ivete da silva costa um estudo da caracteriza

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IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA<;:Ao DE CAPITU EM MACHADO DE ASSIS Monografia apresentada como requisito parcial para a obten~ao do titulo de Especialista, Curso de P6s-Gradual;3o em Lingua Portuguesa, da Universidade Tuiuti do Parana. Orientador: Prof. Ivo Cordeiro Lopes (Mestre) CURITIBA JUNHO/2000

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Page 1: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

IVETE DA SILVA COSTA

UM ESTUDO DA CARACTERIZA<;:Ao DE CAPITU EMMACHADO DE ASSIS

Monografia apresentada como requisitoparcial para a obten~ao do titulo deEspecialista, Curso de P6s-Gradual;3oem Lingua Portuguesa, da UniversidadeTuiuti do Parana.Orientador: Prof. Ivo Cordeiro Lopes(Mestre)

CURITIBAJUNHO/2000

Page 2: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

Quem se encastela na propria personalidadee assim como um poc;o de agua parada,

que envenena a si mesmo.

( FTllllcisCQ Cam/ida Xn~'ier)

Page 3: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

SUMARIO

1 INTRODUC;A.O 1

2 RESUMO DA OBRA .4

3 CAPITU. UMA PERSONAGEM ESPECIAL.. 7

4 BENTINHO E DOM CASMURRO •.............•......••........................................... 8

5 A COMPLEXIDADE DE CAPITU 17

6 CONCLUSA.O 34

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ..........•.................................................... 38

iii

Page 4: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

1. INTRODU<;:AO

A obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, e sem duvida um livro que se

diferencia dos Qutros por ampla leitura que ele S8 permite fazer, considerando que a

obra e inteiramente ambigua pela pr6pria posi~ao do narrador. Narrada em l'

pessoa, uma das quest6es que mais gera poh§mica, envolve 0 adulterio, nao

elucidado, entre Bentinho, 0 personagem-narrador e Capitu, sua mulher. Bentinho S8

utilizadas lembran~as tunestas que traz do passado para a elabora~ao do romance.

Sao a partir delas que ele questiona 0 assunto e conduz tada hist6ria, atraves de

uma visao implacavel. Se 0 crime ocorreu au nac, naD e sabido, no enta"to, foi a

base da constru~ao do livro.

8em ignorar obviamente 0 ciume exacerbado, razao da narrativa e dos

serios conflitos no relacionamento deles desde a adolescencia, Bentinho tambem S8

revela um traco perante a incumbencia de ter de atender 0 desejo da mae de tornar-

S9 sacerdote. Revela~6es que ele mesmo taz, sempre cercado por indecis6es,

inseguranlf8s, reflexos que sao percebidos nitidamente no romance. Isso a torna urn

homem vulneravel e inconsequente muitas vezes. Toda a obra e centralizada na

visao (mica dele. E Bentinho quem tece toda a narrativa conforme Ihe vern it

memoria as recordac;6es da vida; urn passado atormentador, negro, marcado por

uma guerra intima, contlitante nao s6 quanto ao verdadeiro carater de Capitu. Se ela

fora ing€mua au esperta demais, se a traira ou tudo nao passara de fruto da

imagina~ao equivocada dele, nao se sabe. 0 que e certo e que do inicio ao fim do

romance, Bentinho deixa marcas tao presentes desse seu estado ca6tico, critico em

relac;ao it verdade que ele assumiu como (mica. Talvez par isso ele seja,

Page 5: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

inevitavelmente, um personagem-narrador diferente, tao cheio de contradic;6es. Esse

seu posicionamento enquanto narrador de sua propria historia; a incredulidade a

respeito da fidelidade da mulher; alem do julgamento, sem delesa, de Capitu, laz 0

romance ter esse aspecto dubio e ser tao question ado entre os leitores inconstantes.

Nao se analisa a obra sem partir da hipotese que existe um gancho que

nunca tera suas pontas atadas. Esse gancho e a trama da historia que 0 narrador

nao elucida e que certamente nao fora 0 objetivo do autor que seu personagem

assim 0 fizesse. Esclarecer 0 crime, se e que houve, nao foi prioridade. E todo bom

leiter, aquele que busca na obra a sua essencia, 0 seu teor, nao uma res posta

acabada, dar-se-a conta que a beleza dela consiste exatamente nos argumentos

utilizados por Machado. Oem Casmurre e um livro cuja estrategia utilizada e de

levar 0 leitor a uma peregrinal'ao. Querer mudar 0 aspecto dele ou envereda-Io p~r

outros rumos, e desconstruir a obra prima que ela e.

Ao leitor, tambem nao cabe a incumbencia de buscar a verdade, investigar

passagens a fim de possuir 0 desenlace da historia, como e comum na maioria dos

romances. Se Capitu lora mesmo dissimulada e conseqOentemente aproveitara-se

da condil'ao de tal para enganar 0 marido, ou se tudo nao esta justificado na

paranoia de um homem apaixonado, nao e 0 mais relevante saber, mas sim a

maneira fascinante como 0 autor conduziu a obra e transformou a personagem em

uma das mais polemizadas no mundo da ficl'ao.

E, portanto, impossivel se esperar que uma resposta unica chegue ao leitor

como conclusao final de um estudo completo da obra, afinal, nao e legado 0 direito

de se conhecer Bentinho. Sabe-se unicamente que se trata de um narrador cuja

experiencia de vida fora marcada por tantos infortunios e que depois de anos de

Page 6: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

angustia permite-se ao luxo de escreve-Ia. E tudo. Nada rnais ha de condizente para

se juntar aos fatos. Na obra naD hit verdade, naD aquela que e comum se encontrar

nos romances. 0 que existe e urn caminho longo e inatingivel a ser trilhado pelo

leitor persistente. Quis Bentinho que assim fosse, assim 0 fez ao longo da narrativa.

A intenc;aodeste trabalho e analisar as implica,oes psicol6gicas conferidas

pelo autor a personagem Capitu a partir da visao unica de Bentinho. No entanto,

fazer isso ignorando a presenya do narrador, e tarefa incompleta, pais Capitu 56

existe com tais caracteristicas porque ele a fez assim. 0 que ha por detras de toda

essa narrativa e urn labirinto enorme a percorrer. E sem duvida e muita pretensao de

quem se julga apto para desvenda-Io.

Page 7: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

2. RESUMO DA OBRA

Dom Casmurro 1 e urn livro contado pelo proprio personagem central, Bento

Santiago, 0 Bentinho. A historia tern inicio quando ele jtt esta com quinze anos e sua

amiga de infancia, Capitu, com quatorze. Os dais crescem juntos e entre eles

nascern tambem urn sentimento de amor.

Bentinho comel'a narrando sua histaria relatando onde mora, no Engenho

Novo, uma casa que mandara construir, igual a que passara a infancia e que, agora,

sozinho, so recebe 0 auxilio de urn criado. E justifica tambem 0 apelido que Ihe fora

dado, casmurro, alegando a razao: levava uma vida isolada.

Ele recebe a missao de tornar-se padre, pela mae, dona Gloria, a qual fizera

a promessa antes ainda dele nascer. Se Deus permitisse que seu filho sobrevivesse,

envia-Io-ia para 0 seminario, como agradecimento a gra9a concedida, depois ter ja

perdido 0 primeiro filho durante uma dificil gravidez. Obediente e temente a Deus,

8entinho sente-se na obrigac;ao de cumprir a promessa, apesar da na~ vDcac;ao.

Entretanto, a medida que a tempo passa, a amizade de Bentinho e Capitu se

transforma em narnoro serio e, a ideia de ir para 0 serninario vai-se tornando urn

grave problema para ambos, os quais buscam todas as maneiras de evitar a

Separal'ao. Ele pede ajuda a Justina, prima de Dona Gloria, que vive em casa desta,

que interceda a favor dele, ela se nega. Jose Dias, velho agregado da casa, tambem

se recusa, alegando que 0 problema nao e fadl, sendo melhor cumprir 0 que Ihe fora

predestinado. 0 proprio Bentinho, de indole tirnida, tenta falar com a mae, mas tudo

I ASSIS. Machado de. Dom Casmurro. Sao Paulo: Novo Horizontc SlA, 1971. (As cita~ijcs ICl:tuais queaparcccrao no dccorrer do trabalho foram cxtraidas dcsla cdi(j:iio)

Page 8: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

em vao. Sua ida para 0 semina rio foi inevitavel.

La, Bentinho conhece Escobar. Este se torna seu amigo e confidente.

