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1 HILTON JAPIASSU NEM TUDO É RELATIVO A QUESTÃO DA VERDADE

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HILTON JAPIASSU

NEM TUDO É RELATIVOA QUESTÃO DA VERDADE

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SUMÁRIO

Introdução ............................................... 51. A onda relativista ...................................... 232. O relativismo em questão ........................ 793. A questão da verdade .............................. 1254. Notas ....................................................... 181

Conclusões ............................................. 2295. Apêndice: Como alguns filósofos conce-

beram a verdade ..................................... 2596. Bibliografia Básica ................................... 267

Editora Letras & Letras, 2000

Equipe de Realização

Editor: Carlos José LinardiSupervisão Gráfica: Waldenes Ferreira Japyassú FilhoAssistente Editorial: Carlos Alberto Carmignani Linardi

Revisão: Antonio Orzari - Peppino D’ArdisCapa: Peppino D’Ardis

Ficha Catalográfica

Japiassu, Hilton

Nem Tudo é Relativo

A Questão da Verdade — São Paulo: Editora Letras& Letras, 2000

Bibliografia

ISBN 85-85387-95-5

1. Filosofia

Letras & LetrasAtendimento ao Consumidor:

Av. Ceci, 1945 – Planalto PaulistaFone: (0xx11) 577-5746/5581-2183 – Fax: (0xx11) 5594-2111

e-mail: [email protected]@letraseletras.com.br

[email protected]: www.letraseletras.com.br

Colabore com a produção científica e cultural.Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a

autorização do editor.

Este livro é também editado eletrônicamentedisponível no site: www.letraseletras.com.br

Editora Virtual

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INTRODUÇÃO

Um dos sintomas da crise intelectual de nossomundo reside no fato de não pôr-se explícita e luci-damente em questão. De um modo geral, os grandesdesafios ficam fora de todo fim racional ou razoavel-mente discutível. Nessas condições, torna-se umlugar comum se dizer que a atividade do intelectualconsiste num trabalho crítico, na medida em que de-ve quebrar todas as evidências, denunciar tudo oque parece impor-se como “normal” ou “natural” enão pode renunciar ao saber sem abandonar o quefaz dele um ser livre e autônomo. Diante da incapaci-dade da sociedade contemporânea de criar novassignificações sociais e de pôr-se a si mesma emquestão e suas próprias instituições, compete ao filó-sofo, além de impedir que a questão da liberdadese subordine à do progresso das ciências, tentar criarnovos pontos de vista e novas idéias, mesmo a partirde questões bastante antigas, mas ainda atuais edesafiadoras, como a que opõe verdade e relati-vismo.

Historicamente, foi assim. Mas uma precisãose impõe. No momento do nascimento da filosofia(na Grécia), é verdade que os primeiros filósofosquestionaram as representações coletivas estabele-cidas, criticaram as idéias sobre o mundo, sobre osdeuses e o bom funcionamento da Cidade (Pólis).Mas logo esta atividade crítica sofre uma degeneres-cência. A maioria dos pensadores trai seu papelcrítico. Muitos se convertem em racionalizadores doque é (do status quo), em justificadores da ordemestabelecida. O exemplo mais eloqüente é o deHegel, proclamando que “tudo o que é racional éreal” e que “tudo o que real é racional”. Ao surgir, a

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Em nossas sociedades há uma espécie deconspiração capaz de abafar, neutralizar ou simples-mente desqualificar a eficácia de toda crítica. É como desmoronamento das ideologias da esquerda e aascensão do “monoteísmo do mercado”, com o triun-fo da sociedade de consumo e a crise das signifi-cações imaginárias, que se manifesta a atual crisedo sentido. Ao estabelecer os valores econômicoscomo seus valores centrais (ou únicos) e ao estabe-lecer a economia como o fim da vida humana (nãomeio), a sociedade atual lhe propõe, como objetivo,a corrida desenfreada para um consumo sempremaior e um culto à divindade “mercado”. Não tendomais necessidade de indivíduos autônomos, ela osatomiza para melhor conformá-los. E se esquecede colocar no centro da vida humana outras significa-ções, distintas da expansão da produção e do consu-mo. Num momento em que as ideologias cientificis-tas e os movimentos irracionalistas parecem consti-tuir as duas faces de uma mesma medalha, não éde se estranhar que o pensamento se torne desfigu-rado e perca bastante de sua audácia. Por isso,torna-se urgente redescobrirmos um pensamento deliberdade, capaz de zombar, não somente dos dog-matismos, integrismos e moralismos, mas de todosos ceticismos relativistas, a fim de fazermos de nossoesforço de conhecimento uma aventura infinita debusca da verdade. Trata-se de um pensamento semdogmas, voltado para o futuro, que só progride des-truindo suas próprias certezas, mas que não abremão de buscar a verdade.

Vivemos uma época de conformismo generali-zado, não somente no plano do consumo, mas noda política, das idéias e da cultura. Talvez estejamosvivendo no momento mais conformista da históriamoderna. De que adianta o indivíduo acreditar-se“livre” quando, na realidade, todos recebem passiva-

filosofia nasce em profunda comunhão com a idéiade um logon didonai universal, de uma busca daverdade e de um questionamento do que aparececomo representação e procurando ultrapassar todosos limites geográficos, de raça, língua e comunidadepolítica. Assim, a universalidade do pensamento éuma invenção grega. Contudo, a universalidade polí-tica, mesmo como simples idéia, é uma invençãoda Europa moderna. Os gregos criam as formas dademocracia. Mas não a universalidade política.

Costuma-se dizer que vivemos hoje um mo-mento de crise. Se a krisis (no verdadeiro sentidodo termo) constitui um momento de decisão, entreos elementos opostos que se combatem, creio quevivemos muito mais uma fase de decomposição,posto que nossas sociedades cada vez mais secaracterizam pelo desaparecimento do conflito so-cial e político. Assim, a crise que o mundo ocidentalvive pode ser entendida como o esquecimento decolocar-se verdadeiramente em questão e autocriti-car-se. Sempre soube criar, apesar de suas atrocida-des e horrores, em nome justamente de uma dis-cussão racional e aberta entre seres humanos, erejeitando todo dogma último, esta capacidade decontestação interna e questionamento de suas pró-prias idéias e instituições. No entanto, perdeu essacapacidade. A ponto de reduzir o “indivíduo” livre eautônomo a uma simples marionete realizando es-pasmodicamente os gestos que lhe impõe o camposócio-histórico: ganhar dinheiro, consumir e gozar.As vozes discordantes ou dissidentes não são maisabafadas pela força bruta nem pela censura direta,mas por uma violência simbólica e pela comercia-lização generalizada: “Há uma capacidade terrívelda sociedade contemporânea de abafar toda verda-deira divergência, seja calando-a, seja fazendo delaum fenômeno entre outros, comercializado como osoutros”(Castoríadis).

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às interpretações. Há toda uma corrente social ehistórica fazendo com que tudo se torne insignifi-cante. A televisão nos fornece um exemplo ilus-trativo, na medida em que promove o culto do efême-ro. A este respeito, P. Bourdieu é enfático: “Os fatosdiversos têm por efeito provocar o vazio político,despolitizar e reduzir a vida do mundo à anedota eà tagarelice (que pode ser nacional ou planetária,com a vida das estrelas ou das famílias reais),fixando e retendo a atenção sobre acontecimentossem conseqüências políticas, dramatizadas paradelas se “retirar lições” ou transformá-las em “proble-mas de sociedade” (...) Alguns filósofos de televisãosão chamados em socorro para restituir sentido aoinsignificante, ao anedótico e ao acidental”(Sur laIélévision, Liber Éditions, 1996, p.59).

Responsável pela emancipação da multipli-cidade dos horizontes de sentido, por nossa renúnciados megarrelatos filosóficos e ideológicos, por nossoadeus ao “fim da história”, vale dizer, aos mitos doProgresso, da Emancipação e da Salvação, a mídiafaz-nos viver hoje num quadro sem referências. Osfatos e os acontecimentos são fragmentados, sãoobservados de todos os ângulos, carecendo de umareferência a uma totalidade que lhes dê sentido. Detodos os acontecimentos, só vemos os detalhes.Consumimos milhões de notícias sem reflexão. Osefeitos especiais e secundários nos escondem o fun-damental. Não sabemos mais distinguir o importantedo trivial. A informática, as redes de comunicação ea mídia se convertem num grande acelerador de par-tículas impedindo-nos de perceber a órbita referen-cial das coisas. E com a perda do horizonte histórico,perdemos também o sentido da história. Vivemosna imediatez e na dinâmica do provisório. Não distin-guimos mais entre o objeto e sua imagem. Estaría-mos vivendo uma escatologia do tempo cumprido?

mente o sentido único que lhes é proposto ou impos-to pelas instituições e pelos campos sociais? Quasetodo mundo hoje se converte em “teleconsumidor”de bens materiais e de produtos culturais. Seu “pra-zer”, diferentemente do que ainda é capaz de sentiro espectador, ouvinte ou leitor de uma obra de arte,só comporta um mínimo de sublimação: a satisfaçãovicariante das pulsões por um avatar de “voyaeu-rismo”, “prazer de órgão” bidimensional, acompanha-do de um máximo de passividade. Seja “belo” ou“feio” o que apresenta a mídia, é recebido napassividade, na inércia e no conformismo, impedindoos indivíduos de exercitarem seu pensamento naabertura ao imprevisto, às idéias novas, ao questio-namento das certezas estabelecidas e à necessi-dade de mudar seus modos de ser, pensar e agir.

Nossa sociedade está se esquecendo de quea cultura não pode ser reduzida ao simples funcionalou instrumental, pois apresenta uma dimensãoimperceptível positivamente investida pelos indiví-duos. Esta dimensão se manifesta no imaginário“poético”(no sentido grego de poiein: fazer), tal comose encarna nas obras e nas atitudes (comportamen-tos e condutas) que ultrapassam o simples funcional.A cultura contemporânea corre o risco de converter-se numa mistura de impostura “modernista” e demuseísmo. Nos últimos anos, o “modernismo” temse transformado numa velharia freqüentementerepousando em plágios que só são admitidos graçasa um crescente neo-analfabetismo do grande públi-co. Nossa cultura passada, ao invés de continuarviva numa tradição, torna-se objeto de um sabermuseico, de curiosidades mundanas e turísticasreguladas pelas modas.

Nessas condições, não é de se estranhar que,no domínio da reflexão, o pensamento criador dêlugar às reportagens históricas, aos comentários ou

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pragmática, consistindo em estabelecer o modo omais eficaz de coordenar meios para a obtenção defins.

Desde os Gregos, a razão constitui o traço maiscaracterístico do ser humano. Seus dois caracteressão: a) sua capacidade de conhecer o universal e oabstrato; b) sua exigência de conhecer o “por que”das coisas (exigência que conduz o homem a argu-mentar dedutivamente, isto é, a estabelecer vínculosde conseqüência lógica entre enunciados). Por se-rem típicos de todo ser humano, esses dois caracte-res fundam seu modo próprio de intencionalidade.Só ele pode intencionar (“voltar-se para” e “tornarpresente a si”) as coisas e suas imagens. É o únicoser capaz de intencionar o abstrato: tomar consciên-cia do que é puramente possível. E é justamenteessa capacidade de intencionar ou “visar” que fundaa busca do “por que”. Ora, colocar a questão do “porque” de um fato, significa reconhecer ou postular aexistência de algo que no momento ignoramos (umpuro possível ou um abstrato), mas graças ao qualpoderemos compreendê-lo e explicá-lo. E nesta ati-tude profunda da razão humana, não há apenas umacapacidade de intencionar o abstrato, mas a convic-ção de que o imediato não constitui o originário.Donde a necessidade de elucidarmos o que nãovemos, se queremos compreender e fornecer arazão do que vemos. E é justamente esta exigênciade compreensão e justificação (“exigência do Lo-gos”) que constitui a mais distintiva característicade nossa racionalidade humana.

Por mais que tenha desejado viver na maisplena autonomia, conferindo-se suas próprias re-gras, o saber científico não consegue escapar doduplo olhar da filosofia e da história. Nos anos 1940,também os sociólogos começam a se interessar pelofuncionamento da comunidade científica. Logo distin-

A saída da história suporia a libertação das aliena-ções que nela ocorrem? Estaríamos totalmente en-tregues ao esteticismo do presente? Ou estaríamosassistindo à chance de uma superação da irraciona-lidade tecnocientífica pelas manifestações mais oumenos ultrametafísicas?

É neste contexto que devemos compreendera ciência e sua produção de verdades. Defrontamo-nos com um processo de sua ideologização compor-tando dois elementos dinâmicos: a) o primeiro,promovendo-a ao nível de valor supremo de nossacivilização; b) o segundo, considerando essa promo-ção como intrinsecamente justificada pelo fato de aciência constituir a mais alta expressão da racionali-dade humana. Não resta dúvida que, em nossa men-talidade corrente, o conceito de “ciência” sempre vemassociado ao de “progresso”. Esta identificação con-firma, não somente a importância culturalmente porela adquirida, mas a conotação de valor que lhe éatribuída. Quando falamos de “progresso”, não nosreferimos apenas a uma mudança, mas a uma mu-dança “para melhor”. E é sempre um valor que nospermite julgar esse “melhor”.

As razões que o homem contemporâneo alegapara emitir um juízo incondicionalmente positivo so-bre a ciência e identificá-la quase sempre à sua di-mensão de progresso são de natureza essencial-mente prático-instrumentais. Se merece, por partedo grande público, tanta estima e consideração, istose deve, não propriamente à sua racionalidade, aseus aspetos cognitivos de rigor e de objetividade(condição que parece bastante intelectual e desliga-da do concreto), mas a seus resultados, às suasinegáveis conquistas em todos os domínios, notada-mente ao poder que confere ao homem sobre anatureza e a sociedade. Não é por acaso que vemassumindo a forma típica de uma racionalidade

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das ciências para mostrar como as prioridades dapesquisa, as formas de sua prática e o estilo de suasexpressões são estreitamente determinadas pelascondições sociais, os outros se esquecem completa-mente de que, apesar da contingência dessas deter-minações, os saberes produzidos demonstram umaextraordinária robustez epistemológica e inquestio-nável eficácia técnica. Ademais, diante da questão:tem a ciência condições de nos dar acesso à verdadedas coisas?, duas posições se opõem: uma defendeque sua vocação é a de nos fornecer um conheci-mento objetivo e completo do mundo; a outra afirmaque só pode fornecer-nos um saber parcial e subjeti-vo, porque humano.

Na contemporaneidade, a questão do relativis-mo vem se pondo a partir da década de 70 quando,do confronto entre a filosofia das ciências e a sociolo-gia do conhecimento, impõe-se a questão: “existe averdade científica”? Surgem (notadamente na Ingla-terra) os chamados social studies que, reagrupan-do várias disciplinas interessadas na atividade cien-tífica (história, sociologia, epistemologia, economia),mudam as fronteiras do debate, envolvendo sociólo-gos, historiadores e filósofos em torno do conteúdomesmo das ciências exatas. Cada um radicalizandosuas posições ou pontos de vista, logo a oposiçãose transforma numa verdadeira batalha entre o racio-nalismo e o relativismo. Entre os que afirmam umavalidade cognitiva absoluta e intrínseca dos saberescientíficos (e freqüentemente, no grande público, deseu valor ético) e os que tentam desqualificar seualcance, por causa da pregnância da organizaçãosocial e do contexto ideológico.

Desde o século passado, a representação cien-tificista da ciência vem apresentando-a como estan-do presente, não somente no domínio temporal, masno espiritual, na medida em que interfere nas

guem aquilo que, em sua atividade, representa asqualidades que lhe são próprias (objetividade, desin-teresse, transparência, etc.), e o que depende desuas condições concretas de exercício e funciona-mento (instituições, meios, etc.). Posteriormente,alguns sociólogos e historiadores (notadamente bri-tânicos), animados por um aguçado espírito crítico,decidem se comportar, em relação à ciência, comoetnólogos diante de uma cultura estrangeira. Aoadotarem uma postura cética, põem-se a descrevera ciência em vias de se fazer e descobrem que, porvezes, vários preconceitos, interesses, concorrên-cias, persuasão e negociações desempenham o pa-pel de explicação. O grande mérito desses pensado-res foi o de levantar, no interior mesmo das ciências,o debate do relativismo. Contrariamente à imagemhabitual da ciência (feita de rigor, desinteresse, obje-tividade, transparência), puseram-se a questionar,através da observação meticulosa das atividadescientíficas, o rigor dos métodos e a evidência dosresultados.

Já se disse que, na ciência, o que menos co-nhecemos é a própria ciência. Para nos darmosconta disso, basta olharmos os dois pólos extremosdos discursos sobre ela: o cientificismo e o relativis-mo. De um lado, temos a afirmação da validade cog-nitiva absoluta e intrínseca dos saberes científicos,do outro, a depreciação de seu alcance, referida àpregnância da organização social e do contexto ideo-lógico. Diante de um problema concreto, cada campopode até atenuar suas teses e sofisticar seus argu-mentos. Mas quando surge um problema político (odebate sobre os organismos geneticamente modifi-cados) ou um enfrentamento cultural (o affaireSokal), as questões voltam a se radicalizar e a pola-rizar o campo da discussão. Enquanto uns lançammão das análises da sociologia e da antropologia

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sistema de enunciados capaz de explicitá-los elibertá-los das demais formas de saber. O problemanão consiste tanto em saber como as proposiçõesdos cientistas se tornam verdadeiras ou em resgatarcomo sua legitimidade é negociada na comunidadecientífica, mas em descrever como enunciados,através dos objetos e das práticas, impõem-se nacompetição para sua sobrevivência (social e cogniti-va). Sendo a ciência um dispositivo que produz einventa uma ordem, e não que “desvela” a ordemoculta da natureza, seus enunciados precisam sersocialmente contextualizados.

Em outras palavras, os relativistas contemporâ-neos defendem a seguinte tese: para o problemada verdade científica, nenhuma solução pode serlogicamente necessária e coercitiva ou impor-se nosentido absoluto do termo, posto que todo encerra-mento de um debate ou todo consenso só pode serlocal por natureza, devendo ser compreendido nocontexto preciso de sua elaboração. Por isto, a apa-rente universalidade dos enunciados científicos, ofato de serem descritos como “verdadeiros em todaparte” e compreendidos por todos “nos mesmos ter-mos”, não pode constituir o melhor ponto de partidapara a compreensão das ciências em sua história.Se os saberes científicos circulam, não é por seremuniversais. É porque circulam, quer dizer, são reutili-zados por outros, em outros contextos, e atribuindo-lhes um sentido, que são descritos como universais.

Os partidários do relativismo mostram que suatomada de posição está ligada a sociedades pluralis-tas e desencantadas. Reatualizam as palavras dePascal: “as únicas regras universais são as leis dopaís às coisas ordinárias e a pluralidade às outras”;que conclui: “Verdade aquém dos Pirineus, erroalém”, justificando que costumes, hábitos, direito,práticas sociais são incomensuráveis uns aos outros,

questões fundamentais que as sociedades enfren-tam: o que é o homem? de onde ele vem? para ondevai? como deve agir? como deve organizar a socie-dade? etc. A superioridade intrínseca dos conheci-mentos científicos passa por um fato adquirido. Elesse fundam na rocha do método experimental e naanálise meticulosa e rigorosa dos fatos. E como seusprodutores se consideram “objetivos”, admitem quea ciência constitui o único caminho seguro para nosconduzir à Verdade. Mas é concebida, neste finalde século, não só como um saber que é absoluta-mente verdadeiro, portanto, indiscutível e fora dealcance do espírito crítico, mas como um saber que,ultrapassando os erros antigos, é susceptível derevelar-se, por sua vez, absolutamente falso. Esteparadoxo nos faz compreender que o desabrochardos conhecimentos científicos e sua difusão aogrande público não conseguem deixar de convivercom o resssurgir de toda uma gama de conheci-mentos pseudocientíficos e de comportamentosirracionais que nos invade.

Qual a imagem da ciência que os relativistasquestionam? Reagem contra o discurso dominantesegundo o qual as ciências são apresentadas comosistemas de proposições ou de enunciados podendoe devendo ser falsificados pelo confronto com a ex-periência. Como os procedimentos que caracterizama ciência podem ser explicitados (fala-se de “métodocientífico”), posto que o grande elemento é a repro-dutibilidade sempre possível dos resultados experi-mentais, é apresentada como o Saber por excelên-cia, como o meio privilegiado de acesso ao conheci-mento do mundo e capaz de produzir verdadesuniversais transcendendo o tempo ordinário doshistoriadores. E isto, como se a categoria “ciência”,uma vez reificada, pudesse ser utilizada sem colocarnenhum problema maior; como se constituísse um

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fica se apresenta como antidogmática e sempre dis-posta a reconhecer seus erros.

Parece que tanto os cientistas humanos e so-ciais quanto os filósofos de nossa modernidade, quetanta importância deram à sua racionalidade formal,funcionando sob o influxo do Mercado, da Ciênciae do Estado-nação burocrático, encontram-se aindadesarmados para pensar nosso futuro. Com o ad-vento da chamada “pós-modernidade”, que teria de-cretado o fim da historicidade, surge a questão: aquem compete a responsabilidade de pensar a so-ciedade mundial que se encontra em gestação? Por-que tudo indica que está nascendo privada de umainteligibilidade teórica, ética e política. Um dos pro-blemas que se destaca é o que opõe Universalismoe Relativismo. Pode ser formulado assim: será quea atual Globalização pode ou não ser consideradacomo uma Ocidentalização do mundo? Como a uni-versalização dos valores ocidentais tem sido ou estásendo feita? Tais valores estão sendo aceitos espon-taneamente, ou sendo impostos pela violência? Seo Ocidente não encarna a “naturalidade” nem esgotaa “racionalidade”, claro que a ocidentalização só po-de ser feita pelo uso da força ou da violência. A me-nos que pensemos em formas culturais e políticassusceptíveis de transcender a versão européia douniversalismo, bastante apegada à idéia de que ouniversal não pertence à ordem do fato ou do resul-tado de um recenseamento empírico, mas dependeda ordem do direito e do conceito, pois se estenderiaa todo o universo (como a gravitação universal), atodos os espíritos (como os princípios universais darazão) e a toda uma classe de objetos (como aproposição: “todos os homens são mortais”).

O âmago do debate se situa na oposição radi-cal entre universalistas (racionalistas) e relativistas.O questionamento atinge o princípio racionalista em

portanto, relativos a cada país. Conhecem tambéma proclamação de Protágoras: “o homem é a medidade todas as coisas”; e o ditado popular: “a cada umsua verdade”. Fundadas nesses modelos, são asproposições relativistas: a verdade de nossas idéiasou de nossos valores é relativa a um lugar, a umtempo e a um sujeito. Enquanto a discussão se limitaao domínio das “opiniões”, no nível do cotidiano, nãoproduz graves conseqüências. Contudo, quando sesitua no campo das ciências, o debate se tornaacirrado. Nos dias de hoje, os chamados “comunita-ristas” americanos retomam esses argumentosrelativistas, renovando seu conteúdo: o universal nãopassa de uma referência inconsistente. Uma dasconseqüências de sua justificação do relativismo éque elaboram uma teoria intelectual terminando portambém justificar o fechamento das sociedades maisricas nelas mesmas, tornando-se mais ou menosindiferentes à “sociedades das Nações” ou à espéciehumana.

Todo o esforço da filosofia das ciências temsido o detectar em que consiste a ciência, em eluci-dar seu verdadeiro estatuto e demonstrar que, dife-rentemente dos outros modos de conhecimento (filo-sóficos, estéticos, religiosos, míticos e ideológicos),é autônoma por seu método e objetiva por seusresultados. Todo mundo acreditava que “a ciência”só nos fornece conteúdos confiáveis, objetivos e uni-versais. E isto, mesmo que possam ser considerados“verdades aproximadas”, provisórias e sempre revi-sáveis. Porque seus enunciados, em qualquer hipó-tese, são sempre mais sólidos que uma opinião, queum desejo ou uma convicção. Por isso, merecemser cridos, pois são verdadeiros. No entanto, umaproposição científica deve sempre fundar-se na baseda teoria e da experiência. E tal fundamento semprepode ser posto em questão. Por isso, a atitude cientí-

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aos princípios utilitários da economia liberal? Por quedevemos aceitar resignadamente a idéia segundo aqual a “boa” sociedade é a que se organiza em totalconformidade com a razão, vale dizer, segundo aordem, a harmonia e o cálculo? Por que é superioràs outras a visão do mundo afirmando um perfeitoacordo entre o “racional” e a “realidade”? Como sejustifica a universalidade de uma ética afirmando queas ações e as sociedades humanas precisam serracionais em seu princípio, em suas condutas e emsua finalidade? Por que a ciência moderna e suaracionalidade própria tiveram necessidade de elimi-nar, de seus materiais de construção, o oculto, opassional, o irracional e o a-racional? Por que fechoutodos os canais de comunicação entre a inteligênciae a afetividade? Por que sempre mascarou esta reali-dade profunda, que o homem não é simplesmenteum ser-sapiens, mas sapiens/demens?

