introdução - bocc - biblioteca on-line de ciências da...

15
AT RAJETÓRIA DE L ULA À P RESIDÊNCIA E OS E COS NA I MPRENSA S EMANAL P ORTUGUESA.UMA ANÁLISE DE DISCURSO Tatiana Calmon * Índice Introdução .................. 1 1 Metodologias e Pressupostos ...... 2 2 Mito e Mitificação: da Teoria à Prática Discursiva ................ 3 3 A Trajetória de Lula da Silva e as presi- denciais de 2002 e 2006 ......... 4 4 Lula na Silva na Imprensa Semanal Por- tuguesa ................. 5 4.1 A candidatura às eleições de 2002 .. 6 4.2 A candidatura às eleições de 2006 .. 10 5 Considerações Finais .......... 13 6 Bibliografia ............... 14 Introdução N AS últimas décadas observou-se uma mu- dança significativa na comunicação política. Os sistemas mediáticos e a campanha política pas- saram por um processo de profissionalização que transformou as relações interpessoais entre os jor- nalistas e os políticos, o que causou significativas mudanças na perceção pública dos eventos políti- cos. Os governos e os políticos – na sua figura singular ou como representantes dos partidos polí- ticos – adaptaram-se a essa nova realidade de de- pendência do filtro dos media, que, através de es- tratégias discursivas, direcionam a sua mensagem ideológica para o cidadão. A eleição de Lula da Silva 2 pode ser conside- rada um exemplo do poder dos media na constru- ção da identidade política. Neste sentido, A vitória de Lula da Silva, em 2002, e a sua posterior ree- leição em 2006, pode ser compreendida como a as- censão do que Schwartzenberg denominou como o “homem comum” (1978: 43). O fato de um operá- rio, sem formação superior ou experiência em car- gos eletivos, ter alcançado o mais alto comando de uma nação, é revelador da singularidade de uma escolha eleitoral, suscitando a necessidade de um exame crítico sobre o processo e a influência da in- tervenção mediática na construção da persona po- lítica. Este artigo tem como objetivo analisar a cober- tura jornalística feita pela imprensa semanal por- tuguesa das candidaturas à Presidência da Repú- blica do Brasil de Lula da Silva, tendo sido esco- lhidas, para objeto de análise, as revistas Sábado e Visão e o semanário Expresso. Optámos por examinar atentamente um acontecimento histórico de grande relevância para a sociedade, as elei- ções presidenciais, capaz de gerar múltiplas dis- cursividades. Interessa-nos compreender a forma como essa discursividade foi processada e como produziu sentidos, partindo do princípio de que um acontecimento de carácter discursivo pode ser visto como qualquer coisa que se solta do “mur- múrio anónimo” e passa a ser dito e afirmado ao longo das edições dos jornais e revistas, e não de outra coisa que poderia ser dita em seu lugar (Fou- cault, 1987). A principal demanda deste projeto de investi- gação é analisar de que forma as peças jornalísticas publicadas pela imprensa semanal portuguesa con- tribuíram para a construção de uma imagem posi- * Escola Superior de Comunicação Social. calmontati- [email protected] c 2017, Tatiana Calmon. c 2017, Universidade da Beira Interior. O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma- ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto- rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon- sabilidade do(s) autor(es). 2 Ao longo do presente texto usaremos muitas das denomi- nações atribuídas pelos media ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva: Lula, Lula da Silva, Presidente Lula.

Upload: truongkien

Post on 16-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A TRAJETÓRIA DE LULA À PRESIDÊNCIA E OS ECOS NAIMPRENSA SEMANAL PORTUGUESA. UMA ANÁLISE DE DISCURSO

Tatiana Calmon∗

ÍndiceIntrodução . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Metodologias e Pressupostos . . . . . . 22 Mito e Mitificação: da Teoria à Prática

Discursiva . . . . . . . . . . . . . . . . 33 A Trajetória de Lula da Silva e as presi-

denciais de 2002 e 2006 . . . . . . . . . 44 Lula na Silva na Imprensa Semanal Por-

tuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . 54.1 A candidatura às eleições de 2002 . . 64.2 A candidatura às eleições de 2006 . . 105 Considerações Finais . . . . . . . . . . 136 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . 14

Introdução

NAS últimas décadas observou-se uma mu-dança significativa na comunicação política.

Os sistemas mediáticos e a campanha política pas-saram por um processo de profissionalização quetransformou as relações interpessoais entre os jor-nalistas e os políticos, o que causou significativasmudanças na perceção pública dos eventos políti-cos. Os governos e os políticos – na sua figurasingular ou como representantes dos partidos polí-ticos – adaptaram-se a essa nova realidade de de-pendência do filtro dos media, que, através de es-tratégias discursivas, direcionam a sua mensagemideológica para o cidadão.

