pareyson, luigi - estética - teoria da formatividade

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PAREYSON, Luigi - Estética - Teoria Da Formatividade

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  • CA U IVER8AL

    00 den a d or : Joo Ricardo Moderno

    - ESTTICA - A lgica da arte e do poema -A.O. Baumgarten2 - OBRAS ESTTICAS - Filosofia da imaginao c iador a s-Charles Baudelaire3 - ESTTICA - Teoria da Formatividade - L 'gi

    Dados Inter nacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cma r a Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Pareyson, Luigi, 1918-1991.Esttica: Teoria da formatividade / Luigi Pareyson ; traduo de ~,

    Ephraim Ferreira Alves. - Pe t rpolis, RJ : Vozes , 1993 .

    ISBN 85-326-134-X

    1. Arte 2. Esttica L Ttulo

    93-2137 CDD-111.85

    ndices para catlogo sistem t ico:1. Esttica: Filosofia 111.85

    2. Formatividade : Teoria : Esttica : Filosofia 111.85

  • Luigi Pareyson

    ,

    E8TETICATeoria da Formatividade

    Traduo:Ephraim Ferreira Alves

    +VOZESPetrpolis

    1993

  • 1988, Gruppo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sozogno, EtasS.p.A.

    Via Macenate 91- Milano

    Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa:Editora Vozes Ltda.Rua Frei Lus, 100

    25689-900 Petrpolis, RJBrasil

    Ttulo do original italiano: Estetica, Teoria della formativitReviso da traduo:

    . J oo Ricardo Moderno

    Diagramao:Ornar Santos

    eRosane Guedes

    ISBN 85 .326.1034-X (edio brasileira)

    Es te liv ro foi composto e impr esso nas oficinas grficas da Editora Vozes Ltda.,em setembro de 1993.

  • SUMRIO

    Apresent~o,7Prefcio, 9I. Estilo, contedo e matria na arte, 1711. Formao da obra de arte, 59111. Completude da obra de arte, 93IV. Exemplaridade da obra de arte, 133V. Interpretao e Contemplao, 171VI. Leitura, interpretao e crtica, 211VII. A arte na vida do homem, 263Notas, 307

  • APRESENTAO

    Na esttica italiana atual dois nomes so conhecidos do pbli-co filosfico brasileiro: Umberto Eco e Gianni Vattimo. Ambosdiscpulos de Luigi Pareyson. A tradio esttica italiana revelauma preponderncia de escritores - se no considerarmos a IdadeMdia e Zabarella (1533-89), -, e ainda escritores da fineza de umPetrarca e um Boccaccio, autores medievais que so os fundadoresda'modernidade esttica avant la lettre, e essa tradio se justificano estabelecimento de uma reflexo sensvel e cuidadosa sobre asobras de arte. Essa tradio fundada a partir da experinciaesttica curtida no formar, na interioridade do fazer artstico, naformatividade pareysoniana.

    A terra romnico-italiana desde Petrarca, passando por Leo-nardo da Vinci e O Tasso, at chegarmos a Leopardi, Manz oni,D'Annunzio e Pirandello sempre teve tal feio. Essa tradio secaracteriza por manter a reflexo esttica a uma certa distnciada pura reflexo filosfica construda sobre o conceito. As exceesso brilhantes: Gravina, Muratori, Vico, Croce, Gentile, Stefanini.E Pareyson.

    Portanto, Pareyson indiscutivelmente um filsofo da arte, e,como ele prprio defin ira , a filosofia da arte toda a filoso fiavoltada para a especulao terica sobre a arte. Suas obrasinserem-se nas melhores tradies filosficas, com liv ros primo-rosos, t ai s como "A esttica de Kant", "tica e estti ca em Schiller"ou "A esttica do idealismo alemo", entre outros.

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  • ssim, se o entendimento da filosofia e, principalmente, apresso filosfica mediao sensvel e imaginativa dos concei-

    os e da terminologia filosfica, Luigi Pareyson foi um filsofoigoroso e rigorosamente filsofo.

    Joo Ricardo ModernoMembro da Academia Brasileira de Filosofia

    Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UERJ

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  • PREFCIO

    A Esttica o campo em que o predomnio de Croce se mantevepor mais tempo inquestionado. Ainda logo aps a segunda grandeguerra, a esttica croceana constitua, na Itlia, a nica fonte deeferncia. Mas j comeavam a se fazer sentir novas exigncias:

    era sobretudo urgente discutir aqueles temas que a censuraroceana, com real prejuzo, afastara da Itlia. Alm disso, eraecessrio elaborar categorias capazes de atender s novas neces-idades da situao que se modificara. Eis o ponto de partida e o

    ambicioso projeto deste livro, que foi sendo publicado, sob a formae vrios artigos, em uma revista filosfica, entre 1950 e 1954.

    Ao invs de me deter em mais uma crtica esttica de B.roce, quero neste livro entrar imediatamente no tema propondo,

    ao invs dos princpios croceanos da intuio e da expresso, umaesttica da produo e da formatividade. Era mais que tempo, naarte, de pr a nfase no fazer mais que no simplesmente contem-plar , Se, apesar da pouca elegncia do termo, preferimos designaresta teoria como "esttica da formatividade" em vez de "esttica

    a forma", foi sobretudo por dois motivos. Em primeiro lugar,orque o termo "forma", por seus inmeros significados, acabaornando-se ambguo e corre o risco de p-assar pelo simples con-aposto de "matria" ou "contedo", evocando assim a vexataaestio do formalismo e do conteudismo. Mas aqui se compreen-

    e a forma como organismo, que goza de vida prpria e tem suapria legalidade intrnseca: totalidade irrepetvel em sua sin-laridade, independente em sua autonomia, exemplar em seu

    alor, fechada e aberta ao mesmo tempo, finita e ao mesmo tempocerrando um infinito, perfeita na harmonia e unidade de sua

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  • lei de coerncia, inteira na adequao recproca entre as partes eo todo. Em segundo lugar, para logo colocar em evidncia o cart erdinmico da forma, qual essencial o ser um resultado, oumelhor, a resultante de um "processo" de formao, pois a formano pode ser vista como tal se n o se v no ato de concluir e aomesmo tempo incluir o movimento de produo que lhe d nasci-mento e a encontra o prprio sucesso.

    Aqui convergiam duas grandes tradies. Primeiro, a concep-o antiga da arte como poiin , como "fazer", na qual, todavia,permanecia sombra a distino entre arte no senti do verdadeiroe prprio e a arte mera tcnica ; e, em segundo lugar , o conceitono menos antigo de organismo, como foi admiravelmente defi ni-do e entrege discusso de toda a histria da Filosofia por Platoe, sobretudo, Aristteles . Mas essa dupla tradio dever ia ser !\ )considerada'nos seus desenvolvimentos modernos . Por isso, de umlado a necessidade de se destacar, na arte, o aspecto tcnico efabril, demasiadamente negligenciado por Croce, conservandotodavia os traos caracterst icos especficos da artisticid ade; eaqui as observaes de Poe, Flaubert, Valry, Stravinski e muitosoutros semelhantes eram um estmul o para estudar o cartercompositivo e construtivo , calculado e improvisador ao mesmotempo, da atividade artstica . E, de out ro lado, a necessidade deestudar a vida das formas em quem analisou com mais agudeza,na atividade artstica e tambm na natureza , seu nascimento ecrescimento, seu amadurecimento e fecundidade , ou seja, emGoethe e em quem, no campo da filosofia , no lhe ficou atrs, umSchelling; e acompanhar os desenvolvimentos desse ponto de vistaem crticos como um Focillon, e em fils ofos contemporneos, comoBergson e Guzzo, ou como Whitehead e Dewey. A atividadeartstica, tal como se apresenta na arte, aparecia assim como aque combina em si mesma a "tentat iva" e a "organizao", e da oesforo por explicar como podem convergir termos to dspares eantitticos (e no apenas "conscincia" e "espontaneidade", comona esttica romntica, que no leva em conta o carter "tentativo"ou experimental da obra artstica e a organizao como intrnsecaao prprio "resultado"); e no modo como se procura resolver estadificuldade reside, provavelmente, mais que o centro da pesquisa,tambm o lado mais novo da teoria proposta.

    A teoria esttica apresentada neste livro queria ser rigorosa-mente filosfica, mas justamente por isso exclua que tivesse quepartir ou pudesse partir de um sistema filosfico pressuposto,como se se tratasse de da inferir as conseqncias ou aplicar osprincpios ao campo esttico. A Filosofia como tal tem um carter

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    jr

  • ao mesmo tempo concreto e especulativo: suas' afirmaes s tmvalor quando so o resultado de uma reflexo sobre a experi nciae somente se, quando nascidas precisamente no contacto com aexperincia, conseguem fornecer esquemas para interpret-la ecritrios para avali-la. Filosofia e experincia esto inseparavel-mente ligadas, e o crculo que entre ambas se estabelece no vicioso, mas extremamente fecundo, e condio essencial para avalidade do pensamento filosfico. A teoria esttica propostaneste livro toma como ponto de partida a experincia esttica paravoltar novamente a ela, segundo a supracitada idia da filosofiacomo baseada na inseparabilidade de experincia.e reflexo, e porisso aberta a sempre novos aportes e sempre novos desenvolvi-mentos. Ela nasceu de um contacto vivo com a experincia estticaassim como resulta tanto da atividade dos artistas, estudadostanto em seu trabalho em ato como nas suas preciosas reflexese declaraes a esse propsito, como da atividade dos leitores eintrpretes e crticos de arte, como tambm ainda da atitude dosprodutores e contempladores da beleza onde quer que se encontre,ou na esfera natural ou na prtica e intelectual.

    E como o ponto de partida desta esttica no foi um sistemafilosfico pressuposto, mas o recurso direto experincia , assimtambm seu ponto de chegada no poderia ser uma concepogeral da arte que se apresentasse como fechada e definitiva, masum conceito por assim dizer operativo: um conceito que, longe depretender encerrar e esgotar de uma vez por todas a essncia daarte, servisse como princpio regulador e orientador na experin-cia artstica. Em suma, um conceito que sendo o result ado de uma

    esquisa sobre a experincia esttica, com o intuito de lhe precis aro sentido e a possibilidade, estivesse ainda em condio de forne-er critrios vlidos para penetr-la e avali-la. A esttica propos-a neste livro no portanto uma metafsica da arte , mas umanlise da experincia esttica: no uma definio da arte consi-erada abstratamente em si mesma, mas um estudo do homemnquanto autor da arte e no ato de fazer arte. Em sntese, reflexoosfica sobre a experincia esttica e no intuito de problemati-

    z-Ia no seu conjunto, de mostrar-lhe a possibilidade, estabelecer-e o mbito e os limites, esclarecer-lhe o significado humano e

    esenvolver-Ihe a carga de universalidade.Da o car ter ao mesmo tempo sist emtico e aberto desta

    oria, e tambm a capacidade que tem para no se deixar envol-. r pelas teorias que se apresentarem diante dela, mas antes de

    . iz -Ia s como estmulo para se consolidar ainda melhor. Asras teorias ela estava, antes, em condio de oferecer uma

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  • rama conceitual em que situ-las, evitando assim rejeit-laspreconceituosamente, uma esfera de pensamento dentro da qualentrar em discusso ideal com ela em vista .de um recprocoaperfeioamento e aprofundamento. Isso explica como ela foicapaz de conservar a atualidade mesmo depois de algumas dca-das, resistindo a muitas e impetuosas vagas das diversas teoriasmarxistas, psicanalticas, sociolgicas, estruturalistas a respeitoda arte. Deve-se dizer que esta teoria prope um conceito de artebastante "clssico", que acolhe as justas exigncias daquelascorrentes, mas t ambm bastante "preciso", para servir de corre-tivo sua tendncia reducionista. Pois, como se sabe, na arte elasacentuam com muita intensidade e quase exclusividade o condi-cionamento histrico, material, social, antropolgico, cultural, atal ponto que as obras de arte so muitas vezes vistas comosimples documento, despojado daquela qualidade propriamenteartstica que, ao invs, a present e teoria no negligencia nunca.Antes exige e frisa, assim como est sempre pronta a reivindicaro carter profundamente 'humano da arte diante das teoriasformalistas que parecem por vezes florescer em certos ambientes.

