irracionalismo e antiontologia esboço de uma crítica a richard rorty

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Irracionalismo e antiontologia: esboço de uma crítica a Richard Rorty José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior 1 O propósito deste texto é tecer alguns apontamentos críticos às ideias centrais do livro Contingência, ironia e solidariedade”, do filósofo pragmatista estadunidense Richard Rorty (1931-2007). O leitor não deve esperar aqui um esquematismo maniqueísta que tenta ver o lado bom ou mal das coisas, tampouco um simples enquadramento causal fornecedor de respostas efetivas. A intenção é estabelecer um diálogo com Rorty na perspectiva da crítica como aproximação apontando seus limites e possibilidades. Uma das ideias centrais do livro é mostrar que a verdade é contingente, que a verdade é produto da linguagem, ou melhor, depende da linguagem: “Dizer que a verdade não está dada é simplesmente dizer que, onde não há frases, não há verdade, que as frases são componentes das línguas humanas, e que as línguas humanas são criações humanas” (RORTY, 2007, p.28). É preciso fazer uma distinção na observação pontuada por Rorty. Quando o filósofo nos diz que “as frases são componentes das línguas humanas, e que as línguas humana s são criações humanas”, ele está correto. Mas quando aponta que “onde não há frases, não há verdade” ele comete um equívoco. Equívoco porque a verdade não é algo pr óprio das frases, as frases não são proprietárias da verdade, mas a verdade remete à algo objetivo, que independe das subjetividades, das representações do indivíduo humano. Pela via rortyana “a verdade e a fixidez do sentido não passam de ilusões” (EVANGELISTA, 2002, p. 21). Mais a frente, o estadunidense volta a afirmar que qualquer apelação à uma verdade objetiva descambará em algo puramente metafísico: “Se, porém, a pessoa se agarrar à ideia de fatos que subsistem por eles mesmos, será fácil começar a grafar com maiúscula a palavras ‘verdade’ e a trata-la como algo idêntico a Deus, ou ao mundo como projeto divino. Então se dirá, por exemplo, que a Verdade é grandiosa e prevalecerá” (RORTY, 2007, p.28-29). Compreende-se, portanto, que Rorty identifica verdade com metafísica, ou com uma questão metafísica. Ele está parcialmente correto. Isso porque a Verdade, grafada em maiúsculo, 1 Possui Graduação (2011) em Geografia Bacharelado e Licenciatura Plena pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atualmente é Mestrando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Sindicalismo (NEPS). Tem habilidade na área de Geografia Humana, com ênfase em Geografia Agrária; Atua principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento, Projetos de Desenvolvimento, Conflitos socioambientais, Teoria e Método da Geografia, Geografia Crítica, Modernidade e Meio Ambiente.

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O propósito deste texto é tecer alguns apontamentos críticos às ideias centrais do livro “Contingência, ironia e solidariedade”, do filósofo pragmatista estadunidense Richard Rorty (1931-2007). O leitor não deve esperar aqui um esquematismo maniqueísta que tenta ver o lado bom ou mal das coisas, tampouco um simples enquadramento causal fornecedor de respostas efetivas. A intenção é estabelecer um diálogo com Rorty na perspectiva da crítica como aproximação apontando seus limites e possibilidades.

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Page 1: Irracionalismo e antiontologia esboço de uma crítica a richard rorty

Irracionalismo e antiontologia: esboço de uma crítica a Richard Rorty

José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior1

O propósito deste texto é tecer alguns apontamentos críticos às ideias centrais do livro

“Contingência, ironia e solidariedade”, do filósofo pragmatista estadunidense Richard Rorty

(1931-2007). O leitor não deve esperar aqui um esquematismo maniqueísta que tenta ver o

lado bom ou mal das coisas, tampouco um simples enquadramento causal fornecedor de

respostas efetivas. A intenção é estabelecer um diálogo com Rorty na perspectiva da crítica

como aproximação apontando seus limites e possibilidades.

Uma das ideias centrais do livro é mostrar que a verdade é contingente, que a verdade

é produto da linguagem, ou melhor, depende da linguagem: “Dizer que a verdade não está

dada é simplesmente dizer que, onde não há frases, não há verdade, que as frases são

componentes das línguas humanas, e que as línguas humanas são criações humanas”

(RORTY, 2007, p.28).

É preciso fazer uma distinção na observação pontuada por Rorty. Quando o filósofo

nos diz que “as frases são componentes das línguas humanas, e que as línguas humanas são

criações humanas”, ele está correto. Mas quando aponta que “onde não há frases, não há

verdade” ele comete um equívoco. Equívoco porque a verdade não é algo próprio das frases,

as frases não são proprietárias da verdade, mas a verdade remete à algo objetivo, que

independe das subjetividades, das representações do indivíduo humano. Pela via rortyana “a

verdade e a fixidez do sentido não passam de ilusões” (EVANGELISTA, 2002, p. 21).

Mais a frente, o estadunidense volta a afirmar que qualquer apelação à uma verdade

objetiva descambará em algo puramente metafísico: “Se, porém, a pessoa se agarrar à ideia de

fatos que subsistem por eles mesmos, será fácil começar a grafar com maiúscula a palavras

‘verdade’ e a trata-la como algo idêntico a Deus, ou ao mundo como projeto divino. Então se

dirá, por exemplo, que a Verdade é grandiosa e prevalecerá” (RORTY, 2007, p.28-29).