Claro que não temos respostas para essasquestões. Mas não aceitamos as que nos estão sen-do propostas ou impostas. O que pretendemos éfornecer alguns elementos de reflexão susceptíveisde “ampliar nossa razão para torná-la capaz de com-preender aquilo que, em nós e nos outros, precedee excede a razão” (Merleau-Ponty). E o real sempreexcede o racional. O problema é que, enquanto orealismo afirma que o conhecimento científico temcondições efetivas de descrever o real em si, inde-pendente de toda observação, posto que uma teoriacientífica validada constitui também uma verdadesobre o mundo; enquanto o construtivismo defendeque a atividade científica constrói modelos dos fenô-menos observados, não se contentando em descre-vê-los, aceitando que os fatores sociais participamdesse processo de construção; enquanto o racio-nalismo proclama que o saber válido é apenas oque se conforma às regras da razão; que o saber

sua validade fundamental. Se entendemos por racio-nalização a construção de uma visão coerente eglobalizante do mundo, mas a partir de uma princípioúnico ou em função de um único aspeto das coisas,somos forçados a reconhecer: historicamente, aRazão tem sido entendida e apresentada como umadas mais poderosas formas de racionalização doetnocentrismo ocidental ou europeu. E a universali-dade tem sido apresentada como a camuflagemideológica de uma visão parcial do mundo e de umconjunto de práticas conquistadoras, dominadoras,colonizadoras e destruidoras de várias culturas e demuitos valores “alienígenos”, “bárbaros” ou simples-mente não-ocidentais.

Ao surgir como força de emancipação univer-sal, a Razão Esclarecida (da Aufklärung) vem seimpondo como o mais forte princípio universalizantecapaz de justificar racionalmente a supremacia e ahegemonia de uma cultura, de uma sociedade e deuma economia sobre as outras. Há alguns anosatrás, Karl Popper proclamava: “Pretendo que viva-mos num mundo maravilhoso. Nós, os Ocidentais,temos o insigne privilégio de viver na melhor socie-dade que a história da humanidade jamais conheceu.É a sociedade a mais justa, a mas igualitária, a maishumana da história”. A grande força do relativismoconsiste em repudiar a “deusa” Razão, vale dizer,toda razão absoluta, fechada e auto-suficiente e, aomesmo tempo, em reconhecer seu caráter históricoe evolutivo, vivo e biodegradável. Porque ela nãopode mais constituir o grande mito unificador dosaber, da ética e da política, a não ser que continueseu processo perverso de desqualificar, repudiar erecalcar todos os apelos da paixão, da fé e dasemoções (da subjetividade).

Em nome de quê devemos aceitar que a vida,conforme os cânones da razão precisa, obedecer

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Se devemos dialogar, é porque nossa verdadeprecisa ser concebida como um processo de cons-tante construção e não somos detentores de princí-pios absolutamente fundamentais nem tampoucopodemos nos valer de critérios absolutos permitindo-nos instalar-nos num reino qualquer de segurançaou num porto seguro. Ademais, é porque possuímosapreensões diferentes da verdade. Não estamos cer-tos, de antemão, de sua existência. Nossa verdadeé um tornar-se verdade. Não podemos dizer, umavez por todas, o que ela seja. Em sua construção,conhece momentos de profunda hesitação. É atra-vés de uma experiência que a descobrimos e pode-mos atingi-la de modo parcial e progressivo. Todavia,está fundada na crença racional (a que não é impostapela força das armas ou pela força da autoridade eda tradição) de que existe a verdade e na esperançade que pode ser atingida. Em última instância, odiálogo é a metodologia dessa experiência: no planoespeculativo, opõe-se à sofística, que é a arte daargumentação enganadora; no prático, opõe-se àviolência, que é a recusa absoluta do outro. Dondeexcluir tanto o relativismo quanto o ceticismo.

científico explica verdadeiramente o mundo, postorepousar em enunciados consistentes e na experiên-cia; enquanto o relativismo defende a tese geral:todo conhecimento ou toda norma só possui sentidorelativamente ao sujeito individual ou coletivo queos enuncia ou os considera verdadeiros, defende-mos a seguinte posição: como diria Sócrates, umavida sem exame (interrogação) ou uma paixão(busca amorosa) pela verdade, é uma vida que nãomerece ser vivida. Jamais a possuiremos. Mas ali-mentamos sempre a crença e a esperança de poderencontrá-la. Se não procedermos assim, nossa iden-tidade estará em questão: o homem tem tanta ne-cessidade de conhecer quanto de crer.

Tentarei abordar nosso tema no contexto doassim chamado “diálogo com a epistemologia”.Pessoalmente, tenho certa desconfiança dessetermo. Porque muitas vezes tem servido para camu-flar a ideologia da conciliação a todo preço. Por umlado, podemos ser tentados a fazer os fatos entra-rem, pela força, em nossas próprias esquematiza-ções, em nossas concepções mais ou menos cegase falsificadoras impedindo-nos de reconhecer a ver-dade, a nossa e a do outro. Por outro, podemos sertentados a negar, tanto na teoria quanto na prática,a riqueza e a fecundidade dos conflitos, quer relegan-do-os do lado do mal, quer recusando-nos sistemati-camente a fazer apelo a uma estratégia conflitual.Em todo caso, o diálogo, para nós, significa o esforçomútuo tendo em vista chegar, mediante a palavra, aum encontro na verdade. Neste sentido, é equivalen-te de uma discussão construtiva na qual ninguémpossui a palavra final nem tampouco é proprietárioexclusivo de princípios intangíveis e acabados, cadaponto de vista devendo ser ultrapassado em direçãoa outro sempre mais rico e englobante.

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11. A ONDA

RELATIVISTA

Por “onda relativista”, entendemos todo estemodo de pensamento segundo o qual as teoriascientíficas nada mais são que construções repousan-do em pressupostos arbitrários e constituindo ummodo de conhecimento tributário das paixões sociaisou de convicções religiosas. Não há nenhuma lógicacapaz de impor-se como absoluto de referência. Nãosomente na ordem do conhecimento, mas nos domí-nios religioso, moral ou político, tudo o que é propos-to como “verdade universal” ou norma geral deveser considerado como dogmático, autoritário e con-trário à tolerância e ao pluralismo. Identificados comopensadores “pós-modernos”, pois pretendem ques-tionar, não somente as noções clássicas de verdade,razão, identidade e objetividade, mas a idéia de pro-gresso ou emancipação universal, os sistemas úni-cos, os megarrelatos ou os fundamentos definitivosde explicação, os relativistas atuais formam um movi-mento “radical” negando a unidade (isto é, a univer-salidade) da verdade, da razão, da realidade e daciência. A ciência não pode mais ser entendida comoum conhecimento universalmente válido sobre omundo natural, mas como um construto particularou “étnico” da sociedade ocidental. Para esse cons-trutivismo social, todas as crenças são igualmentejustificadas pelo consenso da comunidade, nãohavendo nenhuma verdade objetiva sobre o mundoreal ou capaz de transcender o contexto social lo-cal. Como não existe a verdade correspondendo auma realidade independente da mente, as alegaçõesde conhecimento devem ser explicadas “simetrica-mente”, qualquer que seja sua verdade ou falsidade.

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lando seu “ser” e seu “destino” à exploração danatureza e dos homens. Donde a insurreição dosrelativistas, que não mais se limitam a uma críticada ciência (exterior e de eficácia limitada), masdesenvolvem uma crítica de ciência, pretendendoatingir o cerne mesmo da atividade científica. É oque constata o físico Lévy-Leblond quando nosgarante que, para entendermos por que a imagemda ciência não corresponde à sua realidade, precisa-ríamos levar em conta quatro paradoxos definindosua situação atual:

! Paradoxo econômico: “Nunca a ciência funda-mental esteve tão intimamente vinculada ao siste-ma técnico e industrial; mas seu peso econômicopróprio está, doravante, em regressão”;

! Paradoxo social: “Nunca o saber tecnocientíficoatingiu tanta eficácia prática; mas mostra-se cadavez menos útil face aos problemas (saúde, ali-mentação, paz) da humanidade em seu con-junto”;

! Paradoxo epistemológico: “Nunca o conheci-mento científico atingiu tal grau de elaboração ede sutileza; mas se revela cada vez mais lacu-nar e fragmentado e cada vez menos capaz desíntese e de reformulação”;

! Paradoxo cultural: “Nunca a difusão da ciênciadispôs de tantos meios (mídia, livros, museus,etc.); mas a racionalidade científica permaneceameaçada, isolada e sem controle sobre as ideo-logias que a recusam ou (pior) a recuperam”.(1a)

A oposição entre racionalistas (universalistas)e relativistas é muito antiga. De Platão aos modernospositivistas, os racionalistas acreditam que existe umfundo comum de realidade imutável acessível à ra-zão. Quanto aos relativistas, proclamam que as coi-

De forma que a verdade se reduz ao que se ajustaa um dado sistema de crenças.

Aliás, para o pensamento comum, a expressão“tudo é relativo” significa: todas as opiniões se equi-valem, cada um tem sua percepção das coisas, cadaum possui seus valores, não podemos julgar os ou-tros, cada um tem razão de pensar como pensa,ninguém tem o direito de ditar aos outros o que de-vem pensar e fazer, etc. As opiniões diferentes seexplicam pelo ponto de vista de cada pessoa, condi-cionada por sua educação, sua época, sua cultura,sua família, etc. No domínio das preferênciaspessoais, a maioria dos indivíduos adota esta filoso-fia espontânea segundo a qual todas as opiniões seequivalem. O fato de fulano adorar doce de coco ede sicrano detestar, é relativo, pois “gosto não sediscute”: cada um tem direito à sua opinião.(1)

Nos dias de hoje, sabemos que a ciência nãopode ser entendida como um progresso contínuo ecumulativo de “verdades”, como uma espécie de“religião leiga” em cujo poder todos depositam umaconfiança cega e cuja autoridade intelectual mereceum respeito quase universal, mas como uma sériede “revoluções”. A teoria epistemológico-racionalistade Popper mostra-nos que não podemos provar averdade de uma teoria científica, mas tão somentesua falsidade. Por sua vez, os primeiros frankfurtia-nos (Adorno), ao enfatizarem as condições histórico-culturais da produção do saber, deram uma contribui-ção decisiva para se relativizar a racionalidade cien-tífica ocidental. Por essência, é “tecnológica” (Mar-cuse), pois só apreende o mundo em sua instru-mentalidade; e o logos que a anima se revela funda-mentalmente técnico, dominador e manipulador. Oque podemos ler, em seu empreendimento, é umalógica da dominação, uma visão do mundo típica deuma sociedade que se constrói e se expande vincu-

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racional varia segundo o contexto social. Assim, oque um grupo social reconhece como prova podenão ser aceito por outro. Por depender de um contex-to local e de um sistema de crenças, toda prova érelativa. O observador não tem o direito de pronun-ciar-se sobre o que é racional ou irracional, pois nãodispõe de nenhum critério de avaliação universal.Ao utilizar a imagem do tribunal, B. Latour denominaracionalistas os advogados de acusação. Em contra-partida, os corajosos, hábeis e obstinados advoga-dos de defesa que conseguem convencer os mem-bros do júri que “todos os casos de irracionalidadepatente têm numerosas circunstâncias atenuantes”e que “todos os casos de comportamento racionalmanifestam sinais de irracionalidade patente”, sãorelativistas. Sua grande força consiste em nos con-vencer, no domínio da forma, que não podemos reco-nhecer nenhuma assimetria entre os raciocínios dosindivíduos, pois as diferenças procedem do domínioda matéria. Mas não explicam por que, neste domí-nio, não partilhamos todos as mesmas convicções(La Science en Action, Gallimard, 1989, p. 471s).

Por sua vez, o eventual consenso não é a con-seqüência de nenhuma necessidade lógica ou deuma prova capaz de impor-se a todos, mas tão-so-mente o resultado dos critérios das provas que deter-minado grupo se dá e reconhece. O que é uma pro-va, senão aquilo que o grupo reconhece como tal?Por isso, os critérios de sua aceitação dependemdos grupos e de uma explicação sociológica. Sendoassim, todo consenso é social, pois resulta dasinterações e negociações entre pessoas dispondode recursos, poderes e interesses cognitivos diferen-tes, mas participando de um mesmo sistema decrenças. Até mesmo essas crenças, quando partilha-das, resultam de negociações e consensos anterio-res. Quando sua origem social é ocultada, aparecem

sas mudam em função do contexto social, que nãoexiste uma verdade única e universal, pois varia emfunção do observador e da sociedade. Do ponto devista epistemológico, o âmago do debate é travadoem torno das noções de prova e consenso. Os racio-nalistas defendem que a prova deve impor-se por simesma, pelo menos às pessoas competentes edesprovidas de preconceitos: pelo fato de retirar suaforça da estrutura mesma do raciocínio e da relaçãocom a experiência, não há razão ou motivo para quenão acarrete necessariamente o consenso. Quandonão é alcançado, devemos buscar a causa de seuinsucesso na falta de informações suficientes e nospreconceitos ideológicos. Porque o consenso se ex-plica pelo valor empírico-lógico da prova. O não-con-senso, por fatores exteriores (psicológicos e socioló-gicos). Assim, diante dos sistemas de pensamentoe de crença, defrontam-se duas posições:

Racionalismo:! Comparação possível! critério = a razão universal! superioridade do sistema de pensamento

científico

Relativismo:! Não há comparação possível! não há razão universal! não há superioridade de um sistema! a ciência é um sistema entre outros

A posição dos relativistas é radical: não reco-nhecem, a priori, nenhum critério universal e absolutode racionalidade nem de verdade. Tudo o que pode-mos aceitar como argumento válido ou qualificar de

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Em síntese, o que afirmam os relativistas é quenem a lógica nem a evidência desempenham umpapel importante na construção e na transmissãodo conhecimento, pois tal processo é inteiramentesocial. As problemáticas que guiam o conhecimentoconsistem, ora em saber como debates científicosterminaram, ora em determinar como cientistaschegam a decidir sobre a validade dos resultadosobtidos, quando seus métodos não explicam ou sóexplicam parcialmente os resultados da pesquisa.Quanto ao que determinam os resultados da pesqui-sa, os relativistas fazem valer exclusivamente causasexternas, a saber, o consenso e a persuasão obtidosdos colegas e de seu público. Tal relativismo deveser compreendido como determinismo social.

Enquanto o sofista Protágoras proclama que“o homem é a medida de todas as coisas”, a Bíbliaconfia ao homem o cuidado de “submeter a terra edominar os peixes, os mares, as aves do céu e todosos animais”. Tanto a corrente judaico-cristã quantoa greco-romana, que constituem a base de nossacivilização e a alimentam, juntam-se para estabele-cer uma orientação. E ao fundar a ciência moderna,Galileu lhe fornece os meios de realizá-la. Assim,através dos princípios epistemológicos de umaciência pretensamente “pura” e indiferente às suasaplicações, não é a Razão eterna e universal quese exprime, mas sua racionalidade específica, porta-dora por excelência do projeto de uma sociedadedominadora e apresentando-se como a detentoraexclusiva de uma verdade universal e conquistadora.

Enquanto a máxima de Protágoras exprime umrelativismo a respeito dos indivíduos, os autores con-temporâneos, quando afirmam (como Kuhn) que“não há nenhuma autoridade superior ao assenti-mento do grupo interessado”, exprimem umrelativismo a respeito das comunidades: tanto as ca-

como verdadeiras, objetivas ou naturais para o grupoque as aceita. Neste sentido, não há uma distinçãoradical entre crença e conhecimento.

Aliás, os termos “prova”, “razão”, “validade”,“objetividade”, etc. nada mais são que categoriasutilizadas pelos autores, não constituindo umarealidade capaz de transcendê-los. Tomados nelesmesmos, nada explicam. O que precisa ser explicadoé seu uso no interior dos diferentes sistemas decrenças. Tudo é social. Nada há de universal. Nãohá pontos de vista absolutos. Nenhum sistema decrenças pode ser considerado como verdadeiro.Uma teoria só é científica em função do consensosocial que a torna aceitável. A verdade repousa naforça dos que a impõem. O fundamento de um enun-ciado científico só pode ser sócio-histórico. Os con-ceitos, os métodos e os critérios de validação, utili-zados pelos cientistas, nada mais são que meiospermitindo-lhes criar consensos em torno de seusenunciados e do valor científico de suas provas. Oêxito científico de um enunciado resulta do sucessosocial de seu autor. Donde as duas posições antagô-nicas diante da questão da prova e do consenso:

Racionalismo:Lógica, natureza, experiência " Prova " Con-senso que se impõe (quando não há influênciade fatos psicológicos e sociais)

Relativismo:

Grupo social (= sistema de crença + critérioslocais de prova)

+ negociações " Consenso socialTudo é relativo, inclusive os termos “prova”,“razão” e “objetividade”

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absoluta, pois suas leis são exatamente iguais àsque o real obedece. Contemporaneamente, oracionalismo abandona a idéia do absoluto, emboramantenha, para a Razão, a possibilidade de atingiro real, notadamente pelo conhecimento elaboradocientificamente. Trata-se de um racionalismo abertoou dialético (à maneira de Bachelard), levando emconta a historicidade mesma da Razão.(1b)

Portanto, quando falamos de “onda relativista”,estamos nos referindo às correntes de pensamentoque, nas últimas décadas, notadamente no campoda sociologia das ciências, negam peremptoriamen-te qualquer critério de verdade universal. Um dospioneiros da sociologia das ciências (Karl Manheim),ao excluir os conhecimentos científicos do campoda sociologia, afirma que, por serem verdadeiros eprovados, não podem ser explicados por fatoressociais. Claro que podem dar conta dos problemasque nos colocamos em determinado momento e emcerta sociedade, mas de forma alguma do queconsideramos como verdadeiro. Somente as teoriasfalsas podem ser explicadas pelo contexto sócio-histórico, pela ideologia dos pesquisadores ou porsuas crenças pessoais. Quanto ao conteúdo mesmode uma teoria verdadeira, só se explica por seu valorintrínseco: métodos rigorosos, observações corretas,experimentação concludente e sólidos raciocínios.O papel do contexto social é apenas o de criar condi-ções favoráveis ou desfavoráveis para se chegar aesse resultado.

Outro fundador da sociologia das ciências,Robert Merton, preocupado, não tanto em estabele-cer os vínculos entre os cientistas e as outrasinstituições, mas em estudar a sociologia da comu-nidade científica, em compreender os usos e cos-tumes dos pesquisadores, seus modos de organizar-se, sua maneira de entrar em competição, suas

racterizações do progresso quanto os diversos crité-rios de julgamento de validade das teorias são relati-vos, seja ao indivíduo, seja às comunidades. Se oscritérios para julgarmos os méritos das teorias de-pendem dos valores ou dos interesses do indivíduoou da comunidade, também a distinção entre o quedepende da ciência e o que dela se separa varia domesmo modo. Diferentemente do racionalista, orelativista extremado considera arbitrária a distinçãoentre ciência e não-ciência. Nega a existência deuma categoria única, “a ciência”, capaz de impor umasuperioridade intrínseca, de direito e de fato, àsoutras formas de saber, embora não ignore o fatode indivíduos e comunidades conferirem um valorelevado ao conhecimento científico. Para compreen-dermos a razão pela qual “a ciência” goza de umaaltíssima estima em nossa sociedade, precisaríamosanalisar nossa sociedade, não a natureza da própriaciência.

A questão da verdade e do relativismo é muitoantiga. Desde sua origem grega, a filosofia se cons-tituiu reconhecendo a Razão como faculdade deconhecimento das coisas e de domínio de si. Aoreferir-se ao Logos como à luz mesma da verdade,ela renuncia às revelações das místicas supranatu-rais e aos ensinamentos práticos da experiência. Epassa a afirmar que, do ponto de vista metafísico,nada existe sem razão de ser. Assim, tem início aaventura racionalista ocidental, acreditando que todoconhecimento humano é precedido de princípios apriori. Neste caso, distinguimos um racionalismoabsoluto (Platão, Descartes), não reconhecendo ne-nhum lugar para a experiência, e um racionalismocrítico (Kant), para o qual, aos a priori da razão,corresponde uma experiência que eles pré-defineme organizam. A filosofia de Hegel radicaliza: opensamento racional é capaz de atingir a verdade

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ção das produções científicas deve ser realizadasistematicamente por meio de critérios empíricos elógicos.

Merton foi um dos primeiros a elaborar umconjunto de teorias susceptíveis de explicar o funcio-namento da ciência enquanto instituição ou “esferadistinta e autônoma”. Seu objetivo é o de descreveros comportamentos individuais e coletivos dos cien-tistas bem como tudo o que os explica: as normas,os hábitos sociais e profissionais, os valores e asidéias. A instituição social da ciência torna possívela prática da racionalidade científica, o acúmulo dosconhecimentos e sua difusão na sociedade. O cresci-mento dos conhecimentos é o objetivo dessa institui-ção particular. Para ser atingido com eficácia, normase regras precisam reger o comportamento dos cien-tistas. O conjunto dessas normas constitui a estruturasocial da ciência, fazendo dela uma instituição so-cial autônoma:

# um objetivo: o progresso do conhecimento# um conjunto de regras normativas (universalismo,

etc.)# a adesão às normas é reforçada por um sistema

de gratificações simbólicas# o controle social é feito pelos pares# um modelo de democracia.

Em 1962, com a publicação de A Estruturadas Revoluções Científicas de Thomas Kuhn, asociologia da ciência passa a ser dominada pelanoção de “paradigma”. Sua concepção do sabercientífico rompe com o racionalismo dos estudosprecedentes. A tese fundamental de Kuhn consisteem dizer que a ciência só consegue pôr suashipóteses e teorias à prova por ocasião de crises

ambições, etc., defende que a atividade científicaprecisa ser regulada por um conjunto de normasespecíficas. Distingue dois tipos de normas: as éticase as técnicas. As primeiras devem regular os com-portamentos sociais e profissionais dos cientistas.As segundas (regras lógicas e metodológicas) sereferem aos aspetos cognitivos da ciência. Competeà sociologia estudar as primeiras e, à epistemologia,as segundas. Porque o papel do sociólogo é o deanalisar as regras éticas e descrever a moral uni-versal da ciência. Quatro são as normas éticas ouimperativos institucionais:

a) o universalismo: as afirmações dos pesqui-sadores e suas descobertas não devem ser julgadasem função de quem as propõe, mas de critériosimpessoais impondo-se a todos. Em outras palavras,o etos da ciência deve opor-se ao particularismo eao individualismo que privilegiam a utilização decritérios pessoais ou de grupo (religião, sexo, etc.);

b) o desinteresse: o único objetivo do pesqui-sador é o conhecimento dos conhecimentos, nãosua satisfação pessoal; as produções científicas têmum caráter público e controlado; o cientista deveestar interessado apenas na busca da verdade, emproduzir resultados reprodutíveis;

c) o comunialismo: todos os conhecimentosdevem ser públicos e partilhados com a comunidade;as descobertas são bens coletivos, produzidos emcolaboração e destinados ao progresso da socieda-de. Por isso, o etos da ciência se opõe à apropria-ção privada e ao segredo;

d) o ceticismo organizado: o objetivo dos pes-quisadores é o de produzir conhecimentos válidose manter o debate público permitindo que só sejamantido o que resistir ao exame crítico aprofundadoe evitar o dogmatismo. Em outras palavras, a avalia-

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sociais protegidas por convenções. O que pode serresumido conforme a seguir (cf. D. Vinck, Sociologiedes Sciences, A Colin, 1995, p. 98):

Paradigma = modelo de pensamento e de ação

# transmitido pela educação e pela aprendizagem# composto de elementos heterogêneos (conceito,

por exemplo)# estrutura a maneira de ver o real e de fazer a

ciência# corresponde a uma forma de vida e a uma estru-

tura social# impõe uma tradição normativa nos planos social

e cognitivo# domina na fase de ciência normal (= resolução

de enigmas postos pelo paradigma)# incompatível com outro paradigma (incomensura-

bilidade): a mudança de paradigma (ligada a fato-res extracientíficos) se faz por revolução; não háverdade universal.

Com a noção de paradigma, os sociólogoscomeçam a perceber que os próprios conteúdos dasciências são estruturados em torno de projetos,preconceitos e condicionamentos sociais. O que seevidencia é o aspeto institucional desses conteúdos.Contudo, num primeiro momento, os sociólogos seinteressam pela influência dos fenômenos sociaissobre o paradigma e as práticas científicas. Mas pre-servando, como uma idéia reguladora, a existênciade um núcleo duro das ciências: no cerne mesmodo trabalho científico há elementos que representamuma objetividade absoluta, mesmo que, na periferia,possamos perceber os condicionamentos das disci-plinas e sua relatividade histórica.

excepcionais ou de “revoluções”. No restante dotempo, os cientistas praticam a “ciência normal”: umaciência que todos aceitam sem muito questionarsuas aquisições, seus resultados, seus conceitos,suas normas, seus métodos, etc. Esses elementosconstituem paradigmas e se organizam em matrizesestáveis no interior de cada disciplina. O apego aoparadigma, vale dizer, ao conjunto de crenças dacomunidade científica, não é completamente racio-nal. E os diferentes paradigmas que se sucedem,na história das ciências, são “incomensuráveis”, querdizer, não-comparáveis, cada um possuindo seuscritérios de validade.

A noção de “incomensurabilidade” põe um pro-blema: se duas teorias são incomensuráveis, nãopodem ser traduzidas uma na outra. Ora, objetaPopper, duas línguas tão diferentes quanto o chinêse o inglês podem ser traduzidas uma na outra, postoque as pessoas que falam uma têm condições dedominar a outra, os conceitos de uma podem sertraduzidos adequadamente em outra. Se conceitossão traduzíveis de uma cultura à outra, torna-sepossível a existência de verdades universais e locais.Algumas crenças pertencem à razão universal, ou-tras a culturas particulares. A resposta de Kuhn con-siste em dizer que o tradutor (segundo seu quadrode referência: paradigma) pode fazer várias tradu-ções possíveis, não havendo apenas uma que sejauniversal. Porque os conceitos encontram-se intima-mente ligados a seu contexto. Apoiando-se nessatomada de posição, os relativistas (Barnes, Bloor)afirmam: além de não haver razão universal, tampou-co há a mínima possibilidade de distinguirmos pen-samentos racionais e irracionais. Porque cada siste-ma de pensamento possui seu próprio modelo e seuquadro de referência composto de convenções so-ciais. A realidade e o saber constituem construções

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de de seus resultados. Neste sentido, os estudossócio-históricos examinam as práticas científicas nãodiferenciando entre os cientistas que tiveram “razão”e os que historicamente erraram. Vieram mostrarainda que a ciência atual coloca mais questões quepode resolver, elimina mais falsas respostas quepode fornecer verdadeiras.