    Mais uma palavrinha, lembrando o duplo carter deste livro,estritamente filosfico e ao mesmo tempo aberto a todos. Este um livro filosfico que, embora aborde os problemas da arte e daesttica, poderia ser inteiramente retranscrito em termos defilosofia geral, vlida tambm para outros campos da experincia,e pede-se aos leitores filsofos que o considerem sob este ponto devista. Mas - em conformidade com a idia segundo a qual ofilsofo, para abordar seus problemas, pode e deve tambm ser-vir-se da linguagem corrente - no recorre a uma terminologiatcnica e preestabelecida. E portanto pode ser lido por todos,tambm por aqueles que no possuem preparao estritamentefilosfica, sobretudo se souberem demorar-se de preferncia naspartes menos genricas e mais prximas sua experincia.

    Sem dvida, o livro muito sistemtico, e exige que o leitor oua leitora o considere nesta sua sistematicidade, se quiser com-preend-lo de modo estritamente filosfico. Mas est escrito de talmodo que pode ser lido tambm parcialmente ou por partes,isola damente, pois cada ponto uma espcie de tratado completoe independente, e mesmo cada pargrafo individualmente podeser visto e considerado de per si.

    Talvez convenha, j no Prefcio, mostrar um roteiro que sirvade guia para a leitura do livro. O conceito central ode formati-vidade, entendida esta como a unio inseparvel de produo einveno. ~'Formar" . significa aqui '!azer",inventando ao mesmo

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  • t empo "o mo do de fazer", ou seja, "realizar" s procedendo porensaio em direo ao resultado e produzindo deste modo obr as queso "formas". O livro estuda a formatividade em todo mbito daatividade humana, indicando em cada operao do homem aqu elecarter formativo pelo qual ela , ao mesmo tempo, produo einveno no sentido esclarecido. Mas demora-se mais a considerarsobretudo que caractersticas essa formatividade assume uma vezque se especifica na arte no sentido propriamente dito.

    Na arte, a formatividade se especifica dando-se um contedo,uma matria, uma lei. O contedo toda a vida do artista, suapersonalidade no ato de se fazer no apenas energia formante,mas justamente "modo de formar", "estilo", e de estarpresente naobra somente como estilo; o que convida a superar a velha querellede conteudismo e formalismo, porque na arte o esprito estilo eo estilo esprito, e permite evitar toda diatribe sobre o conceito de"expresso", porque na arte o dizer o mesmo que o fazer ou ofazer um dizer. A matria , necessariamente, matria fsica.Quando gente se d conta dessa necessidade, foge simplesmentea qualquer disputa sobre a tcnica e a exteriorizao, porque naarte formar significa formar uma matria, e a 'obra outra coisano seno matria formada. No processo artstico, o definir-seda inteno formativa e a adoo, interpretao e formao damatria so tudo uma s coisa, e na obra alma e corpo se identi-ficam e espiritualidade e fisicidade so a mesma coisa. A lei daarte portanto o seu prprio resultado. O artista no tem out r alei a no ser a regra individual da obra que vai fa zendo, nem outro ,guia a no ser o pressgio do que vai obter, de t al sor te que a obra, ao mesmo tempo, lei e resultado de um processo de formao .S assim que se pode compreender como na arte a tentativa e aorganizao no s se harmonizam, mas at m esmo se reclamammutuamente e se aliam, pois a obra atua como formante antesainda de existir como formada.

    Para captar o valor artstico da obra preciso ento conside-r-la"como forma formada e formante ao mesmo tempo, como leido processo de que res ultado: faz-la obje to de um a consider aon o t anto gent ica como sobretudo dinmica, porque a arte umfacere (fazer) que p erficere (aperfeioar), e a obra revela a prpriain substituvel perfeio somente a quem souber capt -la no pro-cesso com que se adequaciona consigo mesma. Somente ento aobra se mostra imodificvel no seu carter de "completude" efecunda em sua "exemplaridade", e se v como absurdo aprisio-n-la em um a pretensa insularidade, esquecendo-se das etapasdo processo que ela encerra e ao mesmo tempo inclui, e esquecen-

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  • do-se daquele tecido que une as diversas obras em continuidadede estilos, de escolas e tradies. E s ento se .pode verdadeira-mente "ler" e "julgar" a obra. Porque , por um lado, ler significaexecutar, e executar significa dar vid a e fazer a obra viver comoela mesma o quer; e, por outro lado, jul gar significa comparar aobra tal qual com aquilo que ela mesma pretendia ser. E tantouma coisa como a outra s so possveis quando se compreende aobr a como lei para si mesma.

    Se so formativas todas as atividades humanas, eis a possibi-lidade da beleza de cada obra , seja ela especulativa ou prtica ouutilitria, sem que isso leve ao estetismo. E t ambm formativoo conhecimento, e o conhecimento sensvel, que capta a "coisa",produzindo ou "formando" a sua imagem, de t al modo que estasaia "perfeita", bem acabada, ou seja, revele e capte, ou melhor,seja a coisa. O "processo" cognit ivo portanto "interpretao", emque se tenta produzir a imagem que exprima a coisa, e a "perfei-o" do conhecer a "contemplao" em que imagem e coisa seidentificam em uma nica forma. Da a possibilidade do belonatural, pois as coisas so belas enquanto vis tas como for mas, epara chegar a isso preciso saber interpret -l as, penetr -la s erepresent-las segundo uma im agem reveladora. Da tambmuma doutrina da interpretao, considerada como "conheciment odas formas por pessoas", is to , como algo pess oal e revelador aomesmo tempo, como que infinito. Isso por um lado abre o caminhopara uma teoria geral da interpret ao considerada como origi-nria e, portanto, como prpria de toda opera oe relao huma-na; e, por outro, explica a multiplicidade de interpretabilidadesdas obras de arte, e como a execuo de uma obra no pode sernem nica nem arbitrria, pois sempre uma pessoa concretaquem, do seu ponto de vista, procur a captar e dar vida obra comoela mesma o quer.

    Estas as linhas gerais do livro , o qual no ent ant o enfrentat ambm um grande nmero de problemas particula res da estti- .ca . Podemos citar como exemplos ao menos os seguintes. Antes demais nada os problemas apresentados pelo complexo e aventurosoit iner r io atravs do qual o art ist a , tent ando e corrigindo e refa-zendo, produz a obra: a inspirao, o exerccio, a improvisao; odilogo com a matria e o domnio sobre ela conseguido justamen-te atravs da obedincia que ela reclama; a tcnica e a linguagemda arte, e o aspecto herdado e transmissvel da arte; o processoartstico tal como se desenrola deste o "tema" ou "assu9to" at ao"esboo" e obra terminada. Alm disso, a relao da obra com osseus antecedentes e com a pessoa do artista e sua biografia; a

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  • relao entre os problemas tcnicos e os contedos espirituais; acorrespondncia entre o estilo e a humanidade histrica e pessoalque a ganha existncia artstica; o "mundo" do artista tal qual serevela na "forma". Enfrentam-se os problemas colocados pelaprpria realidade e vida histrica da obra de arte: a diviso edistino das artes: a possibilidade das tradues, transcries,redues, reprodues; as alteraes da consistncia fsica daobra, como por exemplo as mutilaes, o desgaste do material, oesquecimento do homem, a ptina do tempo; a formao do artistaatravs do ensino da tcnica, a orientao atravs das regras e aimitao de modelos; a prpria possibilidade da aprendizagem,das normas prticas e da imitao, e seus resultados positivos enegativos; as escolas, os estilos, os gneros, a tradio, e a possi-bilidade da histria da arte. E ainda: o carter comunicativo esocial da arte; suas relaes com a natureza e com as diversasatividades do homem, como as relaes entre arte e moral e entrearte e filosofia; o problema do estetismo em suas diversas formas;o interesse profundamente humano suscitado pela arte. Enfim, adistino entre esttica e pot ica e a multiplicidade das poticase dos pr ogramas de arte; sem mencionar os problemas relaciona-dos com o acesso obra de arte: o gosto em seu car ter universale pessoal; a possibilidade da interpretao da obra ar t stica; a"fidelidade" ou "liberdade" da execuo; a relao entre int erpre-tao pessoal e ojuzo quanto ao valor artstico; a execuo pblicada obra de ar te; o problema da crtica e da igual admissibilidadede qualquer mtodo crt ico; o carter simul taneamente histricoe especulativo da esttica.

    Este liv ro foi em parte preparado e em parte continuado poroutros livros do Autor: I problem i dell'estetica, Teoria dell'arte,L 'esperienza artistica (Milo, Marzorati 1966, 1965, 1974) e Con-versazioni di estetica (Milo, Mrsia 1966), os quais podem servistos como teis suplementos do presente livro.

    Luigi Pareyson1988

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  • I. ESTILO, CONTEDO E MATRIANA ARTE

    ESPECIFICAO DA ARTE1. Esttica, o que ? A esttica parece encontrar-se em uma

    daquelas regies perifricas da filosofia ou limtrofes a ela, emque no se sabe muito bem onde comea ou termina o discursofilosfico, e onde se pergunta se mais que o filsofo no tm odireito a falar os tcnicos e peritos em arte, neste caso os criadorese contempladores e juzes da beleza e da arte.

    Esta maneira de situar a esttica sem dvida interessantee sugestiva, para no dizer privilegiada, pois o pensamento filo-fico a aparece s voltas com questes concretas e bem determi-adas, de modo a revelar tambm ao profano sua utilidade eficcia. Os problemas vo sendo aos poucos apresentados a partira inexaurvel experincia da produo e contemplao do belo, ereflexo filosfica, depois de t-los focalizado, os resolve deles

    . ando resultados universais e sistemticos, e renovando-se con-

    . uamente a si mesma. Tampouco se deve recear que isso provo-e a perda da unidade e sistematicidade do pensamentoosfico, ou o faa cair no nvel de questes menores e secund-

    .0Antes de mais nada, a esttica no parte da filosofia, maslosofia inteira concentrada sobre os problemas da beleza e dae e, em segundo lugar, as questes concretas da esttica peloo de serem particulares no deixam em absoluto de ser filos-a e no ficam devendo em nada, quanto a dificuldades, s

    tes mais gerais, empenhadas como esto em uma maisdiata e peremptria verificabilidade das solues propostas.es, se pode dizer que a esttica um feliz exemplo do ponto de

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  • encontro dos dois caminhos da reflexo filosfica: o caminho paracima, que colhe resultados universais da meditao sobre a expe-rincia concreta, e o caminho para baixo, que utiliza esses mesmosresult ados para interpretar a exp erincia e resolver-lhe os proble-m as. A esttica mostra claramente, precisamente, que os doiscaminhos no podem separar-se um do outro, pois em filosofia aexper incia ao mesmo tempo objeto de reflexo e verificao dope nsamento; e o pensamento ao mesmo tempo resultado e normada interpretao da experincia.