A vida transcorre entre os estudos eclesiasticos e as visitas semanais a sua

casa. 0 tempo passa ate que urn dia Bentinho acata a ideia do amigo Escobar em

cumprir a promessa de uma outra forma: custeando as despesas de um seminarista

pobre, livrando-se do compramisso. Sua mae aceita a substitui,ilo e finalmente ele

retorna a casa. Anos depois, ja formado em Direito, casa-se com Capitu e come9am

uma vida repleta de felicidade. E essa felicidade ainda se torna maior quando

Escobar, que tambem saira do seminario, casa-se com Sancha, amiga de Capitu.

Escobar e Sancha tern uma filha, a qual recebe 0 nome de Capitulina, em

homenagem a amiga. E em retribuic;ao a atitude do casal, Bentinho tambem

homenageia 0 amigo, dando ao filho, 0 nome dele. Uma traca reciproca de carinho

pela amizade que cultivavam.

Os dois casais passam a morar pr6ximos urn do outro e as afinidades entre

eles aurnentam.

Tudo caminha muito bern ate a primeira tragedia: Escobar morre, depois de

se aventurar no mar agitado.

A vida continua feliz para 0 casal protagonista, entretanto, algo passa a

preocupar Bentinho seriamente, e a segunda tragedia: Ezequiel, 0 filho, a medida

que cresce, vai-se tornando urn retrato vivo do falecido amigo. Os tra,os, 0 cabelo,

os olhos, 0 andar tudo faz lembrar Escobar. A duvida atormenta Bentinho e uma

infinidade de pequenas coisas despercebidas no passado come,am a avolumar-se

confirmando as suspeitas: Capitu 0 traira com 0 melhor amigo. Essa verdade via

escrita na aparfmcia do menino.

Page 9: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

Capitu nao consegue encontrar meios de escusar-se do crime que 0 marido

Ihe atribuira. Sua defesa, pelo contrario, acaba definitivamente levando-a a confirmar

a culpa. Bentinho decide entao levar a esposa adultera e 0 suposto filho bastardo

para a SUiya. Tempos depois, Capitu vern a falecer. E Ezequiel, ja moyo, em visita

ao pai, revela-se a copia fiel de Escobar. Para a mente obcecada de Bentinho, nao

paira mais qualquer duvida quanto a trai9ao da mulher.

Ezequiel volta para 0 Oriente Medio em excursao, onde faz estudos sobre as

pinlmides, e 18morre de febre tifoide.

o livro acaba com 0 autor enfatizando que tudo nao pass a de uma hist6ria

de suburbio. Coisas que acontecem todo dia e que faz parte do cotidiano da

humanidade.

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3. CAPITU, UMA PERSONAGEM ESPECIAL

Em 1899, surge na literatura brasileira, uma personagem polemica, unica,

igual a nenhuma outra. Sem possuir a formosura e nem as dotes de uma dama

sonhadora que nos sara us ostentavam tanta graciosidade na epoca, seu

encantamento fora ocultado para dar vida a outras qualidades como: meiguice,

coragem, determinac;ao e, sobretudo, muita astucia, sem nenhum sinal de beleza

exorbitante.

Pouco se sa be dela, au nada, melhor dizendo; sua personalidade nao pode

ser tra98da, esmiu~ada, apenas deduzida. Trata-se de Capitu.

Machado de Assis a criou, contusa, curiosa, sem 0 menor trabalho de defini-

la. Ao inves disso, deu voz ativa a uma Dutra criac;ao para cumprir seu papel. E ande

nasce, entaD, uma personagem completamente dubia. de carater equivocado que,

ao longo de cern anos de existencia, naD pode ser definida e nem podera, uma

verdade comprovada e sensata, considerando que ela e obra da imagina~ao

perturbada de urn marido casmurro, 0 qual, diretamente, induzi-nos a criar urn

conceito sobre ela: falsa, hipocrita, calculista, dissimulada. Ele faz isso, mas nao tira

dela a condic;ao de ser a vitima, afinal, Capitu e uma personagem estigmatizada.

Culpada ou inocente do crime de adulterio, foi amada e exultada antes de

menosprezada e aniquilada. E essa nuvem de misterio que a envolve, torna-a essa

personagem polemizada, indecifravel.

Embora nascida no seculo passado, em nada a difere de uma mulher atual.

Suas caracteristicas marcantes sao responsaveis, certamente, par ter se tornado

essa personagem tao especial e unica no mundo da fic~ao.

Page 11: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

4. BENTINHO Eo OOM CASMURRO

o romance Dam Casmurro gira em torna das reminiscencias de Bentinho.

Ele revive seu passado e traz it tona uma vida conturbada; uma trajet6ria infeliz e

com sombras funestas, marcadas par lembrant;:as amargas, frutos de uma obsessao

gerada pela convicyao que carrega quanto a traiyao da mulher. Tudo isso 0 laz um

personagem-narrador rude e inconseqOente. Seu posicionamento enquanto narrador

de sua propria hist6ria transforma-a em uma pessoa de moral duvidoso, pais a

maneira abrupta com que imp6e suas verdades 56 Ihe permite semelhante conceito.

Ele mesmo se obriga a tal analise. nao dando margens ao bom leitor de

simplesmente toma-Io e aceita-Io conlorme ele se apresenta. E de sua auto delesa

que lala, de um caso passional segundo a sua interpretayM, sem nenhum

embasamento, exceto nas teorias que desenvolve a partir de sua imaginac;ao. Nada

se sabe dele que nM aquilo que relata com tanta persistencia a fim de reloryar a

ideia de que agiu corretamente.

o melhor a pensar sobre 0 livro e admitir, primeiro, que Bentinho tambem

tern uma voz que 0 comanda. Antes de tudo, ele e uma criac;ao de Machado, e 0

proprio autor lembra 0 leitor disso, participando da narrativa em algumas situayoes.

Situayoes estas que so ele, enquanto autor, poderia ter conhecimento. Em segundo

casa, trata-se de uma hist6ria contada em 1a pessoa, por alguem que tem a sua

versao a respeito da mulher, da certeza de ter sido traido por ela, e nada mais. Uma

ideia determinada que faz jus ao titulo do romance. Duas (micas verdades que ha

comprovadamente. As outras, sao teorias, suposicyoes.

Page 12: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

Sobre a intromissao do autor na narrativa, SENNA (1998) diz: "Nao nos e

licito ignorar, tambem, a presen,a viva do autor, marcada em situa,oes inesperadas

par toda a obra. A voz dele passa a surpreender nas entrelinhas do texto, ajudando

a desconstruir a verossimilhanc;a dos acontecimentos narrados". 2

Hit ocasioes em que Machado de Assis deixa em evidencia essa

participa,ao. Diretamente ele Ura de seu narrador a autoridade de direcionar a

narrativa sozinho e 0 posiciona como urn observador. Ve-se essa intromissao em

passagens como, por exemplo, no capitulo II em que Bento descreve a casa que

mandara construir, c6pia da que morara na infancia: "Nos quatro cantos do teto as

figuras das esta,oes, e ao centro das paredes os medal hoes de Cesar, Augusto,

Nero e Massinissa, com as nomes par baixo ... " 3 E ja quase no final da hist6ria, essa

mesma cena e revivida por Bentinho. Ao entrar na sala, surpreende 0 filho

contemplando 0 mesmo medalhao de Massinissa. 4 Uma coincidencia? Nao. Tal

observa,ao so Machado de Assis poderia se dar conta, considerando que 0 proprio

narrador, na ocasiao da descric;ao dos quadros, tern con sci em cia de sua ignorancia a

respeito dos imperadores e declara: "Nao alcan,o a razao de tais personagens." 5 E

o proprio Bentinho quem chama aten,ao do leitor sobre esse tato e nitidamente se

percebe que ao fazer iss a revela que naD ha nenhuma preocupaC;EIO par parte dele

com semelhantes detalhes. 0 leitor perseverante notara que a estrutura do romance

vai alem das declara,oes de um narrador onisciente. Um, Q~,vrvacao que nao

chega a mudar a trajetoria da obra, mas leva 0 leitor a questionar ate onde Machado

I SENNA, Marta de. 0 olbar obliquo do bruxo: ensaios em tomo de Machado de Assis. Rio de Janeiro: NovaFronteira. 1998. p.IOO.

3 ASSIS, Machado de. Op. cit. p. 8.~Idem ibidem. p. 243.'Idem ibidem. p. 8.

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de Assis deu voz ativa a seu personagem e definitivamente esclarecer que Dam

Casmurro e urn livro de muitas leituras.

