luigi pirandello o turno

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O TURNO 10 Luigi Pirandello (1867-1936), prémio Nobel de Literatura em 1934, nasceu em Agrigento, na Sicília, mudando-se mais tarde para Roma, onde deu início à sua carreira literária. É au- tor de uma vasta e variada obra, centrada na temática da identidade e numa singular vi- são do mundo, fortemente irónica e satírica. Escreveu um grande número de novelas, co- ligidas sob o título de Novelle per un anno (15 1922-1937); sete romances, entre os quais figu- ram os célebres Il fu Mattia Pascal (1904), I vec- chi e i giovani (1913) e Uno, nessuno e centomila (1926); e inúmeras peças teatrais, reuni- das sob o título programático Maschere nude (1918-1935) e entre as quais se incluem Sei personaggi in cerca d’autore (1921) e Questa sera se recita a soggetto (1930). Deste autor a Cavalo de Ferro publicou os romances «O falecido Mattia Pascal», «Um, ninguém e cem mil» e «O turno».

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O TURNO

10

Luigi Pirandello (1867-1936), prémio Nobel de Literatura em 1934, nasceu em Agrigento, na Sicília, mudando-se mais tarde para Roma, onde deu início à sua carreira literária. É au-tor de uma vasta e variada obra, centrada na temática da identidade e numa singular vi-são do mundo, fortemente irónica e satírica. Escreveu um grande número de novelas, co-ligidas sob o título de Novelle per un anno (15 1922-1937); sete romances, entre os quais figu-ram os célebres Il fu Mattia Pascal (1904), I vec-chi e i giovani (1913) e Uno, nessuno e centomila (1926); e inúmeras peças teatrais, reuni-das sob o título programático Maschere nude (1918-1935) e entre as quais se incluem Sei personaggi in cerca d’autore (1921) e Questa sera se recita a soggetto (1930). Deste autor a Cavalo de Ferro publicou os romances «O falecido Mattia Pascal», «Um, ninguém e cem mil» e «O turno».

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LUIGI PIRANDELLOO TURNO

Tradução

Sara Ludovico

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Título original: Il turno

© Cavalo de Ferro Editores, 2011para a publicação em língua portuguesa

Revisão: Maria Aida MouraPaginação: Finepaper

1.ª Edição na colecção Gente Independente em Abril de 2011ISBN: 978-989-623-157-6

Quando não encontrar algum livro Cavalo de Ferro nas livrarias,sugerimos que visite o nosso site: www.cavalodeferro.com

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I

— É um rapaz d’ouro, sim, sim, um rapaz d’ouro, o Pepè Alleto! — Ravì não podia decerto negá-lo, mas quanto ao facto de lhe conceder a mão de Stellina, nem pensar! E, nem a brincar, permitia que se falasse do assunto.

— Sejamos sensatos!Seria por certo de seu agrado que o casamento da filha

tivesse o consenso popular, como ele próprio costumava dizer e, por isso mesmo, andava pela cidade abordando ami-gos e conhecidos para lhes pedir parecer. Mas todos eles, ao ouvir o nome do marido que pretendia dar à filhinha, estranhavam e pasmavam-se:

— Dom1 Diego Alcozèr?Nessa altura, Ravì continha, com dificuldade, um gesto

de irritação e tentava sorrir, repetindo de mãos erguidas:— Espere… Sejamos sensatos!Mas qual sensatez! Alguns chegavam até a perguntar-

-lhe se o que dizia era mesmo verdade:— Dom Diego Alcozèr?E então rebentavam numa gargalhada.Destes indivíduos Ravì afastava-se indignado, dizendo:— Desculpem-me, mas pensava que vossemecês fossem

pessoas sensatas.Porque ele, em boa verdade, pensava, com a mais profunda

das convicções, naquele partido como uma verdadeira bên-ção para a sua filhinha. E obstinara-se a convencer também

1 Na Itália meridional, «dom» (em italiano «don») é uma forma de tratamento de respeito, que se antepõe normalmente ao nome próprio da pessoa que se quer tratar com deferência, com um sentido análogo a «senhor». (N. da T.)

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os outros do mesmo, pelo menos aqueles que lhe consentiam o desabafo da exasperação que crescia de dia para dia.

— Quiseram a liberdade, Santo Deus! O rei que reina e não governa, um grande exemplo para todos nós, um exér-cito formidável, pontes e estradas, caminhos-de-ferro, telé-grafo, iluminação2 — coisas magníficas, magnificentíssimas, das quais eu também gosto, mas que se pagam caro, meus senhores! E as consequências, quais são? Duas, no meu caso. Número um: trabalhei como um arqui-escravo toda a vida e, para minha desgraça, muito honestamente, não fui por isso capaz de pôr de parte o suficiente para agora poder casar a minha filha de acordo com o seu desejo, que seria também o meu. Número dois: rapazes há poucos, quero dizer, rapa-zes que, ao casarem, possam assegurar a um pai previdente o bem-estar da filha. Até alcançarem um lugar ao sol, sabe Deus o quanto é preciso; quando o têm, pretendem dote e fazem muito bem. Sem trabalho, que espécie de pai, no seu perfeito juízo, lhes entregaria a filha? Portanto? Portanto, vos digo eu, o melhor é casar com um velho, se o velho for rico. E mais, em querendo, depois da morte do velho, há-de haver por aí muitos jovens.

Qual era a graça? Ele estava certamente a falar bem a sério. Pois bem:

— Sejamos sensatos…Se Dom Diego Alcozèr tivesse cinquenta ou sessenta anos,

não: dez, quinze anos de sacrifício seriam demasiados para a filhinha e ele nunca aceitaria aquele partido. Mas de anos Dom Diego tinha, bem feitas as contas, setenta e dois! E por-tanto não havia perigos de espécie alguma a temer. Mais do que um casamento, no fundo, seria quase uma pura e simples

2 Alusão, com alguma ironia, aos muitos problemas de ordem económica, social, políti-ca, cultural e religiosa do Reino da Itália, cuja unificação, em 1861, deixara por resolver e que se foram agravando sobretudo a partir do decénio 70-80. (N. da T.)

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adopção. Stellina entraria como uma filhinha na casa de Dom Diego: nem mais nem menos do que isto. Em vez de estar em casa do pai, estaria naqueloutra casa, com mais comodidades e como sua senhora absoluta, a casa de um cavalheiro, no fim de contas, sendo que isto ninguém ousaria pôr em dúvida. Portanto, qual sacrifício? Esperar ali ou acolá? Por esta mínima diferença, para quê esperar ali, em casa do pai, seria tempo perdido, não estando ao alcance dele fazer alguma coisa pela sua filhinha; ao invés, esperar acolá, três ou quatro anos...

