempo caduco,de sala cheia.

Con ademán desdibujadosu casi-voz angustiosacorre detrás de nuestras almascon más de medio siglo de atrasoy apenas si estará ahoraen las mañanas de nuestra infancia.

A cena subseqüente rememora o vozerio desses personagens, naforça da idade, jovens adultos que cuidavam do poeta criança.

La actualidad constanteconvincente y sanguíneaaplaude en el trajín de la callesu plenitud irrecusablede apoteosis presentemientras la luz a puñetazosabre un boquete en los cristalesy humilla las seniles butacasy arrincona y ahorcala voz laciade los antepasados

A cena toda se anima de repente,o barulho da rua ressoa no interiordo cômodo entregue às baratas, e o fulgor da vida presente cintila noscristais e revela o mau estado das poltronas avariadas.O poema se fechacom menção à voz cansada dos antepassados,afeitos à abastança,numasala com móveis de peroba,lustres de cristal e poltronas de brocado.Eiso poema-chave do livro, cujos versos condensam o substrato históricode uma falência coletiva, ora reciclada como matéria literária, objeto dememória,apagamento sensível,energia filtrada por um dialeto expres-sivo destinado à fruição de uma minoria de outros decaídos.

“Final de ano” invoca um momento intenso da sociabilidadefamiliar, no qual se comemora a passagem do tempo, a despeito dosentimento inarredável de clausura do poeta em sua condiçãosocial36. “Um pátio” louva o espaço mágico da casa, na confluênciado mais íntimo com o mais externo — o vestíbulo, os beirais dotelhado, o poço, a terra e o céu —, síntese de um ideal apaziguado deconvívio criollo, exaltando o universo familiar como núcleo da vidaverdadeira37. No poema “Vizinhanças”, a evocação do pátio dilata as

179NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 179

Page 26: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[38] «Las encrucijadas oscurasque alancean cuatro inifinitas distanciasen arrabales hechos de acallamiento ysosiego.Las alcobas profundasDonde arde en quieta llama la caobaY el espejo a pesar de resplandores,Es una remansada serenidad en la som-bra» («Vizinhanças»).

esferas de circulação, num lugar geométrico entre o ambienteexterno das ruas de arrabalde e as alcovas com espelho e móveis deperoba38. “A volta” é outra variante dessa viagem poética pelas para-gens da infância, pelos sítios fronteiriços à casa paterna, “provínciade minha alma”.

As duas composições intituladas “Inscrição sepulcral”, dedica-das aos bisavôs materno (Isidoro Suárez, 1799-1846) e paterno(Francisco Borges, 1832-1874), restituem a linhagem familiar nalegenda de uma elite nativista, pela exaltação de heróis patriotas. Obisavô materno é o elo com a independência argentina, por ter parti-cipado da batalha de Junín contra o exército espanhol e, até maisimportante, da perspectiva do jovem Borges revisionista, responsá-vel pelo parentesco torto da família com o caudilho Rosas, parenteafastado da bisavó uruguaia. O bisavô paterno, ferido de morte embatalha, lutou na Guerra do Paraguai e atuou no comando sob asordens de Mitre,chefe da facção derrotada nas guerras de unificação.Os versos encomiásticos inscrevem o nome da família nos embatesdecisivos da história nacional, conferem legitimidade à vocaçãonativista do poeta-ideólogo e propagam os fumos de pretensãosocial do clã Borges.Atitude poética idêntica à de Lugones ao reivin-dicar o título de bardo nacional, vinculando tal mandato aos feitosguerreiros dos antepassados.

Os poemas “O truco” e “Rosas” reconsideram a figura lume da his-tória argentina, o caudilho onipotente Juan Manuel de Rosas, o ás deespadas, na visada favorável do jovem Borges entronizado como ver-dadeiro pai da pátria. O tirano libertador teria sido a liderança provi-dencial, o rosto vigoroso e apaixonado desse “outro país” que não seconsegue enxergar na capital, o homem emblemático da Argentinaprofunda, imersa na “realidade primordial do gozo e sofrimento car-nais”, de uma história cíclica, destino prefigurado.

En el ámbito desamoradode la sala taciturnamente rendidacuyo reloj austero derramaun tiempo ya sin aventura ni asombrosobre la lastimosa blancuraque amortaja la pasión roja de la caoba,alguien en queja de cariñopronunció el nombre familiarmente horrendo. (“Rosas”)

O poema “Rosas” se inicia num cômodo similar àquele evocadoem “Sala vazia”, com mobília de peroba e relógio de parede, de moldea justificar a invocação do “nome familiarmente horrendo” em virtudedos já mencionados longínquos laços de parentesco.

180 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 180

Page 27: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

[39] «La sombra es apacible como unalejanía:bien recuerdan las callesque fueran campo un día.» («A noite deSão João»).

