jean plaidy - plantagenetas 03 - o coração do leão

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O Coração do Leão

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  • O Corao do Leo

  • Jean Plaidy

    Digitalizao: Dores Cunha.

    Correco: Edith Suli.

    Aps a morte de Henrique II, Ricardo assume a Coroa jurando

    recuperar Jerusalm para o mundo cristo. Suas campanhas na

    Siclia, a conquista de Chipre e as vitrias na Terra Santa lhe

    conferiram fama, mas permitiram que o traioeiro prncipe Joo

    usurpasse o trono durante sua ausncia.

    O Corao do Leo revela a natureza deste destemido e romntico

    monarca, cercado pelo astuto rei Filipe da Frana, a amargurada

    rainha Berengria, a amorosa irm Joana, o rival sulto Saladino e

    a idosa Eleanor de Aquitnia. O carter aventureiro de Ricardo

    levou ao enfraquecimento da instituio monrquica na Inglaterra,

    abrindo caminho para a crise que seria desencadeada no reinado

    seguinte.

    JEAN PLAIDY

    Traduo de LUIZ CARLOS DO NASCIMENTO SILVA

    4EDIO

    EDITORA RECORD

    RIO DE JANEIRO, 2001

    Ttulo original ingls: THE HEART OF THE LION

    Copyright (c) 1977 by Jean Plaidy

    SUMRIO

    Um Rei Coroado 11

    Alice e Berengria 42

    Joana 57

    A Aventura Siciliana 71

    O Casamento Adiado 98

    Os Frutos de Chipre 122

    O Rei e o Sulto 152

    Nos Muros de Acre 176

    O Adeus de Filipe 179

    Joana e Malek Adel 185

    O Velho das Montanhas 209

    Adeus, Jerusalm 212

    O Fugitivo Real 222

    O Cinto Ornado de Jias 244

    Longchamp e o Prncipe Joo 253

    A Volta de Eleanor 277

    A Cano de Blondel 290

    Libertao 300

    A Reconciliao 308

    Reunio com Berengria 319

    O Castelo Ousado 326

    O Vaso de Ouro 330

  • Um Rei Coroado

    A RAINHA, depois de dispensar todas as suas amas, ficou sentada sozinha

    na cmara do rei no palcio de Winchester. O rei morrera, e com a sua

    morte chegara a libertao

    do cativeiro no qual ele a mantivera durante muitos anos. Ela estava com

    67 anos - uma idade na qual a maioria das pessoas teria se contentado em

    afastar-se da vida, talvez entrar para um convento onde, se tivesse

    levado a vida que ela levara, poderia achar conveniente passar os anos

    que lhe restavam fazendo penitncia. Eleanor de Aquitnia, viva do

    recmfalecido Henrique Plantageneta, no.

    Ela estudou os murais. Tinha sido ideia do rei falecido mandar pintar as

    paredes de seus palcios com alegorias que representassem sua vida, e

    aquela era a sala das aguietas. Eleanor se lembrou de uma ocasio em que

    ele e ela tinham estado juntos naquela sala. Devia ter sido durante um

    dos perodos em que houvera uma diminuio do antagonismo que um tinha

    pelo outro, pois essas ocasies tinham existido. Uma delas fora na poca

    da morte do filho mais velho, quando a tristeza os reunira - apenas por

    um curto perodo. Ela nunca perdoara Henrique por suas infidelidades; ele

    nunca a perdoara por ter voltado os filhos contra ele. E ali estavam os

    filhos representados pelas aguietas espera de matarem o pai de bicadas.

    Que amargura ele sentira quando as mostrara!

    11

    - Seu justo castigo - disse Eleanor, em voz alta. - Seu velho devasso!

    Espera que eu tenha medo de voc, agora que est morto? Falando nisso,

    quando foi que tive medo de voc... ou de qualquer outra pessoa?

    Era morbidez de Eleanor ir quela sala, at mesmo pensar nele; no

    entanto, como evitar? Ele fora o homem mais importante de sua vida, e

    tinham sido muitos. Fora um grande rei, isso ela reconhecia. Se tivesse

    podido dominar a devassido, se tivesse compreendido como tratar os

    filhos, talvez tivesse mantido a devoo da famlia.

    Mas ele estava morto e ela precisava esquec-lo. Ela nunca fora uma

    pessoa de olhar para trs, e havia trabalho a fazer. Eleanor gostara de

    todos os filhos, mas Ricardo sempre fora o favorito. Havia entre eles um

    elo muito forte, que ela no sentia com nenhum dos outros - nem mesmo com

    a jovem Joana, a mais nova das filhas. E Ricardo era, agora, o rei da

    Inglaterra, embora o pai tivesse feito o possvel para evitar que ele

    herdasse a coroa. Henrique queria d-la a Joo. Teria ele percebido, em

    seus ltimos momentos de vida, como tinha sido um tolo ao idolatrar Joo?

    Como homens espertos podiam ser estpidos, s vezes, quando embriagados

    pelas emoes! No fundo do corao, ele devia ter sabido que Joo era um

    traidor, e no entanto recusara-se teimosamente a aceitar a verdade. Joo

    o trara como Ricardo nunca fizera, porque pelo menos Ricardo tinha sido

    sincero em sua condenao do pai, enquanto que Joo o bajulara,

    elogiando-o enquanto o tempo todo tramava contra ele.

    Henrique sabia, claro, apesar de enganar a si prprio. O que dissera

    ele a Eleanor quando os dois tinham estado naquela sala?

    - As quatro aguietas so meus filhos, que iro me perseguir at eu

    morrer. O mais novo, meu favorito, ser o que mais ir me ferir. Est

    esperando pelo momento de me arrancar os olhos com o bico.

    - Oh, Henrique - disse ela, baixinho -, que tipo de tolo era voc?

    Eleanor repreendeu a si mesma pela ternura de seus sentimentos. Henrique

    fora seu inimigo. Era uma fraqueza sentir ternura s porque ele estava

    morto e j no podia mais prejudic-la. Tinha de parar de pensar nele;

    tinha de isolar de sua mente as recordaes da juventude dos dois, quando

    embora ela fosse quase 12 anos mais velha do que ele, e casada na poca

  • com o rei da Frana, a paixo

    12

    explodira entre eles. Ento, nenhum outro homem servira para ela e ela

    amara s a ele, at que Henrique levara o filho bastardo para a sua ala

    infantil e ela descobrira que ele lhe havia sido infiel no primeiro ano

    de casamento. Ento, comearam as discusses violentas, as recriminaes.

    Ela sorriu fracamente, vendo-o fazendo em pedaos o tecido de sua jaqueta

    num acesso de raiva, deitandose no cho e mordendo os juncos imundos,

    atirando alguma pea da moblia no outro lado da sala...

    - Voc tinha suas fraquezas, meu marido - murmurou ela.

    - Mas tambm tinha a sua grandeza.

    Houvera uma poca em que Henrique era considerado um guerreiro invencvel

    por toda a Inglaterra e todo o continente da Europa, quando homens

    tremiam ao ouvir seu nome. Ele fora um estrategista brilhante e tornara a

    Inglaterra prspera depois do reinado do fraco Estvo. No entanto, como

    decara no final! A narrativa de sua morte a deixara emocionada, por mais

    que no quisesse ter esse sentimento. Ele voltara o rosto para a parede e

    dissera:

    - J no me importo comigo mesmo ou com o mundo. - E no seu delrio: -

    Que vergonha, que vergonha para um rei derrotado!

    - Pobre Henrique - murmurou ela. - E ser que sou to boba e to

    sentimental quanto voc? O que estou fazendo nesta sala? Por que estou

    pensando no passado? Meu inimigo est morto e sua morte a minha

    liberdade. vou parar de ficar me remoendo. H trabalho a fazer. -

    Resoluta, ela se levantou; no voltou a olhar para o quadro da guia com

    as aguietas.

    Fechou a porta com firmeza.

    Quando Ricardo chegasse, tudo deveria estar pronto para receb-lo.

    Uma nova dignidade tomara conta de Eleanor. O primeiro ato do filho tinha

    sido livr-la da priso. Ela no ficara desapontada com ele.

    E o grande objetivo de Eleanor seria segurar o reino para ele. No

    deveria ser difcil. Os ingleses tinham um senso de jogo limpo, e Ricardo

    era o filho vivo mais velho do falecido rei. O fato de Henrique ter sido

    favorvel a Joo pouco valia para eles. Na verdade, Joo no se tornara

    muito popular junto ao povo, mas o principal ponto a favor de Ricardo era

    ser ele o verdadeiro herdeiro do trono.

    Havia um ar de majestade em Eleanor; ela nascera assim. As

    13

    pessoas reconheciam isso logo e ficavam prontas a prestar-lhe homenagens,

    e ela podia providenciar para que Ricardo encontrasse seus sditos

    esperando para dar-lhe as boas-vindas quando voltasse da Normandia, o que

    deveria acontecer em breve. Aquilo era importante. No se devia deixar

    que os sditos pensassem que ele se importava mais com outras possesses

    do que com a Inglaterra.

    Tinha uma pessoa com quem havia muitos anos Eleanor ansiava por

    defrontar-se, a jovem que, quando ainda criana, fora seduzida por

    Henrique e continuara sendo sua amante at o fim: a princesa Alice. O que

    estaria pensando Alice, agora que perdera seu poderoso protetor? O desejo

    de descobrir era irresistvel. Eleanor mandaria uma ordem ao palcio de

    Westminster, onde a princesa Alice tinha seus aposentos. Como era

    divertido poder mandar chamar a jovem e saber que ela no ousaria

    recusar-se a ir!

    Alice estava sua frente.

    Era bem atraente, embora no de uma beleza que a destacasse, como

    acontecera com Eleanor. Havia algo de dcil em relao a Alice e agora,

    claro, ela estava com medo porque no sabia o que a aguardava, e sem

    dvida ouvira rumores sobre a natureza vingativa da rainha.

  • Alice, noiva de Ricardo, amante do rei pai dele, agora tinha de enfrentar

    a esposa do amante!

    - Mandei cham-la para que possa interrog-la com relao ao seu futuro -

    disse Eleanor.

    Enfatizou a palavra "mandei". Ela, que fora uma prisioneira, era agora a

    pessoa cuja palavra era lei. Houvera poca em que a pequena Alice tinha

    apenas de expressar um desejo e seu maduro e fascinado amante ficava

    ansioso por atend-lo. Agora, ele morrera e Alice tinha de ficar sozinha

    e enfrentar a fria da mulher que ele ultrajara. Ultrajara! Eleanor

    sentia vontade de explodir numa gargalhada ao pensar naquela dcil garota

    enfrentando uma grande rainha. Mas na poca, a jovem tivera um grande rei

    por trs dela. Azar seu, sua tolinha, pensou ela; voc agora o perdeu.

    - Voc no espera, claro, que possa haver casamento entre voc e o rei

    Ricardo, agora - disse Eleanor.

    - Eu... eu no pensei que pudesse - disse Alice. Ela era bonita e frgil.

    Eleanor podia entender o motivo pelo qual ela atrara Henrique. Devia se

    agarrar a ele, admir-lo, ador-lo, dar-lhe aquilo que ele buscava em

    todas as mulheres. A sua Rosamund Clifford, outro

    14

    grande amor dele, tinha sido igual. Elas possuam uma feminilidade que,

    apesar de toda a sua voluptuosa beleza, Eleanor nunca possura.

    No, e faz bem, pois tendo sido seduzida pelo pai, no poderia esperar

    que o filho a levasse para a cama.

    Alice ruborizou-se. A amante do rei, e conseguindo parecer to recatada!