— Faço-me entender? — perguntava a este ponto Ravì, fulgurado ele próprio com as suas razões e cada vez mais convencido.

Dom Diego Alcozèr tinha já desposado quatro mulhe-res? E então? Assim era até melhor! Stellina não seria assim tão tola a ponto de deixar (e fazia um par de cornos3) que o velho a enterrasse, como fez com as outras quatro: com tempo e com a ajuda de Deus ela iria, bem pelo contrário, mandar desta para melhor o corpo do marido benfeitor e então, aí sim, venha o moço! Bonita, rica, criada como uma princesinha, será um verdadeiro torrãozinho de açúcar e os rapazes, assim, aos enxames, como as moscas, de roda dela.

Parecia-lhe impossível que as pessoas não se convencessem com este seu raciocínio: era porfia, contumácia, ficarem-se apenas pela consideração do sacrifício momentâneo daquela boda com o velho. Como se, para além daquele escolho, para além daquela duna não houvesse mar aberto e boa fortuna! Para diante, para diante é que era preciso olhar!

Tivesse ele sido rico, pudesse ele ofertar com as suas pró-prias mãos a felicidade a sua filhinha — que grande feito!

3 Gesto de significado ofensivo, muito usado sobretudo no Sul de Itália. No entanto, é aqui usado pela personagem como gesto de superstição, indicando o seu desejo de afastar a má sorte evocada e de evitar o desfavorável desfecho mencionado. Equivaleria, assim, ao nosso gesto de bater três vezes na madeira. (N. da T.)

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— já se sabe, não daria a mão de sua filha àquele velhinho. Stellina, certamente, não estava capaz de, por enquanto, apreciar a sorte que ele lhe procrastinara e isto era natu-ral e, de certa maneira, até desculpável! Daí a poucos anos — estava certo disso — iria com certeza tecer-lhe louvores, agradecer-lhe e bendizê-lo. Daquele casamento não espe-rava, nem desejava, nada para si; queria-o somente para ela e considerava um dever seu enquanto pai, um dever de velho cansado e experiente do mundo, manter-se firme e obrigar a impreparada filhinha a obedecer. Porém, lamen-tava profundamente a desaprovação de outros homens com uma sabedoria de experiência feita como a dele.

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — lamen-tava-se por sua vez, em casa, a mulher de Ravì, a Senhora Dona Rosa, esboçando o sinal da cruz com um gesto que lhe era habitual e que repetia sempre que se sentia contrariada e atin-gida no peso da sua inerte carnadura amarela: — Deixem-no tratar disso. Tudo o que o Marcantonio faz, para mim, está bem feito — dizia aos parentes que, entredentes, lhe faziam notar a monstruosidade daquele projecto de casamento.

— Pecado mortal, Senhora Dona Rosa! — apressava-se a repetir-lhe Carmela Mèndola, porta-voz da vizinhança, quase que falando pela cana da garganta para não gritar, desferrando murros ribombantes no peito ossudo: — Se me permites, vou dizer-to em plena consciência: pecado mortal, que grita vingança frente a Deus!

E, toda suada, ia derretendo o corpo e enrodilhando debaixo do queixo as pontas do grande lenço vermelho de lã que punha na cabeça.

A Senhora Dona Rosa apertava os lábios, esticava o queixo, fechava os olhos e exalava pelo nariz um longo suspiro.

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II

Dom Diego Alcozèr já se fazia ver pela cidade na companhia do futuro sogro.

Marcantonio Ravì, bonacheirão, gordo e grosso, com o seu sanguíneo rosto todo ele barbeado e um palmo de papada debaixo do queixo, com as pernas que eram dois presuntos enterrados por baixo da imensa pança e que, ao caminhar, andava para lá e para cá com grande custo, parecia ter sido feito de propósito para compensar Dom Diego, delgadíssimo, pequenino, que arrancava a seu lado com lestos e breves passos de perdiz, levando o chapéu ora na mão, ora na pega da bengala, como se sentisse compra-zimento na exibição daquela única e solitária madeixa de cabelo, bem-criada e molhada numa água de tinta incerta (quase cor-de--rosa), que, volteada e distribuída, sabe-se lá com quanto estudo, lhe escondia o crânio da melhor forma possível.

Nem rasto de bigode e nem tampouco de pestanas em Dom Diego: nem um pêlo; os olhinhos calvos, desbotados, aquosos. As suas peças de roupa mais recentes tinham pelo menos vinte anos; não porque o seu proprietário fosse avarento, mas por-que, sempre bem protegidas das indesejadas pregas e do pó, estas nunca se gastavam e, bem pelo contrário, pareciam vesti-das pela primeira vez de cada vez que eram usadas.

Fora a isto que, ai de mim, se reduzira um dos mais irre-sistíveis conquistadores de donzelas de saiote do tempo de D. Fernando II, Rei das Duas Sicílias4: exímio cavaleiro, espa-

4 Depois do Congresso de Viena, o Reino de Nápoles e o Reino da Sicília foram reuni-dos num único Estado, o Reino das Duas Sicílias, que existiu de 1816 a 1861. Fernando II de Bourbon subiu ao trono em 1830 e governou até à sua morte, em 1859. (N. da T.)

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dachim, bailarino. Mas os seus méritos não se ficavam ape-nas por aqui, no campo, como costumava dizer, de Vénus e de Marte: Dom Diego falava latim expeditamente, sabia de cor Catulo e a maior parte das odes de Horácio:

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibo Finem di dederint...5 Ah, Horácio... Fora dele, do seu poeta predilecto, que Dom

Diego apreendera as normas epicuristas. Queria fruir até ao último momento da sua vida, odiava por isso a solidão, na qual se sentia frequentemente desassossegado por fantasmas assus-tadores, e amava a juventude, procurando a sua companhia e suportando-lhe filosoficamente as brincadeiras e os escárnios.

Ei-lo então ali: batia com a pega de prata da bengala de ébano na mesinha frente ao Café do Falcone, ao mesmo tempo que Ravì, arquejando e enfiando na nuca a chapeleta de abas largas, se deixava cair na cadeira que rangia e secava o suor da sua cara violácea.

