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A10 poder o Q DOMINGO, 7 DE NOVEMBRO DE 2010 ab Fotos Lo Politi FOTO 5.0 42.0 João Santana com a candidata Dilma em seu estúdio FERNANDO RODRIGUES ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR Dilma Rousseff ganhou a eleição para presidente, a primeira de sua vida. Mas seu marqueteiro, João Santana, venceu sua terceira disputa desse gênero. Ele é o profis- sional latino-americano mais bem-sucedido na área de co- municação política-eleitoral em anos recentes. Além de ser o responsável pela propaganda de Dilma, comandou também a reelei- ção de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006, e a eleição do presidente de El Salvador, Mauricio Funes, em 2009. Em uma de suas raras en- trevistas, Santana, 57, falou à Folha na quarta-feira em sua casa de veraneio, na Bahia. Sobre as razões de a dispu- ta ter sido remetida ao segun- do turno, aponta como prin- cipal fator o escândalo do es- quema de tráfico de influên- cia na Casa Civil, envolvendo Erenice Guerra, sucessora de Dilma naquela pasta: “O caso Erenice foi o mais decisivo porque atuou, nega- tivamente, de forma dupla: reacendeu a lembrança do mensalão e implodiu, tem- porariamente, a moldura mais simbólica que estáva- mos construindo da compe- tência de Dilma, no caso, a Casa Civil”. Santana filosofa sobre a troca de poder de Lula para Dilma. “As paixões popula- res são múltiplas porque o povo não é politicamente monogâmico. O povo é, por natureza, sincretista e politi- camente polígamo”, diz. Para ele, haverá um “vazio oceânico” com a saída de Lu- la. Mas haveria “na mitologia política e sentimental brasi- leira uma imensa cadeira va- zia” que ele chama “metafo- ricamente” de “cadeira da rainha”, e que “poderá ser ocupada por Dilma”. Arrisca um conselho aos políticos: “Não subestimem Dilma. Vale tanto para oposi- tores como para apoiadores da nova presidente”. O marqueteiro agora estu- da propostas para atuar em eleições presidenciais no Pe- ru, na Argentina, na Guate- mala, na República Domini- cana e no México. A seguir, trechos da entrevista de San- tana à Folha. A versão inte- gral pode ser lida em fo lha.com.br/po826409 . Folha - Quais as diferenças e semelhanças entre as duas últimas campanhas presi- denciais no Brasil? João Santana - Pontos em comum: o profundo desdém da oposição aos candidatos Lula e Dilma nas pré-campa- nhas; o susto que tomaram no início dos dois primeiros turnos com o crescimento rá- pido e vigoroso dos nossos dois candidatos; a falsa ilu- são de vitória que eles cria- ram na passagem do primei- ro para o segundo turno; e a desilusão e desfecho finais. Pontos de dessemelhança: apesar das aparências, a campanha de 2010 foi de uma complexidade estratégi- ca, e principalmente tática, imensamente maior do que a de 2006. Eu diria até que do ponto de vista do marketing esta talvez tenha sido a cam- panha presidencial mais complexa dos últimos tem- pos no Brasil. Por que Dilma não venceu no 1º turno? O eleitorado brasileiro é um dos mais maduros do mundo. Uma das provas é a consolidação cada vez maior da “cultura de segundo tur- no” nas eleições presiden- ciais. E ela atua, paradoxal- mente, junto com outro com- portamento aparentemente antagônico: a consagração do princípio da reeleição. O de deixar um bom gover- no continuar, mas, ao mes- mo tempo, não aceitar passi- vamente tudo o que ele faz. Parte do eleitorado tinha um fabuloso atalho, que era a candidatura Marina, para praticar o “voto de espera”, o voto reflexivo. Utilizou esse ancoradouro para mandar alguns recados para os prin- cipais candidatos. Quais recados? No nosso caso: “Olha, eu aprovo o governo de vocês, mas não concordo com tudo que acontece dentro dele; adoro o Lula, mas quero co- nhecer melhor a Dilma”. No caso do Serra: “Seja mais você mesmo, porque desse jeito aí você não me en- gana; mas, afinal, qual é mesmo esse Brasil novo que você propõe?; me diga lá: vo- cê é candidato a prefeito, a pastor ou a presidente?” Em que se sustenta a tese de que foi a mais complexa cam- panha dos últimos tempos? Tínhamos uma candidata que era uma pessoa de gran- de valor, enorme potencial, porém muitíssimo pouco co- nhecida. Tínhamos o