E quanto ao titulo da historia e interessante tambem relembrar 0 seu

Significado. Parece desnecessario tal mengao, porern, quando se presta atenc;ao em

sua abrangencia nota-se que naD S8 trata apenas de urn homem melanc6lico,

conlorme 0 narrador tenta justificar logo no I capitulo em que ele se dirige ao leitor

com a finalidade de esclarecer a razao de ter atribuido tal titulo a obra. Ele revela de

imediato que casmurro nada tern a ver com 0 significado que 0 dicionario traz, e sim

com de urn "homem calado e ensimesmado': 6 au seja, a pessoa dele proprio. No

entanto, pelo tear da hist6ria parece muito mais conveniente admitir ambos as

conceitos, considerando que sua teimosia e marcada sistematicamente do inicio ao

fim do romance. E sobre iSso,0 critico PEREIRA (1991), argumenta que: "casmurro

S8 trata, pois, de urn neur6tico obsessivD, querendo passar-S8 par depressivo,

palavra pertinente a escritores modernos." 7

Valendo-se da nomenclatura da palavra conclui-se que nao ha pretensao

alguma do escritor em redefinir a palavra. Esse novo conceito e tao coerente quanto

o primeiro, para isso e so lembrar bem do teor da narrativa. 0 leitor atento vera que

a obra parte de um principia bem unico: a partir de uma ideia fixa do personagem-

narrador, de uma relutancia em provar a culpa de Capitu, e ele laz isso sem

nenhuma limitac;ao,ora a exalta, ora a diminui, mas acaba aniquilando-a com seu

proprio embarago.

Ambas definic;6es se assemelham quando se considera a teimosia e a

" Idem ibidem. p. 5.

7 PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis: ensaios e apontamenlos avulsos. Rio de Janeiro: Livraria SaoJose, 1991. p. 32.

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introspecc;ao como responsaveis par atitudes pertinentes do narrador. Bentinho e

casmurro pelas duas acep90es. A obra e assim constituida. Tem-s8 urn narrador que

revive seu passado, relembra toda uma trajetoria conturbada, desenvolvida par uma

ideia equivocada e unica gerada pelo excessive ciume que sente por Capitu,

conseqOencia da propria casmurrice dele. A persistencia em colocar a mulher no

banco dos reus e relutante, e consegue. As provas que apresenta sao baseadas

puramente em interpretac;6es, em uma ideia obcecada que de 16gica nao ha nada

que S8 comprove. A respeito desse posicionamento sistematico, 0 critieo ingles

GLEDSON (1971), comenta que a obra "e um estudo sobre 0 ciumes de Bento" 8 Eo

uma afirmac;ao coerente. Nao ha como analisar 0 romance sem ser desse ponto de

vista. 0 ciume 0 corrol visivelrnente; isso e demonstrado atraves de suas ac;6es

extremamente exciusivistas. Em momenta algum aceita a possibilidade de ter side

precipitado ao julgar 0 carater da mulher, de sua Capitolina, tao apaixonada quanto

ele. Acha muito rna is preciso confiar em seu racioclnio baseado em suposic;oes que

a possibilidade de tudo nao passar de uma esquizofrenia, de um erro que e seu.

Nada 0 convence e suas ideias sao levadas avante, sob uma defesa peremptoria. 0

egoismo 0 cega e sua versao e absolutamente exclusiva.

Estudar 0 comportamento de Bentinho, inverter os fatos e condena-Io nao etao simples tambem, mesmo que as evidencias para isso pare~am obvias. Ele tem

suas artimanhas. Diagnosticar ate onde e capaz de defender sua ideia, e uma tarefa

ardua, ao considerar que sua verdade e prociamada de maneira incontestavel,

afinal, so ele a conhece e sabe ate onde ela tem fundamento, apesar dele parecer

8 GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 75.

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tantas vezes inconseqOente. Seus argumentos desenvolvidos naD sao

cientificamente comprovaveis, porem. Bentinho transfere credibilidade a quem toma

o romance naD com 0 intuito de analisa-Io, de investigar 0 estado psicol6gico do

narrador. Essa sua postura de homem-vilima chega, concomitantemente, aimpossibilidade de se crer que trata de um obstinado. Em toda narrativa, ele nao s6

condena Capitu, como tambem descreve as fraquezas que ele possui. E um jogo

emaranhado com apenas uma constatatrao.

No entanto, ha uma certa incoerencia ao se apegar a esse proposito dele,

que e realmente a de persuadir 0 leitor, de se calocar sobre a condiyiio de traido,

sem S8 ater as vias que 0 levou a se rebelar. Se por urn lado ele se utiliza de

argumentos convincentes, par Dutro, existe uma enorme barreira quando se pensa

que tudo existe por obra dele mesmo. Nao e permitido afirmar que toda essa

seriedade que deixa transparecer a ponto de transmitir eredilo, naD seja senaa fruto

da trajet6ria equivocada que ele mesmo deixa marcas visiveis no decorrer da

narrativa.

Ao trazer a tona toda lembranya para a reconstituiyao do que viveu, nada ha

de concreto alem de um julgamento met6dico, machista dos fatos que julga reais.

Sendo assim repass a as situac;oese os epis6dios vividos com uma carga emocional

mUlto acentuada. Dessa forma existe uma dupla visao da experiencia que fora sua

vida, reconstitufda em termos de exposic;ao e de analise. Por urn lado, a visao

enfuma9ada do adulterio que 0 perturba e que e exposto de maneira rude, por ~Utro,

encontra-se urn narrador que se coloca ao estado de penuria, ao se revelar urn

hornem fraco, sem iniciativa algurna.

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E ele vai tecendo sua hist6ria conforme 0 que Ihe vern a memoria e nota-s8

que suas observa<;:oes sao selecionadas. Nao ha uma seqOencia a ser obedecida,

ele mesma confessa que cantara tude que julgar relevante, entretanto,

contraditoriamente S8 percebe que existe uma lacuna em sua biografia. A ausencia

de autenticidade esta no que escreve, por exemplo, no capitulo LXVIII: "Tal fa90 eu,

a medida que me vai lembrando e convindo a constru<;:c3o au reconstru<;:ao de mim

mesma", 9 Pareee mais admissivel crer: a maneira dele. Sem interferencia de uma

passive] testemunha que Ihe clareia a mem6ria au de urna nova interpretayao que

desencadeia 0 fumo que dera ao relato. Simplesmente de acordo sua consciencia

permitir. Se ele mesmo, com seu discurso autoritario, avisa que tudo sera contado amedida que for se recordando, arranca-Ihe s6 com esta declara\=ao parte de sua

confian\=a. Seria de muito bom senso acrescentar em seu discurso: nada que Ihe

fere 0 moral ha de ser revel ado.

Inevitavelmente, nao e possivel compreender 0 romance, tao pouco a

complexidade que se gira ao redor da integridade de Capitu, sem primeiro

compreender 0 narrador. Esta nele 0 ponto de partida para a compreensao e a

analise da obra.

Conforme a obra vai se estendendo, percebe-se que 0 narrador vai

perdendo sua identidade, se e que em alguma ocasiao ele a tenha deixado em

evidencia, e passa a olhar pelos olhos dos outros. Essa debilidade presente no

personagem e urn born argumento que refor9a, sem duvida, sua senilidade. Vimos

seu olhar atraves de Jose Dias, 0 qual 0 den uncia a si mesmo quanto a sua paixao por

9 ASSIS, Machado dc. Op. cit. p. 132.

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CapitulO; 0 de sua mae, que a quer padre, em virtude de uma promessa11; 0 de

Sancha, mulher de Escobar, quase no fim do livro, que Ihe sugere uma possibilidade

de adulterio12; e a seu proprio, nesse mesmo capitulo, a partir da visao e do tato com

que examina as brac;os musculosos do amigo: "mais grossos e fortes que as meus".

Bentinho e transparente quanta a sua fraqueza. As pessoas ao seu redor, inclusive

Capitu, revelam sempre mais esperteza do que ele e as marcas dessa complei9ao

estao presentes em outras passagens da obra as quais naD 0 poupa de uma analise

criteriosa. E ela e feita minuciosamente par quem enxerga nessas atitudes urn sinal

de desequilibrio emocional.

Bentinho e sim, casmurro par natureza. Melhor titulo nao Ihe caberia. E esse

seu estado de melancolia, 0 proprio revela no capitulo XL. Sua confissao e concisa:

~Ficando56, refJeti algum tempo, e tive uma fantasia. Ja conheceis as minhas

fantasias. A imaginac;ao foi a companheira de toda a minha existencia, viva, rapida,

inquieta, alguma vez timida e amiga de empacar." 13 Uma reflexao que prova seu

estado solitario e de ausemcia de paz interior. Em seus intimos soliloquios, a busca

por uma tranqOilidade que nao a encontra em companhia de ninguem. Esta nessa

fragilidade, certamente, a resposta por toda uma narrativa sustentada por

suposic;6es.