A eleição de Lula da Silva2 pode ser conside-rada um exemplo do poder dos media na constru-ção da identidade política. Neste sentido, A vitória

de Lula da Silva, em 2002, e a sua posterior ree-leição em 2006, pode ser compreendida como a as-censão do que Schwartzenberg denominou como o“homem comum” (1978: 43). O fato de um operá-rio, sem formação superior ou experiência em car-gos eletivos, ter alcançado o mais alto comando deuma nação, é revelador da singularidade de umaescolha eleitoral, suscitando a necessidade de umexame crítico sobre o processo e a influência da in-tervenção mediática na construção da persona po-lítica.

Este artigo tem como objetivo analisar a cober-tura jornalística feita pela imprensa semanal por-tuguesa das candidaturas à Presidência da Repú-blica do Brasil de Lula da Silva, tendo sido esco-lhidas, para objeto de análise, as revistas Sábadoe Visão e o semanário Expresso. Optámos porexaminar atentamente um acontecimento históricode grande relevância para a sociedade, as elei-ções presidenciais, capaz de gerar múltiplas dis-cursividades. Interessa-nos compreender a formacomo essa discursividade foi processada e comoproduziu sentidos, partindo do princípio de queum acontecimento de carácter discursivo pode servisto como qualquer coisa que se solta do “mur-múrio anónimo” e passa a ser dito e afirmado aolongo das edições dos jornais e revistas, e não deoutra coisa que poderia ser dita em seu lugar (Fou-cault, 1987).

A principal demanda deste projeto de investi-gação é analisar de que forma as peças jornalísticaspublicadas pela imprensa semanal portuguesa con-tribuíram para a construção de uma imagem posi-

∗Escola Superior de Comunicação Social. [email protected]

c© 2017, Tatiana Calmon.c© 2017, Universidade da Beira Interior.

O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer formade reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma-

ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto-rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como aautorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon-sabilidade do(s) autor(es).

2 Ao longo do presente texto usaremos muitas das denomi-nações atribuídas pelos media ao Presidente Luiz Inácio Lula daSilva: Lula, Lula da Silva, Presidente Lula.

Tatiana Calmon

tiva ou negativa de Lula da Silva na sua corrida àPresidência da República (2002) e na sua reeleição(2006) para o público leitor português. Realizare-mos o nosso trabalho de pesquisa e investigaçãodo corpus partindo de uma perspetiva discursiva erefletindo sobre “o fato de que o que caracterizaqualquer discurso é a multiplicidade de sentidospossíveis” (Orlandi, 2006: 23), o que nos leva aentender a linguagem como um sistema de signosde sentido impreciso e portanto passível de desco-dificação.

1 Metodologias e PressupostosO artigo está dividido em três secções. Na pri-meira, fazemos uma breve revisão dos conceitos demito e narrativas míticas, onde pretendemos vincu-lar a figura política de Lula da Silva às conceçõesexistentes acerca do mito e da reprodução desteimaginário social na imprensa através do processode narrativização levado a cabo pelas notícias.

A segunda secção apresenta uma breve biogra-fia do percurso político do candidato do Partidodos Trabalhadores, assim como discorre, de formasucinta, sobre o contexto eleitoral que envolvia ocandidato nas eleições presidenciais de 2002 e de2006. A terceira e última secção proporciona algu-mas informações acerca dos veículos discursivosescolhidos como objeto desta análise. Procuramoscompreender como foi construído para o leitor por-tuguês o cenário político das presidenciais brasilei-ras de 2002 e 2006, tendo como principal enfoquea presença do sujeito político Luiz Inácio Lula daSilva. Tendo em consideração a hipótese de que asconstruções discursivas de cada publicação, no quese refere ao cenário político, podem oscilar desdeuma postura de empenho pela imparcialidade, atéa uma possível postura de exploração exacerbadados fatos e do descrédito das figuras políticas.

Foram analisados todos os exemplares da re-vista Visão e semanário Expresso do período de 1de julho de 2002 até 31 de janeiro de 2003, e tam-bém os exemplares publicados no período de 1 dejulho de 2006 até 31 de janeiro de 2007 das re-vistas Visão e Sábado e do Semanário Expresso.Como objeto de análise foram escolhidas as notí-cias e reportagens que contemplam o período elei-toral, assim como, a primeira notícia/reportagemsobre Lula da Silva na condição de presidenteeleito caso fosse considerado um contributo sig-nificativo para a pesquisa. A reportagem – ondese narram os acontecimentos da atualidade – é umgénero jornalístico privilegiado. É a reportagem –mais do que a notícia – que ocupa o lugar por ex-

celência da narrativa jornalística, onde as persona-gens, a ação dramática e as descrições do espaço eda atmosfera envolventes são diferenciadas da lite-ratura pelo compromisso com a objetividade infor-mativa. Para este efeito, com o propósito de ana-lisar material textual com enfoque temático maisdetalhado, optámos por examinar criticamente omaior número de reportagens em detrimento dasnotícias publicadas.