    Que criatura enganadora! O mais curioso era que ela era filha de Lus.

    Lus, a quem a prpria Eleanor, quando fora sua rainha, dera duas filhas,

    Alix e Marie.

    Eleanor via o pai de Alice naquela jovem: ela seria boa, se pudesse, pois

    queria ser boa, mas o destino lhe fora demasiado na forma do devasso

    futuro sogro, que fora sala de aula em que ela estava sendo educada com

    os filhos deles, j que iria casar-se com um deles, e quando ela no

    devia ter mais de 12 anos, fizera dela sua amante. Alice devia ser

    tmida, relutante e malevel, tudo o que era necessrio para estimular os

    sentidos desgastados de Henrique. Eleanor bem podia imaginar como a coisa

    comeara, e um cime raivoso tomou conta dela. Henrique quisera casar-se

    com Alice e se divorciar de Eleanor para isso. Mas no era assim to

    fcil divorciarse da herdeira da Aquitnia, ainda que fosse em favor da

    filha do rei da Frana.

    E agora ele estava morto, e Alice j passara da primeira juventude;

    segundo rumores, j tivera um filho dele. Mas a criana morrera, o que

    era uma complicao a menos.

    Tolinha astuta... to dcil, fingindo-se de virgem, quando o tempo todo

    mantivera relaes com ele, e a rainha sabia, por experincia prpria,

    como eram aquelas ocasies.

    - Ento voc est aqui, nada menos do que uma prostituta, embora a

    prostituta de um rei - disse Eleanor. - No fica bem na irm do rei da

    Frana.

    - Ns... ns...

    - Eu sei, eu sei. Vocs se amavam, e ele a teria feito sua rainha. Isso,

    se pudesse ter-se livrado da rainha que existia. Voc sabe quem estava no

    seu caminho, minha princesinha. Como deve terme odiado!

    - Oh, no...

    - Oh, sim! Eu seria capaz de jurar que ele falava em mim. O que que ele

    lhe contava a meu respeito, hein?

    - Ele raramente falava em Vossa Majestade.

    - Voc est com medo de dizer. Voc uma coisinha assustada,

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  • Alice. Tem medo de mim e vai ter medo de enfrentar seu irmo quando ele

    mandar busc-la. O que vai dizer ao rei da Frana quando for levada de

    volta para ele,

    quando ele souber de suas brincadeiras na cama do antigo rei da

    Inglaterra?

    - Devo pedir a Vossa Majestade que faa justia memria dele...

    - Sua tolinha, acha que tenho medo de que o fantasma dele venha me

    assombrar? Que venha! Como eu gostaria de dizer ao fantasma o que eu

    achava do Henrique em carne e osso! Nunca tive medo dele em vida, quando

    no tenho dvidas de que era mais poderoso do que poderia ser depois da

    morte. No, ele era um devasso. Bastava uma mulher atrair um pouco de sua

    ateno, e ele a levava para a cama... como fez com voc. No pense que

    ele tinha por voc alguma considerao especial.

    - Ah, tinha, sim. Ele sempre vinha direto para mim quando estava na

    Inglaterra...

    - Direto das outras, e no duvido que tenha jurado que se casaria com

    voc, e rido de voc e do filho que ele estava enganando.

    - No verdade. A conscincia o torturava. Ele falava muito em Ricardo.

    - Que nobreza, a dele! com que ento vocs falavam sobre Ricardo e de

    como o estavam enganando, e acha que isso a exonera de suas justas pagas

    pelo que fez?

    - Ricardo, na verdade, no queria se casar comigo.

    - O pai evitou que ele se casasse.

    - Correm histrias sobre Ricardo.

    - O que quer dizer?

    - Sobre a vida que ele leva.

    - com mulheres? - bradou Eleanor. - Quem poderia conden-lo, privado de

    sua mulher como tem sido? Ele no criana. Est com mais de trinta

    anos.

    - com o meu irmo - disse Alice, ousada. - Dizem que se deitou com ele

    quando esteve na corte de Filipe.

    - Um costume, quando um monarca quer homenagear outro.

    - Dizem que h um grande amor entre eles.

    - Dizem! Quem tem dito isso? Ser que voc, a vagabunda de um rei

    devasso, est em condies de julgar a conduta de outras pessoas? Tenha

    cuidado, minha putinha, caso contrrio poderia acabar presa.

    - Meu irmo no permitir que isso acontea.

    16

    Voc ainda no est na corte de seu irmo. Est na do rei

    Ricardo, e enquanto ele no vier reivindicar o seu reino, eu o controlo

    para ele.

    - O que pretende fazer comigo?

    - Mante-la por aqui algum tempo. - Eleanor aproximou-se de Alice e

    agarrou-a pelo brao. - Enquanto voc se divertia com o seu amante, eu, a

    esposa legtima, estava presa aqui neste castelo. Havia guardas do lado

    de fora da minha porta. Quando eu saa, guardas me acompanhavam.

    - Vossa Majestade pegou em armas contra o rei. Levou seus filhos a se

    revoltarem contra ele. Foi um castigo justo.

    - Mandar prender a esposa! Voc acha isso? Tudo o que ele sofreu,

    merecia.

    - E Vossa Majestade tambm - disse Alice, ousada.

    - Tenha cuidado. Voc agora est em meu poder, sabe? -- Ricardo vai me

    tratar bem.

    - Ento acha que ele ir aceit-la, agora? Est enganada, Alice. Voc

    ser mandada de volta para seu irmo, disso no duvido. Mas nenhum homem

    ir quer-la agora.

    - No verdade.

  • - No o rei da Inglaterra, que pode escolher uma esposa no mundo inteiro.

    Por isso, na melhor das hipteses, uma vida enfadonha a espera. Vai ficar

    sentada com o seu trabalho de agulha em um dos castelos de seu irmo e

    meditar sobre o passado e lembrarse de como Henrique se divertia com voc

    e que aventuras iguais a essa esto definitivamente encerradas para voc.

    Enquanto isso, vai ficar aqui. Vai aprender como foi a minha vida aqui

    como prisioneira. Os mesmos aposentos que me foram destinados sero

    destinados a voc. Os mesmos guardas estaro sua porta. A nica

    diferena ser que voc vai ser minha prisioneira, e eu fui prisioneira

    do seu amante. Ora vamos, minha princesa. J basta dessa vida tranquila.

    Voc pecou, e tem de se arrepender. Vai ter tempo para isso na priso.

    A rainha chamou os guardas que mandara ficar esperando.

    - Levem a princesa Alice aos seus aposentos - disse ela.

    Eleanor era esperta o bastante para saber que no podia ficar no castelo

    s para tripudiar sobre o destino de Alice. Sabia, tambm, que aquilo no

    poderia durar muito. Filipe no iria permitir, e no era uma questo

    sobre a qual ela gostaria de criar um caso poltico.

    17

    Ainda assim, no podia resistir a fazer com que a jovem provasse um pouco

    da humilhao que ela sofrera.

    Precisava preparar o pas para a chegada de Ricardo e deixar o povo

    pronto para receber o novo rei, e por isso anunciou que faria uma pequena

    excurso pelo pas. Saiu de Winchester deixando ordens para que se fosse

    recebida a notcia da chegada iminente do rei Inglaterra, a informao

    deveria ser transmitida a ela de imediato.

    Enquanto cavalgava, Eleanor pensava no fato de que sempre havia perigo

    quando um rei morria. Nunca se podia estar certo quanto a como o povo

    iria se sentir em relao ao sucessor. Para os descendentes do

    Conquistador, a Inglaterra tinha sido uma herana

    intranquila, principalmente porque a posse de terras alm-mar exigira a

    presena deles no exterior. Os ingleses, naturalmente, no gostavam de

    ser negligenciados. A vida de Henrique fora passada entre a Inglaterra e

    a Frana, e como suas possesses

    na Frana tinham sido muito mais difceis de manter, devido presena

    dos francos bem nas suas fronteiras, ele estivera mais vezes l do que na

    Inglaterra.

    O povo tinha de aceitar Ricardo. Eleanor tinha poucas dvidas quanto a

    isso. Se um dia um homem teve a aparncia de um rei, esse homem era

    Ricardo. Como era diferente de seu desleixado pai, que se vestia de forma

    desordenada e parecia um campons, que nunca usava luvas para cavalgar e,

    porque saa em todas as condies de tempo, tinha uma pele que parecia

    couro. No entanto, conquistara o respeito de seu povo. Mas como o povo

    seguiria mais prontamente um homem que parecia um rei!

    Ao entrar nas cidades a cavalo, Eleanor mandava chamar os principais

    cidados. Sabia que o maior ressentimento que se guardava em relao ao

    falecido rei e seus antecessores devia-se imposio das velhas leis

    florestais. Os reis normandos tinham sido fanticos no que se referia a

    suas reas de caa. Henrique Plantageneta fora igualmente rigoroso. To

    grande era a paixo deles pela caa que no tinham poupado coisa ou

    pessoa alguma para satisfazla. De maneira geral, Henrique fora um rei

    popular, mas nas reas florestais ele fora odiado. Instalara guardas em

    regies florestais para agir como zeladores, e ningum que vivesse nas

    proximidades podia derrubar rvores, ter cachorro ou possuir arcos e

    flechas. Quem fosse descoberto desobedecendo aquelas leis era punido de

    forma to horrvel que a morte teria sido prefervel. Mos, ps, lnguas,

    narizes

    18

  • e orelhas eram cortados, e os olhos arrancados. O castigo pela prtica de

    qualquer ato que pudesse prejudicar da maneira mais nfima os prazeres do

    rei com a caa era a mutilao.

    No entanto, Henrique, apesar de muito esperto, ansioso por aplacar um

    povo que tinha de ser deixado sob o controle de um governante interino

    por longos perodos, sabendo que aquelas medidas eram fonte de grande

    impopularidade, nada fizera para revog-las. A caa era um dos principais

    prazeres de sua vida, e como seus antepassados ele pretendia dedicar-se a

    ela em condies ideais.

    Pensando naquela paixo, agora, Eleanor raciocinava uma vez mais que,

    embora seu falecido marido tivesse sido um homem de grande capacidade,

    tivera muitas fraquezas.

    - As leis sobre a caa - anunciou ela - so rigorosas e cruis. O novo

    rei vai querer alter-las. Para comear, em seu nome vou libertar todos

    aqueles que estiverem aguardando o castigo segundo elas. H uma coisa que

    peo queles que tiverem recuperado a liberdade: rezem pela alma dele.

    Aqueles que tinham sido salvos de um destino terrvel, aqueles que tinham

    estado vivendo como foras-da-lei e agora podiam voltar para suas

    famlias, estavam muito dispostos a fazer o que Eleanor pedia.

    - Deve-se compreender - disse ela - que esta clemncia parte do rei

    Ricardo, e embora ele deseje que aqueles que foram condenados segundo

    leis injustas sejam libertados, no pode apoiar a libertao daqueles que

    cometeram crimes contra outras leis.

    Ergueu-se um grande brado de aprovao, e Eleanor teve a certeza de que a

    libertao dos infratores das leis da caa tinha sido uma manobra

    inteligente.

    - Eu agora ordeno que todo homem livre do reino jure lealdade ao rei

    Ricardo, filho do rei Henrique e da rainha Eleanor, para a preservao da

    vida, dos membros e da honra terrena dele, como seu senhor feudal, contra

    todos os seres vivos; e que ser obediente a suas leis e o ajudar na

    preservao da paz e da justia.

    O novo rei foi aclamado com entusiasmo.