Compreende-se, portanto, que Rorty identifica verdade com metafísica, ou com uma questão

metafísica. Ele está parcialmente correto. Isso porque a “Verdade”, grafada em maiúsculo,

1 Possui Graduação (2011) em Geografia Bacharelado e Licenciatura Plena pela Universidade Federal do

Maranhão (UFMA). Atualmente é Mestrando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos:

Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas do

Sindicalismo (NEPS). Tem habilidade na área de Geografia Humana, com ênfase em Geografia Agrária; Atua

principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento, Projetos de Desenvolvimento, Conflitos socioambientais,

Teoria e Método da Geografia, Geografia Crítica, Modernidade e Meio Ambiente.

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verdadeiramente não existe. O que existe de fato é uma aproximação da verdade enquanto

possibilidade objetiva de correspondência entre proposições e realidade (ANDERSON,

1984).

Para Rorty (2002, p.31), verdade se relaciona com jogos de linguagem, ela é “uma

propriedade de entidades linguísticas, de frases”. Por esse posicionamento, a linguagem deixa

de ser um reflexo da realidade objetiva, torna-se algo puramente a-histórico, lógico, formal,

abstrato, uma propriedade de “frases”. Assim, o pensamento de Rorty está claramente

associado ao filósofo neopositivista Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e do filósofo

irracionalista Friedrich Nietzsche2 (1844-1900). Wittgenstein porque há uma recusa clara a

qualquer ontologia (LUKÁCS, 2012), ou seja, à qualquer estudo objetivo da realidade

independente das representações, o que, em outras palavras, denota um “processo de

amesquinhamento da razão” que “levado às últimas consequências, desemboca explicitamente

no irracionalismo” (COUTINHO, 2010, p.58); Nietzsche, por sua vez, porque seu raciocínio é

marcadamente idealista, antiontológico e regressivo, pauta a verdade como sendo uma

construção discursiva, uma invenção subjetiva. Na opinião de Vinícius Bezerra (2009, p.34),

o raciocínio idealista de Nietzsche “aparece nas diversas obras do filósofo alemão, mas a

fonte originária está em seu opúsculo de juventude Sobre Verdade e Mentira no Sentido

Extra-Moral (1873) onde ele defende que a verdade não passa de uma ilusão gramatical do

sujeito”.

Assim, por exemplo, se para o filósofo Georg W. F. Hegel (1770-1831) a história é

um processo racional3, movido por processos dialéticos de interiorização-exteriorização no

qual o Espírito Absoluto criador se reconhece nas obras produzidas, para Richard Rorty

(2007, p.32) esse processo “é mais bem descrito como o processo de as práticas linguísticas

europeias mudarem em ritmo cada vez mais rápido”. Esta posição antiontológica está em

perfeita sintonia com a filosofia rortyana que recusa objetivamente a realidade existente, uma

vez que a própria realidade independe da subjetividade, das representações individuais e é

dotada de uma natureza intrínseca. O autor é inequívoco: “Na visão de filosofia que ofereço,

não se deve pedir aos filósofos, por exemplo, argumentos contra a teoria da correspondência

com a verdade ou a ideia da ‘natureza intrínseca da realidade’” (RORTY, 2007, p. 34).

2 “Foi Nietzsche o primeiro a sugerir explicitamente que abandonássemos toda a ideia de ‘conhecer a verdade’.

Sua definição da verdade como um ‘exército móvel de metáforas’ equivaleu a dizer que a ideia inteira de

‘representar a realidade’ por meio da linguagem e, portanto, de descobrir um contexto único para todas as vidas

humanas, devia ser abandonada” (RORTY, 2007, p.63). 3 O expoente máximo do idealismo alemão é claro: “O único pensamento que a filosofia traz para o tratamento

da história é o conceito simples de Razão, que é a lei do mundo e, portanto, na história do mundo as coisas

aconteceram racionalmente” (HEGEL, 2001, p.53)

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Esse abandono da natureza intrínseca da realidade, essa virtualização metafórica se

estende para o plano objetivo da vida, o que leva à Richard Rorty afirmar que a “imagem do

progresso intelectual e moral” é a imagem de “uma história de metáforas cada vez mais úteis,

e não de uma compreensão crescente de como as coisas realmente são” (RORTY, 2007, p.35).

Diferentemente do filósofo estadunidense, o pensador marxista György Lukács (1885-

1971) oferta-nos, na tessitura do debate, uma conceituação distinta do progresso:

Filosoficamente, o conceito de progresso pressupõe a descoberta de tendências que,

na sociedade, garantam um contínuo - embora não uniforme - acréscimo de valores

humanos. Uma tal concepção filosófica implica a aspiração a um estado ideal (donde um progresso infinito, como o concebeu Kant) ou o ingresso num estágio

qualitativamente diferente dos anteriores, que assegure o desenvolvimento das

faculdades ‘naturais’ da humanidade (o capitalismo na economia clássica, objetivos

da Ilustração e da Revolução Francesa etc.); em qualquer caso, trata-se sempre de

um desenvolvimento mais alto que se opera na própria realidade (LUKÁCS, 2009,

p.35).

