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AS MÁSCARAS DA CIDADE Lucrécia D'Allessio Ferrara 1. A linguagem da cidade A mercadoria, o comércio, a industrialização, o êxodo rural, a explosão demográfica, a fábrica, a linha de montagem, a especialização da mão-de-obra, o salário, o patrão, o operário, a manufatura, a tecnologia, a eletricidade, a eletrônica. Por sobre as causas e conseqüências do fenômeno urbano, as imagens da cidade: ruas, avenidas, praças, galerias. Além das explicações socioeconômicas do urbano, estão as imagens da cidade que assinalam uma robusta realização humana, uma forma distinta de civilização. Nessas imagens, estão as representações, a linguagem urbana através da qual não apreendemos as explicações abstratas, mas aquelas constantes que atingem e modelam o nosso quotidiano. As imagens urbanas despertam a nossa percepção na medida em que marcam o cenário cultural da nossa rotina e a identificam como urbana: o movimento, os adensamentos humanos, os transportes, o barulho, o tráfego, a verticalização, a vida fervilhante; uma atmosfera que assinala um modo de vida e certo tipo de relações sociais. As características culturais sedimentam a cidade enquanto império fervilhante de signos que cria uma linguagem e justifica uma ótica de estudos voltada para ela enquanto modo específico de produzir informação, ou seja, uma representação, um modo de ser que substitui e concretiza o complexo econômico e social responsável pelo fenômeno urbano. Este trabalho parte do princípio de que é possível resgatar, nessa representação, certa lógica histórica responsável por algumas categorias de manifestação da linguagem urbana, isto é, as máscaras da cidade. Enquanto representação, a linguagem urbana não esgota as características econômicas e sociais do fenômeno, mas procede a uma seleção nessas características e proporciona delas uma visão parcial, e apenas possível. Em outras palavras, a linguagem da cidade não é uma propriedade do fenômeno urbano no sentido de distingui-lo e dá-lo a conhecer, mas é operativa e funcional para o seu conhecimento: permite uma mediação no conhecimento do objeto que, por si só, não é auto-evidente. Conhece-se o fenômeno urbano através da linguagem que o representa e constitui a mediação necessária para a sua percepção: não pensamos o urbano senão através dos seus signos. Entender a lógica dessa representação é condição necessária para produzir a teoria explicativa do urbano, ou seja, a fragilidade desse fenômeno na formulação de sua auto-evidência e o caráter de mediação da imagem urbana para a compreensão dele deixam claro a relação que se estabelece entre fenômeno urbano como objeto de conhecimento através da imagem que o representa. As transformações econômicas e sociais deixam, na cidade, marcas ou sinais que contam uma história não-verbal pontilhada de imagens, de máscaras que têm como significado o conjunto de valores, usos, hábitos, desejos e crenças que nutriram, através dos tempos, o quotidiano dos homens. Este trabalho procurará resgatar estas marcas e tentará produzir uma lógica da sua manifestação a fim de levantar um primeiro e provisório esboço de uma

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Page 1: AS MÁSCARAS DA CIDADE

AS MÁSCARAS DA CIDADE

Lucrécia D'Allessio Ferrara

1. A linguagem da cidade

A mercadoria, o comércio, a industrialização, o êxodo rural, a explosão demográfica, a fábrica, a linha de montagem, a especialização da mão-de-obra, o salário, o patrão, o operário, a manufatura, a tecnologia, a eletricidade, a eletrônica. Por sobre as causas e conseqüências do fenômeno urbano, as imagens da cidade: ruas, avenidas, praças, galerias.

Além das explicações socioeconômicas do urbano, estão as imagens da cidade que assinalam uma robusta realização humana, uma forma distinta de civilização. Nessas imagens, estão as representações, a linguagem urbana através da qual não apreendemos as explicações abstratas, mas aquelas constantes que atingem e modelam o nosso quotidiano. As imagens urbanas despertam a nossa percepção na medida em que marcam o cenário cultural da nossa rotina e a identificam como urbana: o movimento, os adensamentos humanos, os transportes, o barulho, o tráfego, a verticalização, a vida fervilhante; uma atmosfera que assinala um modo de vida e certo tipo de relações sociais.

As características culturais sedimentam a cidade enquanto império fervilhante de signos que cria uma linguagem e justifica uma ótica de estudos voltada para ela enquanto modo específico de produzir informação, ou seja, uma representação, um modo de ser que substitui e concretiza o complexo econômico e social responsável pelo fenômeno urbano.

Este trabalho parte do princípio de que é possível resgatar, nessa representação, certa lógica histórica responsável por algumas categorias de manifestação da linguagem urbana, isto é, as máscaras da cidade.

Enquanto representação, a linguagem urbana não esgota as características econômicas e sociais do fenômeno, mas procede a uma seleção nessas características e proporciona delas uma visão parcial, e apenas possível.

Em outras palavras, a linguagem da cidade não é uma propriedade do fenômeno urbano no sentido de distingui-lo e dá-lo a conhecer, mas é operativa e funcional para o seu conhecimento: permite uma mediação no conhecimento do objeto que, por si só, não é auto-evidente.

Conhece-se o fenômeno urbano através da linguagem que o representa e constitui a mediação necessária para a sua percepção: não pensamos o urbano senão através dos seus signos. Entender a lógica dessa representação é condição necessária para produzir a teoria explicativa do urbano, ou seja, a fragilidade desse fenômeno na formulação de sua auto-evidência e o caráter de mediação da imagem urbana para a compreensão dele deixam claro a relação que se estabelece entre fenômeno urbano como objeto de conhecimento através da imagem que o representa.

As transformações econômicas e sociais deixam, na cidade, marcas ou sinais que contam uma história não-verbal pontilhada de imagens, de máscaras que têm como significado o conjunto de valores, usos, hábitos, desejos e crenças que nutriram, através dos tempos, o quotidiano dos homens.

Este trabalho procurará resgatar estas marcas e tentará produzir uma lógica da sua manifestação a fim de levantar um primeiro e provisório esboço de uma história da imagem urbana. Em outras palavras, a imagem polissensorial da cidade vem marcada por determinadas categorias que geram padrões quase emblemáticos, assinalam momentos históricos e atraem a atenção dos que se ocupam da cultura urbana. Combinando certa observação dos fatos a uma exigência de abstração, é possível apreender aquelas categorias em vários momentos históricos e verificar a eficiência com que sintetizam uma representação da cidade.

Dadas as dimensões do assunto, é óbvio que não se pretende nenhum tipo de cobertura abrangente, mas, apenas, fixar algumas imagens urbanas no decorrer da história, tendo em vista estabelecer as categorias de sua manifestação.

Embora correndo o risco de uma indiscutível tendência à simplificação, a tentativa desse esboço é sedutora pelo exercício de detida observação e esforço interpretativo.

2. As máscaras da cidade

Baudelaire publica seu Flores do mal em 1857 e cria uma grande personagem poética: a cidade, que é o tema de bom número de poemas. Porém, não a cidade, mas uma cidade concretizada na sua alegoria: a multidão como imagem flutuante, instável e fugaz através da qual o poeta via Paris e se transformaria

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num dos mais renomados fisionomistas da imagem urbana.

A exemplo de Baudelaire, a história da imagem urbana é aquela que culmina com o relato sensível das formas de ver a cidade; não é descrição física, mas os instantâneos culturais que a focalizam como organismo vivo, mutante e ágil para agasalhar as relações sociais que a caracterizam.

A história da imagem urbana colide ou se completa na história cultural da cidade que vem à luz sempre que focalizamos o espaço urbano na sua dimensão social.

2.1. A imagem urbana como índice social

A cidade medieval deu origem a algumas imagens urbanas que, submetendo-se a várias transformações, permanecem até os dias de hoje.

A cidade medieval foi um exercício de ousadia e inteligência de uma população rural que, capacitando-se profissionalmente, associava-se para encontrar um novo modo de ganhar a vida. Sua expressão econômica foram as guildas, porém suas características sociais e culturais passaram a se confundir com a própria cidade.

A vida nova, livre da tutela dos senhores feudais, a liberdade para produzir e superar suas dificuldades e, sobretudo, uma nova relação social: a ajuda mútua. Para isso havia apenas uma lei: a competência no ofício e a associação com seus iguais: a guilda de ofícios e seus artífices.

Tendo a produção e a habilidade como núcleo do quotidiano, a guilda era a demonstração de uma vida comunitária que tinha seu estilo, suas crenças e religião marcados, até hoje, nos vitrais, rosáceas e murais dos seus monumentos, capelas e catedrais edificados com o vintém poupado na disciplina e ordem das corporações.

Ao lado da competência no ofício, não se dispensava a demonstração da sua identidade sígnica, os índices, as marcas de um grupo ostentados nos trajes exibidos em praças públicas nas procissões solenes, o corpo como suporte sígnico de uma sólida consciência da linguagem como mediação, como representação da estrutura social:

"No domingo depois da Assunção de Nossa Querida Senhora, eu vi a grande procissão da Igreja de Nossa Senhora de Antuérpia, quando a cidade inteira, de todos os ofícios e de todas as condições, achava-se reunida, cada qual a usar as suas melhores roupas, conforme a sua posição.E todas as ordens e corporações ostentavam as suas insígnias, pelas quais podiam ser reconhecidas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Vi a procissão passar ao longo da rua, o povo alinhado em fileiras muito próximas umas das outras. Estavam ali os Ourives, os Pintores, os Pedreiros, os Bordadores, os Escultores, os Marceneiros, os Carpinteiros, os Marinheiros, os Pescadores, os Alfaiates, os Sapateiros e, enfim, trabalhadores de todas as espécies, e muitos artesãos e negociantes que trabalhavam para ganhar a vida" (1).

Essa corporação do trabalho organizava-se pela competência e disciplina, mas identificava-se pelas insígnias da sua profissão: a necessidade de mediar, pela linguagem, o reconhecimento do trabalho como objeto de classificação social.Este signo indicial tinha o próprio corpo como suporte e a cidade como moldura. Corpo e cidade encontravam-se na procissão para exibir, na praça pública ou na catedral, o instrumento sígnico do trabalho manual. Uma imagem urbana que apontava o homem e o seu trabalho como senhores de sua grande invenção: a cidade.Porém, o mesmo rigoroso apego à ordem e à disciplina deu origem a uma pesada estrutura hierárquica burguesa, que tinha, na riqueza, o elemento de destaque: estava preparado o terreno para uma outra imagem urbana medieval que se transformou e se prolongou até hoje: o carnaval.

2.2. A imagem urbana como contraste

No panorama cultural da estrutura econômico-social das guildas, não demorou que surgisse um espaço característico, o Paço Municipal, onde as famílias de destaque, os mais ricos artesãos e mercadores realizavam bailes, saraus, banquetes e casamentos com a devida pompa. O Paço Municipal era uma espécie de palácio coletivo, diz Lewis Mumford (2).

Eram as festas oficiais que consagravam uma ordem social apoiada no reconhecimento da estabilidade econômica e da perenidade da ordem social, onde todos tinham um lugar determinado: predominavam a hierarquia, os valores e, sobretudo, as leis e tabus religiosos, políticos e morais. Bakhntin e, mais recentemente, Burke são os grandes estudiosos dessa oficialidade festiva e do seu contraponto: o carnaval (3).

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Com a riqueza e o rompimento da ordem social corporativa das guildas, as camadas rica e pobre da população se delinearam de modo que apenas alguns eram admitidos nas festas oficiais do Paço Municipal; aos demais não cabia, senão, o espaço e o tempo passageiros do carnaval, que deu origem a uma outra imagem urbana que brota na Idade Média e traz, até hoje, a sua grande personagem: a multidão.