A partir da década de setenta se tornou maisacentuado o desenvolvimento de uma forma deanálise do discurso e do texto que identificava opapel da linguagem na estruturação das relaçõesde poder na sociedade (Fairclough, 2001). A aná-lise do discurso coloca o acento tónico no “papeldesempenhado pelo contexto ideológico dos textoslinguísticos na reprodução das relações de poderexistentes” (Fairclough, 2001: 20). Poder-se-ia,pois, dizer, que a política democrática começa nodiscurso e, por vezes, se finda nele (Chilton, 2004).Enquanto construção mental ou realidade ideada, aação política é o próprio discurso (Chilton, 2004;Hansen, 2006).

Mais concretamente, a análise crítica do dis-curso (ACD) considera a "linguagem como umaforma de prática social”. Segundo Fairclough(2001), o estudo do discurso possui três formas se-paradas de análise: análise de textos (falados ouescritos), análise da prática discursiva (processosde produção, distribuição e consumo dos textos)e análise dos eventos discursivos como instânciasda prática sociocultural. De acordo com o autor, aACD é “uma forma de ciência crítica que foi con-cebida como ciência social destinada a identificaros problemas que as pessoas enfrentam em virtudede formas particulares da vida social, e destina-seigualmente a desenvolver recursos de que as pes-soas podem se valer a fim de abordar e superar es-ses problemas” (Fairclough, 2003: 185).

O discurso é entendido como uma prática ma-terial ou forma de produção social que articula einterage com outras facetas discursivas do mundosocial. É no discurso que a língua e os estudossociais, a teoria cultural e a ideologia se interpe-netram. O poder do discurso do jornal está nofacto de construir uma ilusão de realidade, em queo jornalista se coloca numa posição de “produtordo discurso realista”. O enunciador do discurso depoder assume o lugar de sujeito da emancipação ea responsabilidade plena do enunciado produzido.

Neste sentido, compreende-se que asseguraruma consciência crítica da linguagem “tem umafunção muito importante em sua intenção de aler-tar os indivíduos sobre possíveis mudanças soci-

www.bocc.ubi.pt 2 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

ais [muitas vezes para o benefício de uns, mas emdetrimento de outros] que resultam do poder cons-titutivo e ideológico do discurso” (Meurer, 2002:83).

Numa abordagem prático-teórica da análise dodiscurso, a linguista Eni Puccinelli Orlandi (2001)indica três pressupostos para considerarmos numaanálise discursiva que, em certo sentido, pautam odesenvolvimento deste trabalho analítico: de quenão há sentido sem interpretação; de que a inter-pretação está presente não apenas ao nível de quemfala, mas também de quem analisa; e de que a fi-nalidade do analista de discurso não é interpretar,mas compreender como um texto produz sentidos.

2 Mito e Mitificação: da Teoria àPrática Discursiva

O conceito de “mito” remonta à Grécia antiga. Apalavra “mito” significa contar, narrar algo paraalguém que, reconhece no locutor do discurso, alegitimidade necessária para dizer o que foi dito.O mito é a primeira “fala do mundo”, numa atri-buição de sentido para “aprender o segredo e aorigem das coisas” (Eliade, 1978: 18). O mito,além de narrar um acontecimento, proporcionarespostas a questões que a razão humana não con-seguiria explicar, sem recorrer ao sobrenatural.Para o antropólogo Bronislaw Malinowski, a fun-ção do mito, resumidamente, é a de “fortalecer atradição, dotando-a de valor e prestígio maiores,remontando-a à realidade mais alta, melhor, maissobrenatural, dos eventos iniciais”3.

Em 1949, o mitologista Joseph Campbell pu-blicou O Herói de Mil Faces, um manual queapontava aspetos recorrentes nas narrativas e mi-tologias dos mais recônditos e distintos lugares doplaneta. A este conjunto de similaridades, funda-mentados em estudos nas áreas de sociologia, an-tropologia, psicologia e mitografia, Campbell deuo nome de “monomito” ou “a jornada do herói”.

O “monomito”, de acordo com o trabalho deCampbell, partia do pressuposto de que “seja o he-rói ridículo ou sublime, grego ou bárbaro, gentioou judeu, a sua jornada sofre poucas variações noplano essencial” (Campbell, 2007: 42). A jornadado herói divide-se em três atos numa estrutura tra-dicional de começo, meio e fim, podendo ser lite-ral ou metafórica. Para Campbell, esses atos se-riam como um rito de passagem denominados de

Partida (ou Separação), Iniciação ou Retorno. Naprimeira etapa o herói abandona o que há de mun-dano em busca de erradicar as dificuldades encer-radas em si mesmo (na sua psique). A segundaetapa consiste no retorno ao nosso meio e na parti-lha da lição que aprendeu nesta jornada.