E essa postura atribuida ao narrador, a de senhor da razao, que faz 0

romance merecer 0 titulo duvidoso. Nada e apresentado como auxilio para se

construir uma ideia quanto a verdade: Bentinho, a vitima ou 0 vilao? 0 que importa

to Idem ibidem. p. 26.II Idem ibidem. p. 174.121dem ibidem. p. 211.13 Idem ibidem. p. g I.

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tambem chegar a uma res posta? Dom Casmurro nao esta no banco dos reus:

culpado ou inocente? Cabe se apropriar do romance e enxergar as multiplas faces

de seus personagens que, como urn todo, retratam a essencia humana.

E exatamente ai que se justifica 0 teor enigmatico da historia, pois 0 unico

universe existente do romance e 0 do narrador, salvo as inlerfen3ncias que a

romancista esporadicamente faz. Ao alcance do leitor, so se estende a dedugao. A

malicia tambem e urn caminho born para se percorrer a fim de compreender 0

raciocinio de Bento, afinal, ele se inocenta, mas naD e capaz de despistar uma panta

de insanidade em consequemcia do ciume doenlio que sente, responsavel pela culpa

atribuida a mulher e simultaneamente pela ideia fixa de ter side enganado pelo

melhor amigo.

A base de toda a dialetica machadiana esta nessa sua visao de mundo cheio

de conflito, elemento que tao sabiamente repassa a seus personagens. A virtude de

Capitu, por exemplo, em nenhuma situagao foi reveladora, esclarecida. Machado

direcionou 0 romance de tal maneira que deixa 0 leitor na posi980 de co-autor, ele

legou esse direito de prosseguir com a historia, de reinventa-Ia ate mesmo. 0

simples fato de 0 romance ser conflitante e levantar tantas suposigoes a respeito da

razao de Bentinho e da situagao indefensavel de Capitu, justifica essa participagao

ativa do leitor, pois ela nao pode ser explicada, a nao ser que seja vista a partir de

uma visao simplista.

Isso e fato, no decorrer de toda obra fica evidenciada mesmo para aqueles

que nao buscam necessariamente essa resposta como principia para saborear a

romance. A condigao de defender Capitu ou condena-Ia nao esta em jogo, 0

narrador soube perfeitamente enveredar a trama para nao deixar nenhuma pista

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ao leitor. Talvez par isso ele con segue envolver-nos de uma maneira tao curiosa e

fie!.

Eo partindo deste estudo que se analise 0 livro, que se constrni uma ideia de

Capitu, dessa personagem que ao mesmo tempo e ingenua e perversa, constituida

para ser dubia, afinal, ninguem, alern de Bentinho, e respons8vel par ela.

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5. A COMPLEXIDADE DE CAPITU

Estudar a comportamento de Capitu au tra9ar-lhe um perfil. isoladamente.

sem verificar as condi90es psicologicas de Bentinho, seu estado emocional, a

momento da vida em que escrevera 0 livro, e urn erro, pais tudo isso junto implicara

no carater dela. Pensar nela sem refazer toda essa analise e uma incoer€mcia,

porque Capitu nao e outra pessoa que nao fruto da imagina9ao do velho Bento

Santiago, au melhor, ela e a que ele traz na lembran9a. E a narrador a descreve

totalmente passiva, a vontade dele, sem Ihe dar a menor oportunidade de defesa,

com uma pretensao tao acentuada que ele consegue, par argumentos tao

convincentes, transforma-Ia em ambigua.

A obra, em sua integra, e dubia, pais tanto a narrador quanta Capitu nM se

definem. Ele, par deixar em suspense a verossimilhan9a de seus relatos,

considerando as condi90es que a levou a faze-Io; ela, par nao ter personalidade

propria, pais, e Bentinho quem Ihe do vida e a direciona a seu bel-prazer. Rouba-Ihe

seu livre arbitrio e a condena a eterna culpa. Eo uma personagem que se pode

claramente definir como vitima de um marido obcecado pela ideia do adulterio.

Bentinho nada deve, enquanto ela e 0 reversa.

o narrador cansegue direcionar a obra de modo a parecer que toda culpa

recaia sabre ela. Uma adultera, diga-se, muito inteligente, pais embora a descreva

sendo esta mulher astuciosa, dissimulada, caracteristicas presentes desde a

adolescencia, ele tambem faz dela uma adolescente-mulher, de carater forte. Da a

ela tanto coragem e a poder determinante quanta meiguice e simplicidade. Sua

verdadeira identidade, ele oculta. Nao apenas quanta ao crime que ele a julga ter

Page 21: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

18

cometido, mas Capitu por completa. Quem afinal ela e? 0 discurso dele e um tanto

ca6tico. Uma criatura nao pade ser tao dacil e simultaneamente tao mahatica

conforme Bentinho a apresenta. A questao e complexa e cuidadosa, considerando

que par detras da menina pobre e apaixonada, hit uma mulher talsa que

inteligentemente arquiteta contra ele.

Entre tantas observa~6es marcadas ao longo do romance e que deixa

evidEmcias da obsessao, do fanatismo de Bentinho par e5sa ideia ja construida e

alimentada ao longo do relacionamento deles, encontra-se uma no capitulo CXXXV.

Minuciosamente ele desenvolve sua teoria de homem traido, de vitima do mal da

mulher, e atribui a ela a pior das caracteristicas de uma esposa infre!. Nao hit mais

lugar para uma reflexao sensata.

Bentinho narra:

De naite fui aD teatro. Representava-se justamente Olefa, que eu nao vira e nem lera nunca;sabia apenas 0 assunto, e estimei a coincidencia. Vi as grandes raivas do mouro, par causade urn len{:o _ um simples lenyo! ( ... ) Tais eram as ideias que me iam passando pelacabe{:a, vagas, turvas, a medida que 0 mouro rolava convulso, e lago destilava sua calunia.(...)0 ultimo ato mostrou-me que nao eu, mas Capitu devia morrer. ( ... ) Cheguei a casa, abria porta devagarinho, subi pe ante pe, e meti-me no gabinete. Tirei 0 veneno do bolso eescrevi ainda uma carta, a ultima, dirigida a Capitu. Senti necessidade de Ihe dizer umapalavra que Ihe ficasse 0 remorso da minha morte. 14

Olhando por esse prisma, 0 que sobra ao leitor tenaz e tra9ar mesmo 0 perfil

do narrador, as condi90es que 0 levou a agir de maneira determinada, para entao se

sentir mais familiarizada com a obra e compreender Capitu, essa personagem

complexa par natureza.

1.1 ASSIS, Machado de. Op. cit. p. 230-231.

Page 22: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

19

o drama dele e um exemplo de seu estado doentio. E se nao 0 for, deixa

transparecer colocando uma questao puramente subjetiva como ponto de partida

para uma decisao de tanta reievancia. Ao comparar Capitu a Desdemona, uma

traidora que naD merecia viver, ele comprova a extensao de sua covardia e de seu

ceticismo. Simultaneamente tambem se iguala ao personagem-vitima da tragedia.

Chega a encontrar, atraves da pe9a, respostas para seu dilema, para a situa9ao

enxovalhada a qual vive, mas falta-Ihe coragem para imitar a arte. Primeiro, acredita

que condenando a mulher a morte, para ter a honra limpa. seria a decisao mais

coerente para um homem cuja dignidade fora estupidamente manchada. Segundo,

pensa em suicidio. Tirando a propria vida, transformaria a da esposa. Capitu

carregaria para sempre 0 remorso de sua morte. Uma puni9ao bastante 16gicapara

uma mentalidade tao conturbada! Alias, 56 mesmo uma mente muito perturbada

para desenvolver semelhante plano.

A covardia 0 afasta das duas oP90es leitas durante a longa reflexao do

teatro ate a casa, contudo sabe que reconhecer a situatyao seria desferir mais uma

apunhalada em seu orgulho ja fendo. Teria de contoma-Ia, mesmo que fosse por via

da mentira. E foi 0 modo que encontrara para vencer 0 caos. A mulher, adultera,

criminosa, de uma forma au de Dutra pagaria pelo que cometera.