A mistura de tipos e atividades aglomerados dá uma outra função à praça pública que, durante alguns dias, abandona sua função comercial para abrigar um momento de quebra da rotina diária do trabalho e da vida comedida para desperdiçar, comer, beber e consumir todas as posses. Sobre esta ruptura do quotidiano, o carnaval na praça permite a exibição de uma das suas características básicas: a des-hierarquização. Rompe-se a distinção entre ricos e pobres, popular e erudito, particular e público, para criar um momento em que tudo ocorre ao ar livre, na praça ou na rua. Nessa primeira característica, cria-se uma imagem urbana franca e livre de restrições de qualquer norma ou etiqueta; sua característica sensorial é a sonoridade que produz uma linguagem em que a comunicação se faz aos brados e aos palavrões. Nesse momento, a praça é o espaço livre e público que rompe a barreira da vida privada, das normas familiares, dos tabus morais e, sobretudo, da hierarquia social: uma festa, não somente popular, mas um espaço de todos e para todos.

2.3. A imagem urbana como inversão

Com o seu desenvolvimento, a imagem urbana carnavalesca do caos e da desordem se aprofunda e se torna mais complexa, ou seja, a quebra das convenções cria, na praça pública, o espaço da inversão, da exposição da intimidade que passa a ser controlada pela exibição. A praça já não é apenas o espaço público, mas o palco onde se dramatiza a inversão: o "mundo de cabeça para baixo" (4).

A praça é a cena em que todos são atores e espectadores ao mesmo tempo; vive-se a ficção onde se exibem palhaços e mágicos mascarados num espetáculo de rua onde todos riem, um riso geral e universal. O espaço urbano transforma-se nesse local ambivalente: praça pública que abriga a festa da multidão e cena dramática em que se invertem posições sociais e se exibe, sob a forma de paródia, a intimidade familiar ou individual nos seus aspectos caricaturais; é a máscara, o indivíduo, os defeitos, os sexos travestidos.

A praça como cena dramática torna mais complexa a imagem do carnaval anti-hierárquico e cria a imagem urbana da inversão do privado que se torna público, do individual que se coletiviza, do defeito que se modifica em qualidade, da cultura popular que se oficializa e se impõe ao reconhecimento. Seu veículo sensorial é o gesto que, freqüentemente obsceno, se dramatiza e se multiplica na repetição. Na praça carnavalesca, a multidão colide com a inversão e sua imagem é espontânea e descontraída.

2.4. A imagem urbana como poesia

No século XIX, essa imagem urbana da multidão que se acotovela e colide transforma o uso coletivo no olhar que se cruza e se perde em inúmeros olhos aturdidos, surpresos e medrosos ao mesmo tempo.

O poeta dessa máscara da cidade é Baudelaire, e o seu crítico, no início do século XX, é Walter Benjamin. Poeta e intelectual se unem para sentirem o impacto da cidade européia, Paris ou Berlim, e o local dessa imagem urbana já não é a praça pública, mas as longas ruas, as avenidas, os bulevares, as galerias, os becos da cidade que sofrem o impacto da metropolização.

No Flores do mal, Baudelaire insinua a figura urbana do olhar que com ele se cruza na multidão, o olhar momentâneo, recluso e entediado da mulher que se exibe à medida que se oculta, que se nega à medida que se oferece: o bulevar é o local que permite e estimula esse olhar feito sexo e a multidão é a espectadora, talvez desinteressada, dessa posse.

La rue assourdissante autour de moi hurlait.Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,Une femme passa, d'une main fastueuseSoulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan, La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté Dont le regard m'a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l'eternité?

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Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais" (5).

Esse anônimo habitante da metrópole é recolhido por Benjamin na figura do flâneur, estranha figura urbana que circula na Paris, capital do século XIX, como sua terra prometida (6).

2.5. A imagem urbana do ócio

O flâneur é a personagem que agita a imagem do homem na multidão que difere totalmente d'O homem da multidão, conto de Edgar Poe, traduzido por Baudelaire. O flâneur não é um autômato, mas, ao contrário, é um ocioso paradoxal que transforma a ociosidade em valor, porque a realiza produtivamente quando transforma as ruas, os pavilhões, os grandes magazines, que atendem à necessidade coletiva da multidão, em instrumentos indiciais que referencializam o labirinto emocional despertado pela cidade moderna.

Como um homem na multidão, o flâneur desenvolve, metodologicamente, em torno de si um escudo que, por paradoxo, o situa na massa urbana sem permitir que nela se envolva, seu contacto urbano é aquele do olhar, é a imagem da cidade sob a égide do olhar. Essa proteção metodológica faz do flâneur um habitante da cidade que rumina a imagem urbana na solidão do seu quarto quando revive, na memória, a lembrança de uma imagem, da visão passageira resgatada, aprisionada no fluxo amorfo dos quilômetros das ruas percorridas. É o homem na multidão que luta diante da linha evanescente que ainda persiste entre o espaço público e a reserva da intimidade e, por isso, ainda pode surpreender-se, chocar-se ante a imagem urbana. Não está condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão, essa doença a que, perplexos, assistimos corroer a imagem da metrópole moderna.

A Paris do século XIX, que encanta Benjamin através de Baudelaire, é a cidade da experiência urbana assumida e, por isso, torna-se a cidade lírica que faz do poeta um fisionomista da imagem urbana.

2.6. A imagem urbana como reminiscência

A prudência metodológica, para não perder-se na multidão e resgatar a imagem da cidade que Benjamin capta no ócio baudelairiano, acaba por atingi-lo em outra vertente, no fascínio com que se entrega à sedução urbana em inúmeras passagens da sua obra mas, sobretudo, em três textos básicos: "Rua de mão única", "Infância em Berlim" e "Imagens do pensamento" (7).

A reminiscência de Benjamin, em lugar de ser de mão única, está, na verdade, na contramão, porque busca reavivar não a lembrança do que foi perdido, mas acender a curiosidade para saber por que foi perdido. Uma outra e estranha maneira de surpreender a história da imagem urbana: uma história em que o coletivo e o individual se cruzam numa avalanche alegórica, até não sabermos se a imagem é a da cidade ou a do crítico à procura de um espaço perdido.

Desse cruzamento surge um método, ao mesmo tempo efetivo e cognitivo:

"Aquelas (rotas) que para os outros são desvios, são, para mim, os dados que definem a minha rota. Eu baseio os meus cálculos nos diferenciais do tempo que para os outros perturbam as 'grandes linhas' da pesquisa.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Este trabalho deve desenvolver ao máximo grau a arte de citar sem aspas. A sua teoria está intimamente relacionada com aquela da montagem.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Nada tenho para dizer. Apenas para mostrar" (8).

As reflexões do adulto montadas sobre as reminiscências infantis desenvolvem uma sensibilidade inteligente que garante a passagem da subjetividade impressionista à construção de um lugar no espaço urbano: a rua de mão única, a rua Asja Lacis não é a justaposição de casas e lojas, mas um lugar onde ecoam as vozes do passado acordadas pelas lembranças e, alegoricamente, representadas por detalhes e fragmentos:

"Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro. Essa arte aprendi tardiamente; ela tornou real o sonho cujos labirintos nos mata-borrões de meus cadernos foram os primeiros vestígios. Não, não os primeiros, pois houve antes um labirinto que sobreviveu a eles. O caminho a esse labirinto, onde não faltava sua Ariadne, passava por sobre a ponte Bendler, cujo arco suave se tornou minha primeira escarpa" (9).

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Pelo método da montagem de reminiscências, a cidade é percorrida como um livro tridimensional em prontidão de linguagem onde o acúmulo de objetos, estátuas, passagens, becos sem saída, publicidades, escritas verticais são semblantes realistas de um macrocosmo social e ensinam pelo método mais direto, aquele da experiência. Apenas esse método, que trabalha por dentro e através das sensações, permitiria que o intelectual criasse uma imagem tão insólita de Paris, outra cidade que o atrai e fascina como cidade no espelho: "Pois sobre os desnudos quais do Sena há séculos se deitou a hera de folhas eruditas: Paris é um grande salão de biblioteca atravessado pelo Sena" (10).

As reminiscências, o método da montagem sem aspas e a prontidão da linguagem fazem da imagem urbana de Benjamin um recorte de quadros e detalhes selecionados pela memória e localizados alegoricamente; em conseqüência, temos uma imagem descentrada fisicamente, porém concentrada de emoções. Não se pode saber onde está a realidade, se no detalhe da cidade gerado por uma lembrança, ou na retórica com que se aprisiona uma emoção. Na realidade, não temos propriamente, para Benjamin, uma imagem urbana, mas a atenta observação de quem procura descobrir o processo de percepção responsável pela geração daquela imagem descontínua, produzida aos saltos. Uma outra forma de escrever a história da imagem urbana: dar aos locais a fisionomia capaz de torná-los significativos e legíveis.

2.7. A imagem urbana como objeto

Conforme muitos diagnósticos conhecidos, a segunda metade do século XX sofre o impacto de uma cultura e consumo de massa possibilitados pelo acesso à informação, via televisão, e ao produto, via um processo crescente e diversificado do mundo industrial e da superprodução. Esta realidade traz conseqüências em todos os prismas da sociedade contemporânea e a imagem da cidade apresenta os sinais inelutáveis desse desafio social.A competitividade do capitalismo industrial projetando-se sobre a imagem cultural urbana descaracteriza a cidade enquanto espaço público, na medida em que lhe tira todo caráter próprio e declarado de expressão social através do espaço.

Como vimos, da cidade medieval até aquela do século XIX, encontramos definitivas manifestações culturais que, ao socializarem o espaço, conferem-lhe as imagens que o apontam como o lugar onde o indivíduo, ampliando-se no povo, na multidão, expressa, publicamente, seus anseios, valores e crenças. A imagem da cidade dos nossos dias esvazia-se das manifestações culturais que tinham a multidão como personagem, e o indivíduo podia expressar, em público, suas emoções urbanas. A imagem urbana esvaziou-se, na medida em que desaparece a sua grande protagonista: a multidão. Esvaziou-se a imagem e, em conseqüência, alterou-se a linguagem e o significado do espaço urbano.

A praça, a avenida, a multidão, enquanto expressões públicas da cidade, foram substituídas pelas versões urbanas íntimas, demarca-se claramente o espaço individual separando-o do coletivo e reivindica-se a demonstração sígnica dessa divisão em nome da propriedade, da segurança, da tranqüilidade íntima e da livre expressão.

Nessa nova imagem urbana colidem o público e o privado, prevalecendo o segundo sobre o primeiro na medida em que, agora, os espaços coletivos urbanos - praças, avenidas, ruas, galerias, lojas, pavilhões - cedem lugar à habitação como espaço urbano da intimidade, espaço vedado, seguramente protegido por portões, grades, muros, múltiplos signos de vedação, o mundo da solidão, a casa como lugar onde nos escondemos.

Truncada definitivamente a imagem urbana da sociabilidade, os signos, agora, são outros.

Subtraindo-se à ansiedade e agressão que lhe causa qualquer contacto público, o urbanita de hoje refugia-se em esquemas de proteção: a condução própria, os fins de semana usufruídos no refúgio do campo, os apartamentos longe do ângulo de visão da rua, os condomínios fechados, a propriedade privada, índices de segurança definidos pela família e pelos amigos íntimos.

Voltada para o interior da habitação, a imagem urbana nutre-se dos signos que a distinguem e diversificam: os objetos, motivo de conquista de uma luta diária, porque entendidos como prolongamento, extensão das qualidades dos proprietários ou, mais ainda, a posse do objeto como fator de nova e otimista compreensão do universo.

A crença no objeto ultrapassa seu caráter racional funcionalista e valoriza-se a representação, a linguagem.

Marx chamou essa atração de "fetichismo das mercadorias", uma espécie de religião ou de narcótico, e foi um, dentre muitos, que se impressionou com o fato de se revestir coisas materiais com atributos sociais e afetivos, com sua fácil manifestação em termos de massa e, sobretudo, com o seu resultado,

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uma inevitável homogeneização da aparência.

Realmente, possuir os mesmos objetos passou a significar ser igual, atuar igual, aparecer igual e, sobretudo, pensar igual: condição de defesa pessoal nas relações sociais urbanas.