No que diz respeito a presença do elementomítico na construção formal da mensagem jorna-lística, as notícias devem ser entendidas como fe-nómenos de natureza cognitiva, logos, que incor-poram o discurso da racionalidade, mas tambémcom o mythos, o que nos remete para a narrativi-dade e as estruturas antropológicas do imagináriohumano.

A subjetividade, neste aspeto, não pode sercompreendida como a ausência da verdade, e a ob-jetividade não pode ser desprovida do espaço ín-timo do indivíduo: “o mito opõe-se ao logos comoa fantasia à razão, a palavra que conta à que de-monstra. Logos e mythos são as duas metades dalinguagem, duas funções igualmente fundamentaisda vida do espírito” (Grimal, 1987: 17). O mitonão existe para comprovar racionalmente coisa al-guma e tão pouco demonstrar a sua veracidade. A“verdade” do mito é apenas inerente àqueles que aassumem como tal.

Sendo assim, o relato noticioso dos aconteci-mentos comunga da dualidade do lógico e do mí-tico, promovendo um infinito processo de media-ções entre a informação pretendida e a interpreta-ção processada. Por mais que haja esforços do jor-nalista em atender aos princípios da objetividadena sua construção textual, a sua mensagem poderáser interpretada pelo leitor sob diferentes prismas,até como uma narrativa mítica:

“Do meu ponto de vista, as notícias sãoprefiguradas por categorias mitológicas eestão presas, como a literatura, por ma-tizes mitológicas que as conformam. Écomo se os jornalistas estivessem sempreà espreita de acontecimentos já esperados,cabendo a eles apenas preencher os mol-des que revelam os eternos dramas e tra-gédias da humanidade” (Motta, 2002: 8).

No artigo “Notícia e Construção de Sentidos:Análise da Narrativa Jornalística”, os estudiososde comunicação Luiz Gonzaga Motta, GustavoBorges Costa e Jorge Augusto debatem o uso danarratologia e dos procedimentos de análise tex-tual para investigar a produção de sentidos nos

3 Vd. Referências de Bronislaw Malinowski acerca do con-ceito de mito nos primórdios da psicologia in Magic, Science andReligion and Other Essays (1954: 100).

www.bocc.ubi.pt 3 / 15

Tatiana Calmon

textos jornalísticos, definindo a notícia como um“produto cultural, de carácter ritualístico e antro-pológico” (2004: 32). Segundo os autores, ao re-latar o quotidiano, o narrador-jornalista reivindicaelementos provenientes do imaginário coletivo eda memória cultural da humanidade, envolvendo-os na realidade objetiva inerente aos fatos.

“Notícias sobre morte e vida, sobre ma-ternidade e paternidade, sobre lutas irre-conciliáveis, sobre esperança e solidarie-dade, sobre dor e alegria, sobre a natureza,seus encantos e calamidades, sobre amo-res que vencem obstáculos, heróis que vi-ram bandidos, bandidos que viram heróis.Fragmentos antropológicos que emanamdo recontar diário da História do homem.Como num ritual, a cada dia que passa,mais um dia é narrado. Um dia a ser posi-cionado na suprema narrativa humana. Enela, alcançar sentidos” (2004: 34).

No âmbito da narratologia aplicada às notícias,os autores alertam para o facto de este não serum processo simbólico facilmente identificável. Aevidência da narrativa fica, por vezes, encobertapela “objetividade” intrínseca à técnica de escritajornalística. Uma notícia na sua singularidade nãoconta uma história. É apenas parte de uma narra-tiva, que composta pela abordagem contínua destemesmo assunto durante um período de tempo con-siderável, poderá formar o enredo de uma histó-ria completa. É possível, dessa forma, reconstituirsequências de notícias sobre um mesmo assuntocom o objetivo de compreender aspetos simbóli-cos nem sempre explícitos no texto.

Os sentidos que envolvem o discurso jorna-lístico são interpretados tanto pelo que eviden-ciam, quanto pelo que insinuam ou simplesmenteocultam. As notícias publicadas em jornais nãopartilham apenas informação no seu sentido res-trito, mas ajudam a construir a realidade socialresinificando-a através de elementos existentes nouniverso cultural. Resgatando o pensamento deBarthes (2007), que nos revela a vocação dos me-dia em produzir mitologias, entendemos que hánotícias que se tornam a própria expressão míticada sociedade4.