Por conseguinte, em Lukács o progresso social é uma concepção que se arvora nas

melhores tradições do Iluminismo (humanismo, historicismo, razão dialética). O progresso

em termos lukacsianos tem, notadamente, uma base econômica na qual se desenvolvem as

forças produtivas, mas só torna-se verdadeiramente progresso na exata medida em que a

humanidade entra em um estágio qualitativamente diferente e superior em relação aos

anteriores vivenciados. Nesse sentido, o escravismo representou um progresso em relação ao

comunismo primitivo, da mesma forma que o feudalismo representou para o escravismo e que

o capitalismo representou para o feudalismo. Nas palavras lúcidas de Lukács (2009, p.238-

239):

O progresso é decerto uma síntese das atividades humanas, mas não o

aperfeiçoamento delas de acordo com uma teleologia qualquer: por isso, tal

desenvolvimento destrói continuamente os resultados primitivos que, embora belos,

são economicamente limitados; por isso, o progresso econômico objetivo aparece

sempre sob a forma de novos conflitos sociais. É assim que surgem, a partir da

comunidade primitiva dos homens, antinomias aparentemente insolúveis, isto é, as oposições de classe, de modo que até mesmo as piores formas de inumanidade são o

resultado desse progresso. Em seus inícios, a escravidão constitui um progresso em

relação ao canibalismo; hoje, a generalização da alienação dos homens é um sintoma

do fato de que o desenvolvimento econômico está em vias de revolucionar a relação

do homem com o trabalho.

Já pudemos perceber como para Richard Rorty os homens criam verdades ao

construírem linguagens. Também está claro que o filósofo estadunidense não concorda com a

concepção de linguagem como meio de expressão e/ou representação. Para ele, os seres

humanos devem se restringir a perguntas como: “nosso uso destas palavras atrapalha nosso

uso daquelas outras palavras”? Lendo esta frase é praticamente impossível não se lembrar de

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Ludwig Wittgenstein (1968, p.53) para quem “o que não se pode falar deve-se calar”. O

silêncio de Wittgenstein é reflexo histórico-concreto da manipulação do capitalismo:

O período de florescimento do neopositivismo lógico é assinalado por intensos

abalos sociais (guerras imperialistas, revoluções socialistas), que destroem

enormemente – no intelectual pequeno-burguês - a crença na possibilidade de uma

compreensão racional da realidade; um período assinalado por tantas contradições era inteligível somente por meio de uma análise dialética” (COUTINHO, 2010,

p.58).

O neopositivismo desempenhou assim, pelo menos na Europa Ocidental, então

centro dominante do capitalismo, um papel bastante restrito na formação da

consciência ideológica burguesa; até mesmo seus pensadores mais significativos,

como Wittgenstein, são envolvidos por um pessimismo derrotista claramente tingido

de irracionalismo (COUTINHO, 2010, p.59).

As duas citações do filósofo marxista Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) nos

iluminam para o entendimento do pragmatismo rortyano. Assim, como o neopositivismo

floresceu na Europa Ocidental por ser o centro dominante do capitalismo, o pragmatismo

rortyano floresceu nos Estados Unidos por ser a sociedade burguesa estadunidense avessa à

reflexão ontológica. A meditação sobre a realidade, que requer a reflexão sobre as

contradições da própria realidade social, é simplesmente objetada como uma questão

metafísica.

Com efeito, as próprias revoluções científicas são vistas como “redescrições

metafóricas da natureza” (RORTY, 2007, p.46). Ou seja, os fatos científicos, tais como o

heliocentrismo copernicano ou ainda a evolução darwiniana, tratar-se-iam apenas de

“redescrições metafóricas da natureza”.

O irracionalismo rortyano chega ao extremo quando o estadunidense afirma:

O platônico e o positivista compartilham uma visão reducionista da metáfora: acham que as metáforas são parafraseáveis ou inúteis para o único objetivo sério da

linguagem, qual seja, representar a realidade. Em contraste, o romântico tem uma

visão expansionista: acha que a metáfora é estranha, mística, maravilhosa. Os

românticos atribuem a metáfora a uma faculdade misteriosa, chamada “imaginação”,

uma faculdade que supõem encontrar-se no próprio centro do eu, no âmago

profundo do coração. Enquanto o metafórico parece irrelevante para os platônicos e

positivistas, o literal afigura-se irrelevante para os românticos. É que os primeiros

julgam que o objetivo da linguagem é representar uma realidade oculta que está fora

de nós, e os últimos creem que sua finalidade é expressar uma realidade oculta que

está dentro de nós (RORTY, 2007, p. 50).

O burguês romântico (Rorty) pensa que a metáfora tem vida própria, independente da

realidade. Destarte, a metáfora é maior que a realidade. A realidade é reduzida e a metáfora

ampliada. Equivale ao princípio de Wittgenstein: a linguagem é maior que o mundo.