    Eleanor fizera bem o seu trabalho; e quando lhe transmitiram a notcia de

    que Ricardo chegara Inglaterra, voltou depressa para Winchester, a fim

    de estar pronta para receb-lo.

    Ela reunira toda a nobreza em Winchester. Talvez o mais importante fosse

    Ranulf de Glanville, que tinha sido o zelador do castelo

    19

    nos anos em que ela estivera presa. Ela no lhe guardava rancor; ele

    sempre a tratara com o devido respeito, e o fato de ter procurado evitar

    a sua fuga significava que estava obedecendo ao seu senhor. Como

    magistrado principal da Inglaterra e homem de imenso talento, Eleanor

    acreditava que o seu apoio seria til ao novo rei.

    A cada dia que passava, pessoas acorriam s multides para Winchester,

    medida que a chegada de Ricardo se tornava iminente. Eleanor no tinha

    certeza se seu filho Joo chegaria com o irmo. Os dois tinham estado

    juntos na Normandia, mas era possvel que tivessem tomado caminhos

    diferentes na volta para casa. Foi o que aconteceu.

    Foi um momento maravilhoso, para a rainha, quando contemplou o filho

    adorado cavalgando frente de sua comitiva, uma viso magnfica,

    suficiente para encher de satisfao qualquer me.

    O encontro foi emotivo, e quando Ricardo a abraou ela sabia que aquele

    era um dos momentos mais felizes de sua vida. Ela estava livre, depois de

    mais de 16 anos de cativeiro; seu filho, o mais amado de todos os seus,

    era rei da Inglaterra, e os primeiros pensamentos que tivera ao assumir a

    coroa tinham sido dirigidos a ela. Ela amava intensamente, e era amada

    com igual fervor.

  • - Mame! - exclamou ele.

    - Meu filho, meu rei! - respondeu ela, a voz trmula de emoo.

    No poderia haver dvidas quanto qualidade de rei que Ricardo possua.

    Ele era perito em todos os passatempos msculos. Tinha sido assim desde a

    infncia. Era muito alto, tendo os braos e as pernas compridos de seus

    ancestrais normandos, bem como sua boa aparncia loura; os cabelos eram

    castanhos avermelhados, os olhos de um azul intenso, e tinha mais do que

    uma simples boa aparncia; a graa do porte, seus ares de rei eram

    insuperveis, e em qualquer grupo de homens ele teria sido destacado como

    sendo o rei.

    Eleanor se sentia fraca de tanto orgulho; ela, que em geral era muito

    forte e raramente se deixava vencer pelas emoes! Aquele era o filho que

    ela criara, e ela reconhecera as qualidades superiores desde que ele era

    um beb; os dois tinham sido aliados e tinham-se voltado, juntos, contra

    o pai dele e o bastardo Geofredo, que fora levado para a ala infantil

    real. Ricardo fora o seu preferido desde que nascera, e o vnculo, pedia

    ela em suas oraes, s seria rompido pela morte.

    20

    - Como meu corao se alegra ao v-lo aqui! - disse ela.

    - Havia muita coisa a fazer alm-mar antes que eu pudesse vir.

    - Seus sditos foram preparados para dar-lhe as boas-vindas.

    - Mame, eu sei que a senhora fez um bom trabalho para mim.

    - Espero nunca fazer outra coisa a no ser um bom trabalho para voc, meu

    filho.

    Ricardo franziu a testa quando Ranulf de Glanville se aproximou para

    prestar-lhe vassalagem, que ele recebeu com frieza. Eleanor sorriu,

    percebendo que Ricardo estava pensando naquele homem como carcereiro de

    sua me. Ela precisava fazer com que ele compreendesse a importncia de

    Glanville. Ricardo no devia fazer um inimigo de um homem daqueles. Havia

    muita coisa sobre a qual ela devia preveni-lo, e Eleanor esperava que o

    filho a amasse o suficiente para permitir que ela o orientasse.

    - Vamos seguir para o castelo - disse ela. - Haver festas e

    comemoraes, como prprio para a chegada do rei.

    - Temos muito que conversar.

    - Muito, mesmo.

    - Como me alegra a senhora estar aqui ao meu lado! Isso vai aliviar o meu

    fardo. A senhora cuidar dos assuntos aqui enquanto eu estiver ausente.

    A felicidade dela ficou misturada com uma certa apreenso. Quando ele

    estivesse ausente? Mas claro que ele teria de se ausentar. Seus domnios

    estavam muito espalhados. Deve ter sido a isso que ele se referira.

    Eleanor afastou os temores e entregou-se aos prazeres de ver as

    homenagens sendo prestadas a Ricardo ao entrar no castelo. com que

    nobreza ele as aceitava! Ela percebeu como as pessoas o olhavam.

    Nunca poderia ter havido outro homem que se parecesse tanto com um rei.

    Estar a ss com ele, falar-lhe sobre assuntos secretos, partilhar de suas

    confidncias, aquilo era uma grande alegria para ela.

    - Sua coroao deve acontecer imediatamente - aconselhou ela. - Uma vez

    coroado, o rei fica sendo rei de verdade; antes disso... - ela ergueu os

    ombros.

    - Decidi que ser no dia 3 de setembro.

    - No um dia azarado? Ele soltou uma gargalhada.

    21

    - Mame, no ligo para essas supersties.

    - Outros podero ligar.

    - Pois que liguem. Irei para Londres no dia primeiro, e l serei coroado

    rei.

    - Ento, est bem. O detalhe importante que a cerimnia tenha lugar sem

  • demora. Ricardo, preciso lhe falar sobre Alice. Ela est aqui

    - Neste castelo?

    - Em recluso. Achei que como eu sofrera isso por tanto tempo, ela no

    sofreria mal algum ao provar um pouco da mesma coisa.

    Ele fez um gesto afirmativo com a cabea, mas seu cenho estava franzido.

    - O que se deve fazer com ela? Eu no a aceitarei.

    - No devemos nos esquecer de que o irmo dela o rei da Frana.

    Uma sombra cruzou a fisionomia dele. Quais eram os seus sentimentos para

    com Filipe, agora? No havia dvida de que j tinham sido amigos muito

    ntimos. Teria sido devido ao amor, ou por convenincia da parte de

    Ricardo? Certa vez, ele precisara da amizade do rei da Frana quando seu

    prprio pai era seu inimigo. Agora que era o rei da Inglaterra, e como

    todos os reis da Inglaterra tinham de ter cuidado com os reis da Frana,

    seus sentimentos teriam mudado? O antigo amigo... amante... seria agora

    um rival mortal?

    - No me importa o que o irmo dela seja - disse Ricardo.

    - No vou ficar com nenhum dos rebutalhos de meu pai.

    - Seu pai nunca a jogou fora. Foi fiel at o fim, segundo dizem... fiel

    sua maneira, claro. Sem dvida que ele se divertia feliz da vida quando

    ela estava bem longe, mas, como acontecia com Rosamund Clifford,

    visitava-a com muita amizade, durante muitos anos.

    - Meu pai est morto, agora, mame; vamos esquecer os seus hbitos. A

    verdade que no quero saber de Alice.

    - Ela ter de voltar para a Frana. No vai gostar. J est na Inglaterra

    h 22 anos.

    - Mesmo assim, ter de ir.

    - Mas voc vai se casar. o que se espera que faa.

    - Tenho uma esposa na cabea. Berengria, filha do rei de Navarra, aquele

    a quem chamam de Sancho, o Sbio. Ns nos conhecemos porque fui

    apresentado a ela quando fui levado corte de seu pai pelo irmo dela,

    que conhecido como Sancho, o Forte,

    22

    para Distingui-lo do pai. Chegamos at a falar em casamento, mas Alice,

    claro, estava no meu caminho.

    Aquela garota e seu pai tm muito a pagar. Embora eu duvide que possamos

    culpar Alice; ela uma pena soprada para c e para l pelo vento.

    - Ento, pelo amor de Deus, vamos sopr-la de volta para a Frana.

    - O que que Filipe vai dizer, quando descobrir a irm sendo devolvida?

    - O que poder ele dizer de uma irm que viveu com o homem que seria seu

    sogro e teve um filho dele? - Ricardo cerrou os punhos e bradou: - Meu

    Deus, quando penso que ele a tirou de mim, usando-a como usou, e o tempo

    todo me enganando...!

    - Isso j acabou. Como voc me lembrou, ele morreu. J no pode causar

    mal algum. Voc agora o rei, Ricardo. Pode ir em s conscincia para

    Berengria.

    - Se tiver de haver um casamento, este que eu quero. Sinto uma amizade

    firme em Sancho. Lembre-se de que foi ele que apelou para meu pai com

    relao senhora, quando pedi. Foi graas a ele que a sua priso foi

    menos rigorosa do que poderia ter sido.

    - Sim, eu me lembro muito do bem que ele me fez.

    - Por isso, e porque eu no poderia confiar a ningum mais essa tarefa,

    quero que v corte de Navarra e traga Berengria... no para mim...

    porque no posso pedir a mo dela enquanto no me virem liberado do

    compromisso com Alice. Mas quero que ela seja levada para onde possa

    esperar at eu me libertar.

    - Assim ser feito - disse Eleanor. - Mas, primeiro, tem de haver a sua

    coroao. E seu irmo, Joo?

  • - Deixei-o na Normandia. Ele iria partir de Barfleur. Esperava

    desembarcar em Dover.

    Eleanor balanou a cabea, num gesto afirmativo.

    - Vai ser bom para ele estar aqui. - Ela olhou firme para Ricardo. -

    lamentvel que seu pai tenha dado tanta importncia a ele. Eu nunca

    entendi por que Henrique fez isso.

    - Foi para me irritar - retrucou Ricardo, com veemncia. A senhora sabe

    como ele me odiava.

    - Eu tambm nunca entendi isso nele. Voc... tudo o que um rei deve ser,

    sem dvida um filho do qual qualquer pai deveria ter orgulho... - Ela

    riu. - Voc sempre ficou do meu lado contra ele,

    23

    Ricardo. Mesmo naqueles primrdios na ala infantil. Talvez tivesse

    perdido a boa vontade dele ao fazer isso.

    - Parece que sim, mas no tenho nenhuma desconfiana com relao a Joo.

    Ele sabe que sou o primeiro na linha de reivindicao da coroa. Eu lhe

    darei honrarias, irei trat-lo com dignidade e respeito. Ele precisa

    compreender que nunca poder ser rei, exceto no caso de eu no conseguir

    um herdeiro.

    - , temos de fazer com que ele compreenda isso. Parece que tem mais

    interesse pelos companheiros dissolutos do que teria por governar um

    reino.

    - melhor mante-lo assim. E Ranulf de Glanville?

    - No tenho dvidas de que ir servi-lo como serviu ao seu pai.

    - No gosto de quem foi seu carcereiro.

    - Tarefa que lhe foi imposta. Como sabe, ele no podia desobedecer a seu

    pai.

    - Mesmo assim, um homem que a humilhou, minha me! Eleanor sorriu para

    ele com ternura.

    - No devemos deixar que essas questes perturbem nossos julgamentos, meu

    filho. Ranulf esteve encarregado dos cofres do tesouro em Winchester. No

    ficaria bem ele no lhe dizer alguns dos segredos daqueles cofres.

    Ricardo semicerrou os olhos.

    - vou ter dificuldade em sentir amizade por um homem que agiu com a

    senhora daquela maneira.

    - Eu posso perdo-lo. No vou pensar em nenhuma das injustias que sofri,

    mas apenas no bem que possa lhe acontecer. Voc tem de contrat-lo para

    os seus servios. Precisa de bons servidores.