3 A Trajetória de Lula da Silva e aspresidenciais de 2002 e 2006

Luiz Inácio Lula da Silva nasceu numa pequenacidade do nordeste brasileiro, em Pernambuco,chamada Garanhuns, filho de Aristides Inácio daSilva e Eurídice Ferreira de Melo, conhecida comoDona Lindu. O pai de Lula, pobre e iletrado, foiobrigado a emigrar em 1945 para a cidade de SãoPaulo onde conseguiu trabalho como estivador e sóvoltou a encontrar-se com a família quando Lula,na companhia da mãe e de seis irmãos, chegou acidade numa caixa aberta de um camião após 13dias de viagem. Jaime, o irmão letrado de Lula eresponsável pelas correspondências familiares es-creveu à mãe, em nome do pai Aristides, orde-nando Dona Lindu que vendesse as terras que ti-nha no nordeste e se mudasse com os filhos paraSão Paulo.

Em São Paulo, Lula começou a trabalhar aos12 anos de idade como engraxador e entregadorde roupas numa lavandaria. Aos quinze anos foienviado para o Serviço Nacional de Aprendiza-gem Industrial (SENAI) onde, em 1963, se profis-sionalizou como torneiro mecânico. Em 1964, jánoutra metalúrgica, sofreu um acidente de trabalhoquando o dedo mínimo ficou preso numa prensa,tendo sido amputado. Após 6 meses de desem-prego, Lula finalmente conseguiu voltar ao traba-lho de metalúrgico e começou a exercer ativamenteo sindicalismo5.

Em 1978, durante o período de ditadura mili-tar, Lula liderou uma paralisação de 150 mil traba-lhadores alçando não somente o movimento sindi-cal a condição de força política mas a sua própriafigura pública. A primeira disputa eleitoral ocor-reu em 1982 nas eleições para governador de SãoPaulo onde o candidato e fundador do Partido dosTrabalhadores6 ficou em 4o lugar atingindo maisde um milhão de votos.

Em 1986, Lula foi eleito deputado federal porSão Paulo e disputou nos anos de 1989, 1994 e1998 o lugar de Presidente da República do Brasilonde saiu derrotado. Parte do insucesso de Lulanas urnas era devido a imagem pública de sindica-lista e de esquerda radical amplamente exploradapelos seus opositores políticos. Para seguir adiantena sua carreira política, na condição de candidato

4 Estabelecendo uma conexão entre as ideias de Barthes(2007) e os autores Bird e Dardenne (apud Carey, 1988), depre-endemos que assim como os mitos, as notícias tem a capacidadede ordenar e separar o caos do mundo da experiência social.

5 Em 1975 Lula foi eleito, com 98% dos votos, presidentedo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista – a região indus-trializada do estado de São Paulo formada pelas cidades de Santo

André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano do Sul (C)– ocupando assim o cargo mais importante do maior sindicato daAmérica latina.

6 De acordo com o site oficial do Partido dos Trabalhadores(www.pt.org.br), o dia 10 de fevereiro de 1980 ficou consagradocomo a data oficial da fundação do PT.

www.bocc.ubi.pt 4 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

presidencial, Lula da Silva teve que reformular asua imagem pública e atenuar o seu discurso polí-tico.

As eleições presidenciais de 2002 foram vivi-das, na opinião de Antonio Rubim, “pelo signo davisibilidade” (2004: 7) e também marcadas peloquestionamento dos media das mudanças incorpo-radas por Lula da Silva para suavizar a sua imagempolítica:“ [...] tal reformatação da política petista eda imagem pública de Lula, realizada por meio deprocedimentos combinados e simultâneos, adqui-riu uma tal relevância e visibilidade que a fórmula“Lulinha paz e amor”, ao se tornar uma das marcasregistradas da eleição de 2002” (2004: 11).

Lula apresentou a sua candidatura como acampanha da esperança para desconstruir a estraté-gia do medo que até então acompanhou a sua ima-gem política (Chaia apud Rubin, 2004) e, contrao candidato do governo José Serra, foi eleito Pre-sidente do Brasil com 61% dos votos válidos. Nodiscurso de posse reivindicou a origem humilde eprometeu combater a corrupção e as desigualdadessociais.

Em 2005, o governo do presidente Lula daSilva foi atingido por aquele que seria o maior es-cândalo político do primeiro mandato: o escândalodo mensalão. O mensalão consistiu num esquemade pagamento de suborno (propina) a favor deparlamentares que beneficiassem a aprovação dosprojetos do governo. Entre os trinta e nove acusa-dos, estavam parlamentares, ex-ministros, dirigen-tes de bancos e o ministro-chefe da Casa Civil, opetista José Dirceu, acusado de chefiar todo o es-quema de corrupção. Os meios de comunicaçãodivulgaram amplamente essa notícia: “desde maiode 2005, quando teve início uma grave crise polí-tica envolvendo denúncias de corrupção dentro efora do governo essa foi a tendência dominante nagrande mídia brasileira”. (Lima, 2007: 18).

