japiassu - as máscaras da ciência

Upload: luis-carlos-antonelli

Post on 06-Apr-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/3/2019 Japiassu - as mscaras da cincia

    1/3

    AS MSCARASDA CINCIA* Hilton Japiassu

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    IBICT

    RESUMOA significao aparente da cincia encontra-se nas

    intenes subjetivas dos prprios cientistas, cuja

    preocupao fundamental seria a busca do conhecimento,

    e nas intenes dos que elaboram a poltica

    cientfica, tendo em vista o aumento da produo de

    bens como decorrncia da produo de conhecimentos.

    O cientista, no mundo atual, saiu da fico neutralista

    e com ele a cincia. Por isso estamos diante de doismitos da cincia: o mito da cincia-gue-conduz-

    necessariamente-ao-progresso e o da cincia-pura-e-

    imaculada. Segundo o primeiro a cincia se expe a

    ser julgada pelo valor social de seus resultados e de

    acordo com o segundo a cincia seu prprio fim,

    no tendo que prestar contas a nenhuma instncia

    exterior. Se h crise na cincia porque os

    dentistas se interrogam sobre a significao e funo

    reais, na sociedade, de seus trabalhos (H.B.)

    Falar das "mscaras da cincia", falar de seusanteparos ideolgicose interrogar-nos, ao mesmotempo, sobre o sentidoda cincia, sobre seusentido profundo e real, que se oculta por detrs de

    suas significaes aparentes. Sabemos que suasignificao aparente encontra-se, quer nasintenes subjetivasdos prprios cientistas,cuja preocupao fundamental seria a busca doconhecimento, quer nas intenes dos quepromovem e elaboram a chamada poltica cientfica,tendo em vista, em ltima anlise, comodecorrncia do aumento de produo de conhecimentos,o aumento de produo de bens. No entanto, deum ponto de vista filosfico, no podemos evitarcertas questes: Por que a cincia se converteunuma espcie de poder onipotente, de mgicaadmirada e temida, de gigantesco processoindustrializado de produo de conhecimentos? Emnome de que ela se impe como o paradigma porexcelncia de toda verdade? Pode ainda ser

    considerada como um saber puro, como umacontemplao desinteressada e amorosa da verdade?Ou no teria formado uma Santa Aliana com atcnica e a indstriaa fim de produzir umamassa colossal de saberes e de objetos, ondecertamente se encontra presente o desejo de verdadee de explicao, mas onde tambm se oblitera o sonho

    * Palestra apresentada nos Seminrios de Estudos sobreFilosofia e Sociedade promovidos pela SEAF (Sociedade deEstudos e Atividades Filosficas) no dia 7 de maio de 1977no Rio de Janeiro (Bennett)

    de felicidade e se dilui o espao da liberdade? Porque devemos admitir que somente ela, em suacoerncia rigorosa e vingadora, pode resolvertodos os problemas humanos, extirpar todas as nossas

    ignorncias, dar respostas a todas as nossasesperanas e pr um fim s nossas iluses?Estaramos condenados a ficar presos aos sortilgioscmplices da organizao cientfica, submetendo-nossempre mais s astcias de seu controleinsidioso, a ponto de instalar-nos, sem possibilidadesde resistncia, numa tecnonatura incessantementeaperfeioada? Portanto, falar das "mscaras dacincia", duvidar que a mitologiacientificista, que fez do progresso indefinidoda cincia, o motor incansvel da felicidadehumana, tenha a garantia de no se sabe queverdade revelada para continuar a ludibriar ohomem quanto ao sentidoque possa conferir sua existncia.