Daí decorrem duas conseqüências básicas.

Em primeiro lugar, a presença dos mesmos objetos não é só responsável por aquela pasteurização, mas a posse dos mesmos objetos traz a distinção e a segurança sociais. Essa recompensa passa a ser procurada compulsivamente e assume o caráter icônico da acumulação kitsch: do amontoado de objetos de porcelana ou vidro até o eletroeletrônico de vários modelos, procedências e funções auratizados à feição de obra de arte e, sobretudo, expostos nas indefectíveis estantes de madeira barata e desenho duvidoso. O fetiche da mercadoria passa, antes de tudo, pela posse e exibição dela.

Grandes perguntas decorrem dessa representação urbana: qual a razão desse caráter antropológico dos objetos? O que teria levado o indivíduo a resgatar sua imagem pública pela representação das suas posses?

As respostas a estas duas questões nos levam à segunda característica anunciada.

A imagem urbana desse final de século, dominada pela intimidade em detrimento da exposição pública, é uma ficção. Na realidade, ainda é a aceitação pública que domina a vida privada, é o reconhecimento de todos que determina a segurança individual. Daí a aparência, as fachadas das habitações ou dos edifícios serem altamente reveladoras: as grades altas e pontiagudas lá não estão como segurança e proteção, mas são signos do poder econômico e, sobretudo, da propriedade, demarcam e exibem a divisão entre o público e o privado para que se promova o ambicionado reconhecimento coletivo. A aceitação social passa pela exibição dos bens particulares, grades e portões vedam para poder exibir e estão lado a lado com os acabamentos decorativos.

A crença na posse do objeto e a necessidade de sua ostentação criam uma linguagem que permite compreender as pessoas e a cidade: a posse dos objetos é uma nova consciência de classe e a cidade é o seu altar: a posse do objeto transformado em quantidade codifica o lugar de cada um e digitaliza, torna visível, tangível aquela demonstração de classe; essa representação, essa linguagem é mais funcional do que o próprio objeto e varre todas as classes, pois é possível encontrar o mesmo "fetiche das mercadorias" exposto, das mansões de elite às habitações populares; agora, a classe é possuir ou não o objeto em grande quantidade e modelos diferentes e atuais.

A posse do objeto tudo unifica e torna igual: espaços, habitações, pessoas, personalidades e, paradoxalmente, a contraposição entre a vida privada e pública, mais que separação, é a ostentação dos opostos como marca de uma nova imagem urbana que se elabora pela aceitação dos valores individuais, exibidos para a consideração pública. E tudo ocorre naturalmente, essa cultura da posse do objeto já não causa espanto e o que parece estranho é não aderir a ela.

A imagem urbana, apoiada nos ícones da vida privada, acaba por desintegrar aquela outra imagem que valorizava os espaços coletivos: a rua, a praça, o largo, a avenida; o uso da cidade se transforma em rotina organizada pela pressa que automatiza e unifica todos os lugares; perdem-se os pontos de referência, as marcas urbanas, os pontos de encontro.

Desintegra-se a cidade ou constatamos a sua velhice? Desaparece o cidadão ou surge o usuário ausente da sua condição urbana? Pasteuriza-se a imagem urbana que nos impede de ver e, sobretudo, de pensar?

Linguagem de linguagem, a imagem urbana é mediação para compreender o significado das relações socioculturais na cidade, sua "sintaxe" apóia-se na própria urbanização, isto é, a imagem da cidade atual revela o momento crucial que ela atravessa: transforma-se o significado da cidade ou seria ela descartável como os objetos e sua imagem passaria por sucessiva e cada vez mais rápida substituição? Ou, ao contrário, essa imagem urbana apontaria, apenas, para uma radical mudança? Da cidade do século XIX e início deste a sofrer os primeiros impactos da metropolização, como as transformações introduzidas em Paris pelo prefeito Hausmam, à cidade de hoje, asfixiada pelo gigantismo da megalópole, encontramos uma imagem urbana cada vez mais vulnerável e intrigante, na medida em que se descaracteriza como espaço de uso coletivo, para tornar-se anônima, mas necessária. Essa imagem urbana não é natural, mas esconde um desafio que exige resposta, criativa.

BIBLIOGRAFIA

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Page 7: AS MÁSCARAS DA CIDADE

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 LUCRÉCIA D'ALLESSIO FERRARA é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e autora de Ver a cidade (Editora Nobel, 1988).

NOTAS:

1 Albrecht Dürer do princípio do século XVI, em A cidade na história, suas origens, transformações e perspectivas, Lewis Mumford, São Paulo, Martins Fontes/Editora da Universidade de Brasília, 2a ed. brasileira, 1982, p. 304.

2 Lewis Mumford, op. cit., p. 298.

3 La cultura popular en la Edad Media y en el renacimiento - El contexto de François Rebelais, M. Bakhtin, Barcelona, Barral Ed., 1971; Cultura popular na idade moderna, Peter Burke, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1989.

4 Peter Burke, op. cit., pp. 210 e segs.

5 "À une passante", Charles Bauldelaire, in Les fleurs du mal (Tableaux parisiens), Oevres complètes, Paris, Gallimard, 1954.

6 Parigi capitale del XIX secolo, Walter Benjamin, Turim, Einaudi, 1986, pp. 5 e segs. e pp. 543 e segs.

7 "Rua de mão única", Walter Benjamin, in Obras escolhidas II, São Paulo, Brasiliense, 1987.

8 "Teoria della conoscenza e del progresso", Walter Benjamin, op. cit., pp. 591 e segs.

9 "Infância em Berlim por volta de 1900", Walter Benjamin, in Obras escolhidas II, p. 73.

10 "Imagens do pensamento", Walter Benjamin, in Obras escolhidas II, p. 195.

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URBANISMO À PROCURA DO ESPAÇO PERDIDO

Regina M. Prosperi Meyer

"Os livros dos arquitetos são propostas de cidade, sejam elas escritas ou desenhadas." ALDO ROSSI

Enquanto lugar artificial de história, a cidade é o resultado da atividade organizada da sociedade. A sua construção é, ponto por ponto, expressão da ordem econômica, social, cultural e tecnológica presente na sociedade. No entanto, apesar desta característica dinâmica, é corrente o cidadão comum observar a cidade onde vive e, com algum espírito crítico, concluir que seu crescimento é caótico na forma e desenfreado no tempo. Os especialistas em assuntos urbanos, apoiados em teorias, estudos e evidências, "abalizadamente" acrescentam outros atributos: desordenada, espoliativa, dispersa, insalubre, desarticulada, segregada, clandestina, ineficiente, etc. É evidente a ausência de controle, de autoridade e de direção. O resultado da conjugação destas características é forçosamente a ininteligibilidade do objeto - a cidade - e de seu processo de crescimento - a urbanização. Nestas condições, a construção da cidade torna-se atividade contraditória, isto é, desvinculada do entendimento e da expressão dos seus construtores.

Reconhecendo o impasse em que se encontrava a cidade industrial de meados do século XIX, o urbanismo moderno, instado à situação de disciplina autônoma, partiu do pressuposto de que era possível a sua reorganização. Acreditou também que as relações entre a sociedade e seu quadro de vida material também poderiam ser restituídas. A trajetória do urbanismo moderno neste quase um século de existência está longe de configurar um sucesso. A superação dos problemas mostrou-se extremamente difícil. A permanente renovação teórica durante a primeira metade do século XX atesta uma procura incessante de novos caminhos.

Hoje, diante da evidência das dificuldades, com fortes indícios de que o objeto de análise e proposta lhes escapou das mãos, os arquitetos-urbanistas começam a perceber que o urbanismo permaneceu apenas simbolicamente presente na designação das suas escolas e no título dos seus diplomas, vestígio de uma prerrogativa que se vai perdendo de vista. No entanto, definido com precisão, fica claro que seu esgotamento precoce precisa ser revisto: "Urbanismo é a atividade de projeto e planejamento que visa controlar as transformações físicas que ocorrem nas aglomerações humanas permanentes, em função do processo de urbanização. Sua explicação teórica, ou seja, o trabalho de organização do conhecimento sobre sua prática, envolve não apenas a descrição dos projetos, enquanto linguagem e obras, mas também e necessariamente suas relações com o processo de urbanização, ao qual pretendem ser uma resposta" (1).

Os problemas que a atividade assim descrita enfrenta não são recentes. Em 1940, Siegfried Giedion (1888-1968), na primeira edição de Tempo, espaço, arquitetura, aborda os problemas urbanos num tom interrogativo: "Quais são as exigências que um urbanista deve atender hoje? Quais são seus objetivos? Qual será sua atitude em face de seu trabalho?" (2). Colocadas desta forma, estas perguntas revelam dificuldades nas relações entre o urbanismo e a cidade, entre o urbanismo e a sociedade e enfaticamente entre o urbanista e seu objeto de trabalho. Passados cinqüenta anos, estas perguntas, apesar de inúmeras tentativas, permanecem sem resposta. O próprio S. Giedion, ao preparar a quinta edição de sua obra em 1966, acrescenta um novo capítulo, "As cambiantes noções de cidade", atestando a presença de uma investigação viva.

Examinando as questões propostas por Giedion com um pouco de cuidado, fica claro que, apesar das dificuldades apontadas, o urbanismo e o urbanista por decorrência têm naquele momento um papel na construção da cidade industrial. Procurar conhecer as suas exigências, reencontrar seus objetivos, estabelecer novos procedimentos em face de um novo desempenho, são reivindicações que revelam expectativas. E, mais ainda, revelam também que naquele momento existia uma indiscutível legitimidade do urbanismo no tratamento dos assuntos urbanos.

Esta observação tem importância, pois, enquanto disciplina autônoma, portadora de uma prática e de uma teoria, o urbanismo moderno, isto é, aquele que tem na cidade industrial o seu objeto de trabalho, sofreu questionamentos graves. Seu percurso, cujo crescimento é sempre resultado de aperfeiçoamento e revisão, nem sempre gerou credibilidade e aceitação.

Vários autores têm procurado interpretar este percurso. Na sua antologia Urbanisme, utopies et realités, Françoise Choay (3) propõe uma classificação das teorias urbanísticas segundo uma história das idéias. Sustentando que o urbanismo tem como meta a organização da "cidade da máquina", F. Choay propõe uma subdivisão das contribuições; de um lado estão os "generalistas" e de outro os "especialistas". Enquanto os primeiros voltam-se para a questão urbana, incluindo-a no conjunto das relações sociais, afirmando sua crença no urbanismo enquanto prática política, os "especialistas" a abordam como tarefa prática amplamente sustentada pela técnica. As nuances dentro destes dois agrupamentos vão mostrar que a trajetória da nova disciplina possui uma complexidade resistente às classificações, mesmo quando, como é o caso de F. Choay, não se optou em nenhum momento por minimizá-la.

Partindo de uma ênfase nas experiências e propostas de intervenção na cidade industrial, Leonardo Benevolo propõe uma outra interpretação para as origens e para o percurso do urbanismo moderno. A tese central de seu livro Le origini dell'urbanistica moderna (4) é a de que o urbanismo, enquanto disciplina, nasce como corolário da cidade industrial. Benevolo afirma que é somente quando os "efeitos quantitativos das transformações em curso" afetam as cidades e começam a pairar como ameaça para o próprio desenvolvimento econômico que o urbanismo moderno vê delineado o seu papel. Assim, desde o primeiro momento, estabeleceu-se um compromisso corretivo, reparador e paliativo no escopo da nova disciplina. L. Benevolo insiste que houve um "adiamento inadequado" do urbanismo em assumir suas atribuições, isto é, orientar e controlar o desenvolvimento da cidade industrial. Este "atraso", de acordo com a sua tese, acarretou para o urbanismo uma posição caudatária.

