máscaras guardadas

461
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA BRUNO CÉSAR BRULON SOARES MÁSCARAS GUARDADAS: MUSEALIZAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO Niterói 2012

Upload: fecasbar

Post on 03-Oct-2015

53 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

tese de doutorado de Bruno César Brulon Soares

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    BRUNO CSAR BRULON SOARES

    MSCARAS GUARDADAS:

    MUSEALIZAO E DESCOLONIZAO

    Niteri

    2012

  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    BRUNO CSAR BRULON SOARES

    MSCARAS GUARDADAS:

    MUSEALIZAO E DESCOLONIZAO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito parcial

    para a obteno do Grau de Doutor.

    Orientadora: Professora Lygia Segala

    Linha de Pesquisa: Transmisso de Patrimnios Culturais

    Niteri

    2012

  • S676 Soares, Bruno Csar Brulon.

    Mscaras guardadas: musealizao e descolonizao / Bruno Csar

    Brulon Soares. 2012. 448 f.

    Orientador: Lygia Segala.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia, 2012.

    Bibliografia: f. 433-448.

    1. Museu. 2. Etnografia. 3. Ecomuseu. I. Segala, Lygia. II. Universidade

    Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas.

    CDD 069

  • MSCARAS GUARDADAS:

    MUSEALIZAO E DESCOLONIZAO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para a obteno do Grau de Doutor.

    Niteri, 17 de dezembro de 2012.

    Banca Examinadora

    ________________________________________

    Prof. Orientadora Dr. Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto

    PPGA - Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________

    Prof. Dr. Ana Lcia Ferraz

    Departamento de Antropologia - Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________

    Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira

    PPGAS/MN - Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ________________________________________

    Prof. Dr. Jos Srgio Leite Lopes

    PPGAS/MN - Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ________________________________________

    Prof. Dr. Marcos Otvio Bezerra

    PPGA - Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________

    Prof. Dr. Ana Maria de Lima Daou - suplente

    IGEO - Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ________________________________________

    Prof. Dr. Eliane Cantarino ODwyer - suplente PPGA - Universidade Federal Fluminense

    Niteri, 2012

  • v

    GUARDAR

    Guardar uma coisa no escond-la ou tranc-la.

    Em cofre no se guarda coisa alguma.

    Em cofre perde-se a coisa vista.

    Guardar uma coisa olh-la, fit-la, mir-la por

    admir-la, isto , ilumin-la ou ser por ela iluminado.

    Guardar uma coisa vigi-la, isto , fazer viglia por

    ela, isto , velar por ela, isto , estar acordado por ela,

    isto , estar por ela ou ser por ela.

    Por isso melhor se guarda o vo de um pssaro

    Do que um pssaro sem vos.

    Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,

    por isso se declara e declama um poema:

    Para guard-lo:

    Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

    Guarde o que quer que guarda um poema:

    Por isso o lance do poema:

    Por guardar-se o que se quer guardar.

    (Antonio Cicero, 1996 Guardar: poemas escolhidos)

  • vi

    minha querida av,

    Cllia Nanci

  • vii

    Agradecimentos:

    Entre as coisas guardadas, as mais importantes delas so as pessoas que passam

    a fazer parte de nossas vidas ao longo de nossas trajetrias. Esta tese foi escrita graas

    aos mltiplos encontros que fazem de uma pesquisa, entre outras coisas, um objeto

    relacional, do qual no se pode deixar de pensar com afeto e saudade. Alguns desses

    encontros merecem aqui ser lembrados, para que, logo, sejam guardados nestas linhas

    de gratido.

    O primeiro deles e, certamente, o mais importante de todos, por ter permitido

    quase todos os outros foi aquele com a orientadora desta tese, que com a maior das

    generosidades e a dureza necessria para gerar o crescimento acadmico que os seus

    alunos merecem, me acolheu em seu laboratrio e na antropologia e acreditou nesta

    pesquisa. Lygia Segala, a voc eu devo cada palavra escrita nas pginas que se seguem.

    No Brasil, muitos foram os encontros que me levaram a acreditar que o

    pensamento antropolgico uma via necessria e profcua para se pensar os museus.

    Particularmente, no Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFF, agradeo

    aos professores doutores Marcos Otvio Bezerra, Simoni Lahud Guedes, Tania Stolze

    Lima, Delma Pessanha Neves, Eliane Cantarino O'Dwyer e Paulo Gabriel Hilu Pinto.

    Igualmente essenciais para a minha trajetria foram os colegas de curso e amigos Mary

    Congolino, Rebecca Guidi, Daniel Martinez, Janaina Simes e Shirley Torquato.

    Certamente, contar com o apoio de instituies de fomento pesquisa ao longo

    do perodo do curso tanto no Brasil quanto na Frana, atravs de uma bolsa de estgio

    doutoral no exterior da CAPES (PDSE) e uma bolsa FAPERJ Nota 10 foi essencial

    para a concretizao deste trabalho e para minha formao acadmica.

    Na Frana, agradeo, em primeiro lugar, ao professor doutor Afrnio Garcia, por

    sua orientao desta pesquisa na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, em

    Paris, e aos professores Brigitte Derlon, Maurice Godelier, Pierre-Lonce Jordan,

    Benot de LEstoile, Franois Mairesse e Anne-Marie Thiesse, pelos generosos

    comentrios sobre o meu objeto de estudo e pelos encontros inspiradores nos seminrios

    que cursei. Andr Delpuech e Anne-Christine Taylor por abrirem as portas de seus

    escritrios no Muse du quai Branly para responderem s minhas perguntas incansveis.

    Mathilde Bellaigue por uma tarde emocionante e inspiradora em que falamos sobre os

    ecomuseus e a museologia francesa. Aos amigos que tornaram a minha vida, em Paris,

    ainda mais encantadora, Camila Bessa, Anthony Laurent e Mani Tebet.

  • viii

    Andr Desvalles, companheiro do Comit Internacional de Museologia do

    ICOM (ICOFOM) desde 2006, mas que se tornou o principal informante desta pesquisa,

    e a quem eu devo a minha lucidez nos momentos mais difceis.

    No mundo dos museus e da museologia, agradeo pelo companheirismo e

    incentivo dos colegas e amigos que acreditaram no sucesso deste doutorado desde o

    primeiro instante. Vino Sofka e Suzanne Nash, meus avs do ICOFOM, e minha

    inspirao na museologia, que me acolheram no seio deste comit e acreditaram no meu

    pensamento sobre os museus; Tereza Scheiner, que me incentivou a percorrer os

    caminhos do pensamento antropolgico; Ann Davis, Lynn Maranda e Jennifer Harris,

    com as quais trabalhei nos ltimos trs anos escrevendo uma museologia no sculo

    XXI. Aos amigos muselogos Emerson Castilho, Henrique Cruz, Monique Magaldi e

    Luciana Menezes que torceram pela concretizao desta tese. Agradeo, ainda, a

    Fernando Bassi, pela cuidadosa reviso do texto finalizado.

    Bruno Assis, por estar ao meu lado nos momentos em que mais precisei.

    minha famlia e meus amigos mais prximos. Todos para sempre guardados na

    memria e no corao.

  • ix

    RESUMO: A tese tem o objetivo de investigar os processos de musealizao na

    Frana, entre os museus dos Outros e os museus de Si, como classificados por

    especialistas da antropologia, refletindo sobre as especificidades e a historicidade dessas

    categorias a partir do estudo de museus etnogrficos tradicionais e ecomuseus. A

    pesquisa tem como objeto social de anlise os enunciados das instituies e a

    construo de performances culturais nas diferentes matrizes de museus colocadas em

    perspectiva pela teoria antropolgica. Atravs de uma anlise etnogrfica e histrica

    procura-se entender os processos de musealizao atualmente no Muse du quai Branly,

    considerando a vida museal dos objetos transformados em obras de arte e os seus sentidos para os atores desse museu. Na anlise do desenvolvimento dos ecomuseus na

    Frana, buscou-se, com o estudo do Ecomuseu da comunidade urbana do Creusot

    Montceau-les-Mines, esboar uma reflexo sobre a musealizao dos contextos atravs

    da valorizao do patrimnio ntimo, ressignificado pelo grupo social local. luz dos casos selecionados, interessa analisar os movimentos identitrios da representao do

    Outro e a de si nos museus. este permanente construir-se e ver-se atravs do Outro,

    que caracteriza a relao etnogrfica que queremos entender para elucidar os processos

    pelos quais os museus escolhem o que guardar para transmitir.

    Palavras-chave: Museu. Museu etnogrfico. Ecomuseu. Processos de musealizao.

    ABSTRACT: This thesis investigates processes of musealization in France,

    considering the museums of the Other and the museums of the Self as defined by specialists in anthropology analyzing these categories in their specificities and historicity. This analysis is based on the study of traditional ethnographic museums and

    ecomuseums. The research aims to investigate the institutional discourses and the

    production of cultural performances in the different types of museums that are put into

    perspective by the anthropological theory. With the ethnographic and historical analysis

    of the Muse du quai Branly we seek to understand the processes of musealization in

    this institution, considering the museological life of the objects that become works of art, and the meanings they have to the museum professionals. In the study of the development of ecomuseums in France, and the investigation of the Ecomuseum of the

    Creusot Montceau-les-Mines urban community, we draw a reflection on the

    musealization of social contexts implicating in the preservation of an intimate heritage resignified to the local group. In the light of the selected case studies, we intend to

    investigate the identitary movements such as the representation of the Other and the

    representation of the Self in museums. This permanent construction of the Self through

    the Other encompasses the ethnographic relation we intend to comprehend in order to

    elucidate the processes by which museums select what they are going to keep and transmit.

    Keywords: Museum. Ethnographic museum. Ecomuseum. Processes of musealization.