Bentinho naD S8 mata e nem se torna urn assassino direto. Arquiteta urn

plano pr6prio e toma a decisao que julga eficaz. Sua atitude chega ao extremo

quando entao resolve livrar-se do suposto filho bastardo, 0 qual traz na semelhan9a

a imagem do amigo Escobar, e da mulher, condenando-os ao exilio, onde ela,

desiludida, morreria de infelicidade. "

15 Idem ibidem. p. 238.

Page 23: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

20

lndiretamente sua paranoia 0 leva a esse ato justificavel por ele, mas

infundado a qualquer raciocfnio logieD. Nenhum autro argumento, que nao a sua

desconfianya doentia, loi 0 elo para a discordia entre eles. Seu veredito, um so. E

um joga que 0 leitor tem de acampanhar sem pressa. E a respeito dissa, JACQUES

(1974), afirma: "A capacidade de enganar, do romance, e extraordinariamente

completa, como de lato esta implicito em que a possivel inocencia de Capitu

permaneceu virtuosamente despercebida durante tanto tempo." 16 Bentinho sabe

como ludibriar 0 leitor com sua narrativa distorcida e dissimulada. Procura e

consegue persuadir deliberadamente quem 0 Ie, dando lalsas pistas, ou pistas

equivocadas que diretamente coloca Capitu nos bancos dos reus. E a delesa dele

que esta em jogo e ele a laz passando por cima de todos os principios.

E polemico discutir ate onde a inocencia de Capitu esta implicita. Ela existe

e sera motivQ de busea aD leitor teimaso. Contudo, e muito curiosa enveredar a

historia pelo caminho que 0 narrador traya. Uma mulher que se soubesse cuipada,

adultera, nao agiria com tanta naturalidade e desembarayo, por mais dissimulada

que ela viesse a ser.

No corpo da obra, nota-se que Bentinho conversa com 0 leitor. Ele 0 chama

e e categorico. Insiste em justifiear seu metoda utilizado 0 qual 0 caloca como dono

da verdade. Faz isto com a precisao de quem conhece 0 que certo. No capitulo XXXI,

ele e extrema mente radical: "ha conceitos que S8 devem incutir na alma do leitof, a

lorya de repetiyao". 17 Estaria ai a resposta por repetir tanto os supostos atributos

traiyoeiros de Capitu? A propria obra existe em lunyao deste equivoca. Bentinho

16 JACQUES, Alrredo. Machado de Assis: cquivocos da critica. Porto Alegre: Movimcnlo. 1974. p. 103.17 ASSIS, Machado de. Op. cit. p. 61.

Page 24: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

21

a quallfica como dissimulada, incansavelmente, atraves de comportamento as

quais julga dubios. E registra com precisao de quem a conhece muito. Como

exemples dessa sua certeza em conhece-Ia tao bern esta na forma como narra as

episodios que se sucederam durante 0 relacionamento deles. Na capacidade dela se

refazer rapidamente em situac;oes que exigi am pruden cia, desde a cena do primeiro

beijo ", quando ambos sao surpreendidos pela mae dela, ate a cena do enterro de

Escobar, quando ela enxuga mais que depressa uma lagrima, lagrima que nao

existe qualquer possibilidade de ser de tristeza, de dor, comum a quem perdeu um

amigo. 19A cena presenciada mio tern 8ssa interpretac;ao, mas de quem perdera urn

amante. Em sua expressao naD ha nada que revelasse complacencia, lute pelo

amigo que fora Escobar. Estava nela, no seu olhar fingido, a res posta que ele

buscava.

o ja citado GLEDSON, lembra bem que Dom Casmurro "e uma obra que

consiste em uma mistura entre narrativa psicol6gica e narrativa de misterio. A

diferenc;a esta no fato de que nas narrativas de misterio tradicionais, 0 enigma e

descobrir 0 criminoso, enquanto aqui pareee ser descobrir S8 houve au naD 0 crime.n 20

Nilo hi! trilhas por onde percorrer a fim de se chegar a esse labirinto que e

composto a narrativa. As encontradas nao levam a nenhuma verdade comprovada: ha

crime? Quem a cameteu? E uma busca inutil que a leitor insiste, mas que nenhum

termina a leitura sem faze-Ia. 0 que se acaba par conhecer sao suposi90es, mas

estas nao servem como fundamento.

Bentinho se utiliza de muitos detalhes para tecer sua narrativa partindo de

IBidem ibidem. p. 28.19 Idem ibidem. p. 214.20 GLEDSON, John. Op. cit p. 20.

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22

uma conviC\:ao que Capitu e culpada. E consegue, de uma maneira bern singular,

faze-Ia de fato parecer-se uma criminosa. Seu poder de persuasao e forte e se nao

convence facilmente 0 leitor desatento, nao isenta nenhum do principio da duvida.

Afinal, Capitu nao tern vontades pr6prias. Enquanto ele tern par onde se firmar em

suas convic,ces, utilizando-se de seu discurso direto, ela nM tern defesa alguma, s6

o born senso do leitor que ve na atitude do narrador uma extrema pretensao.

A ensaista Marlene CORREIA (1994), tambem chama aten,ao para "a forma

como 0 narrador organiza as ideias a parecer tao politicamente corretas" 21 Ela

ressalta a ambivalencia da obra, a facllidade com que 0 narrador-personagem

adquire uma personalidade fragmentada que, embora seu discurso nao seja num

todo sensato, sabe como organiza-Io, de modo a convencer aquele leitor que nao se

deu conta que Capitu nao tern quem fale por ela. Bentinho soube fazer isso com a

mesma precisao que conseguiu transformar-se, tambem, em urn homem de carater

duvidoso.

Mas certamente nao ha uma (mica especie de leitor. Para aquele

acostumado ao comodismo, Bentinho e uno, entretanto, ao sagaz, 0 raciocinio de

CORREIA e 0 mais prudente. Por mais que 0 narrador se utilize de uma postura

convincente para provar sua situac;:ao, sendo tao radical na interpretac;:ao dos fatos,

nao impossibilita que 0 outro lado de sua personalidade fique oculta. Ele encontrou

argumentos para condenar a mulher; nao deixou de oferecer, contudo,

oportunidades para 0 leitor atento enveredar por outros caminhos a leitura e

encontrar nele a unica causa dos problemas. Se foi capaz de, detalhadamente, atribuir

21 CORREIA, Marlene C. A fic~o de Machado de Assis sob 0 signo da contemporancidadc. In: ----- Estudosde literatura brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. p. 64.

Page 26: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

23

caracteristicas culposas a Capitu, roubando-Ihe por completo 0 direito de uma

explica9Ao, significa tao grande e seu poder de falsidade. Essa sua presunyao

revelou-o urn homem traco e realmente conturbado diante desses equivocos. Ao agir

de tal maneira, nac ha como negar uma forc;:a negativa que 0 domina. De vitima,

passa a urn neur6tico que se condena diante de le1tore5menDS preocupados com a

emoc;:ao.

Ao aceitar 85sa leitura, conseqOentemente 58 admite que Capitu naD existe

sem 8entinho. A personalidade dela s6 pode ser definida se partir da hip6tese que

ela e criac;:aounicamente de Machado de Assis. Quando S8 pensa nela como uma

personagem reproduzida atraves da imaginac;:ao do marido, erra-se severa mente em

Ihe atribuir qualquer conceito, porem, ao aceitar a primeira hip6tese, ela se torna

uma personagem verdadeiramente ambigua, de muitas pretens6es e de uma

filosofia de vida avanyada para a epoca, pois tem uma capacidade de ser

dissimulada e aD mesma tempo simp,Hica, aceitavel. Nao seria 0 caso de

desconstruir a personagem, ou rnelhor, toda a obra, mas uma forma de conduzir °raciocinio para ° que e evidente.

Se continuar observando que a presentya de Capitu e sernpre marcada por

urna repreensao de Bentinho, vale lembrar de urn episodio banal ocorrido quando

ainda eram adolescentes, mas que para ele foi motivo de empecilho para 0

entendimento e de razao suficiente para atribuir umas e outras qualidades

indelicadas a Capitu. E no capitulo LXXV que 0 drama se revela. Ainda seminarista,

em visita a casa materna, surpreende uma troca de olhares entre Capitu e urn rapaz

que passa a cavalo. E 0 bastante para registrar 0 desespero que toda a cena Ihe

causa. A maldade jil estava implantada dentro dele antes ainda de se conhecer a

Page 27: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

24

verdade. 0 que se passava de tato entre aquele pequeno f1erte, ou urn inocente

gesto, nem ele soube definir, s6 teve uma interpreta~iio. Ele observa com aten~iio

para maldosamente inferir: UCapitu ria, falava alto, eu continuava surdo, a s6s

comigo e 0 meu de~prezo. A vontade que me dava era cravar-Ihe as unhas no

pesco~o, enterra-Ias bern, ate ver-Ihe sair a vida com 0 sangue ... " 22 Mais do que

uma rea9ao de ciumes e de pura obsessao, de desequilibrio emocional, mesma que

tudo naa se restringisse 56 no imaginario dele. Contudo, e urn comportamento que

naD deixa de ser urn prenuncio para 0 que vi ria acontecer no futuro. Esse

procedimento naD e menes hostil dos Qutros que, diretamente atribuiu a mulher, jil

adulto. Com issa, Bentinho naD 56 Ihe doou urn conceito doentio, de homem

incredulo, como criou a figura superior de Capitu em relac;ao a si proprio. Ao mesmo

tempo em que a fez cruel, revelou-a possuidora de um determinismo confiante,

enquanto ele, um homem apatico, fragilizado. Isso da ao romance um aspecto

desafiador. Se a obra acaba girando em torno de um possivel triangulo amoroso,

nao e por acaso. A menina meiga que viera de urn berc;o modesto e ja tao nova

trazia a esperteza, a mallcia do adulto dentro de si, pode tarnbem ser exatamente a

perfeita descri~iio do marido: fingida.

