jorge amado e pablo neruda sobre Álvaro cunhal

8

Click here to load reader

Upload: isabel-cunha-lopes

Post on 02-Jul-2015

1.518 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Jorge Amado e Pablo Neruda em defesa de Álvaro Cunhal líder comunista português preso pela PiDE...

TRANSCRIPT

Page 1: Jorge Amado e  Pablo Neruda sobre Álvaro Cunhal

Essa Vida Preciosa, Salvemo-lapor Jorge Amado

«Tão magro, de magreza impressionante, chupado a face fina e severa, as mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o cabelo, um homem jovem mas fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas, de pouso incerto, de responsabilidades imensas e de trabalho infatigável, eu o vejo, sentado ao outro lado da mesa, diante de mim, falando com a sua voz um pouco rouca, os olhos ardentes no fundo de um longo e sempre vencido cansaço, e o vejo agora como há cinco anos passados, sua impressionante e inesquecível imagem: Álvaro Cunhal, conhecido por Duarte, o revolucionário português. Falava sobre Portugal, sobre que poderia falar?Sua paixão e sua tarefa: libertar o povo português da humilhação salazarista, libertar Portugal dessa já tão larga noite de desgraça, de silêncios medrosos, de vozes comprimidas, de alastrada e permanente fome do povo, de corvos clericais comendo o estômago do país, de tristes inquisidores saídos dos cantos mal iluminados das sacristias e da História para oprimir o povo e vendê-lo à velha cliente inglesa ou ao novo senhor norte-americano. Sua paixão e sua tarefa: fazer de Portugal outra vez um país independente e do povo português um povo novamente livre e farto e dono da sua natural alegria. Ah! Aqueles cansados olhos fundos sorriam e a voz estrangulada de cólera se abria em doçura de palavras de amor para falar de Portugal e do povo português. Eu compreendia que aquele homem de magreza impressionante, de físico combalido pela dura ilegalidade perseguida, era o seu próprio país, seu próprio povo e que, com seu cansaço, sua fadiga de anos, sua rouca voz de velho sono, suas mãos ossudas, eles estava construindo a vida, o dia de amanhã, o mundo novo a nascer das ruínas fatais do salazarismo. Como era terno seu sorriso ao falar das festas populares nas aldeias do Minho ou dos homens rudes de Trás-os-Montes! Conhecia tudo do seu país e do seu povo, tudo o que era autentico de Portugal, desde o mar-oceano com a sua história portuguesa e gloriosa até as vinhas ao sol e as cantigas e os poemas dos poetas reduzidos na sua grandeza pela censura fascista; desde as histórias heróicas dos militantes presos, torturados até à loucura e à morte, as tenebrosas histórias do Tarrafal, o campo de concentração mais antigo e mais cruel da Europa, até às doces histórias de amor da província portuguesa, com um sabor romântico das velhas legendas.

Contou-me coisas de espantar com sua voz ora doce, grávida de ternura, ora violenta de cólera desatada quando falava da fome dos trabalhadores, da opressão salazarista sobre o povo, da opressão imperialista sobre a sua pátria de primavera e mar. (...) os comunistas portugueses, heróis anónimos do povo, os invencíveis, os que estão rasgando a noite fascista com a lâmina de sua audácia e de sua certeza para que novamente o sol da liberdade ilumine o país dos pescadores e das uvas. De um me disse: «Esse esteve no Brasil e aprendeu com vocês» (...)Falou do campo, dos homens que habitam as montanhas, daqueles que Ferreira de Castro, o grande romancista, descreveu em «Terra Fria» e «A Lã e a Neve». (...) Falou dos operários das cidades daqueles que Alves Redol descreveu em seus magníficos romances e contou da sua irredutível resistência ao regime salazarista. (...)Naquela tarde como que me apossei por inteiro de Portugal, do melhor Portugal, do Portugal eterno, como se Álvaro Cunhal o trouxesse nas suas mãos ossudas, tão

Page 2: Jorge Amado e  Pablo Neruda sobre Álvaro Cunhal

descarnadas e nervosas, como se trouxesse – e o trazia em verdade – no seu coração de revolucionário e patriota. Voltei a vê-lo ainda uma vez, dias depois, e a longa conversa sobre Portugal continuou. Falou-me dos escritores, dos plásticos, dos pescadores, fadistas, e sobretudo da luta subterrânea, dura e difícil e jamais vencida. (...)Veio o processo, dentro dos métodos infames dos tribunais fascistas. Ali se ergueu Álvaro Cunhal (Militão morrera de torturas) e não era o réu, era o acusador, a voz de fogo a queimar o vergonhoso rosto dos carrascos do seu povo, dos vendilhões da sua pátria.(...)Pretendem matá-lo e nós sabemos que são frios assassinos os que querem matá-lo. É uma vida preciosa, preciosa para Portugal e para o mundo, ajudemos o povo português a salvá-la!(...)Há alguns meses eu estava em frente ao mar Pacífico, na costa sul do Chile, em Isla Negra, em casa de Pablo Neruda, meu companheiro de lutas de esperança. Uma figura de proa de barco se elevava em frente ao mar de ondas altas e violentas. Por isso falámos de Portugal e do seu destino marítimo. Contei ao poeta sobre Cunhal e Pablo levantou-se, deixou-me com o pescador que parara para escutar-nos e quando voltou havia escrito esse maravilhoso poema que é «A Lâmpada Marinha»* sobre Portugal, seu povo, Álvaro Cunhal e o dia luminoso de amanhã»(...)Hoje o mais bravo dos filhos desse povo heróico, aquele que tudo sacrificou para ser fiel à esperança do povo está com sua vida ameaçada.»