  • x

    Mscaras guardadas: musealizao e descolonizao

    SUMRIO:

    Introduo: sobre as coisas que se do p.1

    PARTE 1:

    O Muse du quai Branly: uma abordagem histrica e

    antropolgica

    p.33

    Captulo 1 Olhar os Outros: a relao etnogrfica nos museus p.34

    1. A inveno dos museus dos Outros

    p.44

    1.1 A viagem do olhar: a misso Dakar-Djibouti e o teatro das

    diferenas

    p.50

    1.2 A etnologia nos museus: a reinveno de uma cincia

    francesa

    p.57

    1.3 O novo museu de etnografia p.63

    2. Olhar os outros: a configurao do objeto etnogrfico

    p.74

    2.1 Entre o visvel e o sensvel: as representaes do imaginrio

    e do simblico

    p.79

    2.2 Objeto etnogrfico e olhar coletivo p.83

    2.3 A criao do patrimnio etnogrfico p.88

    Captulo 2 Das culturas palpveis s artes primeiras: crena, magia e musealizao

    p.94

    1. Tornando as culturas palpveis: o objeto autntico, das mos do musegrafo aos olhos do observador

    p.100

    1.1 O Muse dEthnographie du Trocadro: do tipo mdio e do etnogrfico

    p.106

    1.2 O Muse de lHomme: das culturas palpveis e da prova cientfica

    p.115

    1.2.1 A etnologia no museu e a construo de

    conhecimentos coloniais

    p.118

    1.2.2 Da arte ao documento, do documento arte: a

    museologia do Muse de lHomme

    p.121

  • xi

    2. A adorao das artes primeiras: a magia da musealizao

    p.130

    2.1 O Muse du quai Branly: do belo e do representativo p.137

    2.1.1 A museologia das chefs-duvre p.144 2.1.2 Materializando a Amrica: etnografia de uma coleo p.156

    2.1.2.1 As aquisies p.158

    2.1.2.2 A exposio p.171

    2.2 A arte como linguagem p.181

    2.3 A arte como experincia p.185

    3. Magia e musealizao: a performance do museu como ato

    mgico

    p.188

    Captulo 3 O gosto pela autoridade e a autoridade do gosto: as

    apropriaes culturais nas artes primeiras

    p.195

    1. O gosto autoritrio

    p.200

    1.1 Autor e autoridade p.211

    1.2 Um mercado de arte para as artes primeiras p.221 1.3 O efeito da arte: os museus como uma maneira de ver p.231

    2. A autoridade dos Outros

    p.240

    2.1 O direito sobre a cultura no museu de arte p.245

    2.2 Primeiras e contemporneas: a inveno da autoridade dos

    Outros

    p.249

    2.2.1 Arte contempornea no museu das artes primeiras p.253

    2.2.2 A antropologia visual do quai Branly: imagens da

    descolonizao

    p.265

    2.3 Apropriaes e desapropriaes: a cultura em negociao p.273

    3. O museu como apropriao cultural

    p.279

    PARTE 2: A descolonizao da musealizao p.286

    Captulo 4 Da fumaa do passado novidade do museu: a musealizao dos

    patrimnios ntimos

    p.287

    1. Bricolagem do passado: quadros, construtos e composies da

    memria

    p.294

    2. O comuse du Creusot Montceau-les-Mines: da arte local e

    da sociedade

    p.300

    2.1 A inveno de uma nova museologia e o Ecomuseu como paradigma

    p.309

    2.2 Por uma nova musealizao: o ecomuseu re-encenando os

    pequenos patrimnios

    p.322

    2.2.1 A trajetria de um patrimnio: da indstria vitrine do museu

    p.330

    2.2.2 A arte comunitria: o museu da arte de viver p.342

  • xii

    2.3 A comunidade como performance: o museu entre realidade e

    representao

    p.352

    2.3.1 Entre o ser e o no ser: a indeterminao na performance

    p.354

    2.3.2 Ao regenerativa, ou como opera a performance

    museal

    p.357

    2.3.3 Em direo a uma museologia relativa: a plateia como

    experincia

    p.363

    Captulo 5 Ouvir os Outros: a automusealizao, entre o teatro e a

    sacralidade

    p.367

    1. Encenaes da sacralidade nos ecomuseus p.375

    1.1 O mito dos ecomuseus: entre a mmica e a realidade p.382

    1.2 O culto comunidade p.390

    2. Automusealizao: uma via voz dos Outros

    p.394

    2.1 Automusealizao no Muse du quai Branly p.396

    2.2 Objeto sagrado, objeto de museu p.407

    3. A regenerao simblica p.412

    Consideraes: sobre as coisas que se guardam p.417

    Referncias p.433

  • xiii

    SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS:

    CAC - Centre dAction Culturelle (Centro de Ao Cultural ligado ao LARC)

    CNRS - Centre national de la recherche scientifique (Centro nacional de pesquisa cientfica)

    CRACAP - Centre national de Recherche dAnimation et de Cration pour les Arts Plastiques (Centro nacional de Pesquisa de Animao e de Criao para as Artes Plsticas)

    CUCM - Communaut urbaine Creusot-Montceau-Les-Mines (Comunidade Urbana Creusot-

    Montceau-Les-Mines)

    EHESS - cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Escola de Estudos Avanados em

    Cincias Sociais)

    ICOM - International Council of Museums (Conselho Internacional de Museus)

    ICOFOM - International Committee for Museology, ICOM (Comit Internacional de

    Museologia do Conselho Internacional de Museus)

    IFROA - Institut franais de restauration des oeuvres dart (Instituto francs de restaurao de obras de arte)

    INHA - Institut national dhistoire de lart (Instituto nacional de histria da arte)

    Inp - Institut national du patrimoine (Instituto nacional do patrimnio)

    LARC - Centre de Loisirs, Arts, Rencontres et Culture (Centro de Lazeres, Artes, Encontros e

    Cultura)

    LAS - Laboratoire dAnthropologie sociale, EHESS (Laboratrio de antropologia social da EHESS)

    MINOM - Mouvement International pour une Nouvelle Mousologie (Movimento Internacional

    por uma Nova Museologia)

    MNAAO - Muse National des Arts dAfrique et dOcanie (Museu Nacional de Artes da frica e da Oceania)

    MNATP - Muse National des Arts et Traditions Populaires (Museu Nacional de Artes e

    Tradies Populares)

    MNES - Musologie nouvelle et exprimentation sociale (Museologia nova e experimentao

    social)

    UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura)

  • Introduo: sobre as coisas que se do

    Is it impossible for you to let something go and let it go

    whole?1 (Sylvia Plath A birthday present)

    O que h de to distinto entre o que est bem perto e o que est muito longe? Ao

    atravessar a rua no quai Branly me deparo com um convite para sair de Paris por alguns

    instantes. Ainda distncia j possvel sentir a fora de um chamado emitida pela

    fachada do museu que se v logo adiante. H mistrio e drama antes mesmo de se

    alcanar a sua entrada. O mergulho no desconhecido se anuncia na fachada translcida

    que s permite ver o exotismo do jardim. Este ltimo proclama a ruptura com a

    racionalidade e a esttica clssica, ao instaurar um cenrio de assimetria e desordem. A

    vegetao de espcies consideradas exticas por qualquer jardineiro local invade a

    paisagem arquitetnica e interage com a fachada do museu. Diante da estrutura do

    prdio, observo a arquitetura composta por formas desproporcionais e imponderveis,

    que chamam a ateno para o fato de que a Paris clssica e simtrica ficou para trs.

    Pouco a pouco vou me sentindo pequeno diante da grandeza inquieta que se esconde por

    detrs das formas imprevistas e das distncias que construmos mentalmente antes

    mesmo de embarcar naquela viagem. Graas encenao do exotismo, que tem incio

    nas margens do Sena, uma plateia de curiosos levada a imergir no mistrio do museu,

    criado pelas sombras e pelo jogo de mostrar e esconder. Somos convidados a abandonar

    provisoriamente a claridade do que j se conhece na cidade luz.

    No se pode negar que h ali, ao alcance de todos os franceses, um pouco do

    sentido das antigas expedies coloniais a terras distantes, das quais se tem

    conhecimento apenas por intermdio da imaginao etnogrfica. O que se pretende

    encenar museograficamente algo j conhecido pelo pblico, mas a performance

    outra. A re-produo de uma esttica do diverso2, como entendida por Victor Segalen

    ao se referir ao exotismo, se faz pela teatralizao do espao em que sero expostas as

    colees etnogrficas do passado colonial francs. Este espao est marcado pela sua

    inteno de elevar o visitante a uma experincia sensorial e espiritual, que se

    confirmaria no interior das paredes do museu.

    1 impossvel voc deixar alguma coisa ir, e ir por completo? (traduo nossa).

    2 SEGALEN, Victor. Essai sur lexotisme. Paris: Fata Morgana, 1986.

  • Introduo 2

    Foi em fevereiro de 2007, pouco mais de seis meses aps a sua inaugurao, que

    visitei pela primeira vez o Muse du quai Branly3, em Paris. Naquele momento os

    museus etnogrficos no faziam parte de meu objeto de estudo, e eu ainda me preparava

    para estudar os terreiros de candombl na Bahia para o trabalho de campo que realizaria

    naquele mesmo ano, no mbito do mestrado em museologia, e que j me conduziria a

    percorrer os caminhos pouco explorados entre a crena e a musealizao.

    No decorrer daquela visita ao museu europeu, o pblico presente era composto

    quase que essencialmente por franceses curiosos, e poucos eram os turistas estrangeiros

    que tinham conhecimento da existncia recente daquele estabelecimento. Tudo isso me

    surpreendia primeira vista, j que aquele museu estava localizado bem ao lado do

    maior ponto turstico da cidade, e possivelmente do mundo.

    Ao atravessar a porta de entrada, fui me permitindo, gradativamente, ser

    seduzido pela arquitetura dos corredores e rampas sinuosos desenhados para envolver o

    corpo e o esprito, e pela museografia que deixava nas penumbras o espao a ser

    preenchido pela imaginao compondo parte daquela experincia. Os olhares curiosos

    dos outros visitantes revelavam o delicioso sabor do suspense e da descoberta,

    elementos ligados no apenas aos museus, mas tambm s viagens.