desafio de transformar em voto dire- to, e apaixonado, uma pes- soa que chegava à primeira cena por força de uma esco- lha indireta, quase imperial. Tínhamos que transformar a força vulcânica de Lula em fator equilibrado de transfe- rência de voto, com o risco permanente de a transfusão virar overdose e aniquilar o receptor. Tínhamos a missão de fa- zer Dilma conhecida e ao mesmo tempo amada; uma personagem original, inde- pendente, de ideias próprias e, ao mesmo tempo, umbili- calmente ligada a Lula; ca- paz de continuar o governo Lula, mas capaz de inovar. O que mais facilitou e atrapa- lhou o trabalho? O que mais nos ajudou fo- ram as lendas equivocadas que a oposição foi construin- do sistematicamente. No início, construíram quatro lendas eleitorais: que Lula não transferia voto, que Dilma ia ser péssima na TV, que Dilma ia ser um desastre nos debates e que, a qual- quer momento, iria provocar uma gafe irremediável nas entrevistas. Nada disso ocor- reu, muito pelo contrário. Construíram, pelo menos, quatro lendas biográficas: que Dilma tinha um passado obscuro na luta armada, que era uma pessoa de currículo inconsistente, que teve um mau desempenho no gover- no Lula, e que o fato de ter ti- do câncer seria fatal para a candidatura. E construíram lendas polí- ticas. As principais eram que Dilma não uniria o PT, não teria jogo de cintura para as negociações e que não sabe- ria dialogar com a base. Outra vez, tudo foi por ter- ra. Gostaria adiante de co- mentar sobre novas lendas equivocadas que já começam a construir sobre o futuro go- verno Dilma. A oposição apostou numa guerra moral e religiosa. Isso não atrapalhou? De forma irreversível, não. Acho, inclusive, que no final o feitiço virou mais contra o feiticeiro. As questões do aborto e da suposta blasfê- mia foram apenas vírgulas que ajudaram a nos levar pa- ra o segundo turno. Repito, apenas vírgulas. O caso Erenice foi o mais decisivo porque atuou, nega- tivamente, de forma dupla: reacendeu a lembrança do mensalão e implodiu, tem- porariamente, a moldura mais simbólica que estáva- mos construindo da compe- tência de Dilma, no caso, a Casa Civil. Por motivos óbvios, vínha- mos ressaltando, com gran- de ênfase, a importância da Casa Civil. Na cabeça das pessoas, a Casa Civil estava se transformando numa es- pécie de gabinete paralelo da Presidência. E o escândalo Erenice abalou, justamente, esse alicerce. O que são as “novas lendas equivocadas” sobre Dilma? Eu acho necessário um hu- milde alerta: não subesti- mem Dilma Rousseff. Esse alerta vale tanto para oposi- tores como para apoiadores da nova presidente. Já começam a pipocar aná- lises apressadas de que Dil- ma dificilmente preencherá o grande vazio sentimental e simbólico que será deixado por Lula. Bobagem. A ausência de Lula deixa uma espécie de vazio oceâni- co. Lula é uma figura única, que uma nação precisa de sé- culos pra construir. Mas Dil- ma, em lugar de ser prejudi- cada por esse vazio, será be- neficiada por ele. É preciso também estar atento para o fato de que as paixões populares são múlti- plas porque o povo não é po- liticamente monogâmico. O povo é por natureza sincretis- ta e politicamente polígamo. E há na mitologia política e sentimental brasileira uma imensa cadeira vazia, que chamo metaforicamente de “cadeira da rainha”, e que poderá ser ocupada por Dil- ma. A República brasileira não produziu uma única grande figura feminina, nem mesmo conjugal. Dilma tem tudo para ocu- par esse espaço. O espaço metafórico da cadeira da rai- nha só foi parcialmente ocu- pado pela princesa Isabel. ENTREVISTA JOÃOSANTANA Caso Erenice provocou o 2º turno, diz marqueteiro Para Santana, ‘vazio oceânico’ deixado por Lula dará a Dilma chance de ocupar a ‘cadeira da rainha’ que existe ‘na mitologia política brasileira’ FOTO 4.0 34.0 O publicitário João Santana conversa com Lula e Dilma As questões do aborto e da suposta blasfêmia foram apenas vírgulas que ajudaram a nos levar ao segundo turno O caso Erenice foi o mais decisivo porque atuou de forma dupla: reacendeu a lembrança do mensalão e implodiu a moldura mais simbólica que estávamos construindo da competência de Dilma, a Casa Civil Não subestimem Dilma Rousseff JOÃO SANTANA