    - Mais do que a maioria - admitiu ele -, pois vou precisar deixar o pas

    em boas mos. Jurei que tomaria parte na Guerra Santa, como sabe...

    - Mas agora que voc rei, isso ser possvel?

    - Eu nunca poderia ficar em paz com a minha conscincia se quebrasse meu

    juramento.

    - Voc agora tem um reino para governar, Ricardo. Seu dever no fazer

    isso?

    - Filipe e eu temos de ir Terra Santa juntos.

    - Ento... aquela amizade ainda est de p.

    - Veremos - disse Ricardo. - Em todo caso, pretendo honrar

    24

    meus compromissos para com o filho de meu pai, Geofredo. - O bastardo!

    Ele ficou com meu pai at o fim.

    - Em troca do que pudesse conseguir.

    - No, mame, acho que no. Geofredo o serviu bem e ficou com ele quando

    todos os outros o haviam abandonado. Joo o abandonara. Dizem que isso

    lhe partiu o corao, e quando ele soube que o nome de Joo estava na

    cabea da lista daqueles lordes que se haviam voltado contra o rei, no

    quis mais viver. Seu ltimo desejo foi que Geofredo no sofresse pela sua

  • fidelidade. E no sofrer.

    - No, Ricardo, ele tiraria o trono de voc, se tivesse a oportunidade.

    - A senhora no o conhece, mame. A senhora o odiava porque ele era uma

    prova viva da infidelidade de meu pai para com a senhora, mas isso no

    culpa de Geofredo. Ele foi leal a meu pai at o fim, quando nada havia a

    ganhar e tudo a perder. Como foi Guilherme, o Marechal. Irei sempre

    venerar homens assim.

    - Mas Ricardo, esse filho de uma prostituta...

    - meu meio-irmo. Eu lhe peo que no se preocupe mais com ele, porque

    tomei uma deciso. Meu pai queria que Geofredo ficasse com o arcebispado

    de York, e isso que outorgarei a ele.

    - Isso um erro - disse a rainha.

    - Minha inteno esta - respondeu Ricardo.

    Eleanor viu a linha teimosa dos lbios dele e percebeu que no adiantava

    tentar dissuadi-lo.

    Para que ela no pensasse que aquilo se devia a uma falta de energia por

    parte dele, Ricardo lhe falou do tratamento que dera a Estvo de Tours,

    o senescal de Anjour, que fora o tesoureiro dos domnios ultramarinos do

    falecido rei.

    - Ele se recusou a me entregar o tesouro de meu pai, e por isso atirei-o

    numa masmorra e enchi-o de correntes. Esse tratamento fez com que, pouco

    tempo depois, ele implorasse perdo e, o que era mais importante, me

    entregasse todos os bens de meu pai. No tenha receio, mame, serei

    forte. Nenhum homem ir me iludir com um comportamento astuto, mas h

    homens que so estrelas brilhantes em qualquer coroa de rei, aqueles em

    quem se pode ter a confiana de que serviro com honra o seu rei, e se

    esse servio tiver sido prestado a meu pai porque ele era o rei e agora

    me for oferecido, vou aceit-lo. - Ele tomou uma das mos de Eleanor e a

    beijou. Embora fosse seguir seu prprio caminho, estava dizendo a ela

    25

    que iria ouvi-la; mas que se no concordasse com o seu conselho, no o

    aceitaria.

    No fundo do corao, Eleanor no iria querer que ele fosse de outra

    maneira.

    - Precisamos, agora, pensar na sua coroao - disse ela. No pode haver

    demora. Daqui a pouco Joo estar conosco.

    - Ele tem de estar presente na minha coroao. Quero que ele saiba que se

    for um irmo leal a mim, seu futuro ser brilhante.

    - Ele estar aqui em breve - disse Eleanor. - Estou ansiosa por ver meu

    filho caula. Fique tranquilo, querido Ricardo, que incutirei nele a

    necessidade de servir bem a voc.

    - Eu sei - disse Ricardo; e apesar do fato de que ela lamentava

    profundamente a sua demonstrao de benevolncia para com o bastardo de

    seu marido, Geofredo, havia uma perfeita concordncia entre eles. -

    Joo ficara observando o irmo embarcar em Barfleur. "Seria bom viajarmos

    em separado", dissera Ricardo.

    O significado daquelas palavras era evidente. Eles eram os dois filhos

    homens que restavam do rei morto. Se ambos se tornassem vtimas do mar -

    o que poderia muito bem acontecer se viajassem no mesmo barco - o

    herdeiro seguinte seria um menino, riada mais do que um beb, o filho do

    irmo deles j falecido, Geofredo da Bretanha. O pequenino Artur no

    estava em idade de governar.

    Uma tristeza tomou conta de Joo ao ver o barco do irmo partir. No era

    isso que seu pai pretendera. A Inglaterra tinha sido prometida a ele,

    Joo. Ele ansiava por ser rei... o rei da Inglaterra.

    Nunca esqueceria que quando nascera o pai o apelidara de Joo Sem Terra

    (Jean sans Terre). Isso porque os irmos mais velhos tinham preferncia

  • em relao s possesses do pai, e mesmo um rei com domnios ultramarinos

    no poderia sustentar com folga tantos filhos homens. Seu irmo Guilherme

    morrera antes dele nascer, mas ainda tinham sobrado Henrique, Ricardo e

    Geofredo. Henrique e Geofredo j tinham morrido. Assim, s restavam os

    dois - Ricardo e ele.

    Como ele exultara, no ntimo, com o rancor que havia entre o pai e

    Ricardo! Aquilo parecia ter deixado o caminho livre para ele; e o pai lhe

    falara muito sobre a sua herana. Agora, aquele poderoso irmo mais

    velho, conhecido por toda a Europa como um dos maiores guerreiros de sua

    poca, reivindicava o trono. A me

    26

    estava a favor dele, o mesmo acontecendo com o povo. O que poderia Joo

    fazer para evitar que Ricardo se tornasse rei?

    A parte da histria que era de enlouquecer era que, agora, Ricardo iria

    se casar, e se viesse um filho homem seria o fim das esperanas de Joo.

    Certa vez, tinham-lhe prometido uma coroa de rei da Irlanda. Ele ficara

    muito satisfeito, na ocasio, mas quando o pai o mandara para a Irlanda

    surgiram problemas. Ele e seus jovens seguidores tinham ridicularizado os

    irlandeses, cujos modos pareciam muito esquisitos em comparao com os

    deles; as moas eram bonitas, porm, e por serem jovens e estarem muito

    animados, eles tinham se divertido bem com elas; mas os irlandeses no

    tinham gostado do estupro de suas terras e de suas mulheres, e Joo fora

    chamado de volta. O pai mostrara-se tolerante com ele, idolatrando-o at

    o fim. Mandara buscar uma coroa de penas de pavo, feita em ouro, enviada

    pelo papa, que dera o seu consentimento, para fazer de Joo o rei da

    Irlanda. Que azar Joo tivera! Problemas na Normandia (quando no havia

    problemas na Normandia?) intervieram para impedir a cerimnia, e ele no

    recebera a coroa.

    Joo amaldioara o azar que fizera com que ele fosse um filho caula, mas

    tivera a viso de saber quando deveria abandonar o pai. Na verdade,

    jamais ligara a mnima para o velho; enganara-o o tempo todo e passara

    para o lado de Ricardo antes do pai morrer; e por isso, Ricardo agora o

    estava aceitando como um bom irmo e um aliado.

    Teve um riso hipcrita, pensando no irmo mais velho. Ricardo Sim e No.

    Aquilo era timo. Ele era previsvel. Pouco havia de astcia em Ricardo.

    Para ele, um inimigo era um inimigo, um amigo, um amigo. Ricardo dizia

    "no" e queria dizer "no". Era franco e sincero. Mas sabia ser

    implacvel, e quando a sua raiva era provocada contra um inimigo, ningum

    podia ser mais cruel. Mas possua o que chamava de senso de honra, e isso

    no lhe permitia dissimular, o que tornava fcil, para homens como Joo,

    saber como agir com ele.

    Agora, Joo teria de jurar vassalagem ao novo rei; teria de fazer com que

    o irmo acreditasse que seria leal a ele; e deveria ser, sim... at que

    surgisse uma oportunidade de ser o contrrio.

    Ele ainda era jovem, estava com 28 anos; Ricardo era dez anos mais velho.

    Tinham corrido rumores de certas libertinagens que Ricardo cometera. s

    vezes mulheres participavam delas; mas Ricardo

    27

    gostava realmente de mulheres? Joo no tinha certeza. Houvera rumores

    sobre Filipe, quando Ricardo estivera na Frana; mas um homem podia abrir

    mo de algum

    tempo junto aos seus entes queridos para ter um filho, especialmente

    quando esse homem era rei e seu filho poderia ser o prximo rei da

    Inglaterra. Era engraado o fato de a noiva de Ricardo ser a princesa

    Alice, que fora amante do pai deles. Ricardo no poderia casar-se com

    ela; e o fato de estar noivo dela iria significar, claro, uma certa

    demora para que pudesse se casar com outra mulher. A demora devia ser

  • recebida de bom grado, pois quem poderia dizer, na vida de um guerreiro

    daqueles, quando uma flecha ou arma semelhante poderia apressar o fim

    daquela vida?

    E ento, o caminho estaria aberto para Joo.

    Por isso, ele precisava voltar para a Inglaterra; precisava ajoelhar-se

    aos ps de seu atraente irmo; precisava jurar servi-lo com a prpria

    vida, enquanto esperava pacientemente a sua morte.

    Joo chegou a Dover e seguiu direto para Winchester.

    L, sua me lhe deu uma recepo calorosa. Ela gostava dele, embora,

    claro, nenhum de seus outros filhos pudesse ser para ela o mesmo que

    Ricardo. Joo ficou encantado

    quando, depois de ter sido formalmente recebido pelo irmo, Eleanor levou

    os dois para seu aposento privado e ele pde conversar com eles.

    Ricardo disse que no devia haver mais conflitos na famlia. Aquilo tinha

    sido a derrota do pai e no trouxera benefcio algum a nenhum deles. Que

    acabassem com aquilo e trabalhassem juntos.

    - De acordo - disse Joo, com fervor. A me dirigiu-lhe um olhar de

    aprovao.

    - Eu sei que certa vez voc ficou ao lado de nosso pai contra mim - disse

    Ricardo. - Sei que ele lhe ofereceu suborno... at mesmo o seu reino.

    Isso deve ser esquecido.

    - Est esquecido - garantiu-lhe Joo, srio.

    Ricardo agarrou-lhe a mo, e Joo forou o aparecimento de lgrimas em

    seus olhos.

    - bom vocs se entenderem - disse a me deles.

    - Nosso pai, eu sei, concedeu-lhe o condado de Mortain, mas no viveu o

    suficiente para lhe dar a posse. Ela agora ser sua.

    - Voc generoso para comigo, Ricardo.

    - E pretendo ser mais ainda. Voc recebeu certas terras na Inglaterra e

    h uma receita, creio eu, de umas quatro mil libras angevinas que provm

    delas.

    28

    Os olhos de Joo brilharam. Ele ficaria rico de verdade. Se as terras de

    Gloucester fossem suas, acreditava que seria o homem mais rjco da

    Europa... depois do rei.

    - H outra questo - disse ele. - Refere-se ao meu casamento. J no sou

    um menino. Preciso de uma esposa. - No acrescentou: "e preciso da

    fortuna dela". Mas nem a me nem o irmo ignorariam o tamanho daquela

    fortuna.

    - Nosso pai o prometeu a Hadwisa de Gloucester - disse Ricardo. - Muitas

    vezes me perguntei se isso foi sensato. Existe um parentesco ntimo entre

    as nossas famlias.