    A exposio onde se veem os objetos da coleo permanente do museu prope

    um mergulho no extico, e no sentido do exotismo que temos em cada um de ns. H

    uma certa sensao de sufocamento neste mergulho. O museu no retrata o Outro como

    um s, mas revela uma multiplicidade de outros, apresentados por uma museografia

    comum a todas as diferenas, para que o visitante possa sentir a sua prpria concepo

    da alteridade. O critrio que primeiro se faz evidente o do estranhamento, pois o

    desconhecer as peas expostas que possibilita, naquele contexto, que elas sejam

    reconhecidas como arte. Est colocado em voga aquilo que o observador europeu culto

    codifica como diferena em seus prprios termos e sensaes. Mas o que aquele contato

    com as mais variadas faces do Outro estava sugerindo em ltima instncia?

    Ao colocar em cena a experincia com a alteridade, o museu convida os seus

    usurios a se permitirem sentir o diverso atravs de uma experincia individual e

    interior, mediada pela performance das artes primeiras. Coloca-se em prtica um

    projeto de encantamento que envolve os objetos expostos, a museografia em que

    3 Museu do quai Branly. Ao longo da presente tese foram mantidos os nomes originais dos museus

    citados seguidos da traduo nossa em nota de rodap. O mesmo foi considerado para as instituies

    emblemticas ligadas a eles, com a exceo de universidades, ministrios e departamentos cujas tradues

    foram usadas diretamente no texto.

  • Introduo 3

    esto inseridos, e, se bem sucedido tal projeto, tambm o pblico. O Muse du quai

    Branly busca alcanar tal efeito de encantamento, fazendo da arte a fuso do tangvel

    e do intangvel4. Termos como encantamento ou encantao, consagrao e

    culto, so frequentemente usados pelos atores do museu, como parte de um

    vocabulrio que serve para legitimar a sacralidade museal, encenada como uma

    sacralidade no religiosa. Deste modo, o museu rompe sensivelmente com a separao

    instaurada entre o belo e o sagrado, entre a experincia sagrada e a experincia esttica.

    Aps caminhar por grande parte da exposio de objetos de arte das culturas no

    europeias, deparando-me com peas produzidas pelos mais variados povos da Oceania,

    sia e frica, e sem encontrar, at ento, nenhum ponto fixo, nenhum rosto familiar

    na minha rpida viagem a universos distantes, fui buscar, instintivamente, um pouco de

    ar na seo onde se encontravam os objetos dos povos da Amrica.

    Ao atravessar os vastos territrios da exposio, me deparei, finalmente, com

    uma vitrine que continha mscaras indgenas de povos da Amrica do Sul. Uma delas

    era uma mscara Wauj, do Mato Grosso, feita de fibras de palmeira e madeira. Outras

    mscaras de povos da Amaznia colombiana tambm se viam a alguns poucos metros

    de distncia, bem como adereos e pequenas esculturas usados em rituais de diferentes

    religies de influncia africana no Brasil, estas indissociveis na exposio. Logo

    adiante, um pequeno aparelho audiovisual transmitia ininterruptamente cenas de um

    ritual de candombl fotografadas por Pierre Verger, sem que nenhum dos objetos

    materiais ali presentes representasse este ritual. Aqueles eram fragmentos que eu

    reconhecia, mas talvez melhor teria sido se eu no os houvesse reconhecido.

    Aquela exposio no tratava daquilo que eu ou os outros visitantes pudssemos

    (re)conhecer ou identificar como familiar. Porque o que estava sendo proposto era que

    eu descobrisse em mim mesmo o que considerava o Outro. Para apresentar esse desafio

    antropolgico, o quai Branly encena um fluxo de objetos de origens longnquas no

    espao e no tempo que fazem com que o indivduo, ao percorrer os caminhos da

    exposio, sinta-se flutuando virtualmente em meio a um mar de ausncias marcadas

    no apenas pelos artefatos deslocados, mas pelo jogo teatral de luz e sombras.

    Atuando como um servio social idiossincrtico que fornece uma experincia

    particular, os museus no so meramente espaos para a contemplao de alguma coisa

    exterior ao sujeito da observao. O encontro que os museus provocam apresenta e

    4 VIATTE, Germain. Tu fais peur tu merveilles. Muse du quai Branly. Acquisitions 1998/2005. Paris:

    Muse du quai Branly / Runion des Muses Nationaux, 2006. p.39.

  • Introduo 4

    representa uma situao de confronto entre sujeito e objeto, em que ambas as partes

    influenciam e, potencialmente, mudam uma a outra. A experincia museolgica, que

    envolve o encontro das duas partes no cenrio do museu, a troca mesma entre aquilo

    que v o observador e aquilo que o objeto observado permite que ele veja. Essa troca de

    subjetividades implica em uma performance do objeto e do sujeito, na qual o

    sujeito/observador capaz de se perceber duplamente como si mesmo e como um outro,

    projetado no objeto musealizado. Dessa forma, museus funcionam como a experincia

    de ns mesmos diante daquilo que, estando muito perto ou muito longe de ns, somos

    levados a crer que de algum modo nos pertence, objetiva ou subjetivamente.

    Aquela visita ao quai Branly me suscitou perguntas, que, alguns anos depois me

    levariam a escrever esta tese. Em meio ao mistrio desenhado pela mise en scne dos

    objetos dos Outros, aquilo que mais me despertava interesse era descobrir como e por

    que o culto do extico nos museus continuava a atrair a ateno do mundo ocidental. E,

    para decifrar a musealizao das imagens do diverso, fui levado a questionar,

    primeiramente, como aqueles objetos to distantes, haviam chegado at to perto.

    Qual teria sido a vida museal precedente daqueles fragmentos guardados, seus fluxos,

    seus percursos? Como se construram os enunciados das instituies responsveis por

    guard-los como patrimnio de uma coletividade?

    O objetivo geral desta pesquisa o de investigar os processos de musealizao

    na Frana, entre os museus dos Outros e os museus de Si5, como so classificados pelos

    especialistas da antropologia, refletindo sobre a historicidade e as especificidades dessas

    categorias. A escolha do contexto francs se justifica pelo lugar de referencia que essas

    instituies museais ocupam no cenrio internacional e especialmente no Brasil,

    conformando e transferindo modelos tericos, gerenciais e expositivos, certificando

    modos de enunciao e de ao pedaggica. Ao longo da pesquisa, ao tentarmos

    problematizar enunciados reconhecidos por essas instituies e a construo de

    performances culturais nas diferentes matrizes de museus colocadas aqui em perspectiva

    pela teoria antropolgica, tomamos por base alm da observao direta, documentos

    textuais e entrevistas realizadas com diferentes profissionais que ocupam posio de

    relevo na definio desses projetos. Dialogamos principalmente com os conservadores,

    colecionadores, galeristas, historiadores da arte ou crticos, pesquisadores e

    documentalistas. No foi o caso aqui buscar compreender esses atores nas suas posies

    5 LESTOILE, Benot de. Le got des Autres. De lexposition coloniale aux arts premiers. Paris:

    Flammarion, 2007, passim.

  • Introduo 5

    especficas no campo da arte ou do patrimnio, mas relacion-los em funo de

    questes particulares sobre processos de musealizao nos museus etnogrficos

    escolhidos. No foco desse trabalho a anlise de pblico ou de recepo das

    exposies indicadas mas antes perceber como esses pblicos so pr-visualizados/

    imaginados e qualificados nos diferentes projetos apresentados por estas instituies.

    Nos casos selecionados, interessa analisar como se d nos museus a

    representao do Outro e a de si movimentos estes sempre identitrios por excelncia.

    este permanente construir-se e ver-se atravs do Outro, que caracteriza a relao

    etnogrfica como relao idealizada que queremos entender para elucidar os

    processos pelos quais os museus escolhem guardar para transmitir6 certos enunciados

    e certos objetos como peas de convico.

    Para entender, em uma microanlise, os processos de musealizao, me dedico a

    estudar dois movimentos chaves no desenvolvimento dos museus, ligados a dois tipos

    de performances complementares, ainda que distintas, sendo elas, a que se refere a uma

    gramtica colonial (captulos 1, 2 e 3), isto , colocada em prtica por um museu que

    tem como centro colees de objetos ligados, direta ou indiretamente, ao imprio

    colonial francs; e, em seguida, a que diz respeito gramtica da descolonizao dos

    museus (captulos 4 e 5), estando esta ligada s tentativas do final do sculo XX de se

    libertar a museologia de relaes de dominao. No primeiro caso nos voltaremos para

    o modelo tradicional de museu etnogrfico que se desenvolveu no contexto francs,

    apresentando variaes que so hoje discutidas em grande parte tendo como ponto focal

    a criao, em 2006, do Muse du quai Branly. A segunda parte desta tese ser dedicada

    ao estudo de uma outra lgica de musealizao instaurada pelo modelo ps-colonial dos

    ecomuseus, tendo como referncia a primeira experincia realizada no ecomuseu da

    comunidade urbana do Creusot Montceau-les-Mines, prefigurado a partir de 1972, que

    depois se espalharia pelo mundo adquirindo uma fora particular e uma lgica prpria

    nos pases colonizados.

    O que a minha primeira visita ao quai Branly me revelou foi que o objeto que

    simula estar longe estando perto, ou aquele que finge estar bem perto quando est

    distante, so igualmente responsveis por gerar crenas e identidades. O prximo e o

    distante so grandezas abstratas que marcam a relao entre as pessoas e as coisas. A

    distncia cria sombras e relevos indefinidos capazes de instaurar ausncias materiais e

    6 GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie.

    Paris: Biblioteque Albin Michel. Ides, 2007.