    Mas esta maneira de situar a es ttica, se no for delineadacom clareza e vigorosamente subtrada a toda ambigidade, podedar margem a perigosos equvocos. evidente que da derivaprincipalmente a impossibilidade de deduzir artificiosamenteuma esttica de um sistema filosfico pressuposto, independente..me nte da experincia artstica , como se o filsofo pudesse enqua-drar os fenmenos da arte no leito de Procusto de uma filosofiapronta de antemo. Mas essa legtima reao contra a filosofiacomo abstrao vazia degenera muitas vezes em desconfianaquanto especulao pura, e o justo apelo ao contacto vivificantecom a experi ncia assume muitas vezes o aspecto de um abandonoao mais cru empirismo. Sob o pretexto da concretitude e daexper incia , d-se a palavra aos crticos e aos artistas, tirando-aao filsofo. O fato de ser artist a ou crtico passa a ser o nico ttulopara intervir em questes de esttica . A esttica acaba perdendoua natureza filos fica e, por is so me smo, perde tambm os seusimites e sua autonomia , identificando-se com o prprio exe rccio

    da cr t ica , ou com as poticas, ou seja, com os diversos programasa arte ou, pior, correndo o perigo de se tornar, como tantas vezes

    acontece, palco de divagaes inconcludentes ou diletantistas.De fato, no se pode corrigir o vazio verbalismo invertendo-o

    em puro empirismo: reservar a esttica aos artistas e aos crticosenquanto t ais um erro simtrico ao de permitir ao fils ofoconst ruir uma es ttica independentemente da experincia arts-ca, deduzindo-a de uma filosofia pressuposta. bem verdade

    que o filsofo, sozinho, no tem condies para formul ar umaes tica. Deve ele recorrer experincia estt ica , e os testemu-

    hos mais diretos dessa experincia lhe advm - no s doscontempladores e amantes do belo natural ou intelectual - masprecisamente dos artistas e dos crticos, cujas declaraes lhe so

    o apenas muito teis, mas at diria indis pensveis e essenciais,isto que o filso fo no consegue discorrer sobre a arte a no ser

    prolongando em um plano especulat ivo o discurso do artista e doc tico. as tambm verdade que os discursos sobre a arte, feitos

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  • pelos artistas e crticos enquanto tais, no so ainda filosficos, eintroduzi-los tais.e quais na esttica significa inverter os termose confundir os planos. Todavia, isso no quer dizer menoscabo doartista ou do crtico, ocupados na grandiosa tarefa de fazer ejulgara arte: ficar-se-ia sempre no campo das observaes, concretas etalvez at muito agudas, mas desligadas e rapsdicas, sem levarem conta a universalidade e a sistematicidade, muito teis aofilsofo, mas necessitadas de aprofundamento, de melhor focali-zao, de verificao, de elaborao especulativa e sistemtica.

    Urge pois reconhecer que a esttica filosofia, e somente soba condio de ser filosofia justifica a prpria pesquisa e mantmsua autonomia. Mas importa ao mesmo tempo reconhecer que istono quer dizer de modo algum que ela deva se perder nas nuvensda estril abstrao e renunciar a freqentao da experincia. Aesttica, como alis toda a filosofia, tem carter ao mesmo tempoconcreto e especulativo: concreto enquanto parte da experinciae a ela se atm, proibindo-se firmemente no lev-la em conta emsuas dedues, especulativo enquanto justamente para refletirsobre a experincia se ergue a um nvel acima dela, e a toma comoobjeto prprio, impedindo-se cuidadosamente de reduzir-se a elaou aoidentificar-se com ela; concreto enquanto faz surgir os seusprprios problemas unicamente do contexto vivo da experinciaconvenientemente interrogada, especulativo enquanto se fixacomo propsito definir o valor, o significado, o fundamento, a ~possibilidade da experincia mesma..E, o mais importante, essesdois traos caractersticos so indivisveis e, uma vez que tenhamsido artificialmente separados, degeneram e perdem a sua natu-reza. No verdadeira especuiao mas vazio exerccio abstrato 'aquela especulao que nose atm experincia, haurindo nelaos prprios problemas e a verificando as prprias solues, e nem concreteza mas confuso empirismo aquela que no mantm adevida distncia da experincia para refletir sobre ela e teorizaacerca de sua possibilidade. A esttica se constitui por este duploapelo ao carter especulativo da reflexo filosfica e ao seu vitalcontacto com a experincia. No esttica uma reflexo que, noalimentada pela experincia da arte e do belo, se reduza a merojogo de palavras, nem aquela experincia de arte ou de beleza que,no elaborada num plano especulativo, se limita a uma simplesdescrio.

    A esttica se situa portanto no ponto de conjuno de filosofiae experincia evitando cuidadosamente toda confuso e todailegtima intromisso. S a partir desse explcito esclarecimento que sua posio se torna um frtil ponto de encontro, em que de .

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  • um lado os filsofos e, do outro, os artistas e os historiadores e oscrticos, e ainda os psiclogos, socilogos, pedagogos, tcnicos,engenheiros etc. podem igualmente dizer uma palavra, cada umcom sua particular sensibilidade e competncia original, mastodos recordando que tm que fazer filosofia. E esta justamentecomo tal deve estar em contacto com a arte, isto , abeberar-senaquele fecundo ponto em que a filosofia e a experincia, precisa-o"mente porque se acham indissoluvelmente ligadas, tambm semantm nitidamente distint as e inconfundveis.

    /" 2. O problema da especificao da arte. Dizer que a esttica reflexo filosfica sobre a exper incia estt ica no quer dizer cairem um crculo vicioso, pois a estt ica parte da experincia integral "e esta, se devidamente questionada , h de mostrar, ela mesma, edestacar no seu imenso mbito os aspectos ou as regies que tmum carter esttico ou artst ico. De resto, a arte, como qualqueroutra atividade, jamais chegar ia a se definir como operao espe-cfica se toda a vida espiritual no a contivesse e preparasse decerto modo, se toda a experincia no ti vesse j ela mesma umcarter de esteticidade e ar t ist icida de. Como operao prpria dosartistas a arte no pode re sult a r seno da nfase in tencional eprogramtica sobre uma atividade que se acha presente em todaa experincia humana e acompanha , ou melhor, constitui todamanifestao da atividade do homem.

    Essa atividade, que de modo genrico inerente a toda aexperincia e, se oportunamente especificada, constitui aquilo quepropriamente denominamos arte, a "formatividade", um certomodo de "fazer" que, enquanto faz, vai inventando o "modo" defazer: produo que , ao mesmo tempo e in dissoluvelmente,inveno. Todos os aspectos da operatividade humana, desde osmais simples aos mais articulados, tm um car t er ,.ineliminvele essencial, de formatividade . As atividades hum an as no podemser exercidas a no ser concret izando-se em operaes, i. , emmovimentos destinados a culmin ar em obras. Mas s fazendo-seforma que a obra chega a ser tal, em sua indivdua e irrepetvelrealidade, enfim separada de seu autor e vivendo vida prpria,concluda na indivisvel unidade de sua coerncia, aberta aoreconhecimento de seu valor e ca paz de exigi-lo e obt-lo. Nenhu-ma atividade operar se no for t ambm formar , e no h obraac abada que no seja forma.

    Toda operao implica antes de mais nada um "fazer". No seopera a no ser executando, produzindo e realizando. H opera-es em que esse aspecto executivo e realizativo evidente; d navista, por assim dizer. Por ex ., na produo de objetos. .Menos

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  • evidente, mas nem por isso menos eficaz, em outras operaes,como por ex. quando se trata s de pensar ou de agir. Tambm oexerccio do pensamento e a atividade moral exigem um "fazer",sem o que no se concretizariam em atos prticos ou de pensa-mento. No se pode pensar a no ser efetuando movimentos depensamento com que se passa de juzo a juzo e de raciocnio araciocnio, sempre ligando e sistematizando, i. , realizando umatotalidade completa e, sobretudo, formulando explicitamente ospensamentos, i. , realizando-os em proposies. E a vida prticase desenrola atravs de movimentos que definem e delineiam, oumelhor, representam ideais, fins, tarefas, intenes, e atravs demovimentos que executam e realizam atos, hbitos, caracteres.De sorte que tanto o pensamento como a vida moral exigem oexerccio daquela atividade realizadora e produtiva sem a qualnenhuma obra possvel. .

    Alm disso, se as obras so sempre singulares, pode-se afirmarque impossvel faz-las sem que ao faz-las se invente o mo do 'de faz-las. Seja qual for a atividade que se pense em exercer,sempre se trata de colocar problemas, constituindo-os original-mente dos dados informes da experincia, e de encontrar, de sco-brir, ou melhor, inventar as solues desses problemas. Sempr ese trata de concluir e levar a cabo operaes, ou seja, de produzir ,realizando, efetivando, executando e de concluir o movimento deinveno em uma obra que se esboa e se constri com base numalei interna de organizao. Sempre se trata de fazer, inventa n doao mesmo tempo o modo de fazer, de sorte que a execu o seja aaplicao da regra individual da obra no prprio ato qu e a su adescoberta, e a obra "saia bem feita" enquanto, no faz-la, seencontrou o modo como se deve fazer.

    Em suma, o operar, seja qual for a ativida de que nele seespecifica, sempre implica aquele processo de produo e inven oem que consist e o formar, e todas as obras, enquan to bem feitas ,so for m a s, dot a da s de independncia e exemplarida de.

    3. Carter esttico de toda a experincia. Que a arte propria-mente dita deva surgir dessa genrica e comum formatividade o que se v clar amente sobr et udo pelo fato de ser just am en te combase nesta ltima que se pode dizer que h um aspecto inelimi-navelm ent e "a rtstico" em to da a vida es piritual. Justamenteporque em toda a operosidade humana est presente um ladoinven t ivo e inova dor como condio primeira de toda realizao,precisam ent e por isso pode haver arte em toda atividade humana,ou melhor, existe a arte de toda atividade humana. Precisa-se dearte para fazer qualquer coisa: sempre que se trate de "fazer com

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  • arte", isto , de alimentar com a inveno e levar a bom termo todo"fazer" que est presente na operao dada. Em suma, desde astcnicas mais humildes at s m aiores invenes, sempre h oexerccio da formatividade e, portanto, exigncias de arte.