— Para mim, é o costume — dizia Alcozèr ao empre-gado, — uma orchata6.

E acompanhava o pedido com uma risadinha fria, supér-flua, deixando ver que esfregava as mãozinhas delgadas e trémulas: — Eh, eh....

Sentados no Café, retomavam a conversa do casamento, interrompida de quando em vez pelos cumprimentos que Dom Marcantonio distribuía aos seus inumeráveis conheci-dos, em voz alta e com gestos largos:

— Beijemos as mãos7! Com a vossa graça! Ao seu dispor!

5 «Tu não perguntes (é-nos proibido saber) que fim a mim, a ti / os deuses deram...» Cf. Odes de Horácio, I, XI, versos 1-2. (N. da T.)

6 Refresco também existente em Portugal, muito popular sobretudo no século XIX, à base de leite de amêndoa. (N. da T.)

7 Forma de cumprimento antiga usada no Sul de Itália para exprimir respeito. Hoje em dia, a expressão sobrevive como saudação, mantendo o sentido original de respeito e de desejo de prestar homenagem. (N. da T.)

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Dom Diego não pudera ainda entrar em casa da esposa prometida. Stellina ameaçara que lhe arranharia a cara e que lhe tiraria os dois olhos, nem que fosse pelo simples atrevimento de se apresentar perante ela. Ravì, compreen-sivelmente, não contava a Dom Diego as ameaças que a filhinha lhe fazia, dizendo apenas que era preciso ter um pouco de paciência, porque as mulheres, Santo Deus, já se sabia...

— Muito bem, muito bem, assim que disser, ou melhor, assim que a Stellina permitir... intra paucos dies, espero, cupio quidem8 — respondia Dom Diego, tranquilo e sorridente. — Por agora, olhe, leve-lhe então isto aqui.

E retirava do bolso um pequeno estojo de veludo.Uma pulseirinha hoje, um relogiozinho de pérolas com

uma correntezinha de ouro ontem e, antes disso, um anel-zinho de pérolas e brilhantes e uma pregadeira de esmeral-das e um par de brincos... Alcozèr não gastava nada, mas não por avareza, tal acontecia apenas porque tinha muitas jóias da defunta esposa: que fazer então com elas? Dá-las à nova noiva, depois de limpas pelo joalheiro e de envolvidas em estojos novos.

Marcantonio Ravì desfazia-se então em louvores, em exclamações de admiração e agradecimentos.

— Mas desta forma, meu caro Dom Diego, deixa-nos confusos...

— Não fique confuso, seu burro! Tenho experiência do mundo e sei que os presentes são necessários.

Dom Marcantonio guardava a oferta no bolso e bufava da cólera causada pela irredutível obstinação da filhinha, que, só para não ceder, se resignava a ficar fechada num quarto, sitiada, recusando-se até a comer.

8 Citação latina: «daqui a poucos dias [...] pelo menos assim o espero». (N. da T.)

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A mãe ficava de guarda à porta daquele quarto, como uma sentinela. Vinham até ela os parentes, Mèndola e outra qualquer vizinha tentar, uma vez e outra, pô-la contra o marido, mas ela replicava com o gesto costumeiro, esbo-çando o sinal da cruz.

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Não me metam mais achas na fogueira, não lhe parece que aquela que tenho não me chega já, Dona Carmela? Não vêem o inferno em que estou metida?

— Tia Carmela9! — chamava Stellina, por trás da porta.— Minha rica filha, o que queres?— Diga à sua filha Tina que venha à janela, quero mos-

trar-lhe uma coisa.— Sim, coraçãozinho! Vou já dizer-lhe. Coragem, minha

menina! Toma este rolinho de carne, vou passar-to por baixo da porta. Come, que vais gostar!

— Muito obrigada, tia Carmela!— De nada, minha rica filha! E força, resiste! Só tens de

ter força...A Senhora Dona Rosa autorizava que tudo isto se pas-

sasse. E, todos os dias, assim que o marido regressava a casa, dirigia-lhe a sacramental pergunta:

— Vou? — E com a mão fazia o gesto de pôr a chave na fechadura para abrir a porta.

— Não! — gritava-lhe ele. — Fica aí, aí, aquela vil ingrata! Coração de pedra! Como se não o fizesse por ela, para o seu bem! Toma, mais um presente, uma pulseirinha... Mostra- -lha!

A Senhora Dona Rosa levantava-se, fechava os olhos, suspirava e, com o estojo na mão, entrava no quarto da filhinha.

9 Uma antiga e afectuosa forma de tratamento familiar, usada especificamente no Sul da Itália e que não corresponde concretamente ao grau de parentesco. (N. da T.)

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Stellina estava perto da cama, enrolada no chão, sobre o pequeno tapete, como uma cadelinha raivosa. Arrancava com a mão o presente à mãe e deitava-o para o chão.

— Muito obrigada, mas não o quero!A mãe perdia então a paciência com ela.— Dezasseis onzes10 de pulseira, sua tontinha! Não és

sequer digna de lhe deitar os olhos, valha-me Deus!Stellina, assim que a mãe saía, esfregava o cotovelo do

braço esquerdo na palma da mão direita e dizia com os den-tes cerrados:

— Roam-se todos! Roam-se!De seguida, voltava a alisar a roupa sobre as pernas, levan-

tava-se da posição sentada, vagueava um pouco pelo quarto e, finalmente, ali estava ela, nas imediações da cómoda a olhar de soslaio para a oferta recolhida do chão pela mãe. A curiosidade era mais forte do que a repulsa pelo velho obsequiador.

Olhava-se ao espelhinho basculante, recolhia os cabelos na nuca e sorria ante a própria imagem: o gracioso e fresco rosto abria naquele espelho dois límpidos e vivos olhos azuis. Com aquele sorriso, parecia sussurrar a si mesma: «Espertinha!» E vinha-lhe então a tentação de abrir aqueles estojinhos, de experimentar... Bem, pelo menos os brincos... Só por um minuto, os brincos.

— Não, este aqui é o anel... Vai ficar-me demasiado largo... Oh, não, serve-me à medida! Oh, vejam bem... Parece ter sido feito à medida do meu dedo...

E punha-se a admirar a mãozinha branca anelada, aproximando-a e afastando-a, dobrando-a ora aqui, ora ali. E depois as orelhinhas com os brincos, a seguir os pulso-zinhos com as pulseiras e depois, sobre os seios, a longa

10 Moeda do Reino das Duas Sicílias. (N. da T.)

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correntezinha de ouro do relógio; e, desta forma engala-nada, ia então fazer uma profunda vénia ao espelho do armário:

— Até mais ver, Senhora Alcozèr!E seguia-se uma grande gargalhada.