  • Introduo 6

    espirituais que evocam na mente a criao de universos imaginados. Assim como um

    templo cria a distncia entre o deus e o fiel, os museus encenam as distncias entre as

    pessoas e as coisas, agregando valor aos seus objetos e produzindo a crena em sua

    autenticidade.

    As coisas dadas e as coisas vendidas

    No comeo havia a ddiva. Ainda que esta no tenha sido a fundadora das

    sociedades como pensara Marcel Mauss , possvel que ela tenha sido responsvel

    pela origem dos museus. Sendo assim, uma breve reviso da teoria antropolgica sobre

    a ddiva, considerando os autores que julgamos pertinentes para a presente anlise, se

    faz necessria ao tomarmos os museus por objeto social de estudo. Na concepo que

    temos deles hoje, os museus constituem um produto histrico das mltiplas relaes

    entre as pessoas e as coisas. um engano consider-los como templos fechados

    constitudos sob a gide da estabilidade de suas colees e de suas aes7. Com efeito,

    apenas atravs de trocas que um museu pode existir. Como um produto dinmico do

    social, um museu se faz a partir de suas prprias escolhas entre aquilo que ir ser

    guardado para transmitir, e o que se ir dar, ou alienar. Os critrios para as suas escolhas

    so tambm resultantes das trocas de valores entre os museus e seus usurios, ou entre

    os profissionais do patrimnio e a sociedade. Assim, a troca de objetos, valores, e

    vises de mundo sempre foi uma realidade para os museus.

    Trocas podem ser percebidas, em uma primeira instncia, como sendo sempre

    processos polticos atravs dos quais relaes mais amplas se expressam e so

    negociadas no encontro entre as partes envolvidas8. O momento de uma transao,

    como aponta Nicholas Thomas, quando emerge a avaliao das entidades, pessoas,

    grupos e relaes. As coisas que recebemos, em geral, nunca esto completamente

    alienadas do espao ou da pessoa de que provm. De forma anloga, as coisas que damos

    incorporam parte de nosso contexto pessoal ou do contexto da ddiva em si mesmo.

    relevante, pois, de modo que se alcance a compreenso de como as coisas tendem a

    7 Como j demonstramos anteriormente, os museus, da modernidade aos tempos contemporneos, vm

    atravessando um processo de transformaes sociais, voltando-se, gradativamente, s experincias dos

    indivduos e dos grupos das sociedades que representam, abrindo cada vez mais as suas portas para as

    vises e experincias dessas sociedades. BRULON SOARES, B. C. Quando o Museu abre portas e

    janelas. O reencontro com o humano no Museu contemporneo. 2008. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Museologia e Patrimnio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2008. 8 THOMAS, Nicholas. Entangled objects. Exchange, material culture, and colonialism in the Pacific.

    Cambridge, Massachusetts / London, England: Harvard University Press, 1991. p.7.

  • Introduo 7

    estar conectadas s pessoas algo que a sociedade ocidental do presente tenta omitir

    retomar o conhecido estudo de Marcel Mauss, intitulado de Essai sur le don9.

    Uma ddiva, para Mauss, no apenas uma coisa, mas tambm um ato que

    estabelece uma relao dupla entre a pessoa que d e a pessoa que recebe. De acordo

    com uma teoria geral das obrigaes, a ddiva tem uma fora que faz o donatrio

    retribuir10. O que o autor observa nas sociedades arcaicas, em que a retribuio uma

    obrigao, que a coisa dada tem uma alma, que cria um lao necessrio com o seu

    dono original. Dar compartilhar algo que se tem, e algo que se . Como explica

    Maurice Godelier, um presente forado no um presente11

    . O presente voluntrio

    aproxima o doador ao donatrio; da mesma forma, portanto, o presente cria, na pessoa

    que o aceita, a obrigao de retribuir. Ele, assim, estabelece uma dissimetria, uma

    hierarquia entre ambas as partes. E, neste sentido, a troca de presentes ou qualquer

    tipo de troca uma manifestao de poder.

    Nos contextos especficos analisados por Mauss, em que ddivas e significados

    so intercambiados gerando diferentes tipos de laos entre as pessoas, as coisas vo e

    vm como se uma matria espiritual que inclui coisas e pessoas estivesse sendo, ela

    mesma, trocada entre cls e indivduos. por essa razo que o autor apresenta o mundo

    dito arcaico como um mundo de sntese. Mas h complexidade na sntese primitiva

    para Mauss. O contrato estabelecido pela ddiva exerce o papel de preservar a

    individualidade das partes, entretanto, sob a tica das trs obrigaes, do dar, do receber

    e do retribuir, as partes deixam de existir individualmente e podem ser, ento, abordadas

    como um todo integrado.

    Pode-se dizer que a cadeia museolgica12

    , na qual os objetos entram ao serem

    elevados ao estatuto de objetos museolgicos ou museais, est inserida nesta cadeia

    de prestaes totais descrita por Mauss. Uma das hipteses desta pesquisa a de que ela

    no representa a morte do objeto para a sua vida social, mas apenas um outro estgio de

    sua vida. Pensando os museus como ndulos de poder13

    construdos por uma

    9 Ensaio sobre a ddiva.

    10 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas. p.185-314. In:

    ______. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac Naify, 2005. p.188. 11

    GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Biblioteque Albin Michel. Ides, 2007. p.70. 12

    Podemos considerar que a cadeia museolgica tem incio no campo, onde os objetos so coletados,

    abarcando todos os processos que se seguem de identificao, classificao, higienizao,

    acondicionamento, seleo, exposio, e at a sua extenso sobre os pblicos, os colecionadores privados,

    o mercado de objetos, e os diversos outros agentes indiretamente ligados a ela. 13

    POMIAN, Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris:

    d. De la Maison des sciences de lhomme, 1990. p.188.

  • Introduo 8

    historicidade prpria, Pomian lembra que na origem dos primeiros museus havia sempre

    uma ddiva (ou doao) realizada por uma pessoa a seu Estado, sua cidade, sua

    universidade. Estes primeiros modelos so, depois, abertos ao pblico pelas autoridades

    e, ento, transformados em museus, fazendo com que os tesouros e as colees secretas

    passassem a funcionar como instituies de poder e de saber14

    . Desde ento, todos os

    percursos feitos por diferentes objetos, partindo de diversos pontos e atravessando

    sistemas de trocas de naturezas variadas, podiam convergir, no fim das contas, cadeia

    museolgica, cujo entendimento necessita de um exerccio antropolgico mais denso.

    Nas sociedades industrializadas somos constantemente confrontados com a ideia

    de um mundo de commodities que vende a noo de uma circulao livre e global de

    bens. A tendncia de se opor a troca de ddivas troca de commodities no discurso

    antropolgico hoje um ponto de discusso. Arjun Appadurai, ao analisar a circulao

    de commodities15

    na vida social, defende a concepo profcua de que por meio das

    trocas que estes objetos adquirem valor. O valor , assim, incorporado s commodities

    que passam pela troca. Enfocando as coisas que so trocadas, mais do que simplesmente

    as formas e funes das trocas, Appadurai argumenta que o que cria o lao entre a troca

    e a atribuio de valor a poltica, o que justifica, segundo ele, a ideia defendida de que

    commodities, como as pessoas, possuem vidas sociais. E se o valor adquirido pelas

    commodities que so trocadas o que significa, em outras palavras, que a troca cria

    valores , alguns paralelos, ento, podem ser traados entre a commodity e a ddiva.

    Enquanto as consideraes de Marx sobre as commodities em O Capital ainda

    estavam limitadas a aspectos particulares da episteme de meados do sculo XIX,

    segundo a qual a economia era percebida apenas em referncia problemtica da

    produo, para Appadurai, se deslocamos o enfoque para as dinmicas da troca, em vez

    da produo, do produto e do produtor, possvel enxergar a commodity no

    simplesmente como um tipo de coisa, mas como uma coisa em uma dada situao16

    .

    Segundo o autor, isso significa ver o potencial de commodity existente em todas as

    14

    POMIAN, Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris:

    d. De la Maison des sciences de lhomme, 1990. p.187. 15

    O autor define as commodities como objetos de valor econmico. Como bens destinados troca, as commodities so, na definio de Appadurai, coisas com um tipo particular de potencial social.

    Commodities podem ser vistas como representaes materiais tpicas do modo de produo capitalista,

    mesmo quando so classificadas como simples e seu contexto capitalista como incipiente. Mas a prpria

    concepo marxista de commodity , em si, imprecisa. Nesta viso, commodities esto invariavelmente

    relacionadas ao dinheiro, como mercado impessoal, ao valor de troca. APPADURAI, Arjun. Introduction:

    commodities and the politics of value. p.3-63. In: _______. (ed.) The social life of things. Commodities

    in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p.3. 16

    Ibidem, p.13.

  • Introduo 9

    coisas, mais do que buscar uma distino mgica entre commodities e outras espcies de

    coisas.

    A oposio geralmente feita entre a ddiva e a commodity se baseia no fato de

    que enquanto a ddiva estabelece um lao entre as pessoas e as coisas e incorpora o

    fluxo das coisas ao fluxo das relaes sociais, a commodity representa a troca livre

    moral e culturalmente de bens por outros bens, troca que mediada pelo dinheiro e

    no pela socialidade17

    . O contraste entre uma teoria da reciprocidade e o mercado de

    trocas legtimo; ele est presente no apenas no discurso antropolgico como em

    alguns nveis de nossa realidade social, sendo um deles o museu. Entre a ddiva e a

    commodity, os museus, atravs dos anos de sua existncia, foram levados a lidar com as

    mltiplas variaes de estados que uma coisa pode incorporar.