    Alm disso, justamente o car ter formativo de toda a opero-sidade humana que explica como se pode falar de beleza a prop-sito de qualquer obra: se no h obra que no seja ao mesmo tempo 'forma, compreende-se como qualquer obra bem feita sempreigualmente bela. Assim como a realizao de qualquer valor impossvel sem a realizao de um valor artstico, assim tambma .avalia o de qualquer obra impossvel sem uma avaliaoesttica. Quando se diz, por exemplo, que um ato moral, .umavirtude, um carter, ou ento um raciocnio, uma demonstrao,um ato de pensamento so belos, pode-se pensar que nesses casosa predicao da beleza tem carter exclusivamente metafrico edestituda de sentido prprio. De uma ao que tenha claro valormo ral se diz muitas vezes tratar-se de uma bela ao, e falandode almas boas se costuma dizer que so adornadas de virtudes , ede uma pessoa disposta benevolncia , cordialidade e jovia-lidade, se diz que tem um belo carter. E muitas vezes se falatambm de um belo raciocnio, de uma demonstrao singular-mente bem feita, conduzida com uma linearidade de desenvolvi-mento e uma riqueza de argumentao que conciliam em sbioequilbrio a simplicidade e a completude, diz-se que tem apreci-vel elegncia, e numa obra de pensamento se pode admirar aharmonia da construo em que circula, com sagaz ductilidade, opensamento, penetrando e desentranhando o argumento e aomesmo tempo abrangendo tudo com firme e indivisvel coeso.

    Nesses casos se d certamente uma aval iao esttica, e comrazo se usa tal linguagem, porque se trata de obras bem feitas ,e a obra, seja qual for a atividade que nela se encer re, no podesair bem feita a no ser fazendo-se forma, definida e coerente,porque nenhuma atividade, seja ela moral ou especulativa, podeconcretizar-se em obras a no ser exercendo aquele processo deinveno e produo em que consiste o formar. Ora, o carter daforma justamente a contemplabilidade, ou seja, a beleza, de talsorte que o prprio processo de interpretao com que se chega aum juzo moral ou especulativo acerca de uma obra prtica ou depensamento termina topando com o carter de forma que elanecessariamente possui, e portanto acaba em um juzo esttico.

    Se no h obra que, embora no explicitamente artstica, noseja forma , o prprio ato com que se aprecia e avalia como obrafaz com que ela seja avaliada e apreciada como forma: a avaliao

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  • esttica coincide com a apreciao especfica sem porm identifi-car-se com ela. Considerar o valor prtico e especulativo de umaobra moral ou de pensamento significa tambm considerar o valoresttico, porque significa reconhecer que s com um esforo deinveno e produo foi possvel chegar a realizar a obra, i. , scomo forma ela e pode ser obra, e precisamente obra moral e depensamento. Eis por que, justamente enquanto se capta o singu-lar valor moral ou especulativo realizado por tais obras, muitasvezes se fica parado contemplativamente diante delas: o valorteortico ou prtico dessas obras no se me revela a no ser queeu veja, ao mesmo tempo, o seu valor esttico. V-las como obrassignifica tambm v-las como formas e, portanto, contemplar suabeleza e gozar com tal contemplao. Eis um caso em que o belocoincide cada vez com o bem e com o verdadeiro sem pormanular-se com isso, e em que o bem e o verdadeiro se manifestamcomo beleza sem porm com isso reduzir-se a ela. No existeconfuso de valores, e pode-se falar de beleza do bem e do verda-deiro, ou, melhor, de bondade e verdade como beleza, i. , pode-seestender a arte a toda atividade e a beleza a toda obra, sem comisso cair no esteticismo.

    Nes sa formatividade comum a todos os aspectos da vida espi-r itual r es id e o' lado necessariamente "artstico" de toda operaohumana . E isso no obriga a afirmar que todo o es p rit o seja I Isimplesmente arte, como tambm impe que a arte propriamentedita tenha garant ida a possibilidade de no se confundir com asout ras ativid ades e instituir-se como operao autnoma e espe-cfica. E o princp io dess a autonomia e especificao deve se rprocurado e defini do cuidadosamente , com a conscincia de quejustamente porque a arte no poderia nunca surgir se toda a vidaespiritual j no a preparasse com sua comum formatividade,justamente por isso a arte deve ser procurada em uma esfera emque essa formatividade possa adquirir um car ter determinado edistinto, com uma especificao prpr ia e uma insuprimvel au-tonomia .

    4. Especificao e concentrao das atividades humanas emtoda operao. O problema da autonomia e especificao da arteno pode ser enfrentado sem aludir-se, ao menos sumariamente,ao maior e mais complexo problema da unidade e distino dasatividades humanas. Se a arte se determina especificando aformatividade comum a toda a vida espiritual, existe a umprincpio de distino entre as atividades, pelo qual ela umaa ividade distinta, e sua operao no a da cincia nem dafilosofia ou da moral. Se a formatividade, cuja especificao d

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  • lugar arte, inerente a toda a vida espiritual, existe umprincpio de unidade entre as atividades, e graas a este todaoperao, seja qual for a atividade que a se especifica,envolvetodavia o exerccio de todas as outras.

    Se no possvel exercer as atividades humanas a no sermediante operaes, estas operaes por sua vez no podem serdefinidas a no ser com um ato que ao mesmo tempo liga e desligaas atividades. Toda operao humana sempre ou especulativaou prtica ou formativa mas, seja qual for a sua especificao, sempre ao mesmo tempo tanto pensamento como moralidade eformatividade. Uma operao no se determina a no ser especi-ficando uma atividade entre as outr as, mas no pode faz-lo a noser concentrando em si todas as outras simultaneamente. Em todaoperao existe, ao mesmo te mpo, especificao de uma atividadee concentrao de todas as atividades: esta a estrutura do operar,em que especificao e concent rao das atividades vo paripassu,de tal sorte que uma no pode andar sem a outra,

    A especificao das atividades no implica de modo algumuma originria "distino" entre elas, nem sua concentrao selimita a ser uma "com-presena" na vida espiritual. A especifica-o consiste no acentuar uma atividade a ponto de torn-la pre-dominante sobre as outras e intencional em uma operao. Asatividades remanescentes se subordinam quela que desse modose especificou e conspiram em sua inteno. Mas mesmo que assimrenunciem a concretizar-se em uma operao especfica , nem porisso deixam de agir segundo a prpria natureza. Ao contrrio,embora subordinadas , so constitutivas da atividade especifica-da, e esta, por sua vez , justamente enquanto ope rao especfica,no pode prescindir de sua cont r ibuio. Nenhuma das atividadeshumanas consegue especificar-se em uma operao seIJ1 a conspi-rao, a contribuio, o apoio e o controle de todas as outras, cadauma das quais , no mesmo ato de subordinar-se a ela , continuatodavia agindo em seu carter prprio: no se pode pensar sem aomesmo tempo agir e formar , nem agir sem ao mesmo tempopensar e formar, nem formar sem ao mesmo tempo pensar e agir.Conforme a posio que assumem dentro de uma determinadaoperao, as atividades humanas se fazem portanto, a cada vez,especficas ou comuns, predominante s ou subordinadas, intencio-nais ou constitutivas. '

    A necessidade da concentra o de todas as atividades em umaoperao especfica garantida pela unitotalidade da pessoa, eesta, como autora da prpria operao, coloca-se nela por inteiro,com todas as suas possibilidades e atitudes prprias. Por outro

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  • lado, se o exerccio de uma atividade exige que ela se especifiqueem uma operao, isto no possvel sem um ato da pessoa queimprime ativamente a toda a sua espiritualidade prpria umadireo especificante, vendo nisso uma tarefa a cumprir. S umafilosofia da pessoa tem condies para resolver o problema daunidade e distino das atividades, por explicar, com base naindivisibilidade e na iniciativa da pessoa, como que toda opera-o exige sempre simultaneamente a especificao de uma ativi-dade e a concentrao de todas as outras. Se o operar fosse doesprito absoluto, no haveria motivo para distino entre asatividades, e todas se reduziriam a uma.

    5. A arte como formatividade pura, especfica e intencional. Eis motivo pelo qual a ormativiilae, emoora 'se: estenda a toda a

    ida espiritual, pode-se especificar em uma operao intencionale dar assim lugar arte propriamente dita.

    Toda operao humana sempre formativa, e at mesmo umaobra de pensamento e uma .obra prtica exigem o exerccio daormatividade. Um ato virtuoso deve ser inventado como algo

    igido pela lei moral em uma determinada circunstncia, e deveexecutado e realizado com um movimento que ao mesmopo invente o melhor modo para efetiv-lo.' Ao se colocar e

    olver um problema, ao deduzir de um princpio as conseqn-ia , ao efetuar uma demonstrao qualquer, ao encadear racio-" .os em um todo sistemtico, preciso realizar e executar

    imentos de pensamento, e com o ato de inveno descobrire es qu~ a razo impe no caso determinado, e formulare amente os pensamentos. Tanto o pensamento como a ao,

    o, exigem fora produtiva e capacidade inventiva, pois asa es especulativas e prticas so constitudas por uma ati-

    ,.., r l n ,.,IQ" formativa que no campo especfico executa e produz asao mesmo tempo em que inventa o'modo como .sedevem

    a arte essa formatividade, . q~.e' r jg~~$J~L..toda ~ :Y~q.?e possibilita o exerccio das olitrs .oper a es especfi- .pecifica por sua vez, acentua-se no predomnio que=-or'I~,...uma a i todas as outras atividades, assume.umatendncia

    mo independente, direo diferente, e, ao invs deras atividades no exerccio das respectivas opera-~".A.-L..&. ,,-._ ~ ~ ...- e por si mesma, fazendo-se intencional e fim em si

    e a pessoa no se acha necessitada para formar, noa e agir, mas forma unicamente por formar, e

    a a o mar e pode formar. as obras especulativasa bo dina o e con . li i o, porque nestas se

  • forma para pensar e agir, e necessrio formar para poder pensare agir; j na obra de arte, porm, o formar intencional e predo-minante, porque nela se forma por formar, e o pensamento e o atose acham subordinados ao fim especfico da formao. Se todaoperao sempre formativa , no sentido de no poder ser elamesma sem o formar, e no se pode pensar ou agir a no serformando, j a operao artstica form ao, no sentido de se

    . propor intencionalmente formar, e nela o pensar e o agir intervmexclusivamente para lhe possibilit ar ser exclusivamente forma-o. A operao artstica um processo de inveno e produo,exercido no para realizar obr as especulativas ou prticas ousejam l quais forem, mas s por si mesmo: formar por formar, .formar perseguindo somente a forma por si mesma : a arte puraformatividade.

    Certamente, essa "intencionalidade" nada tem a ver com avontade prtica, pois no basta querer faz er arte par a efetivamen-te faz-la, nem se pode propriamente dizer que para poder fazerarte seja necessrio querer faz-la. Naturalmente, como se tratade um ato de iniciativa da pessoa , tambm o querer se acha aquienvolvido. Mas um ato profundo e total, que tem ressonnciasno s no campo moral, mas em toda a vida espiritual humana. um ato pelo qual toda a vida do artista se coloca sob o sinal daformatividade : pensamentos, reflexes, atos, costumes, aspira-es, afetos, numa palavra todos os infinitos aspectos de suaexperincia assumem uma direo formativa, perseguem um .intuito formativo, adquirem capacidade formativa: o artista pen-sa, sente, v, age atravs de formas. Sobre "vontade de arte',' s sepode portanto falar no sentido que, tendo o artista impresso emsua espiritualidade uma direo formativa, todos os seus atospassam a orientar-se para aquele fim que prprio da arte: a puraformatividade, a busca da forma pela forma, o formar por formar.