De um ponto de vista teórico, quase todos ossociólogos da ciência passam a reclamar de Kuhne a pôr em questão os dois elementos sobre os quaisse funda o paradigma mertoniano: a representaçãopositivista da ciência e a idéia de um etos científico.D. Bloor apresenta seu ponto de vista como umaalternativa às concepções extremas do empirismoe do racionalismo; B. Barnes rejeita o que chamade concepção “contemplativa” da atividade científica;M. Mulkay se opõe à concepção standard da ciên-cia. Todos questionam a concepção positivista daciência. Tentam desenvolver, em sua sócio-episte-mologia, determinado número de temas kuhnianos(a crítica do positivismo lógico e de seu critério deverificação dos enunciados, a crítica de Popper ede seu critério de falsificabilidade). Ademais, tentamrepresentar, numa perspectiva cética, a famosa tese“Duhem-Quine”: devemos julgar nossos enunciadosde vocação referencial, não um a um, mas em seuconjunto.

Assim, os defensores da Sociology of Scien-tific Knowledge rejeitam a idéia de normas interio-rizadas, a idéia de um etos único para o conjuntodas ciências permitindo-nos conferir um estatutoparticular à sua atividade, não podendo esta ser com-preendida a partir de normas gerais. A ciência nãodeve ser considerada como uma comunidade homo-gênea produzindo conhecimentos a partir de umconsenso que se realizaria em torno de determinadonúmero de valores, mas como um conjunto hetero-

A grande “revolução” de Kuhn foi a de abalar aimagem da ciência, a representação que ela sepropunha do mundo. Abalou as colunas do temploda razão. A partir dele, a ciência não pode mais serdescrita como um jogo cujos objetivos seriam perfei-tamente claros e se fundiriam na única preocupaçãode conhecer. As regras às quais obedecem ospesquisadores para evoluir, endossar ou repelir asteorias científicas não são desprovidas de ambigüi-dade nem partilhadas por todos. Toda decisão cien-tífica é influenciada por fatores sociais e inspiradapor motivações e objetivos extracientíficos. As certe-zas do cientista freqüentemente são crenças queele abraça por razões subjetivas. Toda pesquisacientífica se situa no interior de quadros intelectuais.Esses “paradigmas” são comparáveis aos “sistemasculturais” de que falam os antropólogos, vale dizer,a esse conjunto de princípios, crenças e valores cole-tivos sobre os quais se apoia a identidade de todacomunidade humana. Como as “culturas”, seriam“incomensuráveis”.

Sendo assim, a história e a sociologia das ciên-cias são capazes de falar de tudo o que gira emtorno desse núcleo. Mas a racionalidade científica,enquanto tal, fica ao abrigo das pesquisas psicológi-cas e sociológicas, pois depende apenas da razãopura. Num segundo momento, vários filósofos, histo-riadores e sociólogos das ciências (Feyerabend,Bloor...) começam a mostrar que, na própria raciona-lidade científica, estão presentes elementos psicoló-gicos e sociológicos. E que as ciências constituemum produto da história, estando a ela indissociavel-mente ligadas. Os próprios conteúdos das ciênciasaparecem como criações humanas devendo ser es-tudadas como uma atividade qualquer, sem a priorisobre seu valor. Portanto, com pressupostos agnósti-cos quanto à natureza das ciências e quanto à verda-

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cos são determinados por uma realidade objetivaque se trata de descobrir. Ao ganhar força a partirdos anos 1970, o relativismo, até então crítico daideologia dominante, volta-se para o questiona-mento da própria ciência. Paradigma da objetividade,da neutralidade e da universalidade, ela se vê objetode suspeita e passam a ser denunciados seu elitismoinstitucional, seu autoritarismo hierárquico, seu con-formismo intelectual, sua submissão política, seu im-perialismo cultural e até sua hegemonia ideológica.(2)

Os fundadores da sociologia da ciência preten-dem evidenciar as correlações entre o conhecimentoe os fatores existenciais, culturais e sociais. Estudamas relações existentes entre a atividade cognitiva eo contexto social operando nos diversos meios eem suas particularidades. Surge o problema: comoestudarmos sociologicamente um saber (a ciência)com pretensões universais, desvinculado do tempoe das contingências, indiferente às relações sociaisnas quais os homens se integram? A esta questão,duas respostas foram dadas: uma internalista, a do“programa clássico/ou fraco”; outra externalista,apresentada em duas versões: do “programa forte”e do “programa duro”:

! a primeira resposta é minimalista: há enunciadosuniversais (exemplos: 5x5=25; a velocidade éuma quantidade expressa pela relação de umadistância com o tempo a ser percorrido...) e enun-ciados relacionais (exemplos: as taxas de juros,a pena de morte, os papéis masculinos e femini-nos...). A sociologia se ocupa dos enunciadosrelacionais, não devendo estudar os enunciadosuniversais, pois deve limitar-se ao exame doscondicionamentos dos valores morais, da estrutu-ra social e das instituições científicas sobre asatividades e as produções dos pesquisadores.

gêneo, como uma multidão de culturas locais no seiodas quais a produção de conhecimentos encontra-se diretamente ligada a normas particulares submeti-das à influência de fatores contingentes. A análisesociológica da ciência não deve mais partir do examedo sistema social, com suas normas e regras globais,mas centrar-se no ator, em seu comportamento, emsuas práticas empiricamente observáveis.

Apesar de julgada por muitos como bastanteradical, esta concepção da incomensurabilidade dosparadigmas exerceu uma forte influência: como ospesquisadores não se comportam de modo tão racio-nal assim face às suas idéias, cabe aos sociólogose historiadores estudar mais concretamente a manei-ra como devem estabelecer e interpretar seus resul-tados. Porque o conhecimento científico não é intrin-secamente verdadeiro. As teorias devem ser trata-das como sistemas de crenças submetidos às mes-mas determinações sociais e ideológicas que os de-mais setores da cultura. E a ciência não deve maisser vista como a fonte sagrada e infalível da verdadeteórica e da eficácia prática. Porque nenhuma essên-cia epistemológica pode imunizá-la contra a multipli-cidade das contingências e contradições de todaatividade social.

Donde a atitude radical e agnóstica de algunspesquisadores. David Bloor, por exemplo, preconizaque devemos tratar da mesma maneira o que é con-siderado como verdade ou como erro, vale dizer,procurar, para ambos, os mesmos determinantes.Esta tomada de posição desemboca diretamente norelativismo, quer dizer, nesta idéia segundo a qual oconteúdo das ciências não tem o direito de apresen-tar-se como intrinsecamente verdadeiro ou falso,pois depende do consenso sobre ele estabelecido.Em outras palavras, a posição relativista não aceitaa hipótese segundo a qual os conhecimentos científi-

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! mostrar a flexibilidade interpretativa das pro-duções científicas: a natureza autoriza semprevárias interpretações possíveis, mas só uma seimpõe; se isto ocorre, é porque há um consensosocial entre os cientistas;

! descrever os mecanismos sociais limitando a fle-xibilidade interpretativa bem como a construçãodos consensos explicando o encerramento dascontrovérsias;

!!!!! ligar os mecanismos de encerramento às es-truturas sociais e políticas: o objetivo do progra-ma é o de mostrar como os conceitos científicosse encontram ligados às sociedades e aos inte-resses políticos nos quais são elaborados. Nãobasta mostrar que elementos científicos são con-gruentes com culturas particulares, mas como “ométodo científico” conduz a resultados diferentesem circunstâncias sociais distintas. E o objetoprivilegiado de estudo que alimenta tal programaé o das disputas e controvérsias entre cientistas.

Antes mesmo da criação do “programa forte”,alguns sociólogos britânicos, entre os quais BarryBarnes (Scientific Knowledge and Sociologic Theory,Routledge and Kegan Paul, 1974), abandonando odomínio até então reservado da epistemologia, criama revista Social Studies of Sciences, exercendo forteinfluência nos franceses Michel Callon e BrunoLatour. As três obras que permitiram a criação daantropologia das ciências são as de B. Latour e S.Woolgar, La Vie de Laboratoire (La Découverte,1988), a de Karin Knorr, Manufacture of Knowledge(Pergamon, Oxford, 1981) e a de Michael Lynch,publicada mais tarde, Art and Artifact in LaboratoryScience (Pergamon, Oxford, 1981). Eis como Latourdescreve o início desse movimento:

Embora haja uma forte influência da sociedadesobre a ciência, de forma alguma ela põe em riscoa autonomia, a objetividade, a universalidade ouo caráter desinteressado da atividade dos cientistas;

! a segunda resposta (externalista) é maximalista:não há saber objetivo; a universalidade da ciênciaé uma ilusão, da mesma forma como a noção deverdade. A sociologia deve tratar a ciência domesmo modo como os conhecimentos comunsou ordinários. A autonomia da ciência é um engo-do. A distinção entre ciência e técnica é umailusão...

Desde essa época, a onda relativista passa ainvadir a sociologia das ciências e considerá-las co-mo sistemas de crenças entre outros e relativos aosgrupos sociais que a eles aderem. Não há nenhumarazão universal permitindo compará-los nem de-monstrar sua superioridade, porque todo critério deavaliação é relativo a determinado sistema de cren-ças. A natureza, a lógica e as provas não falam porelas mesmas. Se há consenso, vem da sociedade,devendo ser explicado sociologicamente. Baseadosem vários estudos empíricos, alguns jovens sociólo-gos começam a analisar a construção social dasciências. E propõem programas de pesquisa: o “pro-grama forte”(strong programme) da sociologia dasciências e o “programa empírico”(empirical program-me) do relativismo. Preocupados em analisar ospróprios conteúdos científicos, tentam demonstrarque fatores sociais intervêm na construção dosenunciados, chegando mesmo a dissolver o núcleodas ciências no social.(3)

Se o objetivo do programa forte consiste emadvogar a existência de princípios metodológicosgerais, o programa empírico, ao precisar o objetode estudo e seu tratamento, distingue três etapas:

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A tese central desse “programa” consiste emanunciar: o próprio conteúdo da ciência constitui umfato socialmente determinado. Nele se encontramenunciados, os princípios: causalidade: a sociologiado conhecimento deve ser causal (as análises de-vem detectar as causas e razões às quais obedecemas descobertas científicas); imparcialidade: a socio-logia do conhecimento deve ser imparcial do pontode vista da verdade ou da falsidade (o cientista nãodeve prejulgar sobre a verdade ou a falsidade, aracionalidade ou irracionalidade dos conhecimentosque estuda); reflexividade: a explicação deve serreflexiva e poder aplicar-se a si mesma (os argumen-tos que o sociólogo utiliza para estudar as ciênciasdevem ser aplicados à sociologia); e o princípio desimetria: a explicação deve ser simétrica, o mesmotipo de causa devendo explicar o erro e a verdade(a análise do sociólogo deve utilizar os mesmos tiposde explicações para justificar as crenças verdadeirase as falsas, os sucessos e os fracassos), pois deve-mos explicar do mesmo modo a emergência doverdadeiro e a do falso, as crenças menos sólidas eos saberes racionais e objetivos, as hipóteses quetêm êxito e as que fracassam.

Os quatro princípios do “programa forte” pres-supõem a existência de uma natureza precedendoa ciência e a religião e propondo que sejam tratadasde modo equivalente. Ora, se a ciência é o produtodas estruturas sociais, econômicas e políticas, nãopode fundar-se na natureza. Converte-se na exterio-rização da sociedade e de seus princípios de organi-zação, em sua simples expressão. Em ambos oscasos, natureza e ciência são reificadas. A argumen-tação de Bloor decorre do postulado segundo o qual“a verdade, a racionalidade e a validade” constituem“objetivos naturais do homem” e “orientam certastendências naturais”. O homem “raciocinaria natu-

“Há uns vinte anos, meus amigos e eu estuda-mos essas situações estranhas que a cultura intelec-tual em que vivemos não sabe onde situar. Nós nosdenominamos, por falta de melhor termo, sociólogos,historiadores, economistas, politólogos, filósofos, an-tropólogos. Todavia, a essas disciplinas veneráveis,acrescentamos cada vez o genitivo: das ciências edas técnicas. Science Studies é a expressão inglesa,ou esta bastante pesada: “Ciências, técnicas, socie-dades”. Qualquer que seja a etiqueta, trata-se sem-pre de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezesquantas necessárias, a ruptura que separa os conhe-cimentos exatos e o exercício do poder, digamos, anatureza e a cultura”.(4)

O “programa forte” de Bloor, enunciado em1976 (em Knowledge and Social Imagery, Routledgeand Kegan Paul, Londres), é a mais radical e influen-te corrente relativista. O que afirma enfaticamente éque a totalidade da prática científica, inclusive a dis-tinção entre verdade e erro, é da alçada da análisesociológica e que a adesão a uma teoria científicadepende do mesmo tipo de explicação (psicológica,social, econômica, política, etc.) que qualquer cren-ça. Na base de sua demarche encontra-se a seguintetese epistemológica, conhecida como o teoremaDuhem-Quine: para determinado conjunto de infor-mações empíricas podem existir vários sistemasteóricos capazes de compreendê-los; mas é porfatores extra-empíricos (sociais e ideológicos) quedecidimos por este ou aquele sistema explicativo;entre esses fatores, devemos enfatizar um fato so-cial: a “negociação” entre os pesquisadores precedeas decisões científicas. Em outras palavras, as nor-mas distinguindo a ciência da não-ciência variamno espaço e no tempo, pois sofrem modificaçõesimportantes no decorrer dos anos, impostas pelosfatores sociais extracientíficos..

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segundo o tempo e as culturas, não gozando de ne-nhum direito à transcendência. No entanto, esta to-mada de posição não será defensável enquanto nãoenfrentar corajosamente o problema do estatuto daciência. Eis o grande desafio que os relativistas comoFeyerabend, Bloor e Latour, cada um a seu modo,tiveram que enfrentar: ou conseguiriam demonstrarque todo o desenvolvimento do pensamento científi-co é imputável, cada vez, a contextos sociais e histó-ricos particulares, ou teriam que admitir um mínimode realidade a uma lógica específica do conhecimen-to emergindo para além das condições particularesde sua produção.

David Bloor, mesmo correndo o risco de certosociologismo (com seu “programa forte”), sustentacorajosamente o projeto de explicar cientificamentea produção científica. Defende vigorosamente um“hiperrelativismo” culminando num “hiperracionalis-mo” ou, mesmo, num “hipercientificismo”: Estehiperrelativismo hiperrarionalista seria, no dizer deA. Caillé, também hiperdemocrático. Com efeito,repousa no princípio de simetria postulando que, “doponto de vista de uma sociologia do conhecimento,não temos o direito de, a priori, conferir privilégio aoconhecimento científico moderno sobre as outrasformas de conhecimento. A priori, todos os conheci-mentos devem ser tratados nas condições da maisperfeita igualdade(La Démission des Clercs, LaDécouverte, 1993, p. 200). Para explicar os conheci-mentos científicos aceitos como verdadeiros e ascrenças consideradas falsas, devemos fazer apelo,da mesma maneira, aos fatores sociais. Ademais,devem ser tratados do mesmo modo os ganhadorese os perdedores, os êxitos e os fracassos, o conheci-mento verdadeiro e o falso, a ciência e a não-ciência,o conhecimento e a crença.

ralmente de modo justo e se ligaria à verdade lógicaquando esta se apresentasse a ele”. Este postuladopressupõe a existência de uma natureza humanauniversal. Todavia, se dizemos que a experiência éo produto de influências e fatores sociais, a raciona-lidade deixa de ser um elemento constitutivo danatureza humana, convertendo-se numa construçãosocial, arbitrária e relativa. Assim, afirmar a impossi-bilidade de uma demarcação entre ciência e não-ciência é postular que a razão e a racionalidade se-jam transformadas em ideologias, que a ciência e amagia sejam saberes comparáveis.

Opondo-se radicalmente ao ponto de vistaracionalista, o princípio de simetria põe em questãoa demarche clássica da história das ciências consis-tindo em procurar explicações ideológicas ou sociaisapenas para os erros ou impasses científicos, postoque os sucessos se imporiam por eles mesmos. Cla-ro que há saberes mais sólidos que outros. Masprecisamos reduzir a importância da racionalidadenos êxitos dos cientistas. Assim, ao postular quedevemos analisar com as mesmas causas o êxito eo fracasso, as crenças verdadeiras e as falsas, asque ganham e as que perdem, o princípio de sime-tria não somente se opõe às teses racionalistas, masafirma que, na aplicação aos produtos da atividadecientífica, não devemos privilegiar nenhum tipo deexplicação. E como precisa ser tomado como umaregra de método, não postula que as crenças aceitase rejeitadas sejam equivalentes nem que todas asposições possuam o mesmo valor.

Qual o nó do problema, para os relativistas?Consiste em dizer que os homens vivem em univer-sos bastante diferentes para que seja possível qual-quer definição de normas universais (ou universalizá-veis) do verdadeiro e do justo, posto que os próprioscritérios da verdade e da justiça também variam

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agnosticismo do observador se dirige às ciênciasnaturais e sociais. Trata-se de registrar as incertezasreferentes à identidade dos atores, quando é contro-vertida, e de se evitar emitir juízos de valor sobre omodo como analisam sua sociedade. Ora, por pre-tenderem ser os únicos em condições de falar vali-damente, não somente a respeito da sociedade, masdas outras ciências, os sociólogos ousam englobaras ciências como objeto de sua disciplina. E adotama tese segundo a qual as ciências sociais podemexplicar as outras e seu processo de produção. Co-mo se, em sua luta contra a hegemonia das ciências“duras”, devessem impor seus modelos, sua lógicae sua racionalidade à atividade científica. Se nem anatureza nem a lógica podem explicar o consenso,apenas a sociedade, não ficam as produções cientí-ficas reduzidas a meras construções sociais? Paraexplicar as ciências, os relativistas fazem apelo aelementos sociais tratados sem relativismo.(5)

Insatisfeitos com a seguinte tese: não podemosidentificar concretamente o efeito da sociedade so-bre os conteúdos de uma lei científica, o que fazemos defensores da teoria do efeito dos interesses so-ciais nesses conteúdos? Simplesmente fazem apeloà noção de “caixa preta”: se não conseguimos perce-ber as marcas do social nos conteúdos das ciências,é porque seus traços se apagaram. Assim, a ativida-de científica não consiste apenas em produzir conhe-cimentos, mas em apresentá-los como “caixas pre-tas”. Fatores externos penetram na produção dosconteúdos. Por detrás dos conceitos ocultam-secrenças, valores e forças sociais. De qualquer forma,nenhum conhecimento científico surge e se desen-volve sem esta influência positiva vindo da socie-dade, pois toda produção científica é impulsionadae modelada por forças sociais. Nestas condições,não podemos negar que a gênese da verdade

Por sua vez, em conformidade também com oprincípio de simetria, Latour explica que os epistemó-logos racionalistas tomam o efeito pela causa e selimitam a qualificar de racionais as crenças que triun-faram, acreditando estar explicando a vitória da ra-cionalidade. Por exemplo, no conflito opondo Pas-teur e Pouchet, dois sábios honestos, sérios e racio-nais, a vitória do primeiro não se deveu a seu maiorgrau de racionalidade, mas de credibilidade. Nãopodemos separar completamente a verdade de umaproposição de sua credibilidade. A questão funda-mental consiste em sabermos se o conjunto das pro-posições verdadeiras é suscetível de certa invariân-cia ou, melhor, de certa cumulatividade para alémda diversidade dos sistemas de credibilidade. NemBloor nem Latour negam que certas crenças sejamverdadeiras e outras falsas. Porque a sociologia daciência não se pergunta sobre o que determina averdade, mas sobre o que produz a crença segundoa qual certas proposições são verdadeiras. Portanto,postulam a igualdade entre crenças, não do pontode vista de sua verdade, mas do ponto de vista desua credibilidade.

Ao adotarem o “princípio de agnosticismo”, se-gundo o qual não temos o direito de privilegiar ne-nhum ponto de vista dos atores estudados (naturezaou sociedade), os relativistas como Latour e Callonsustentam que os cientistas podem e devem mantera controvérsia quando se trata da natureza. Mas nãoadmitem que seja estendida à sociedade e à suaconstituição. Ao mesmo tempo que negam ao cien-tista qualquer privilégio à razão, à verdade, ao méto-do e à eficácia, atribuem a si mesmos um suplementode razão na explicação que fornecem da sociedade.Explicam a pluralidade das descrições da natureza,mas não põem em questão a da sociedade, comose apenas a natureza fosse incerta. Ademais, o

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Claro que não podemos fazer a sociologia dasciências ou da religião negando a pertinência deambas. Dizer que algo é relativo, não implica emcair num “relativismo desencantado”. Tanto a ciênciaquanto a religião podem ser estudadas sociologica-mente sem perderem sua autenticidade nem setornarem o que delas diz a sociologia, embora algunscientistas e cristãos tenham medo, não só dorelativismo, mas do “relativo”. A este respeito, o cris-tianismo poderia trazer uma elucidação interessante:segundo sua doutrina da encarnação, uma realidadepode muito bem ser submetida às condições sócio-históricas sem deixar de veicular uma mensagemde transcendência vinculada às suas condiçõeshistóricas.

Ao insistir na necessidade imperiosa de umaabsoluta neutralidade moral em matéria de conheci-mento, Bloor pretende mostrar que tal neutralidadecoincide, paradoxalmente, com a introdução, nodomínio da verdade e do erro, de uma moralizaçãoconstante exprimindo-se numa permanente convo-cação (diante da oposição entre violência e racio-nalidade) à tolerância. No entanto, como salientacorretamente H. Gellner (Legitimation of Belief, Cam-bridge University Press, 1982; Relativism and So-cial Sciences, Cambridge University Press, 1978),não temos o direito de construir um sistema científicoou intelectual fundados numa noção tão frágil quantoa de tolerância. Não devemos confundir a tolerânciacom o que é simplesmente designado pela expres-são figurada de “ética científica”. Se insistirmos emreduzir a teoria científica ao social, cairemos noconvencionalismo epistemológico e, com isso, esta-remos abrindo as portas para o ingresso do irracio-nalismo.

Ao retomarem o princípio de simetria das expli-cações do desenvolvimento científico (de Bloor),

científica se explica pelos mesmos fatores sociaisintervindo nas pseudociências.

Uma das contribuições do “programa forte”, aodesenvolver uma sociologia suficientemente rigorosapara ser capaz de detectar as “causas” sociais dos“conteúdos” das ciências, consiste em ter dado aoprojeto relativista um objetivo bastante radical: bus-car o “por que” dos saberes científicos para alémdas práticas dos cientistas, na sociedade mesma.Donde a idéia corrente entre os relativistas poste-riores: o conteúdo mesmo das ciências responde adeterminados “interesses” sociais. O interesse seriauma noção que se apresenta como o substitutoexplicativo da racionalidade do conhecimento. Trata-se de uma noção ambígua, recobrindo tanto os in-teresses cognitivos (o fato de se “crer em algo”)quanto os sociais (busca de reputação, de poder,de dinheiro). Ao invés de serem considerados comoinimigos da ciência ou como fontes de erros, osinteresses devem ser vistos como aliados, fontesde resultados válidos. É por causa deles que umpesquisador busca certos conhecimentos em detri-mento de outros e que a comunidade científica aco-lhe melhor alguns resultados que outros. Um intere-sse do pesquisador pode ser: geral, quando relativoao poder da ciência, ou específico, quando ligado àsua posição social e profissional, ou então, às suascrenças morais, religiosas e políticas.(6)

O que os relativistas negam, contundentemen-te, é a pretensão de se separar o que seria “pura eobjetivamente científico” do que é historicamentecondicionado. Ora, comparando o estudo sócio-his-tórico das ciências com o estudo sociológico de ou-tros fenômenos (como o religioso, por exemplo), po-demos constatar uma certa resistência a essa abor-dagem sociológica, pois produziria o efeito de ofus-car o caráter sagrado das ciências e da religião.

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essencial da ciência, pois é aí que a imaginaçãoinventa o mundo. Claro que os procedimentos quecaracterizam a ciência propriamente falando sãoexplicitados (fala-se de “método científico”), um ele-mento fundamental sendo a reprodutibilidade sem-pre possível dos resultados experimentais. Mas nãoresta dúvida que a ciência constitui o saber por exce-lência, o meio de acesso privilegiado ao conhe-cimento do mundo, pois seria o único que transcendeo tempo dos historiadores.