    A pesquisa desenvolvida parte do princpio metodolgico segundo o qual todo

    objeto social examinado um objeto em processo. A partir da delimitao da unidade

    social de anlise da tese, sendo ela o contexto museal francs e, sobretudo, as

    aproximaes entre os museus etnogrficos tradicionais e os ditos museus comunitrios

    ou ecomuseus, foi possvel estudar, de forma sincrnica, o campo de trocas realizadas

    entre as instituies e entre elas e a sociedade (o seu pblico), e, de forma diacrnica, a

    transformao destes museus ao longo do tempo e o impacto dessa transformao nos

    processos de musealizao postos em prtica. O que nos interessa, ento, uma

    gramtica das coisas guardadas pelos museus, e a constituio, no contexto particular de

    alguns museus franceses, desta cadeia museolgica.

    As coisas guardadas e por que as guardamos: distncia, performance e teatralizao

    No h dvida de que os museus etnogrficos, bem como os ecomuseus, tornam

    explcito o fato de toda a seleo de conhecimento e a apresentao de imagens e ideias

    constituir um dado tipo de performance que, segundo a teoria desenvolvida por Victor

    Turner18

    , pode ser entendida como um instrumento de autoconhecimento e autocrtica,

    que se d no interior de um sistema de poder especfico. A fonte desse poder, como

    17

    APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. p.3-63. In: _______. (ed.)

    The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press,

    2007. p.11. 18

    Ver, principalmente, TURNER, Victor. The anthropology of performance. New York: PAJ

    Publications, 1988.

  • Introduo 10

    atesta Ivan Karp19

    , est na capacidade de instituies culturais de classificar e definir

    pessoas e sociedades. Este , portanto, o poder de representar ou de realizar uma

    determinada performance cultural e social , ou seja, de reproduzir estruturas de crena

    e de experincia atravs das quais as diferenas culturais so compreendidas20

    .

    Ao encenar o valor das coisas, em vez de apresentar as coisas em si, os museus

    ajudam a demonstrar que os valores so construdos socialmente pelas interaes

    sociais e culturais e pelo prprio processo de musealizao e que eles mesmos, os

    museus, incorporam valor aos objetos que coletam e expem. Como explica Appadurai,

    nas trocas, os objetos no so difceis de adquirir por serem valiosos, mas so valiosos

    na medida em que resistem ao nosso desejo de possu-los21

    . No caso das commodities, a

    distncia criada artificialmente pelo valor de mercado pode ser suprimida atravs da

    troca econmica, na qual o valor do objeto determinado reciprocamente. Deste modo,

    o desejo por um objeto satisfeito pelo sacrifcio de um outro objeto, que , por sua

    vez, o foco de desejo de outrem22

    . Segundo Appadurai, desta troca de sacrifcios que

    trata a vida econmica e, logo, a economia, como uma forma social particular, consiste

    no apenas em trocar valores, mas na troca de valores23. Neste sentido a

    movimentao das coisas, pelos diversos regimes de valor no tempo e no espao, que

    pode fornecer pistas sobre o seu contexto social e humano.

    Portanto, precisamos seguir as coisas mesmas, j que seus significados variveis

    esto inscritos em suas formas, em seus usos e percursos. No caso do quai Branly, ao

    gerar distncias, e construir fronteiras, entre as pessoas e os objetos, o museu produz

    autenticidade ou o sentido de autenticidade por meio de uma criao artificial da

    distncia que, s vezes, inexiste. Traando linhas e limites imaginrios ou reais entre

    o observador e a coisa exposta, o museu posiciona o objeto musealizado fora do

    alcance das pessoas comuns, trancados em vitrines, e, por vezes, distanciados

    propositalmente do olhar do observador. Com o discurso da inalienabilidade24

    , os

    19

    KARP, Ivan. Museums and communities: the politics of public culture. In: LAVINE, S.; KARP, I.;

    KREAMER, C. M. (ed.). Museums and communities: the politics of public culture. Washington /

    London: Smithsonian Institution press, 1992. p.1. 20

    KARP, loc. cit. 21

    SIMMEL (1978, p.67 apud APPADURAI, 2007, p.3). 22

    APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. p.3-63. In: _______. (ed.)

    The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press,

    2007. p.3. 23

    SIMMEL (1978, p.80 apud APPADURAI, 2007, p.4). Grifos de APPADURAI. 24

    Nos museus, a afirmao da perenidade do patrimnio musealizado acompanhada de um direito

    irrevogvel sobre as coisas que so guardadas para transmitir e que no devem, em tese, ser alienadas. Esta noo da inalienabilidade, muito presente ainda nos museus europeus, vem sendo questionada,

  • Introduo 11

    museus fazem da coisa musealizada objeto inalcanvel do desejo. No h sacrifcio

    capaz de torn-lo trocvel, j que este j no existe mais como commodity. O paradoxo

    est no fato de que se, por um lado, ao entrar no museu o objeto perde o seu valor de

    uso, por outro, ainda que indiretamente, no perde de vista o seu valor de troca. Sempre

    haver estimativas25

    , na possibilidade de um dia o objeto retornar ao mundo profano, ao

    ser alienado pela instituio que o detm em nome da sociedade, e assim voltando a

    circular na esfera mercantil o que faz lembrar que aquilo que pertence a todos,

    tambm no pertence a ningum. O valor, portanto, construdo tanto pela troca quanto

    por sua impossibilidade.

    O valor dos objetos est permanentemente atrelado ao estgio de vida em que

    eles se encontram e s transaes de que j fizeram parte. So os homens e as

    sociedades que estabelecem os seus destinos, e, consequentemente, determinam os seus

    valores. Godelier, ao se propor a explorar as diferenas existentes entre as coisas que

    vendemos, as que damos, e, enfim, aquelas que no devem ser vendidas ou dadas, mas

    que so guardadas para que as possamos transmitir26

    , constri um frutfero

    entendimento da vida social a partir destes trs movimentos distintos. O mesmo objeto

    pode, sucessivamente, ser comprado como uma mercadoria, circular como objeto de

    uma ddiva ou contraddiva, e, ainda, estar inserido no tesouro de um cl como coisa

    sagrada, e, neste caso, escapar, por um certo tempo, de toda a forma de circulao,

    mercantil ou no mercantil27

    . Na viso do autor, na medida em que as coisas atravessam

    essas fases de existncia, elas adquirem valor, e exercem o poder de atuar sobre a vida

    das pessoas.

    Segundo esta teoria, as coisas que no se pode vender ou dar, mas que se deve

    guardar, como, por exemplo, os objetos sagrados, estas se apresentam frequentemente

    como ddivas, mas ddivas que os deuses ou espritos teriam realizado aos ancestrais

    dos homens, e que seus descendentes, os homens atuais, deviam guardar

    preciosamente28. Deste modo, estes objetos se apresentam e so vividos como

    sobretudo por museus e profissionais da Amrica do Norte, e, em muitos casos, negada pelas prprias

    instituies e seus pensadores no presente. 25

    O valor econmico do objeto nunca se perde de vista, seja como uma cifra estabelecida pela seguradora

    responsvel por ressarcir o museu do investimento na pea em caso de perdas, ou mesmo como um trao

    do histrico do objeto que tambm servir para lhe agregar valor (ex.: por quanto foi comprada a pea no

    ltimo leilo em que fora arrematada). 26

    GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.67. 27

    GODELIER, loc. cit. 28

    Ibidem, p.82.

  • Introduo 12

    elementos essenciais das identidades dos grupos e dos indivduos que os receberam. Os

    objetos sagrados, ou encenados como sagrados pelos museus, so fontes de poder da

    ou sobre a sociedade, que, diferentemente dos objetos de valor so, primordialmente,

    inalienveis e inalienados29

    , ou, dito de outra forma, inalienveis porque inalienados.

    Assim, o objeto sagrado um objeto material que representa o irrepresentvel,

    que remete os humanos origem das coisas e testemunha a legitimidade da ordem

    csmica e social que sucedeu aos tempos e aos acontecimentos das origens. De

    maneira semelhante, as artes primeiras, que examinaremos mais a fundo ao longo desta

    tese, so pensadas como primeiras na medida em que evocam uma continuidade com

    a prpria essncia do humano, com a natureza, e com culturas remotas. Um objeto

    sagrado no necessariamente belo Godelier cita o exemplo de um pedao da cruz

    de Cristo. Ele mais do que belo, ele sublime. Com sua presena, ele organiza o

    mundo para alm do visvel e da matria30

    . Estes no so smbolos por aquilo que

    dispem e exibem, ao contrrio, eles so vividos e pensados como a presena real das

    potncias que se encontram na fonte mesma do poder neles investido. Os objetos

    sagrados reportam a uma ausncia e a uma presena simultaneamente; trata-se da

    ausncia e presena dos homens que os fabricaram31, eles reportam presena

    daqueles que estavam na origem dos que os cultuam, e o poder desta continuidade que

    lhes confere preciosidade.

    Como no teatro, em que as mscaras instauram representaes que so,

    simultaneamente, um personagem e um ator sem que um exclua a existncia do outro

    , ou em um ritual em que os deuses e espritos descem para possuir os danarinos em

    transe32

    , nos museus o pblico confrontado com uma dupla presena: a do objeto

    exposto e a de sua representao enquanto aquilo que ele no . Essa distncia entre

    aquilo que o objeto , e aquilo que ele no (ou finge ser) no contexto dos museus,

    onde se insere a performance museal. Ao incorporar os objetos a um tipo especfico de

    teatralidade, tambm conhecida como musealidade, os museus criam uma espcie de

    encenao, que funciona como uma continuidade imaginada, baseada no fato de que

    sentimentos e emoes so mais importantes na produo de autenticidade do que a

    29

    GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.83. 30

    Ibidem, p.85. 31

    Ibidem, p.86. 32

    SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of

    Pennsylvania Press, 1985. p.4.

  • Introduo 13

    prpria materialidade das coisas. Nesta perspectiva, o autntico produzido atravs de

    mtodos artificiais e ficcionais e, por isso, ele pode tambm ser recriado.