    6. Interveno das outras atividades na operao artstica:pensamento e moralidade na arte. Mas o ato com o qual naoperao artstica a formatividade se especificou implica que nelaintervenham tambm todas as outras atividades. Tal como nasobras especulativas e prticas se precisa de formas para pensar eagir, e necessrio que haja formas para poder pensar e agir,assim tambm o artista no s pensa e age unicamente paraformar, mas para poder realizar uma forma obrigado a pensare agir. O formar, tal como exigido pelo pensar e pelo agir, noconsegue assim se formar puro a no ser que seja sustentado, oumelhor, constitudo pelo pensamento e pela moralidade que, ape-sar de subordinados aos fins da formao, no deixam todavia de

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  • agir em seu carter prprio. Em suma, a operao artstica,ju st am en t e, por ser o que , pura formatividade , exige tanto opensamento como a moralidade, e os abrange como constitutivosprprios, sem os quais no poderia existir, e os inclui como puropensamento e pura moralidade, no como resolvidos na mesmaformao em ato, o que seria como que dissolv-los, e com issoseriam ir r econh ecveis em sua funo prpria.

    A arte constituda pelo pensamento porque a pura formati-vidade s consegue efetivar a prpria especfica operao quandomantida e controlada pelo vigilante exerccio do pensamentocrtico. Sem a interveno do pensamento, a produo da obra dearte nem mesmo seria possvel porque, se ver dade que o quenorteia o processo de produo n o pode ser, n a a r te , seno ainteno formativa e, portanto, o nico critrio de juzo a prpriaobra a fazer , todavia aquilo que d coeso e confront a as diversastentativas, que julga acerca dos resultados separando o sucessodo fracasso; que pe prova as possibilidades que se vo escolhen-do e as verifica comensurando-as com a inteno formativa, quepredispe o efeito em conformidade com as exigncias da obra que,a cada momento, compara o j feito com o que ainda resta a fazere o que se deve ainda fazer com oj feito , que avalia onde precisocancelar e como corrigir e o que se deve substituir, sempre opensamento, e o pensamento em sua funo mais ldima e genu-na, que o juzo crtico. O artista o primeiro crtico de si mesmoe no seria capaz de dar um s passo no processo de formao daobra de arte se no submetesse o prprio trabalho 'avaliao dopensamento crtico, exercido no nas pausas da formao, masprecisamente no interior dela mesma e durante o seu curso.

    Ningum jamais pensou em contestar o exerccio dessa crticainterna formao da obra de arte, to clara se mostra segundoo testemunho de todos os artistas . Antes , j se pensou em poderreduzi-la prpria figurao em ato, como se se tratasse dasinflexes que a figurao assume no prprio exerccio independen-te do pensamento. Mas, olhando bem as coisas, trata-se de juzocrtico e, por conseguinte, de pensamento na mais legtima acep-o do termo, que justamente como pensamento exercitadodentro da figurao possibilitando-a em sua autonomia. Decertono se trata de pensamento que seja fim em si mesmo, feitointencional no exerccio de uma meditao filosfica e de umapesquisa cientfica, mas de pensamento subordinado inteno -formativa e regulado pelo critrio da pura formatividade, e queno pode ter outro propsito a no ser o de dar o prprio contributoao resultado da formao. Mas nunca deixa de ser pensamento,

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  • que no cessa de cumprir a prpria funo crtica, e que d aoprocesso de formao a prpria contribuio,em conformidadecom a prpria natureza e o prprio carter.

    Por outro lado, existe uma moralidade constitutiva da arte, nosentido de que na vida concreta da pessoa o ato de especificaoda arte assume relevncia prtica, por encerr ar a individuao deuma tarefa que se deve cumprir e o com pr omisso de a ela sededicar do modo que o ato exige para ch egar a bom termo. Amoralidade no apenas acompanh a , mas tambm constitui aoperao artstica, como de resto constitui qualquer outra opera-oespecfica, de tal sorte que a moralidade uma condionecessria para a realizao de qualquer valor, e todo valorenquanto realizado pela pessoa tambm valor moral: A obra dearte implica, por conseguinte, um compr omisso prtico e- umadeciso moral, a tal ponto que se faltar ao artista qualquer umadessas condies, e no consider a r a ar te como uma tarefa acumprir de modo devido, realiza , ao mesmo tempo que um desva-lor artstico, igualmente um desvalor moral.

    No compromisso moral de se dedicar a um a tarefa art stica seacha contida a aceitao das regras e nor mas da formao comoleis morais no pleno e verdadeir o sentido, regras que o artista deveobservar porque se compromet eu com elas desde o princpio. Nemse deve afirmar que nesse ca so a ei tica se resolve sem resduona lei esttica, no sentido de no prescrever a no ser aquilo quefaz o artista ser artista, ou sej a , de lhe im por o fazer arte e nadamais. Pois se trata, na realidade, justamen te do contrrio,de leispoticas que, no concreto e pessoal exerccio da arte, se tornamleis ticas e se impregnam de sentido moral, assumindo o aspectode regras que o artista no pod e impunement e violar, no apenasporque deixaria de ser artista , m a s tambm porque .assim secomprometeria a tarefa a que ele se dedicou livremente e se trairiao compromisso que ele incialmente assumiu por responsabilidadeprpria.

    7. Dois problemas: o contedo e a matria da arte. A estaaltura,porm, surgem dois problemas que, seno resolvidos,ameaam comprometer toda a pesquisa, porque dizem respeito,um presena de toda a vida espiritual dentro da operaoartstica, e o outro, prpria possibilidade de uma operaoartstica autnoma, que se governe por si mesma sem subordinar-se s metas de outras atividades.

    Falando de uma interveno constitutiva do pensamento edamoralidade na arte, referi-me, no fundo, quele mnimo de pen-

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  • sarnento e moralidade que a operao artstica exige como tal, ouseja, queles determinados atos de pensamento e moralidade queo exerccio da arte exige como condio necessria, embora nosuficiente, para a realizao de um valor artstico. Mas o pensa-mento e a moralidade so sempre pensamento concreto e morali-dade concreta de uma pessoa nica e irrepetvel. So uma manei-ra pessoal de pensar e agir, uma determinada interpretao darealidade e uma determinada atitude diante da vida, uma irrepe-tvel Weltanschauung e um singularssimo ethos. E tanto faz queessa Weltanschauung permanea como concepo inconsciente darealidade, mais vivida e sentida que raciocinada e pensada, ou sedesenvolva em uma consciente e explcita filosofia, ou ainda queesse ethos resulte de uma incondicionada acentuao do costumetradicional ou da livre e original inveno de um estilo de vida.Trata-se, em suma, da vida da pessoa em sua totalidade, de suaespiritualidade determinada e concreta, de sua experincia nicae insubstituvel que, com base no princpio da concentrao detodas as tividades na operao especfica, devem inserir-se decerto modo na arte, de tal sorte que da se ponha o problema docontedo da arte. Eis a questo: de que modo o pensamento e amoralidade, justamente no ato que, como atividade em funo,constituem intrinsecamente a operao artstica, se tornam, comoespiritualidade pessoal e concreta, contedos da arte?

    A arte formatividade especfica e intencional, como j disse.Mas necessrio agora estabelecer como de fato possvel essaespecificao. E com efeito bem razovel que surja algumadvida sobre a real possibilidade da especificao da formativida-de em uma operao determinada e distinta. A formatividadecomum a toda a vida espiritual sempre constitutiva de umaoperao determinada, e parece impossvel 911.-e_dela~e desliguepara se exercer por conta prpria. Formar significa realizarobrasdeterminadas e especficas, i. , .obra s especulativas ou prticasou sejam l quais forem, de sorte que pelo visto no pode haverarte que no seja arte de uma atividade determinada nem forma lque no seja o resultado de alguma operao especfica/'Nessecaso, haveria uma arte de pensar, uma arte de viver, uma arte defabricar, e assim por diante. E as obras realizadas graas a todasessas artes seriam formas, como de resto acontece incontestavel-mente, mas no existiria a arte propriamente dita, uma artesimplesmente arte, sem nenhum genitivo: a arte pela arte. Paraque exista a arte, necessrio que a formatividade se possespecificar e que o formar no se preocupe mais com formarpensamentos, raciocnios, sistemas ou aes, virtudes, caracteres

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  • ou objetos teis a algum fim preestabelecido, mas no forme a noser a si mesmo, e que a forma seja tal no enquanto obra especu-lativa ou prtica, mas s enquanto forma, que queira ser forma enada mais que isso. arte propriamente dita torna-se entonecessria uma matria a formar, na qual possa dar existncia forma. De outro modo, a pura formatividade seria mera abstrao,sem corpo nem consistncia, no poderia exercer-se como opera--o determinada, no se concretizaria em processos singulares deformao e no produziria obras reais e existen tes . Naturalmente,essa matria deve ser tal que no converta de novo a formativi-dade artstica em formatividade comum e no d novamente umgenitivo arte. Mas, uma vez formada , deve apresentar-se comoforma pura, forma que s forma. A formao pura, portanto,precisamente para se confirmar em sua autonomia e para.garan-tir-se em sua prpria possibilid ade, deve definir uma matria aformar, de tal sorte que assim se coloca o problema da matria daarte.

    CONTEDO E ESTILO8. A espiritualidade pessoal como contedo da arte, com o estilo

    ou modo de formar. Quero comear pelo problema do contedo.Certamente, o contedo da ar te a prpria pessoa do artista, suaconcreta experincia, sua vida interior, sua irrepet vel espiritua-lidade, sua reao pessoal ao ambiente histrico em que vive, seuspensamentos, costumes, sent imentos, ideai s, crenas e aspira-es. Mas a pessoa do artista o contedo da arte no no sentidode que esta precise ser em todos os ca sos tomada como objeto deuma figurao ou representao ou transfigur ao, como se a artefosse de per si expresso ou retrato ou imagem da pessoa doartista. Sem dvida, existem formas de arte que programatica-mente tm como intuito exprimir os sentimentos, traduzir a vidainterior, cantar a humanidade t al qual se reflete em uma expe-rincia pessoal. Mas tudo isso tem a ver com determinadas poti-cas, com um programa artstico, e no com a prpria essncia daatividade artstica.

    Dizer que a espiritualidade viva do artista o contedo da arte o mesmo que dizer que quem faz ar te uma pessoa nica eirrepetvel, e esta, para formar sua obra, se vale de toda a suaexperincia, do seu modo prprio de pensar, viver, sentir, do modode interpretar a realidade e posicionar-se diante da vida. E dessemodo a "sua maneira de formar" aquela nica maneira que pode

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  • quem pensa, vive, sente daquela maneira, quem tem aquela. o do mundo e tem aquelejeito de viver. E se pensasse, vivesse,ntisse de outra maneira, formaria diversamente, no apenas no

    en t ido de que, como provvel, figuraria outras coisas e escolhe-ia outros temas, sobretudo no sentido de que teria um outro modo

    de formar. A obra de arte tem como contedo a pessoa do artista,no no sentido de tom-la como seu objeto prprio, fazendo dela oseu "tema" ou assunto ou argumento, mas no sentido de que o"modo" como esta foi formada o modo prprio de quem temaquela determinada e irrepetvel espiritualidade: entre a espiri-tualidade do artista e seu modo de formar existe um vnculo toestreito e uma correspondncia to precisa, que um dos doistermos no pode subsistir sem o outro, e variar um significanecessariamente variar tambm o outro.