Posicionando-se contra essa imagem, os relati-vistas formulam, entre outras, as seguintes contra-proposições:

a) precisamos abandonar a categoria “Ciência”,com tudo o que ela implica de reificação, em proveitode campos disciplinares e de múltiplas práticas mate-riais e cognitivas. Nada nos obriga a aceitarmos opostulado da unidade das ciências apoiada nummodo particular de tratar os problemas. A noção deciência precisa ser historicizada;

b) contrariamente à idéia de que a ciência seria,antes de tudo, um sistema de enunciados, segundoa qual se tipificaria por sua capacidade de explicitá-los plenamente e extraí-los dos saberes-fazer nãoformalizáveis que caracterizam as outras práticas,precisamos reconhecer que, tanto nas ciências teóri-cas quanto nas experimentais ou instrumentais, de-vem ser privilegiados os saberes tácitos, os saberes-fazer, os modos de fazer e de tratar concretamenteos problemas, pois o prático da ciência também éalguém que possui uma cultura, não podendo serreduzido a um puro sujeito cognoscente: constituiparte integrante de uma comunidade, de um grupo,de uma escola ou de uma tradição;

c) contrariamente à imagem dominante da ciên-cia, o fato de os saberes científicos aparecerem

Michel Callon e Bruno Latour o radicalizam e o gene-ralizam numa perspectiva relativista kuhniana, abrin-do uma via sociologista da história do conhecimento.Limitada a uma igualdade de tratamento entre ven-cedores e vencidos, a noção de simetria passa aser estendida, na antropologia das ciências, a umaigualdade semelhante entre os elementos da nature-za e os da sociedade. Renunciando decididamentepostular uma distinção entre verdade e erro, esseprincípio limita o recurso a toda metalinguagem. Oantropólogo não pode passar de um registro de expli-cação a um outro como se costuma fazer quandose explica a realidade exterior pela sociedade ou asociedade pela realidade exterior. Devemos partirda explicação simultânea da natureza e da socieda-de. Por isso, precisamos questionar as “grandes de-marcações”, tanto a que é constitutiva da modernida-de (opondo natureza e sociedade) quanto a queopõe os processos sociais às descobertas científi-cas. A antropologia das ciências deve ser o autênticoporta-voz da sociedade e da natureza. Converte-se, assim, numa sociologia dos representantes, dosporta-vozes e das testemunhas que se manifestamna cadeia de tradução através da qual é formado oenunciado científico ou instaurada a inovação téc-nica. E o lugar privilegiado para revelar essa cadeiade tradução é o laboratório. É aí que o pesquisadorfaz a natureza falar.

No fundo, o que mais contestam os relativistasé a imagem dominante das ciências no Ocidente. Oque diz o discurso dominante, elaborado por cientis-tas e filósofos das ciências? Freqüentemente apre-senta as ciências como sistemas de proposições oude enunciados podendo ou devendo ser falsificadospelo confronto com a experiência. Como, na maioriadas vezes, valoriza mais sua dimensão abstrata,considera que é no domínio “teórico” que se joga o

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sua concorrência que surge o progresso científico.Já os membros da Escola de Frankfurt, defensoresde uma racionalidade crítica, são os primeiros adenunciar a “Razão instrumental”: ao converter-seem “Mestra” absoluta, teria imposto uma concepçãounidimensional e se transformado numa racionaliza-ção de caráter totalitário. No dizer de Horkheimer eAdorno, “a razão se comporta, em relação às coisas,como um ditador em relação aos homens: ele osconhece na medida em que pode manipulá-los. Arazão é mais totalitária que qualquer outro sistema”.Por isso mesmo, ela oculta, em seu interior, umaboa dose de irracionalidade. Ou então, o que é pior,pode até mesmo tornar-se louca. Fica louca, declaraE. Morin, quando esse irracionalismo se manifestae passa a comandá-la:

“A razão se enlouquece quando se torna aomesmo tempo instrumento do poder, dos poderes eda ordem; quando se torna fim do poder e dos pode-res, vale dizer, quando a racionalização se converte,não somente no instrumento dos processos bárbarosda dominação, mas quando ela mesma se destinaà instauração de uma ordem racionalizadora, ondetudo o que a perturba torna-se demente ou crimi-noso. Nessa lógica, produz-se, não somente umaburocracia para a sociedade, mas também uma so-ciedade para esta burocracia; não somente seproduz uma tecnocracia para o povo, mas se constróium povo para esta tecnocracia (...) E a loucura ex-plode quando todos esses processos de racionaliza-ção irracional se convertem, mediata ou imediata-mente, em processos que conduzem à morte” (Sci-ence avec Conscience, Fayard, 1982, p. 261).

Antes de prosseguir, elucidemos um poucomelhor a complexa noção de relativismo. De ummodo geral, podemos dizer que pode ser definidocomo a doutrina que, ao negar a existência de uma

como bastante cumulativos não resulta do simplesemprego de um conjunto de regras lógicas (“o mé-todo científico”) nem tampouco de comportamentoséticos ou sociais particulares, pois precisamos estarconscientes de que toda atividade científica constituiuma atividade prática de interpretação e de invençãoque, além de implicar saberes e saberes-fazer,certezas formalizadas e convicção íntima, consisteem formular juízos sempre contextualmente situa-dos. Precisamos tomar consciência de que a Nature-za nunca fala: somos nós que falamos em seu nome;tudo o que promovemos são nossas construções,inseparáveis da cultura;

d) a análise das controvérsias nos mostra quenão podem ser encerradas apenas pelo chamado“consenso” entre os especialistas: nenhuma soluçãoé logicamente necessária e coercitiva nem se impõede modo absoluto. Todo encerramento de um de-bate ou todo consenso é local, só podendo ser com-preendido no contexto de sua elaboração. A análisehistórica das ciências nos faz perceber que a aparen-te universalidade dos enunciados científicos e o fatode serem descritos como “verdadeiros em toda par-te” e compreendidos por todos “nos mesmos termos”não constitui o melhor ponto de partida. Se os sa-beres científicos circulam, não é porque são univer-sais. Pelo contrário, é porque circulam, porque sãoreutilizados em outros contextos, que são descritoscomo universais.(7)

Aberto o debate, muitos passam a contestar auniversalidade da Razão e a defender as mais varia-das formas de relativismo. Paul Feyerabend, comoveremos, chega mesmo a pregar um “anarquismoepistemológico”: nenhuma teoria tem o direito devangloriar-se de qualquer privilégio de verdade sobreas outras. Cada uma funciona mais ou menos. É de

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talece sua esperança de aproximar-se cada vez maisde sua natureza objetiva e de revelar seu segredo”(Planck). Em síntese, eis as principais teses dorelativismo epistemológico:

! não existe uma linguagem puramente observa-cional, que seria neutra, suscetível de julgar, comindependência, determinada tomada de posiçãoteórica;

! não dispomos de um método seguro para de-monstrar que, no processo de passagem de umateoria a outra, haja a produção de um acúmulode conhecimento;

! os critérios segundo os quais julgamos as teoriasvariam de uma época a outra, de tal forma que,em última instância, a decisão depende do quecrê a comunidade científica de determinado mo-mento histórico;

! as grandes teorias constituem universos inco-mensuráveis, sendo impossível a elaboração deum dicionário capaz de traduzir um no outro;

! a ciência não constitui um reino de puras idéias,mas tão-somente uma atividade social, estrutu-rada institucionalmente e atravessada por inte-resses excedendo as regras da lógica.

O maior inimigo desse e de todos os relativis-mos é o racionalismo absoluto que jamais renun-ciou ao dogma segundo o qual compete exclusiva-mente à Razão universal impor-se como a condiçãonecessária e suficiente de todo conhecimento.Assim, todo conhecimento deriva dos princípios apriori da Razão, o valor da experiência sendo o deconstituir um conteúdo particular para suas idéias.Há uma identidade entre o mundo e o pensamento.Tudo o que existe possui sua razão (objetiva) de

verdade absoluta ou a possibilidade, para o espíritohumano, de conhecê-la, afirma a relatividade do co-nhecimento e considera as diferentes civilizaçõescomo variedades culturais equivalentes quanto a seuvalor. É dito moral quando, ao tomar consciência dapluralidade dos conjuntos de prescrições e interdi-ções no plano das ações humanas, recusa todo prin-cípio ético suscetível de propor regras universalmen-te válidas para guiá-las. Neste sentido, o ceticismokantiano constitui uma forma de relativismo moral,pois afirma nossa impossibilidade de atingirmos oabsoluto (as coisas em si) e de ultrapassarmos oslimites, impostos a nosso conhecimento, pela estru-tura a priori do espírito humano. É dito cultural quan-do se toma consciência da diversidade das culturas,de que toda sociedade humana é dotada de umacultura específica, fruto de uma história passada efutura, de que a cultura, apesar de universal, as-sume formas extremamente variáveis no tempo eno espaço, não havendo critério de classificação per-mitindo-nos ordenar hierarquicamente as diferentesculturas.

Outra forma de relativismo é o científico ou epis-temológico. Consiste em dizer que jamais podemosatingir uma verdade definitiva, pois constitui tão-so-mente uma abordagem progressiva e uma constru-ção inteligível do mundo, sempre submetida a ques-tionamentos. Em outras palavras, designa o caráterde uma ciência que, partindo do mundo sensível,em estreita ligação com o concreto, constrói uma“imagem do mundo real” apresentando um máximode coerência e de lógica interna, mas incessante-mente modificada pela pesquisa, permitindo aocientista a elaboração, como um objetivo inacessível,mas sempre buscado, de uma concepção definitivado universo. Esta falsa crença num real absoluto nanatureza constitui a condição de seu trabalho: “for-

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Chegados a esse estádio, confessamos que a reali-dade do devir é a única realidade; e interditamo-nostodos os caminhos desviados que conduziriam àcrença em outros mundos e em falsos deuses. Nãosuportamos mais este mundo, a ponto de não termosvontade de negá-lo (...) Chegamos ao sentimentodo não-valor da existência”(Nietzsche, A Vontadede Poder).

Portanto, são denominados relativistas todosos que admitem a irredutibilidade das culturas, poisnada existe de suficientemente comum entre elas,e negam toda possibilidade de verdades ou de valo-res absolutos ou universais. Nem mesmo a ciênciaé portadora de verdade universal, posto não haveruma fronteira fixando os limites entre os vários cam-pos do saber. Ela se define como um fato, como umconjunto de proposições e de práticas. Deste pontode vista, a globalização e, a fortiori, a ocidentaliza-ção, em nome da Razão e da Ciência, implicamnecessariamente a utilização de uma violência.Posição oposta é tomada pelos universalistas (racio-nalistas): para além da diversidade das culturas,existe um núcleo que lhes é comum. A civilizaçãoeuropéia representa o desenvolvimento de todas asvirtualidades nela contidas. E a ocidentalização domundo não somente é necessária, mas desejável.Porque constitui o correlato de um processo deemancipação da espécie humana: das necessidadesmateriais, graças ao Estado democrático; daignorância e dos obscurantismos religiosos, místicosou metafísicos, graças à Ciência e à sua racionalida-de própria. O fundo da questão é o da universalidadeda Razão.

Lembremos que há uma forma de racionalismo“redutor” e bastante autocrítico que não defende in-condicionalmente os valores propriamente racionaise universais (científicos e lógicos). Apesar de seu

ser que a razão (subjetiva) pode compreender. Ouniverso é regido pela Razão: são as mesmas asleis do pensamento racional e as da natureza.

Observemos que há ainda duas outras formasde relativismo: positivista e perspectivista. Orelativismo positivista se baseia na doutrina filosófico-científica de Comte permitindo-nos afastar, “comonecessariamente vã, toda e qualquer busca dascausas propriamente ditas, primeiras ou finais, paranos limitar ao estudo das relações invariáveis queconstituem as leis efetivas de todos os fenômenosobserváveis”(Curso, lição 58). “Todo estudo danatureza íntima dos seres, de suas causas primeirase finais, deve, evidentemente, ser sempre absoluto,ao passo que toda busca apenas das leis dos fenô-menos é eminentemente relativa, pois supõe imedia-tamente um progresso contínuo da especulação,sem que a exata realidade jamais possa ser perfei-tamente desvelada”(lição 48). Quanto ao relativismoperspectivista, coincide praticamente com a concep-ção nietzcheana segundo a qual o critério da verdadese reduz à utilidade biológica pela qual o homem,tomando-se pelo sentido e pela medida de todas ascoisas, projeta ilusoriamente certas perspectivas deutilidade bem definidas na essência das coisas. Aesta ilusão, que também é a da ciência e da religião,devemos opor a apoteose da vida e do indivíduodesenvolvendo ao máximo sua vontade de poder.Trata-se de um relativismo que desemboca no niilis-mo (cujas etapas são: o ressentimento, a má cons-ciência, o ideal ascético e a morte de Deus): “A partirdo momento em que o homem descobre que estemundo só é construído sobre suas próprias basespsicológicas e que não possui nenhum fundamentopara crer nele, vemos manifestar-se a última formado niilismo que implica a negação do mundo metafí-sico e que nos proíbe de crer num mundo verdadeiro.

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ao reconhecer que nenhuma teoria pode escaparao relativismo. Pelo contrário, todas as teorias consti-tuem pontos de vista sobre o real. Assim, ao recusarao marxismo todo acesso privilegiado ao real, nãolhe reconhece o estatuto de ciência, mas apenas ode um “tipo-ideal”. Em seguida, Manheim radicalizaessa lógica e proclama: todo ponto de vista é par-ticular a certa situação definida. Ambos nossos auto-res estão preocupados com o problema da verdadede uma teoria. Se todas as teorias são relativas edependem da situação social de seus autores, o queacontece com a verdade? A resposta de Weber: naesfera das ciências sociais, as demonstrações cientí-ficas, rigorosamente corretas, devem atingir um co-nhecimento objetivo e, por conseguinte, verdadei-ro, posto que são isentas de juízos de valor. Quantoa Manheim, distingue relativismo de relacionalismo:o relativismo está ligado à subjetividade de seu autor,mas todo conhecimento histórico é um conhecimentorelacional, só podendo ser formulado em relaçãocom a posição do observador.

O que nos interessa ressaltar é que a racionali-dade científica ocidental, à custa de buscar um sa-ber para poder (dominar), construiu uma representa-ção do mundo fundada apenas nas modalidadeslógicas do pensamento, convertendo seus hábitose referências culturais num obstáculo à apreensãode algumas de suas significações. Não levou emconta outras alternativas teóricas, indispensáveis anosso saber para pensar-se e criticar-se. Sempreconsiderou como um fato normal e inelutável a difu-são mundial da ciência ocidental e a aculturaçãobrutal que ela provoca. O que se encontra em jogo,nesse confronto entre universalismo e relativismo,é a visão própria Natureza. A este respeito, pode-ríamos dizer que nossa cultura ocidental, não sógerou a ciência, mas desvitalizou, desencantou e

relativismo, Nietzsche vincula os conceitos da ciênciaà utilidade vital, os valores morais e religiosos àsatisfação desviada dos instintos. Por sua vez, Marxrelaciona as modalidades do direito e as ideologiasculturais aos interesses de classe. Quanto a Freud,afirma que o princípio de condutas aparentementemorais é desmascarado pelo recalque e peladerivação das pulsões. Assim, esta forma deracionalismo luta, não somente contra seus velhosadversários (misticismo, empirismo, pragmatismo,etc.), mas contra ele mesmo. Se os valores deuniversalidade e de humanidade não passam devalores burgueses das sociedades mercantis; setoda a cultura é feita de instintos recalcados, de defe-sas inconscientes contra a angústia, a culpabilidadee a morte, o que sobra da Razão? Apesar de perma-necer ainda bastante atual tal combate racionalistacontra os medos, os preconceitos, os interesses, asviolências, as arbitrariedades, as desmedidas, etc.,perde muito de sua significação caso se limite a umaatividade de “desmistificação”, pouco se importandocom a determinação de autênticos valores. Ao con-verter-se em racionalismo social e político, facilmentese radicaliza e desemboca no niilismo. A este respei-to, merece ser lembrada a observação de Bachelard:“o homem ordena a natureza colocando ao mesmotempo ordem em seus pensamentos e em seu tra-balho”. Se queremos ordenar as sociedades, nãodeveríamos também colocar ordem em nossoscorações e mentes?

No início do século XX, sob o impulso da teoriaweberiana dos valores, o relativismo aparece comouma crítica radical dos vários positivismos sociológi-cos em vigor. Contra certo marxismo, pretendendocondenar o pensamento de seus adversários políti-cos ou das classes sociais opostas ao proletariado,Weber toma uma posição bastante antidogmática

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dos meios e a contradição dos interesses, poisestaria apta a converter todo discurso e toda normana expressão de uma “Entidade” impessoal e uni-versal: a Razão.

Ora, ao apresentar-se como o equivalente geraldo discurso moderno, como o regime de pensamentode todo homem (e de todos os homens), o racionalis-mo nada mais faz que universalizar a particularidade.Até mesmo o marxismo, ao condenar a burguesiapor julgá-la insuficientemente racional, postulou acriação de uma nova ordem mais conforme à Razão.Sob este aspeto, aceitou o projeto da política moder-na: o de construir, não a “Cidade de Deus”(santoAgostinho), mas a Cidade da Razão. Mas fazendoda Razão um atributo de Deus. Se o mundo é racio-nalmente inteligível, é porque obedece às chamadas“leis da natureza” ditadas por algum distante “Deusracional”(o famoso Dieu des Philosophes et des Sa-vants, Engenheiro, Arquiteto, Relojoeiro, etc.).

Só que, em seguida, o atributo se revela maisprecioso que a própria essência, na medida em quea figura da Razão autoriza uma nova representaçãoda sociedade, não devendo esta submeter-se maisa nenhuma lei preexistente. Doravante, a Razão éconsiderada como imanente à História, devendo en-contrar, no modo como abole o sagrado tradicional,o fundamento mesmo de sua nova sacralidade. Paracompreendermos esse paradoxo da Razão e seuinegável êxito histórico, bastaria refletirmos sobre ofato: sempre se apresentou como totalmente profana(situada “deste lado do mundo”) e, ao mesmo tempo,como inteiramente sagrada (situada “do outro lado”),como se absolutamente tudo devesse ser pensadoem seu nome (como o cristão, que só pensa sob aégide de Deus”.(8)

dessacralizou completamente o Cosmos para redu-zi-lo a um sistema puramente mecânico. O Oriente,ao contrário, por ter preservado uma concepçãoorganicista da Natureza, está na origem de algumasdas revisões propostas às nossas teorias científicas.Fiel à sua tradição cultural, privilegia a solidariedadee a harmonia do mundo natural. Razão pela qualnão aceita, por exemplo, como uma verdade uni-versal, os princípios darwinianos da “luta pela vida”e da “competição”, pois está muito mais interessadoem defender o “princípio da coexistência” entre osindivíduos, só aceitando uma evolução funcionandono nível das espécies.

Quando afirmamos que “o Ocidente é um aci-dente”, não estamos enfatizando os limites de nossacultura? E denunciando, ao mesmo tempo, o mitode uma ciência, certamente com carteira de identi-dade ocidental, mas que seria, por essência, trans-cendente e desencarnada? Ademais, não estariaela, a pretexto de defender sua universalidade, afir-mando seu caráter espontânea e naturalmente colo-nialista? De uma coisa temos certeza: nossa ciência,enquanto modo de conhecimento bastante particu-lar, nasceu e se desenvolveu na Europa, num con-texto sócio-histórico-cultural bastante preciso. Eisseu “pecado original”, que a impede de atribuir-sequalquer pureza espiritual ou de reivindicar não sesabe quê “imaculada concepção”. Porque é inegávelque a história nela imprimiu uma cicatriz indelévelde contingência. Por isso, não tem o direito de reivin-dicar um saber puro e universal. Muitos foram osfatores que determinaram ou condicionaram o come-ço histórico e o desenvolvimento do empreendimentocientífico. Uma das características fundamentais doracionalismo ocidental consiste no fato de ter-seagarrado ao fantasma de uma “política racional” sus-cetível de abolir a divisão social, a heterogeneidade

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indissolúvel vínculo matrimonial entre Razão, Ciên-cia, Democracia e Ocidente, como se estas entida-des fossem consubstanciais, devendo legitimar-seumas pelas outras. Para eles, há uma verdade indis-cutível: foi no Ocidente que surgiram e se desenvol-veram as sociedades racionais, científicas e demo-cráticas. Para nos convencermos disso, basta anali-sarmos os fatos. A Razão é autoprodutora e autole-gitimante, não fazendo nenhuma concessão à violên-cia nem tampouco à autoridade. Por sua vez, a Ciên-cia nasce e se desenvolve apoiando-se, de direito,em sua própria força. Quanto à Democracia, afirma-se como esta forma de poder repousando unicamen-te no consenso, não mais na violência ou na auto-ridade.

Nestas condições, questionar a universalidadeda Razão e a pretensão do Ocidente de encarná-laseria, pelo fato mesmo, renunciar à Ciência e àDemocracia. Por conseguinte, fazer a apologia daviolência e do arbítrio da autoridade (ou da tirania).Na verdade, os ocidentais são os únicos que procla-mam a universalidade da igualdade e da raciona-lidade. Evidentemente, não são mais iguais e maisracionais que os outros povos. Porque os homens eas culturas só são iguais e racionais de direito, nãode fato. Neste sentido, a Razão se torna irracionalquando se crê realizada. E ao definir-se como umaquase-substância, converte-se em racionalismo.Deste ponto de vista, os próprios racionalistas seconvertem em relativistas quando passam a afirmarque somente uma cultura é verdadeiramente racio-nal. Por sua vez, nada mais racionalista que a posi-ção relativista afirmando que todas as culturas sãoou deveriam ser igualmente racionais.

A posição racionalista encerra uma contradi-ção: se somente uma cultura é racional, não tem odireito de declarar-se universal. Se o atributo fun-

É importante lembrarmos que, historicamente,todas as vezes que a Razão triunfou, houve umademissão do pensamento. No fundo, a pretensalógica democrática do racionalismo esconde umaespécie de regime teocrático preocupado emassimilar a lei civil à lei religiosa e em ritualizar aexistência de cada indivíduo. Ao fazer da ciênciauma referência absoluta, o racionalismo universalis-ta, além de transformá-la num sistema explicativototal, põe a ciência a serviço de uma concepçãopolítica que a torna semelhante à religião. E não foipor simples acaso que a ciência moderna, ao curvar-se às ordens de uma política que deveria justificar,forneceu as bases de uma moral universal desempe-nhando o papel de uma religião.

E foi desta forma que o racionalismo, ao geraro cientificismo, portador (contra a Igreja e o clericalis-mo) de uma moral visando congregar o povo emtorno do Estado, contribuiu para a fetichização daciência e para a sacralização da política. E o cientifi-cismo atual, em nome das mesmas pretensões éti-cas ou políticas, reina mais ou menos tranqüilamentesob a fisionomia de um tecnologismo calculadorbastante impotente para mobilizar os afetos doscidadãos, a serviço de um ideal, a não ser sob asformas lúdicas e moralizantes da ciência-ficção.Podendo ser descrito como a mania da ciência, ocientificismo apresenta os seguintes sinais distinti-vos: a) tem o hábito de dividir o pensamento emduas categorias: o conhecimento científico e o nonsens; b) o ponto de vista segundo o qual as ciênciasteóricas e o grande laboratório oferecem os melhoresmodelos para se obter êxito no funcionamento doespírito ou na organização dos esforços; c) a identi-ficação da ciência com a tecnologia.

A grande força dos racionalistas (universalistas)consiste em terem instaurado uma espécie de

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absurda: o nazismo vale tanto quanto a democracia.Se nenhuma verdade é mais verdadeira ou justa queas outras, teríamos que considerar, como desprovi-das de fundamento, todas as tomadas de posiçãoéticas e políticas. Porque dizer que tudo é possível,significa reconhecer que tudo é verdadeiro da mes-ma maneira. Esta atitude não se chama mais curiosi-dade intelectual, mas sincretismo.(9)

O que podemos dizer é que a posição de Feye-rabend e dos demais relativistas convictos (Bloor,Latour, entre outros) só se sustenta se conseguiremenfrentar com êxito o problema do estatuto da ciên-cia. O que parece não ser bem o caso: de um lado,afirmam enfaticamente que o pensamento científicodepende profundamente dos contextos sociais e his-tóricos; do outro, defendem ardorosamente o chama-do “princípio de simetria” segundo o qual, do pontode vista da sociologia do conhecimento, nenhumprivilégio pode ser conferido ao conhecimento cientí-fico sobre as outras formas de conhecimento, postoque todos os conhecimentos devem, a priori, ser tra-tados em perfeito pé de igualdade. Claro que os rela-tivistas não negam que certas crenças possam serverdadeiras e outras falsas. Porque o princípio desimetria não é um princípio de equivalência. A grandequestão da sociologia da ciência deixa de ser: “oquê determina a verdade”? Deveria ser formuladaassim: o quê produz a crença permitindo-nos dizerque certas proposições são verdadeiras? Não deve-ríamos buscar a verdadeira igualdade entre as cren-ças do ponto de vista de sua verdade, mas de suacredibilidade.

Posto este princípio, os relativistas afirmam:acreditar em proposições verdadeiras é tão misterio-so quanto crer em proposições falsas. Não podemosseparar completamente a verdade de uma proposi-ção de sua credibilidade. O problema que se põe é

damental da Razão é justamente a universalidade,seria irracional uma cultura racional. Por outro lado,se todas as culturas são ou deveriam ser igualmenteracionais, torna-se praticamente impossível qualquerdiscriminação da racionalidade. Não é por acaso queFeyerabend prega, em nome justamente de uma so-ciedade livre, cujo desabrochamento se vê abafadopela instituição científica, uma completa separaçãoentre Ciência e Estado. Porque uma sociedadefundada na racionalidade não é completamente livre.Só é livre a sociedade em que todas as tradiçõestenham os mesmos direitos e poderes. Todas as“tradições” e todos os “saberes” deveriam reivindicarum direito igual à institucionalização. Enquanto insti-tuição, a ciência não goza de nenhuma relação privi-legiada com a verdade. Tanto as tradições quantoas ciências precisam ser julgadas em função de ummesmo e igual direito à existência institucional. Eisuma posição relativista extremada, postulando atéuma abolição da ciência como instituição para queseja instaurado o advento de uma verdadeira ciência,embora nosso autor não proponha nenhum outromodo de existência das ciências nem mesmo dastradições.