Enquanto o positivista vê Galileu como alguém que faz uma descoberta – que

finalmente descobre as palavras de que se necessitava para enquadrar

adequadamente o mundo, palavras que teriam faltado a Aristóteles -, o davidsoniano

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o vê como alguém que esbarrou num instrumento que por acaso funcionou melhor,

para alguns fins, do que qualquer instrumento anterior. Depois de descobrir o que

era possível fazer com um vocabulário galileano, ninguém mais se interessou muito

por fazer as coisas que costumavam ser feitas (e que os tomistas julgavam que

deviam continuar a ser feitas) com um vocabulário aristotélico (RORTY, 2007, p.

51).

Como se percebe, o raciocínio idealista de Rorty transforma tudo em um jogo de

linguagem. As descobertas de Galileu foram frutos de uma mudança de vocabulário, um

vocabulário que Aristóteles não detinha e que, por acaso, Galileu esbarrou!

Logo, o irracionalismo e o idealismo rortyano são frutos de uma conjugação eclética

de pensamentos nietzschianos e wittgensteinianos. De Wittgenstein vem a ênfase na

linguagem; e de Nietzsche o caráter retórico da verdade, da distinção entre realidade e

aparência: “numa visão nietzschiana que abandona a distinção entre realidade e aparência,

mudar nossa maneira de falar é mudar, para nossos propósitos, aquilo que nós somos”

(RORTY, 2007, p. 52). Cabe destacar que a formulação nietzschiana do caráter retórico da

verdade e da indistinção entre realidade e aparência é retomada pelo sociólogo pós-moderno

Boaventura de Sousa Santos (1995). E, tal como Boaventura de Sousa Santos, Richard Rorty

demonstra ser um anti-iluminista: “Uma cultura em que as metáforas nietzschianas se

tornassem literais seria tal que presumiria que os problemas filosóficos são tão temporários

quanto os problemas poéticos, que não existem problemas que unam as gerações numa única

espécie natural chamada ‘humanidade’” (RORTY, 2007, p.52).

Dessa forma a construção do gênero humano, que não tem nada de natural, e sim

social, não é um problema relevante para o nietzschiano estadunidense. Com efeito, os

problemas filosóficos da realidade, os problemas do gênero humano enquanto seres sociais

históricos e coletivos, não são problemas para Richard Rorty, mas sim fraseologias.

Filiado à Nietzsche e Wittgenstein, o filósofo estadunidense abandona claramente “a

ideia de linguagem como adaptada ao mundo” (RORTY, 2007, p.65); abandona também a

ideia de que haja “uma descrição verdadeira da situação humana, um contexto universal de

nossas vidas” (RORTY, 2007, p. 65). Ora, esta recusa de um contexto universal no qual a

vida do indivíduo se insere, esta recusa que impossibilita, de fato, uma descrição verdadeira

da situação humana, apenas transparece a recusa rortyana de compreender a sociedade

burguesa como uma totalização em curso4. É uma recusa de compreender a sociedade

burguesa, capitalista, de modo racional e dialético. Explica-se, de tal modo, porque o filósofo

estadunidense compartilha dos pensamentos de Sigmund Freud:

4 “[...] totalização como processo de revelação dialética, como movimento da Historia e como esforço teórico e

prático para ‘situar’ um acontecimento, um grupo, um homem” (SARTRE, 1987. p.158).

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Assim, Freud nos ajuda a levar a sério a possibilidade de que não haja uma

faculdade central, um eu central chamado “razão” – e, portanto, a levar a sério o

pragmatismo e o perspectivismo nietzschianos. A psicologia moral freudiana nos dá

um vocabulário de descrição de nós mesmos que é radicalmente diferente da faceta

de Nietzsche que Heidegger condenou, com acerto, como mais um exemplo de

platonismo às avessas – a tentativa romântica de enaltecer a carne em relação ao

espírito, o coração em relação à mente, e uma faculdade mítica chamada “vontade”

em relação a outra igualmente mítica, chamada “razão” (RORTY, 2007, p.73).

A razão entendida como mito pode ser compreendida da seguinte forma: a razão ou é

uma falácia ou uma ilusão. Por essa via, a faculdade mítica razão é uma faculdade falaciosa

ou uma faculdade ilusionista. Em ambos os casos trata-se de uma ideia muito próxima do

raciocínio nietzschiano. Explica-se também a constante preferência de Rorty, não por Kant,

mas por Freud: Kant era adepto da razão, da consciência, a faculdade idêntica a todos os seres

humanos; Rorty já pensa que a razão é mítica. Kant aspirava universalidades morais; Rorty é

avesso a contextos universais. Essa preterição do universal desemboca numa ênfase do

específico/particular. Mas, na leitura de Rorty, não é correto, ou verdadeiro, descrever esse

particular em relação com o universal. Abandonada a ideia de que exista um contexto

universal de nossas vidas equivale a dizer que apenas as nossas vidas, as vidas individuais são

universais: o contexto é o contexto da vida individual. Temos assim que a aversão rortyana ao

universal desemboca numa estetização da existência. Essa estetização da existência baseia-se

claramente no indivíduo como primado de si. Deste modo, o filósofo estadunidense, que se

opõe a qualquer contexto universal, nos oferta como saída o cuidado de si, a ética de si, ou

seja, fazendo com que o próprio indivíduo dê um estilo próprio à sua vida independente de

contextos universais ou princípios morais universais e totalizantes.