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III

— Pois sim... Está bem, eu não tenho pressa, meu caro Marcantonio — dizia, no dia seguinte, Dom Diego a Ravì, no Café do Falcone: — Mas, enfim... Não por mim, mas pela vizinhança, é que, debaixo das janelas de sua casa (talvez tenha o sono pesado e não ouça), quase todas as noites se fazem serenatas: guitarras e bandolins, eh, eh. Sim, eu sei, rapagões alegres... Que maravilha, a juventude! Sabe quem eles são? Os irmãos Salvo com os primos Garofalo e Pepè Alletto, guitarras e bandolins.

— Juro-lhe, meu Dom Diego, juro-lhe que não sei de nada, palavra de cavalheiro! Está a falar a sério? Serenatas? Deixe que eu trato disso. Agora mesmo irei mostrar-lhes como é, se...

— Mas onde vai?— À procura desses tais jovens senhores que acabou de

nomear.— Está doido? Sente-se aqui! Quer comprometer-me?— Vossemecê nada tem a ver com isto.— Como não tenho a ver com isto, seu burro? Ouça, só nos

vamos arreliar. Sem tantas fúrias. É meu costume fazer as coi-sas com calma. São jovens e cantam: juventude quer dizer ale-gria... A Stellina também sabe cantar, não foi o que disse? Pois bem, o canto agrada-me. Mencionei o episódio apenas pela vizinhança, que tem de ouvir aquilo todas as noites e... está a perceber, as más-línguas... Deveria aconselhar esses jovens a ter um pouco de paciência, estou a fazer-me compreender? Pois a sua puella11 já está noiva. Mas com boas maneiras, com calma.

11 Palavra latina que significa «rapariga», «menina». (N. da T.)

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— Deixe comigo.— Sem me comprometer, oh!Na noite desse mesmo dia, Marcantonio Ravì, ao esbar-

rar com Pepè Alletto na rua, chamou-o à parte e disse-lhe:— Caro Dom Pepè, peço-lhe com boas maneiras que

deixe em paz a minha filha; caso contrário, farei como o outro. Está a ver este bordão? Parto-o em dois na sua cabeça, assim que o vir passar novamente, com o nariz no ar, por baixo das janelas de minha casa.

Pepè Alletto olhou-o, primeiro aturdido, como se não tivesse compreendido; recuando depois um passo:

— Ai, sim? E se eu lhe dissesse...— Que é cunhado do Ciro Coppa, ão ão? — completou

assim, Ravì, a frase.— Não! — negou, aceso de desdém, o jovem. — Se eu lhe

dissesse que a mim, pessoalmente, bordões na cabeça nunca ninguém mos partiu.

Ravì desatou a rir.— Mas não, não vê que é brincadeira? Diga-me vosse-

mecê mesmo, Dom Pepè, em que termos devo rogar-lhe. Que quer da minha filha? Se não somos bichos, tentemos raciocinar. Vossemecê é nobre, mas escasso, caro Dom Pepè. E eu também sou um pobre homem escasso de dinheiros. Pobreza não é vergonha. Quero que saiba que gosto de si, mas venha cá, raciocinemos juntos.

Passou-lhe uma mão sob o braço e pôs-se a caminho com ele, prosseguindo:

— Quanto a dançar, eu sei que dança como se não fizesse outra coisa na sua vida que não isso mesmo. Até com esporas nos pés, ouvi dizer. E tocar, toca piano como um anjo... Mas, meu caro Dom Pepè, aqui não se trata de dançar, faço-me entender? Dançar é uma coisa, comer é outra. Sem comer, não se dança nem se toca. Tenho de ser eu a abrir-lhe os

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olhos? Deixe-me preparar este bendito casamento em paz e tente ajudar-me, com mil diabos! O velho é rico, tem setenta e dois anos e já desposou quatro mulheres... Vamos dar-lhe quantos? Mais uns três anos de vida? O porvir estará depois nas mãos de Deus. Diga-me lá uma coisa: qual poderá ser a maior ambição de um honesto pai de família? A felicidade da sua própria filha, não acha? Ora, quem é escasso é escravo12: escravidão e felicidade podem dar-se bem uma com a outra? Não. Ergo13, primeiro alicerce: dinheiro. Liberdade quer riqueza e, quando a Stellina for rica, não será ela depois livre de fazer o que quiser e o que lhe agradar? Pois então, onde íamos nós? Ah, sim, Dom Diego... Meu rico, meu caro Dom Pepè! E de riqueza tem ele muita, que podia mandar até ladrilhar toda a cidade de Girgento14 com moedas de doze taros15, o felizardo! Dom Pepè, aceite que lhe ofereça qualquer coisinha ali no Café...

Alletto, que parecia ter caído das nuvens, sem saber bem o que pensar daquele discurso, olhava para Ravì nos olhos, sorrindo.

Para dizer a verdade, nunca aspirara seriamente a obter a mão de Stellina, nem esta, por seu lado, lhe dera alguma vez motivo para que ele tivesse qualquer ilusão a esse respeito, não lhe dando mais do que aquilo que dera a tantos outros jovens que lhe faziam a corte. É verdade, a rapariga agrada-va-lhe, mas sabia que não estava em condições de manter uma mulher em casa e nem sequer pensava nisso. Vivia com a sua septuagenária mãe, que, na sua ingénua afeição, se obstinava a tratá-lo como se tivesse ainda dez anos. Pobre e

12 A partir de uma locução proverbial italiana, que liga a ideia de falta de fortuna pes-soal à privação de liberdade. (N. da T.)

13 «Por conseguinte» em latim. (N. da T.)14 Nome árabe da actual cidade de Agrigento, na ilha da Sicília, cidade onde se desen-

rola a acção deste romance. Esta antiga designação foi usada em Itália até 1927. (N. da T.)15 Antiga moeda do Reino das Duas Sicílias. (N. da T.)

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santa velhinha! Era preciso ter paciência com ela, até para a compensar de tudo aquilo que lhe coubera em sofrimento com o pai que, em poucos anos, afundara todo o patrimó-nio e que depois morrera de ataque de coração. Da ruína, salvara-se apenas, e por milagre, a velha casa onde vivia com a mãe.