    O problema, ento, no tanto o de perguntar como a pessoa o contudo da obra de arte, ou como na arte pode penetrar todaa vida espiritual do artista, mas antes, e sobretudo, o de perguntarcomo que a espiritualidade do artista se torna, ela mesma,exerccio e realidade artstica. Atravs da obra de arte transpare-ce toda a originalidade pessoal e espiritual do artista, denunciada,no primeiramente pelo assunto ou tema, mas pelo prprio modo,irrepetvel e personalssimo, que ele teve ao form-la. Nesse modode formar est presente toda a espiritualidade do artista, nosentido de que esta, uma vez que se colocou sob o signo daformatividade, exige o seu modo de formar, ou melhor, se faz, elamesma, esse determinado modo de formar. Portanto, o modo deformar, o "estilo" envolve na arte toda a vida espiritual do artista,porque este no seu formar segue um modo singular e inconfund-vel, unicamente seu e no de outrem, que o seu modo de formar,o modo que no pode ser seno seu, e que a sua prpriaespiritualidade feita, toda ela, modo de formar: estilo.

    9. Correspondncia e identidade entre esprito e estilo. H umacorrespondncia entre determinados estilos e determinadas for-mas de"espiritualidade, entre certos modos de formar e certosmodos de pensar, viver, sentir, e tal correspondncia se pode

    , constatar a posteriori, no s com respeito a um artista individualmas a inteiros perodos histricos: toda civilizao tem seu estilo,todo artista tem seu modo de formar. Mas essa correspondnciano deve induzir a se pensar em uma "dependncia" ou "deriva-o", e muito menos em uma resultante automtica ou mecnica"como se algumas formas de espiritualidade gerassem por si mes-mas certos estilos, e o valor desses estilos consistisse no corres-ponder quelas formas de espiritualidade. Com isso se cairia em

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  • um detestvel conteudismo, em virtude do qual o estilo no valecomo modo de formar, mas somente como modo de formar dessedeterminado esprito, de tal sorte que tudo dependeria da formade espiritualidade que est em pauta.

    Essa correspondncia no se pode explicar a no ser com umaradical identidade: uma relao profunda e substancial median-te a qual se pode afirmar que, na arte, uma determinada espiri-

    ;t u a lidade o seu prprio estilofO velho mote: "o estilo o homem"encontr~i a sua mais clara confirmao. Um estilo nico eirrepetvel no outra coisa seno toda a espiritualidade e huma-nidade e experincia de uma pessoa que, tendo-se colocado sob osigno da formatividade, se fez, ela mesma, o seu modo de formar,tornou-se este muito particular mo do de formar, que pode sersomente seu. A personalidade em su a totalidade, assumindo uma

    ~ireo formativa, tornou-se uma carga de energia formante;

    imprimindo-se um rumo format ivo, se torna atividade artistica-mente operativa; fazendo-se vontade de arte, torna-se exerccio erealidade de arte. Ento a correspondncia o resultado dessaidentidade: esse determinado esti o prprio dessa determinadaespiritualidade, verdadeiramente seu, pertence-lhe como pr-prio, somente enquanto ela mesm a se tornou modo de formar. Sento esse modo de formar o seu modo de formar. A rigor, no sepode dizer que originariamente um estilo se conforma ou seadequaciona ou corresponda ou pertena a uma determinadaespiritualidade, ou dela deriva o depende. Porque se trata, aoinvs, de identidade. E somente depois que uma determinadaespiritualidade se fez estilo que aparecer que esse o seu estilo,o modo de formar que lhe corresponde precisa e exclusivamente,e que no pode ser seno seu . E s ento se poder falar decorrespondncia e adequao e pertena. E a tal ponto o estilocorresponde humanidade que lh e est subjacente, ou melhor, a prpria humanidade feita modo de formar, que uma conversoem toda a vida espiritual do.artista traz consigo o impulso a novasbuscas de estilo, assim como novas descobertas e originais acha-dos no campo estilstico podem levar a uma converso de toda aespiritualidade. Mudanas de gosto e de estilo caminham paripassu com mudanas da vida espiritual, de sorte que a vidaespiritual se faz e,, no campo formativo, gosto e estilo, determi-nado modo de encarar a arte e determinado modo de fazer arte:vida que reclama a sua forma de arte, e arte que responde suaforma de vida.

    Por afinidade eletiva certas formas de espiritualidade seacham natural e particularmente "abertas" a certas formas de. .

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  • assim que se pode dizer que uma determinada espirituali-e j possui, em certo sentido, o seu modo de formar, ou seja,a vocao artstica e um estilo conatural. Essa afirmao noraria de modo algum a autonomia da esfera artstica, como

    aqui se confundissem as atividades e se pretendesse que umodo de fazer arte dependesse ou se originasse de um modo densar, viver, sentir. Porque essa abertura s se mostra se apiritualidade em questo se coloca sob o sinal da formatividade,seja , somente se a esfera artstica j est especificada. E um

    sti lo, propriamente falando, s existe quando na concreta espiri-alidade inventou o seu modo de formar, isto , se tornou elaesm a esse seu modo de formar. Bastaimprimir a uma determi-ada espiritualidade uma direo formativa, para ver como elaeage buscando um modo de formar consentneo e conatural, et mesmo tentando criar um para si . Mas s no artista aconteceue uma espiritualidade encontra o es t ilo que lhe prprio,

    iust amente porque ela se torna o seu estilo. Quando uma concretaespir itualidade assume uma direo formativa, tem j potencial-mente o seu estilo, porque j o potencialmente. Basta que oencont re, e para encont r -lo mister que o procure e invente, e sdepois de t -lo encontrado saber que o seu, por ser ela mesmafei t a estilo.

    Alm disso, se essa correspondncia se baseia na identida de,ela ainda muito mais rica e complexa do que parece quandomotivada por mera dependncia ou produto mecnico. Com efeito,t endo assumido uma direo formativa , a prpria espiritualidadese define em si no ato de se fazer estilo, energia formante, exerccioartstico, ou porque o prprio esforo de representar e inventar oprprio modo de formar a convida a se precisar e a se esclarecer,ou porque o simples fato de formar e ter um estilo a modi fica emseu carter. Porisso, quando se diz que a personalidade do art istano seno a sua personalidade artstica, esquece-se que en t reambas se instaura um intercmbio contnuo e profundo que, numartista, se-rve para iluminar tanto a vida como a arte, pois o seuprprio modo de formar contm e denuncia as complexas e inin-terruptas reaes de onde emergiu e em que se vai passo a passodefinindo.

    10. Ogosto com o "expectativa": personalidade, universalidade,historicidade do gosto. Quando deter minada espiritu alidade as-sume uma dir eo formativa, acontece que, antes de mais nada,ela reclama e exige um determinado modo de form ar, e maisprecisamente o seu mo do de formar, o modo que ela, se t ivessecon dies para formar, adot ar ia por conta prpria. Cria-se por-

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  • tanto uma espcie de expectativa, e nisto consiste, propriamente,aquilo que se costuma chamar de "gosto".

    Mas este um termo dos mais ambguos pois alude simulta-neamente a sentidos que podem parecer, e em parte so, diame-tralmente opostos. Gosto , com efeito, tanto aquilo que umapessoa tem como algo prprio, e pode variar de pessoa para pessoae tambm de uma poca para outra poca, como aquilo que segostaria de ver em todos por admir-lo em algum. Quando afirmoque uma obra me satisfaz, que do meu gosto, quero me referir auma certa conaturalidade que me dita determinadas prefern-cias, sem com isso pretender di scut ir a respeito do valor artsticode outra obra de que no gosto. Quando digo a respeito de umapessoa que tem gosto, quero referir -me a uma segurana de juzoque pretende ser universal, de tal sorte que considero seus juzoscomo exemplares, e classifico os outros juzos diferentes dele comode algum que no tem gosto. No primeiro caso o gosto algopessoal, que exprime ordens de preferncia; no , segundo, algouniversal, que permite emitir juzos acerca do belo e do feio.

    A diferena grande, mas os dois sentidos esto mais unidosdo que talvez se imagine, pois na situao humana o universal sse torna acessvel pessoalmente, de tal sor te que o gosto comocapacidade de distinguir universalmente o belo do feio no podeser exercido a no ser atravs do gosto como conaturalidade epreferncia. Mas isso no deve ser t o inquietante assim, pois se verdade, de um lado, qu e continuamente se corre o perigo de 'confundir com o feio aquilo que no satisfaz o prprio gosto,tambm verdade, de outro lado, que esse perigo impe que seprocure conseguir um equilbrio de juzo. E por isso, embora talvezno se goste de certas espcies de obras, se consiga, assim mesmo,apreciar-lhes o valor intrn seco, tentando classificar como arteaquele tanto de conaturalidade que baste para reconhecer o seumrito. E de resto as propores se re stabelecem, embora semprede modo precrio, na prpria comunicao e debate dos juzos,como se v em tantas revises de opinio que crticos ponderadose inteligentes mostram quando retificam julgamentos apressa-dos, e pelas "descobertas" que, variando os gostos com a variaodas pocas, novos pontos de vis ta e novas sensibilidades, setornam possveis, ao reivindicar o valor de obras que o gostoanterior rejeitava por falta de conaturalidade. Tudo isso se con-forma com a essencial reivindicabilidade e contestabilidade dosjuzos humanos, e no invalida de modo algum a solidez de juzosemitidos com conhecimento de causa. Pelo contrrio, sugere deum lado a necessidade de uma reviso crtica e de cautela e, de

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  • outro, o convite a estender sempre mais a prpria experinciatanto humana como artstica. Pois se verdade que a congeniali-dade favorece a compreenso, tambm no deixa de ser verdadeque o conhecimento inspira o interesse, e assim possvel reduzirao mnimo a clivagem entre os juzos de preferncia e as declara-es de valor. E quanto mais rica a humanidade do crtico, tantomais amplo o mbito de sua compreenso esttica e, por conse-guinte, o campo em que ele pode distinguir no somente aquiloque aprecia do que no aprecia, como tambm distinguir entreaquilo que vale e o que no vale.

    Permanecendo de p o convite universalidade, um fato queo gosto tem sua origem na particular natureza de uma espiritua-idade concreta e determinada, que inclui todo um modo de

    inter pr et a r a realidade e se posicionar perante a vida. Quandoessa espiritualidade assume uma direo formativa, torna-se umparticular modo de considerar a arte, espera-se da arte um deter-minado modo de formar. De sorte que a satisfao do gosto empre a resposta a uma expectativa mais ou menos consciente,

    que vai buscando nas obras de arte o modo de formar mais emconsonncia com a espiritualidade que d origem a essa expecta-iva. Eis por que o gosto sempre histrico, e varia com o variaros tempos, pois no tempo variam as diversas formas de cultura

    e espiritualidade. O exerccio do gosto segue aquelas secretasafinidades eletivas, ocultos parentescos, instintivas cogenialida-

    es que alimentam, ou melhor, regulam toda a vida espiritual eo gam entre si, de modo sempre surpreendente e maravilhoso, asbr as de diversos campos, ou artstico ou filosfico ou prtico oueligioso ou poltico, mas de uma mesma poca, com vnculoscultos , mas nem por isso menos reais.