De um ponto de vista sóciocultural, a posiçãorelativista não se cansa de proclamar que os homensvivem em universos culturais tão diferenciados queconstitui uma verdadeira aberração a defesa de nor-mas universais ou universalizáveis sobre o verdadei-ro ou o justo. Também os critérios de Verdade eJustiça variam historicamente e se alteram no inte-rior das diversas culturas. Por isso, não pode havernormas universais suscetíveis de regular o verda-deiro e o justo. Ora, se é verdade que toda verdadeé relativa a uma cultura, a uma época ou a umaclasse social; se é verdade que tudo se equivale,então poderíamos chegar à seguinte conclusão

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nossos desejos subjetivos. Não existe nenhum crité-rio objetivo permitindo-nos dizer que a ciência cons-titui um saber superior à astrologia, aos saberes mito-lógicos e aos demais saberes do mesmo tipo. Nestesentido, seria ilusória a pretensão universalista daciência.

A história das ciências nos mostra que a ciêncianão é a depositária do universal nem tampouco adetentora exclusiva do poder de federalizar as inteli-gências. E o próprio consenso científico desaparecequando ocorrem as revoluções científicas. É uma“ideologia profissional” dos cientistas que vem ten-tando normalizar as práticas e as referências e,assim, impor uma ortodoxia adaptada aos interessesda corporação científica. Nada há de racional nesseentendimento. Aliás, todo sistema (científico, filosófi-co, mítico, etc.) tende a fechar-se em si mesmo e aapresentar-se como verdadeiro e irrefutável. Se asteorias reinantes se impõem, não é tanto por suaverdade quanto por seu sucesso. Previamente, des-qualificam toda refutação. Conservadoras, transfor-mam-se em “ideologias rígidas”, em espécies de“portos seguros” de verdades inquestionáveis. Comose o consenso científico merecesse uma credibilida-de maior que qualquer outra concepção do mundo.O grande defeito das unanimidades e das teoriasconsagradas é que facilmente se convertem em mito.Por isso, como, no domínio do conhecimento, nãohá nem Deus nem mestre, ganha sentido o protestode Feyerabend quando nos recomenda: “libertemosa sociedade do poder de constrangimento de umaciência ideologicamente petrificada, exatamentecomo nossos ancestrais nos libertaram do poder deestrangulamento da verdadeira-e-única-religião”.(11)

Não são poucos os epistemólogos (Bachelard,Lakatos, Holton entre outros) que, por mais diferen-tes que sejam suas posições, reforçam essa ten-

o de sabermos se o conjunto das proposições verda-deiras é capaz de certa invariância, para além dadiversidade dos sistemas de credibilidade. Poucoimporta, respondem os relativistas, aquilo que a so-ciedade explica da ciência. O que realmente inte-ressa é sabermos o que a existência da ciência nosensina sobre a sociedade que a tornou possível. Aesta posição, devemos contrapor aos relativistas:afirmamos a existência de verdades de credibilida-des potencialmente transcendentes em relação àsvariabilidades históricas e culturais; e contrariamenteaos racionalistas, defendemos a necessidade dehistoricizarmos e particularizarmos a Razão, em vezde fazermos dela um absoluto ou algo transcen-dente.(10)

Os relativistas são contundentes: se a ciênciamoderna se impôs universalmente aos demaissaberes, não foi por sua pretensa superioridade, mastão-somente pela força e pela violência. Assim, nacultura européia, esmagou os saberes ditos “popula-res” e, nas colônias, os autóctones. Por isso, diantedessa ambição de tudo cientificizar e de tanta arbitra-riedade da Razão, insurgem-se os que brandem edefendem o princípio da incomensurabilidade segun-do o qual não temos o direito de comparar logica-mente teorias ou sistemas de representação diferen-tes, posto que cada um constitui seu próprio domíniode referência, tendo o direito de reivindicar seu pró-prio “paradigma” no qual adquirem sentido os fatosde observação, as interpretações e os modos depensar. Sobre o real, não há ponto de vista privilegia-do. Diferentes pontos de vista são legítimos. Nãohá nenhum critério racional e objetivo suscetível dedeterminá-lo de uma vez por todas. O que pode-mos fazer é escolher entre sistemas incomensurá-veis. Mas nossa escolha não é objetiva, pois se ba-seia em juízos estéticos ou de gosto, quer dizer, em

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notadamente o templo da Ciência, nada mais fazemque reagir veementemente contra a prepotência e oimperialismo de uma racionalidade ocidental apre-sentando-a como universal e a única verdadeira.(12)

Contudo, a renúncia ou a rejeição de tal impe-rialismo racionalizador não pode converter-se numaespécie de “má consciência” povoada por senti-mentos de remorso ou de culpa por um colonialismoabusivo e condenável. O proclamado “direito à dife-rença” não tem o direito, ao postular a impossi-bilidade de toda pretensão ao universal, de eliminartodo e qualquer sentido das hierarquias ou dos valo-res nem tampouco de confundir simplesmente “dife-rença” e “equivalência”. Porque o resultado dessaatitude seria uma defesa do retorno aos velhos obs-curantismos vindo ofuscar ou apagar as Luzes quetantos nos têm iluminado. A proclamação de um uni-versal (valor moral, estético ou político) não podepura e simplesmente ser considerada um anacronis-mo nem muito menos denunciada como uma simples“violência simbólica”.

Claro que nenhuma província cultural se identi-fica com o mundo e que nenhuma “diferença” podeser considerada um “valor” absoluto. Por isso, parase combater ou negar o universalismo inerente aopensamento científico, não basta contrapor-lhe umaposição de princípio (ética ou cética) considerandoigualmente válidos e respeitáveis todos os saberes,todas as culturas e todos os valores. A posiçãoepistemológica segundo a qual “tudo é bom” nãopode ser aceita, pelo menos, por uma razão histórica:as teorias científicas que se impuseram foram asque se revelaram as mais fecundas, sintéticas epreditivas.

O que significa dizer que “todos os saberes sãorelativos” ou equivalentes? Que a variedade diz

dência à relativização das teorias científicas no quediz respeito aos critérios a priori de verdade univer-sal ou de realidade em-si. Se pretendemos distinguirum discurso delirante (irracional, não-razoável oudesadaptado ao real) de um discurso não-delirante(racional, razoável ou adaptado ao real), precisamoslançar mão de critérios distintos dos que nos permi-tem distinguir entre o discurso da realidade (impostopelos fatos) e a simples projeção racionalizadora quesobre ela elaboramos. Aliás, deste ponto de vista,todas as teorias (científicas ou não) seriam deliran-tes, pois nada mais são que projeções interpreta-doras de determinada realidade: qual o discursoracional sobre os fatos que não se reduz, em últimainstância, a uma racionalização? O que mais importanão é o caráter racional ou irracional desse discurso,mas o uso que fazemos da razão e da experiência.

Não resta dúvida que o anarquismo epistemoló-gico relativista, em sua alergia a todo critério univer-sal de demarcação entre ciência e não-ciência, nãosomente nega que as concepções científicas atuaissejam superiores às científicas do passado, às teo-rias filosóficas e aos mitos, mas chega também aconsiderar a ciência como “um conto de fadas comoos outros”. Ora, por mais interessantes e fecundasque sejam as análises relativistas, por mais que pre-tendam relativizar a “Grande Demarcação” (GreatDivide) ainda bastante aceita pelo Ocidente, é ine-gável que tampouco podem ser tomadas como ver-dadeiras. Pelo contrário, precisam ser relativizadas,pois são portadoras de algumas fraquezas. Por outrolado, por mais que pretendam reabilitar os chamados“saberes primitivos”, freqüentemente desprezadose desconhecidos (Lévi-Strauss), e que declarem que,em matéria de método, “tudo vale” (o anything goesde Feyerabend), o fato é que esses relativistas, aotentarem “profanar” os mais caros valores ocidentais,

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sociologia do conhecimento: teríamos que optar en-tre, de um lado, o realismo ingênuo no qual se mani-festaria a Verdade una e inelutável e, do outro, oceticismo niilista no qual tudo se equivaleria, só seimpondo a Verdade dos poderosos. A este respeito,são interessantes as análises epistemológicas deJ. Habermas. Tanto em seu famoso texto Conheci-mento e Interesse (1965) quanto em seu livro ATécnica e a Ciência como Ideologia (1968), aocriticar a atitude objetivista do positivismo, queescamoteia o quadro axiológico no interior do qualos enunciados teóricos adquirem seu sentido,demonstra que o sentido só é apreendido se taisenunciados são compreendidos relativamente aosistema de referência inter-subjetivo regulando suaconstrução. Melhor ainda: só podemos apreender osentido relativamente ao sistema de interesses quecomanda o conhecimento.

Não resta dúvida que todo conhecimento éguiado por um interesse, isto é, por certas orienta-ções fundamentais enraizadas nas condições bási-cas de autoconservação da espécie. Os interessesconstitutivos do conhecimento devem ser compreen-didos no quadro cultural da conservação da espéciehumana. Comandam a autoconservação de nossosconhecimentos na vida social. As ciências empírico-formais procedem de um interesse de ordem técnica;as histórico-hermenêuticas são guiadas pelo inter-esse da comunicação inter-subjetiva: a pesquisahermenêutica explora a realidade orientada por uminteresse suscetível de manter ou aplicar as comu-nicações inter-subjetivas tendo em vista a ação; asciências críticas, enfim, são guiadas por um inte-resse emancipatório (sociologia crítica, psicanálisee crítica filosófica das ideologias) suscetível de dis-tinguir, entre os enunciados teóricos das outras ciên-cias, os que apreendem as leis invariantes da ativida-

respeito aos homens e às suas diferentes culturas?Ou que a multiplicidade a eles se apresenta sob for-mas distintas e legítimas? Os relativistas freqüente-mente se esquecem, em sua reivindicação daigualdade de todas as culturas, que o Ocidente temsido esta parte do mundo que incessantemente vemproclamando essa igualdade universal. Se apro-priou-se da racionalidade científica, como poderiaela ser restituída a todos os povos que também sejulgam no direito de fazê-la sua? Para se combatero racionalismo, defendendo a universalidade da ciên-cia, não bastam afirmações de princípios (como oda igualdade de todos os homens) nem tampoucojustificações formais (como a da incomensurabilida-de). Os relativistas teriam, para combater a ideologiaimperialista e cientificista ocidental e erigir a racio-nalidade instrumental em modelo único, que de-monstrar como seria possível o diálogo das culturase como nossa tradição científica poderia abrir-se àsoutras formas de saber. Donde, mais uma vez, apertinência da questão: o futuro da civilização mun-dial passa pela ocidentalização (com todas as violên-cias que tal redução implica) ou pela convergênciadas múltiplas culturas e de seus saberes?

Nos dias de hoje, ninguém mais nega que oconhecimento científico seja condicionado por váriosinteresses, não somente da Razão, mas dos gruposde pressão próximos das estruturas do poder políti-co, de decisão e de financiamento. Neste sentido, aprática científica constitui uma prática social e, comotal, deve ser julgada. Já foi suficientemente desmisti-ficada a imagem de uma Ciência pura e desencarna-da, em progresso constante para a descoberta de-sinteressada da Verdade sobre o Universo e obede-cendo apenas a uma racionalidade interna transpa-rente. Por outro lado, não faz mais sentido o velhodilema ao qual nos parecia condenar uma ingênua

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Enquanto racionalidade típica do Ocidente, encontra-se profundamente aberta a todos os demais saberes.Como não há uma única forma de se fazer ciência,tampouco podem ser demasiado rígidas as fronteirasentre o científico e o não-científico. Sem perder suaidentidade, a ciência está apta a dialogar com todosos demais saberes e de, com eles, promover trocasinterfecundantes.

Como só pode haver Ciência racional e comosó pode haver Razão universal, impõe-se a questão:como concebermos uma universalidade da Razãosem cairmos, seja numa forma de imperialismo, im-pondo a racionalidade ocidental como modelo uni-versal, seja no relativismo, vendo e proclamando ra-zão em tudo e em toda parte? Assim como Ulissesteve que amarrar-se ao mastro de seu navio pararesistir ao canto das sereias, da mesma forma a Ra-zão, para não naufragar nas ondas do relativismo edo ceticismo (inclusive, do cinismo e do irracionalis-mo), precisa descobrir um princípio sólido que aimpeça de entrar em deriva. Tal princípio precisa serao mesmo tempo de relatividade, capaz de dissolvertodos os falsos absolutos, e de invariância, suscetí-vel de evitar o ceticismo e o ecletismo.

Ao questionar a visão aristotélica e kantianade uma Razão autônoma e imutável, Bachelard (LeRationalisme Appliqué) se insurge contra “este racio-nalismo fixista que formula as condições de um con-senso dos homens de todos os países e de todosos tempos diante de qualquer experiência”. Sob estaforma, seu relativismo diz mais respeito à globalidadeda experiência que ao consenso, pois continua de-fendendo a idéia de uma ciência una e universal.Exige apenas que a Razão seja capaz de adaptar-se às estruturas próprias de cada setor do real. Deforma alguma pode exprimir-se diversamente, se-gundo os vários contextos históricos e sócioculturais.

de social e os que só exprimem relações fixas emvista de promover os interesses dos grupos domi-nantes.

O objetivo da “Grande Demarcação”, ao sepa-rar radicalmente a racionalidade científica de todasas demais formas de saber, consiste em atribuir-lheuma relação privilegiada com a Verdade. Claro que,com o declínio do positivismo, essa dicotomia seatenua bastante. E a ciência começa a aparecer co-mo o resultado de uma cultura particular, da culturaproduzida pelas sociedades ocidentais. Surge entãotoda uma crítica sociológica da ciência culminandonum relativismo radical, a ponto de negar, à lógica eàs matemáticas, seu caráter de verdades necessá-rias. Também elas se tornam produções de socieda-des particulares e, até mesmo, produções de umsaber reduzido aos resultados de lutas de influênciae de relações de forças sociais. Neste sentido,nenhuma ciência teria direito à pretensão de verdadeuniversal. Porque, como qualquer outro saber, cons-titui um produto da sociedade em que se desenvolve.O terreno para este relativismo social foi preparadopela crítica do método científico realizada por Pop-per que culminou no relativismo epistemológico deLakatos e Feyerabend. Apesar de Popper jamaister renunciado a uma esfera relativamente autônomado verdadeiro, mesmo que se manifestando de modonegativo (pela prova do falso).(13)

Em nosso entender, a racionalidade ocidental,enquanto discursiva, abstrata, instrumental e con-quistadora, não tem condições de encarnar ou esgo-tar a Razão humana, posto constituir apenas umaforma bastante específica de sua realização históri-ca. Mas é justamente sob essa forma que pode serconsiderada um patrimônio universal da humanida-de. E o que a torna tal é o fato de dizer respeito “àespécie humana em seu conjunto” (Habermas).

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Razão, herdeira das Luzes. Porque não podemosmais confundir o universal com o ponto de vista par-ticular que dele tem o observador ocidental. Emnome de quê tal ponto de vista, enraizado numespaço-tempo cultural bem preciso, tem validadepara observadores possuindo outros sistemas dereferência? Um ponto de vista universal só se tornaefetivamente possível quando somos capazes detransferir o absoluto dos pontos de vista particularespara o sistema de suas relações. Talvez o grandeerro da Razão ocidental tenha sido o de esquecer-se de que nasceu, como nos mostra Sócrates, dodiálogo: ao invés de buscar ter razão contra os ou-tros, ela sempre busca dar razão, busca a verdadecom o outro e diante dele. Porque surge como rela-ção e regulação do relacionamento com o outro, nãocomo proprietária exclusiva do universal. O que nãoa impede de, como uma idéia reguladora de si mes-ma, orientar-se sempre para o universal.

Quando, no plano conceitual, analisamos asrelações entre Razão, Ciência e Democracia, logonos damos conta de que a redução da Razão aoracionalismo sempre esteve indissociável da redu-ção da Ciência ao cientificismo e da redução da De-mocracia a certo tecnocratismo mais ou menos utili-tarista. Ao tomar o exemplo do reducionismo cogni-tivista e economicista, o sociólogo Caillé (La Démi-ssion Des clercs, La Découverte, 1993) constata queé no cognitivismo atual e na teoria das escolhasracionais (dominantes nas ciências humano-sociais)que se manifesta de modo bastante claro esse redu-cionismo racionalista: de um lado, o cognitivismoreduz o pensamento ao cálculo lógico, do outro, ateoria das escolhas racionais reduz a ação ao cálculoestratégico. Mas em nome de quê temos o direitode reduzir o Pensamento à Razão, a Razão ao En-tendimento e o Entendimento ao Cálculo? Por que

Esta tomada de posição ignora que o enraizamentosóciocultural não somente relativiza nossa ciência,mas sua racionalidade própria. Ademais, não perce-be que a complexidade do real e a diversidade huma-na possam postular outras formas de racionalidade.

Como são múltiplos os caminhos conduzindoà verdade, por que não teríamos o direito de falarde um universalismo relativista? Parece uma contra-dição, mas a teoria de Einstein, ao mesmo tempodesestabilizando as noções de tempo, espaço, movi-mento e massa, e relativizando as leis da mecânica(elas variam conforme mudam a posição do obser-vador e seu sistema de observação), pode ajudar-nos a compreendê-lo. No fundo, a teoria einsteiniananão é “relativista”, pois faz da velocidade da luz umaconstante universal. Seu objetivo explícito: congre-gar todos os pontos de vista possíveis a fim desalvaguardar o determinismo da natureza, a inva-riância das leis e uma descrição completa do univer-so. Para salvar a esperança da física, rompe com aimagem newtoniana de um tempo e de um espaçoabsolutos. As leis da natureza se alteram segundoos lugares onde se exercem. Como não são sempreidênticas, devemos relativizar o tempo e o espaço.Neste sentido, a teoria da relatividade não é relati-vista.

Enquanto a teoria einsteiniana estabelece quea possibilidade de sintetizar e acumular as informa-ções precisa levar em conta o conjunto das informa-ções transmitidas pelo conjunto dos informadores,o universalismo racionalista (que é uma forma dereducionismo) privilegia o ponto de vista de um ob-servador como se fosse válido para todos os demaise como se sua referência espácio-temporal ou his-tórico-cultural valesse para todo o universo. Ora, sequeremos afirmar a possibilidade de uma ciênciauniversal, precisamos desabsolutizar nossa idéia de

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bates da agorá. Foi aí que rompeu com os mistériosda palavra revelada e dos mitos, desalojando asautoridades tradicionais dos porta-vozes celestes.Contra os segredos dos saberes ancestrais, reivindi-cou a publicidade e a transparência dos argumentos.Contra o mundo fechado das certezas e da obediên-cia incondicional, contrapôs o mundo aberto dasquestões e da liberdade. Por isso, desde sua origem,a Razão foi democrática. E a Ciência, sua legítimaherdeira, precisa afirmar-se abrindo-se ao confrontoe ao afrontamento, fazendo do espaço em que exer-ce sua atividade, o espaço mesmo da discussão eda tolerância.

o pensamento só pode existir na discursividade? Epor que só é legítimo o uso da razão recorrendo atal discursividade? Ora, se admitimos que pensar élevantar a questão, para o sujeito, do sentido, nãotemos o direito de reduzir o pensamento ao cálculológico, pois ultrapassa, de muito, o jogo dos concei-tos. Ao lembrar-nos que o símbolo nos leva a pensarmais que a razão discursiva, porque não obedece àordem discursiva, o filósofo Paul Ricoeur (Le Conflitdes Interprétations, Seuil, 1969) nos mostra, nãosomente por razões conceituais, mas éticas e huma-nas, que não podemos identificar Pensamento eRazão discursiva. Porque não podem ser conside-rados seres pensantes apenas os que sabem seexpressar segundo os cânones da lógica discursiva.Se a quase totalidade da espécie humana não pen-sa, pois não reduz o pensamento à razão e aoconhecimento, “os homens seriam irresponsáveispor seus atos, e Eichmann não seria culpado” (H.Arendt).

A diversidade dos saberes e das culturas nãonos obriga a aceitar globalmente as teses relativistas.Mas como possuem, pelo menos um valor de antído-to contra toda espécie de dogmatismo racionalista,talvez possamos sublimá-las a fim de que possamcolaborar para se produzir, sem impostura, violênciaou imperialismo, uma Ciência com vocação univer-sal, sem dúvida, mas suscetível de responder àsexigência de uma Razão aberta. Porque, numa so-ciedade concorrencial, competitiva e agressiva comoa nossa, precisamos estar conscientes de que aCiência, ao invés de impor-se como combate, deve-ria apresentar-se como diálogo. Desde sua origem,entre os gregos, a racionalidade surge como comu-nicação: raciocinar significa “dar razão”, levar emconta e reconhecer a alteridade, a posição do inter-locutor. O Logos surgiu na praça pública, nos de-

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22. O RELATIVISMOEM QUESTÃO

De tudo o que vimos até agora, podemos dizerque, de um modo geral, são consideradas relativistasas teses ou tomadas de posição defendendo queos homens vivem em mundos e culturas bastantediferenciados para que seja possível qualquer defi-nição de normas universais ou universalizáveis doverdadeiro e do justo. Porque os próprios critériosde verdade e justiça também variam no tempo e noespaço, não sendo suscetíveis de nenhuma trans-cendência. Assim resumido, o relativismo esbarracom uma série de dificuldades, não somente fatuaise pragmáticas, mas lógicas e teóricas. Em todo caso,um de seus méritos consiste em permitir-nos rompercom o velho racionalismo que, por não perceber ahistoricidade da Razão, fez dela um absoluto sobreo modelo do tempo e do espaço absolutos da físicaclássica. O grande defeito do universalismo raciona-lista consiste em ter pretendido falar do ponto devista universal, mas confundindo-o com o ponto devista particular do observador ocidental reduzindo aRazão ao racionalismo e a Ciência ao cientificismo.Mas não podemos relativizar a Razão sem, ao mes-mo tempo, racionalizar a relatividade.

A partir dos anos 1980, a questão do relativismoé posta de outro modo e ganha outros interlocutores.As discussões propriamente epistemológicas sobrea verdade mudam de rumo com a introdução, nareflexão filosófica, dos dados e resultados analisadospela antropologia filosófica, pela psicologia experi-mental de cunho behaviorista e pela epistemologiade tipo lógico. Entre as teorias filosóficas da verdade

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por ele como bode expiatório de todos os erros e detodas a idiotices acumuladas pela história do pensa-mento, nosso defensor do pragmatismo neoliberaldemonstra um profundo desconhecimento da filoso-fia de Platão. E ao declarar que Nietzsche “convidou-nos explicitamente a abandonar toda idéia de conhe-cer a verdade” (Contingency, op. cit., p. 53), ignorao que nos declara em Ecce Homo: “Quanto de ver-dade um espírito sabe suportar, sabe ousar? Eis que,cada vez mais, torna-se para mim o verdadeiro crité-rio dos valores” (Prefácio).

Ao reduzir a verdade à utilidade ou aos efeitosque os pensamentos, palavras e conceitos podemter sobre nossas condutas e atitudes, o objetivo pri-meiro do pragmatismo relativista não é tanto o dedesafiar a filosofia, questionando o bem-fundado detodo juízo crítico, mas o de estender a “revoluçãocopernicana”, proclamada por Kant no domínio doconhecimento, aos demais domínios do saber huma-no, notadamente das ações ética, política e estética.Para ele, as crenças éticas, políticas e estéticasprecisam ser submetidas a uma dúvida e a um méto-do tão eficazes quanto os da dúvida e do métodocientíficos. Ocorre que, ao reduzir a verdade a umasimples convicção de ordem prática, devendo incli-nar-se diante da instância do consenso, essa teoriatermina por neutralizar todo juízo crítico e admitircomo evidentes e incriticáveis as crenças dominan-tes. Não é por acaso que confunde democracia comliberalismo e prazer estético com boa consciênciamoral. Ademais, ao definir-se essencialmente poroposição à metafísica, acreditando ter acesso a umaverdade transcendente, o relativismo se constrói se-gundo uma concepção bastante dogmática e a priori.Porque a metafísica que rejeita e contra a qual sedefine, se não é imaginária, possui sua própria histo-

tentando dissolver as fronteiras entre as disciplinascientíficas e os demais saberes, ganha importânciao pragmatismo, notadamente de Richard Rorty. Porvezes considerado como um historicismo, preten-dendo fundar a verdade em práticas de justificaçãoconsensuais dependentes dos contextos sócio-his-tóricos, o pragmatismo cada vez mais tem se impostocomo uma teoria relativista negando toda e qualqueridéia de verdade universal ou eterna. Diferentementedo ceticismo, visa pôr em questão a idéia de umaverdade utópica, escapando a toda perspectiva par-ticular, a fim de substituí-la por uma concepção deverdades plurais, cada uma relativa a uma situaçãodiferente.

Diria que uma das ambições desse neoprag-matismo relativista é o de negar a história e decretaro fim do político. Há alguns anos atrás (1989), Po-pper fazia a seguinte declaração: “Pretendo que vive-mos num mundo maravilhoso. Nós, os ocidentais,temos o insigne privilégio de viver na melhorsociedade que a história da humanidade jamais co-nheceu. É a sociedade a mais justa, a mais igualitá-ria, a mais humana da história”. Em toda lógica e,em conformidade com sua epistemologia conferindovalor de verdade científica apenas às proposiçõesrefutáveis, ele conclui que as ciências sociais emgeral deveriam se limitar a um papel bastante modes-to. Deveriam renunciar a toda e qualquer interroga-ção sobre a justiça e as formas desejáveis das rela-ções sociais e exercer, doravante, uma atividade deassistência social. E esta posição também é defendi-da por Rorty. Ao tentar efetuar uma síntese entreDewey, Heidegger e Wittgenstein, conclui dizendoque, se a história já terminou (como teria demonstra-do F. Fukuyama), não deveríamos tentar reinventá-la nem tampouco reanimá-la. Ao caricaturar explícitae sistematicamente a filosofia platônica, considerada

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de direito e de fato, com vocação universal. Estareivindicação constituiu um poderoso álibi para asconquistas que só se efetivaram graças à força (ideo-lógica) e à violência (simbólica).