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Page 1: JOÃ CasoEreniceprovocouo turno,dizmarqueteiro...dois candidatos; a falsa ilu-são de vitória que eles cria-ram na passagem do primei-ro para o segundo turno; e a desilusãoedesfechofinais

A10 podero QDOMINGO, 7 DE NOVEMBRO DE 2010 ab

Fotos Lo Politi

FOTO5.042.0

João Santana coma candidata Dilmaem seu estúdio

FERNANDO RODRIGUESENVIADO ESPECIAL A SALVADOR

Dilma Rousseff ganhou aeleição para presidente, aprimeira de sua vida. Mas seumarqueteiro, João Santana,venceu sua terceira disputadesse gênero. Ele é o profis-sional latino-americano maisbem-sucedido na área de co-municação política-eleitoralem anos recentes.

Além de ser o responsávelpela propaganda de Dilma,comandou também a reelei-ção de Luiz Inácio Lula daSilva, em 2006, e a eleição dopresidente de El Salvador,MauricioFunes, em 2009.

Em uma de suas raras en-trevistas, Santana, 57, falou àFolha na quarta-feira em suacasa de veraneio, naBahia.

Sobre as razões de a dispu-ta ter sido remetida ao segun-do turno, aponta como prin-cipal fator o escândalo do es-quema de tráfico de influên-cia na Casa Civil, envolvendoErenice Guerra, sucessora deDilma naquelapasta:

“O caso Erenice foi o maisdecisivo porque atuou, nega-tivamente, de forma dupla:reacendeu a lembrança domensalão e implodiu, tem-porariamente, a molduramais simbólica que estáva-mos construindo da compe-tência de Dilma, no caso, aCasa Civil”.

Santana filosofa sobre atroca de poder de Lula paraDilma. “As paixões popula-res são múltiplas porque opovo não é politicamentemonogâmico. O povo é, pornatureza, sincretista e politi-camente polígamo”, diz.

Para ele, haverá um “vaziooceânico” com a saída de Lu-la. Mas haveria “na mitologiapolítica e sentimental brasi-leira uma imensa cadeira va-zia” que ele chama “metafo-ricamente” de “cadeira darainha”, e que “poderá serocupada por Dilma”.

Arrisca um conselho aospolíticos: “Não subestimemDilma. Vale tanto para oposi-tores como para apoiadoresda nova presidente”.

O marqueteiro agora estu-da propostas para atuar emeleições presidenciais no Pe-ru, na Argentina, na Guate-mala, na República Domini-cana e no México. A seguir,trechos da entrevista de San-tana à Folha. A versão inte-gral pode ser lida em folha.com.br/po826409.

Folha - Quais as diferenças esemelhanças entre as duasúltimas campanhas presi-denciais no Brasil?

João Santana - Pontos emcomum: o profundo desdémda oposição aos candidatosLula e Dilma nas pré-campa-nhas; o susto que tomaramno início dos dois primeirosturnos com o crescimento rá-pido e vigoroso dos nossosdois candidatos; a falsa ilu-são de vitória que eles cria-ram na passagem do primei-ro para o segundo turno; e adesilusãoe desfecho finais.

Pontos de dessemelhança:apesar das aparências, acampanha de 2010 foi deuma complexidade estratégi-ca, e principalmente tática,imensamente maior do que ade 2006. Eu diria até que doponto de vista do marketingesta talvez tenha sido a cam-panha presidencial maiscomplexa dos últimos tem-pos no Brasil.

Por que Dilma não venceu no1º turno?

O eleitorado brasileiro éum dos mais maduros domundo. Uma das provas é aconsolidação cada vez maiorda “cultura de segundo tur-no” nas eleições presiden-ciais. E ela atua, paradoxal-mente, junto com outro com-portamento aparentementeantagônico: a consagraçãodoprincípio da reeleição.

O de deixar um bom gover-no continuar, mas, ao mes-mo tempo, não aceitar passi-vamente tudoo que ele faz.

Parte do eleitorado tinhaum fabuloso atalho, que eraa candidatura Marina, parapraticar o “voto de espera”, ovoto reflexivo. Utilizou esseancoradouro para mandaralguns recados para os prin-cipaiscandidatos.

Quais recados?No nosso caso: “Olha, eu

aprovo o governo de vocês,mas não concordo com tudoque acontece dentro dele;adoro o Lula, mas quero co-nhecer melhor a Dilma”.

No caso do Serra: “Sejamais você mesmo, porquedesse jeito aí você não me en-gana; mas, afinal, qual émesmo esse Brasil novo quevocê propõe?; me diga lá: vo-cê é candidato a prefeito, apastor ou a presidente?”

Em que se sustenta a tese deque foi a mais complexa cam-

panha dos últimos tempos?Tínhamos uma candidata

que era uma pessoa de gran-de valor, enorme potencial,porém muitíssimo pouco co-nhecida. Tínhamos o desafiode transformar em voto dire-to, e apaixonado, uma pes-soa que chegava à primeiracena por força de uma esco-lha indireta, quase imperial.