O burguês romântico (Richard Rorty) encampa, verdadeiramente, uma combinação

entre relativismo e irracionalismo. Mas, Rorty insere-se numa problemática: como resolver a

contradição entre anti-iluminismo e uma ética progressista? Para o filósofo estadunidense a

questão se resolve com uma “mudança de vocabulário”:

[...] preciso argumentar que as distinções entre absolutismo e relativismo, entre

racionalidade e irracionalidade e entre moral e conveniência são ferramentas toscas e obsoletas – remanescentes de um vocabulário que deveríamos tentar substituir

(RORTY, 2007, p.89).

Tentarei mostrar que o vocabulário do racionalismo iluminista, apesar de ter sido

essencial nos primórdios da democracia liberal, tornou-se um empecilho à

preservação e ao progresso das sociedades democráticas (RORTY, 2007, p.90).

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A solução mágica do filósofo estadunidense é uma mudança de vocabulário. O

paradoxo salta aos olhos: como garantir e fazer progredir a democracia5 nas sociedades uma

vez que se recusa o legado do Iluminismo? Com efeito, a rejeição do Iluminismo

(historicismo, razão dialética, humanismo) desemboca inelutavelmente em um anti-

humanismo capitaneado por uma razão analítica que transforma a história concreta em uma

mudança de epistemes, ou, utilizando o vocabulário de Rorty, numa mudança de

vocabulários.

Apesar de estar assentado filosoficamente em pensadores como Nietzsche e

Heidegger, o estadunidense assegura que “a ideia de ‘fundamento filosófico’ desaparece

quando desaparece o vocabulário do Iluminismo” (RORTY, 2007, p.90). Eis mais um

paradoxo do estadunidense.

Além do mais, Rorty é incapaz de explicar os grandes avanços intelectuais e morais da

história europeia. Em seu livro, ele acaba ofertando como saída (resposta ou válvula de

escape) a celebração do papel do acaso como dirigente da história moral e intelectual

europeia:

Todavia, como parece inútil dizer que todos os grandes avanços morais e

intelectuais da história europeia - o cristianismo, a ciência galileana, o Iluminismo, o

romantismo etc. - foram acasos fortuitos na irracionalidade temporária, a moral a ser

extraída é que a distinção entre racional e irracional é menos útil do que se afigurava

antigamente. Ao nos darmos conta de que o progresso, tanto da comunidade quanto do indivíduo, é uma questão de usar palavras novas e de argumentar a partir de

premissas enunciadas com palavras antigas, percebemos que um vocabulário crítico

que gire em torno de ideias como “racional”, “critérios”, “argumentos”,

“fundamento” e “absoluto” presta-se mal para descrever a relação entre o velho e o

novo (RORTY, 2007, p.96-97).

Destarte, quando o filósofo estadunidense reescreve os avanços morais e intelectuais

como acasos fortuitos, está negando a historicidade concreta de que tais avanços (o

cristianismo, a ciência, o Iluminismo, etc.) são os exemplos mais objetivos. Essa negação do

progresso histórico concreto e objetivo da parte de Richard Rorty é a chave para se

compreender seu conceito de “ironista”:

5 Obviamente, quando Richard Rorty fala de democracia, democracia liberal, ele está falando da democracia de mercado, do direito à propriedade privada e da supremacia do indivíduo na sociedade. De modo diferente,

Lukács (2011, p.85) entendia a democracia não como um estado, mas sim um processo, ou seja “trata-se

sobretudo de um processo e não de uma situação estática”. Ou seja, um processo ontológico de

democratização. Mais a frente (idem, p.111) o filósofo marxista nos escreve que a democracia socialista é “o

órgão desta auto-educação do homem (na perspectiva histórico-universal, ou seja, da auto-educação para ser

efetivamente homem no sentido de Marx)”. Ademais, na página 117, Lukács anota: “a tarefa da democracia

socialista é penetrar realmente na inteira vida material de todos os homens, desde a cotidianidade, até as questões

decisivas da sociedade; é dar expressão à sua sociabilidade enquanto produto da atividade pessoal de todos os

homens”.

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Definirei o “ironista” como alguém que satisfaz três condições: (1) tem dúvidas

radicais e contínuas sobre o vocabulário final que usa atualmente por ter sido marcado por outros vocabulários, vocabulários tomados como finais por pessoas ou

livros com que ele deparou; (2) percebe que a argumentação enunciada em seu

vocabulário atual não consegue corroborar nem desfazer essas dúvidas; (3) na

medida em que filosofa sobre sua situação, essa pessoa não acha que seu

vocabulário esteja mais próximo da realidade do que outros, que esteja em contato

com uma força que não seja ele mesmo. Os ironistas que se inclinam a filosofar

veem a escolha entre vocabulários como uma escolha que não é feita dentro de um

metavocabulário neutro e universal, nem tampouco por uma tentativa de lutar para

superar as aparências e chegar ao real, mas simplesmente como um jogar o novo

contra o velho (RORTY, 2007, p.134).