Uma das convicções fundamentais do cientifi-cismo consiste em crer no valor universal do conheci-mento objetivo das ciências. A Ciência, obra daRazão, teria permitido ao Ocidente sair do obscuran-tismo e dos particularismos a fim de assumir suaidentidade e sua responsabilidade universais. Entreoutros, o filósofo inglês Whitehead assim defendeesse universalismo: “A ciência moderna nasceu naEuropa, mas seu hábitat é o mundo. Torna-se cadavez mais evidente que aquilo que o Ocidente podemais facilmente dar ao Oriente é sua ciência, bemcomo sua mentalidade científica. Estas são transferí-veis de um país a outro, de uma raça a outra, a todaparte onde existe uma sociedade que pensa” (LaScience et le Monde Moderne, Payot). Se a verdadedas ciências deve substituir toda forma de conheci-mento, seu império se estende a todos os domíniosda vida e da ação. Portanto, deve ocupar o lugaroriginal de onde pretende tudo fundar e tudo reger.

Temos aí, entre muitas outras, uma proclama-ção universalista diretamente derivada do mito dasLuzes e que levou o Ocidente, nos últimos séculos,a considerar-se e a apresentar-se como o “salvador”ou “preceptor” do resto do mundo. O Ocidente (atébem pouco tempo sinônimo de Europa) enviou, ou-trora, para o “outro mundo”, para o mundo “bárbaro”,ou não-europeu, seus soldados, seus missionários,seus comerciantes e seus conquistadores. Não es-taria ele hoje bastante mais ampliado, tentandomanter sua política imperialista ou sua supremacia,enviando seus cientistas e seus experts para difun-direm uma racionalidade com vocação universal(14)?Não estaria convertendo a verdade científica num

ricidade. Opor-se a ela, é adotar uma postura a-histórica.

Talvez falte ao relativismo um pouco mais deceticismo. De uma coisa, não se dá conta: para nós,crer na Razão significa, antes de tudo, crer na razãodos outros. Porque a essência mesma da racionali-dade científica, como tem mostrado Habermas, re-side no desejo de comunicar-se e de só encerrarum debate pelo consenso. Neste sentido, o que real-mente define a racionalidade e a objetividade daciência não é tanto seu conteúdo, mas sua formasocial, quer dizer, ao mesmo tempo sua formulaçãoe sua difusão permitindo-lhe superar a prova doconfronto público. Esta é a exigência fundamental.Contudo, para sua efetivação, ela se faz acompanharde outras exigências. Destacaremos algumas:

1. Precisamos abandonar as convicções funda-mentais do cientificismo que tanto esforço tem feitopara pregar o valor universal da racionalidade cien-tífica. Esta racionalidade, embora de origem ociden-tal, seria válida em todos os tempos e lugares; trans-cenderia as sociedades e as formas de cultura parti-culares; embora fruto de uma Razão, patrimônio co-mum da humanidade, deveria ser considerada comouma espécie de esperanto do universo, de um uni-verso que teria abandonado o obscurantismo e osparticularismos para assumir sua verdadeira identi-dade planetária e sua responsabilidade universal. Eo que constatamos é que tais proclamações de umauniversalidade fundada no mito das Luzes, tiveramo efeito perverso de conduzir o Ocidente a umapostura de “salvador” e “regente” do resto do mundo.Sobretudo quando, levando os ocidentais a acredita-rem que detinham a supremacia e o monopólio daracionalidade científica, fizeram-nos adotar uma polí-tica ao mesmo tempo colonialista e imperialista. Se-riam os únicos depositários de uma racionalidade,

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espécie de “nova aliança” com os valores e os sabe-res das culturas não-ocidentais, mas de reconhecero irracional e de com ele inaugurar um fecundo diálo-go. Enquanto fenômeno evolutivo, a Razão não pro-gride de modo contínuo e linear, mas por mutaçõese constantes reorganizações. Ao reconhecer seu ca-ráter “genético”, J. Piaget declara que ela não cons-titui um invariante absoluto, mas “elabora-se por umaseqüência de construções operatórias, criadoras denovidades e precedidas por uma série ininterruptade construções pré-operatórias dizendo respeito àcoordenação das ações e remontando à organizaçãomorfogenética e biológica” (Biologie et Connaissan-ce). Tal evolução se assemelha bastante às mudan-ças de “paradigma” (no sentido kuhniano).

Não resta dúvida que precisamos relativizar a“Grande Demarcação”. Mas certas precauções sãoindispensáveis. Por mais que tenhamos os olhosfixos na massa impressionante dos conhecimentosacumulados e do poder de suas “aplicações” tecnoló-gicas, precisamos continuar a nos interrogar sobrea ciência. Não devemos nos contentar com um pro-cesso que já forneceu tantos resultados inegavel-mente eficazes. Nem todos foram benéficos. Ao ve-nerar a ciência, o mundo moderno perdeu de vista,por assim dizer, o pensamento. Ora, jamais vimos aRazão triunfar quando, antes, o pensamento se de-mitiu. Assim, o filósofo Alain Finkielkraut denuncia a“derrota do pensamento” (La Défaite de la Pensée,Gallimard, 1987). Constata que nós, ocidentais, en-venenados por uma má-consciência e pelo remorsode um pesado passado colonial, além de insatisfeitoscom o relativismo das ciências humanas, às voltascom o pretenso “direito à diferença”, estamos per-dendo o sentido das hierarquias e dos valores. Ade-mais, estamos nivelando as diferenças na equivalên-cia. E ao desenvolvermos um terrível “espírito

absoluto na ordem do saber e do poder? Não teriavendido essa idéia a toda sociedade pretendendogarantir sua identidade e sua unidade? Não teriaconvertido a ciência numa verdadeira religião?

Nas últimas décadas, imagem tradicional daciência foi bastante afetada. Surge uma nova socio-logia contestando cada vez mais suas “pretensões”.O que não quer dizer que a discussão tenha termi-nado. Ou que os “relativistas” ganharam a “guerra”.Desde já, podemos constatar duas ambigüidadesfundamentais nas posições dos relativistas, notada-mente dos que adotam um liberalismo europeucen-trista intransigente: a) com muita freqüência, decla-ram que suas tomadas de posição se situam forade toda reivindicação de cientificidade: não somentese situam no exterior da “Grande Demarcação” e,mesmo, contra ela, mas esperam poder ter umacesso privilegiado à verdade, cujo estatuto perma-nece inteiramente indeterminado; b) freqüentementenos dão a entender que a necessidade da busca deum além, de uma “transcendência” da metafísica re-sulta apenas de um trabalho histórico do pensamen-to ocidental. Ora, o que podemos constatar é queessa denúncia da Razão é feita justamente em nomede um europeucentrismo tão poderoso quanto o doracionalismo. Chega mesmo a converter-se numaespécie de hiperracionalismo, pois permite a seuspartidários se convencerem de que são tão racionaisque sabem denunciar a Razão.

2. A racionalidade científica ocidental precisatornar-se crítica e autocrítica a fim de ultrapassar osaspetos formalistas, instrumentais e calculadoresnos quais se encerrou. Isto implica que não somentedeve renunciar ao cientificismo que tanto a temmarcado, mas que se disponha também a relativizaros valores tecnocientíficos nos quais tanto acreditou,para que seja capaz, não somente de instaurar uma

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conhecimento que se libertou de todos os dogmatis-mos e das autoridades tradicionais para responderenergicamente ao apelo de um horizonte que recuasem cessar. Porque, como nos lembra E. Morin,diante do desencadeamento dos obscurantismos edas mitologias, deveríamos “salvaguardar a raciona-lidade como atitude crítica e vontade de controlelógico”, mas acrescentando-lhe a autocrítica e o re-conhecimento dos limites da lógica. A grande tarefaé a de “ampliar nossa razão para torná-la capaz decompreender aquilo que, em nós e nos outros, pre-cede e excede a razão” (Merleau-Ponty). Lembre-mos: o real excede sempre o racional. Mas a razãopode desenvolver-se e complexificar-se. “A transfor-mação da sociedade, que exige nosso tempo, revela-se inseparável da auto-ultrapassagem da razão”(Castoríadis Science avec Conscience, Fayard,1982, p. 266).

3. A racionalidade científica precisa confrontar-se, não somente com os saberes exóticos ou estra-nhos, com as demais tradições de cultura e de pen-samento (mais contemplativas, místicas, metafísicasou estéticas), mas com as formas de racionalidadeditas “dialéticas” ou “sintéticas” que privilegiam, nãoas quantidades, mas as qualidades, não as separa-ções, mas a união, não as identidades, mas as opo-sições e não os conceitos, mas as imagens. Teriamuito a ganhar caso viesse a reconhecer tudo o quesempre fez questão de ignorar ou de recalcar. Aoadotar tal postura, certamente se tornaria mais co-nhecida e reconhecida por todos os que ainda a des-conhecem ou dela suspeitam. Não nos esqueçamosde que, “na aurora de sua longa viagem, a Ciênciaaparece sob a forma de Janus, o deus de dupla face,guardião das portas: uma abre para o horizonte seusolhos claros, a outra deixa errar na direção opostaum olhar de ferro, um olhar de sonho” (A. Koestler).

paroquial”, certo “patriotismo” territorial, estaremosrenunciando ao “espírito universal”. Assim, um novoobscurantismo estaria surgindo e ameaçando asLuzes que tanto nos têm iluminado.(15)

Ora, se toda proclamação de um universal (va-lor moral, estético ou político) parece anacrônica edeve ser denunciada como “violência simbólica”, en-tão o pensamento ocidental precisa reconhecer suaderrota. E se nesta “derrota” subsiste apenas o nú-cleo duro das ciências, ou seja, o universalismo ine-rente ao pensamento científico; e se é apenas naciência que o homem se eleva acima dos esquemasperceptivos nele depositados pela coletividade, seráque tudo o mais (costumes, instituições, crenças,produções artísticas, etc.) ficaria atrelado à sua cul-tura? Não estaríamos tentando vender nossa almapara obter a paz de nossa consciência? Não estaría-mos tripudiando nossos valores ao invés de aperfei-çoá-los a fim de enriquecermos sempre mais o pa-trimônio comum da humanidade? Não continuamosainda mais ou menos dominados por toda umaideologia cientificista mantendo insidiosamente nosespíritos uma confiança cega no poder da ciência eum respeito quase universal de sua autoridadeintelectual? Não temos um surdo medo do pensa-mento científico, que se apresenta a nós sem dog-mas, voltado sempre para o futuro, obtendo seusresultados pela utilização de um método universal?

Pelo fato de não mais idolatrarmos a ciência esua racionalidade técnica, não quer dizer que deva-mos optar pelas teses relativistas. A nova sociologiadas ciências soube levantar as boas questões. Masnem sempre soube fornecer as boas respostas. Aoinvés de aceitarmos as teses propostas pelos diver-sos relativismos, deveríamos trabalhar para umamaior abertura de nossa Razão e uma mais pro-funda compreensão do que seja a ciência, este

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de uma classe determinada, de uma situação sus-ceptível de ser ultrapassada. Assim como a idéia deuma Nova Técnica, a forma de uma Nova Ciêncianão resiste a uma análise conseqüente” (La Tech-nique et la Science Comme Idéologie, Gallimard,1975, p. 15).

4. O racionalismo ocidental não pode maisapresentar-se como universal. A este respeito, aposição de Popper é bem mais moderada: o raciona-lismo não é uma teoria filosófica, mas a convicçãode que “podemos aprender pela crítica de nossasfaltas e de nossos erros e, de modo especial, pelacrítica dos outros e pela autocrítica”. Porque um ra-cionalista é simplesmente “alguém a quem importamais aprender que ter razão”. No fundo, “quandofalo em Aufdlärung, penso sobretudo na idéia deemancipação pelo saber e penso no dever de todointelectual de ajudar os outros a se emanciparemintelectualmente e a compreenderem a atitude críti-ca” (Toute Vie est Résolution de Problèmes, ActesSud, 1994, 23). Todavia, de tanto afirmar que falamdo ponto de vista do universal, mas sempre confun-dindo este universal com o ponto de vista de umobservador privilegiado (o ocidental), os racionalistasnão-críticos se convertem em reducionistas epassam a acreditar que seu ponto de vista deve tervalidade para todos os demais observadores, comose sua temporalidade e especificidade própriasconstituíssem a única referência espácio-temporaldo universo. Esquecem-se de uma coisa: a filosofiapode até ser juiz de uma época; grave seria se, aoinvés disso, pretendesse apresentar-se como suaexpressão.

Ora, tal racionalismo precisa rejeitar de vez suamania de converter-se num verdadeiro panópticocapaz de tudo ver, prever, prover e controlar, poisnão tem as prerrogativas da divindade. Esta arro-

Em A Dialética da Razão, Adorno e Horkheimerafirmam que a razão ocidental só conseguirá esca-par de sua tentação totalitária quando for capaz deretornar às suas fontes gregas de partilha da palavrae de instaurar um fecundo diálogo com as culturase as civilizações. Porque, em sua essência, completaHabermas (Teoria do Agir Comunicativo), a razão écomunicacional. Por isso, só levando muito a sérioo debate aberto e franco ela terá condições de fazer-se reconhecida pelos outros e, por conseguinte,compensar sua função instrumental e aspirar a umuniversal não implicando nenhum imperialismo.Segundo Habermas, a Razão só pode livrar-se datentação totalitária resgatando a partilha do Logosque lhe deu origem e abrindo-se ao diálogo das civili-zações. Por ser essencialmente “comunicacional”,faz apelo ao debate como única mediação capazde garantir-se a si mesma e de fazer-se reconhecidapelos outros. E é assim que pode aspirar a um uni-versal desprovido de qualquer ambição imperialista.Pois se define como um diálogo que faz progressiva-mente emergir suas próprias normas e ultrapassara divisão ou a divergência das opiniões e das repre-sentações. Quanto à Ciência, é única e universal,mas somente enquanto saber técnico:

“Ao invés de tratar a natureza como um objeto,podemos ir a seu encontro como um parceiro, numainteração possível. Podemos buscar uma naturezafraterna, em vez da natureza explorada (...) A alterna-tiva proposta à técnica existente, isto é, o projeto danatureza como parceira, e não mais como objeto,remete à alternativa de uma outra estrutura de ação:remete à interação mediatizada pelos símbolos, poroposição à atividade racional relativamente a um fim.Quer dizer: esses dois projetos são projeções dotrabalho e da linguagem, projetos da espécie huma-na em seu conjunto, e não de uma época particular,

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devemos admitir a hipótese contrária afirmando quenão existe nenhuma verdade universal, mas tão-so-mente verdades. A maior crítica que podemos fazera essas três hipóteses, a primeira afirmando a exis-tência de “uma verdade única”, a segunda, que “nãohá nenhuma verdade” e, a terceira, que “tudo é ver-dadeiro”, é que têm em comum uma estranha pro-priedade: anular toda interrogação e neutralizar acapacidade crítica, como se devêssemos renunciarà atividade mesma do pensamento.

5. Precisamos superar a concepção do relativis-mo cultural elaborada e difundida a partir dos tra-balhos de Lévi-Strauss. Em La Pensée Sauvage(Plon, 1962), defende a tese segundo a qual os po-vos ditos “primitivos” foram capazes de construir umsaber bastante preciso, rigoroso e sistemático tendopor finalidade, não proporcionar magicamente satis-fações às necessidades da vida cotidiana, mas ins-taurar uma ordem no mundo, vale dizer, uma classifi-cação dos objetos e das funções. Trata-se de umsaber perspicaz e operacional que, antes de preten-der fornecer receitas práticas, impõe-se como aptoa responder a uma exigência de ordem teórica. Porisso, nosso antropólogo reivindica, para os sistemasde pensamento mágico, a validade de um saber ver-dadeiro que, do ponto de vista epistemológico, esta-ria bastante próximo do saber fornecido por nossasteorias científicas. Fundados nessa concepção, nãoforam poucos os sociólogos da “cultura popular” edos meios modernos de comunicação que se deixa-ram seduzir pela regra de ouro desse relativismoetnológico, passando a tratar todos os comporta-mentos culturais como se o valor que lhes reconhe-cem os diferentes grupos não fizesse parte de suaprópria realidade; e como se não fosse preciso, pararestituir a esses comportamentos seu sentido pro-

gância de pretender enunciar, de modo unívoco, asnormas da verdade e da justiça transformou a Razãonuma “Entidade” devendo assumir tonalidades estra-nhamente religiosas e fideístas. E, o que é pior, usur-pando o direito de julgar todos os negócios humanoscomo se fosse o substituto ou o equivalente modernode Deus, de um deus leigo, “desdeificado” ou “des-teologizado”. Creio que deveríamos assumir, contrao racionalismo, o fato de não podermos ser Deus; econtra o relativismo, o de não podermos deixar deraciocinar de Seu ponto de vista. Como superar estacontradição? Os grandes sofistas relativistas, nota-damente Protágoras, ao afirmarem que “o homemé a medida de todas as coisas” e que “todas as me-didas se valem”, não se compraziam em constatara relatividade da verdade, mas pretendiam afirmara verdade da relatividade. A solução dessa contradi-ção passa, sem dúvida, por uma relativização daRazão, mas também por uma racionalização da rela-tividade. Nossa idéia de Razão é estritamente regula-dora. Quando a cremos realizada, convertemô-la emracionalismo e, ipso facto, transformamos a Ciênciaem cientificismo e passamos a identificar a Demo-cracia com a tecnocientocracia.

Se a Razão é um “deus desdeificado”, autono-miza-se como sua própria idéia reguladora e nãotemos mais o direito, como pretendia o racionalismo,de dizer: somente é universal a interpretação par-ticular que o Ocidente dela se faz. De forma algumaisto significa que devamos adotar o relativismo. Por-que nos parece totalmente inaceitáveis: na ordemdo conhecimento, seu parti pris fundamental do “tudoé bom”; na ordem ética, seu princípio maior do “tudose equivale”; na ordem social, seu princípio segundoo qual “todas as crenças são plausíveis”. Assim comonão devemos aceitar a hipótese da existência deuma única verdade (a nossa, ocidental), tampouco

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de seu valor cognitivo, as historiografias liberal, con-tra-revolucionária, jacobina e socialista? Qual a inter-pretação mais válida (ou menos válida), a de Jo-seph de Maistre, explicando os acontecimentos de1789 como um castigo divino infligido aos francesespor causa de seus abomináveis pecados, ou a deJaurès, explicando-os em termos de luta de classes?Assim, levado até o fim, o relativismo absoluto serevela absurdo. Por isso, somos obrigados a reco-nhecer que certos pontos de vista são relativamentemais favoráveis à verdade objetiva que outros e quedeterminadas perspectivas permitem um grau relati-vamente superior de conhecimento que outras.

6. Contrariamente ao que se costuma dizer, orelativismo é uma teoria intolerante. Se a tolerânciadesigna um conjunto de práticas de saber que seinscrevem na ambição de “fazer ciência, tolerante éaquele que avalia quão dolorosamente pagamos pe-la perda das ilusões, das certezas que atribuímosàqueles que pensamos “crerem””(I. Stenghers).Como vimos, ao considerar a verdade como aquiloque constitui o objeto de uma “crença local”, o relati-vista só é tolerante de um ponto de vista lógico. So-cialmente, é até bastante intolerante, pois não é ca-paz de utilizar argumentos apenas com objetivos depersuasão. Ao transpor-se para o domínio de umateoria social, esquece-se de aplicar a si mesmo suaspróprias premissas. Com muita freqüência, lançamão dos artifícios de dissimulação: toma como solu-ção o que os outros consideram um problema.

Este modo de inverter o problema em soluçãotem muito a ver com o pensamento mágico. Se orelativismo constitui uma espécie de duplicação teóri-ca do que se apresenta como diverso, termina porsubstancializar o diverso imediato e por contribuir,indiretamente, para a emergência das teorias irracio-nalistas que, freqüentemente, desembocam nas

priamente cultural, referi-los aos valores aos quaisefetivamente se referem.

De forma alguma estamos pretendendo ignorarou negar as diferenças de valor que os sujeitos so-ciais atribuem às obras de cultura. Desconhecê-lasseria “operar uma transposição ilegítima (porque in-controlada) do relativismo ao qual se obriga o etnó-logo quando considera culturas pertencentes a so-ciedades diferentes”(Bourdieu). As diferentes cultu-ras de uma sociedade estratificada “são objetiva-mente situadas umas em relação às outras, pois osdiferentes grupos se situam uns em relação aos ou-tros”. Em contrapartida, “a relação entre culturas desociedades diferentes só existe na e pela compa-ração que opera o etnólogo”. Por isso, o resultado aque chega o relativismo integral é o mesmo doalcançado pelo etnocentrismo ético: “em ambos oscasos, o observador substitui a relação que aquelesque ele observa mantêm objetivamente com seusvalores, por sua própria relação com os valores”(Métier de Sociologue, Mouton, 1968, p. 76).

Portanto, uma das principais razões pelas quaisa tese relativista se torna inaceitável, pois insisteem afirmar que todo conhecimento da sociedade,da história, da economia e da cultura é relativo adeterminada perspectiva, orientada para determina-da visão social de mundo, vinculada ao ponto devista de uma classe social e num determinado mo-mento histórico, é que ela conduz necessariamenteà tese cética negando toda possibilidade de umconhecimento social objetivo. A este respeito, éinteressante notarmos como cada classe social inter-pretou, em função de sua visão social de mundo, desua ideologia ou de sua utopia política, a história daRevolução Francesa. Será que todas essas interpre-tações diferentes são igualmente válidas (ou igual-mente falsas)? Seriam idênticas, do ponto de vista

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se referem à mesma realidade, chegaremos à con-clusão: uma teoria afirmando que tudo é indiferen-ciado e que qualquer proposição deve ser valorizadacomo possuindo os mesmos direitos à verdade queas outras, necessariamente desemboca num ceticis-mo mais ou menos niilista. Mesmo que nos disfarce-mos com o rótulo da “contracultura” e reivindique-mos atitudes de espontaneidade, autenticidade ereabilitação das experiências individuais, não noslivramos do risco de abrir as portas a vários dogma-tismos e facilitar a emergência de certo obscurantis-mo mais ou menos dogmático e monista.

Foi por temer esta possibilidade que Gellnerdefendeu ardorosamente (Legitimation of Belief) amanutenção da Grande Demarcação. Podemosentendê-la de dois modos: a) o primeiro consisteem reconhecer que, sendo o mundo moderno funda-do na ciência e em suas aplicações, precisamosdefinir o que constitui a cientificidade da ciência:problema de delimitação; b) o segundo consiste emdeterminar as características do pensamento primiti-vo; procede da convicção de que nossa civilizaçãoé única, diferente das civilizações ditas primitivas.E a razão é a seguinte: nossa civilização industrialmoderna é a única que se distingue absolutamente(não relativamente) das que são diferentes. Quandoa ciência perde seus critérios intrínsecos de verdadee passa a ser considerada apenas como uma práticasocial submetida às mais disparatadas avaliaçõesextracientíficas, sua normatividade passa a ser re-gulada e exercida política e ideologicamente. Poroutro lado, se as teorias científicas dependem unica-mente das necessidades e dos interesses sócio-culturais ou histórico-econômicos, os cientistas setornariam moralmente responsáveis, não somentequando elaboram suas teorias, mas quando seussaberes são aplicados ou utilizados.(16)

mais variadas formas de misticismo. Como? Namedida em que nega a “Grande Demarcação” está,pelo fato mesmo, abrindo o caminho para todos ospossíveis. Porque é justamente essa demarcaçãoque separa a racionalidade científica de todas asdemais formas de saber e que diferencia as socieda-des ditas modernas, guiadas por “razões”, das socie-dades tradicionais.

Sabemos que nossa ciência moderna, ao sepa-rar o homem do universo, passou a descrever a reali-dade com um determinismo rigoroso e objetivo, deleretirando leis baseadas na reprodutibilidade dosfenômenos. No entanto, para compreendermos omundo nos dias de hoje, tanto de ponto de vistacosmológico quanto do subatômico, cada vez menospodemos separar o homem do universo ou o “siste-ma-homem” dos outros sistemas. O homem aparececomo o ponto de junção entre a realidade visível docosmos, submetido às leis determinantes da macrofí-sica, e o campo quântico revelando uma verdadeiraespontaneidade da matéria (se é que podemos falarassim). De tal forma que aparece como a interfaceentre essas duas escalas de grandeza. Não é poracaso que a ciência atual constata uma interdepen-dência universal dos sistemas entre si, na qual ohomem se encontra incluído.