    Sensato!, pensou Joo. A mais rica herdeira do pas! Claro que fora

    sensato!

    - Eu me casaria com ela amanh... se voc me desse o consentimento -

    disse Joo; e pensou: "Sim, e sem o seu consentimento, porque eu correria

    grandes riscos pela fortuna de Hadwisa."

    Eleanor disse:

    - As terras e a fortuna dos Gloucester devem vir para a nossa famlia.

    Que Joo se case com Hadwisa, e depois ser tarde demais para a Igreja

    fazer grandes coisas quanto a isso.

    Ricardo ficou pensativo, mas os olhos de Joo brilhavam com um prazer

    cobioso.

    Ricas terras na Normandia e riqueza proveniente da Inglaterra, e agora o

    casamento com a rica herdeira do pas!

    De uma torrinha do castelo de Marlborough, Hadwisa de Gloucester esperava

    ansiosa para ver a cavalgada frentre da qual estaria o seu noivo.

  • O pai lhe dissera que devia estar preparada. No haveria delongas. To

    logo a comitiva chegasse, o casamento teria de ser realizado.

    No era um casamento muito romntico, reclamara ela junto a suas damas.

    Ficava imaginando como seria Joo.

    - suficiente saber que ele filho de um rei - dissera sua velha ama. -

    E tambm jovem. Poderiam ter escolhido um velho para voc. Pelo menos,

    fica com um jovem que nada tem de feio.

    - Diga-me o que sabe sobre ele - implorara Hadwisa.

    Contar o que ela sabia? Contar as histrias sobre a licenciosidade do

    prncipe Joo? Era melhor no contar. Poderiam no ser verdade... isto ,

    no de todo. Pelo que se dizia, ele era jovem na idade, mas velho no que

    se referia aos pecados; e Hadwisa no tinha

    29

    experincia do mundo. A menina jamais entenderia. Portanto, devia ir

    descobrindo aos poucos, e por ela mesma.

    - No uma situao fcil - dissera Hadwisa - ser meiorealeza, por assim

    dizer. Os reis deviam pensar nisso quando tm filhos fora do casamento.

    - Eu creio que esta a ltima coisa em que eles pensam no calor da

    paixo.

    - Mas meu av foi um grande homem bom.

    - Ah! - dissera a velha ama. - Eu me lembro dele. Um belo cavalheiro, um

    homem digno. O pai o respeitava, e o pai era o rei Henrique I.

    - Eu sei que meu av Robert era um de seus filhos naturais.

    - E o rei gostava muitssimo dele. Ele foi o grande defensor da filha do

    rei, Matilda, na luta que ela teve contra Estvo.

    - Ela era uma mulher difcil, mas ele acreditava que sua causa era a

    certa, e sei que foi responsvel, em parte, pela ajuda para Henrique II

    subir ao trono.

    - Voc conhece a histria de sua famlia, minha filha. Isso bom. Ajuda

    a suportar o seu destino.

    - Por que ajudaria, ama?

    - Falar daqueles que j morreram h muito tempo e lembrar que viveram

    cercados de problemas faz com que voc sinta que os seus no so to

    importantes assim.

    - Acha que eu tenho problemas?

    - Voc, meu amor? Prestes a se casar com um belo prncipe?

    - Espero que ele goste de mim.

    - Ele no vai conseguir evitar isso - garantira-lhe a ama. Se ao menos

    aquilo fosse verdade, pensou Hadwisa. Sabia que

    no era bonita. As irms, todas casadas, agora, tinham sido muito mais

    atraentes do que ela. Ela no era boba. Sabia que o pai era um dos homens

    mais ricos do reino e que fora por isso que a haviam prometido ao irmo

    do rei.

    Ela agora conseguiu ver os cavaleiros ao longe. L estava o pavilho

    real, e frente do grupo estaria seu noivo.

    Sua me estava porta.

    - Hadwisa, voc est pronta? Precisa estar nos portes para saudar o

    prncipe. - Ela notou a ansiedade da filha e pensou: " uma pena a

    pobrezinha ser to feia." Nervosa, Hadwisa saiu para receber o noivo.

    Ele era de estatura mediana e, como todos os filhos homens

    30

    de Henrique II e Eleanor de Aquitnia, tinha um certo grau de beleza Mas

    embora ainda fosse jovem e seu carter ainda no tivesse feito rugas em

    seu rosto, havia

    nele algo que fez tocar um sinal de alerta no corao da noiva.

    A crueldade espreitava por aqueles olhos; a boca era de linhas que

    indicavam teimosia, mas fraca; at certo ponto, ele disfarava sua

  • verdadeira natureza, mas esta

    no podia ser inteiramente encoberta. Luxria, inveja, cobia... sim,

    todos os notrios sete pecados podiam ser percebidos ali.

    Joo segurou-lhe a mo e a beijou. Seus olhos refletiam um desejo

    ardente, mas no por ela. As mais ricas terras da Inglaterra! Quando

    fossem dele, ele estaria de posse de uma parte daquele pas.

    - Venha - bradou ele. - Vamos realizar o casamento. Minha esposa e eu

    vamos precisar de um pouco de tempo juntos antes que eu siga para a

    coroao de meu irmo.

    - Meu senhor, foi preparado um banquete - disse o pai de Hadwisa. -

    Tinhamos pensado que amanh poderia ser o melhor dia para a cerimnia.

    - Nada disso - bradou Joo. - Vamos celebr-lo hoje noite. - Segurou a

    mo de Hadwisa e apertou-a com firmeza. - Eu lhes digo que, tendo visto

    minha noiva... em sua casa... no posso esperar.

    E assim eles a prepararam, e sua me foi ter com ela e pediu que as duas

    fossem deixadas a ss.

    - Vamos - disse a me, quando as aias se haviam retirado.

    - Est tudo bem. Toda noiva fica nervosa no dia do casamento.

    - Isso foi to repentino...

    - Minha filha, voc ficou noiva do prncipe h anos.

    - Mas nunca pensei...

    - Voc agora est em idade de se casar, e ele tambm.

    - Mame, no recomendvel ns nos casarmos. Somos primos em terceiro

    grau.

    - Por ter sangue real em suas veias que voc uma digna esposa para o

    irmo do rei.

    - Mas somos primos em terceiro grau.

    - um elo tnue.

    - O rei Henrique I era meu bisav. De Joo, tambm.

    - No se preocupe com essas coisas.

    - Creio que a Igreja poder no sancionar o nosso casamento. Deveria

    haver uma dispensa especial.

    31

    - Minha querida filha, voc percebe que o rei deu o seu consentimento ao

    casamento?

    - O rei no a Igreja.

    - O que gostaria que fizssemos?

    - Que esperassem! - bradou Hadwisa. - Que esperassem!

    - J imaginou a ira de seu noivo se sugerssemos uma coisa dessas? O que

    acha que ele faria?

    Ah, aquele era o cerne da questo! O que faria ele? Poria fogo no

    castelo? Cortaria a cabea de seu pai? Ou o enforcaria na rvore mais

    prxima?

    Hadwisa ficou calada, pensando no que vira nos olhos do noivo.

    A cerimnia terminara; havia-se comemorado, os menestris tinham cantado,

    e Hadwisa e o noivo foram conduzidos para os aposentos nupciais.

    Ela estava com medo dele.

    Seu temor o divertia. Uma virgem! Ele j estava farto de virgens, e elas

    eram interessantes apenas por um curto momento. Quando Joo saqueara

    cidades com seus seguidores, eles haviam apanhado as melhores mulheres;

    aquilo, sim, tinha sido divertido! O medo dos outros sempre o deixava

    excitado. Aquilo o acalmava de alguma maneira. Fazia com que se sentisse

    importante. Naquele momento, tinha o poder de domin-los de forma

    absoluta. Compensava o fato de ser o filho caula.

    Hadwisa estava com medo dele, e isso o agradava. No havia muita coisa

    mais, nela, que o agradasse. Mas Joo tinha de se lembrar da riqueza que

    ela lhe proporcionava.

  • A mais rica herdeira do reino! Aquilo valia muito.

    - Ora, voc est relutante - disse ele. - Eu no agrado voc?

    - Ora, claro, meu senhor... mas...

    - Mas! Que "mas" so esses?

    - H uma forte relao sangunea entre ns...

    - Ah, realmente, o nosso bisav espalhou sua semente por todos os lados.

    Eu seria capaz de jurar que h muita jovem neste pas que poderia ser

    minha prima. com os prncipes, assim. Ningum ousa lhes dizer no.

    - Pensei que devamos ter esperado por uma dispensa por parte da Igreja.

    - Tarde demais... a cerimnia j se realizou. Eu agora sou seu marido.

    32

    - Mas eu quis dizer esperar para...

    - Para...? - Joo ergueu as sobrancelhas, zombando dela Para o qu, minha

    relutante esposa?

    - O senhor sabe a que me refiro.

    Ele a agarrou pelo pulso, e o aperto foi doloroso.

    - Diga-me - disse ele. - Vamos, ouamos esses lbios inocentes.

    Ela baixou os olhos.

    - A consumao...

    Ele riu em voz alta. Depois, agarrou-a e ela viu que seu temor no fora

    infundado.

    Durante cinco dias, Joo ficou no castelo. Deixou Hadwisa horrorizada,

    mas ela sabia que sua provao no duraria muito. Ele j estava ficando

    enfadado.

    - muito provvel que eu j tenha plantado o nosso filho em voc - disse

    ele. - Reze para que possa ter sido assim, porque no sei quando

    poderemos tornar a nos

    encontrar. vou, agora, coroao de meu irmo, e l possvel que haja

    muita coisa com que me ocupar.

    Quando estava prestes a deixar o castelo, chegou um mensageiro enviado

    por Baldwin, arcebispo de Canterbury. Levava com ele uma carta para o

    conde de Gloucester. Quando a leu, o conde ficou lvido.

    - O arcebispo probe o casamento, com base na consanguinidade - disse

    ele.

    Joo explodiu numa gargalhada.

    - Ele est um pouco atrasado, no?

    - Senhor prncipe, o que podemos fazer?

    - Queimar a carta. Esquec-la. O que est feito, est feito. Sua filha

    minha esposa. Quem sabe? Talvez j esteja grvida de um menino que

    poderia ser herdeiro

    do trono. No vou admitir que a Igreja interfira em meus assuntos.

    Baldwin proibiu o casamento quando meu pai vivia. Meu pai no dava a

    mnima importncia a Baldwin,

    como ns tambm no devemos dar.

    O conde disse:

    - Tem razo, alteza. No h nada que possamos fazer, agora. Joo partiu,

    a cavalo. Hadwisa nunca sentira um alvio to grande como o que sentiu ao

    ver a comitiva desaparecer ao longe.

    33

    Joo chegou a Londres, onde encontrou a me e o irmo instalados no

    palcio de Westminster. Havia uma grande agitao em Londres com a

    perspectiva da coroao; e

    parecia quase no haver dvidas de que o novo rei era popular. Ao abolir

    muitas das severas leis florestais, Eleanor abrira o caminho para ele; e

    com um novo reinado, o povo estava sempre pronto a acreditar que seria

    melhor do que o anterior. Henrique II fora um homem que proporcionara um

    grande bem ao pas; muita gente ouvira falar da situao existente

  • durante o reinado do fraco Estvo, quando assaltantes circulavam pelo

    pas sequestrando viajantes incautos, mantendo-os presos para pedirem

    resgate, roubando-os e, se eles possussem poucos bens terrenos,

    torturando-os a ttulo de distrao. Henrique, com suas rigorosas leis

    justas, fizera com que aquilo acabasse. Mas mantivera em vigor as cruis

    leis florestais, e era disso que o povo se lembrava, e no do bem que ele

    fizera.