Tínhamos quetransformara força vulcânica de Lula emfator equilibrado de transfe-rência de voto, com o riscopermanente de a transfusãovirar overdose e aniquilar oreceptor.

Tínhamos a missão de fa-zer Dilma conhecida e aomesmo tempo amada; umapersonagem original, inde-pendente, de ideias própriase, ao mesmo tempo, umbili-calmente ligada a Lula; ca-paz de continuar o governoLula, mas capaz de inovar.

O que mais facilitou e atrapa-lhou o trabalho?

O que mais nos ajudou fo-

ram as lendas equivocadasque a oposição foi construin-do sistematicamente.

No início, construíramquatro lendas eleitorais: queLula não transferia voto, queDilma ia ser péssima na TV,que Dilma ia ser um desastrenos debates e que, a qual-quer momento, iria provocaruma gafe irremediável nasentrevistas. Nada disso ocor-reu, muito pelo contrário.

Construíram, pelo menos,quatro lendas biográficas:que Dilma tinha um passadoobscuro na luta armada, queera uma pessoa de currículoinconsistente, que teve ummau desempenho no gover-no Lula, e que o fato de ter ti-do câncer seria fatal para acandidatura.

E construíram lendas polí-ticas. As principais eram queDilma não uniria o PT, nãoteria jogo de cintura para asnegociações e que não sabe-ria dialogar coma base.

Outra vez, tudo foi por ter-ra. Gostaria adiante de co-

mentar sobre novas lendasequivocadas que já começama construir sobre o futuro go-vernoDilma.

A oposição apostou numaguerra moral e religiosa. Issonão atrapalhou?

De forma irreversível, não.Acho, inclusive, que no finalo feitiço virou mais contra ofeiticeiro. As questões doaborto e da suposta blasfê-mia foram apenas vírgulasque ajudaram a nos levar pa-ra o segundo turno. Repito,apenas vírgulas.

O caso Erenice foi o maisdecisivo porque atuou, nega-tivamente, de forma dupla:reacendeu a lembrança domensalão e implodiu, tem-porariamente, a molduramais simbólica que estáva-mos construindo da compe-tência de Dilma, no caso, aCasa Civil.

Por motivos óbvios, vínha-mos ressaltando, com gran-de ênfase, a importância daCasa Civil. Na cabeça daspessoas, a Casa Civil estavase transformando numa es-pécie de gabinete paralelo daPresidência. E o escândaloErenice abalou, justamente,esse alicerce.

O que são as “novas lendasequivocadas” sobre Dilma?

Eu acho necessário um hu-milde alerta: não subesti-mem Dilma Rousseff. Essealerta vale tanto para oposi-tores como para apoiadoresdanovapresidente.

Já começam a pipocar aná-lises apressadas de que Dil-ma dificilmente preencheráogrande vazio sentimental esimbólico que será deixadoporLula. Bobagem.

A ausência de Lula deixauma espécie de vazio oceâni-co. Lula é uma figura única,que uma nação precisa de sé-culos pra construir. Mas Dil-ma, em lugar de ser prejudi-cada por esse vazio, será be-neficiada por ele.

É preciso também estaratento para o fato de que aspaixões populares são múlti-plas porque o povo não é po-liticamente monogâmico. Opovo é por natureza sincretis-ta e politicamente polígamo.

E há na mitologia política esentimental brasileira umaimensa cadeira vazia, quechamo metaforicamente de“cadeira da rainha”, e quepoderá ser ocupada por Dil-ma. A República brasileiranão produziu uma únicagrande figura feminina, nemmesmo conjugal.

Dilma tem tudo para ocu-par esse espaço. O espaçometafórico da cadeira da rai-nha só foi parcialmente ocu-pado pela princesa Isabel.

‘ENTREVISTA JOÃO SANTANA

Caso Erenice provocou o2º turno, diz marqueteiroPara Santana, ‘vazio oceânico’ deixado por Lula dará a Dilma chance deocupar a ‘cadeira da rainha’ que existe ‘na mitologia política brasileira’

FOTO4.034.0

O publicitário JoãoSantana conversacom Lula e Dilma

“As questões doaborto e da supostablasfêmia foramapenas vírgulas queajudaram a nos levarao segundo turno

O caso Erenice foi omais decisivo porqueatuou de formadupla: reacendeu alembrança domensalão e implodiua moldura maissimbólica queestávamosconstruindo dacompetência deDilma, a Casa Civil

Não subestimemDilma RousseffJOÃO SANTANA