Dona Bettina, nobre por nascimento, não permitia de forma alguma que ele, Pepè, se empregasse num desses sítios que o cunhado, Ciro Coppa, com os seus contactos, talvez lhe pudesse arranjar. Mas, no fundo, Pepè não se afli-gia muito com isso. Trabalhar não era o seu forte. Todas as manhãs passava pelo menos três horas frente ao espelho: um hábito! Que podia ele fazer? O banho, as longas unhas por tratar, depois pentear-se, aparar a barba, escovar-se. Mas quando, por fim, ao cair da tarde, saía de casa, parecia um pequeno lorde. No entanto, a sua velha casa, no Ràbato16, albergava invejosamente um miserável segredo feito dos mais obstinados sacrifícios e das mais duras privações.

Ah, se em vez de ter nascido naquela triste cidadezinha moribunda, tivesse nascido numa cidade viva, maior, quem sabe! Quem sabe! A paixão que tinha pela música talvez lhe abrisse um futuro. Sentia-a, a essa força ignota da alma: a força que o empurrava em certos momentos para a velha espineta esquecida pela mãe e que o fazia mover os dedos sobre o teclado, improvisando de ouvido minuetos e ron-dós. Certas noites, enquanto contemplava, na solitária ala-meda à saída da cidade, o grandioso espectáculo dos cam-pos espraiados lá em baixo e do mar aclarado pela lua lá ao fundo, sentia-se absorto em certos sonhos, angustiado por certas melancolias. Naqueles campos, uma cidade desa-parecida, Agrigento, cidade faustosa, rica em mármores,

16 Nome de um bairro histórico situado em Agrigento, cidade onde se desenrola a acção do romance. (N. da T.)

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esplêndida, e amolecida em sapientes ócios. Agora cresciam ali árvores, em volta dos dois únicos templos antigos que haviam sobrevivido; e o seu misterioso restolhar fundia-se com o contínuo marulhar das ondas à distância e com uma tremulação sonora incessante, que parecia crescer do brando lume da lua na sua quietude abandonada, mas que era o canto dos grilos, no meio do qual soava, de quando em vez, o lamentoso e remoto pio de um mocho.

Mas Pepè quase se envergonhava consigo mesmo des-ses seus estranhos momentos, temendo que os seus amigos deles se apercebessem. Que ridículo, ora essa! Não, chega, nem sequer se pensa nisso: ali, na vida tacanha, mesquinha e monótona de todos os dias, aquela era a realidade à qual era necessário saber adaptar-se.

Mas que lhe havia dito no entretanto Ravì? O que que-ria dele? Evidentemente que aquele homem suspeitava que, entre ele e a filha, havia algum entendimento, e que por causa disso ela não dava o seu consentimento para o casa-mento com Alcozèr. Pois bem, porque não deixá-lo naquele seu engano? Prometera agir com prudência e fazer com que também os seus amigos Salvo e Garofalo agissem de seme-lhante forma, obtendo como retribuição um convite para as bodas vindouras, em nome também de Alcozèr, que:

— Não é má pessoa, no fundo, coitadinho! — concluiu Marcantonio. — Que se pode fazer? Tem a mania das mulhe-res, não consegue viver sem elas. Mas esta, se Deus quiser, será a última! Podemos dar-lhe quantos? Mais ou menos uns três anos de vida? Eu já lhe disse: «Caro Dom Diego, somos da vida e somos da morte; está tudo em ordem!» E ele, é preciso dizer a verdade: logo! Nem me deixou sequer acabar a frase. De tal forma que, explico-me? Neste ponto, estamos em situação favorável. Não o digo por mim, digo-o por minha filha, entenda-se! Depois, a Stellina, pensará ela

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nisso... Fraquezas, Dom Pepè, dizem que o Dom Diego se casa porque, quando está sozinho, tem medo dos espíritos... Pois, pois! Eu cá creio é que de noite lhe aparece a Morte com asas. E que o leve para longe bem depressa, Dom Pepè! Eu próprio lhe daria uma mãozinha para ela poder carregar melhor com ele às costas... Pois sim, não pesa vinte quilos... Às vossas ordens e beijemos as mãos. Porém, silêncio, Dom Pepè, preste bem atenção.

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IV

Cerca de dois meses depois celebrou-se em casa dos Ravì a tão tormentosa boda.

Dom Diego vestiu pela quinta vez a sua longa jaqueta, já testemunha de quatro esponsais; mas isto não por avareza, apenas porque na realidade, ainda que de corte antiquado, esta estava praticamente como nova, pois fora conservada, anos a fio, em cânfora e pimenta na estreita e longa arca de nogueira parecida com um caixão. Lá em baixo, no pátio, as capitosas patas não o reconheceram naquele seu insólito arnês e, com os seus longos pescoços alongados, seguiram-no até ao portão gritando como que endemoninhadas.

«Eh, eh, são as almas das defuntas esposas!», pensou Dom Diego, torcendo o nariz. E, correndo, enxotava-as para trás com as mãos: — Xô! Xô!

Marcantonio Ravì alargara-se muito nos convites, dese-jando, pelo menos em aparência, o consenso popular. Ninguém lhe tirava da cabeça que a desaprovação de todos os amigos e conhecidos se devia à inveja da sorte que cou-bera à filha. E preparara-lhes uma lauta recepção, para des-peito ainda maior dos invejosos.

Dom Diego foi muito felicitado. Mas não, claro que não era velho — e ia acolhendo com a sua risadinha costumeira todas aquelas felicitações.

Para Stellina, ornada de branco e de flor de laranjeira, na pompa da festa a comiseração surgia de forma espon-tânea, escondida, depois das felicitações que cada um dos convidados lhe dedicava por conveniência, mas sem exces-siva efusão, pelo temor de fazer desabar sobre ela uma ou outra crise de choro.

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Não levou muito tempo até que Ravì começasse a sen-tir na sala um certo embaraço. O aspecto de Stellina enre-gelava a festa. Em vão procurou, a todo o custo, promover algum brio, incitando ora este, ora aquele. Mas, entre todos os convidados, somente Pepè Alletto, que viera com os três irmãos Salvo (Mauro, Totò e Gasparino), foi capaz de comu-nicar, por fim, algum fogo.