Sem discordar da posição apontada, diríamos que ela é, no entanto, inerente à condição de corolário e que não se justifica a palavra "atraso". Antes de a manifestação das dificuldades da cidade industrial ter alcançado proporções

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ameaçadoras, não se podia prever a sua extensão e menos ainda o seu teor. E, indo um pouco mais longe, não se conhecia naquele momento nem a disposição do poder constituído de promover as mudanças nem a sua amplitude.

Fundamental na análise de L. Benevolo, sobretudo para o atual estágio de discussão em torno do urbanismo, é a afirmação de que a sua condição de ulterioridade (em relação à forma de desenvolvimento da cidade industrial) o colocou em uma posição "subalterna e agnóstica". Para entender esta preciosa interpretação, é indispensável relacionar a nova disciplina com o seu contexto político. Neste ponto, os textos de F. Choay e L. Benevolo distanciam-se substancialmente.

Para Benevolo, é a partir da Revolução de 1848 que o redirecionamento do urbanismo é decisivo: "Isolado do debate político, adota cada vez mais o aspecto de uma técnica pura a serviço do poder constituído". Esta dissociação, urdida pelas forças políticas vitoriosas na Revolução de 1848, marcou a nova disciplina de forma tão profunda que, como conclui Benevolo, não é exagero afirmar que ainda hoje é este um aspecto básico das dificuldades com que se defronta. Os adjetivos "agnóstico e subalterno" como atributos das experiências posteriores a 1848 são extrenamente precisos. Utilizando o termo "agnóstico", L. Benevolo indica com clareza a confluência da origem do urbanismo moderno com a doutrina positivista. "Urbanismo agnóstico", neste contexto, qualifica uma prática que deliberadamente não admite "soluções para os problemas que não podem ser tratados pelos métodos da ciência positiva". Isto vale dizer que não serão incluídos os aspectos sociais e políticos considerados dispensáveis na elaboração de um projeto urbano adequado.

O "pecado original" revelado por Benevolo parece ter ao longo dos anos ganho mais peso e contorno. Tornou-se tão nítido que a partir dos anos 50 a legitimidade do arquiteto-urbanista começa mais uma vez a dissipar-se. As novas questões a partir de então devem obrigatoriamente enfrentar a do crescimento de um urbanismo cada vez mais "agnóstico", para usar a palavra de Benevolo.

Ataques de todo tipo colocaram o "urbanismo agnóstico" na defensiva e, o que é pior, para resistir ele optou por mudanças dissimuladas. Sem meios de ir ao centro da questão, o urbanismo assumiu novas designações, rebatizado de "planejamento urbano", aménagement urbain, e "planejamento territorial urbano", e acreditou poder iniciar nova trajetória.

A título de exemplo desta estratégia, em 1971 um texto clássico de Le Corbusier, publicado na França pela primeira vez em 1945, chega ao Brasil. Trata-se de Manières de penser l'urbanisme, verdadeira profissão de fé no novo urbanismo dos Ciam (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). Apesar do caráter militante do texto, afinal tratava-se de uma posição estratégica, pois a guerra terminava e iniciava-se então a reconstrução das cidades européias, o seu título é significativamente modesto - "Maneiras de pensar o urbanismo...". Não é o caso aqui de analisar o texto, mas apenas de chamar a atenção para a tradução brasileira do seu título: "Planejamento urbano" (5). A estratégia comercial é evidente; "planejamento urbano", naquele momento, mobilizava mais interessados. A sensibilidade comercial da editora e dos responsáveis pela tradução, que não queremos aqui questionar, nos fornece preciosa informação: "planejamento urbano" é moderno, prestigioso e vendável, enquanto "urbanismo" soa legendário, um pouco arcaico e esgotado. O fato é sem dúvida pequeno mas muito revelador. Fica evidente que a exacerbação das dificuldades e dos compromissos daquele momento havia carregado o urbanismo para uma atuação de tipo tecnocrático. E o apogeu das análises científicas com seus sistemas, matrizes e modelos. A palavra-chave deste episódio era "otimização". Um autor clássico desta corrente afirma: "o homem é um animal otimizante" (6).

Enquanto, no Brasil, o "planejamento urbano" era avaliado, aliás corretamente, como mais vendável, na Inglaterra e nos Estados Unidos, já começa a ganhar corpo uma crítica a seus conceitos. Em 1972, um texto polêmico sintetizava argumentos longamente acumulados, para utilizá-los em um ataque frontal. After the planners (7) de Robert Goodman tem a força de um manifesto. É parte de um movimento mais amplo que atravessou todos os campos do conhecimento e que teve seu eixo nas propostas de H. Marcuse.

A argumentação de R. Goodman com um certo tom radical é inteiramente coerente com o momento histórico e com a situação profissional dos planejadores urbanos. A "sociedade unidimensional" descrita por Marcuse, baseada no consumo e no controle burocrático, é para R. Goodman a essência da prática do planejamento urbano naquele momento. O percurso esboçado por L. Benevolo havia chegado a uma situação exacerbada. Citando o discurso do presidente Lyndon B. Johnson, pronunciado na conferência "Negócios e questões urbanas" (Business and urban affairs) e publicado em 1966, R. Goodman transcreve: "Cidades são lugares onde a força de trabalho vive, onde deve contar com um sistema público de transporte urbano para levá-la e trazê-la do trabalho. Cidades são lugares onde o caos ou a serenidade do ambiente de vida dos trabalhadores afeta sua produtividade e moral. A cidade é a grande e complexa organização na qual os negócios e a produção devem desenvolver-se. Se a cidade é ineficiente, fazer negócios torna-se caro e ineficiente" (8).

A clareza do trecho do discurso do presidente é desconcertante. Acostumados a uma certa sutileza, às vezes cínica, às vezes ingênua, os profissionais passam a ter diante de si uma responsabilidade imensa. Não pelo desafio que faz à sua competência, mas pelo "significado" do projeto. Como After the planners mostra, a questão passa a ser enfrentada segundo várias abordagens. Para uns, trata-se de trabalhar "dentro dos limites do que é possível do ponto de vista administrativo, político e profissional". Para outros, a opção é uma militância profissional (advocacy planning), onde o planejador torna-se representante e intérprete dos interesses dos grupos desprivilegiados. E, por fim, o grupo daqueles que se refugiam na utopia. Para R. Goodman, ignorar a realidade cultural e econômica da sociedade, propondo através de um novo desenho uma nova sociedade, é a "arbitrária e simplista utopia do Movimento Moderno".

Finalmente, como proposta própria, bem no tom da era marcusiana, R. Goodman clama por um novo "profissionalismo", que terá como principal responsabilidade introduzir o conjunto da sociedade nas situações de tomada de decisão. Baseado no que Goodman chama de joint educational experience, o novo profissionalismo deve sobretudo evitar que através da atividade profissional o planejador esteja somente reforçando um aprofundamento das desigualdades. É o prenúncio de uma vertente de ação baseada na participação comunitária.

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Não se conhece, por enquanto, uma avaliação da proposta de R. Goodman - mas seu livro, talvez nem tanto pelo conteúdo polêmico, circunstancial e equivocado nas apreciações do Movimento Moderno, mas pelo gesto de rebeldia que representou, tornou-se um eloqüente exemplo das dificuldades que se começava enfrentar. Foi, sem dúvida, um marco da crítica que se esboçava em vários segmentos daqueles que se ocupavam dos assuntos urbanos. O urbanismo, agora convertido definitivamente em planejamento urbano, começa a mostrar-se menos disponível para executar os planos necessários para que se alcance a cidade, que é somente "lugar onde vive a força de trabalho". É patente que já não se busca "dar conta" da tarefa. Mas é também evidente que a cidade escapou das mãos dos arquitetos e das equipes interdisciplinares que se formaram quando a complexidade do trabalho assim o exigiu (9).

E aqueles que examinaram o assunto com mais cuidado e critério puderam provocativamente perguntar se em algum momento, desde o seu surgimento, o urbanismo e os urbanistas chegaram efefivamente a intervir no destino das cidades. Em tom um pouco irônico, L. Quaroni alega: "O arquiteto sempre reivindicou o direito ao controle da forma urbana; e é preciso admitir que, da mesma forma, este direito lhe foi sempre negado" (10).

J. Habermas, não por complacência com os arquitetos, mas, sem dúvida, por enxergar longe, traz a questão para um ponto de grande interesse: "Depois de um século de crítica à cidade grande, depois de um século de inumeráveis e sempre frustradas tentativas de manter a urbe em equilíbrio, de salvar o centro, de organizar os espaços urbanos em quarteirões residenciais e em quarteirões comerciais, em instalações industriais e área verde, de articular os âmbitos privado e público, de construir cidades-satélites habitáveis, de sanear cortiços, de canalizar razoavelmente o tráfego, etc. 'impõe-se perguntar se o próprio conceito de cidade não está ultrapassado'. As marcas da cidade ocidental, como Max Weber a descreveu, da cidade burguesa na alta da Idade Média européia, da nobreza urbana na Itália do Norte renascentista, da capital dos principados, reformada pelos arquitetos barrocos da casa real, estas marcas históricas confluíram em nossas cabeças até formarem um conceito difuso e multifacetado. Este pertence ao tipo identificado por Wittgenstein como parte dos hábitos e da autocompreensão da prática cotidiana: nosso conceito de cidade liga-se a uma forma de vida. Esta contudo se transformou a tal ponto que o conceito dela derivado já não logra alcançá-la" (11).

Neste trecho, J. Habermas aponta, a nosso ver, para um dado essencial, que esteve presente desde o primeiro momento quando da instauração da nova disciplina: o assim chamado "urbanismo moderno" embarcou na sua investida reparadora sem rever seu conceito de cidade. Acrescentou desta forma, às dificuldades apontadas por L. Benevolo, uma outra de caráter conceitual e metodológico. As alterações radicais que ocorriam na sociedade que se industrializava e por decorrência se urbanizava alteravam sob todos os aspectos a vida nas cidades. As artes plásticas e sobretudo a literatura já haviam alcançado estas transformações e as colocado no centro de seus interesses. Em Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman (12), no capítulo "Baudelaire: o modernismo nas ruas", analisa com detalhe os dois últimos poemas em prosa de Baudelaire e ressalta a importância que o espaço urbano adquire na vida moderna. Para Baudelaire, segundo a análise de M. Berman, a vida moderna exige uma nova linguagem e "esse ideal obsessivo nasceu, acima de tudo, da observação das cidades enormes e do cruzamento de suas inúmeras conexões".

Percorrendo os textos considerados instauradores pelos historiadores do urbanismo, vemos que a teoria neles desenvolvida emana com enorme freqüência de uma proposta de intervenção de tipo "retificadora". Este compromisso com a cidade concreta, mergulhada nas suas transformações, impasses e conflitos, conduziu obrigatoriamente a análise, a proposta e a teoria. Este confronto com a realidade, que deveria em princípio garantir uma nova leitura e a elaboração de um novo conceito de cidade, de alguma forma desviou-se. O rumo que estas abordagens acabaram tomando reforça a tese de Benevolo de que a condição de ação a posteriori, que caracterizou o urbanismo moderno, mais uma vez marcou o seu desenvolvimento.

Transformado em conhecimento científico, universal, capaz de tornar-se objeto de ensino e aprendizado, o urbanismo iniciou seu caminho, questionando a perda da "substância urbana" imposta pelo convívio com a indústria.