Uma (mica leitura de Dom Casmurro pode nao conduzir ao leitor a uma

conclusao sensata e ainda distorcer por completo a intenc;ao do romancista, que

certamente nao e condenar Capitu, assim como inocentar 8entinho. Seu intento nao

deve ter sido outro do que por em questiio a fraqueza humana. Em particular, a do

narrador, que tece toda uma vida a partir de uma ideia fixa. Basta se ater

atenciosamente naquilo que Bentinho escreve. Nao ha como se esquivar da imposh;ao

2~ ASSIS, Machado de. Gp. cit. p. 141.

Page 28: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

25

dele quanto a analise que desenvolve de Capitu. Ele nao esconde a certeza

que paira sobre ela, sobre seu olhar obliquo. 0 proprio impoe que os leitores sejam

bons reparadores. Ou seja, ele encontra a razao de toda crise existencial no

relacionamento deles atraves da capacidade de Capitu de nao ser unica. Ela, mulher

ativa, ansiosa, enquanto ele, satisfeito com tudo, verdadeiramente 0 exemplo de

homem conformado. Nota-se tais qualidades dela em viuias passagens da obra em

que aparece em estado de plena euforia. Encontra-se essa impaciencia, com tanta

nitidez, como no periodo em que estava de lua-de-mel. Ansiava por viver seu estado

de casada, livre, nas ruas, poder compartilhar com todos 0 momento de gra9a 0 qual

vivia. Nao Ihe era suficiente a intimidade do quarto, a alegria tinha de ser dividida

com 0 mundo externo. 23 Precisava Hberartoda energia que emanava dentro de si.

Essa sua vitalidade diferenciava-a de Bentinho. A maneira euf6rica de ela encarar a

vida e, provavelmente, um born argumento para sua culpa se estender de tal

maneira a faze-Jauma mulher tao vulneravel.

Segundo constata e revela MEYER (1958), Capitu e uma presen9a

constante nos bastidores. Ve nela uma graciosidade singular, mas nao a isenta de

um poder de astucia. Poder que a faz nilo s6 uma mulher esperta, como

tambem onipresente. Sobre ela fala a respeito:

Uma ubiqOidade aliva, persistente, feita de golpes indiretos, de pianos longamenteamadurecidoscom a aslucia que sabe apresenlar todas as grayas da ingenuidade ou damodestia. Obliqua, dissimulada como aqueres olhos que sO revelam um pouco da Juz

~n~~~go;~~~n~~d~oe:~:e~:~ti~a::~~j~a~~~~~~~~~a~~rllas profundas, abrem uma

2lldcm ibidem. p. 183.2·. MEYER. Augusto. Machado de Assis. Rio de Janeiro; Silo Jose, 1958. p. 142'

Page 29: IVETE DA SILVA COSTA UM ESTUDO DA CARACTERIZA

26

Ele continua na observa9c3o afirmando que Capitu e pura sedw;ao, naD uma

sedut;:80 no seu sentido comum que emana uma beleza flsica de qualquer mulher

exuberante, mas urna beleza toda propria, nascida de urna personalidade forte, que

sa be ao exato 0 que deseja. E e nesta beleza natural que a faz graciosa e especial

que certarnente consiste 0 drama de Bentinho. Nao deve ser facil ter de aceitar a

ideia dela possuir todos esses dotes, enquanto ele mesma confessa ser inferior a

ela.

A partir dessa observa9ao, nao fica duvida sobre a ascendencia dela sobre 0

marido, uma mulher, porem com virtudes masculas, portadora de uma vitalidade que

a faz superior a ele em situa90es bern acentuadas como no capitulo XVIII em que,

ainda menina, em conversa particular com 0 namorado, irrita-se contra dona Gloria

que t8ima em manda-Io para semimlrio. Arma-se em defesa dele: "Beata! Carcla!

Papa-missas!n 25

Sua espontaneidade 0 assusta. Ela sabia 0 que dizia e repetiu rnais vezes

as improperios contra a amiga, ignoranda 0 pedido dele para que se calasse a

tempo, antes de ser ouvida.

Na opiniao de PEREIRA, ja citado, a figura de Capitu e vista "como urna

mulher de uma vitalidade extraordinaria, dona de uma personalidade multipla e

totalrnente irnprevisivel." 26 E continua com seu discurso, acrescentando urn can~ter

de perversao e requintarnento a personagern. Conceitos que sernpre se confrontarn

com outros de igual ou menor peso. 0 "imprevisiver mencionado por tantos criticos

so eleva ainda rna is 0 grau de cornplexidade da personagern. Tudo se pode esperar

HASSIS, Machado de. Op. cit. p. 37.~6 PEREIRA, ASlrojildo. Op. cit. p. 99.

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27

dela: ao que parece 0 6bvio, ao menes provavel. Nao e considerada dissimulada ao

acaso. Antes mesma da propria condenaryao do marido-narrador ,ela prova seu

carater na encenac;:ao diante da familia de Bentinho e do pr6prio, confirmando a

senten9a de dona Gloria quanto a propensao do filho ao sacerdocio. "_ E voce,

Capitu, voce naD acha que 0 nossa Bentinho dara urn born padre?" 27

Ao responder em afirmativa, foi uma surpresa ao namorada. Sentia que era

preciso entrar no jog a e participar favoravelmente da observac;:ao feita, tornando-se

cumplice tambem do martirio de Bentinho, para que nenhuma suspeita pairasse

sabre eles. uPara mim, basta 0 nossa juramenta de que havemos de nos casar urn

com outr~," Fai sua explicatyao para acalmar as animas de Bento e convence-Io de

que diante de dona Gloria seria sempre preciso mostrar-se cordial e convicta das

vontades dela, mesmo que nao fosse de seu agrado proprio. Nao podia correr 0

risco de tornar-se inconveniente e nao ser mais aceita na casa dele. Seria

simplesmente uma rea~ao inteligente, visto que Bentinho nao tinha coragem para

enfrentar a mae, ou uma previa de sua conduta de mulher esperta, poderosa. Um

comentiuio cruel ate certo ponto e critico por outro, levando em considerac;ao que as

atitudes dela encaminhavam para esse raciocinio.

A meiga Capitu se sobrepoe ao "companheiro mais timido e insciente dos

assuntos do cora9ao," 28 como afirma BARRETO FILHO (1980), para deliberar sobre

o destino de ambos. De carater forte, pensa e decide por eles. E por conta de seu

temperamento que salva 0 fragil amor, amea9ado pela promessa de D. Gloria.

Capitu nao se intimida e tambem nao interfere na decisao da mae dele de manda-Io

27 ASSIS, Machado de. Op. cit. p. 125.2S BARRETO FILHO. IntroouI;3o a Machado de Assis. 2. 00. Rio de Janeiro: Agir, 1980. p. 147.

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28

para 0 seminario. Era preciso que tudo Fosse feita meticulosamente. Criar uma

alian9a perleita com a lamilia de Bentinho para entao sair-se vitoriosa. E a estrategia

rnais coerente que ela encontra e laz acontecer. Em tudo ha seu consentimento.

Nao seria diferente nesse momento. Bentinho acaba indo para as estudos, mas nao

chega a ordenar-se.