Desta forma, corrupção e escândalos foram ostemas dominantes nas eleições presidenciais de2006. O candidato a reeleição Lula da Silva deslo-cou o seu discurso e imagem para longe do Partidodos Trabalhadores e manteve firme a posição denão-envolvimento no esquema de corrupção dosseus companheiros de partido. Para Merval Pe-reira (2010), Lula afastou-se gradualmente do par-tido que ajudou a criar, assumindo a posição de umlíder populista de ideologia própria: o lulismo.

“ [...] O lulismo passou a ser uma forçapolítica baseada nos programas assisten-

cialistas, na classe média ascendente e nocarisma de Lula, que passou a ter o PTapenas como instrumento de sua vontade”(Pereira, 2010: 18).

Apesar de uma série de denúncias contra o par-tido do governo e seus nomes mais sonantes, Lulafoi reeleito com mais de 58 milhões de votos. Osautores Rubim e Colling (2006) apontam comouma das razões da vitória do candidato do PT, umbaixo índice de exigência ética por parte do eleitorbrasileiro. Quando comparavam o desempenho dolíder do governo com os escândalos de corrupçãonele envolvido, ainda assim, consideravam Lula daSilva o candidato mais indicado para a Presidênciado Brasil.

No primeiro discurso, Lula afirmou que a vi-tória na segunda volta pertencia a todos os brasi-leiros, e não apenas a ele ou aos partidos que oapoiaram. O presidente reeleito para mais quatroanos de governo, vestiu uma t-shirt com a seguintefrase estampada no peito: “A vitória é do Brasil”.

4 Lula na Silva na Imprensa SemanalPortuguesa

Antes de apresentar propriamente o discurso jor-nalístico, cabe-nos apresentar alguns dados refe-rentes aos veículos analisados na construção desteartigo assim como tentar demonstrar, de forma su-cinta, a sua relevância para o mercado editorialportuguês.

A Visão é a maior revista semanal portuguesade informação, lançada em 25 de março de 1993.De acordo com a APCT – Associação Portuguesapara o Controlo de Tiragem7 – a revista, em 2010,consolidou-se como líder no segmento das revis-tas de informação geral atingindo uma circulaçãopaga próxima dos 100 mil exemplares. No es-tatuto editorial, disponível no site da publicação(www.visao.sapo.pt), a revista define-se como in-dependente de qualquer influência política ou eco-nómica. Por sua vez, a revista Sábado é uma publi-cação semanal generalista fundada em 7 de maiode 2004. Com vendas médias mensais superiores a70 mil exemplares, de acordo com o site do grupoCofina Media (www.confina.pt), a newsmagazineaborda vários temas da atualidade nacional e inter-nacional e é já uma sólida referência no jornalismoportuguês.

O Expresso nasceu no dia 6 de janeiro de 1973,estimulado por duas forças diferentes. Por um

7 Vd. APCT – os dados generalistas de 2011. Dispo- nível em www.meiosepublicidade.pt/2012/02/28/apct-os-dados-dos-generalistas-em-2011/. Acesso em 28/02/2012.

www.bocc.ubi.pt 5 / 15

Tatiana Calmon

lado, foi fruto da “vocação jornalística” de Fran-cisco Pinto Balsemão, fundador e primeiro diretordo Expresso, e por outro, das mudanças da própriasociedade portuguesa que não se identificava nemcom o regime vigente, nem com a oposição tra-dicional. Com o seu aparecimento introduziu-seno panorama jornalístico português um novo es-tilo. O semanário Expresso8 definiu uma linha deindependência em relação ao poder político e eco-nómico onde a opinião era claramente separada dainformação e onde a investigação ganhou tambémum espaço próprio. De acordo com APCT, no re-latório acerca dos dados dos jornais generalistasem 2011, a publicação do grupo Impresa tem umamédia de circulação paga de quase 100 mil exem-plares.

4.1 A candidatura às eleições de 2002O sociólogo e académico Michael Schudson(1978) distingue dois modelos jornalísticos que seconsolidaram no final do século XIX: o jornalismonarrativo e o jornalismo informativo. O primeiro édefinido como um modelo que valoriza a históriaem si mais do que a informação isolada e “pura”.Historicamente, a adoção desse modelo é frequen-temente relacionada com o jornalismo sensaciona-lista. O jornalismo informativo, por outro lado,estabelece-se como uma forma de rutura em rela-ção ao modelo “narrativo” original. No jornalismoinformativo são valorizadas as técnicas jornalísti-cas de escrita como, por exemplo, a “objetividade”e a factualidade. É um modelo normalmente iden-tificável em publicações consideradas “sérias” eelitistas. Apesar de aparentemente se destinaremao mesmo público-consumidor, o Expresso e a Vi-são apresentaram desde logo uma diferença textualque, de certa forma, está relacionada com os mo-delos jornalísticos delineados por Schudson. Narevista Visão, por exemplo, antevemos uma narra-tivização do processo político que levaria à escolhado novo Presidente do Brasil.