    Agora, ali estava um novo rei, um homem que no era velho, de forma

    alguma, e que parecia um deus. Sua reputao como guerreiro era bem

    conhecida; ele era bom para sua me, que atuara como regente at a sua

    chegada. Tinha um irmo mais moo, que estava ansioso por servi-lo. Para

    o povo, parecia que estava tudo bem. E agora, uma coroao. Folguedos

    pelas ruas, procisses; e j corriam sussurros dizendo que aquele seria o

    mais belo espetculo que j deliciara os olhos dos cidados de Londres.

    Era natural que as pessoas estivessem agitadas. Era natural que todos

    sassem para aplaudir.

    Ricardo recebeu calorosamente o irmo.

    - Como foi? - perguntou ele. - No me diga, eu sei. Voc est casado.

    Baldwin est explodindo. Diz que um pecado voc viver com Hadwisa de

    Gloucester.

    - Isso d um tempero a uma questo que, caso contrrio, seria um tanto

    enfadonha - replicou Joo.

    - Ah, foi assim? Bem, voc tem as terras dela, e isso motivo de

    contentamento. Mas, e Baldwin?

    - vou ignor-lo. E voc, irmo? Vai?

    - No fica bem um rei estar em atrito com o arcebispo.

    - Esta uma situao que nada tem de incomum. Ele vai realizar a

    coroao, sem dvida.

    - Vai.

    - Acha que vai me denunciar, ao falar do altar?

    - Seria muito imprprio ele fazer isso numa coroao, e iria custar-lhe o

    cargo.

    34

    - Ento, provvel que me deixe em paz por algum tempo.

    - Estou achando que voc ficou satisfeito com a noiva, Joo.

    - Satisfeito com as terras dela.

    - Bem, agora ser um homem muito rico.

    - um conforto pensar no quanto estou rico.

    Eleanor abraou o filho caula e perguntou se a cerimnia do casamento

    fora de seu agrado. Ela se compadeceu dele.

    - Infelizmente, s vezes so as herdeiras mais ricas as menos atraentes.

    uma raridade encontrar uma mulher que seja as duas coisas.

    - A senhora, eu creio que foi, mame. Ela riu.

    - Eu fui amada por mim e pela Aquitnia. Nunca estive muito certa sobre

    quem era a mais atraente. Muito bem, Joo est com um casamento seguro...

    - No estou to certo assim - disse Ricardo. - Baldwin est fazendo

    objees.

    - Aquele bobalho! - retrucou Eleanor. - De qualquer maneira, tarde

    demais. Por que est sorrindo, Joo?

    - Estava pensando que o velho poderia me dar uma oportunidade de no ver

    minha mulher, se eu no quiser. - Joo colocou a mo sobre o corao e

    ergueu os olhos para o teto. - Oh, estou sofrendo muitssimo! Minha alma

    um tormento! Quero estar com a minha mulher, mas ao faz-lo peco contra

    o cu. Ela minha prima em terceiro grau, e isso muito prximo. A

    bisav dela foi uma prostituta de meu bisav, e ns dois temos o sangue

    dele... embora o meu seja puro e o dela seja contaminado. No fossem suas

    belas terras ricas, eu estaria disposto a anular o casamento...

  • - Cale-se, Joo - disse Eleanor, rspida. Ela percebia que Ricardo no

    gostava das pilhrias do irmo sobre um assunto daqueles.

    - Estou preocupado com os judeus - disse Ricardo. - No os quero

    praticando suas artes mgicas na coroao. Isso poderia trazer desgraa

    para todos ns. vou proibir que compaream cerimnia.

    - No seria nada bom eles serem vistos l - comentou a rainha. - O povo

    iria pensar que voc vai mostrar complacncia para com eles, e isso no

    seria popular.

    - Eles so ricos demais - disse Joo. - este o defeito deles.

    - Eles so trabalhadores, e sabem prosperar - declarou a rainha.

    35

    - Essas qualidades provocam inveja, e por terem inveja de sua riqueza

    aqueles que foram menos trabalhadores ou que no possuem aquele dom de

    fazer dinheiro

    tentam colocar a culpa neles. Meu filho, voc tem de emitir uma ordem

    para que no haja judeus na sua coroao.

    - Assim ser feito - disse Ricardo.

    A manh daquele terceiro dia de setembro do ano de 1189 nasceu brilhante

    e ensolarada. No entanto, houve muita gente que se lembraria de que fora

    um dia de maus

    pressgios. Astrlogos egpcios o tinham classificado como um dos Dies

    Aegyptiaci, dando a entender que, nele, s os arrojados deviam realizar

    negcios importantes; e o que poderia ser mais mais importante para um

    rei do que a sua coroao?

    Um pano escarlate fora colocado no cho, indo do quarto do rei no palcio

    at o altar da abadia, e multides se haviam reunido nas ruas durante o

    dia e a noite anteriores, para terem a garantia de uma boa viso do

    espetculo.

    Em seu quarto, cercado pelos principais nobres do reino, inclusive seu

    irmo Joo, o rei aguardava a chegada dos arcebispos, dos bispos, dos

    abades e dos chefes das ordens monsticas. Eles chegaram carregando

    turbulos e vasos contendo gua-benta, chefiados por um dos seus pares

    que levava a grande cruz.

    Em primeiro lugar nas procisses a partir do quarto para o altar vinham

    os membros do clero, cantando enquanto caminhavam, balanando incenso e

    segurando compridas velas acesas. Os priores e os abades vinham em

    seguida, e atrs deles vinham os bares. Guilherme Mareschal levava o

    cetro que tinha no topo a cruz de ouro, e Guilherme, conde de Salisbury,

    o bordo de ouro.

    Imediatamente atrs deles estava o prncipe Joo, de olhos baixos,

    imaginando-se no caminhando como fazia, mas no lugar de honra naquela

    data ocupado pelo irmo. Como a vida era injusta, pensava ele, ao fazer

    de um homem o caula da famlia! No entanto, de certa maneira o destino

    fora bom, ao levar os outros. Aquilo deixava Ricardo, dez anos mais velho

    do que ele, mas ainda jovem. No auge de sua masculinidade, diziam alguns.

    Pelos olhos de Deus, pensou Joo, ele podia viver mais vinte anos! Mas se

    fosse Terra Santa, a flecha de um sarraceno poderia varar-lhe o

    corao. Era a nica esperana.

    Ricardo precisava ser estimulado a partir na sua cruzada. Ele

    36

    no tinha sido feito para ser sei. Como era possvel um homem recm-

    chegado ao trono planejar a rapidez com que poderia abandon-lo? S se

    fosse um bobo, porque se aquele homem tivesse um irmo ambicioso, em

    pouco tempo poderia colocar em risco o seu

    reino!

    Para os espectadores que se apinhavam em torno da abadia e se comprimiam

    l dentro, parecia que nunca poderia ter havido um soberano mais bonito

  • do que o rei Ricardo. Guilherme Mandeville, o conde de Albemarle,

    caminhava sua frente levando, numa almofada, a coroa de ouro belamente

    ornamentada com jias faiscantes. Em seguida vinha Ricardo, alto e

    imponente, sob o dossel real apoiado sobre lanas e mantido sobre a sua

    cabea por quatro bares.

    Ele entrou na abadia e caminhou pela nave at o altar principal, onde

    Baldwin o aguardava.

    Os dois se entreolharam com firmeza; o rei, arrogante, lembrando ao

    arcebispo que ele era o senhor. O arcebispo, como todos os de seu tipo,

    segundo Ricardo, esforando-se

    por colocar a Igreja acima do Estado. Ele devia se lembrar do que

    acontecera a Thomas Becket. Um pensamento incmodo, porque o pai de

    Ricardo no se sara muito

    bem daquele caso; mas fora Becket que perdera a vida, embora ao faz-lo

    se tornasse um santo. Era evidente que Baldwin estava enfurecido por

    causa do casamento de Joo, mas teria de ficar calado a respeito naquele

    dia.

    Sobre o altar fora colocada a maioria das relquias da abadia: os

    sagrados ossos de santos, os frascos contendo o que parecia ser o sangue

    deles; e sobre elas, Ricardo jurou que honraria Deus e a Santa Igreja, e

    que seria justo para com o povo e iria abolir todas as leis prejudiciais.

    Seus auxiliares adiantaram-se para despi-lo de todos os trajes, exceto a

    camisa e os cales. Ele foi, ento, untado com o leo consagrado sobre a

    cabea, os braos e o peito, enquanto Baldwin lhe falava sobre o

    significado daquilo e explicava que a aplicao do leo quelas partes do

    corpo indicava que ele estava sendo dotado de glria, erudio e coragem.

    Sua tnica e sua dalmtica lhe foram colocadas, ento, pelos bares que

    aguardavam o momento exato, e a espada da justia lhe foi entregue.

    Esporas de ouro foram amarradas aos seus calcanhares, e o manto real foi-

    lhe colocado sobre os ombros.

    Baldwin perguntou, ento, se ele estava realmente preparado

    37

    para honrar o juramento que acabara de prestar e, depois de Ricar do

    assegurar-lhe que estava, os bares tiraram a coroa do altar e a

    entregaram ao arcebispo, que a colocou na cabea de Ricardo; o cetro foi

    colocado na mo direita do rei, e o bordo, na esquerda.

    Depois da missa solene, comeou a procisso de volta ao palcio, e l o

    rei foi despojado de sua pesadona coroa, que foi substituda por outra

    mais leve, e no grande salo comearam as comemoraes.

    Para no ofender os cidados de Winchester, os dignitrios daquela cidade

    tiveram a honra de atuar como cozinheiros, enquanto que, para que os

    cidados de Londres no precisassem sentir que tinham sido menosprezados,

    seus principais elementos foram os mordomos. O salo estava cheio de

    mesas, principal das quais sentavase o rei, e os convidados eram

    colocados, segundo a hierarquia, mesa principal.

    Foi uma ocasio alegre e feliz, e ento, de repente, a tragdia

    transformou-a de um dia de comemoraes em um dia de virulenta tragdia.

    Ricardo proibira que qualquer judeu comparecesse sua coroao, no

    porque quisesse persegui-los, mas porque acreditava que, como no eram

    cristos, sua presena poderia no ser aceita por Deus. Pode ser que

    aquele edito no tivesse sido divulgado com a amplitude suficiente ou que

    talvez alguns, de to ansiosos por estarem presentes, decidissem ignor-

    lo, mas enquanto as comemoraes estavam em andamento vrios judeus

    resolveram comparecer ao palcio levando ricos presentes para o rei.

    Nenhum governante podia fazer objees ao recebimento de presentes caros,

    pois ainda que no desse importncia a eles, como uma expresso de

    lealdade devia ficar impressionado com o seu valor.

  • Entre os mais ricos judeus do pas que se apresentaram no palcio estava

    um homem de riqueza fora do comum, conhecido como Benedict de York. Eles

    foram identificados de imediato, e surgiram protestos.

    O clamor aumentou:

    - Judeus! No os queremos aqui! O rei proibiu! Eles desobedeceram s suas

    ordens!

    Benedict de York, que levara um presente muito valioso para o rei,

    protestou.

    - Tudo o que eu quero fazer com que o rei tenha conhecimento de nossa

    lealdade para com ele - bradou ele. - Quero dar a ele este ornamento de

    ouro.

    38

    No adiantou.