O que devemos responder ao relativismo epis-temológico não somente negando toda validade àGrande Demarcação, mas afirmando que a verdadecientífica não passa de ilusão e que nossas socie-dades não diferem das sociedades mágicas pois,em ambas, realizam-se práticas sociais múltiplas eindiferenciadas? Os “demarcacionistas” não se limi-tam a pensar que a ciência constitui uma culturaradicalmente distinta: nem mesmo a consideramuma cultura. Se não podemos mais reconhecer umaciência das outras formas de saber e de ação que

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como autoridade educativa; c) o uso dos expertsnas questões sociais e políticas. De um modo geral,sua crítica se limita a convidar todos nós à vigilânciae a nos mostrarmos céticos face à crença de que aciência tem sempre razão, quer dizer, a não maisacreditarmos no sonho baconiano de uma total orga-nização racional da sociedade garantida pelas ciên-cias naturais. No fundo, trata-se muito mais de umadisputa de território que de uma divergência profundasobre as formas e o valor do saber.(17)

7. Nos dias de hoje, o etnocentrismo, estacentração dos indivíduos em sua etnia, precisa sercriticado. Porque designa a atitude que repudia todasas formas culturais (morais, religiosas, estéticas,sociais) diferentes daquelas com as quais nos identi-ficamos. Repousando em sólidas bases psicológicas(“minha cultura é a melhor”), essa atitude se revelaparticularmente perigosa e intolerante quando se põea negar o direito do outro à diferença. Com isso,pode mesmo chegar ao racismo, ao genocídio (exter-minação sistemática de populações humanas) ouao etnocídio (destruição da identidade cultural deum grupo étnico). Em 1985, ao elaborar um relatóriopretendendo traçar as diretrizes da escola e o ensinodo futuro (Propositions pour l’Enseignement deDemain), o Collège de France proclama, no primeirodos dez princípios, a unidade da ciência e a plura-lidade das culturas. O objetivo visado é a construçãode um ensino harmonioso suscetível de conciliar ouniversalismo inerente ao pensamento científico eo relativismo que ensinam as ciências humanas emgeral, “preocupadas com a pluralidade dos modosde vida, das sabedorias e das sensibilidades cul-turais”.

Mas por que as ciências humanas são respon-sabilizadas pelo relativismo? Em primeiro lugar, por-que levam em conta o que é arbitrário em nosso

Ao criticar a racionalidade científica e o princípiodemarcatório, o relativismo corre o risco de instauraruma verdadeira confusão dos saberes. Porque osproblemas da demarcação da ciência e o da defini-ção da mentalidade primitiva constituem um único emesmo problema. Só há uma Grande Demarcação.Ao descrever o avanço do conhecimento como umaespécie de caos pragmático ou de enfrentamentode interesses, o relativista chega à conclusão de quenão existe nenhum método científico digno dessenome. Donde ser extremamente fácil se passardesse tipo de descrição à idéia segundo a qual nãodevem existir distinções claras a serem estabeleci-das entre os “sistemas de crenças” e os “sistemasde conhecimento”, entre a ciência e as superstições.Para os racionalistas, esta tomada de posição, nãosomente desacredita o espírito científico, mas abreas portas a todos os tipos de “obscurantismo”, à gra-fologia, à astrologia, ao fanatismo religioso e político.Numa palavra, abre as portas a certo irracionalismo:não tanto ao irracionalismo científico ou direto, quan-do os físicos extrapolam sobre a possibilidade dese viajar através do tempo, mas ao irracionalismoepistemológico ou sociológico (indireto), autorizandouma anulação progressiva dos limites da cientifici-dade e postulando uma desqualificação do teórico.

Deste ponto de vista, é possível que os raciona-listas atribuam à ciência um poder que ela nãopossui. Mas não resta dúvida que muitos se confor-mam com causas espiritualistas e com certas práti-cas heterodoxas. Isto não quer dizer que os relati-vistas adotem uma posição anticiência. Nos anos1970, criticaram o compromisso dos cientistas como complexo militar-industrial e o uso militar da ciên-cia. Nos dias de hoje, põem em questão seu usosocial, notadamente sobre três pontos: a) a respon-sabilidade do homem face à natureza; b) a ciência

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estariam transferindo a universalidade da religiãopara a cultura? Não estariam delegando à ciência oprivilégio de universalidade outrora reservado à Pala-vra divina? A este respeito, são esclarecedoras aspalavras de M. Kundera: “quando o Deus medievalse transformou em Deus absconditus, a religião ce-deu o lugar à cultura que se tornou a realização dosvalores supremos pelos quais a humanidade euro-péia se comprazia, se definia e se identificava”. Euma vez Deus eclipsado, o que pregam os racionalis-tas ocidentais? Que as Luzes representam o triunfoinconteste da Razão nos domínios das ciências, dasartes e das técnicas que podemos colocar a serviçodo Progresso e da felicidade da humanidade; pre-gam a universalidade das Luzes da Ciência, o com-pleto desenraizamento da Razão, o livre exercíciodo entendimento, a unidade do gênero humano e aderrota dos particularismos. A este respeito, sãosignificativas as palavras do filósofo lituano Lévinas.Ao emigrar para a França (1923), abre seu coração:“Optei por este país porque é um país onde o apegoàs formas culturais parece equivaler ao apego àterra. Seu patrimônio é composto de valores ofereci-dos à inteligência e ao pensamento universais doshomens”. No fundo, este ardoroso ideal universalistanada mais faz que ocultar certa arrogância naciona-lista ou chauvinista, na medida em que define o paísque lhe deu abrigo (por extensão, a Europa) por suacultura.

8. Ao renunciar ao europeucentrismo e aocriticar o etnocentrismo, precisamos tomar todas asprecauções para não cairmos num relativismo sus-cetível de desembocar numa forma de irraciona-lismo. Porque no momento em que a ciência, repen-sada pelos relativistas, aparece apenas como uma“bricolagem”, como um conjunto de ações oportunis-tas ligadas a idiossincrasias locais, como uma lógica

sistema simbólico; em seguida, porque mostram ahistoricidade de nossos valores; em terceiro, porqueestudam as obras e os autores em seu contexto,impedindo-nos de conformar o mundo à nossa ima-gem; em quarto, porque consideram o “europeu”,não mais como uma missão ou um motivo de orgu-lho, mas como um simples sistema de vida e depensamento entre outros, não ousando mais afirmaras idiossincrasias particulares ao nível da universali-dade; enfim, por não identificarem uma “província”com o mundo, tampouco um momento histórico coma eternidade, jamais tomam a diferença por um valorabsoluto, posto não acreditarem na existência deum universal concreto ao lado do universal abs-trato.(18)

Evidentemente que não podemos mais aceitara visão etnocêntrica da humanidade, fazendo da Eu-ropa a sociedade que se encontra na origem detodas as descobertas e de todos os progressos, querdizer, a sociedade-modelo-de-referência para se jul-gar as outras sociedades ou demais povos. Contudo,ao proclamar a pluralidade das culturas e ao respon-sabilizar as ciências humanas pelo relativismo, os“sábios” do Collège de France, bastante fiéis ao espí-rito do velho colonialismo, proclamam mais ou menosdogmaticamente a universalidade da Ciência, ex-cluindo-a por completo da chamada “lei” da relativi-dade. Ao adotar tal postura, procedem à maneirade Goethe em sua tentativa romântica de convenceros homens de seu tempo da impossibilidade deexistir uma arte ou uma ciência patrióticas, postoque “tanto a arte quanto a ciência (como tudo o queé bem) pertencem ao mundo”.

Cento e cinqüenta anos mais tarde, o que dizemnossos “sábios”? Continuam a reservar à Ciência oprivilégio de emancipar-se por completo de suas con-dições históricas e culturais. Assim procedendo, não

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plural e ao reconhecimento do seguinte fato: associedades só existem instituídas politicamente”(Caillé, op. cit., p. 220).

A fim de negar a universalidade dos Direitosdo homem, os relativistas utilizam argumentos denatureza histórica, geográfica, etnográfica e socioló-gica. Grosso modo, sua tese consiste em afirmar:há uma pluralidade de culturas, mas não existenenhum critério objetivo permitindo-nos afirmar asuperioridade de uma sobre as demais. E quanto àtese da possível universalidade dos Direitos do ho-mem, dela retiram duas conseqüências: a) ao defi-nirem uma cultura (a ocidental), não podem ser invo-cados para julgar ou criticar certos aspetos de outrasculturas; b) as práticas não-ocidentais (usos, cos-tumes, ritos, etc.) devem ser justificadas no interiormesmo de uma cultura possuindo sua coerência pró-pria. Por isso, em nome da recusa do etnocentrismo,não temos o direito de julgar. E a compreensão douniverso cultural em questão constitui, para nós, aadoção de uma atitude de profunda tolerância. Namedida em que não tenho o direito de atribuirnenhum valor absoluto à minha própria tradição, souobrigado a aceitar todas as culturas e a respeitarsuas reais diferenças. Deste ponto de vista, as ciên-cias humanas (história, sociologia, etnologia, etc.),mesmo permitindo-nos tomar consciência da relativi-dade das culturas, deveriam fazer um esforço parapromover a autonomia e a coexistência pacífica dosindivíduos.

Apesar da força desse argumento, continua-mos ainda admitindo que somente a ciência é uni-versal e que a tolerância e a aceitação das diferençasconstituem os dois únicos valores morais aceitáveis.Nenhum outro critério poderia ser invocado parapermitir-nos escolher entre os diferentes modos deviver. Porque não haveria nenhum outro meio

contextualista situacional fazendo do método cientí-fico um método qualquer ou dissolvendo a racionali-dade científica, qualquer tipo de investigação ou deraciocínio pode ser usado sem nenhuma contra-indi-cação científica. A partir do momento em que a no-ção de cientificidade é identificada e substituída pelade cultura x, que defendemos o fato social total, ofato humano total, a ciência tanto pode produzir asformalizações mais estritas quanto as extrapolaçõesmísticas. Ademais, precisamos reconhecer que ademocracia, em sua essência, não é apenas umadescoberta, mas uma invenção ocidental. Nestascondições, dificilmente pode ser negada a universali-dade dos Direitos do homem, por exemplo. Ora, umavez postulada a universalidade dessa “pulsão demo-crática”, teremos condições de escapar da seguintealternativa: ou não temos o direito de julgar, em nomeda equivalência de todas as crenças e instituições,ou devemos julgar, de modo unilateral, afirmando ainferioridade de todas as culturas relativamente ànossa (ocidental).

Mas novamente estamos diante da questão:sobre o quê se funda o processo de globalização?A resposta de Max Weber nos parece insatisfatória:precisamos reconhecer a existência de valoresúltimos que não se fundam na razão, porque a demo-cracia comporta dosagens diferentes de igualdade,liberdade e comunidade. Nem todos os “valores últi-mos” são, pelo fato mesmo de serem últimos, aceitá-veis. Só são aceitáveis os que forem capazes de,tendencialmente, desembocar na constituição deuma sociedade democrática em escala planetária.Tais valores últimos, evitando um universalismo de-masiado abstrato e os particularismos excessiva-mente concretos, precisam inspirar “um universalis-mo relativista”, vale dizer, “um universalismo queseria coextensivo à aspiração por uma democracia

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concretamente irrealizáveis. E quanto aos Direitosdo homem, fundam-se justamente nessa certeza daliberdade e no dever de se preservá-la. Como osdireitos do cidadão e a relatividade das culturas nãose situam no mesmo plano, nosso modo de ver com-porta sempre algo de arbitrário: nenhum princípiode ordem lógica ou biológica tem o direito de impor-nos tal “arbitrário” como o único modo de viver, postoque seria um absurdo admitirmos que somentenossos modos de viver, pensar, trabalhar, consumir,etc. podem vangloriar-se de ser humanos, livres esensatos.

Nem todos os princípios de juízo, fundados norespeito da pessoa humana, devem ser colocadosno mesmo plano, pois deles nos servimos para julgarnosso próprio modo de viver. O fundamento maisradical dos direitos do cidadão deve ser buscado norespeito incondicional à pessoa. O fato de haver regi-mes e Estados diferentes de forma alguma invalidaa aceitação desses princípios gerais como princípiosde uma ética universal, mesmo que, aqui e ali,possam eventualmente ser criticados. Enquanto prin-cípios de avaliação crítica, nada nos prometem.Apenas permitem-nos determinar o que é inaceitávele inadmissível. Não nos propõem nenhum programade ação. Apenas nos fornecem critérios permitindo-nos fazer um juízo e denunciar o ética e humana-mente inadmissível. Apesar da diversidade das civili-zações, a Declaração Universal (1948) foi aceita porpraticamente todos os Estados: celebraram, pelomenos, um acordo formal admitindo a possibilidadede uma ética universal suscetível de fornecer osprincípios formais permitindo que as culturas possamser julgadas.

Segundo a visão tradicional ou racionalista daobjetividade da ciência, os méritos de uma teoriacientífica são independentes de todos os condiciona-

permitindo-nos julgar ou recusar qualquer coisa. Sea tolerância não deve ser entendida apenas em seusentido primitivo (século XVI: guerras de religião)de indiferença à verdade dos dogmas religiosos erespeito às doutrinas hereges, mas como a disposi-ção do espírito permitindo a todo indivíduo ou grupoa liberdade de exprimir suas opiniões ou de vivercom hábitos com os quais não partilhamos, surge aquestão: devemos tolerar e aceitar qualquer sistemapolítico, mesmo o que se opõe frontal e radicalmenteaos direitos do cidadão? Em outras palavras: deve-ríamos adotar a mesma atitude diante do nazismo,da democracia, dos integrismos religiosos e dos fun-damentalismos? Todos esses regimes se equi-valeriam?

Claro que não temos condições de provar racio-nal e objetivamente (cientificamente) que a liberda-de, a autonomia e o respeito da pessoa humanaconstituem valores universais e que, por isso mesmo,transcendem as diferentes culturas. Tampouco aciência é capaz de demonstrar a veracidade do relati-vismo. As ciências humanas (sociologia, etnografia,etc.) não põem em dúvida a existência de normas(por exemplo, a objetividade e a universalidade dodiscurso científico) capazes de “transcender” as cul-turas. Afirmam que a objetividade não é total e quea liberdade do pesquisador é sócioculturalmente de-terminada. Mas esses condicionamentos não anu-lam a existência de certas “normas transcendentes”,pois não se definem como um fato, mas tão-somentecomo um ideal a ser constantemente buscado econstruído.

Por outro lado, contra uma exigência de liber-dade, as ciências humanas nada têm a demonstrar.Fundam-se na certeza indemonstrável da possibili-dade mesma da liberdade e da universalidade, mes-mo que se apresentem sob formas imperfeitas e

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mente o rejeita em bloco; ou como Lakatos que,em nome de sua metodologia dos programas depesquisa científica, instaura uma cruzada contra omarxismo, como se fosse apenas uma “poluiçãointelectual”.(19) A este respeito, a posição maissensata consiste em dizer: se devemos nos pronun-ciar sobre esta ou aquela versão do marxismo, deve-ríamos nos interrogar sobre seus objetivos, procurarsaber se conseguiu alcançá-los ou não e conheceros fatores que agiram em seu desenvolvimento.Somente então, teremos condições de avaliar seaquilo para o qual tal visão foi concebida é ou nãodesejável; e avaliar até que ponto seus métodos lhepermitem atingir seus objetivos bem como julgar osinteresses aos quais ela serve.

Por isso, podemos afirmar: não é verdade quetodo ponto de vista seja tão bom quanto um outro. Amelhor maneira de proceder, para dispormos dosmeios de transformar determinada situação (de umramo do saber ou de um aspeto da sociedade) con-siste em apreendermos tal situação e dominar osmeios de sua transformação. Como esta ação deveser feita por cooperação, claro que a política do “tudoé bom” deve ser rejeitada, pois nos leva à impotên-cia. “Tudo é bom” significa, na prática, “tudo semantém”. Se as verdades científicas são verdadescom responsabilidade limitada, o critério popperianopõe em jogo a responsabilidade dos que as profe-rem. A refutabilidade se define como uma espéciede contrato social garantindo a livre circulação dopensamento. Em outras palavras, a comprovaçãode uma teoria científica é um processo de comunica-ção, um meio de partilharmos visões do mundo. Aoproclamar que “o mundo científico é nossa verifica-ção”, Bachelard enfatiza a dimensão essencialmentesocial da prova e nos garante que cada um de nóspode, pelo menos em princípio, refazer as experiên-

mentos de classe social, de raça, de sexo ou dequalquer outra característica dos indivíduos ou gru-pos. Porque a evolução e a avaliação da ciêncianão dependem de nenhuma explicação social. Aocontrário, segundo a visão dos relativistas, se as leiscientíficas são protegidas e estabilizadas, elas o são,não por razões internas à própria ciência, mas emrazão de sua utilidade suposta para fins de justifica-ção, legitimação ou controle social. Uma das conse-qüências da crítica da racionalidade é que ela conduzà confusão dos saberes. Descrever o avanço do co-nhecimento como uma espécie de caos pragmáticopode levar-nos a crer que não existe nenhum métodocientífico digno desse nome. Facilmente podemospassar dessa descrição à idéia segundo a qual nãotêm razão de ser as distinções cuidadosamente esta-belecidas entre os “sistemas de crenças” e os “siste-mas de conhecimento”, entre a ciência e as supersti-ções.

Claro que não há um critério absoluto permi-tindo-nos avaliar ou julgar as teorias. Tampouco exis-te a categoria geral “ciência” ou um conceito de ver-dade cuja busca seria seu objetivo. Cada domíniodo saber deve ser julgado segundo seus própriosméritos e interrogar sobre seus próprios objetivos.Ademais, os juízos dizendo respeito a esses objeti-vos são relativos a determinada situação social. Por-que não existe uma concepção universal e eternada ciência ou de seu método podendo estar a serviçode seus objetivos. Não dispomos de nenhum meiopara atingir esse estádio. E nada nos autoriza a acei-tar ou a rejeitar um conhecimento pela simples razãode conformar-se ou não com determinado critériode cientificidade. Se, por exemplo, tivermos que nospronunciar sobre o marxismo, não devemos pro-ceder como Popper que, a pretexto de não se confor-mar com sua metodologia falsificacionista, simples-

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racionalidade interna que seria transparente. Porqueresulta também das lutas de influências e de relaçõesde forças sociais. Todo o problema consiste em cons-truirmos uma ponte entre certo realismo científicoingênuo, acreditando na manifestação da verdadeuna e inelutável e o ceticismo niilista, acreditandoque tudo se equivale, “tudo é bom” e que a Verdadesó pode ser a verdade dos poderosos de plantão.

Contrariamente aos relativistas, afirmando quea ciência não tem direito a nenhuma pretensão auma verdade universal, porque, como qualquer outraforma de saber, constitui um simples produto da so-ciedade onde foi elaborada, e nada mais exprimindosenão o resultado de conflitos de interesses e derelações de força que caracteriza tal sociedade, pre-cisamos afirmar uma esfera relativamente autônomado “verdadeiro”, de uma Verdade como objeto deuma aspiração e de uma busca necessariamenteindefinida. Por outro lado, não podemos renunciarcompletamente a uma reflexão global sobre oconteúdo do conhecimento e sobre seus critériosde verdade. Porque tal reflexão nos conduz a umavisão unitária das coisas, na qual o “verdadeiro” nãotem condições de subsistir separado do que efetiva-mente existe. Toda análise sobre a questão do real,mas conduzindo ao relativismo, constitui um desafioao poder de nosso conhecimento.

Porque a crença numa verdade global e unifica-dora funciona como o fundamento mesmo do con-senso social. Enquanto tal, prescinde de fundação.No plano da ciência, por exemplo, funciona por des-locamento: a eficácia técnica serve de fundamentoà crença na verdade de seus resultados; e o êxitotécnico, no domínio material, constitui a “prova” daveracidade de seu método. Mesmo quando aplicadoa outros objetos, o método científico constitui umagarantia de “verdade”, não somente das teorias, mas

cias anunciadas, comprovar as conseqüências dasnovas e partilhar o mesmo pensamento. Portanto,verificar não significa tanto tornar verdadeiro, mastornar partilhável, socializar.

Nessas condições, se o relativismo nos pareceinaceitável, é porque, em sua tentativa de dissolvera questão da “verdade” e da “realidade”, transforma-se em ceticismo e passa a adotar uma atitude dedúvida permanente e universal e a negar a possibili-dade de podermos conhecer algo com certeza. Senão nos resignamos a tal postura, é porque, apesarde tudo, continuamos acreditando que a ciência senos apresenta como um saber muito mais “verdadei-ro” que as crenças supersticiosas e que inúmerasoutras formas de “conhecimento”. Para além de to-das as mudanças, o empreendimento científico con-serva sua coerência profunda. Seu rumo fundamen-tal sempre foi e continua sendo a evolução das idéiasessenciais. Mesmo que julguemos essa formulaçãoum pouco exagerada, é menos extravagante queas profecias apocalípticas dos que anunciam regular-mente a crise da Razão e o fim do Saber Objetivo.Se há crise, não é tanto de racionalidade: somosmuito mais ameaçados pela bomba atômica, pelouso abusivo das manipulações genéticas, etc. quepela implosão do racionalismo. O processo da inven-ção científica não se encontra em perigo, mas ahumanidade sim.

Ademais, o relativismo freqüentemente resvalapara certo idealismo desencarnado, na medida emque faz apelo à existência de realidades fora do co-nhecimento que possamos ter delas. O conheci-mento científico é condicionado por outros interessesque não os da própria razão. De forma alguma cons-titui um saber puro e desencarnado, em progressoconstante para a descoberta desinteressada da Ver-dade sobre o universo e obedecendo apenas a uma

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projeto, como nos lembra Wittgenstein, no interiorde regras estabelecendo o jogo no qual pode havererro. Para que uma proposição seja falsa, ainda épreciso que não seja absurda, que respeite as regrasde formação da linguagem na qual é enunciada eas regras do jogo constituídas pelo uso da lingua-gem: “Quando nenhum erro é possível, é porque apossibilidade de erro não faz parte da regra do jogo.Numa partida de xadrez, distinguimos os bons e osmaus deslocamentos de peças. Consideramos umerro expor a rainha a ser tomada por um cavalo;mas que possamos confundir um pião com o rei,isto não pode constituir um erro” (Le Cahier Bleu).

O pensamento ocidental tem sido acusado deser bastante dualista, dicotômico ou esquizofrênico.No entanto, essa dicotomia não é consubstancial àRazão, mas tão-somente à sua representação par-ticular, o racionalismo. Em economia política, sãodicotômicas as oposições entre valor de uso e valorde troca; na lingüística, entre significante e significa-do; na sociologia, entre natureza e social, entremeios e fins, etc. Sem falarmos da dicotomia quetemos utilizado entre pensamento ocidental e pen-samento oriental. Todos esses rótulos, não muitoadequados, remetem a conjuntos bem mais amplos,difusos e heterogêneos e a longos períodos de tem-po. O Oriente possui escolas de pensamento racio-nalistas e dicotomizantes. Por sua vez, o Ocidentenão é necessariamente dicotômico. No longo prazo,o que marca a especificidade dominante de cadauma dessas culturas é, no Ocidente, a referênciapermanente ao “princípio de razão” e, no Oriente, abusca constante da não-dualidade. Enquanto nestaparte do mundo a verdade, por ser eminentementenão-discursiva, reside para além das categorias doentendimento, na outra, embora seja essencialmentediscursiva e também pretender ultrapassar as

das crenças que podem induzir. O resultado dessedeslocamento é uma “crença que se acredita verda-deira, isto é, uma visão do mundo na qual se crêporque se tem razão para acreditá-la verdadeira(cientificamente), ao invés das ilusões do mito e dareligião. Para Freud, é a razão que vai dissipar asilusões da religião, sem que precisemos, em seguida,dissipar as ilusões da razão” (H. Atlan, A Tort et àRaison, Seuil, 1986, p. 200).

Veremos que todos nós buscamos a Verdade.Mas não devemos vê-la nem como uma realidademetafísica nem tampouco como um puro e simplesser epistemológico. Limitando-nos, no momento, àchamada “verdade científica”, diríamos que, a seurespeito, o grande erro consiste em considerá-la co-mo algo caído do céu, e não como um produto terre-no e humano. Nas verdades das “sabedorias tradi-cionais” ou reveladas, não há lugar, pelo menos emprincípio, para a crítica, posto que facilmente se con-vertem em dogmas nos quais tudo é dado de umavez. Em contrapartida, o método científico, até porseu caráter de construção progressiva, deve sem-pre estar aberto à crítica, nenhum cientista deven-do cair na tentação de repouso na contemplação desuas verdades. Claro que há certas cosmogoniascientíficas acreditando, com o objetivo de desemba-raçar-se das ilusões e dos erros das falsas crençasdo passado, na possibilidade de uma Verdade sobrea Realidade Última das coisas. Assim procedendo,devem ser chamadas às falas: os filósofos e episte-mólogos aí estão para lembrar-lhes que toda teoriacientífica é portadora apenas de uma função opera-cional e provisória num contexto limitado pelastécnicas e linguagens utilizadas.

Ora, se a busca da Verdade nada mais é que abusca das possibilidades de erros que precisamoseliminar, diremos que só podemos realizar esse

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cias individuais (místicas, artísticas, religiosas, etc.),as mais variadas e injustificáveis formas de obscu-rantismo. Porque, levado às suas últimas conse-qüências, o relativismo termina por justificar, no quediz respeito às implicações sociais e éticas do sa-ber, certa atitude ou ideologia fazendo a apologiado wishfull thinking (tomar seus desejos por reali-dades) como o método privilegiado de escolha naspesquisas. Ao conferir um estatuto quase emotivoao termo “ciência”, o relativismo também lhe atribuium valor de certeza quase ético. Claro que podemosaderir a esse valor. Mas é tão-somente no domínioda convicção. Quando a história e a sociologia sedistanciam da epistemologia racionalista, sabem quese trata apenas de um modelo ideal de ciência, emgeral encarnado nas grandes teorias físicas deGalileu, Newton, Einstein... Mas há outras ciências,indo da biologia à psicologia, que não partilham ne-cessariamente os mesmos métodos. Se queremosfalar da ciência, precisamos saber onde ela pára. Esobre este ponto, ninguém está de acordo. Por isso,seria melhor admitirmos que existem ciências e quevariadas são suas modalidades de realização.