Em contrapartida, o semanário Expresso prio-rizou no seu material textual a informação “dura”com um evidente distanciamento dos fatos que sãodescritos de forma “objetiva”. Nas presidenciaisde 2002, o semanário adotou um discurso pautadopela formalidade e pela preocupação em contextu-

alizar o leitor português sobre os atores políticosque definiriam a eleição. É o que se pode per-cebe no artigo “Impasse da campanha no Bra-sil”9 (Expresso, 07/09/2002: 23), onde muitas vo-zes são utilizadas para legitimar um sentido de in-definição que a notícia revela sobre o candidatoque disputaria a segunda volta.

Com todas as pesquisas de intenção de vo-tos a apontar para o candidato petista, “com 41%de intenção dos votos” (Expresso, 28/09/2002), apublicação concentrou-se na divulgação das mo-vimentações políticas e acordos partidários paragarantir a vitória de Lula. Embora cada pontopercentual fosse crucial para o resultado das elei-ções, podendo ser garantido a Lula da Silva a iné-dita Presidência da República na primeira volta,percebe-se o esforço do enunciador para não sub-jetivar ou tornar opinativo o texto diante do con-texto passional inerente à arena público-políticabrasileira, mantendo a contextualização como re-curso discursivo para a divulgação de dados e asdiversas citações das falas dos atores políticos,estas sim detentoras de um elevado tom passio-nal: “Deve-se atacar de uma só vez, não em sé-rie”; “Deus é grande e vai levar-nos a vitória” e“Lula deve responder aos ataques?” (Expresso,28/09/2002).

O semanário narra este tipo de interações ver-bais menos formais, mas mantém uma indepen-dência no relato inerente ao observador privilegi-ado. De acordo com Richard Campbell, trata-sede uma estratégia de apropriação de um “ponto devista omnisciente da terceira pessoa em seus es-critos a fim de fortificar seu distanciamento e en-fatizar sua superioridade” (1991: 9). No final doartigo, o texto relata um momento marcado pelaslágrimas de Lula da Silva:

“A campanha desta semana, por exemplo,mostra uma imagem que vale por mil dis-cursos: Lula, em primeiro plano, com lá-grimas nos olhos diante da multidão quegrita seu nome no comício” (Expresso,28/09/2002).

O jornalista faz uso de metáforas, mais umavez, para construir uma visão da eleição, no âm-bito do que é comum designar-se por “horse-race

8 Sobre a fundação do semanário Expresso, vd, Lemos, Má-rio Matos (2006). Jornais Diários Portugueses do Século XX: umDicionário. Coimbra: Ariadne Editora, Lda. e CEIS20.

9 O sublinhado é nosso. Seguiremos este método para dar des-taque às frases ou textos extraídos do material textual analisado(revistas Sábado e Visão e semanário Expresso).

10 As críticas à cobertura feita pelos media dos eventos eleito-

rais, sintetizadas nos estudos da sociologia do jornalismo, pelaexpressão “cobertura tipo corrida de cavalos” ou “horse race”,centram a atenção mediática na posição ocupada pelos candidatosna disputa e não nos seus programas de governo ou ideologia.

www.bocc.ubi.pt 6 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

politics”10. Neste aspecto, o Expresso limitou acomplexidade do ato eleitoral à disputa entre oscandidatos e relegou para segundo plano as pro-postas de governação ou ideologia partidária decada um deles. O tipo de metáfora estrutural re-corrente neste artigo dá-nos a entender que a elei-ção é um conflito: “Um dos ataques”; “A lutade Ciro e Serra é fratricida. Os dois vão sairsangrando...”; “um exército de filiados e sim-patizantes está nas ruas”; “Os ataques de JoséSerra [...] não surtiram efeito”; “o erro de es-tratégia só beneficiou Anthony Garotinho” (Ex-presso, 28/09/2002).

Com a proximidade do ato eleitoral, o discursosobe de tom e o Expresso publica uma reportagemde página inteira no dia anterior à eleição:

“É uma mistura de paixão, emoção e es-tratégia política. Mas é o retrato do BRA-SIL11 em véspera das eleições presiden-ciais mais disputadas de sempre. A ondavermelha do PT e de Lula, o candidato quejá foi operário, parece submergir o país”(Expresso, 05/10/2002).

O lead faz referência à cor do Partido dos Tra-balhadores e o artigo assume que o Brasil cobre-se de vermelho para eleger Lula da Silva. Destavez, o Expresso conta uma história que se passanos bastidores da campanha de Lula e revela per-sonagens de origem humilde completamente com-prometidas com “a paixão pela estrela”12, a tra-balhar “15 horas diárias pelo partido de graça”.Observa-se, mais uma vez, o empenho do jorna-lista em negar a sua presença através do uso re-corrente do discurso direto: o narrador, interrom-pendo a narrativa, coloca-as em cena (as persona-gens que povoam a eleição) e cede-lhes a palavra:“Pérez está feliz: o material esgotado significaque a “onda vermelha” que varre o Brasil pro-mete atingir coloração máxima”; “A ordem éusar vermelho para tentar convencer os indeci-sos a votar em Lula”; “Lula é uma ser-humanoespecial, tocado pelo dedo de Deus” (Expresso,05/10/2002: 25).