A dúvida radical que fala Rorty não é a dúvida radical no sentido de duvidar na raiz do

problema, posto que remeteria o problema ao nível ontológico; A dúvida radical rortyana é

uma dúvida que remete a “um conjunto de palavras” carregadas por todos os seres humanos e

empregadas “para justificar seus atos, suas crenças ou convicções e sua vida” (RORTY, 2007,

p.133). É uma dúvida no plano da palavra e não da realidade. O ironista é uma relativista,

preso às palavras; o ironista é alguém que não consegue oferecer respostas às suas perguntas e

dúvidas; em suma, o ironista é alguém que filosofa sem ter a preocupação com a realidade,

independentemente da realidade: é alguém que não se preocupa com a articulação entre

essência e aparência. O ironista é alguém que não consegue superar o reino das aparências,

pois está mais preocupado em poetizar a realidade do que tentar se apropriar dela de modo

racional e dialético.

O ironista, em contraste, é nominalista e historicista. Considera que nada tem uma

natureza intrínseca, uma essência real. Por isso, acha que a ocorrência de um termo

como “justo”, “científico” ou “racional” no vocabulário final da época não é razão para supor que a investigação socrática da essência da justiça, da ciência ou da

racionalidade leve muito além dos jogos de linguagem da época. O ironista passa o

tempo preocupado com a possibilidade de se haver iniciado na tribo errada, de ter

sido ensinado a jogar o jogo de linguagem incorreto. Preocupa-se com a

possibilidade de que o processo de socialização que o transformou em um ser

humano, ao lhe dar uma linguagem, tenha lhe dado a linguagem errada e, com isso,

o tenha transformado no tipo errado de ser humano, mas não consegue fornecer um

critério do erro. Assim, quanto mais é levado a articular sua situação em termos

filosóficos, mais se lembra de seu desarraigamento, pelo uso constante de termos

como “Weltanschauung6”, “perspectiva”, “dialética”, “arcabouço conceitual”,

“época histórica”, “jogo de linguagem”, “redescrição”, “vocabulário” e “ironia”

(RORTY, 2007, p.136).

Dessa forma vemos que o filósofo estadunidense se opõe à ontologia e advoga a

megalomania da linguagem. Além de tudo ser um jogo de linguagem, ao negar a existência

real das coisas independente dos indivíduos, Rorty coaduna com uma posição epistemológica 6 Da tradução do alemão: ideologia.

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que admite existência apenas dos “nomes” (ou como ele prefere, vocabulários) e dos

indivíduos. Richard Rorty também pensa que a linguagem criou o homem, ou seja, o homem

foi transformado em ser humano, no seu processo de socialização, pela linguagem. Ora, mas

essa postura idealista defronta-se diretamente com a célebre análise do filósofo comunista

Friedrich Engels (1820-1895) acerca da humanização do macaco pelo trabalho:

O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. E o é, de fato, ao lado

da Natureza, que lhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza. Mas é

infinitamente mais do que isso. É a condição fundamental de toda a vida humana; e

o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o homem (ENGELS, 1979, p. 215).

Essa postura idealista e irracionalista de Rorty, que transparece na crítica à metafísica

e aos metafísicos7 (sua postura antiontológica), revela, além da incapacidade do mesmo em

dizer se algo é verdadeiro ou falso, a possibilidade de se conhecer a realidade do capitalismo,

especialmente sua essência injusta e irracional.

Com efeito, Richard Rorty é a própria figura do ironista. Ele o é por ser um intelectual

de uma época alastrada pela barbárie do neoliberalismo. Seu irracionalismo aliado à ideia de

dissolução da verdade são duas determinações da regressão civilizatória nomeada

neoliberalismo.

O pragmatista liberal (Rorty) afasta das suas preocupações intelectuais qualquer

referência à objetividade das contradições do capitalismo, bem como sua faceta neoliberal. A

filosofia rortyana se compraz em transformar a filosofia em pura teoria do conhecimento8, das

condições e/ou possibilidades de se conhecer algo. A pergunta para Richard Rorty não é “O

que é neoliberalismo?” ou “O que é verdade?”, mas sim “Quem disse o que é verdade?” ou

“Quem disse o que é neoliberalismo?”.

7 Inequivocamente: “Os metafísicos pensam que, por natureza, os seres humanos desejam saber” (RORTY,

2007, p.136). Trata-se de um claro ataque à metafísica de Aristóteles. Na página 137 Rorty grafa: “Assim, os

metafísicos creem existir lá fora, no mundo, essências reais que é nosso dever descobrir, e que estão dispostas a

ajudar em sua própria descoberta. Eles não creem que algo possa assumir aparências de ser bom ou mau por ser

redescrito – ou, quando o fazem, deploram esse fato e se agarram à ideia de que a realidade nos ajudará a resistir

a tais seduções”. Mais à frente o filosofo estadunidense escreve: “Para o ironista, as buscas de um vocabulário

final não estão fadada a convergir. Para ele, frases como ‘por natureza, todos os homens têm o desejo de

conhecer’ ou ‘a verdade independe da mente humana’ são simples chavões usados para inculcar o vocabulário final local, o senso comum do Ocidente. Ele só é ironista na medida em que seu próprio vocabulário final não

contém essas ideias. Sua descrição do que faz, ao buscar um vocabulário final melhor do que aquele que utiliza

atualmente, é dominada por metáforas de criação, e não de descoberta, de diversificação e ineditismo, e não de

convergência para o que estava presente antes. Ele pensa nos vocabulários finais como realizações poéticas, e

não como frutos de uma investigação diligente, de acordo com critérios previamente formulados” (RORTY,

2007, p.139). 8 “melhor seria evitar pensar na filosofia como uma ‘disciplina’ com ‘problemas nucleares’ ou dotada de uma

função social. Também seria melhor evitar a ideia de que a reflexão filosófica tem um ponto de partida natural”

(RORTY, 2007, p.149).