    Certamente, isso no quer dizer que uma determinada espiri-alidade gere por si mesma, espontnea ou automaticamente, oprio estilo conatural: mister que algum o encontre, o realize,invente, E s ento, vendo-o e contemplando-o nas obras de arte,espectador compreender que o seu, congenial com seu modo

    pensar, viver e sentir, e que ele o procurava e esperavaonscientemente, e agora que o encontra realizado, satisfaz suaectativa e ao mesmo tempo a precisa, instituindo-a como gostost ico, que sabe o que quer. O gosto por isso se define e se

    titui apenas com base em longa e contnua familiaridade eqentao das obras de arte, pois a inveno e a realizao deestilo so tarefa do artista. Quem interpreta a vocao formalma forma de espiritualidade e civilizao e a realiza em umminado modo de formar o artista. E este, mais que se

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  • adequar a um gosto j formado, se um verdadeiro artista inovae cr ia tambm o gosto de uma poca, ou seja, desperta para atom ada de conscincia e leva realizao a: indistinta e potencialexigncia formativa do esprito da poca. Eis o motivo pelo qual oartista vai sempre alm do gosto de sua poca, e pode-se afirmarque a arte vai por si mesma criando para si o prprio pblico.

    11. O estilo como "modo de formar": estilo pessoal e estilocoletivo. Tendo-se colocado sob o sinal da formatividade, umaespiritualidade consegue ento fazer-se, no artista, ela mesmamodo de formar, ou seja, "estilo".

    Tambm esse termo tem uma natureza bifronte: o estilo comefeito o irrepetvel e personalssimo modo de formar de um autorque ele exprime numa ou em algumas ou em todas as suas obras;e estilo tambm o modo de formar que estabelece um 'vnculo deparentesco entre as obras de autores diversos ou de vrias pocas.No primeiro caso existe algo de pessoal e inimitvel; no segundo,algo de suprapessoal e comum. Mas tambm aqui a anttese no to ntida como parece, pois em ambos os casos sempre se tratade "modo de formar", visto ora na personalidade da execuo orana comum inspirao de vrios artistas, e esta ltima no s noexclui mas at implica e exige a primeira. Um modo de formar setorna comum sobretudo pela participao em uma mesma situa-o histrica e no ambiente cultural em que esto igualmenteimersos os vrios autores, por um lado ligados a seu tempo e, por 'outro, capazes de reagir livre e originalmente sua poca. De talsorte que, assim como um semelhante modo de pensar, viver,sentir liga os espritos de um determinado tempo, da mesmaforma os vincula um modo semelhante de formar. Em segundolugar, porque nenhum artista comea do nada, mas todos seformam entrando na escola de algum, e pode ser que a escola deestilo estabelea comunidades de esprito ou que, ao contrrio,esta ltima determine a escolha de um mestre ao invs de outro,mas em todo o caso a imitao do modo de formar institui oupressupe certacomunho ou afinidade de modo de pensar, viver,sentir, e estabelece uma continuidade de estilo entre mestre ediscpulo. Em terceiro lugar, porque uma caracterstica intrn-seca de toda realizao a de estimular depois de si toda uma sriede imitaes mais ou menos inventivas e tornar-se princpioregulador de novas e derivadas formaes, de sorte que um modode for mar pode por esse meio difundir-se ao ponto de aproximarautores das mais diversas procedncias. E, enfim, porque ummodo de formar contm em si um concreto desenvolvimento depossibilidades que podem ser desdobradas, continuadas ou inter-

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  • pretadas por muitas execues individuais e diversas, que lheraam como que uma vida orgnica que vai desde o nascimento,

    passa pelo crescimento, e culmina na maturidade. Mas tudo issoe desenrola sempre atravs da livre e original inventividade de

    cada artista, que sabe buscar sua inspirao nas realizaes jprontas, tornando-as frteis e sugestivas com o poder de seu olharinterpretante e formativo, de sorte que um estilo comum, antesde existir como resultado de uma comum inspirao,j atua nestaltima como sugesto e norma, mas em todo o caso existe somenteem cada execuo particular, certamente inspirando-a e ditando-lhe o ritmo a partir de dentro, mas ao mesmo tempo nela serealizando e encontrando existncia.

    Sem dvida, antes que uma espiritualidade consiga descobriro seu estilo, ou, noutras palavras, se faa modo de formar, existeum processo longo e complicado de busca, em que predomina umaespcie de tenso entre a espiritualidade em busca do prprioestilo e o estilo que ela invoca e aspira a se tornar. Busca esta,trabalhosa e dura, que toma corpo somente na execuo de cadaobra individual, pois o estilo no existe em abstrato, mas sempreo modo como as obras concretas se formam. O artista procurado prprio estilo o tenta formando: eis as primeiras obras, em queo modo de formar no ainda espiritualidade que se fez estilo, masespiritualidade que utiliza um estilo herdado ou imitado, e entoexiste uma certa clivagem entre a espiritualidade e o modo deformar, pois a primeira pobre e imatura e precisa de se definirmelhor e esclarecer para poder aspirar a uma vocao formal, enesse meio tempo se exercita em um estilo acolhido de fora, at omomento em que, tendo-se esclarecido no prprio carter, irbuscar o seu prprio estilo e, melhor dizendo, os processos iropari passu, em que a espiritualidade se esclarece a si mesma e emque ela define e realiza a prpria vocao formal. E assim, detentativa em tentativa, atravs de xitos e fracassos, a procuraavana rumo descoberta, a menos que por intrnseca fraquezae pobreza a espiritualidade no consiga definir-se e continuefluida, incerta e catica, ou por exigidade de esprito inventivo avocao formal no consiga precisar-se melhor e permanea naetapa de tentativa e busca. Pois a busca coroada pelo sucessoapenas quando uma espiritualidade define ao mesmo tempo a simesma e seu prprio estilo, ou seja, se define a si mesma comoestilo. S ento se v que esta espiritualidade s poderia ter aqueleestilo e este estilo s poderia pertencer quela espiritualidade, eas obras anteriores iro aparecer como ensaios, tentativas, esbo-os e rascunhos.

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  • 12. Diferena entre contedo e assunto; indiferena do conte-do ou quanto ao contedo; contedo pr-artistico e contedo arts-tico. Dizer contedo de uma obra de arte, portanto, significa dizercarter pessoal e espiritual do estilo, considerado como espiritua-lidade que se tornou totalmente modo de formar. O contedo,ento, algo diferente daquilo que se costuma denominar tema,argumento ou "assunto", pois a obra no precisa, a rigor, procuraro prprio contedo em um argumento ou tema, quando o estilo j espiritualidade concreta que se tornou energia formante ou,como diz um grande escritor, que consagrou a vida inteira aprocurar e definir o prprio estilo, o estilo "j por si mesmo ummodo absoluto de ver as coisas". Tanto verdade que enquantono existe arte sem estilo, sem contedo, pode muito bem existirarte sem "assunto" evidente. E de resto o modo de tratar o assuntoest implcito no prprio modo de formar; de sorte que, tambmsob esse aspecto, tudo depende, mais uma vez, do estilo.

    H casos em que o artista participa de tal modo no prpriotema que aborda, que se pode dizer que o determinou com base nocontedo e este se lhe imps por sua prpria espiritualidade. Eento a abordagem do argumento quer ser adequada ao tema, e oautor coloca todo o cuidado para tentar efetivar a adequao domelhor modo possvel. H tambm casos em que o assunto absolutamente independente do contedo, e tomado como meropretexto para a formao de uma obra, e o artista participa topouco nesse assunto que se preocupa bem pouco quanto a conse-guir que a abordagem seja adequada ao argumento. E existemmesmo obras destitudas de todo de qualquer assunto evidente, eque se mantm de p somente graas fora do estilo e erigiramo prprio estilo em tema prprio. Mas essas diferenas so, nofundo, precisamente diferenas de estilo, porque sempre o modomuito pessoal de formar que no primeiro caso exige indissolubili-dade de contedo e tema e impe que se procure a forma maisadequada de abordar o assunto e, no segundo caso, implica umacompleta indiferena pelo tema, que deve por isso ser tratadocomo simples pretexto, e, no terceiro caso, exige no ser perturba-do pela presena de nenhum tema evidente. Se assim no fosse,no se teria nenhum critrio para a leitura, e se correria o riscode menoscabar uma obra cujo assunto no mais que pretexto,pelo fato unicamente de a abordagem no se adequar ao argumen-to, o que seria grave sinal de insensibilidade esttica, ou, falta nomenos grave embora freqente, de julgar irrelevante a maior oumenor adequao ao assunto nas obras em que o artista quismanifestar sua participao no tema. Pelo contrrio, em virtude

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  • eu estilo a prpria obra declara por si mesma o modo como.ge ser lida, e a abordagem do assunto deve ser julgada come no modo de formar, que implica ora a necessidade de uma

    ordagem adequada ora a indiferena ante o terna ora at asncia de qualquer tema. Em todo caso, sempre h contedo se

    estilo, porque se pode dizer que o estilo o prprio contedo,o , a espiritualidade que a se faz modo de formar. Depende s

    o estilo se uma obra alimentada por uma profunda meditaolosfica ou apoiada por vigoroso exerccio de pensamento ou

    nspir ada em alguma intensa experincia religiosa ou marcadaor uma robusta vida moral ou pervadida por inequvocas preocu-aes polticas, ou ento no "diz" nada. Todas essas diferenas

    so diferenas de estilo, sempre que por estilo se entenda umaespir itualidade feita modo de formar. A tal ponto que a menordiferena de estilo indica toda uma diferena de espiritualidade,de modo de pensar, viver, sentir, de interpret ao da realidade ede atitude em face da vida, de Weltanschauung e de ethos.

    Assim; quando se fala de indiferena do contedo, para dizerque tudo poder tornar-se contedo artstico, e se precisa que istono implica que na arte haja indiferena pelo contedo, porquesempre importa ao artista o seu contedo, uma vez que o escolheu,est se fazendo referncia ou ao tema ou ao contedo no sentidoprprio, ou seja, ao estilo. Mas em ambos os casos, olhando bemas coisas, a questo nem chega a se pr, porque, no que diz respeitoao tema, o modo de escolh-lo e trat-lo est implcito no estilo, eno que tange ao contedo, tudo depende do fato de que a vocaoformal de uma determinada espiritualidade consiga ou no reali-zar-se como estilo.