— Dom Pepè, cabe-lhe a si. Peço-lhe.Pepè sentiu nesta recomendação a confirmação daquele

curioso discurso que lhe fora dirigido tempos atrás. Sorriu, olhou para a melancólica noivinha que lhe pareceu ainda mais bela, no esplêndido candor da sua veste nupcial, e disse para consigo mesmo: «Porque não?» Sentou-se ao piano, tocou, cantou, incitou depois os outros a dançar e, por fim, conseguiu revivificar a pequena festa. Todos lhe ficaram gratos e, mais do que qualquer outro, Marcantonio. Aturdido pela alegria por ele mesmo promovida, olhava agora para Dom Diego, o velho noivo, como que por com-paixão, e para todos os outros, como se dissesse: «Vá, tenham piedade deste pobrezinho agora! Daqui a algum tempo, o verdadeiro noivo aqui vou ser eu.»

E, no encerramento da festa, da qual fora a alma, ou melhor, o herói, todos os convidados o admiraram tanto e tanto o louvaram, não só pela dança, como pela liderança do baile e pela forma como tocava piano, que, a certo ponto e irresistivelmente, lhe escapou a frase:

— Também sei falar francês...E foi aí que a tempestade, até então desviada, rebentou

de repente e inesperadamente. Dom Diego, para se mostrar galante, quis dedicar um copito de licor de rosas à esposa. Mas, coitadinho, aquela fora uma má inspiração, pois as mãos tremiam-lhe, também pela emoção, acabando por entornar algumas gotinhas no vestido da noiva, mas pouquinhas... Se as

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senhoras que estavam sentadas em volta tivessem fingido não ver, talvez Stellina tivesse conseguido conter-se por mais algum tempo, mas estas, muito pelo contrário, não o fizeram: muito cuidadosamente, ajoelharam-se diante dela com os seus lenci-nhos a limpar o vestido e então Stellina, já se sabe, irrompeu em soluços, caindo numa violenta convulsão de nervos.

Todos lhe acorreram. Gritava-se:— Dêem-lhe espaço! Espaço! Desabotoem-lhe o vestido!Dois jovens ergueram-na da cadeira e levaram-na para

outro quarto. Dom Diego ficara lívido, com o copo na mão, mais trémulo do que nunca, e deitou o resto no tapete: esta agora! Em vão, Dom Marcantonio gesticulava para restabe-lecer a ordem, para tranquilizar os convidados, repetindo: — A emoção, já se sabe! A emoção! — Ninguém o ouvia, pois todos estavam desolados com a sorte da pobre Stellina, cujos prantos e, ainda mais penosos do que os prantos, os risos convulsos, lhes chegavam através das portas fechadas.

Pepè Alletto, pálido, mortificado, deixou-se cair numa cadeira e, com os olhos semicerrados, produzia vento com o lenço. Duas gotas, que não eram de vinho, sulcaram-lhe o rosto até aos bigodes melancólicos.

— Que se passa, Pepè? — perguntou-lhe Mauro Salvo, vendo-o naquela postura.

Pepè levantou a cabeça e, abrindo forçadamente os lábios num sorriso vão, respondeu com voz vacilante:

— Nada... Sinto-me... Não sei...— Bebeste?— Fez-me tanta pena — disse Pepè, não se dignando

sequer a dar uma resposta àquela vulgar pergunta.— Tens razão, sim — retomou o amigo. — Também a

mim, mas vamos andando, levo-te a casa. Estás a ver? Já estão todos a ir-se embora...

Quis agarrá-lo pelo braço, mas Pepè retraiu-se, ressentido:

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— Não é preciso, deixa-me, obrigado! Aguento-me per-feitamente.

— A emoção!... Muitas desculpas... Obrigado pela honra... A emoção!... Boa noite e obrigado... Desculpem... — ia Ravì dizendo a este e àquele, distribuindo saudações, apertos de mão e vénias na salinha.

Os convidados foram-se embora em silêncio, pela escada abaixo, como cães maltratados. Soara já a meia-noite, os lam-pianistas tinham apagado as luminárias e somente a lua, que parecia correr atrás de uma ligeira cortina de nuvens, parecia aclarar quase imperceptivelmente a longa e deserta rua.

— Isto é que vai ser uma tragédia esta noite! — suspirou Luca Borrani, um dos convidados, numa voz demasiado alta, assim que transpuseram a porta.

Pepè Alletto, ao passar por ele, na companhia de Salvo, apa-nhou no ar a inconveniente alusão e gritou-lhe no focinho:

— Porco!Borrani deu-lhe o troco na hora:— Deixa-te disso, pulcinella17! — E um empurrão.Nesse momento, Alletto levantou a bengala e zás, na cabeça

de Borrani; logo a seguir, de repente, um estalo. Nasceu então um rebuliço, uma barafunda desencabrestada: braços e ben-galas pelo ar, estrépitos, gritinhos de mulher, luzes e gente em todas as janelas das casas das imediações, latidos de cães e todas aquelas pequenas nuvens que corriam no céu.

— Quem terá sido? Quem terá sido?Pela rua fora a multidão agitada afastava-se confusamente,

vociferando. E quem tinha acorrido às janelas com os lampiões, aí permaneceu intrigado durante mais algum tempo, espiando, fazendo suposições e comentários, até que a multidão não se dispersasse por completo no escuro, lá bem ao longe.

17 Máscara napolitana, de nariz aquilino e dupla marreca. É a personificação cómica do abandono popular a todos os instintos. (N. da T.)

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V

— Não senhor, sua besta! Eu é que vou ensinar-te como se faz nestes casos. Deixa-me ser eu a tratar-te disso.

Ciro Coppa, maciço, peitoris e costados poderosos, enor-mes, que o faziam parecer de estatura mais baixa, pescoço taurino, face morena e orgulhosa, contornada por uma curta e crespa barba, densa e muito preta, ampla testa cau-sada pela incipiente calvície, olhos grandes, pretos, cheios de fogo, passeava pelo seu escritório de advocacia com uma mão no bolso e outra num chicote, com o qual batia nervo-samente nas botas de caça. As bocas de duas grandes pisto-las surgiam-lhe resplandecentes sobre os quadris, sobrepon-do-se ao casaco.

Pepè Alletto fora ter com ele para lhe pedir conselho. Recebera nessa mesma manhã uma carta de Borrani. Este não pretendia desafiá-lo pelo insulto e pelo estalo dado à traição na noite anterior, já que — dizia — da cavalaria só faz uso quem tem medo e ele não pretendia esconder-se por trás de fintas e defesas, considerando uma brincadeira a luta de sabre na mão; por isso advertia-o: iria retorquir a pontapé onde quer que o encontrasse, mesmo que fosse na igreja.