    Em geral, os museus atuam como se no fizessem parte dos processos de

    atribuio de valor s coisas. Eles interpretam o seu papel como se este fosse

    meramente o de coletar e expor as coisas do real que j possuem valor, e tendem a

    ignorar que a sua ao crucial para estabelecer quo precioso um objeto pode se

    tornar. Na corrente contrria musealizao, a alienao de objetos pelos museus no

    pode ser vista como mera degradao; esta uma maneira de interromper o ato da

    performance e de dar aquilo que antes se mantinha guardado como patrimnio. A

    alienao significa uma ruptura com os mltiplos laos que sustentam a musealizao,

    sendo, de certa maneira, uma violao da integridade do objeto em seu estado anterior.

    Este processo de transio dos objetos, do qual participam enfaticamente os museus, se

    d para que o patrimnio, produzido sempre no caminho de mo dupla entre o dar e o

    guardar, possa se manter como fluxo, como uma fora simblica, ininterrupta.

    As coisas em circulao: dar, receber e transmitir

    Na tentativa de se desnaturalizar a objetividade dos museus e das categorias e

    classificaes por eles criadas, nesta pesquisa buscou-se compreender tal instituio

    social em termos de sua autoridade isto , entendendo os museus como produtores de

    enunciados, detentores de uma fala e de uma ao determinadas. Isto porque no se

    pretende ver os museus da mesma forma em que corremos o risco de ver as culturas,

    como entidades naturalizadas, mas, ao contrrio, como atos organizados33

    , j que, como

    evidenciou Jean Bazin, aquilo que observamos so apenas as situaes34

    . Assim, no se

    pretendeu definir o que so os museus etnogrficos, ou compar-los com aqueles

    classificados como comunitrios ou ecomuseus. Um dos objetivos desta tese o de

    tornar compreensveis os processos de musealizao nessas duas instncias e suas

    implicaes sociais, produzindo uma reflexo etnogrfica sobre eles.

    Neste sentido, podemos pensar os museus a partir dos deslocamentos que eles

    realizam, mais do que do ponto de vista de uma teoria das coisas estticas. Com isso, os

    paradigmas que sustentam as suas verdades e sua autoridade vm sendo, em muitos

    33

    BENSA, Alban. Lanthropologie autrement. p.5-17. In: BAZIN, Jean. Des clous dans la Joconde. Lanthropologie autrement. Toulouse : Anacharsis,2008. p.15. 34

    BAZIN, Jean. Des clous dans la Joconde. Lanthropologie autrement. Toulouse : Anacharsis,2008, passim.

  • Introduo 14

    casos, relativizados de modo a permitir que este modelo de instituio se reconcilie com

    as outras verdades e que incorpore novas realidades sociais ( o que veremos

    particularmente no segundo caso investigado nesta tese). Os museus aqui estudados so

    observados atravs do fluxo de experincias, conexes, conhecimentos, e de objetos

    sociais por meio dos quais eles atuam, e o patrimnio que eles transmitem se encontra

    em um constante processo de reatualizao de si mesmo.

    Como j se estabeleceu nos estudos sobre a memria, lembrar s possvel

    quando se pode esquecer (o que no significa necessariamente abandonar algo

    completamente, mas coloc-lo em algum outro lugar). Com efeito, deslocar uma coisa

    de um lugar a outro, alterando a sua vida social e consequentemente o seu alcance

    no significa alien-la de um campo de interesses particular, mas talvez permitir que

    certos valores deste campo atinjam novos planos sociais inexplorados, mobilidade esta

    que inerente ao trabalho dos ecomuseus, explorados na segunda parte desta pesquisa.

    Dito de outra forma, dar no significa necessariamente alienar, uma vez que s por

    meio da ddiva que algo pode ser guardado seja ela a ddiva de um ancestral que nos

    concedida (e neste caso a nfase est no ato de receber), ou aquela que fazemos

    quando damos algo de ns mesmos (aqui a nfase est no ato de dar). Esta concepo

    dupla da ddiva, aparentemente contraditria, a chave para se entender o sentido da

    musealizao. Ddivas podem ser trocas entre pessoas diferentes vivendo em um

    mesmo tempo, ou entre tempos diferentes quando acreditamos estar recebendo uma

    ddiva de geraes precedentes, ou ainda, em um terceiro caso, trocas entre o mundo

    dito real e o mundo imaginrio, quando se trata da ddiva dos deuses. Os trs casos nos

    obrigam a lidar de maneira distinta com os objetos em que nos vemos ou por meio dos

    quais vemos os outros.

    Ao interpretar a teoria social de Mauss, Godelier lembra que as obrigaes de

    dar e a de receber, se definem na noo de que somos obrigados a dar porque dar

    obriga, e somos obrigados a receber porque recusar um presente equivale a correr o

    risco de entrar em conflito com aquele que o oferece35

    . Habitado por dois diferentes

    espritos, o de quem inicialmente o possuiu e o seu prprio, o objeto dado estaria

    investido de dois princpios de direito complementares um ao outro, um direito de

    propriedade inalienvel e um direito de uso alienvel. Para o autor, precisamente o

    35

    GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.72.

  • Introduo 15

    jogo entre esses dois princpios que esclarece a lgica das trocas do Kula, explorada

    inicialmente por Bronislaw Malinowski nas primeiras dcadas do sculo XX.

    Ao descrever o complexo sistema de trocas do Kula na Papua-Nova Guin,

    afastando-se notadamente das expectativas sobre um comrcio primitivo36,

    Malinowski demonstrou que este sistema, com efeito, no era uma forma precria de

    troca37

    . Como um sistema de troca intertribal que acontece por meio de transaes

    pblicas e cerimoniais peridicas, o Kula no envolve, efetivamente, todo e qualquer

    membro de uma determinada tribo. Ao contrrio, ele se d entre aqueles que detm um

    estatuto diferenciado dos outros, e ajuda a marcar essa distino.

    Neste caso, a viagem de objetos equivale viagem de pessoas. Quando um

    objeto do Kula passa de mo em mo, o valor dessas trocas est em quo longe pode

    chegar esse objeto, e logo, em quo longe chega, junto com ele, o nome de seu

    proprietrio. porque as coisas dadas no so jamais desligadas de seu proprietrio

    primeiro que elas portam consigo alguma coisa do seu ser, e atravs delas so as

    pessoas que se ligam umas s outras. Thomas aponta que o artefato, no caso, no

    simplesmente um valioso objeto de troca ou mesmo uma ddiva que cria relaes de um

    tipo ou de outro, mas tambm um indexador crucial do quanto essas relaes mesmas

    foram sustentadas ou desfiguradas38

    . Eles so, assim, os testemunhos das relaes entre

    as pessoas, e marcam as distncias que existem entre elas e as que j foram suprimidas.

    Quando uma coisa transmitida, ela invariavelmente alterada, em certa

    medida, e jamais voltar a ser o que era antes. Da mesma forma, como demonstrou-se,

    ela nunca se manter em um s estado ou fase de sua existncia. Todas essas

    constataes so libertadoras, porque as compreenses estabelecidas segundo as quais

    as coisas atravessam transformaes sociais provocam uma desconstruo da noo

    essencialista segundo a qual a identidade das coisas materiais est fixa em sua forma e

    estrutura39

    . Essa outra corrente, contrariando a nfase de alguns tericos da cultura

    material na objetividade do artefato, reconhece exatamente a mutabilidade das coisas

    36

    Como lembra Thomas, a ideologia do primitivismo por muito tempo celebrou as sociedades

    consideradas simples por exibirem algo que teria se perdido nas nossas sociedades pela anttese moderna do progresso. As relaes de troca foram, por muito tempo, significativas como um marco nas

    narrativas evolutivas. THOMAS, Nicholas. Entangled objects. Exchange, material culture, and

    colonialism in the Pacific. Cambridge, Massachusetts / London, England: Harvard University Press,

    1991. p.7. 37

    MALINOWSKI, Bronislaw. Argonauts of the Western Pacific. New York: E. P. Dutton & Co., 1961.

    p.85. 38

    THOMAS, op. cit., p.19. 39

    Ibidem, p.28.

  • Introduo 16

    em recontextualizao e a face profundamente subjetiva dos objetos. Neste sentido, os

    prprios sistemas de troca adquirem valor pois neles que est a possibilidade de

    mudana social e de reconhecimento identitrio.

    Se, de acordo com a concepo de Godelier, na ddiva o que cedido pelo

    proprietrio de um objeto dado no o seu direito de propriedade, mas um direito de

    uso, isto , o direito de usar este objeto para realizar outras ddivas40

    , pode-se

    compreender que o que se d, logo, so as mltiplas possibilidades de relaes que os

    objetos abrigam em si, e, igualmente, so estas relaes que passam a fazer parte da

    performance de um museu ao adquirir um dado objeto. A circulao, que envolve coisas

    e pessoas, e coisas investidas das pessoas, ilumina a noo de que a coisa dada dada

    para ser transmitida. Essa transmisso envolve a alienao da coisa em benefcio de sua

    transitoriedade, da construo de um percurso que encarna a prpria sociedade e, ao

    mesmo tempo, est acima dela. A transmisso, assim, parece ser mais bem estudada do

    ponto de vista dos processos atravs dos quais ela acontece, do que considerando apenas

    aquilo que transmitido. Essa abordagem ir permitir que a realidade social seja

    estudada a partir de fatos sociais totais41

    , e, logo, ela justifica a percepo de que o

    patrimnio integral42

    , e que, ao ser estudado, deve ser percebido a partir de todas as

    relaes que ele evoca, mais do que como produto de uma cultura, de uma natureza ou

    de uma histria. possvel considerar que fenmenos sociais so totais no porque

    combinam em si mesmos aspectos da sociedade, mas porque eles permitem, de certo

    modo, sociedade de se representar e se reproduzir como um todo43

    .