Dos autores que disputam a precedência na transformação da nova disciplina, Camillo Sitte (1843-1903) é aquele que mais nos auxilia a compreender o processo (13). Sua teoria é exposta em Der Städtebau Nach Seinen Kunstlerichen Grundsätzen (A construção urbana segundo seus princípios artísticos), em Viena, em 1889. Carl Schorske (14) aponta com muito acerto para o duplo compromisso de C. Sitte, presente no título de sua obra teórica - primeiro é o uso da palavra "construção" e seu sentido "efetivo", próximo de artefato; segundo é o papel definidor dos elementos artísticos. O subtítulo do livro é todo um programa: "contribuição para a solução dos problemas modernos de arquitetura e escultura monumental tendo em vista sobretudo a cidade de Viena". Na verdade, onde se lê Viena, caberia muito mais a Ringstrasse. Dos doze capítulos que compõem o texto, oito são dedicados a uma análise espacial-funcional das cidades medievais européias, especialmente aquelas que haviam preservado suas características pré-industriais. A análise de Sitte busca antes de mais nada extrair do estudo comparativo dos diversos exemplos os "princípios que regiam o crescimento não planejado". Seu método de trabalho levou-o a "buscar uma estrutura interna, um modelo escondido que garantisse a constante mudança... " (14). Embora escrito no final do século XIX, quando as relações entre a cidade e a indústria já mostravam sua face no conjunto da cidade, Sitte concentra sua atenção no projeto da Ringstrasse, espécie de "coração da cidade". Expressão urbana dos valores da burguesia liberal, que assumiu o destino de Viena, a Ringstrasse estava longe de exprimir os verdadeiros problemas que uma cidade industrial moderna enfrentava.

Limitado ao projeto da Ringstrasse e à sua arquitetura, mas coerente com os seus princípios de construção urbana, C. Sitte insurge-se sobretudo contra o privilégio do "moderno" em detrimento do "artístico". Reprova de forma veemente o "primado do tráfego e da higiene", responsáveis pelo "espaço aberto", destruidor das relações entre a arquitetura e o espaço urbano. À funcionalidade esmagadora da rua, atendendo exclusivamente às necessidades de comunicação, ele contrapõe a praça, espaço de vida comunitária, espécie de elemento redentor da urbanidade ameaçada. Mas, para que a praça cumpra sua atribuição regeneradora, ela tem que atender exigências de escala, de relações visuais, de relações funcionais e espaciais - "tudo deve contribuir para que as praças sejam espaços preservados", qualificadas para "restituir a experiência da comunidade dentro de uma sociedade racional" (15).

Sitte estava também convencido que os propósitos econômicos se expressavam nos impiedosos sistemas geométricos

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da planta da cidade - "retilínea, radial e triangular". Impossível não pensar aqui na "planta baixa especulativa" de que fala Lewis Munford.

As idéias de C. Sitte disseminaram-se. Os historiadores do urbanismo estabelecem conexões diretas entre Der Städtebau e a "cidade-jardim" de Ebenezer Howard e com os suburbs de Londres projetados por Raymond Unwin. Françoise Choay, na sua antologia, classifica os três na categoria de "culturalistas", cuja característica principal, segundo ela, é a absoluta negação da cidade industrial. Sem entrar no mérito da classificação de F. Choay, acreditamos que a recusa, no caso de C. Sitte, levou-o a uma avaliação imprópria e incompleta da cidade industrial moderna. Os problemas substantivos - a circulação de veículos, o déficit habitacional, as questões de saúde pública, o transporte coletivo - ficaram largamente ausentes de sua análise.

Não se pode negar, no entanto, que Sitte experimentou um certo prestígio. Que seus valores ameaçavam pouco a elite conservadora austríaca. Mas, é preciso lembrar, também, que esta mesma elite estava às voltas com uma cidade repleta de problemas, cuja solução, como mostra Benevolo, é a condição de seu desenvolvimento econômico. Sabiam perfeitamente que a abordagem deveria ser mais efetiva e abrangente.

É neste contexto que Otto Wagner ganha, em 1893, o concurso para a elaboração de "um plano geral para regulamentar toda a área municipal de Viena". Como o próprio título sugere, trata-se de "toda" Viena, seu centro, seus bairros antigos, sua periferia operária e sobretudo o seu sistema viário. Tanto no seu plano para Viena quanto na sua obra teórica Die Gropßstadt (A cidade grande) (1911), O. Wagner contesta termo a termo o pensamento e a obra de C. Sitte. Seu projeto para Viena dá-se, como mostra a sua determinação em buscar a eficiência urbana, através de um compromisso total com a técnica e a tecnologia disponíveis: "Um projeto dominado por idéias sobre transporte como chave para o crescimento... quatro cinturões concêntricos rodoviários e ferroviários... atravessados por artérias radiais. A premissa para Viena do futuro... expansão ilimitada..." (16).

Quase como provocação, a divisa para o projeto da nova Viena será "a necessidade é a única senhora da arte".

A modernidade e o moderno estão aí inteiramente representados. Todos os aspectos da modernidade interessam O. Wagner: os avanços da técnica, as dificuldades existenciais do homem diante do "movimento acelerado", contingências da vida cotidiana, a prioridade da função sobre a forma e o fundamental desafio das novas dimensões.

Foi no futurismo italiano, representado por Antonio Sant'Elia (1888-1916), que as propostas de O. Wagner encontraram mais claramente ressonância. A Cittá nuova, de Sant'Elia , série de desenhos realizados em 1914, dentro do espírito "da estética da dinâmica", possui uma forte relação com o pensamento de Wagner (17). A integração da arquitetura à corrente de circulação de veículos, presente nos desenhos de Sant'Elia, encontra-se no projeto da Städtebau de Wagner de 1906. São propostas que rompem com todos os princípios de organização urbana que consideram o tráfego de veículos um fator de mutilação e depreciação da cidade. Tanto os desenhos da Cittá nuova quanto o da Städtebau, mostrando vias em diferentes níveis integradas à arquitetura, são vigorosas prefigurações da cidade contemporânea.

A afinidade entre Wagner e Sant'Elia está também presente na convicção de que o "controle positivo" da cidade é essencial. Ambos opõem-se à desordenação. Mas, no caso de Sant'Elia, as manifestações resumem-se ao Manifesto Futurista e aos seus desenhos, que às vezes sugerem um exercício erudito de ficção científica urbana. O fato de essas prefigurações corresponderem, de forma admirável, à imagem da metrópole moderna, revela uma avaliação aguda das relações que iriam gradualmente estabelecer-se entre a tecnologia e o espaço urbano.

As linhagens em torno de C. Sitte e O. Wagner foram se estabelecendo ao longo da história. Mesmo quando as afinidades não são explícitas, os estudos teóricos incumbem-se de revelar as influências. Observando a trajetória do urbanismo moderno, podemos constatar que os movimentos de progressão, revisão e até de recuo, derivam, muitas vezes, de princípios defendidos por cada um dos dois arquitetos. O grupo composto por Patrick Geddes, Lewis Munford e Jane Jacobs, por exemplo, que militou fervorosamente contra a "extensão ilimitada das cidades", contra a modernidade "diluidora", responsável pela ruptura e aniquilamento dos valores urbanos, tem uma clara identificação com o pensamento de Sitte. Por outro lado, além do futurismo, todo o urbanismo denominado "progressista", de Tony Garnier, dos Ciam, de W. Gropius e de Le Corbusier, possui inúmeros pontos de contato com a obra e as teses de O. Wagner.

E, estabelecendo conexões mais contemporâneas, há quem identifique, nas preocupações e pesquisas desenvolvidas por Christophe Alexander e sua equipe, divulgadas sobretudo em A pattern language (18), uma analogia com a busca de Sitte de "uma estrutura interna geradora de organização, presente nas cidades não planejadas".

Não resta dúvida que, nos mesmos cem anos das "frustradas tentativas do urbanismo modemo", houve também um enorme empenho por parte dos urbanistas (e mais recentemente das equipes interdisciplinares) de entender seu objeto de trabalho e de alcançar os instrumentos adequados para realizá-lo. A própria história da disciplina, seja ela organizada a partir da história das idéias, como procede F. Choay, seja através de uma avaliação das experiências significativas, como faz L. Benevolo, atesta uma constante necessidade de procurar um caminho. As perguntas de Giedion, em 1940, poderiam repetir-se em 1950, 60, 70 e 80. Estão presentes todas as vezes que o urbanista é chamado a desempenhar a atividade de projeto. Diríamos que estas são questões de projeto, questões que encaminham a proposta.

Hoje, para avançar, é necessário relacionar, às questões permanentes de Giedion, os argumentos da crítica marxista, a avaliação problemática da origem e a oportuna revisão do desempenho do Movimento Moderno e, ainda, a proposta de Habermas de se buscar erigir um novo conceito de cidade capaz de abarcar e exprimir a forma de vida contemporânea.

Ignorar qualquer um destes pontos de reflexão significa perpetuar a ineficiência. A mais intransigente, e de difícil enfrentamento, é a crítica marxista. Os seus pressupostos encaminham as questões do urbanismo moderno para a

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negação de sua prática e teoria, consideradas apenas estratégicas e ideológicas. Alguns críticos, e R. Goodman é um bom exemplo, constroem promissoras hipóteses de trabalho, outros apenas apontam, a partir de sólidas bases teóricas, para a impossibilidade precípua de se chegar a um urbanismo menos comprometido e comprometedor.

As duas outras questões - a crítica e avaliação do Movimento Moderno e a construção de um novo conceito de cidade - são largamente auxiliadas pelas análises que Habermas vem desenvolvendo em torno do pós-modernismo.

É muito importante, neste momento de caça-ao-modernismo, acolher a genuína e exata conclusão de J. Habermas: "As aglomerações urbanas emanciparam-se do velho conceito de cidade, ao qual no entanto tanto se apega o nosso coração. Este não é um fracasso da arquitetura moderna ou outra" (19).

Tomar de assalto os princípios do Movimento Moderno, diabolizar as experiências urbanísticas guiadas pela Carta de Atenas foi importante há duas décadas. Esta postura, cuja força vinha de um enfrentamento real, pois naquele momento o Movimento Moderno ainda conduzia de certa forma a ação, hoje soa inconsistente. Centrar a crítica no modernismo pode conduzir ao mesmo erro no qual incorreram modernistas, isto é, acreditar na barricada do desenho, e desprezar a substância eminentemente social da construção da cidade.

A revisão, tanto da contribuição quanto do desserviço prestado à cidade pelo Movimento Moderno, é amplamente necessária. Primeiro, porque indica o ponto exato ao qual se deve retroceder para buscar a matéria-prima para a reflexão. Não adianta, como diz Habermas, "fazer gestos de despedida apressada", decretar o fim de um período pela simples justaposição do prefixo "pós". Segundo, porque é desta revisão, associada a uma análise aprofundada do mundo moderno, que emergirá o novo conceito de cidade.

De certa forma, tanto a revisão do modernismo quanto a análise da cidade contemporânea já se iniciaram.

Hoje, à luz dos inúmeros textos teóricos, das experiências concretas, já se pode perceber que, apesar do grande e diversificado número de contribuições produzidas nestes anos de urbanismo moderno, não foi elaborada uma nova conceituação da cidade. Somos pessoalmente tentados a pensar que a linhagem Otto Wagner-futurismo-progressistas esteve mais perto da reinterpretação. Mas uma análise criteriosa mostra que os aspectos modernos e futuristas nela contidos não foram suficientes para dar conta das transformações essenciais. Como já disse, algumas imagens, produzidas no início do século, prefiguram imagens atuais, mas eram apenas representação. A poderosa imagem das estações de Wagner e Sant'Elia tinha na verdade um forte compromisso com a representação da materialidade da vida urbana e eludira o aspecto mais relevante da cidade moderna - a dissipação de seus aspectos concretos.

Habermas ainda uma vez dá o caminho: "... as próprias estações ferroviárias já não conseguiam tornar palpável para os passageiros a rede de tráfego a que davam acesso; nada que se comparasse à clareza com que outrora os portões da cidade sugeriam as ligações concretas com as vilas adjacentes e a cidade mais próxima (20).

Além de que os aeroportos, por bons motivos, hoje ficam longe das cidades. Os edifícios de escritórios, sem face definida, que dominam o centro, os bancos e os ministérios, os tribunais e as corporações administrativas, as editoras e a imprensa, as burocracias pública e privada, 'todos enfeixam conexões funcionais, a que entretanto não dão visibilidade' ".