Pepè Alletto teria preferido que Coppa fosse ao encon-tro de Borrani e fizesse com que este retratasse aquela carta, a bem ou a mal. Não que tivesse medo, ele não tinha medo de ninguém, mas tratar do assunto ao murro, como fazem os garotos na rua, enfim! Devido à sua compleição, tão miu-dinha, iria com certeza ficar a perder: comparado com ele, Borrani era um colosso. Além disso, desde quando é que se vira uma coisa assim? Pontapés, murros entre cavalheiros...

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— Deixa-me ser eu a tratar-te disso. — rebateu Coppa, detendo-se no meio do escritório e, com o chicote, indi-cando a secretária ao cunhado. — Ali há papel, caneta e tinteiro. Senta-te e escreve. Com um único golpe de caneta, trago-to de volta à razão.

— Então devo responder? — arriscou timidamente Pepè.

Ciro bateu o chicote com força na secretária.— Já te disse: senta-te e escreve, pateta! Vou ditar-te eu

essa resposta.Pepè levantou-se, perplexo, como se estivesse entalado

entre duas pessoas, e foi sentar-se na poltrona de pele frente à secretária, sobre a qual apoiou os cotovelos, segurando a cabeça entre as mãos e suspirando. Depois disse:

— Desculpa... Dás licença? Queria, enfim... Queria lem-brar-te que a...

— O quê?— A minha posição é de certa forma... Não sei... Delicada.

Porque eu, ontem à noite, em boa verdade... Por tantas razões... Talvez, enfim... Não estava bem em mim. Não que-ria agora comprometer...

— Qual comprometer! — exclamou Coppa, impacien-tado. — O insulto fez-te reagir? Sim, tanto é que lhe apoiaste uma chapada na cara.

— Já chega! — observou Pepè. — Ele podia desafiar-me e não o fez, portanto...

— Portanto vais fazê-lo tu! — concluiu Ciro, abrindo os braços.

— Eu? E porquê? — replicou, espantado, Pepè.— Porque és um cretino! Porque não percebes nada! —

gritou-lhe o cunhado. — Senta-te e escreve! Já vais ver.Pepè encolheu os ombros, assarapantado, perguntando-

-lhe depois com um ar desolado:

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— Que devo escrever no cabeçalho da carta?— Nada, nem ai nem ui! — respondeu Ciro, pondo-se

a passear, concentrado em si mesmo e esticando com dois dedos as tiras do chicote. Podes começar assim: A sua mis-siva... — a sua missiva... — é digna de uma pessoa vírgula... — a sua missiva é digna de uma pessoa... que devia estar... escreve!... confinada... con-fi-na-da, tudo pegado.

— Eu sei!— ... que devia estar confinada aos campos de trabalho forçados

e às penitenciárias vírgula... em vez de... em vez, com zê, de andar livre e solta... por entre o consórcio das pessoas civilizadas ponto de exclamação. Escreveste?

— Pessoas civilizadas! Escrito.— Parágrafo. Mas se o senhor é... mas se o senhor é um canalha

vírgula... eu sou um cavalheiro ponto e vírgula e não vou deixar... que me arraste para mais um escândalo ponto, continuando. E pois que me aconteceu a desgraça... assim mesmo! a desgraça de sujar a mão na sua face vírgula cabe-me a mim... cabe-me a mim, por respeito à minha pessoa e ao meu nome... escreveste?... reerguê-lo do lodo vír-gula onde é seu desejo esconder-se ponto, continuando. Farei por isso uso da minha generosidade... ge-ne-ro-si-da-de... enviando-lhe dois representantes meus... com esta alta incumbência vírgula... e que lhe restituirão a imunda missiva vírgula... que com tal velhaca ousadia me endereçou esta manhã. Ponto. Escreveste? Agora assina-a: G. nob. Alletto, nada mais. Assinaste? Volta a ler-ma.

Pepè releu a carta, engendrando uma forma de dar às palavras a sonora e desprezível expressão do cunhado.

— Óptimo! — aprovou este. — Escrita como Deus manda. Um sobrescrito e escreve o endereço. Encarrego-me eu de fazer com que seja entregue juntamente com a carta. Não te preocupes muito com os padrinhos: arranjo-tos eu num ápice. Nem pensar nos Salvo e nos Garofalo: são apenas estroinas que não servem a nossa causa. Vai agora lá acima,

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a casa da tua irmã Filomena que, coitadinha, há dois dias está pior do que o costume. Se o médico não ma cura ime-diatamente, vou acabar por ser obrigado a desancá-lo. Agora chega. Eu tenho de ir para o Tribunal; depois vou a correr para o campo, para arrancar as orelhas àquele bandalho do caseiro. Terras mortas aquelas, valha-me Deus, que não vai ver nem um tostão do soldo... Que tens? Que bicho te mor-deu? Medo?... Estás a olhar para mim como um estúpido...

Pepè estremeceu, surpreendido por aquela saída inespe-rada, assoprando, exasperado:

— Nada de nada! Medo?... A cabeça, Ciro! Sinto a cabeça... Não sei bem como, desde ontem à noite...

— Diz antes que estavas bêbado, meu filho, que fazes melhor figura! — observou Ciro com um ar de desdenhosa comiseração. — Vai, vai lá acima ter com a Filomena. Eu regresso à noite, diz-lhe. Tu, entretanto, fica lá em cima à espera dos dois amigos. Olhos bem abertos e nada de medos!

Retirou da gaveta da secretária alguns documentos e foi-se embora, com o chapéu desabado lançado sobre uma orelha e o chicote na mão, na direcção do Tribunal.

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VI

Pepè encontrou a irmã a deambular, quase no escuro, como uma sombra pelos quartos. Parecia já uma velhinha aos trinta e quatro anos: um mal, que os médicos não tinham ainda conseguido determinar, consumia-a há largos meses; mas deste mal ela não se lamentava, considerando-o um simples acrescento aos tantos infortúnios da sua vida. Na verdade, não se lamentava de nada, nem sequer de não poder ver a mãe, há já muitos anos em ruptura fatal com o genro. Seria tão grande o seu consolo se tivesse dela apenas um simples vislumbre! Mas Dona Bettina havia jurado que não voltaria a pôr os pés em casa de Coppa e ela, por causa do feroz ciúme do marido, nem pensar em sair de casa, não estando nem sequer autorizada a avançar o nariz uns centímetros para fora da janela. Já não se importava, já nem tampouco se afligia no seu íntimo pela tristíssima sorte que lhe coubera à nascença. A amargura de uma total remissão podia ler-se nos seus olhos silenciosos, constantemente absortos numa mágoa ignota, indefinida.