    Em nossos dias, a cincia diz, sobretudo, a"cincia realizada" ou tecnonatura:conjunto de procedimentos transformadores oriundosda vinculao cincia-tcnica e de seusresultados inscritos em nosso meio ambiente. cmplice do processo de industrializao, poiscontribui para organizar e racionalizar seufuncionamento bem como para instaurar sua soberaniaquase absoluta. Ao vincular-se indstria e estratgia, perdeu sua inocncia original. Nose pode mais falar de uma "imaculada concepo"da cincia. Tambm no se pode admitir que elase apresente como a portadora de orculos para

    Ci. Inf., Rio de Janeiro, 6(1): 13-15, 1977 13

  • 8/3/2019 Japiassu - as mscaras da cincia

    2/3

    As Mscaras da CinciaHilton Japiassu

    os homens, como a depositria exclusiva e

    patenteada de todos os nossos segredos, como se elafosse um santurio sagrado ou um tabernculo deonde deveriam jorrar as torrentes do saber perdido.

    No mundo atual, o cientista ao mesmo tempo umprecioso capital, um grande investimento cujarentabilidade precisa ser assegurada, uma moeda detroca, uma imagem de marca nacional ou ideolgica.Num certo sentido, sua funo teatralizou-se. Elepassa a ser um iceberg flutuando sobre o oceanode nossas incertezas, de nossas ignorncias. Semdvida, a parte oculta de seu trabalho s

    justifica o estatuto privilegiado que lhereconhecemos, mas ele no pode permanecer estranho "sociedade do espetculo". Na verdade, saiuda fico neutralista. E, com ele, a cincia.

    Por isso, estamos diante de dois mitos ou de duasiluses (mscaras) que precisam ser superadas.Trata-se da dupla iluso da neutralidadeobjetiva, que dispensaria os cientistas, em nomede sua atividade racionalista, de tomar parte nosconflitos e nas incertezas da cidade poltica(exceto de tomar parte na defesa da nao emperigo, e este o caminho de todas as hipocrisiasneutralistas), e do magistrio tico quereconheceria aos cientistas o direito que elespossuiriam de dizer o que bom, porque conhecemo que verdadeiro (o que degenera, ipso facto,em "poltica cientificizada"). Ora, no hnenhum carisma poltico no patrimnio da comunidadecientfica. Por isso, no pode reivindicar odireito de governar a sociedade.

    Portanto, j temos aqui duas mscarasdacincia, que ocultaram sua verdadeira face e n-larevelam em seu carter mitolgico: o primeiro mito o da cincia-que-conduz-necessaramente-ao--progresso;o segundo, o dacincia-pura-e-imaculada. O primeiro mito mais antigo e mais ambicioso. Durante muito tempo,foi aceito como uma espcie de dogma absoluto. Emnossos dias, embora de modo mais atenuado, ele servede argumento queles que procuram o apoio doEstado e da sociedade em geral. Notemos que hcerta contradio entre esses dois mitos. Segundoo primeiro, a cincia se expe a ser julgada pelovalor socialde seus resultados. Conforme osegundo a cincia , por assim dizer, seu prpriofirn, no tendo que prestar contas a nenhuma

    instncia exterior. Isto no exclui a idia deque a cincia, no sentido lato, possa, poracrscimo, prestar relevantes servios. Todavia,o mito da cincia pura repousa antes de tudo nopostulado segundo o qual a busca do conhecimento algo de bom em si, s diz respeito coletividade cientfica, no possuindointrinsecamente nenhuma significao moral oupoltica. apoiado nesse mito que certoscientistas negam que "a cincia" seja responsvelpor Hiroshima ou quaisquer outras "ms"aplicaes. A este respeito, faamos uma observao.Muitos pesquisadores proclamaram e continuam aproclamar que no possuem m conscincia. A

    situao, declaram, muito clara: a cincia,

    enquanto tal, uma procura metdica edesinteressada de um saber sempre mais amplo e maiscerto. O fsico ou o bilogo no tm por que sepreocuparem com as utilizaes de seus trabalhos.Essas utilizaes no dependem deles, mas do poderpoltico e das iniciativas da indstria. Ademais, impossvel prever as eventuais aplicaes. Euma descoberta pode ser utilizada ao mesmo tempo parao bem e para o mal. Em todo caso, no "a cincia"que constri e lana a bomba atmica. Oscientistas que participaram do projeto Manhatam,o fizeram enquanto cidados, no a ttulo derepresentantes "da cincia".