A "leitura" desta cidade se faz hoje através de outros registros. A imagem aparentemente cifrada não deve constituir-se em obstáculo para a tarefa.

Diante de tal desafio, o caminho talvez seja buscar reaproximar o artífice (sociedade) do artefato (cidade) e observar com mudo critério como opera esta interação. Procedendo desta forma, o urbanismo estará propiciando a sua sobrevivência enquanto atividade de projeto. Só assim se poderá evitar os vôos cegos a que se lançam alguns, irrefletidamente em nome do exercício de projeto.

REGINA M. PROSPERI MEYER é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP).

NOTAS

1 "São Paulo: urbanismo", Nestor Goulart Reis Filho, Coleção "S. Tashner e R. Scherer". In II Congresso para humanização das cidades. Rio de Janeiro, Enhap, nov./1983.

2 Espace, temps, architecture, Siegfried Giedion. Bruxelles, Edition La Conaissance, 1968.

3 L'urbanisme - utopies et realités, Françoise Choay. Paris, Editions du Seuil, 1965.

4 Origines de la urbanistica moderna, Leonardo Benevolo. Buenos Aires, Ediciones Texne, 1967.

5 Planejamento urbano, Le Corbusier (Charles-Edouard Jeanneret). São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971.

6 Una visión sistemica del planejamento, G. F. Chadwick. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1973.

7 After the planners, Robert Goodman. London, Penguin Books, 1972.

8 Op. cit., p. 184.

9 É muito relevante neste momento, e R. Goodman é apenas um emergente, a séria crítica de atividades de "agenciamento do espaço urbano de cidade industrial", liderada com muita competência por Henri Lefébvre. Apoiado em uma análise marxista, H. Lefébvre aponta para o caráter eminentemente ideológico de atividade de planejamento urbano. Sua argumentação sobre a essência da atividade do urbanista tem até o momento contribuído enormemente

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para a revisão dos pressupostos que configuram o que ele denomina "a ilusão urbanística".

10 La Torre de Babel, Ludovico Quaroni. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1970.

11 Arquitetura moderna e pós-moderna, Juergen Habermas. In Novos estudos, Cebrap, no 18, São Pauto, 1987.

12 Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1986.

13 Camillo Sitte disputa esta precedência com dois outros nomes: Ildefons Cerdá e Marcel Poete (1866-1950). Cerdá é o autor do Ensanche de Barcelona (1859), projeto de reordenação da cidade baseado em uma integração do antigo núcleo com setores mais recentes. O uso de uma malha viária contínua garante a homogeneidade da cidade. Produziu uma obra teórica - Teoria general de la urbanización y applicación de sus principios y doctrina a la reforma y ensanche de Barcelona (1867). Marcel Poete é o autor de Introduction à l'urbanisme, considerado e o texto fundador do urbarnismo enquanto ciência. Dadas as características do pensamento e obra, C. Sitte nos pareceu o mais adequado para encaminhar nosso ponto de vista. O contraponto com Otto Wagner também foi levado em conta. As "linhagens" que se estabeleceram a partir dos dois foram fundamentais para o desenvolvimento da disciplina.

14 Viena-fin-de-siècle, Carl E. Schorske. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988.

15 Op. cit., p. 82.

16 Camillo Sitte: the birth of modern city planning, George R. Collins e Christiane C. Collins. New York, Rizzoli International Publications Inc., 1986.

17 S. Giedion (1988) in Espace, temps, architecture estabelece uma forte associação entre as concepções urbanístico-arquitetônicas de O. Wagner e A. Sant'Elia.

18 "A pattern language", Un lenguage de Patrones. Ciudades. Edificios. Construciones, C. Alexander, S. Ishikawa e M. Silverstein. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1980.

19 Juergen Habermas, op. cit.

20 Op. cit., p. 123.

COMO CRESCE A CIDADE?

José Francisco Quirino

Dentre as multas idéias que procuram explicar como cresce a cidade, três se destacam, por serem capazes de sugerir ao leitor Imagens de grande força explicativa.

A cidade da desigualdade

A primeira teve suas formulações iniciais ainda no século XIX, quando Marx deixou assente o caráter multifacetado da mercadoria, esta categoria que permeia todo o universo do capitalismo, fazendo passar pela sua mediação as relações sociais, da mesma forma que as relações entre homem e natureza, também transformadas em relações do homem com um mundo natural mercantilizado. Entre outras obras, a Dialética da natureza e a Crítica da economia política encerram momentos antropológicos importantes da obra de Marx, nos quais a natureza bruta surge como latência da mercadoria, podendo entrar para o domínio da cultura - quer dizer, ganhando sentido - pelo trabalho humano, este operador privilegiado do real, que o torna reconhecível e lógico pelos membros de uma cultura. Assim, "Ele (o trabalho) é a atividade que adapta a matéria a tal ou qual fim, pressupõe pois necessariamente a matéria. A relação entre trabalho e matéria natural é muito variável, segundo os diferentes valores de uso, mas o valor de uso encerra sempre um substrato natural. Atividade sistemática em vista de apropriar-se os produtos da natureza de uma forma ou de outra, o trabalho é a condição natural da existência humana, a condição - independente de toda forma social - da troca de substâncias entre o homem e a natureza" (Marx, 1957: 15). Marx em seguida introduz uma nuance entre trabalho produtor de valor de uso e de troca, mostrando que este último é uma forma especificamente social, ou seja, voltado para o mercado. Distingue, portanto, entre o olhar daquele que desvenda a natureza para seu próprio consumo daquele outro que a apropria pensando na sociedade como possível consumidora da natureza e, por conseqüência, de seu trabalho. Nesse contexto cabe a cidade, com suas categorias constituintes.

Muitas são as concepções da cidade entre os marxistas, quase sempre tratada como "questão urbana", e também são múltiplas suas posições frente a ela, mas, basicamente, é numa concepção da sociedade humana, vista como troca, que se baseiam, realizando a antropologia de Mauss, raramente citado. A categoria da mercadoria serve como elo entre os homens e faz funcionar a reciprocidade, à moda do capitalismo, transformando cada indivíduo em comprador/vendedor, alternadamente, e assumindo ele próprio a condição de mercadoria, ao pôr à venda sua disposição de trabalho.

Nessa perspectiva, a cidade - sobretudo a cidade contemporânea, capitalista - é compreensível e explicável pela lógica da mercadoria. Cada um de seus espaços representa uma possibilidade singular de vir a ser da mercadoria, nos sucessivos instantes que a história configura, sempre cambiantes e sempre imbuídos do mesmo caráter mercantil. Plus ça change, plus ça devient la même chose.

Descobrir a cidade é encontrar cada uma dessas miríades de facetas, e historiar as mudanças de função de determinada edificação, mostrando como a sua feição de mercadoria mudou, junto com a feição dos mercados que se foram sucedendo, mas é também explicar como o estigma da apropriação mercantil sobreviveu e permeou cada

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transformação das aparências. Não é o espaço em si que passa por esse processo, mas sim as relações sociais que nele se desenrolam. Nesses casos, as funções sociais dos espaços urbanos despontam acompanhadas por conceitos tais como alienação, oposição entre classes, pauperização, etc. O caráter social do capitalismo, produzindo e reproduzindo relações entre classes, torna-se mais claro, à medida que são desvendadas as formas concretas de existência do homem.

A cidade assim entendida é, por conseguinte, um continuum espacial que se assenta na forma mercadoria, ou é passível de nela se assentar. A rigor, a cidade pressupõe a sobrevivência de outros modos de produção, não-capitalistas, e de relações não-mercantilizadas entre os homens. Mas, como padrão de referência e de aferição, as categorias do capitalismo sobrepõem-se a qualquer outra e tornam "vendável" qualquer extensão do espaço urbano. Mesmo os espaços sagrados tornam-se vendáveis, somente escapando ao "olhar comercial" aqueles que são contemporaneamente sagrados.

A cidade, então, surge como sucessão e contigüidade de espaços a abrigar e conter um conjunto de relações de pessoas entre si, diretamente, ou mediadas pela própria espacialidade urbana. O crescimento da cidade, em decorrência, explica-se como crescimento da forma mercadoria, assumindo novas roupagens. Mas há outro tipo de ocupação de espaços que não resulta da mera mercantilização da extensão de terra, apenas convive com ela. Trata-se da ocupação enquanto valor de uso, não mercantil, não imaginada para a venda, e simplesmente voltada para o consumo imediato do ocupante. Esta segunda forma de existência do habitante-urbano-ocupante-de-espaços desempenha funções importantes em cidades industrializadas, que continuam a crescer demograficamente, onde há fortes concentrações de riqueza, como ver-se-á adiante, no esboço de estudo sobre São Paulo.

A cidade natural

A segunda grande idéia sobre a cidade formou-se já neste século, em Chicago. Voltada para uma perspectiva pragmática, para a ação sobre a cidade, e pautando-se pela eficácia, essa idéia entende a cidade como constituída por áreas naturais, "as áreas naturais são os hábitats dos grupos naturais" (Park, 1925: 135). Os grupos que Park chama naturais são aquele que se criam e se solidificam por interesses comuns, como os jovens, os negros, as crianças, as prostitutas, os sem-lar, etc., que se transformam em freqüentadores de certos espaços da cidade. Esses grupos naturais ou bem procuram ou bem criam lugares e ambientes emblemáticos, capazes de servir-lhes como espaços diferenciados e, assim, capazes também de mostrar aos outros habitantes da cidade suas particularidades distintivas e de afirmar-se como verdadeiras instituições sociais.

Além disso, a cidade americana cresce continuamente. Para Park, isso é um processo igualmente natural, ligado às migrações do campo para a cidade e à ampliação constante de mercado que acompanha a imigração e funciona como retroalimentação desta. O aumento populacional, portanto, não é mero acréscimo de pessoas na cidade, mas sim o motor de profundas transformações que, sem estímulos de qualquer ordem, mesmo os de planejamento, produzem conseqüências cuja regularidade de ocorrência fazem pensar que o homem se organiza em cidades "naturalmente". Diz Park: "O crescimento da cidade não é questão de mera agregação de pessoas, mas compreende mudanças na 'área central de comércio', que se refletem em todas as partes da cidade, multiplicação de profissões e aumento dos valores de terreno, sendo tudo isso mensurável em termos de mobilidade de população. As desordens sociais, tais como violência da turba, podem ser medidas em termos de movimentos de pessoas e de metabolismo social ou pela assimilação dos recém-chegados à ordem social existente. As mudanças de status social e condição econômica e os graus de êxito ou fracasso pessoal são registrados pelas mudanças de local de residência" (Park, 1925: 141).

Como a cidade tende inexoravelmente ao crescimento, atinge um primeiro ponto de equilíbrio com a seguinte configuração concêntrica:

I. Loop (bairro central de negócios de Chicago, cidade tomada como paradigma da regularidade de crescimento urbano).

II. Zona de transição (antiga coroa circundando o centro, em processo de lento abandono pelos antigos residentes e agora esparsamente ocupada por armazéns e outras atividades atacadistas).

III. Zona de moradia de operários.

IV. Zona de residências de alta categoria.

V. Zona de commuters (literalmente "baldeadores" de subúrbios).

Ao crescer a cidade, a coroa residencial que cerca a área central de negócios começa a ser abandonada em favor de locais residenciais mais distantes, gerando-se vazios que são preenchidos por populações indesejáveis que, por sua vez, involuntariamente, ajudam a acelerar o processo de descentralização da cidade. Aquilo que era moda ou capricho de alguns, morar longe do centro, passa a receber o estímulo suplementar da indesejabilidade das vizinhanças recém-instaladas e a moda vira tendência firme. A coroa anteriormente residencial transforma-se em cortiço, abrigando um grupo social inesperado e malvisto. Pois a cidade terá crescido e recebido novos habitantes, os mais aquinhoados procurando as periferias nobres, os mais pobres instalando-se nos lugares centrais disponíveis. Esse processo torna-se possível graças ao enriquecimento da cidade como um todo e, por mecanismos de drenagem e concentração de poupança, a riqueza continua a crescer, pondo a poupança em circulação como capital produtivo.