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Por conseguinte, se o peso das questões repousa na subjetividade, e se o método dos

ironistas é a redescrição, Richard Rorty (2007, p. 142) se propõe a redefinir a dialética:

“Defini ‘dialética’ como tentativa de jogar um vocabulário contra o outro, em vez de

meramente inferir proposições umas das outras e, portanto, como a substituição parcial da

inferência pela redescrição”.

Todavia, a definição de dialética de Richard Rorty difere qualitativamente das

determinações concretas sobre a forma de ser da dialética para o filósofo alemão Karl Marx:

Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele,

inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma em

sujeito autônomo sob o nome de ideia - é o criador do real, e o real é apenas sua

manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material

transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado (MARX, 2010, p.28).

Vemos que a primeira determinação concreta do método dialético de Marx é a

afirmação de que a ideia é a realidade no movimento do pensamento humano por ele

interpretado. Mais a frente Marx nos fornece outra determinação do seu método dialético:

Critiquei a dialética hegeliana, no que ela tem de mistificação, há quase 30 anos,

quando estava em plena moda. [...] A mistificação por que passa a dialética nas

mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de

movimento de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça

para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância

racional dentro do invólucro místico (MARX, 2010, p28-29).

Salta aos olhos, portanto, que Marx não apenas inverteu a dialética hegeliana: ele

também enxergou a necessidade de desmistificar a dialética para compreender o conteúdo

racional de um determinado objeto, compreender suas formas, as manifestações, os

movimentos, etc.

A diferença de método, o dialético marxiano em relação à definição de dialética de

Richard Rorty, é um dos fatores que leva o filósofo estadunidense a ter uma esperança

liberal:

A cola social que liga a sociedade liberal ideal [...] consiste em pouco mais que o

consenso de que o objetivo da organização social é permitir que todos tenham

oportunidade de criar a si mesmos, segundo o melhor de sua capacidade, e de que essa meta requer, além de paz e riqueza, as ‘liberdades burguesas’ de praxe. Essa

convicção não se basearia numa visão de objetivos humanos universalmente

partilhados, de direitos humanos, da natureza da racionalidade, do Bem para o

Homem nem de qualquer outra coisa. Seria uma convicção fundamentada em nada

mais profundo do que os fatos históricos que sugerem que, sem a proteção de algo

como as instituições da sociedade liberal burguesa, as pessoas ficam menos aptas a

elaborar sua salvação pessoal, criar sua auto-imagem privada e tecer de novo suas

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redes de crenças e desejos, à luz das novas pessoas e dos novos livros com que lhes

suceda encontrar-se. Nessa sociedade ideal, a discussão das questões públicas giraria

em torno de (1) como equilibrar as necessidades de paz, riqueza e liberdade, quando

as condições exigem que uma dessas metas seja sacrificada a uma das outras, e (2)

como igualar as oportunidades de autocriação e deixar as pessoas em paz para

usarem ou desprezarem suas oportunidades (RORTY, 2007, p.151-152).

A esperança liberal de que fala Rorty - “a esperança de que um dia a vida seja mais

livre, menos cruel, mais ociosa e mais rica em bens e experiência, não apenas para nossos

descendentes, mas para os descendentes de todos” (RORTY, 2007, p.153) – é uma esperança

irrealizável. A impossibilidade de realização da esperança, bem como a impossibilidade do

filósofo estadunidense responder a tais questões citadas anteriormente, é o fato de que a

liberdade defendida por ele é a liberdade burguesa, a liberdade de mercado, liberdade de

explorar o trabalho alheio, liberdade de explorar a terra para lucrar. Logo, como permitir

que todos seres humanos produzam a si mesmos se alguns indivíduos detém todos os meios

de produzir a existência enquanto outros são apenas livres para vender a sua força de

trabalho?

De um modo oposto ao rortyano, em um trecho memorável, o mestre húngaro assim

sentenciou sua visão sobre a questão da liberdade:

A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um

dom do "alto" e nem sequer uma parte integrante - de origem misteriosa - do ser

humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge

concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas

conseqüências dilata - objetivamente e de modo contínuo - o espaço no qual a

liberdade se torna possível (LUKÁCS, 2009, p.241).