    A partir das premissas apontadas, conclumos no ser suficiente que as coisas

    sejam meramente identificadas como coisas que so dadas, coisas que so vendidas ou

    aquelas que so guardadas. Elas devem ser pensadas em conexo com os contextos

    polticos e histricos em que se inserem, e so as mudanas em sua natureza simblica

    que esto atreladas sua condio de ddiva ou de coisa guardada sendo estas

    categorias permeveis e complexas. As coisas nas quais os homens se vem sero

    40

    GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.81. Grifos do autor. 41

    Sobre a noo de fato social total explicada por Lvi-Strauss, ver Captulo 1, p.79 desta tese, ou LVI-

    STRAUSS, Claude. Introduo obra de Marcel Mauss. p.11-46. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e

    Antropologia. So Paulo: Cosacnaify, 2005. p.24. 42

    Sobre a noo de patrimnio integral, disseminada entre alguns autores da museologia, ver SCHEINER, T. C. Imagens do no-lugar: comunicao e os novos patrimnios. 2004. Tese (Doutorado

    em Comunicao) Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ECO, Rio de Janeiro, 2004. 43

    GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.58.

  • Introduo 17

    sempre coisas a que se deseja transmitir. Mas se elas sero transmitidas como ddivas,

    inserindo-se em um sistema particular de trocas, ou se sero guardadas para a

    posteridade, colocando a sua nfase nas distncias no percorridas, de um modo ou de

    outro, a coisa circulante ou esttica e pertencente a s um indivduo ou grupo estar, a

    sua maneira, produzindo valores e significados.

    A partir dos museus estudados possvel ver o objeto guardado como

    investido de um tipo de performance, como aquele que comunica a identidade de um

    indivduo ou de um grupo. O objeto guardado informa, e tambm capaz de alcanar

    outros contextos sem necessariamente sair do lugar. Pelo mesmo ato da performance

    que lhe investida, uma obra emblemtica em um museu capaz de viajar o mundo

    sem perder o seu valor de continuidade com o local de origem, ou mesmo a instituio

    a que pertence, e sem que se altere o valor do encontro in loco entre o observador e o

    objeto original. Do mesmo modo, uma ddiva pode permitir que o patrimnio de uma

    localidade ou de um grupo social especfico seja transmitido alcanando novos permetros

    e disseminando uma dada identidade um poema ou um conto popular, e mesmo um

    objeto material, em alguns casos, pode ser dado sem nunca se perder, pode ser guardado

    no prprio ato de ser transmitido, porque ele guardado ao ser fitado, ouvido,

    degustado, ao tocar e ao deixar ser tocado, ao inspirar e ao ser inspirado, ao ser sentido.

    Sendo assim, no possvel se fazer uma antropologia das coisas sem uma

    antropologia das pessoas, e o inverso tambm verdadeiro. Pensar a ddiva significa

    questionar a origem mesma da cultura humana e das relaes sociais entre indivduos e

    grupos. Ao nos debruarmos sobre essa origem ou sobre as especulaes tericas que

    temos dela somos levados a crer que a ddiva tenha surgido juntamente com o ato de

    guardar. Dar e reter so inseparveis na lgica do patrimnio e das identidades. Com

    efeito, o ato da ddiva implica em uma escolha, entre aquilo que se d e aquilo que se

    guarda. E, ainda neste ltimo caso que particularmente nos interessa nesta pesquisa ,

    o objeto que se guarda tambm transmitido, mesmo que no possa ser dado. Mas o

    que, afinal, se transmite do objeto guardado?

  • Introduo 18

    Entrando no mundo do sagrado

    Um outro tema abordado na economia e na moral das ddivas o dos presentes

    dados aos deuses e natureza44

    , que constituem um tipo particular de doao. A noo

    de oferenda, como a ddiva entre os humanos e os deuses, tambm est prevista na

    teoria maussiana, de modo que se introduz a ideia do que pode ser pensado como a

    forma mais sinttica das colees. Esse primeiro sentido da coleo est ligado a um

    carter especial da ddiva e ao mesmo tempo essencial, porque evidencia a sua

    obrigatoriedade que diz respeito ao ato de dar aos deuses, aqueles que tudo possuem,

    uma oferenda em agradecimento quilo que deles se pressupe receber. Da mesma forma,

    alguns dos povos que Mauss denominou de arcaicos reuniam elementos da natureza

    que eram oferecidos a ela como agradecimento pela apropriao de seus produtos.

    Como assinala Malinowski, sobre o contexto das ilhas Trobriand, o vaygua,

    objeto precioso concebido como talism, ao mesmo tempo ornamento e riqueza, serve

    para as trocas do Kula. Entretanto, durante a festa dos mila-mila, uma outra espcie de

    vaygua pode ser entendida, nos termos do autor, como vayguas permanentes, sendo

    estas expostas e oferecidas aos espritos numa plataforma idntica do chefe45. O que

    se v, neste caso, uma forma de sacrifcio-contrato, como aponta Mauss, em que, em

    um grau supremo, os deuses que do e retribuem esto a para dar uma coisa grande em

    troca de uma pequena46

    . Estas formas de oferendas, como uma reunio de coisas dadas

    em agradecimento a divindades ou ao mundo natural revelam, por analogia, o sentido

    mstico primordial das colees. Aqui o que leva as pessoas a colecionar uma fora

    exterior a elas. As coisas reunidas para os deuses, e a fora que as rene, so fruto de

    um interesse particular que posto no grupo e que se impe sobre ele. Talvez da

    provenha a tendncia dos museus de buscar disseminar o sagrado, seja por meio da arte,

    ou pela disseminao de crenas sociais diversas, como iremos demonstrar.

    inegvel que os objetos que um museu guarda podem suscitar um tipo de

    culto47

    , o que se manifesta, sobretudo, nas proposies admirativas, nos gestos e nos

    44

    MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas. p.185-314. In:

    ______. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosacnaify, 2005. p.203. 45

    MALINOWSKI (1922, p.513 apud MAUSS, 2005, p.207). 46

    MAUSS, op. cit., p.207. 47

    Pomian sugere ser suficiente pensar na Monalisa ou em outras tantas obras-fetiche. POMIAN,

    Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris: d. De la

    Maison des sciences de lhomme, 1990. p.185.

  • Introduo 19

    suspiros de deleite que eles podem provocar, e, ainda, pela decorrente proteo aguda

    dos objetos que so investidos de valores. Por outro lado, um museu, assim como uma

    coleo particular, uma riqueza virtual, pois os objetos que ele rene so, em muitos

    casos, inalienveis o que o distancia particularmente dos tesouros. Aquilo que ele

    vende ao seu pblico, como aponta Pomian, apenas o direito de ver os objetos face a

    face e, eventualmente, alguns direitos anexos48. Esses dois aspectos dos objetos nos

    museus, o valor espiritual ou aurtico, por um lado, e, por outro, a iluso da ausncia de

    um valor material e mercadolgico, dizem respeito a uma posio intermediria prpria

    a esses objetos, localizados entre o humano e o divino. Esses objetos liminares se

    encontram, assim, na interseo do sagrado e do profano, pertencendo a dois mundos;

    esto no mundo dos humanos, mas no podem ser tocados por eles.

    Com efeito, segundo a teoria de Godelier, os objetos preciosos que circulam nas

    trocas de ddivas s o fazem porque so substitutos duplos, substitutos dos objetos

    sagrados e substitutos dos seres humanos. Como os primeiros eles so inalienveis, mas

    diferentemente dos objetos sagrados que no circulam, eles circulam. Como substitutos

    dos seres humanos, eles so a sua substncia, o seu osso, a sua carne, os seus atributos,

    os seus ttulos, e suas possesses materiais e imateriais. por esta razo que eles podem

    tomar o lugar dos homens e das coisas em todas as circunstncias em que necessrio

    mov-los ou remov-los para se produzir novas relaes sociais, de poder, de

    parentesco, de iniciao, etc., entre os indivduos e entre os grupos, ou mais

    simplesmente para reproduzir os antepassados, prolong-los, conserv-los49

    . esta

    dupla natureza dos objetos preciosos que os torna difceis de serem definidos ou

    pensados em um mundo em que as coisas esto separadas das pessoas, e ela que mais

    nos interessa no mbito deste estudo. Por outro lado, os objetos nos museus podem ser

    percebidos muito claramente como elos de ligao entre o profano e o sagrado,

    circulando por universos que so permeados pelos dois.

    No Muse du quai Branly, na tentativa de se criar um encantamento a partir

    dos objetos selecionados e colocados em exposio, o que se pretende estabelecer a

    separao entre os objetos musealizados e a sociedade essencialmente profana e

    materialista50 qual o museu dirige a sua performance. Neste sentido, o museu est na

    48

    POMIAN, Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris:

    d. De la Maison des sciences de lhomme, 1990. p.185. 49

    GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.101. 50

    Rapport dactivit do museu, referente ao ano de 2011. Disponvel em: . Acesso em: fevereiro de 2012. Grifos nossos.

  • Introduo 20

    fronteira51 entre mundos distintos, e ele o produtor da distino entre o sagrado e o

    profano. Em outras palavras, o olhar profano do pblico que engendra a sacralidade

    nos objetos musealizados.

    Retornando ao objeto do tipo vaygua, este est investido tanto de um carter de

    permanncia quanto do sacrifcio, como explicitou Mauss. A questo para os autores

    que estudam estes objetos a de como explicar essa ambiguidade. Se os objetos

    preciosos representam um primeiro contato entre o humano e o sagrado, atravs do

    sacrifcio que nos tornamos mais ntimos dos deuses. Ao pensar a funo social do

    sacrifcio, Mauss e Hubert consideram esta prtica em sua origem como uma espcie de

    ddiva que os povos primitivos fazem aos seres sobrenaturais aos quais lhes convm

    se ligar52

    . Segundo os autores o sacrifcio sempre implica uma consagrao, o que quer

    dizer que em todo sacrifcio um objeto passa do domnio profano ao domnio religioso,

    sendo assim consagrado53

    . A consagrao tem a capacidade de se irradiar para alm da

    coisa consagrada, atingindo at mesmo a pessoa que se encarrega da cerimnia. Nestes

    casos a coisa consagrada serve de intermedirio entre o sacrificante, ou o objeto

    destinado a receber os efeitos teis do sacrifcio, e a divindade.