    Essa argumentao, aparentemente inatacvel, estrevestida de outra mscara: a cincia seria uma

    atividade sem deontologia. Ela fornece um saber.Este saber pode ser elaborado tecnicamente de modo afornecer os meios de ao. Os fins aos quais servemtais meios no dizem respeito aos cientistas.Estamos diante de um modo de ver bastante idealista.Ora, administrativa e financeiramente, a cinciadepende de mltiplos organismos oficiais. Algunsdomnios de pesquisa so fortemente estimuladospor razes que nada tm a ver com o saber puro.E mesmo as pesquisas mais "puras", soorientadas para fins estratgicos. Socialmente, acincia pura mais uma fico que um fato. Pordetrs da dicotomia saber/aplicaes, oculta-se aidia de que a cincia possui certo estatutotranscendente relativamente sociedade. Ela intemporal, estranha s vicissitudes desse baixomundo. Os cientistas elaboram uma cincia que,enquanto tal, no pertence a nenhuma poca e anenhum pas. Eles devem ser intelectualmente honestos,no trapacearem suas experincias e seus resultados.Mas esta tica puramente interna, consistindoem respeitar as normas em vigor nas diversascoletividades cientficas. S contaria a procura daVerdade. A cincia seria autnoma, pois se dsuas prprias normas. No h deontologiaimpondo aos pesquisadores deveres para com asociedade. A sociedade ajuda a cincia, mas porque

    julga que se deve sustentar a busca da Verdade. Istono compromete o postulado de autonomia. Emvirtude de um contrato implcito, os cientistasvisariam a ampliar o conhecimento, deixando de ladoas questes sociais e polticas relativas aoobjeto de seu trabalho. Ora, o mito da cincia pura

    funda, de um lado, a irresponsabilidade social doscientistas; do outro, fornece ao Estado uma perfeita justificao do apolitismo da pesquisa. Ora, seriapreciso ter uma grande candura para imaginar que somente o culto do saber que legitima a conduta doEstado de integrar substancialmente a pesquisa nosistema scio-econmico-poltico. O que correo risco de ser "patolgico" a situao ambguados cientistas: tudo se passa como se a sociedadequisesse impor-lhes uma "imagem" deles mesmos queno corresponde realidade histrica.

    Outra mscara da cincia, em nossos dias, ootimismo ingnuo e triunfante dos ativistas

    Ci. Inf., Rio de Janeiro. 6(1): 13-15, 1977 14

  • 8/3/2019 Japiassu - as mscaras da cincia

    3/3

    As Mscaras da CinciaHilton Japiassu

    que depositam toda sua confiana na eficciadeum saber que nos conduziria ao Melhor dos mundos.Ora, ningum sabe o que ser nossa histria.Podemos duvidar que uma verdadeira escolha, coletivae consciente, seja possvel. Os espritosesclarecidos do sculo XVIII pensavam que o progressoda cincia viria liberar os espritos, tornar oscidados iguais e proporcionar a felicidade de todaa humanidade. Condorcet proclamava: "toda descobertanas cincias um benefcio para a humanidade.Nenhuma descoberta intil". Por sua vez. Bacon

    j dizia, no sculo XVII, que a cincia poder.Est intimamente ligada ao gosto da eficcia, aum projeto de domnio e de manipulao das coisas(e dos homens). Abre possibilidades. Fornece meiosde ao. Donde uma nova verso da mxima tupodes, logo tudeves: "Tudo o que cientfica etecnicamente realizvel, deve ser realizado". Nestesentido, h uma estreita relao entre o projeto

    cientfico e o ativismo ocidental. Dominar,produzir, fazer sempre maior, sempre mais depressa:eis como se manifesta o poder da cincia. Mas estepoder manifesta-se ainda em outros domnios: diretaou indiretamente, no culto da produtividade, da taxade crescimento e dos experts. Neste sentido, h umvnculo entre a cincia e a sociedade de consumo,entre a cincia e a tecnocracia. J se fala atmesmo de uma tanatocraciada cincia e datcnica, que compem uma "cidade habitada deextra lcidos regionais (os cientistas), embora cegos totalidade" (M. Serres, Hermes III, 1974,p. 83). Essa tanatocracia est gerando uma poluioideolgica, uma poluio cultural e uma poluiocultural aparentemente incontrolveis. Vivemos nummundo dominado pela mquina e pela idia de

    mquina. E as mquinas esto aservio de umafuno, no de um projeto humano.