Quanto ao relativismo, diremos que, ao elevar-se a uma postura filosófica, esbarra sempre em difi-culdades insuperáveis. Com efeito, é bastante limita-da a posição de alguém que, por um motivo ou outro,ou que, por uma questão de “suspensão de crença”,deixa o terreno do comentário e penetra no domíniodas responsabilidades históricas, políticas ou jurídi-cas. O recurso crescente dos tribunais ou dos gover-nos às perícias científicas constitui um notável exem-plo de terreno onde as práticas sociais freqüente-mente confinam com as preocupações dos sociólo-gos das ciências. Em certos países, constata N.Journet, “os experts citados nos tribunais não sãochamados apenas a fornecer seus resultados: po-

categorias do entendimento, não abre mão dosimbólico e da História. O pensamento ocidental,com a ambição prometéica que confere às ciências,apropria-se da verdade no plano da dualidade, sótornando-a acessível ao pensamento dicotômico.

O homem moderno sempre demonstrou grandeobsessão por este grito de vitória: “Nós, os ociden-tais, somos totalmente diferentes dos outros”. O quesignifica esta Grande Partilha entre “Nós” e os“Outros”? Nada mais que a seguinte oposição: deum lado, a Cultura, do outro, as culturas. No cernedessa questão encontra-se a ciência. Como os ou-tros, os ocidentais praticam o comércio, conquistam,pilham, exploram, etc. Mas temos algo de especial:inventamos a ciência, esta atividade completamentedistinta da conquista, da política, do comércio e damoral, mas que nos permite instaurar uma diferençaradical entre Natureza e Cultura, entre Saber e So-ciedade. Quanto aos “outros”, não conseguem sepa-rar o que é verdadeiramente conhecimento e o queé sociedade, o que é signo e o que é coisa, o quesão as palavras e o que são as coisas. Ao fazeremtal confusão, ficam prisioneiros do social e da lingua-gem. Nós, não, graças ao conhecimento científico,já nos libertamos da prisão do social e da linguageme, por isso, temos acesso às coisas mesmas. A pre-tensão dessa barreira, instaurada pela Grande De-marcação, é a de erigir a Ciência como o único sa-ber capaz de fornecer o quadro universal onde aVerdade se manifestaria, as demais formas de sa-ber constituindo apenas aproximações balbuciantese ilusórias.

Por outro lado, o grande risco do relativismoradical é o de converter-se num ceticismo niilista de-fendendo o “tudo é bom” freqüentemente condu-zindo, a pretexto de valorização dos mais diversos“espontaneísmos” ou de reabilitação das experiên-

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E quando as duas perspectivas se combinam,surge a possibilidade de um obscurantismo dogmáti-co e monista. Porque, quando se despoja a ciênciade critérios intrínsecos de verdade, abre-se o espaçopara ser preenchido por critérios extracientíficos, on-de a normatividade será exercida política e ideologi-camente. De um ponto de vista ético, se uma teoriacientífica é totalmente dependente de necessidadese interesses extracientíficos, a responsabilidade mo-ral do cientista não diz respeito apenas às aplicaçõesde seu saber, mas também à elaboração de suasteorias. Como os relativistas se situam, na maioriadas vezes, nos confins ou no exterior do empreendi-mento científico, na esperança de poder gozar deum acesso privilegiado à verdade, cujo estatutopermanece indeterminado, surge a questão: de quemodo podemos integrar o relativismo no seio mesmoda demarche da ciência, uma vez que esta não sereduz ao cientificismo? Em que medida pode ali-mentar o também movimento da razão, nada tendoa ver com o racionalismo? Podemos colocar emdúvida a certeza da superioridade do Ocidente sobretodas as outras culturas sem renunciarmos, ao mes-mo tempo, ao projeto democrático?

A ciência moderna, ao retomar o antigo projetode Platão, criou uma relação com a verdade emnome da qual todos os sofistas devem ser expulsosda cidade. Como nos lembra Latour, “se os ociden-tais tivessem se limitado a comerciar ou conquistar,a pilhar e a subjugar, não se distinguiriam radical-mente dos outros comerciantes e conquistadores.Mas eis que inventaram a ciência, atividade total-mente distinta da conquista e do comércio, da políticae da moral” (Nous n’Avons Jamais été Modernes,La Découverte, 1991). Com isto, quer nos dizer duascoisas: a) não declara que a ciência constitui “umaatividade inteiramente distinta”, mas questiona a

dem ser submetidos, pela parte adversa, a um inter-rogatório completo sobre todas as etapas de suaargumentação. Esta regressão às fontes do sabertermina por chegar a um termo: enfim, o juiz devedecidir. O mesmo ocorre quando se julga as ques-tões de patente, de sangue contaminado ou de vacalouca. Uma das coerções da vida social é a de terque tomar decisões em função de convicções. Semdúvida é frutuoso e útil, para o sociólogo, suspendersua crença; todavia, a menos que mantenha umamissão contemplativa, um dia ou outro ele é levadoa pesar as conseqüências de seu propósito” (Sci-ences Humaines, n. 67, dezembro de 1996, p. 35).

Neste ponto da discussão, gostaria de insistirna seguinte questão: ao negar peremptoriamente a“Grande Demarcação”, conhecida pelo nome inglêsde Great Divide, o relativismo (epistemológico e so-ciológico) pode conduzir a certo irracionalismo e,mesmo, às correntes místicas. Na medida em quetenta abolir as fronteiras da validade teórica, duassoluções são possíveis, no caso das ciências huma-nas e sociais: a) ou deslocamos o limite da GrandeDemarcação e, neste caso, não passaria mais en-tre o científico e o não-científico, mas entre asociologia e as demais ciências, cabendo a umaantropologia social desempenhar o papel de ummeta-saber isento do método crítico que ela aplicaàs outras, como se fosse capaz de desempenharuma função unificadora; b) ou relativisamos a teoriasocial do próprio saber e, neste caso, tal relativismocorre o risco de desembocar num ceticismo niilistaonde tudo seria indiferenciado e qualquer proposiçãoseria valorizada como tendo os mesmos direitos queas demais. Neste caso, sob a forma de “contracultu-ra”, de espontaneísmo ou de reabilitação da expe-riência individual, correríamos o risco de justificaros mais perigosos dogmatismos.

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história humana, faz-nos lembrar do dilema do Pe-queno Príncipe de Saint-Exupéry tentando descobrira existência de milhares de rosas semelhantes à“sua”: só depois de certo tempo ele aceita que oimportante não se encontra numa propriedade intrín-seca especial que possuiria sua rosa, mas na relaçãohistórica, concreta e única que mantém com “sua”rosa.

O que nos parece intrigante é que, tanto doponto de vista filosófico quanto do antropológico, odebate sobre o racionalismo e o relativismo vem selimitando a estabelecer uma comparação entre osocidentais e os “outros”, como se não pudessem terboas “razões” para admitir suas crenças, como seapenas os racionalistas pudessem ser racionais ou,então, que todas as culturas devessem ser igualmen-te racionais. A grande insuficiência dessas trêshipóteses: uma verdade única, não há verdade etudo é verdadeiro, é que neutralizam e desqualificamtoda interrogação e estancam a atividade mesmado pensamento.Lembremos que a filosofia nasceconsubstancialmente vinculada à idéia de uma buscada verdade e de um questionamento de tudo o queestava estabelecido como representação, ignorandoos limites geográficos, de raça, língua e comunidadepolítica.(19a)

Num artigo recente, “Universalisme et Tri Éco-nomique” (Diogène, 173, 1996), o filósofo americanoRorty, ao recusar toda forma de universalismo,proclama que o conceito de “universal” nada maisé que uma “invenção dos ricos”, vale dizer, o resul-tado do sonho de abastados dispondo de tempo ede muita imaginação para se acreditarem responsá-veis pela humanidade. Precisamos pensar “umaética sem obrigações universais” (L’Espoir au Lieudu Savoir, 3a parte). Somos solidários apenas denosso grupo, embora uma evolução futura da

crença permitindo-nos, a nós ocidentais, acreditarque sejamos tão diferentes assim dos outros povos;b) explicita que nossa crença na ciência como “intei-ramente distinta” constitui uma temível arma garan-tindo-nos um acesso privilegiado e diferente ao mun-do e à verdade. Claro que qualquer povo pode seconsiderar diferente dos outros. Todavia, como ob-serva pertinentemente I. Stenghers: “nossa crençanos permite ao mesmo tempo definir os outros comointeressantes e como previamente condenados emnome da terrível diferenciação de que somos vetoresentre o que pertence à ordem da ciência e o quepertence à ordem da cultura, entre objetividade eficções subjetivas. Por isso, precisaríamos inventarum antídoto à crença que nos torna temíveis, a quedefine verdade e ficção em termos de oposição, emtermos do poder que tem uma de destruir a outra,crença mais antiga que a invenção das ciênciasmodernas, mas da qual esta invenção constituiu umrecomeço”(L’Invention des Sciences Modernes, op.cit., p. 185).

Se é verdade que, para deixarmos o terrenodo racionalismo, precisamos abandonar a idéia se-gundo a qual só seria efetivamente universal a inter-pretação particular que o Ocidente se dá do univer-sal, também é verdade que, se não queremos de-fender uma teoria relativista, precisamos renunciarao parti pris de impotência teórica e ética levando-nos a afirmar que toda crença é tão plausível quantoqualquer outra ou que tudo se equivale de um pontode vista ético. O que implica essa dupla renúncia?Que nos desembaracemos da hipótese implícita,postulando que só existe uma verdade (a nossa) ouque não existe nenhuma verdade impondo-se comoobjetiva ou universal. Esta dificuldade de crermosque o essencial pode não residir numa racionalidadeou numa objetividade absoluta, mas no relativo da

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Observemos que esse pragmatismo relativista,ao pregar uma “ética sem obrigações universais”,parece desconhecer a natureza mesma do univer-sal. Confunde a referência ao universal com umaaceitação ingênua de uma natureza humana idênticaa si mesma através das épocas, de uma essênciado homem bem conhecida e perfeitamente identificá-vel. Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filóso-fos do passado, Rorty não se dá conta de que, pelomenos depois de Kant, não podemos mais confundiro conceito de universal com a dedução de uma teoriacompleta do homem nem com a conseqüência doconhecimento perfeitamente garantido de umaessência humana. Porque o universal se afirma,antes de tudo, como um movimento, como um dina-mismo, como uma universalização do que cada umé e como a abertura para o outro. Sem ele, não tenhocondições de compreender-me a mim mesmo, inti-mamente ligado ao singular, um não podendo serapreendido sem o outro. O exemplo da linguagem éilustrativo: diferentemente de uma língua sempreparticular, a linguagem é um fenômeno humano irre-dutível a um grupo. Ninguém consegue se exprimir,no que tem de mais íntimo, sem passar por estamediação universalizante. E o que faz o próprioRorty, senão empenhar-se em difundir seus própriosvalores a outras culturas e a outros homens diferen-tes dele, aos quais tenta comunicar uma verdade?Ao fazer isto, contradiz ao mesmo tempo seu exclusi-vismo cultural e seu relativismo. Mesmo que a idéiade universal possa revelar-se travestida, mal com-preendida e repleta de ambigüidades, nem por issosignifica que perca todo sentido e não constitua oindício da seguinte realidade existencial: todos parti-cipamos de uma comum humanidade e todos osnossos “nós” particulares encontram-se comprometi-dos com a mesma aventura comum.(20)

humanidade possa ampliar nosso grupo ao grupohumano como tal. Mas esta esperança ainda é utópi-ca. Devemos proscrever a expressão “nós, o povodas Nações unidas”, enquanto remete a “uma comu-nidade moral, a uma comunidade que poderíamosidentificar com a espécie humana”. Referir-se aouniversal seria postular que existe sempre e em todaparte uma identidade humana perfeitamente defi-nida.

Se, do ponto de vista epistemológico, o relativis-mo culturalista concebe a ciência como um valorequivalente aos outros, vale dizer, relativo a determi-nada cultura, não resta dúvida que passa a defendera idéia segundo a qual o reino da racionalidade cien-tífica nada mais é que a conseqüência “normal” dotriunfo de nossa cultura ocidental, técnica e materia-lista. É o que faz Rorty: sua postura anti-universalis-ta, de estilo culturalista, afirma que os valores moraissó fazem parte de nossas tradições locais contingen-tes. Em sua obra Contingency, Irony and Solidarity(Cammbridge, 1989), expõe o seguinte argumento:todas as pessoas que ajudaram os judeus durantea perseguição nazista na última guerra mundial nãoo fizeram pelo fato de serem human beengs, comoseres humanos seus pares, mas porque pertenciamà mesma cidade ou à mesma profissão que elas. Ediante da questão: será que os liberais americanosmodernos deveriam ajudar os negros americanosoprimidos?, responde categoricamente: essaspessoas precisam ser ajudadas porque são nossoscompanheiros seres humanos. Mas conclui com umaressalva: “Em termos morais como políticos, é muitomais convincente descrevê-los como nossos compa-nheiros americanos – insistir que é ultrajante queum americano viva sem esperança”. Em última análi-se, a moralidade não passa de uma espécie depatriotismo.

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que se opõe às suas idéias. Numa palavra, estancaa sede de absoluto inculcando o mais amplo relativis-mo. Trata-se de uma sociedade que “se admite talcomo é, com a moral que possui e a linguagem quefala (...) sociedade portadora de uma utopia liberalonde os homens se aceitam tais como são”(verL’Espoir au Lieu de Pouvoir, op. cit., p. 120s). Seuvalor consiste em não possuir valor, a não ser o deuma mais ampla discussão. Aliás, apenas um valorse impõe absolutamente: a recusa da crueldade.

Não resta dúvida que o relativismo (notada-mente o cultural) representa uma atitude positiva detolerância a respeito das opiniões divergentes dasoutras pessoas. Inúmeras vezes já ouvimos a se-guinte afirmação: “você tem razão de pensar do mo-do como pensa; e eu tenho as minhas de pensarcomo penso; cada um tem o direito de pensar o quepensa, ninguém tendo o direito de ditar aos outros oque devem pensar ou fazer”. Claro que esta própriaidéia segundo a qual deveríamos ser tolerantesconstitui um juízo moral não podendo ser utilizadopara justificar o relativismo. Porque seria incoerentepretendermos buscar justificá-lo baseando-nos nu-ma regra moral que se subtrairia às exigênciasrelativistas. No entanto, poderíamos contrapor aorelativismo a seguinte tese: as pessoas que o ado-tam estão engajadas num inaceitável conformismosocial ou legal. E numa sociedade conformista, nãohá lugar para os inconformistas, reformadores, ino-vadores ou revolucionários. Numa sociedade ondetodo mundo é conformista e as leis são unanimemen-te aceitas, perde qualquer sentido a crítica (ou con-testação) individual. Nestas condições, não há pro-gresso moral possível. A história da humanidade estárepleta de exemplos de reformadores, anticonfor-mistas ou revolucionários que, no início, adotaram

Para Rorty, o termo “nós” ou o termo “homem”nada tem a ver com a “humanidade”. Isto não épossível, pois não existe “natureza humana”. A única“referência” para esse “nós” é a da “comunidade”.O “nós” designa comunidade. E o termo “comunida-de”, “nossa própria comunidade”. A forma da relaçãoplenamente afirmativa a si liga-se a um “conteúdo”:“incumbe-nos, na prática, privilegiar nosso própriogrupo”. Por esta adequação se realiza o ideal: “apro-fundarmos nosso sentido da comunidade”, desenvol-vermos nosso “desejo de trocas livres e abertas entreseres humanos”. A “solidariedade”, compreendidacomo “contato com a comunidade”, é o objetivo últi-mo dos homens. Viver em comunidade consiste em“fazer corpo” com seu “grupo” para experimentar avida em comum como uma “vida vivida como umbem-estar”. Individualmente, este vínculo produz osentimento fundamental da “confiança em si/self-reliance” (ver Objectivity, Relativism and Truth, 1991).

Observemos que esse relativismo pragmatistapossui uma vertente política. Como insiste em dizerRorty, é graças à sociedade liberal que nossos con-temporâneos (entenda-se: os cidadãos americanos)são pouco a pouco curados das inquietações meta-físicas e religiosas que vêm “atormentando” os ho-mens e levando-os a aderirem aos diversos idealis-mos essencialistas da tradição. E esta sociedadeconsidera a metafísica um saber vigindo apenasnuma época ultrapassada da humanidade, quandopúnhamos problemas insolúveis por falta de meioslógicos para resolvê-los. Ora, uma sociedade liberalnão procura outro fundamento senão ela mesma.Porque vive na mais ampla troca das idéias num“confronto livre e aberto” e aprende a aceitar-secomo é. Sua cultura a prepara para a aceitação dasidéias mais contrárias umas às outras. Ademais, re-cusa as condenações e as indignações diante do

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moral e social indispensáveis à construção de umasociedade estável. Quando ele se aplica a domíniosnão-científicos, geralmente se apóia em analogiasmeio desastradas. A teoria da relatividade, por exem-plo, não descobriu que a verdade depende do pontode vista do observador. Pelo contrário, descobriu queas leis da física são elaboradas de tal maneira quevalem para todos os observadores, qualquer queseja seu movimento ou sua posição. Sua significaçãofundamental: os valores considerados como os maiselevados na ciência são independentes do ponto devista. Neste sentido, Einstein não provou que a obrade Newton era falsa. Apenas forneceu um contextomais amplo no interior do qual desaparecem certaslimitações, contradições e assimetrias da física an-terior.

Finalmente, quando dizemos que todas asnossas representações constituem conceitos histori-camente construídos, num determinado contexto,portanto, que são conceitos relativos, não absolutos,de forma alguma estamos querendo diluir tudo norelativo. Não resta dúvida que a afirmação do con-dicionamento histórico de nossos conceitos podeacarretar, em alguns, um reflexo de temor afetivo.Se nossas representações são relativas, nada maishaveria de absoluto? Seriam o amor, a justiça, aamizade, etc. sempre noções relativas? Ora, afirmaro caráter relativo de algo de maneira algumasignifica que devamos julgá-lo sem importância,como irrelevante. Dois exemplos podem ser ilustra-tivos:

a) nossa experiência amorosa nos mostra queo “relativo” pode ser extremamente importante. Comefeito, o fato de alguém poder encontrar dezenasde pessoas compatíveis consigo de forma algumasuprime a importância do amor. Amar alguém é viver

pontos de vista isolados, mas que, em seguida, em-polgaram multidões.

Numa sociedade relativista não haveria lugarpara um Sócrates, um Jesus Cristo, um Lutero, umMarx, um Gandhi, etc. Teria fracassado completa-mente a luta de tantos heróis contra a escravidão ea opressão dos desfavorecidos. A humanidade nãoteria progredido em seu reconhecimento dos Direitosdo Homem (dos Negros, das Mulheres, etc.). Todosesses (e outros) reformadores criticaram as leis, oshábitos, os usos e os costumes de suas respectivassociedades. Se os criticaram, é porque os julgarammoralmente inaceitáveis, em nome de princípios mo-rais admitidos como universais. Afirmar que o funda-mento do que é bem e correto reside naquilo que ogrupo (ou a sociedade) ao qual pertencemos autorizaou sanciona, e defender a idéia segundo a qual oque é moral (bem ou mal) é o que é conforme à lei(o que é legal), significa ser conformista. Se agir mo-ralmente é agir em conformidade com a normalidadee a legalidade, e se o moral se identifica com o so-cialmente aceitável e legal, posto que a moral nãoseria outra coisa senão o conjunto das regras àsquais a maioria das pessoas de uma sociedade sesubmete em determinado momento histórico, entãoo relativismo só pode ser conformista. Neste tipo desociedade, o indivíduo se torna privatizado, quer di-zer, perde sua capacidade de indivíduo livre, sobe-rano e autárquico e passa a viver como uma espéciede marionete realizando espasmodicamente os ges-tos que lhe impõe o campo sócio-histórico: ganhardinheiro, consumir e, quando possível, “gozar”.

O grande feito do relativismo cultural, ao negara necessidade e a possibilidade de se postularemverdades imutáveis, consiste em dissolver a verdadeem enunciados probabilistas e indeterministas e,assim, minar as velhas fundações da autoridade

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uma coisa que ela é boa (posso desejar mentir,matar, roubar, etc.). É por ser boa que devo desejá-la. Independe de mim que 2 e 2 sejam 4. Da mesmaforma, não compete a mim escolher ou determinarque, no plano moral, constituem males a tortura, oseqüestro ou o racismo. Esta “verdade” se impõe amim de modo evidente, não como uma emanaçãode meus desejos subjetivos, mas como algo vindodo exterior. Quando dizemos que cada um de nóspossui a idéia de um dever “absoluto”, de formaalguma defendemos qualquer forma de“dogmatismo”. Estamos simplesmente dizendo quecertos interditos não dependem das circunstâncias,são indiferentes ao contexto. Tanto as “verdades”morais quanto as científicas são descobertas pornós, pensadas e vividas por nós, e não a nósimpostas por uma revelação qualquer. Se “trans-cendem” a humanidade, é porque não se reduzema nenhuma cultura empírica particular.

Aliás, como ressalta o sociólogo R. Boudon, “anoção de transcendência exprime a idéia de umarealidade dos valores”. E esta idéia explicaria a ade-são coletiva da qual esses valores constituem o obje-to. Donde se poder concluir: o “desencantamento”,no sentido do desaparecimento da crença na trans-cendência, “conduz inevitavelmente à anarquia poli-teísta dos valores: se os valores não possuem reali-dade exterior, não são mais valores; ora a extinçãoda transcendência é indissociavelmente a extinçãoda exterioridade dos valores; a extinção da transcen-dência implica a dos valores” (Le Juste et le Vrai,Fayard, 1995, p. 294). Quer dizer: sem uma trans-cendência fundadora, os valores desaparecem.Claro que a filosofia dos valores prescinde da trans-cendência, mas cai no relativismo. Por isso, não setorna indispensável reafirmarmos a força da trans-cendência para novamente termos condições de

uma experiência essencialmente relativa (podería-mos amar outras pessoas). Mas é justamente o fatode amarmos esta pessoa que é importante. Estesimples caso, onde a experiência relativa revesteuma importância essencial, mostra que a consciên-cia da relatividade “não dilui tudo no relativo”. Maisuma vez, foi o que percebeu o Pequeno Príncipe: oimportante, em sua rosa, não é o fato de ser absolu-tamente única, mas o tempo que ele passou comela;

b) o cristianismo nos mostra a importância dorelativo, pois se funda na seguinte fé: é na relativida-de e no contexto histórico de uma época e de umapessoa (Jesus) que se manifesta o Absoluto. Contra-riamente a outras crenças religiosas, não se baseianum Deus abstrato, mas num Deus pessoal manifes-tando-se na relatividade da história. Neste sentido,parece compatível com um encontro com o Absolutoque só se realiza em experiências sempre relativasa um contexto histórico.

Ao afirmarmos, por exemplo, que a moral épuramente humana, não estamos dizendo que seja“relativa e histórica”, mas simplesmente que jásuperamos seu estágio “teológico-ético” fundando-a numa revelação divina. Na medida em que é exte-rior à natureza e à história, possui um caráter“supranatural” e, por isso mesmo, “transcendente”.Diga o que quiser o relativismo histórico, de algoestamos absolutamente certos: da inacreditávelinvariância de certos valores. Que eu saiba, nãoexiste nenhuma religião, nenhuma moral capaz defazer a apologia do assassinato, da mentira, doegoísmo, etc. Embora pertencentes a ordensdistintas, as “verdades” morais (ou “princípios”morais) e as verdades matemáticas se impõem atodos nós. Não as escolhemos. Não é porque desejo

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fornecer à vida humana as bases sem as quais elaperde sentido? Segundo o slogan sempre repetido,sem Deus, não seria tudo permitido?

O grande preconceito levando os relativistas arecusarem todo universal consiste em identificá-loa uma idéia congelada, fria e inflexível, ignoranteda rica diversidade dos valores culturais e, por conse-guinte, destruidora da humanidade concreta em no-me de uma humanidade ideal. Na arena internacio-nal, essa desvalorização se manifesta pela críticacultural dos direitos do homem: jamais encontramosessa abstração que é o Homem, dizem. O que impli-ca esse abandono do universal? Entre outras coisas,consagra as tradições culturais, tais como são, taiscomo servem de álibis a projetos perversos, a vonta-des de poder, a estruturas de opressão veladas edesprezíveis para o homem. Ademais, consagra atese da comunicação impossível entre homens deculturas diversas. Sem esse pressuposto segundoo qual os homens podem se intercomunicar, não hávida humana comum possível. Aliás, deixa de haverhumanidade.

Portanto, longe de constituir uma abstração rí-gida ou de fazer corpo com uma “concepção dohomem” inteiramente formada, a idéia de universalprecisa ser entendida, antes de tudo, como essapressuposição segundo a qual os homens pressen-tem que, apesar de todas as suas diferenças, podeme devem ser comunicar. De um modo mais preciso,trata-se de uma idéia devendo ser entendida comouma tarefa, portanto, como um dever que os indiví-duos assumem de se compreenderem uns aos ou-tros. Antes de ser um conteúdo ou uma norma, an-tes de ser um juízo sobre a humanidade em si epara si, essa idéia de universal constitui este a priorisegundo o qual o outro não me é tão estranho ouque eu não lhe sou tão estranho. Numa palavra, que,entre nós, a comunicação é possível.(20a)