Estes processos de distanciamento social, entre a "suburbia" e a coroa deteriorada, não surgem na análise como tal e sim através de uma educada formulação da sociedade como organização natural do homem, como construção igualmente natural de áreas urbanas, tendo como contraparte aqueles que se comportam de modo não-natural, que merecem classificações especiais, como patológicos, esdrúxulos e rejeitáveis. O emprego da força para a manutenção da sociedade natural e normal encontra justificativa não somente moral como lógica, encaixando-se nessa concepção de sociedade. As invasões são tratadas como casos de polícia. Reforça-se a oposição entre as camadas rica e pobre

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da sociedade urbana, crescem os desvios e multiplicam-se os epítetos depreciativos. A noção de marginalidade assume ali a conotação policial que hoje possui, sendo associada à decadência, vagabundagem, imoralidade.

A sociedade, antes esboçada como autora das áreas da cidade e sua ocupante, agora é representada com mais precisão, decalcando aqueles traços preliminares num todo funcional e harmônico, hoje ameaçado pela patologia social engendrada pela própria cidade. Esse todo é reconhecível pelas suas partes componentes, as instituições, que funcionam em articulação, completando-se mutuamente em harmonia.

A cidade, nesse contexto funcionalista, é apresentada como objeto da ação dos grupos institucionais, como modificação consciente da natureza, enfim, como fruto da vontade. Estudar a cidade, transformá-la em objeto, significa, de início, identificar-lhe as instituições, reconhecer as alterações de sentido que sofre com o passar do tempo, completando-se o conhecimento pela proposta de ação sobre ela, no mínimo para lhe recuperar a harmonia perdida. Sempre voltado para a ação, o estudo funcionalista da cidade reconhece planejadores e investidores como envolvidos num mesmo afã de operar o real, o cujo critério está obviamente na eficácia.  

A cidade do desperdício

A terceira grande linha de explicação da cidade é derivada da biologia, entendendo-a como um arranjo precário entre seres vivos, utilizando nesse entendimento um empréstimo conceitual, a noção de ecologia, empregada por Haeckel, em 1878, que aplicou-a ao estudo das inter-relações entre as espécies. Em 1935, o botânico Tansley utilizou a expressão ecossistema. Mas somente em 1969, na Califórnia, é que se junta a ecologia científica à consciência generalizada da degradação do ambiente natural, surgindo uma linha de pensamento ecológico rapidamente popularizada, a qual, no dizer de Edgar Morin, deu corpo a uma versão romantizada da natureza, dotando-a de justificação racional (Morin, 1989: 1, 18). Antes disso, em 1931, o mesmo Robert Park, que iniciara com Ernest Burgess a sociologia urbana em Chicago, que vira na cidade um conjunto de áreas naturais, publicava artigos falando em ecologia urbana.

Escritos nos padrões do funcionalismo, os textos de Park discorrem sobre a cidade como local ocupado por uma sociedade, cabendo à sociologia explicar a "sociedade", a cidade comparecendo como cenário para as instituições sociais. Descritas enquanto processos, tais instituições evoluem no tempo, o que obriga o autor a uma teoria da história e ele a faz como se o passar do tempo tivesse sentido apenas como uma enfiada de crises e de novas divisões-do-trabalho tendentes a recompor harmonias perdidas. "O comércio, destruindo progressivamente o isolamento sobre o qual repousava a antiga ordem da natureza, intensificou a luta pela existência sobre uma área cada vez maior do mundo habitado. Dessa luta está surgindo um novo equilíbrio e um novo sistema de natureza animada, isto é, a nova base biótica da sociedade mundial. A competição, na comunidade humana, como na vegetal e animal, restabelece o equilíbrio da comunidade quando, ou pelo advento de algum fator estranho, ou no curso normal da sua vida, esse equilíbrio é perturbado."

"Assim, cada crise que inicia um período de rápida mudança, durante o qual a competição é intensificada, leva finalmente a um período de equilíbrio mais ou menos estável e a uma nova divisão de trabalho. Deste modo, a competição alcança uma condição na qual é superada pela cooperação."

"É quando, e na medida em que a competição declina, se pode dizer que existe a espécie de ordem que chamamos 'sociedade'. Numa palavra, a sociedade, do ponto de vista ecológico, enquanto unidade territorial, é precisamente a área dentro da qual a competição biótica declinou e a luta pela existência assumiu formas mais elevadas e mais sublimadas" (Park, 1925: 26-7).

No texto, percebem-se algumas noções hoje bastante mudadas, mas, curiosamente, ainda hoje empregadas nessas antigas formulações para explicar a cidade, num grande número de análises, transformando certos aspectos em problemas e outros em harmonia, tomando como critério a noção de "natural" como aquilo que pertence à natureza, em oposição a não-natural, ou artificial, como aquilo que é impertinente à natureza. Esse critério se apóia em determinada noção de natureza como instância na qual se resolvem os conflitos competitivos e se estabelecem modos-de-vida triunfalmente estáveis. E serve bem à ecologia da cidade, enfatizando a pobreza como sintoma de degeneração do hábitat e de declínio da qualidade de vida, portanto sendo considerada como desarmônica e disruptiva.

As posições ecológicas mais recentes, bastante numerosas, possuem alguns traços fundamentais comuns, os principais sendo: a) que a cidade é um sistema estruturado e obedece aos requisitos dos sistemas estruturados em geral e b) que ela é explicável como resultado da ação humana, individual ou em grupo, ou como comércio, ou bem-estar, ou como produção, como contemplação, enfim, como um não-terminar de metamorfoses provocadas pelo homem, conscientemente ou não. Observa-se nesses dois traços básicos uma confluência genérica com a escola de Chicago. Para estabelecer as diferenças entre eles, é necessário que sejam descritos mais minuciosamente.

Como sistema em geral, a cidade é finita; como um sistema estruturado, deveria explicar-se internamente. Mas não é assim que acontece, pois os estudiosos atuais da ecologia vinculam vários aspectos da cidade a sistemas mais amplos, o mais comum deles sendo o planeta. Por exemplo, em termos de composição química da atmosfera do planeta, a cidade é parcialmente responsabilizada como "poluidora", levando a questão a ser reformulada para "o conjunto de cidades do planeta" e não mais para uma cidade específica de determinado país, nem para a cidade genérica. Entretanto, em outras questões, a cidade se basta enquanto explicação e a noção de sistema lhe cabe adequadamente. É o caso do aumento populacional, que sempre se acompanha do adjetivo "urbano", revelando a cidade como local mais que preferencial, único, do crescimento demográfico. E, neste caso, a análise se sustenta, quer o objeto seja uma cidade particular, quer seja o conjunto das cidades do planeta.

A cidade, como produto sempre cambiante da ação humana, surge então aos seus analistas como um emaranhado de ações que se sobrepõem, misturam-se e dificultam a compreensão. A primeira tarefa do estudioso, portanto, tem sido selecionar dentre as ações humanas - ou, mais precisamente, dentre os resultados das ações humanas porque limita-se a contabilizar inteligivelmente os dados do mundo sensível - aqueles elementos significativos para explicar as

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alterações ecológicas observadas. Vê-se que há uma etapa preliminar a cumprir, a de conferir sentido e estabelecer relações entre os dados a coletar, empregando-se para isso uma noção adequada, a de "nicho ecológico", conforme se aplica ao meio urbano. E não há uma só noção de nicho, mas muitas, algumas falando de indivíduos, outras de grupos, outras da população urbana inteira. Essa variedade de definições foi um elemento complicador, tendo levado vários cientistas a rever a noção de espécie, em função dos nichos, considerados significativos, em que um ser vivo particular pode ser encontrado; hoje, tal revisão está já incorporada a certos progressos da biologia.

O traço básico desse tipo de análise está na constatação preliminar de que a ação humana sempre degrada o ambiente e que tal processo tem seus limites na física e na química do planeta. E a cidade inevitavelmente comparece como limite de algumas das ações humanas, embora em vários aspectos não seja apenas ela e sim o planeta que serve como referência paramétrica.

Essa posição, existente desde os anos 60, evoluiu notavelmente, pois seu tom de profecia catastrófica esvaziou-se e foi preciso, como constata Morin, que surgisse a verificação empírica da profecia para que a teoria revivesse e evoluísse. Isso aconteceu com Seveso e Tchernobyl, que lançaram o grande alerta sobre a biosfera. "Doravante, com recuo, pode-se ver melhor aquilo que havia de secundário e de essencial na tomada de consciência ecológica. O que havia de secundário, e que alguns tomaram como o principal, era o alerta energético. Muitas pessoas da primeira vaga ecológica acreditaram que se iriam dilapidar muito rapidamente os recursos energéticos do globo. De fato, as potencialidades ilimitadas do nuclear e do solar indicam que a ameaça não se situa ali. O segundo erro era o mito de uma natureza representando uma espécie de equilíbrio ideal, estático, que se deveria respeitar ou restabelecer. Ignorava-se que os ecossistemas e a biosfera têm uma história feita de rupturas de equilíbrios e de reequilíbrios, de desorganizações e de reorganizações" (Morin, 1989: 18).

O recuo referido por Morin, a distância no tempo, foi já suficiente e permite-lhe repor as questões nos seguintes termos: "1) a reintegração do nosso ambiente na nossa consciência antropológica e social; 2) a ressurreição ecossistêmica da idéia de natureza; 3) a contribuição decisiva da biosfera à nossa consciência planetária" (Morin, 1989:18).

Como cresce São Paulo?

Tomando São Paulo como exemplo concreto, pode-se observar como as três grandes linhas de análise são capazes de iluminar a realidade e torná-la explícita. Alternativamente, pode-se ver também que são restritas como capacidade explicativa, pois, embora sejam globalizadoras e tenham a pretensão da universalidade, abrem certas categorias e nestas permanecem, ali fazendo caber todo e qualquer aspecto da realidade. Pensar a cidade, portanto, significa utilizar em conjunto tais idéias - entre outras - em função das realidades urbanas que se pretenda explicar.

Como cresce São Paulo? A resposta é complexa e dela se destacam dois pontos distintos. Primeiro, cresce internamente, por adensamento, como aumento da cidade vertical. Este tipo de crescimento significa a imposição de uma mesma racionalidade de construção a áreas cada vez mais freqüentes e homogêneas da urbe e pode ser entendida, no que concerne à aglomeração paulistana, como polarizadora da problemática urbana, por exemplo, pelas categorias das finanças municipais, pois essa é uma das formas pelas quais opera e assume sentido, sendo utilizada na imposição de impostos. O crescimento vertical caracteristicamente absorve um público das camadas rica, média e remediada com poder de compra familiar ao menos de cinco salários mínimos. Esse limite inferior é historicamente estabelecido pelos financiamentos públicos para a habitação. Não se pode dizer que esse piso de renda seja indicativo dos limites da consciência dos cidadãos sobre a cidade enquanto conjunto de áreas de valor, somente porque esses grupos sejam familiarizados com uma mesma racionalidade econômica. Contudo, pode-se perceber que, no mínimo, constituem um conjunto lógico, com características próprias e com interesses comuns definidos. Quer dizer, o crescimento vertical organiza a consciência, no mínimo estimulando a noção de pertencer-ao-grupo.