    E ao falarmos de tanatocracia, queremos enfatizar ovnculo indissolvel entre cincia e poder. Notenhamos iluso: a cincia hoje possui dois plos:o saber e o poder. O saber pelo saber est na basedo desenvolvimento da cincia. Mas hoje em dia acincia desempenha um papel to importante nodesenvolvimento das foras produtivas, que h umapredominncia incontestvel do saber para poder.A pesquisa cientfica e tcnica comanda diretamenteo desenvolvimento econmico. Distinguir, de um lado,cincia fundamental e desinteressada, do outro,tcnica, no tem mais sentido. No um modocorreto de elucidar a dialtica do saber e do poder

    na cincia atual. De fato, todo o processocientfico est vinculado e procede da mesmavontade de poder, desde a pesquisa fundamental aocrescimento econmico, passando pela pesquisaaplicada, pela pesquisa de desenvolvimento queaprimora as descobertas e as inovaes tcnicasutilizadas pelas empresas. Essa evoluo cientficae tcnica assegura a manifestao das forasprodutivas e confere seu fundamento a novas relaessociais em que os cientistas so levados adesempenhar um novo papel, em ligao com o lugarnovo da cincia.

    Qual o produto da sociedade cientfica e tcnica?A corrida armamentista, as aventuras espaciais aomesmo tempo grandiosas por sua proeza de organizaoe de know-how, e irrisrias face misria e precariedade da existncia cotidiana de umamultido colossal de homens; as desigualdadescrescentes entre os pases do mundo, o processoindefinido de multiplicao dos bens privadosandando junto com uma degradao do quadro de vidanas naes industriais, o desperdcio dos recursosdo planeta, etc. Tal crise da sociedade nos remetefatalmente a uma interrogao sobre a cincia,pois esta passa a dirigi-la por uma tecnoestruturacomposta de trs camadas bem implantadas: osburocratas industriais, os gestionriosprofissionais e os tecnocratas propriamente ditos.Estaramos sofrendo de uma inflao de cincia?Ou de uma carncia de cincia? Fala-se muito nacriseda cincia. Mas difcil descrever

    esse fenmeno. Trata-se de uma crise onipresente. Odifcil determinar suas causas e encontrar assolues. Alguns acreditam que se trata apenas deuma questo de melhor orientar a cincia. Outros

    julgam o lugar novo da cincia na sociedadecontestvel. No adianta procurar na cincia osmales da cincia. Porque ela conduz a impasses. O queest em questo o papelda cincia. Se huma crise da cincia, porque os cientistas seinterrogam sobre a significao e a funo reais,na sociedade, de seu trabalho. Se h uma crise geralda sociedade cientfica, porque os efeitos diretosou indiretos da cincia em todosos setores denossa vida suscitam reaes de temor, de frustraoe mesmo de rejeio.

    ABSTRACT

    One can find the apparent meaning of science in thesubjective intentions of the scientists themselves, inwhich the fundamental preocupation would be thesearch of knowledge, and in the intentions of thosewho are responsible for science policy, having inmind the growth of the produce of wealth as a resultof the produce of knowledge.

    Nowadays the neutrality was left out by the scientistand so was science. That's why we're facing the twomyths of science: the science that leads to progressand the pure and immaculate one. According to thefirst one science exposes itself to be judged by thesocial value of its results, whereas to the second

    one science is not affected by any exteriorinstance. Whether there's a crisis in science it isbecause the scientists ask themselves about the realmeaning and function of their works in society.(M.P.)

    Ci. Inf., Rio de Janeiro, 6(1): 13-15, 1977 15