* A Lâmpada Marinha **

Pablo Neruda

Porto cor de céuI

Quando desembarcasem Lisboa,céu celeste e rosa rosa,estuque branco e ouro,pétalas de ladrilho,as casas,as portas,os tectos,as janelassalpicadas do ouro verde dos limões,do azul ultramarino dos navios,quando desembarcas,não conheces,não sabes que por detrás das janelasescura,ronda,a polícia negra,os carcereiros de luto

Page 3: Jorge Amado e  Pablo Neruda sobre Álvaro Cunhal

de Salazar, perfeitosfilhos de sacristia a calabouço,despachando presos para as ilhas,condenando ao silênciopululandocomo esquadrões de sombrasobre janelas verdes,entre montes azuis,a polícia,sob outonais cornucópias,a polícia,procurando portugueses,escarvando o solo,destinando os homens à sombra.

A cítara esquecidaII

Ó Portugal formoso,cesta de frutas e flores ?emerges na prateada margem do oceano,na espuma da Europa,com a cítara de ouroque te deixou Camões,cantando com doçura,esparzindo nas bocas do Atlânticoteu tempestuoso odor de vinharia,de flores cidreiras e marinhas,tua luminosa lua entrecortadade nuvens e tormentas.

Os presídiosIII

Mas,português da rua, entre nós,ninguémnos escuta,sabesondeestá Álvaro Cunhal?Sabes, ou alguém o sabe,como morreu,o valente,Militão?E sua mulher sabes tuque enlouqueceu sob torturas?Moça portuguesa,passas como que bailandopelas ruas

Page 4: Jorge Amado e  Pablo Neruda sobre Álvaro Cunhal

rosadas de Lisboa,massabes,sabes onde morreu Bento Gonçalves,o português mais puro,honra de teu mar, de tua areia,sabesque ninguém volta jamaisda Ilhada Ilha do Sal,que Tarrafal se chamao campo da morte?

Sim, tu sabes, moça,rapaz, sim to sabes,em silêncioa palavra anda com lentidão mas percorrenão só Portugal senão a Terra.

Sim, sabemos,em remotos países,que há trinta anosuma lápideespessa como túmulo ou como túnica,de clerical morcego,afoga Portugal, teu triste trino,salpica tua doçura,com gotas de martírioe mantém suas cúpulas de sombra.

O mar e os jasminsIV

Da tua pequena mão outrorasaíram criaturasdisseminadasno assombro da geografia.Assim, a ti volveu Camõespara deixar-te o ramo de jasminssempiterno a florescer.A inteligência ardeu qual vinhode transparentes uvasem tua raça,Guerra Junqueiroentre as ondasdeixou cair o trovãode liberdade bravia transportando o Oceano a seu cantar,e outros multiplicaramteu esplendor de rosais e racimos

Page 5: Jorge Amado e  Pablo Neruda sobre Álvaro Cunhal

como se de teu estreito territóriosaíssem grandes mãosderramando sementespela terra toda.

Não obstante,o tempo te soterrou,o pó clericalacumulado em Coimbracaiu sobre teu rostode laranja oceânicae cobriu o esplendor de tua cintura.

A lâmpada marinhaV

Portugal,volta ao mar, a teus naviosPortugal volta ao homem, ao marinheiro,volve à terra tua, à tua fragrância,à tua razão livre no vento,de novoà luz matutinado cravo e da espuma.Mostra-nos teu tesouro,teus homens, tuas mulheres,não escondas mais teu rostode embarcação valenteposta nas avançadas do Oceano.Portugal, navegante,descobridor de Ilhas,inventor de pimentas,descobre o novo homem,as ilhas assombradas,descobre o arquipélago no tempo.A súbitaApariçãodo pãosobre a mesa,a aurora,tu, descobre-a,descobridor de auroras.Como é isso?Como podes negar-teao ciclo da luz tu que mostras-tecaminhos aos cegos?Tu, doce e férreo e velho,estreito e amplo Paido horizonte, comopodes fechar a porta

Page 6: Jorge Amado e  Pablo Neruda sobre Álvaro Cunhal

aos novos racimos,ao vento com estrelas do Oriente?Proa da Europa, procurana correntezaas ondas ancestrais,a marítima barbade Camões.Rompeas teias de aranha que cobremtua fragrante copa de verdurae entãoa nós outros, filhos dos teus filhos,aqueles para quem descobriste a areiaaté então escurada geografia deslumbrante,mostra-nos que tu podesatravessar de novoo novo mar escuroe descobrir o homem que nasceunas maiores ilhas da terra.Navega, Portugal, a horachegou, levantatua estatura de proae entre as ilhas e os homens volvea ser caminho.A esta idade agregatua luz, volta a ser lâmpadaaprenderás de novo a ser estrela.

** Poema de Pablo Neruda inserido na campanha internacional para a libertação de Álvaro Cunhal, 1954.

Nesta campanha internacional participaram muitos outros intelectuais progressistas da época, entre os quais o escritor brasileiro Jorge Amado.