    E quanto afirmao da inseparabilidade entre forma econtedo, pode-se dizer que ela no mais necessria, quando sediz que o estilo a prpria espiritualidade do artista feita modode formar. Insistir em tal inseparabilidade s teria sentido paraop-la a uma artificial distino entre "contedo pr-artstico" e"contedo artstico", e para destacar o bvio absurdo de umapassagem do primeiro para o segundo, pois isto na realidade umprocesso em que uma espiritualidade vai definindo e realizandoa prpria vocao formal e tornando-se modo de formar. Mas seinsistir nessa inseparabilidade significa referir-se apenas ao mo-mento da descoberta do estilo e limitar a busca precedente aocampo da biografia e da psicologia, deve-se ento recordar quetodo resultado sempre inseparvel do processo de busca que nele-.culmina e se encerra, e que portanto se pode bem falar de um

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  • contedo em busca da prpria forma, de vocao formal do esp-rito, de espiritualidade no ato de se fazer modo de formar, semcom isso pretender estabelecer uma distino entre contedos,entre os que podem e os que no podem tornar-se artsticos. E quese pode tambm falar de gnese do estilo sem com isso pretenderque se possa separar o contedo da forma e a espiritualidade doseu estilo, mas ao invs reconfirmando com maior vigor a sua.inseparabilidade, no sentido de que quando uma espiritualidadeencontrou o prprio estilo, ela justamente esse estilo.

    13. Significado da presena do sentimento na arte. Se misterprocurar o contedo no prprio estilo, assim como se disse, no sepode afirmar que a arte tenha como contedo um sentimento doqual seja expresso. A arte, com efeito, embora seja pura forma-tividade, no tem propriamente uma funo expressiva. O .que lhe especfico no exprimir um sentimento, mas formar por for-mar, ou, noutras palavras, perseguir a forma por si mesma. Noque a arte no tenha tambm um carter expressivo, mas este lhe inerente ao mesmo ttulo que a qualquer outra operao espiri-tual.

    Com efeito, em toda operao h umana sempre est presenteo sentimento que, vendo bem as coisas, no seno o carter deenvolvimento pessoal que o prprio atuar humano enquanto talpossui. A pessoa individual que opera sempre toda envolvida noseu agir, e portanto o resultado no lhe indiferente. Antes pelocontrrio, ela reage ao andamento da operao que, por issomesmo, adquire um colorido sentimental, e culmina em obras quelevam sempre como trao inconfundvel a expresso da vidasentimental do seu autor, quer se trate de obras prticas ou depensamento ou de arte. Todas as operaes humanas so portantosempre expressivas. Por isso tambm a.arte sempre expressode sentimento. Ou melhor, pode-se tambm afirmar que se no ofosse nem seria tampouco arte, pois lhe faltaria aquele carter dehumanidade total que indispensvel condio para o bom xitode toda obra humana, artstica ou no artstica. Mas no o demodo intencional e privilegiado, pois a intencionalidade e o privi-lgio da arte so a formao exercitada em vista da forma por si .mesma.

    Sem dvida, o sentimento, enquanto acompanha toda opera-o humana, constitutivo tambm da operao artstica, aomesmo ttulo que lhe so tambm constitutivos o pensamento e amoralidade. Mas ento o sentimento ganha uma tonalidade espe-cial, como tambm particular a inflexo que ganham na opera-o artstica o pensar e o agir. E ser, como justamente j se disse,

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    alegria por criar, amor pela beleza, paixo pela arte. E decerto,assim como o pensamento e a moralidade do artista, enquantoconstituem sua espiritualidade determinada, penetram na arte,da mesma forma a tambm penetra o sentimento, ao mesmottulo. Mas trata-se ento de toda a espiritualidade do artista que,como modo todo pessoal de pensar, viver, sentir, se faz, ela mesma,modo de formar. E certamente, ai-nda, pode haver uma arte lricaque tenha como explcito propsito exprimir sentimentos. Masento se trata do programa de arte de determinadas poticas, ej no estamos mais no terreno puramente especulativo da est-tica, que se prope dar um "conceito" da arte, e no de preferiruma potica s outras.

    Quero frisar o seguinte ponto: no necessrio que haja umacondensao lrica e um ato de contemplao para explicar comotoda a vida espiritual penetra na obra, tornando-se o seu conte-do, pois tudo entra diretamente na arte, pensamento e vida moral,filosofia e -aspirao religiosa, cultura, paixes, sentimentos, ecrenas e lutas polticas, mas sempre e apenas como espirituali-dade pessoal que se faz estilo. H obras que no expressam nadae nada dizem, mas o seu estilo eloqentssimo, por ser a prpriaespiritualidade de seu autor. Dir-se- que justamente nesse sen-tido a arte expressiva, e o sentimento est ali presente, enquantose resolveu completamente na forma. Mas nesse caso no se vpor que seria necessrio afirmar que apenas atravs do sentimen-to a vida espiritual pode penetrar na arte, e que apenas medianteuma condensao lrica ela se pode traduzir em imagens. Nem porque a vida espiritual, em toda a infinita riqueza de seus aspectos,chega a se fazer ela mesma e totalmente estilo e modo de formar.E assim at o mais estilizado arabesco, a mais fria arquitetura eo mais sofisticado contraponto, que no exprimem de per sinenhum sentimento, e no tm com certeza um carter lrico,contm, sob a forma de estilo, toda uma civilizao, todo um modode interpretar o mundo-e de se posicionar diante da vida, todo ummodo de pensar, viver, sentir, toda uma espiritualidade coletivae pessoal na infinita riqueza dos seus aspectos.

    14. Historicidade e autonomia da arte; nem formalismo nemconteudismo; "correspondncias" entre formas de arte e formas deespiritualidade. Parece-me este o nico modo com que se pode, de

    m lado, ver encerrada na obra de arte a infinita riqueza dapiritualidade do artista, sem ficar com isso comprometida, e~

    pesado conteudismo, a autonomia da arte e, do outro, concen-rar a ateno no estilo, sem que com isso tenha de se encerrar

    uma considerao dos meros valores estilsticos, segundo a

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  • pretenso de um rido formalismo. Deste modo, com efeito, tantoo conteudismo como o formalismo deveriam ser postos de lado: oformalismo, porque se reconheceu que a espiritualidade de artistase acha presente na obra no como sentimento que condensaliricamente toda a vida espiritual, pois nesse caso o contedoseria, como motivo inspirador, ainda assunto ou tema, mas so-mente como estilo e modo de formar; o conteudismo, porque se

    . reconheceu que o estilo, sendo a prpria espiritualidade do artistaque se fez modo pessoal de formar, contm toda a vida espiritualdo autor e toda a vida e civilizao do seu tempo como nele sereflete. O contedo da obra de arte sai assim do restrito e apertadocrculo de seu "motivo" ou "assunto", para se estender a toda a .humanidade do artista e a toda a cultura de sua poca, e isto noobstante o valor da obra de arte captado unicamente no seuestilo, naquilo que garante o seu ser arte e no outra coisa.

    Fazendo a humanidade e a espiritualidade da arte residir noestilo assim compreendido, podem-se utilmente estudar as corres-pondncias entre determinados estilos e determinadas espiritua-lidades, entre certos modos de formar e certas formas decivilizao; pode-se ver como a arte se alimenta de toda a civiliza-o de sua poca, refletida na irrepetvel reao pessoal do artista,e nela se acham atualmente presentes os modos de pensar, viver,sentir, de toda uma era, a interpretao da realidade, o modo dese posicionar diante da vida, os ideais e as tradies e as esperan-as e lutas de um perodo histrico. Pode-se tambm investigar 'como a diversas formas de filosofia, de religio e costume, deorganizao social e poltica correspondem diversas formas dearte, no sentido que variando essas formas modificam-se, na arte,os modos de formar. E tudo isso pode ocorrer sem temer que assimfique comprometida a autonomia da arte e se caia em um estrilconteudismo, contanto que no se esquea, antes de tudo, que sdepois que o genial artista, interpretando o esprito da poca erealizando sua vocao formal, fez com que a prpria espirituali-dade, rica em ressonncias histricas e ambientais, se tornasseela mesma um singularssimo modo de formar, s ento se tornamevidentes as correspondncias entre o estilo assim encontrado e oesprito individual do artista e coletivo de sua era, porque acorrespondncia entre um esprito e seu estilo s aparece se equando esse esprito se fez totalmente modo de formar. E, almdisso, que a espiritualidade do artista se define como espirituali-dade, com seus irrepetveis traos caractersticos e a prpriasingularssima natureza, s enquanto e na medida em que sedefine como estilo e modo de formar. Somente assim se podem

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  • tudar essas correspondncias e ver na arte o reflexo do espritoe um a poca. E desse modo inclu sive possvel abordar a arteorno documento de uma poca, contanto que essa documentaoo seja vista nos temas ou nos argumentos como tais, isoladosa obra em que vivem , pois ento as obras falhas seriam aindaais significativas, mas unicamente no estilo, de sorte que a parte

    a ar t e se chegue a reconstruir a espiritualidade do artista e deua era prestando s ateno qualidade irrepetvel do modo deor m ar que a se realiza.

    Por outro lado, a abordagem do estilo no deve limitar-se aosmeros valores formais sem ver nele um carter histrico e espiri-u al, pois o estilo tal somente se o modo de formar prprio de

    um a determinada espiritualidade, ou melhor, se uma espiritua-lidade que se fez modo de formar. Limitar-se a considerar apenasos valores formais significa separar o formar de seu ineliminvelcar t er de personalidade, o que seria como que separar o estilo desi mesmo, Mas, sendo isso naturalmente impossvel, essa maneirade encarar o estilo terminaria por enrijec-lo, no mais o vendocomo "modo de formar", como energia formadora e atividadeoper a t iva , mas como mera forma separada do processo que nelase encerra. No entanto, abordar o estilo como humanidade que Slfez modo de formar significa v-lo, no somente em seu carter Ipessoal e espiritual, mas tambm no seu aspecto dinmico eoper a t ivo, e pressupor em seu descobrimento todo um processo depesquisa , em que uma espiritualidade se mostra no ato de se fazermodo de formar, pesquisa es ta que o formalismo reservaria ao \/ca m po, considerado irrelevante, da biografia e da psicologia.

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    A MATRIA DA ARTE15. A matria da arte como matria fsica . chegado o mo-

    mento de abordar, assim, o segundo problema: o da matria daarte. Ora, no se pode procurar essa matria no campo de outrasatividades espirituais, porque de outra maneira a formatividadeestaria subordinada a fins no artsticos e serviria apenas parapossibilitar o sucesso de outras operaes. No se teria aqui "arte"sem mais, e sim, ainda, arte com genitivo. Sem dvida, pode-sepensar na possibilidade de obter um efeito propriamente artsticode outras operaes, como no caso de a experincia moral ou aexperincia terica se tornarem a "matria" de uma intenoexclusivamente artstica, e de se querer fazer da prpria vida oudo prprio pensamento apenas uma obra de arte. Mas nesse caso

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  • no se tem propriamente arte. Com efeito, como a formatividadese exerce no campo especfico de outras atividades, sem todaviasubordinar-se s suas leis e intenes, mas antes sobrepondo-sea elas com o prprio intuito exclusivamente formativo, tem-seuma indubitvel corrupo da atividade especificada e se cai noestetismo. No que se viva e pense conforme a arte de viver e aarte de pensar, mas vive-se e pensa-se como se se tratasse derealizar no um valor moral ou especulativo, mas apenas um valorartstico. E bem verdade que todo sucesso obtido na atividademoral ou especulativa tambm a realizao de um valor esttico,enquanto a obra respectiva uma forma. Mas na perspectivaesteticista aquilo que se deseja no que a obra moral ou especu-lativa saia to