[40]«Anuncios luminosos tironeando elcansancio.…Colores impetuososEscalan las atónitas fachadas.…y es tu recuerdo como un ascua vivaque nunca sueltoaunque me quemam las manos».

Famosamente infameese nombre fué desolación en las calles,idolátrico amor entre el gauchajey horror de puñaladas en la historia.

A tensão narrativa se estriba numa conjunção contraditória —“familiarmente horrendo” e “fervorosamente infame” —, no intuito,decerto, de incensar nas lutas pela afirmação nacional o personagemímpar como encarnação vibrante das expectativas antiliberais da gera-ção emergente de letrados. O jovem Borges absolve o déspota dos cri-mes e desmandos, por conta da necessidade premente de convertê-loem reserva espiritual e núcleo de resistência ao ímpeto das reformasliberais que estão mudando as feições do país.

No ensaio-libelo de Inquisiciones, “Queixa de todo criollo”, Borgesexplicita sua postura revisionista da história argentina.A derrota infli-gida a Rosas teria acarretado a destruição do mundo criollo, arrasadopela valorização das terras, o que impulsionou a agricultura de expor-tação em detrimento da pecuária extensiva, levando na enxurrada ospersonagens gaúchos que viviam à sombra da economia autárquica.Atragédia criolla teria então se consumado pela ocupação produtiva dospampas, pela dissolução do gauchismo, por uma depreciação culturalavassaladora dos afazeres e costumes dos criollos.

“Música pátria” recupera alguns elementos típicos da criollidad,emespecial o romanceiro festivo que se exprime pela cantilena de motivosautóctones, costurados pela batida melódica, que se resolve num bor-dão nativo marcante. O ressoar dessa música é tanto mais tocantequando o poeta se confunde com a figura do caminhante, paralisadode emoção ao reconhecer a música da terra: “siente como si le palparan elcorazón con la mano”.Esse poema também se presta a uma leitura hispa-nicista,de louvação aos feitos espanhóis,desde a expulsão dos árabes,passando pelas conquistas nas Índias, até se instalarem nos pampas,desta feita a música vibrando pela voz da guitarra criolla, em meio àmatança dos índios. “A noite de São João” reitera a lamúria por aquelemundo que está desmoronando,as guitarras e o fogaréu nas ruas,umacidade em convulsão, onde “as ruas foram campo um dia”39.

A lembrança da amada reponta no poema “Cidade”, no qual ojovem Borges rechaça os emblemas gritantes da modernidade, quaseum refrão a percorrer o livro inteiro, ao contrapor a afetividade doaconchego familiar à estridência do tumulto urbano40.Em “Ausência”,o lamento sofrido pela perda amorosa recobre a paisagem,a passagemdo tempo, as palavras, sinais evocativos do ente querido: “Tu ausenciaciñe el alma/ como cuerda que abarca una garganta”.

O poema “Sábados”, dedicado à noiva Concepción Guerrero,rememora os encontros do casal desfeito, talvez na sala da família

181NOVOS ESTUDOS 77 ❙❙ MARÇO 2007

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 181

Page 28: JORGE LUIS BORGES: HISTÓRIA SOCIAL DE UM ESCRITOR … · Sergio Miceli RESUMO Este artigo examina condicionantes e práticas sociais que viabilizaram a trajetória literária de

Lange, onde se conheceram e onde costumavam se ver, embaladospela música no piano.

Siempre la multitud de tu hermosuraen claro esparcimiento sobre mi alma.…El corazón reflejaTus labios que una noche serán besos…En ti está la deliciaComo está la crueldade en las espadas.…Sobrevive a la tardeLa blancura gloriosa de tu carne.TúQue ayer solo eras toda la hermosuraEres también todo el amor,ahora.

O poema crava certa veemência amorosa que se faz perceptível naoscilação entre imagens esquivas e físicas da amada:a beleza,a voz,oslábios, a carne. Os poemas “Flor de âmbar” e “Troféu” modulam aqueixa suscitada pelo amor rompido,o poeta lembrando das andançasdo casal enamorado pela cidade.

“Despedida” inclui os versos de amor que encerram o livro, numaalusão inequívoca à segunda viagem familiar à Europa, a qual selou odestino social do jovem Borges, obrigando-o a romper o noivado.

Entre mi amor y yo han de levantarsetrescientas noches como trescientas paredesy el mar será un milenio entre nosotros.

Os versos finais como que prenunciam a resignação do poetadiante de sua desdita afetiva, o reverso da unção como porta-vozgenuíno da nova geração literária. O livro de estréia prenunciava osrumos do mandato de vida e trabalho que lhe fora designado e emnome do qual o poeta-ensaísta abdicava da paixão.

Sergio Miceli é professor titular no Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.

182 JORGE LUIS BORGES ❙❙ Sergio Miceli

Recebido para publicação em 7 de dezembro de 2006.

NOVOS ESTUDOS

CEBRAP

77, março 2007pp. 155-182

08_Miceli.qxd 3/26/07 3:23 PM Page 182