— Filomena, como te sentes?Ela encolheu os ombros e abriu ligeiramente os bra-

ços, em resposta. Pepè suspirou pelo nariz, retomando de seguida a fala:

— Não se pode abrir um pouquinho a janela?— Não! — gritou imediatamente Filomena. — Deus nos

livre, se ele o viesse a descobrir!— Não está cá, foi ao Tribunal, depois vai para o campo;

só volta esta noite...— Pepè, por favor, deixa a janela fechada. Sabe Deus

quanto me apetece apanhar uma lufada de ar. Mas, Pepè, seja

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como for já estou quase a chegar lá, já não me resta muito tempo nesta prisão. Agradeçamos a Deus, no céu e na terra!

— Não digas disparates! — exclamou Pepè comovido.— Só me custa — prosseguiu a irmã com a mesma voz

cansada — pelos meus filhos, pobres almas inocentes... Mas para mim será uma libertação... E também para ele, para o Ciro. E olha que não o digo por mal! Vocês não conhe-cem o Ciro: só vêem os seus defeitos... Este seu ciúme feroz, por exemplo... Mas gosta de mim, sabes, a seu modo gosta de mim, mas mostra-o desta forma! Não devia ter casado, é isso, nasceu para uma outra vida... Sei lá, para ser um explorador...

— Pois — aprovou Pepè, — entre os animais selvagens...— Não, não — corrigiu bondosamente Filomena. —

Quero dizer, nasceu para correr uma vida de riscos, uma vida livre... Tu sabes, ele é excessivo em tudo e, numa cidade pequena, entre a mesquinhez da vida de todos os dias, com as suas exuberâncias, por vezes ele até se torna ridículo... Quer resolver todas as injustiças... E uma pobre mulher como eu, aqui fechada, tem por força de viver numa contí-nua apreensão...

Pepè anuía com a cabeça e aquela sua aprovação era ao mesmo tempo um sinal de compaixão pela irmã; olhava através da penumbra o rico mobiliário do quarto, dizendo para consigo mesmo: «Fez de ti rica, mas que prazer reti-raste tu disso?»

Nesse mesmo instante entrou a criadita para lhe anun-ciar que alguém o esperava lá em baixo, no escritório. Pensou que fossem os padrinhos (tão rápido?) e apressou-se a descer, encontrando no escritório Dom Marcantonio Ravì, todo ele ofegante e agitado.

— Meu Dom Pepè, mas o que foi fazer? Não consigo pôr-me em paz!

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— O meu dever — respondeu prontamente Pepè, sério e comprometido.

— Mas como nasceu esta maldita briga? E agora o que vai acontecer?

— Nada... Não sei... Mas esteja descansado que a menina... isto é, senho...

— Diga menina, diga menina, Dom Pepè! Ah, se sou-besse... Tenho o inferno em casa. Gritos, brados, convulsões... Recusa-se determinantemente a seguir o marido! E ontem à noite ficou em casa, compreende? Meniníssima! Hoje foi a mesma história. Não quer nem sequer vê-lo! Dom Diego fica por trás da porta a ouvir e olhe que não ouviu poucas... Veja só! Eu... Eu, por mim, já não sei em que parede bater com a cabeça... Era só o que mais faltava, este inconveniente aqui... O vosso duelo! Têm por força de fazer este duelo?

— É necessário — respondeu Pepè, de rosto carregado, — somos homens... As coisas, de resto, chegaram a um tal ponto que...

— Nada disso! — interrompeu-o Dom Marcantonio. — Que homens e homens... Quem vos meteu isso na cabeça? Ontem à noite, meu caro Dom Pepè, vossemecê foi um anjo... E agora, pelo contrário, quer entrar num duelo?

— É necessário — repetiu Alletto com ar grave e também melancólico. — Crê, além do mais, que importa? Não me importo com mais nada já. Podem mesmo matar-me: retira-rei disso até algum prazer.

— Uma ova! — gritou-lhe Ravì, quase com as lágrimas nos olhos. — Importa a quem lhe quer bem... Desculpe-me se lho digo, mas vossemecê é um palerma! Acredita que tudo chegou ao fim? Dê tempo ao tempo, não se precipite... Deixe o duelo com quem tem nisso gosto, com quem lho meteu na cabeça... Diga-me a verdade, foi o seu cunhado? Foi ele, não é verdade? Foi o que logo imaginei!

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Não pôde continuar, pois no escritório entraram Gerlando D’Ambrosio e Nocio Tucciarello, os dois padri-nhos escolhidos por Ciro: D’Ambrosio alto, louro, com a cabeça enterrada entre os ombros, míope, o queixo e a bochecha esquerda deturpados por uma longa cicatriz; o outro, atarracado, barbudo, barrigudo, de passo esforçada-mente temerário.

— Pepè, às tuas ordens! A sua bênção, colossal Marcantonio! — saudou D’Ambrosio.

Nocio Tucciarello não disse nada, contraindo somente uma bochecha, como se esboçasse um meio sorriso e bai-xando quase imperceptivelmente a cabeça.

— Sentem-se, sentem-se — propôs Pepè, solícito, com os olhos postos ora em um, ora em outro.

— Muito obrigado — disse Tucciarello, repetindo com a bochecha o esgar anteriormente feito e levantando lenta-mente uma mão em sinal negativo. — Não, caro Dom Pepè, com a permissão do nosso caro senhor Dom Marcantonio, temos uma palavrinha a dar-lhe.

— É caso de vos abandonar? — perguntou angustiado Ravì a Alletto. E, dirigindo-se aos dois recém-chegados: — Sei de tudo, meus senhores, e a propósito disso mesmo tinha aqui vindo...

Tucciarello interrompeu-o, pousando-lhe levemente uma mão sobre o peito.

— Não há necessidade de acrescentar mais nada. Caro Dom Pepè, o assunto foi tratado de acordo com o nosso desejo. O amigo, assim que nos viu, mudou de opinião. Sim senhor. Disse-nos que era sua intenção fazer as coisas a bem. «E também a nossa!», respondemos-lhe nós, naturalmente. Resumindo, houve pouca conversa; apenas um brevíssimo encontro com os dois padrinhos adversários e ficou tudo combinado: arma, o sabre, até mesmo que não haja ordem