Na interpreta9ao de CASTELLO (1969), Capitu e mesmo uma mulher que

sabe como manipular urn plano. Espera a hora exata para ditar aquilo que quer. Sua

voz chega a ser uma ordem, presente e firme, como na ocasiao da ida de Bentinho

para 0 seminario. Ele diz a respeito da esperteza dela:

Capitu nem chega a considerar tais hipoteses, e mergulha nas suas reflexoes muito maiseficazes e praticas. Ela afinal emerge da sua concentraca,o com urn plano a longo prazo,baseado sabre urna aparente confonnayao ao desejo de Dona Gl6ria, a ida provisoria paraas estudos no seminario, ganhado 0 tempo necessaria para minar no espirito da boa:~h~~~:~ad~~i~:~wao. Tudo se fara por meio de urn sistema complicado de alianyas

Bastante reveladora e a analise que se vai lazendo de Capitu ao longo da

leitura. Ela se permite participar ativamente de decisoes importantes, de lorma

astuta e curiosa. Planeja, executa sabiamente decisoes relevantes. Essas respostas

podem ser explicadas na analise que se segue dela a qual resulta na conclusao de

que ainda crian9a ja trazia a malicia da mulher adulta. Suas atitudes, sempre de

muita coragem, justificam a conclusao. A idade nunca lora pretexto para tomar

decisoes impensaveis, tantas vezes. Utiliza-se de sua inteligencia genuina para

tazer seu jogo, nao necessariamente, 0 inocente, pois ela parece sempre muito

29 CASTELLO, Jose A. Realidadc c ilusao em Machado de Assis. Sao Paulo: Companhia Nacional, 1969. p.151.

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29

convicta em tudo que pile em pr<itica. 0 que acaba por deixar uma margem grande

de duvida sobre sua conduta, afinal, ate que ponto ela se utiliza de sua genialidade e

de sua inocencia?

A respeito dessa observal'aO, LOPES (1974), complementa atraves de um

argumento muito bem lembrado: "Convem relembrar que e Capitu quem primeiro

nota a peculiaridade do olhar do filho e para isso chama a atenl'aO do marido. Foi a

mesa, depois do jantar, quando 0 marido julgava que a vida era outra vez doce

e placida." 30 Nesse momento, qualquer veredito que possivelmente algum leitor

teimoso insista em fazer, desaba, pais se esta nela a capacidade de ser dissimulada,

e5sa sua observat;:ao pode ser uma estrategia para se defender de uma eventual

condenaC;:80do marido, mas por outro lado, se tomar sua observac;:aocom a certeza

de que naD passa de urn inocente comentario, irrelevante por que nao, afinal, uma

adultera nao se daria ao luxe de ser tao desprecavida, nao h<i como ignorar que

Bentinho verdadeiramente na~ passa de urn paranoico ao tomar 0 comentiuio dela,

mais tarde, como conclusao de sua suspeila.

MAGALHAES Junior (1981), nao isenta a complexidade e uma intencional

ambigOidadede Capitu e ataca Bentinho complementando: "a suspeita e produto do

ciume m6rbido do marido que e desconfiado." II Nao hit saida para esse emaranhado

jogo. Nao se conhece a opiniao de Capitu, nem mesmo sua entonal'ao quando Ihe e

dado 0 direito ellpalavra, 0 dume de Bentinho nao pareee ter Dutra versao que nao a

fruto de uma imaginal'ao insana, de uma mente perturbada p~r uma unica ideia que

desenvolvera, sem nenhum precedente justificavel. Nada e capaz de faze-Io ter uma

:HI LOPES, Jose L. Psiquiatria de Machado de Assis. Rio dc Janeiro: Agir, 1974. p. 173.)1 MAGALHAES, Junior. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civiliza~iioBrasileira, 1981. p. 34.

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30

Dutra visao do posicionamento da mulher. Tudo nela revela cumplicidade: 0 olhar, os

trejeitos, a sagacidade que somados aD ciume doentio que traz par ela, naD deixa de

dar a obra, tambem, uma certa caracteristica languida, alem de contradit6ria.

E nao so 0 carater de Capitu fica constantemente em julgamento. Ha

incontaveis referencias em rela~ao aos seus olhos, quantas vezes mencionados

como dissimulados, de aspectos perturbadores. Um exemplo disso esta na

descric;ao que ele faz da aparemcia da mulher, diante do amigo defunto que chega

as raias do absurdo:

Enfim, chegou a hora da encomendac;clo e da partida. ( ... ) S6 Capitu, amparando a viwa,parecia vencer~se a si mesma. Consolava a Dutra, queria arranca-Ia dali. A confusao eragera!. No meio deia, Capitu olhou alguns instantes para 0 cadaver tao fixa, taoapaixonadamente fixa, que nao admira Ihe saltassem algumas lagrimas poucas e caladas.( ... ) Momenta houve em que as olhos de Capitu fitaram 0 defunto, quais os da viUva, sem 0pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar la fora. 32

E no corpo do texto, outras observa90es sao registradas por ele. Capitu e

desmerecida pelo modo de olhar, dando a entender que e falsa, ou misteriosa.

Bentinho sempre 0 apreendeu com uma atenc;ao contemplativa, mesmo no auge de

toda paixao. Uma incognita presente em varias passagens da obra. Para prima

Justina, 0 olhar da menina traduzia inquietac;ao,dizia que olhava por baixo. 33 Jose

Dias, nao menos sinistro, atribuiu-Ihe a alcunha de "olhos de cigana obliqua e

dissimulada," 34 expressao que estigmatizou Capitu, assim como "os olhos de

ressaca" 35 que Bentinho adiante Ihe atribui. Se por um lado 0 olhar dela revela um

que de falsidade, por outro, de profunda inquieta9aO,como se quisesse absorver 0

~=ASSIS, Machado de. Op. cit. p. 216." Idem ibidem. p. 44.34 Idem ibidem. p. 64." Idem ibidem. p. 215.

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31

que estivesse muito distante de si. alga revelador, urn crime, uma trai980, per que

nao? Sao denomina90es que caracterizam um estado de profunda languidez do

narrador. Ele se prova possuidor de uma consciencia deturpada capaz de enxergar

o mal em tudo que vem de Capitu. Esta na maneira dele expor os fatos, a

condena9ao dela.

Tal atitude ciumenta por parte do marido, passa por uma longa fase de

vagas e difusas crises de ciumes, ate irromper, em definitiv~, com uma percepryao

delirante e 0 faz tomar a decisao de livrar-se dela. Eo imprudente aceitar tais

argumentos como suficientes para tambem nomear Capitu portadora desses

conceitos, que ao se referir a ela, deixam de ser apenas conceitos para se

transformar em maculas, pais a partir deles e que toda condenaryao recai sabre ela,

tanto a Bentinho quanto ao leitor. Os olhos dela, a principal causa de seu infortunio.

Foi a partir da observa9ao deles que Bentinho encontrou semelhan9a do filho com 0

amigo. Assim como no velorio de Escobar: 0 motivQ para sua condenary8o total. Ao

marido, havia algo mais all,m de tristeza na lagrima que ela enxugara.

Inocentar Capitu, condenar Capitu; atribuir insanidade a Bentinho, crer na

sua mais pura faculdade mental, naD esta. ao alcance de nenhum leitor, par mais

minucioso que ele seja. E inutil crer nessa possibilidade. Desta maneira, Dom

Casmurro mostra, copiosamente, que Machado de Assis, ao criar Bentinho, nao

poupa seu personagem-narrador de apresentar as fraquezas que 0 domina,

confessando-as, as vezes, na integra.

Em seus estudos sobre a obra, PROENCA (1974), observa a posi9aO de

Machado de Assis em rela9ao a constru980 de ambos os personagens. Nao deixa,

contudo, de salientar a desenvoltura do olhar de Capitu. A maneira como 0 autor

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32

meticulosamente 0 traduziu, de modo a dar-Ihe um aspecto de misterio, indecifn'vel.

Elediz:

Nesse romance esta presente em tada sua for~a a maestria do escritor que sabe velar atragedia com a tecido ingenuo de urn namoro de adolescentes, ou formal de urn amenaconvivio entre amigos. Velar se disse. pois nac permite que 0 leitor a desconhec;a.prenunciada a tode 0 momento, chegando mesma ao aviso de que beiramos 0 urn abismo.Mas ao mesma tempo, naD teoriza, naD fomece a chave dos olhos de ressaca, parecemesma que nao a possui. 36

De acordo com a ideia do autor, acima citado, deve-se reconhecer que 0

trabalho de Machado de Assis deixa em aberto 0 julgamento sobre a personalidade

de Capitu, sem, entretanto, ausentar Bentinho de uma culpa interior Este

desconhece, ou melhor, jog a com 0 leitor quanto 0 desenrolar de sua propria

narrativa e faz suas criac;oes parecerem todas vitimas e simultaneamente culpadas.

Uma estrategia que faz toda a diferen9a.