    Havia muito tempo que os judeus eram odiados. Eram muitos, no meio da

    multido, os que haviam morado perto deles e que os viram prosperar. Eles

    eram odiados porque trabalhavam muito e porque, no importava o grau de

    humildade com que comeavam, sempre pareciam obter sucesso.

    Aquilo era uma oportunidade.

    - O rei mandou a gente expuls-los de nossas cidades! - foi o clamor. -

    Ele proibiu que eles viessem sua coroao!

    No foi preciso muito tempo para inflamar a multido. Por toda Londres

    ecoou o brado:

    - Vamos roubar os judeus! Vamos incendiar suas casas! Os bens deles sero

    nossos! o presente da coroao do rei para ns!

    Em pouco tempo as ruas estavam cheias de gente que gritava, que berrava.

    A turba pensara que o dia lhes proporcionaria danas e comemoraes, e

    talvez vinho de graa. No contara com uma coisa to excitante quanto as

    arruaas.

    Fora do palcio, a turba avanou sobre os judeus e os presentes que eles

    haviam levado lhes foram arrancados das mos.

    Benedict de York jazia no cho, convencido de que seus ltimos momentos

    haviam chegado. Viu rostos fanticos olhando para ele. Mos estavam em

    sua garganta. Gritou:

    - Vocs esto me matando!

    - Isso mesmo, judeu! A ordem do rei matar todos os judeus! Benedict

    gritou, desesperado:

    - Mas eu quero me tornar cristo! Se me matarem, tero matado um cristo!

    Os homens que estavam debruados sobre ele recuaram um pouco. Benedict

    continuou a berrar:

    - Eu sou cristo! vou me tornar um cristo!

    A lei era aterradora. O que acontecia com homens que tiravam a vida? O

    pai do rei estivera decidido a diminuir a violncia. Ser que o novo rei

    era igual? A mutilao tinha sido, com frequncia, o castigo por

    assassinato. Homens haviam perdido as orelhas, o nariz e a lngua; tinham

    sido cegos com ferros quentes por terem cometido assassinatos. Era

    necessrio ser cauteloso, e ali estava aquele homem bradando que queria

    tornar-se um cristo. E se um deles fosse citado como assassino de um

    cristo?

    - Que ele seja batizado sem demora! - bradou uma voz. Ento, ficar sendo

    um cristo de verdade.

    39

    Aquilo agradou a multido.

    Levaram Benedict at a igreja mais prxima, onde ele foi imediatamente

    batizado.

    Enquanto isso, no se perdera tempo em fazer circular a notcia por todo

    o pas. Em todas as cidades houve arruaas contra os judeus. A turba no

    ia perder a oportunidade

  • de usar de violncia e praticar assaltos; e por serem notoriamente ricos,

    os judeus eram um alvo atraente.

    A nica cidade que no participou daquelas arruaas foi Winchester. O

    povo de l expressou o ponto de vista de que no estava de acordo com a

    doutrina crist atacar aqueles que viviam entre eles simplesmente porque

    no partilhavam de suas crenas.

    Quanto a Ricardo, ficou com raiva pelo fato de um dia que ele pretendera

    ser de jbilo universal ter-se tornado um dia de tragdia para tantos de

    seus sditos. Alm do mais, aquilo era um indcio de que os horrores do

    reinado de Estvo, quando homens se haviam sentido livres para

    extravasarem seus instintos naturais, poderiam irromper com facilidade

    outra vez. Ele precisava de leis severas para refrear aqueles instintos,

    e estava decidido a manter a ordem.

    Quando soube o que acontecera a Benedict de York, mandou cham-lo, e

    quando Benedict chegou, encontrou Ricardo cercado por seus prelados.

    Benedict tivera tempo de pensar no que havia feito e sentia vergonha de,

    num momento de pnico, quando estivera cara a cara com uma morte muito

    cruel, ter renegado a f na qual fora criado e qual se apegaria, em

    segredo, por toda a vida.

    Assim que entrou no salo, seus olhos se dirigiram de imediato para o

    rei. Ricardo, na sua cadeira real, mandou que Benedict se aproximasse e

    ficasse sua frente. Os dois se examinaram com os olhos e criou-se um

    elo entre eles. Ricardo pensou: "Este homem negou a sua f quando estava

    diante da morte. No foi uma coisa nobre; no entanto, como qualquer um de

    ns poder julg-lo?"

    - Benedict de York - disse ele -, ontem o senhor declarou sua inteno de

    se tornar um cristo.

    - Declarei, majestade.

    - Isso foi quando alguns de meus sditos estavam decididos a mat-lo. No

    ordenei aquelas arruaas. Eu as deploro. Embora exclusse membros de sua

    raa e de seu credo de minha coroao, no mandei que meu povo os

    destrusse. O senhor foi

    batizado. O senhor um verdadeiro cristo, Benedict de York, e vai

    continuar na f

    na qual foi batizado h to pouco tempo?

    40

    Os claros olhos azuis do rei, que proclamavam a sua coragem ao mundo,

    inspiraram Benedict.

    - Meu indulgente senhor e rei - disse ele -, no posso mentir para Vossa

    Majestade. Ontem eu estava para morrer, e senti um medo ignbil. Para

    salvar a vida, protestei

    que queria tornar-me um cristo e fui batizado. Sou judeu. Nunca poderei

    ser um verdadeiro cristo. A f de meus pais deve ser a minha, e agora

    que estou calmo e

    tive tempo para pensar, vou lhe dizer a verdade, ainda que eu morra por

    ela.

    - Ento o senhor est mais pronto para morrer hoje do que estava ontem.

    - Venci o meu medo, majestade.

    - Ento, o que aconteceu ontem no foi em vo. Respeito a sua

    honestidade. Retire-se, agora. Esquea o seu batismo. Continue na f de

    seus pais e viva em paz... se puder.

    Benedict caiu de joelhos e agradeceu ao rei.

    Ricardo mandou chamar Ranulf de Glanville.

    - Percorra o pas - ordenou ele. - Proteja os judeus. Acabe com essas

    arruaas. Declare que essas perturbaes no foram desejadas por mim.

    Ranulf de Glanville, depois de abafar a violncia em Londres, dirigiu-se

    s provncias, mas s depois de alguns dias a paz foi instalada no pas.

  • Ricardo estava indignado.

    - Isso estragou a minha coroao - reclamava ele. - Belo comeo para o

    meu reinado!

    - Voc se portou com dignidade - disse-lhe sua me. - O povo ver que tem

    um rei forte, que est decidido a govern-lo.

    O rei continuou inquieto. Seus pensamentos o transportaram para muito

    longe da Inglaterra.

    41

    Alice e Berengria

    ELE VOLTARA para casa, tinha sido coroado rei; agora, poria em andamento

    o plano que sempre pretendera executar. Eleanor estava angustiada; tentou

    fazer objees.

    - Sei que voc jurou que iria Terra Santa - disse ela. Isso foi antes

    de ser rei, mas agora tem um reino para governar.

    Ele estalou os dedos, e seus olhos brilharam com uma luz fantica.

    - Eu tenho apenas um desejo, mame, e lutar contra o Infiel.

    - H tanta coisa para voc fazer por aqui...! Ele sacudiu a cabea.

    - Eu lhe digo uma coisa: eu venderia Londres se pudesse arranjar um

    comprador. Preciso de dinheiro... dinheiro... dinheiro para me levar

    Terra Santa.

    - Voc rico em bens terrenos, Ricardo.

    - Preciso de muito mais. Grande parte de minha riqueza est numa situao

    em que no pode ser transformada em dinheiro

    - Vejo que est decidido a ir. Ele segurou-lhe as mos.

    - Enquanto eu estiver fora, a senhora proteger este reino para mim.

    42

    Farei isso de todo o corao, mas estou uma velha. E o Joo?

    Est falando em faz-lo rei durante minha ausncia?

    - No. Se voc fizesse isso, ele nunca mais abriria mo do poder que voc

    lhe tivesse dado. Seu pai cometeu um dos maiores erros de sua vida quando

    coroou seu irmo Henrique. Nunca cometa esse erro, Ricardo.

    - No tenha receio. No tenho intenes de dar a Joo esse poder. Ele tem

    suas propriedades para cuidar. Tem bastante o que fazer, e confio na

    senhora para proteger o meu reino. Tenho bons servidores.

    - Eles praticamente ainda no foram testados. Ele se voltou para ela.

    - No se engane, mame. Nada me afastar de meu propsito.

    - Conheo bem a sua natureza. Percebo essa nsia em voc. E o seu

    casamento? Todos iro esperar que voc se case.

    - vou me casar no devido tempo. No se esquea de que, primeiro, tenho

    que me libertar de Alice.

    - E pedir a mo de Berengria.

    - A senhora far isso por mim, mame. Ir a Navarra e tirar Berengria

    do pai. Ele a dar senhora prontamente, e quando eu estiver livre de

    meu compromisso com Alice, casarei com ela.

    - E a sua cruzada Terra Santa? - perguntou a rainha.

    - Posso me casar com ela l, como em qualquer outro lugar.

    - O povo ir esperar...

    Ricardo colocou as mos sobre as dela.

    - Este o meu desejo - disse ele, tranquilo. Ela viu que ele estava lhe

    dizendo que era o rei.

    Ricardo agora pensava quase que inteiramente em sua cruzada. Seu grande

    desejo era levantar dinheiro. Comeou vendendo terras da coroa, o que era

    perfeitamente legtimo, mas quando grandes quantias eram pagas aos cofres

    reais em troca de um cargo que deveria ter sido dado a um candidato mais

    merecedor, a prtica nada tinha de admirvel. Ele comeou a fazer planos

    loucos para levantar dinheiro. No era difcil encontrar homens que

    estivessem ansiosos por acompanh-lo; o dinheiro era a grande

  • preocupao. Mas havia alguns que no podiam ir; Ricardo mandava que eles

    se juntassem ao grupo e depois permitia-lhes descumprir a obrigao

    mediante o pagamento de uma vultosa multa. Nada era demasiado tortuoso se

    aumentasse os recursos; e o rei, que era razoavelmente honesto

    43

    em outros assuntos, ia ficando cada vez mais inescrupuloso em sua

    desvairada paixo para levantar dinheiro suficiente para que no houvesse

    mais demora.

    Joo ficou satisfeito ao ver a determinao de Ricardo, e fazia o

    possvel para estimul-la. com Ricardo fora do caminho, ele se tornaria

    uma figura muito importante. Era o herdeiro do trono, embora se tivesse

    comeado a falar em Artur da Bretanha, e havia quem dissesse que Artur,

    como filho de um irmo mais velho, tinha mais direito do que Joo, que

    era apenas um filho mais velho do falecido rei. Mas Joo no considerava

    Artur uma ameaa sria. Ele era ainda criana, e estava longe, na

    Bretanha. Se Ricardo morresse na sua Guerra Santa, seria para Joo que o

    povo se voltaria.

    Por isso, Ricardo devia ser persuadido a partir na sua cruzada. No que

    ele precisasse de persuaso. Joo riu ao pensar nisso.

    Sua me estava apreensiva, e com razo.

    Conversava com Ricardo sobre seu casamento. Aos 32 anos de idade e rei

    coroado, ele no poderia adiar mais.

    - Voc diz que gosta muito de Berengria.

    - Tudo na poca certa - disse ele.

    Ela suspirou. No achava que algum dia ele sentiria uma grande atrao

    por uma mulher. Estava mais entusiasmado com a perspectiva de acompanhar

    o rei da Frana do que com o casamento.

    - Ricardo, voc tem de se casar logo.

    - Assim que estiver livre de Alice.