    Considerando estas categorias, discutidas por Mauss e Hubert em diversas

    sociedades, pode-se dizer que ao sacrificar certos artefatos, removendo-os de sua vida

    til e profana, a musealizao cria intermedirios entre as pessoas e um mundo

    percebido como sagrado a instncia patrimonial. O dilogo estabelecido, neste caso,

    o de uma sociedade consigo mesma, detentora desse patrimnio. A vtima (o objeto

    sacrificado) o intermedirio sem o qual no h sacrifcio. No ritual do sacrifcio, por

    ser distinta do sacrificante e da divindade, a vtima os separa ao mesmo tempo em que

    os une, eles se aproximam sem se entregar inteiramente um ao outro54. Estes objetos

    sagrados, produzidos no ato do sacrifcio, so a porta de entrada para o mundo dos

    deuses, mas, ao mesmo tempo, so responsveis por manter os humanos a certa

    distncia deles. no espao dessa distncia que algo inserido nesta relao, um certo

    valor sobre a coisa sagrada que fica recluso em uma zona de mistrio.

    Os processos de musealizao, por sua vez, tambm no acontecem de forma

    completamente clara, explicitando-se os critrios utilizados para se chegar a uma

    seleo particular dos objetos retirados do mundo profano. Chega-se, ento,

    51

    DELPUECH, Andr. Entrevista em 13 de dezembro de 2011. Muse du quai Branly, Paris. 52

    MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. Sobre o sacrifcio. So Paulo: Cosacnaify, 2005. p.9. 53

    Ibidem, p.15. 54

    GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.106.

  • Introduo 21

    consagrao do objeto no museu sendo o termo consagrar extremamente

    disseminado no vocabulrio institucional do quai Branly55

    . Os objetos consagrados se

    mantm, como vimos, entre duas ddivas, mas sem poderem eles mesmos se fazer

    objetos de ddivas. Atravs do mistrio em que esto imersos esses objetos, ns somos

    confrontados com um certo tipo de relaes do homem com ele mesmo, relaes que

    so sociais, intelectuais, afetivas e que se materializam nos prprios objetos56

    . Essas

    relaes do homem com si mesmo so de tal tipo que os humanos so levados a ocupar

    duas posies simultaneamente no espao e no tempo. Como explica Godelier, eles

    passam a ocupar o lugar dos imaginrios duplos de si mesmos57

    . Tudo se passa como se

    no fossem os homens que dessem um sentido s coisas, mas como se o sentido,

    proveniente de algum lugar para alm do mundo dos homens, fosse transmitido pelas

    coisas aos homens sob certas condies. O autor explica: a sntese do dizvel e do

    indizvel, do representvel e do irrepresentvel se realiza em um objeto, exterior ao

    homem, mas que exerce sobre os homens, sobre sua conduta, sua existncia, a

    influncia de maior grandeza58. Os homens se encontram, finalmente, alienados a um

    objeto material que no nada mais do que eles mesmos, mas um objeto no qual eles

    mesmos desaparecem; um objeto em que esto contraditoriamente e necessariamente

    presentes como ausncias.

    Os museus, ento, realizam ligaes entre o humano. Sendo assim, eles no so

    apenas responsveis por gerar distncias entre as pessoas e as coisas, mas tambm

    geram aproximaes entre as pessoas e elas mesmas por meio de suas representaes.

    Diante do sagrado, os homens se dividem mas no se reconhecem nos seus duplos que,

    uma vez separados, se revestem diante deles como sendo pessoas familiares e, ao

    mesmo tempo estranhas. De fato, como sugere Godelier, no so os duplos dos homens

    que se revestem diante deles mesmos como estrangeiros, mas so os homens eles

    mesmos que, ao se dividirem, se tornam em parte estrangeiros a si mesmos, alienados a

    esses seres outros que so, entretanto, uma parte de si mesmos59

    . Construmos o

    sentimento da diferena pelo outro exatamente no momento em que nos dividimos.

    Decorre disto, que o guardar no para si mesmo, mas envolve o sentimento do Outro

    necessariamente. Guardar sempre envolve um Outro, pois mesmo quando guardamos

    55

    Ver os Relatrios de atividades (Rapports dactivits) do museu, de 2003 a 2011. 56

    GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.187. 57

    Ibidem, p.188. 58

    Ibidem, p.190. Grifos de GODELIER. 59

    Ibidem, p.236.

  • Introduo 22

    algo para ns mesmos, nos vemos como outros na coisa guardada ela , logo, a

    simbolizao e a realizao da alteridade exteriorizada.

    O que h aqui de relevante para nossa anlise que as coisas guardadas,

    oferendas, objetos preciosos, talisms, saberes, ritos, afirmam profundamente as

    identidades e sua continuidade atravs do tempo60

    . Mais ainda, elas afirmam a

    existncia de diferenas de identidade entre os indivduos, entre os grupos que

    compem uma sociedade, ou que desejam se situar uns em relao aos outros no seio de

    um conjunto de sociedades vizinhas conectadas entre elas por diversos tipos de trocas61

    .

    Para Godelier, no pode haver sociedade, ou mesmo identidade que atravesse os tempos

    servindo de suporte aos indivduos assim como aos grupos que compem uma

    sociedade, se no houver pontos fixos, realidades que servem de substratos

    (provisoriamente, mas de forma durvel) para as trocas de ddivas ou s trocas

    mercantis62

    . Em outras palavras, para que haja a troca preciso que existam

    patrimnios, que fixam no espao as identidades das pessoas. Essas realidades

    patrimoniais, que acontecem dentro e fora dos museus, mas que so organizadas por

    eles, so uma parte importante do mundo sagrado dos museus, que se entremeia

    realidade profana, existindo uma em funo da outra.

    Considerando que os dois princpios inversos devem sempre estar combinados

    trocar e guardar, trocar para guardar, guardar para transmitir63 Godelier estabelece

    que preciso em todas as sociedades que, ao lado das coisas que circulam, existam

    esses pontos de ancoragem das relaes sociais e das identidades coletivas e individuais.

    precisamente por isso que, para este autor, o foco da discusso est nestes objetos

    fixos, j que so eles que permitem as trocas e que fixam as suas fronteiras. Ao

    contrrio da viso de Durkheim que separava muito radicalmente o religioso do poltico,

    para Godelier o sagrado sempre teve relao com o poder na medida em que o sagrado

    um tipo de relao com as origens, e considerando ainda que as origens dos indivduos e

    dos grupos pesam sobre as posies que estes ocupam em uma ordem social ou

    csmica64

    . O sagrado ento deslocado, no estando mais exclusivamente no campo

    das religies e passando a circular por quase todas as esferas sociais.

    60

    WEINER (1992 apud GODELIER, 2008). 61

    Ibidem. 62

    GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.16. 63

    Ibidem, p.221. 64

    Ibidem, p.236.

  • Introduo 23

    Quem detm o controle desses objetos, consequentemente tem o controle das

    origens. A anlise sobre o ato de transmitir nos permite identificar brevemente como o

    presente se forma na constante inveno das origens, e este dependente, assim, da

    crena em uma dada ideia de passado. Estamos constantemente nos inventando e

    reinventando nos atos de dar e de guardar. A transmisso e portanto tambm os

    patrimnios e os museus tem incio com a ddiva. Damos aquilo que desejamos

    manter como nossos, que desejamos ver retornar ou o que ir ressonar como nosso em

    outras instncias sociais; damos o que desejamos ter e o que desejamos transmitir.

    Pode-se inferir que o objeto sagrado um objeto performativo, pois realiza em si

    mesmo a sntese de tudo o que uma sociedade deseja apresentar e dissimular de si

    mesma. Ele une em si mesmo, desta maneira, o imaginrio, o simblico e o real, em

    uma s composio. Estes objetos, nos quais o homem est, ao mesmo tempo, presente

    e ausente, levam as sociedades e os indivduos a se pensarem, a vislumbrarem a sua

    prpria estrutura social a partir de um posicionamento diferenciado.

    Ainda que parea pouco dizer, enfim, que a musealizao faz os museus, esta

    afirmao revela que os museus so apresentao e performance, mais do que um

    agrupamento de objetos mortos para a sociedade. Essa performance, que em contextos

    museolgicos pode ser entendida como fundada na musealidade uma espcie de

    sacralidade, ou teatralidade produzida nas coisas do real a partir de um olhar exterior

    um modo de se olhar para as coisas familiares como se elas lhe fossem estranhas, ou,

    diferentemente, um modo de fazer com que coisas que parecem exticas e deslocadas

    aparentem ser familiares. E estes dois percursos da musealizao no corresponderiam

    aos dois movimentos maussianos de dar e receber?

    Um brasileiro em Paris: a converso s artes primeiras

    Em parte, a originalidade desta tese est no desafio de, como um brasileiro,

    desenvolver uma pesquisa sobre museus franceses. Em primeiro lugar foi preciso

    definir que o olhar lanado sobre o contexto estudado seria o de um pesquisador

    proveniente de um pas considerado como no ocidental, sem um conhecimento

    aprofundado sobre o campo dos museus etnogrficos europeus. Se o discurso do museu

    etnogrfico clssico estava pautado no olhar direcionado ao l-bas, o que os

    franceses lanam sobre os outros continentes, como uma metfora no meramente

    geogrfica para um l em baixo simblico, o meu olhar se colocaria no sentido

  • Introduo 24

    inverso, do l-bas em direo a instituies com uma histria metropolitana. Este

    ponto de vista me permitiu ver a Frana, ela mesma, como o meu l-bas, o que seria

    impensvel na anlise de um francs. Este olhar externo, que em certa medida facilita o

    trabalho do etngrafo, me possibilitou ver nos museus franceses um certo exotismo