Para Mucio Leao, citado por GLEDSON, "Machado de Assis se delicia em

ser incompreendido." 37 Uma declarac;ao que s6 encurta 0 caminho OU 0 deixa

mais acessivel para se compreender as romances dele, ern especial Dam

Casmurro. Esperar que uma leitura unica revele toda inten9aO do autor, e desistir

facilmente de explorar 0 mundo machadiano. A propria afirma9ao acima nos

prepara para uma possivel pressa. A ansiedade haven] de ser contida para urn

melhor entendimento e, tratando-se desse romance, complexo e por que nao

enganador, cabe ao leitor muita perspicacia e poder de critica, porque a obra e, par

excelE'mcia, arnbigua e canseqOentemente de can~ter duvidasa. Acreditar no que

)6 PROEN<;A, M. CavalcaJlli. Es(udos literarios. 2. ed. Rio de Janeiro: Instiluto Nacional do Livro. 1974. p. 12&.)7 GLEDSON, John. Op. cit. p. 19.

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esta visivel e principalmente ignorar a existencia de urn narrador pertinaz, e

desapropriar-se do verdadeiro sentido da leitura, pois toda ela e constituida a partir

de urn enigma, naD proposital, diga-se, mas intencional. S6 a tata de a narrador ser

unicamente 0 dono de todo desenlace, naa se permite chegar a urn veredito e

aceitar sua verdade como !inica. Quem alem de Bentinho conhece 0 que e certo?

Nem a proprio; seu carc~ter revela i550.

Na opiniao de BOSI (1991), "dentro do universo machadiano, nao importa

muito que a convic,ao de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a conseqii,mcia eexatamente a mesma nos dois casas: imaginaria ou reaL" 38

Finalmente, Capitu nao pode ser explicada p~r ninguem, por isso mesmo e

complexa, indecifravel, estereotipada segundo a visao simplista e equivocada de

Bentinho. Sabe-se que trata de uma personagem que rompe com segmentos da

sociedade vigente, tem a magia de ser dissimulada, e capaz de chamar uma

responsabilidade para si, sobrepor-se ao homem diante de uma decisao, mas e,

simultaneamente, uma mulher de identidade desconhecida. Criada a partir das

lembran~as que Bento Santiago conservam na memoria durante tant05 anos,

invariavelmente, e tudo que se conhece dela. Querer enxergar 0 que as elhos nao

alcan9am, e inutil. Nao se pade ver 0 que naD existe e ignorar 0 que esta tao visivel.

38 80S[, Alfredo. Machado de Assi.s: 0 enigma do olhar. Sao Paulo: Atica. 1999. p. 29.

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6. CONCLUSAO

Machado de Assis (1839-1908), escrevendo Dom Casmurro. produziu um

dos maiores livros da literatura Brasileira e tambern universal. Mesma depois de cern

anos de existencia, ele continua sendo motivQ de incansaveis debates e discuss6es.

5e para alguns nao passa de uma historia ma,ante contada pelo ponto de vista de

urn neur6tico, para Qutros, ha uma brilhante estrategia do escritor em questionar as

fraquezas humanas, evidenciando a quanta as atitudes humanas sao tantas vezes

vulneraveis, contradit6rias.

Seus personagens revelam issa atraves de atituctes tao peculiares, como no

ciumes doentio de Bentinho, foco da narrativa, pais e atraves deste sentimento

demasiado que ele, narrador. desenvolve sua historia. E com certeza Capitu. uma

mulher que visivelmente traz a estigma de traidora. ou de dupla personalidade.

porque e assim que ela e vista por Bentinho. Nao tem vida e nem voz propria. Uma

menina-mulher meiga, porem de carider duvidoso, segundo 0 narrador.

Ao colocar 0 adulterio como urn dos temas do romance, ele nao 56 levanta

uma questao polemica, muito mais para a epoca, como tambem a posi,ao da mulher

na sociedade. Capitu, mulher, foi a vitima incontestavel do marido. Nenhum direito

foi-Ihe dado de defesa, exceto as marcas presentes no comportamento doentio do

esposo, que involuntariamente alerta ° leitor para uma analise detalhada da obra.

Dom Casmurro e reconhecido em virtude dessa polemica que se formou ao

redor de seus personagens. Tornou-se especial cujo tempo nao 0 fez perder seu

lugar nas melhores estantes. Literatos, estudiosos, ou simplesmente curiosos

reconhecem nele uma riqueza unica, independente da leitura que se fara.

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Certamente, esta na maneira de interpreta-Io, 0 motivD de incansaveis estudos.

Estudos que nao permitem extrair a chave enigmatica que 0 compoe, mas incomoda

tode leitor pertinente.

E mais, 0 romance, par total excelencia, tern urn modo especial de exprimir

esse conflito atroz e insoluvel entre a verdade subjetiva e as insinua,oes geradas

por coincide!'ncias,intui90es, enfim, par tudo isso junto. Ele mexe com 8ssa questao

que e muito polemizada. 0 subjetivismo e sempre motivQ de equivoca, afinal, trata-

se de uma inverdade, au uma verdade questionavel. E e5sa a composi9ao do

romance que 0 faz merecer 0 titulo da duvida.

Capitu sera sempre motivD de incansaveis estudos, pais 0 assunto que a

envolve, em qualquer epoca gerara polemica: 0 adulterio.

No entanto, chega-se a conclusao que 0 romance e uma inven980 da mente

neurotica de Bento Santiago, urn marido enciumado, que naD esconde a obsessao

pelo que narra. Por mais que se queira olha-Io por Dutro angulo, visivelmente, essa e

a imagem que ele deixa transparecer no decorrer de toda obra, sendo assim, sua

narrativa nao repassa credibilidade.

Bentinho construiu sua pr6pria ruina permitindo que crescesse nele a raiz da

disc6rdia e se desenvolvesse de tal forma que 0 tornasse num narrador intrigante. 0

dilema est,; em sua visao pessimista da vida, da ideia da trai,ao da mulhllr. Do

princfpio ao tim ele possui a razao, a sabedoria, nao ha nenhuma humildade em sua

pessoa. Uma atitude nada saudavel para alguem que se julga tao ciente do

comportamento da mulher. Sua postura impossibilita qualquer leitor atento de se

chegar a Dutro veredito. Ele e capaz de enxergar maldade em tudo aD seu redor. A

maneira sinistra com que descreve 0 olhar de Capitu, como se nele estivesse a

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resposta para todas suas angustias! A pretensao e extrema. Eo 0 bastante para se

tomar a narrativa mais como urn desabafo de urn homem que teve sua vida

arruinada pelo capricho de seguir firme com urn prop6sito de uma ideia estabelecida,

do que de uma historia narrada do ponto de vista de quem teve urn amor de infoncia

destruido pelo mal maior: 0 adulterio. Acaba nao sendo possivel haver qualquer

remorso pelo fim solitario que 0 velho Bento Santiago teve. Seu relato e muito

subjetivo, infundado, que de verdade nao ha nada que se comprove. Teda a

narrativa e urn grande numera de sentent;:as que juntas formam exatamente 0 que

ele almeja: Capitu, apesar de menina graciosa, e tambem uma mulher perfidia.

Chega a ser uma historia melodramatica pelos argumentos que ele se utiliza. Nao ha

por onde enveredar que a narrativa nao tenha a mesma defini9aO: Capitu e culpada

porque assim ele decidiu que fosse. Todos os recursos dele foram utilizados e

esgotados para que essa verdade fosse determinada.

Por que ele agiria assim? Bentinho jamais teria se conformado com a

inteligencia, a energia, a liberdade de Capitu a qual nunca escondeu ares de mulher

moderna. Adjetivos perfeitamente intoleraveis para quem ja se julgava inferior em

rela980 a esposa. Eo uma razao plausivel para se chegar a conclusao da ideia

enviesada que ele traz dela. Ha boas possibilidades de tudo ser fruto de urn

sentimento de menosprezo.

Pareee querer distorcer 0 romance, mas e curiosa ao pensar que na verdade

e Bentinho quem da indicios de ser urn criminoso. E ele quem se revela urn homem

ensandecido ao 5e proper contar sua hist6ria baseada puramente em vestigias.

Mesmo que nM haja mentira em seus relatos, que ele esteja tao lucido quanto

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pretende demonstrar, seu comportamento e muito estranho e equivocado. Em nada

que ele confessa Ihe e favoravel do ponto de vista juridico, apenas emocional.

Enfim, 0 presente trabalho procurou mostrar como Machado de Assis

elaborou Capitu de maneira a parecer urn labirinto, inatingivel, completamente

ambigua de acordo com a vi sao de urn marido enciumado. Uma personagem de

dupla personalidade que s6 traz, comprovadamente, 0 registro de uma culpa muito

bern acentuada. Nada mais. E e5sa a imagem visivel dela, presente do inicio ao tim

do romance: culpada, segundo as argumentos do marido, e inocente, ate que prove

aD contriuio.

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REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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