A liberdade em Lukács é uma liberdade totalmente social e socializada. O indivíduo

não é o primado ontológico, mas sim a sociedade. Somente em sociedade que os indivíduos-

sociais podem desenvolver suas faculdades, habilidades, sentidos, aptidões. Assim, por mais

que o capitalismo tenha propiciado uma maior liberdade de expressão, contraditoriamente ele

restringe o espaço em que as liberdades para além do mercado se tornam possíveis. A

liberdade burguesa que defende Richard Rorty é incompatível com a socialização progressiva

da liberdade porque tolhe outros indivíduos-sociais de desenvolverem suas atividades

intelectuais ou sensibilidades artísticas, por exemplo. Dessa forma, e Lukács está consciente

disso, a liberdade é produto também da necessidade de se revolucionar as condições de

trabalho entre os seres humanos na produção e reprodução material da existência. Desse

modo, é impossível ser totalmente livre no capitalismo porque a maior parte dos indivíduos é

privada das suas condições materiais de existência. E são privados porque a apropriação

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privada dos meios de produção por parte dos capitalistas (proprietários privados do capital-

dinheiro) acaba por mercadorizar a força de trabalho do proletário. O trabalho, criador da

riqueza, criador do próprio homem, torna-se cativo, um instrumento de coerção do

trabalhador (uma vez que o trabalho é convertido em atividade produtora de mais-valia). Daí

que para Marx, o verdadeiro reino da liberdade é produto e premissa de uma articulação de

indivíduos-sociais unidos na forma-classe e, portanto, capazes de terem em seu horizonte de

luta política a abolição da propriedade privada e consequente associação dos livres

produtores associados, o comunismo.

Por isso tudo é que soa oca e vaga qualquer perspectiva de solidariedade dentro dos

marcos teóricos-conceituais defendidos por Richard Rorty. Para tentar argumentar nesse

sentido, cabe citar o próprio filósofo pragmatista: “A forma filosófica tradicional de explicitar

o que queremos dizer com “solidariedade humana” é afirmar que há algo em cada um de nós

– nossa humanidade essencial – que repercute a presença dessa mesma coisa em outros seres

humanos” (RORTY, 2007, p.312).

Entende-se que Rorty opõe-se a um componente essencial do ser humano. Esta

desessencialização do ser humano equivale a negação do humano como ser. Assim, “nossa

insistência na contingência e nossa consequente oposição a ideias como ‘essência’, ‘natureza’

e ‘fundamentos’ torna impossível conservarmos a ideia de que certos atos e atitudes são

naturalmente ‘desumanos’” (RORTY, 2007, p.312).

A pergunta que se faz é: como ser solidários se é negado uma essência humana única,

uma natureza humana única? Como construir uma ética da solidariedade se Rorty não se opõe

à exploração de um homem pelo outro?

As contradições de Richard Rorty são indissolúveis. Ele quer fazer progredir uma

solidariedade humana, mas sem reconhecer um “eu nuclear”:

Minha postura implica que os sentimentos de solidariedade são, necessariamente,

uma questão das semelhanças e dessemelhanças que nos impactam como salientes, e

que essa saliência é função de um vocabulário final historicamente contingente.

Por outro lado, minha postura não é incompatível com a insistência em que

procuremos estender nosso sentimento do “nós” a pessoas em quem antes

pensávamos como “eles”. [...].

A visão que ofereço diz que existe um progresso moral e que esse progresso se dá,

de fato, em direção à maior solidariedade humana, mas essa solidariedade não é

vista como o reconhecimento de um eu nuclear – a essência humana – em todos os

seres humanos. É vista, antes, como a capacidade de considerar sem importância um

número cada vez maior de diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes etc.), quando comparadas às semelhanças concernentes à dor e à humilhação – a

capacidade de pensar em pessoas extremamente diferentes de nós como incluída na

gama do “nós” (RORTY, 2007, p.316).

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O filósofo pragmatista quer suprimir as dessemelhanças (tribo, religião, raça,

costumes) para reconhecer as semelhanças (dor, humilhação). Todavia, ele nega o progresso

histórico objetivo e concreto. Quero dizer com isso de que o reconhecimento de uma maior

humanidade entre os próprios homens é fruto do desenvolvimento social dos próprios

homens em suas relações humanas. Isso significa que há um reconhecimento cada vez maior

de uma natureza humana, do homem como animal humano e social. Logo, qualquer negação

dessa essência humana implica indiretamente num retorno à primitividade do homem (a pura

animalidade).

Daí que a proposta de uma ética da solidariedade é totalmente utópica:

Devemos estar atentos às pessoas marginalizadas – às pessoas em quem ainda

pensamos, instintivamente, como “eles”, em vez de “nós”. Devemos tentar observar

nossas semelhanças com elas. A maneira de interpretar o lema é entende-lo como

nos exortando a criar um sentdo mais expansivo de solidariedade do que o que temos atualmente (RORTY, 2007, p.3222-323).

O que torna utópico, irrealizável, a proposta de uma ética da solidariedade de Richard

Rorty não são seus objetivos. É claro que reconhecer as semelhanças concernentes à dor,

humilhação, ao sofrimento em sentido lato, é algo progressista, da melhor tradição da

esquerda. No entanto, a saída política ofertada por Rorty, que passa inevitavelmente pelas

liberdades burguesas (liberdade de mercado, de explorar a terra e a força de trabalho),

denotam apenas seu lado reacionário/conservador.

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