    - Mas o que est fazendo para se livrar de Alice? No precisa lev-la em

    considerao. Ela est desonrada. Ningum poderia culplo por romper o

    noivado com ela.

    - Lembre-se de que ela irm de Filipe.

    - Como se eu pudesse esquecer isso! Mas irm de Filipe ou no, ela foi

    amante de seu pai e foi mantida longe de voc durante anos, para que ele

    pudesse desfrut-la. uma situao absurda, na qual ningum iria

    conden-lo por dar um basta.

    - A senhora fala a verdade, mame. H muito que amo Berengria, aquela

    jovem elegante. V a Navarra e faa com que ela seja colocada sob os seus

    cuidados. vou partir na minha cruzada, e to logo me livre de Alice

    mandarei buscar Berengria.

    A perspectiva de fazer aquela viagem elevou o nimo de Eleanor. Embora

    fosse, agora, uma mulher idosa, a ideia de uma cruzada a entusiasmava.

    Ansiava por ser jovem outra vez, para que pudesse acompanhar o filho

    Terra Santa, como certa vez acompanhara

    44

    o marido, Lus, rei da Frana. Que poca, aquela! Ela ainda se arrepiava

    ao se lembrar.

    Eleanor no podia fazer uma viagem daquelas outra vez, mas iria gostar da

    visita a Navarra. Aquilo significaria uma misso, para ela; e depois que

    Berengria ficasse sob os seus cuidados, Ricardo seria obrigado a se

    casar com ela. Ele estava cheio de razes para recusar a mo de Alice, e

    Filipe teria de se convencer a aceitar aquela situao.

    Pois muito bem, Ricardo partiria em sua campanha; ela, Eleanor, iria a

    Navarra; e Alice devia ser devolvida corte do irmo, maculada, j sem

    chances de se casar com algum de sangue real. Talvez Filipe conseguisse

    um nobre que estivesse pronto a tir-la de suas mos pelo privilgio de

  • se casar com a irm do rei.

    Quanto a Joo, ela acreditava que no estaria unindo a ambio ao.

    Sem dvida que gostaria de ser rei, mas no iria querer lutar por uma

    coroa. Na verdade, preferia a bebida, o jogo e a companhia de mulheres.

    Poderia ocupar-se na Irlanda e com suas imensas propriedades. Teria o

    suficiente para mante-lo ocupado.

    Por isso, com a ideia de uma misso para ela, Eleanor ops-se menos

    partida de Ricardo.

    Enquanto isso, Ricardo lutava contra a demora. A venda de cargos em todo

    o pas desagradara, naturalmente, alguns; mas no eram muitos os que

    estavam prontos a erguer a voz contra uma campanha Terra Santa. A

    superstio predominava, e havia o temor de que tentar opor-se ao desejo

    do rei de livrar a cristandade do Infiel poderia ofender a Deus.

    As pessoas comearam a ver ou imaginar que viam indcios da aprovao

    divina. Em Dunstable dizia-se que uma bandeira branca aparecera no cu;

    algum viu um crucifixo l. Talvez tudo o que era necessrio era

    imaginao e uma certa formao de nuvens, mas as pessoas comearam a se

    reunir em praas pblicas e a anunciar a inteno de acompanharem o rei

    em sua cruzada.

    Aquilo agradava a Ricardo, mas havia demora. Ele lutava contra ela, mas

    era um rei e l estava sua me para lembr-lo disso. Primeiro, a safra

    fora desanimadora, a tal ponto que em certas reas havia a ameaa de

    fome. Baldwin no aprovava o que o rei estava fazendo e no hesitava em

    expressar sua opinio. O meio-irmo de Ricardo, Geofredo, uniu-se a

    Baldwin contra ele, para grande fria de Eleanor, que nunca se esquecia

    de que Geofredo era filho ilegtimo de seu marido.

    45

    J voltara a surgir o conflito entre Igreja e Estado.

    - s vezes eu acho que eles esto decididos a fazer todo o possvel para

    evitar a minha partida - bradou Ricardo. - No vo conseguir.

    Mas apesar de sua determinao, era necessrio ficar e dedicar tempo e

    preocupao quele problema com a Igreja.

    O resultado foi que ele e Geofredo fizeram as pazes e Geofredo lhe deu

    trs mil libras de sua receita para ajudar a financiar a cruzada, de modo

    que do ponto de vista de Ricardo o tempo no foi perdido de todo.

    Em dezembro, ele j estava em condies de seguir para a Normandia, a

    caminho de sua visita ao rei da Frana, para os preparativos finais.

    S em janeiro os dois reis se encontraram em Gu St. Remi. Foi um

    encontro emotivo. Outrora houvera uma grande amizade entre eles. Fora na

    poca em que Ricardo estava em desavena com o pai e se sentia muito

    zangado e magoado porque Henrique quisera coloc-lo de lado em favor de

    Joo. Filipe estivera ali para consollo. Ricardo jurara fidelidade a

    Filipe; fora seu companheiro constante; caara com ele, conversara com

    ele e partilhara de seu leito. No podia haver intimidade maior, e todos

    haviam ficado impressionados com a amizade entre o rei da Frana e o

    filho do rei da Inglaterra; e ningum mais do que Henrique, o rei da

    Inglaterra, que ficara muitssimo desconcertado com ela.

    Tinham sido felizes os dias em que os dois estiveram juntos, talvez mais

    emocionantes ainda porque cada um deles sabia que no poderiam continuar

    assim para sempre e estava um tanto incerto quanto profundidade de seus

    sentimentos pelo outro.

    Filipe devia perguntar a si mesmo: que proporo dessa amizade de amor

    por mim, e que proporo de dio pelo pai dele? Qual a proporo do

    desejo da minha companhia,

    e qual a da conscincia de que eu, mais do que ningum, posso ajud-lo a

    opor uma resistncia ao pai dele?

    E Ricardo: neste amor por mim, quanto haver de amizade, e quanto de uma

  • necessidade de desfeitear meu pai, zombar dele ao manter o filho na

    corte?

    At que ponto ia a nsia do rei da Frana de ludibriar o rei da

    Inglaterra? Como poderia cada um deles ter certeza em relao ao outro?

    No entanto, ali estava o

    amor que irrompera entre eles.

    46

    Como rei da Inglaterra, Ricardo agora podia encontrar-se com Filipe de

    igual para igual em determinado terreno, mas ainda devia vassalagem a

    Filipe como duque da Normandia.

    Filipe abraou Ricardo.

    - Seja bem-vindo, meu irmo. Meu corao se alegra ao v-lo. Ricardo foi

    menos entusiasmado, mas a frieza deixara seus olhos

    e eles brilhavam com um calor fora do comum.

    - Ento voc agora o rei da Inglaterra. Nossos temores no tinham

    fundamento.

    Todos perceberam que o rei da Frana no fazia cerimnia com o rei da

    Inglaterra. Passou o brao pelo dele e os dois caminharam juntos.

    Comentou-se: os dois sero amigos como eram antes. Isso um bom agouro

    para a cruzada.

    Filipe levou Ricardo para o seu acampamento, para que pudessem conversar

    a ss. Filipe envelhecera um pouco. Era dez anos mais moo que Ricardo,

    mas muitas vezes parecia ser o mais maduro dos dois. Ele era mais

    realista, faltando-lhe por completo o idealismo de Ricardo.

    Como aquilo se parecia com os velhos tempos! Filipe, deitado de costas no

    seu beliche, a cabea apoiada nos braos cruzados, e Ricardo sentado

    sua frente.

    - Voc est atraente como sempre - disse Filipe. - Embora um pouco

    enrugado. Est bem de sade, meu amigo?

    - Tenho tido ataques de quarta.

    - Ento ainda sofre dessa doena? Como pensa que vai se sair no clima

    quente?

    - o que irei descobrir.

    - Ricardo, voc acha que a sua sade vai deix-lo partir? Ricardo soltou

    uma gargalhada.

    - Nada vai impedir que eu v.

    - Realmente, parece estranho falar de fraqueza com voc. Voc sempre foi

    aquele que cavalgava mais depressa, que tinha mais habilidade nos jogos.

    Devia ter tomado mais cuidado com a sade, pois foi um puro descuido que

    o tornou uma vtima dessa febre.

    - Um soldado nem sempre pode dormir numa cama quente e seca, irmo.

    - mesmo, infelizmente. Ah, mas no tenho dvidas de que voc est forte

    como sempre esteve. Vai dominar essa febre... Est percebendo que um

    sonho de nossa juventude est prestes a se tornar realidade? Lembra-se,

    Ricardo, de como ficvamos deitados na

    47

    minha cama e planejvamos nossa viagem Terra Santa... juntos? Tinha de

    ser juntos. Caso contrrio, ela teria perdido o gosto para ns dois.

    - Eu me lembro bem. Sempre estive decidido a fazer com que ela se

    tornasse realidade.

    - E agora tem um reino para governar!

    - Voc tambm.

    - Dois reis que deixaro seus reinos em troca de um sonho! Temos de ir

    juntos, porque se no fssemos... - Filipe deu uma risada irnica - ...

    Como que o rei da Inglaterra poderia ir, se o rei da Frana no fosse

    tambm?

    - mesmo! Como poderia o rei da Frana deixar o seu reino se o rei da

  • Inglaterra no deixasse o dele tambm?

    - verdade, Ricardo, que esses dois temem tanto um ao outro, que no

    poderiam saber o que um andaria fazendo durante a ausncia do outro. Que

    oportunidade para o sujeito guerreiro tomar certos castelos franceses que

    ele cobia!

    - E sempre foi um capricho dos reis da Frana tirar a Normandia dos

    normandos.

    - Alguns de meus ancestrais acreditavam que ela nunca deveria ter sido

    dada ao seu ancestral, o Velho Rollo. Que pirata saqueador ele foi! No

    se contentava com suas terras no norte; tinha que tirar, tambm, um

    pedao da Frana. E voc, meu amigo, descendente daqueles piratas. O

    que me diz disso?

    - Sinto-me orgulhoso ao me lembrar disso.

    - To orgulhoso quanto me sinto, sem dvida, de Carlos Magno. vou lhe

    contar uma coisa, Ricardo. Certo dia, quando eu estava mordendo um

    galhinho verde, um de meus bares disse a um outro que daria o seu melhor

    cavalo se pudesse saber o que o rei estava pensando. Um baro mais ousado

    me perguntou e eu lhe respondi: "Estou pensando se Deus dar a mim ou a

    um de meus herdeiros a graa de elevar a Frana altura em que ela

    esteve na poca de Carlos Magno."

    - No possvel - disse Ricardo.

    - Se eu admitisse isso, estaria dobrando os sinos pela morte de minhas

    esperanas. Nunca se alcanou alguma coisa dizendo-se que no podia ser

    feita.

    - Ento voc vai comear por tirar a Cidade Santa de Saladino.

    - Ser um comeo.

    48

    - Estou ansioso por estar l. inconcebvel que a Terra Santa possa

    ficar nas mos do Infiel.

    - Voc anseia pela glria militar - disse Filipe. - Quer que seu nome

    ressoe pelo mundo inteiro. O maior de nossos guerreiros! por isso que

    vai Terra Santa?

    Filipe fora, com frequncia, uma companhia incmoda. Os dois eram muito

    ntimos para que houvesse hipocrisia. A mente de Ricardo era mais

    simples; sempre direto, fazia uma distino perfeita entre o bom e o mau.

    Filipe era analtico, intelectual, sutil, vendo muitos aspectos de uma

    questo. Podiam ter personalidades opostas, mas complementavam um ao

    outro.

    Conversando com Filipe, Ricardo percebeu que procurava, de fato, a glria

    militar. Queria recup