Numa outra exploração conceitual, verifica-se que São Paulo cresce também como aumento de superfície, como cidade horizontal, anexando lotes novos, em sua maioria com edificações de um só andar, servindo como moradia, e quase que exclusivamente pobres. Perto de 1.500 loteamentos estão hoje abertos ao público. Destes, apenas dois ou três são rigorosamente legais, oficialmente autorizados a funcionar. Os demais, como se sabe, são clandestinos, voltados para um público pobre, cuja capacidade de poupança retida, para investimentos em construção e melhoramentos é muito baixa. Embora o conjunto da cidade evolua rapidamente, a periferia pobre cresce num ritmo lento, determinado pelas variações da capacidade de investimento, espantosamente baixa, muito aquém daquela que se poderia considerar como mínima para a imposição de impostos (e portanto para uma desejável igualdade formal entre contribuintes, que a cidadania pressupõe). Esse lado pobre da cidade, incapaz de pagar pelos benefícios urbanos que recebe, sobrevive graças a um "robin-hoodismo" redistributivo praticado pela administração municipal. Por isso mesmo são cidadãos diferenciados, assistidos pelo Estado no limiar da indigência, cultivados minimamente nessa estufa da cultura urbana, como força auxiliar para muitas tarefas, entre as quais a eleitoral. Morar, para eles, significa providenciar a própria moradia, pois, como excluídos do mercado da habitação, não têm outra opção. Tal processo tem um efeito perverso de retroalimentação que funciona eficientemente sempre que cai o poder aquisitivo dessa massa populacional, pois, quando desaparece completamente a poupança, aumenta a dependência, com respeito aos políticos de bairro, aos administradores regionais, às associações beneficentes. Não é apenas o Estado que se mostra assistencialista, é toda a sociedade "urbanizada" de classes média e rica, que de alguma maneira cuida da sobrevivência da franja miserável, a qual de outra forma não teria como sobreviver, urbanisticamente falando. Este é um dos laços que prendem uma à outra as duas concepções de cidade, vertical e horizontal, laços que de forma alguma podem ser tomados como de união, sob pena de causar confusão. Servem para opor e contrapor, sem unir.

Mas essa situação não é exaustiva, ela simplesmente cumpre uma primeira aparição da forma mercadoria, durante a qual a família pobre deixa de lado o consumo "supérfluo" e se dedica ao investimento em construção civil, caracterizando aquilo que se convencionou chamar pelo infeliz termo de autoconstrução. Para chegar lá, naquela situação de equilíbrio e relativa estabilidade orçamentária, foi preciso adquirir o lote, limpá-lo da vegetação, construí-lo e, de alguma forma, legalizá-lo; literalmente, arrancá-lo da natureza. O produto dessa faina, a casa, quando se termina enquanto projeto individual, muitos anos depois de iniciado, é reconhecido como acabado, na perspectiva do

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autoconstrutor. Ainda falta algo para que essa primeira forma da mercadoria possa se completar: ela exige tipicamente um percurso adicional da consciência do autoconstrutor, que o leve a transpor o estágio apologético de sua obra em direção à crítica, trazendo-lhe ao nível da percepção a noção de que, ao transformar-se o projeto em edificação, esta é necessariamente imperfeita e os erros passam a ser visíveis. Nesse instante, a casa não é mais tão útil e opera-se o abandono da forma valor de uso e sua substituição pelo valor de troca.

Na maior parte das vezes, permanece incompleto esse primeiro aspecto manifesto da mercadoria, nada mudando, a casa permanecendo em poder do construtor, ou então sob o domínio de um inquilino episódico, ou, mais provavelmente, sendo vendida a outro proprietário, continuando com ele a desempenhar seu papel de moradia pobre na cidade horizontal. Conclui-se que, nestes casos, seja vendida ou não a casa, sua forma de mercadoria fica circunscrita à pobreza, não importando qual seja seu destino, do ponto de vista do urbanismo.

Há, contudo, uma segunda forma de ser da mercadoria que pode se instalar, ou não - sendo portanto uma forma contingente -, envolvendo a compra de casas na periferia, por parte de uma empresa construtora organizada, para demolição. Ali se constrói um edifício de apartamentos, tornando aquele pedaço de terra um trecho verticalizado da cidade. Há condições preliminares para que isso aconteça, uma delas sendo que o lote - ou grupo de lotes - deve já contar com o atendimento dos serviços públicos de água, luz, iluminação pública, telefone e, ocasionalmente, outros serviços, como rede de esgoto, pavimentação viária, entrega postal, etc. O adensamento, a edificação de prédios de apartamentos, vale-se sempre de sítios já "urbanizados" da cidade e muito raramente avança mato adentro.

Observa-se então que o autoconstrutor, que pode ser compreendido como um excluído do mercado de construção habitacional, produz por suas próprias artes a residência que, bem ou mal, o abriga e pela qual luta, procurando dotá-la dos serviços urbanos, e pedindo por ela ora ao político do bairro, ora diretamente ao prefeito. Nesse sentido, ele promove a "urbanização" do lote. Posteriormente, vende a casa aos demolidores, que ali edificam verticalmente um pedaço de cidade aspergindo sobre as adjacências um cheiro de racionalidade que o bairro não conhecia. O autoconstrutor, que já vendeu sua obra, agora se transforma de novo em consumidor de lotes urbanos e vai repetir seu novo papel de comprador mais adiante, outra vez fora dos limites da área urbanizada, para lá edificar nova casa, presumivelmente escoimada dos erros que havia cometido na anterior. E, dessa forma, cumpre seu cruel destino de desbravador urbano, pondo em prática artes que desconhece (arquitetura, terraplenagem, eletricidade, hidráulica), reivindicando para o seu objeto os atributos da cidade, vendendo esse produto de sua autoria para, finalmente, repetir o mesmo gesto do desbravamento.

A esta figura do desbravador vem juntar-se uma outra, a do ocupante de espaços discretos na paisagem, sem distinguir se urbana ou rural, aquele que, na sua indigência de ente cultural e geograficamente periférico, transporta consigo uma noção de habitação menos complexa do que a autoconstrução e que encontra termo de comparação apenas na indigência do cortiço do centro da cidade. Este indivíduo, sem o desejar, pode acabar desempenhando também o papel de desbravador, quando sua presença é invocada por um proprietário de gleba para iniciar um loteamento, sob a alegação de que não se trata propriamente de um início, mas de mera continuação, pois já há ocupantes instalados. Claro que, nesses casos, o tal ocupante de espaços será expulso, logo que os demais habitantes do loteamento dele se distanciarem socialmente. Possivelmente, cumprirá alhures seu destino de diálogo com a natureza, sem se aperceber de que, ao tratá-la como valor de uso, possibilitou a outrem descobrir no seu gesto um valor socialmente referido, de troca, lucrando com sua presença na paisagem. Longe de ser um desbravador urbanizante, esta figura seria melhor descrita como a de um simples balizador de futuras agregações urbanas, sempre excluído do mundo da mercadoria e da cultura, mas sendo significativo para elas.

Num bairro periférico, ao se edificarem os lotes pela autoconstrução, uma ampla gama de fenômenos passa a ter existência. A favela de periferia é um deles, surgindo quando o proprietário do lote recebe inquilinos e os amontoa, comumente na porção inundável, em faixas non aedificandi, numa servidão pública privatizada, etc. O transporte coletivo clandestino em horas de pico é outro fenômeno comum, no qual empregam-se habitualmente kombis, várias delas a gás de cozinha. Há muitos outros. O que os une, o que têm de comum, é improvisação e iniciativa, mas sempre profundamente marcadas pelo mesmo estigma, a miséria. Por outro lado, ninguém constrói uma fossa séptica (como atesta um estudo de bacias hidrográficas urbanas feito pela Sabesp em 1986), o que seria uma solução, embora sofrível, para a questão do esgoto sanitário. Ninguém se organiza para coletar o lixo domiciliar, nem para desobstruir os cursos d'água. E o funcionamento continuado de uma tal periferia gera inevitavelmente apreciações negativas por parte dos demais habitantes. Talvez, por um mecanismo de simplificação de opinião, ou, quem sabe, por processos de percepção imperfeita da realidade, essa franja externa da cidade, distante do centro, passa a fazer parte do elenco das "poluições" da cidade, estimulando o estereótipo de que a pobreza polui.

Transportando o raciocínio para outro plano, no contexto habitual dos ecologistas voltados para a identificação das atividades humanas que degradam o ambiente, a cidade comparece como origem de vários tipos de degradação, simplificadamente denominados de poluição. Estes são devidos principalmente às atividades industriais, ao excesso do contingente humano nas cidades, à falta de educação dos pobres de periferia e às formas de geração de energia. Quer dizer, os ecologistas deixam entrever uma noção de convívio entre homem e natureza na qual retomam, sub-reptidamente, as velhas idéias de necessidades universais do homem, por um lado herdadas de um romantismo conservador que valorizava a vida no campo, a comunidade antiga, etc., e, por outro, remontadas a partir do evolucionismo social tecnicista que influenciava a sociologia, no século XIX. Essas idéias enumeravam as necessidades humanas e serviram para mostrar como (e por quê) o homem se organiza em instituições e como estas o servem. A moderna ecologia recupera a questão das necessidades falando em água pura, alimentação pura, energia limpa, população controlada, produção industrial limpa, etc. E assim termina por recuperar, junto com essas necessidades, a noção de que as instituições do homem são imperfeitas, poluem e, por conseguinte, devem ser corrigidas, aperfeiçoadas. Como os avanços da biologia não lhe fornecem indicações nem critérios para as correções, a ecologia simplesmente patina na denúncia, mas serve admiravelmente a um fim que não constava de suas preocupações: ao difundir uma imagem emocionalmente crítica da atividade humana, ela ajuda a preparar o surgimento de uma noção de ciência na qual a relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido é profundamente afetada pela descoberta da interferência mútua e, ainda, a definição (e portanto a organização) do objeto coincide com a definição (e organização) do sujeito.

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Revendo a noção de crescimento

Seria oportuna uma comparação, no que respeita ao crescimento de São Paulo, nos termos em que a questão foi posta. São Paulo, ao contrário de Chicago, tem seus pobres na periferia. Nessa grande cidade do norte, os subúrbios são naturalmente procurados pelos ricos e a coroa central pelos pobres. Observa-se que São Paulo não cabe nesse modelo do funcionalismo. Ademais, as características de São Paulo, de adensamento centralizado, explicam de certa forma um outro fenômeno exclusivo, o da especulação imobiliária que incita a ver no solo um bem de raiz, fato que não ocorre em Chicago e nem sequer seria inteligível lá. Talvez a explicação dessas grandes diferenças passe pelo transporte coletivo, o de lá e o de cá. Lá, desde os anos 10 deste século, as ferrovias radiais começaram a tornar disponíveis os lugares distantes, estimulando-se o fenômeno da descentralização, enquanto aqui as dificuldades de locomoção estimularam o lado contrário, da concentração e da centralização, que se fazem acompanhar, indefectivelmente, pela especulação imobiliária.

Ainda sobre a noção de áreas naturais, da escola de Chicago, as inversões de localização entre ricos e pobres levantadas por uma análise comparativa fariam imaginar a periferia pobre como área "natural" de São Paulo. Se assim fosse encaminhada a análise, não estaria longe da verdade, pois o "natural" do social está na sua aparição inconspícua, de permeio com outras categorias da cultura. Se substituísse a palavra natural por cultural, também não andaria muito errado e permitiria conduzir a análise para regiões que a escola de Chicago mal aflorou, mas que a antropologia tem podido realçar. Por exemplo, poderia estudar e explicar o conjunto da estereotipia em voga: num primeiro momento, o subconjunto dos cidadãos que se enxergam e se descrevem como "normais", em contraposição àqueles outros, designados como "pobres" - e, já que o palco onde se desenrola a cena é a cidade, e nem poderia ser de outra forma, tal estudo encaminha-se pelas categorias da ordenação urbana e de como esta define o seu contrário, a desordem, e nela busca os elementos da própria sustentação. Num segundo momento, e quiçá mais importante, explicaria o preconceito, desta vez positivo, dos pobres com relação aos não-pobres, que possivelmente completaria o anterior, enriquecendo de significados o par de oposições ordem/desordem e até podendo chegar a desvendar seu alcance, permanência e durabilidade, como chave da compreensão do mundo da cultura.

BIBLIOGRAFIA

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JOSÉ FRANCISCO QUIRINO é professor do Departamento de Antropologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Culturas Urbanas da USP.