A notícia que inaugura a pós-primeira volta,que definiu Lula da Silva (PT) e José Serra (PSDB)como os candidatos apurados para novo embateeleitoral, debruçava-se sobre as mudanças no ce-nário político partidário pós-eleição e evidenci-ava a ascensão do Partido dos Trabalhadores.Novamente, o discurso é marcado pelo uso in-tenso de metáforas desde o título “Eleição mata-

rato” (Expresso, 12/10/2002: 29) até ao corpoda notícia: “beiço de pulgas”; “pescar com an-zol”; “a guerra continua”; “Serra precisa pes-car de rede”; “O leão do Nordeste” (Expresso,12/10/2002: 29).

A metáfora não é uma figura de linguagem ine-rente apenas à literatura, ela está presente na lin-guagem do quotidiano. A presença da metáforanão evidencia apenas conceitos social e cultural-mente construídos, mas também revela a estraté-gia linguístico-discursiva para a construção do dis-curso. Além disso, o discurso jornalístico, ao apre-sentar essas metáforas, permite a construção da re-alidade, na medida em que os seus leitores e intér-pretes absorvem esses conceitos e integram-nos nasua vida, incorporando o seu carácter ideológico.As citações e frases dos principais atores políti-cos das presidenciais de 2002, ao mesmo tempoque permitem agrupá-los numa escala de valoresde ordem positiva ou negativa – promovendo umaparticular apreciação das suas imagens públicas –,também eximem o enunciador (Expresso) de qual-quer responsabilidade e atribuem um sentido de se-riedade e imparcialidade ao texto jornalístico queé produzido.

A vitória do candidato Lula mereceu uma re-portagem de quase uma página inteira no sema-nário Expresso. A imagem de um Lula vitorioso,sorridente e que estabelece um contato visual comum sujeito não identificado, ocupa um espaço con-siderável do artigo “Até agora foi fácil, o difícilvai começar” (Expresso, 01/11/2002: 27).

Figura 1. Expresso, 01/11/2002

A abordagem do jornal relativamente à figuracarismática de Lula da Silva – um ex-torneiro me-

11 Sublinhado do autor. 12 A estrela é o símbolo do Partido dos Trabalhadores.

www.bocc.ubi.pt 7 / 15

Tatiana Calmon

cânico, de pouca instrução e com raízes nos mo-vimentos da esquerda sindical que alcança o cargomáximo de uma nação – é quase indiferente para oExpresso, que prefere concentrar o seu discurso norelato das movimentações políticas do presidenteeleito e do Partido dos Trabalhadores neste mo-mento de transição governamental. A relação entrea imagem e o texto traduz, por assim dizer, umamensagem contraditória: a foto emblemática devitória que ilustra a reportagem fala por si própriae difere da formalidade textual. O protagonismoda imagem é abafado pela textualidade que o co-loca em segundo plano, encoberto pela descriçãoda agenda política antes da tomada de posse. O en-quadramento do candidato do PT rege-se pelo prin-cípio da substância política, como se o semanárionão se quisesse envolver com as paixões inerentesà figura pública de Lula da Silva que está semprecomo que presente/ausente nas construções discur-sivas: Lula tem um rosto, um partido, mas a bio-grafia que lhe confere notoriedade e heroicidadenão é encontrada.

Assim sendo, o Expresso manteve a forma-lidade no tratamento do evento “eleição”, utili-zando frequentemente o discurso direto como ins-trumento de distanciamento e imparcialidade.

O primeiro texto que a revista Visão publicouacerca das presidenciais no Brasil, no segundo se-mestre de 2002, foi a reportagem “Brasil: vaidar Lula?” (Visão, 11/07/2002: 75-79). Ao ana-lisar as notícias publicadas sobre Lula da Silva eas eleições brasileiras, observamos que os textossão tanto narrativos quanto informativos, emborao tom discursivo seja bastante informal e acessívelao leitor.

Ao contrário do Expresso, desde logo a Vi-são faz referência ao percurso político e de vidade Lula da Silva, usando para este efeito váriosatributos na construção do texto: “líder histó-rico”, “famoso barbudo”, “velho líder operário”“(ex) esquerdista”, cujas facetas e/ou qualidadessão colocadas em contraponto ideológico com osseus opositores: “Lula (à esquerda), Ciro Go-mes (ao centro) e José Serra (à direita)” (Visão,11/07/2002). Todos os candidatos são elevadosà condição de atores principais do pleito eleito-ral, quer na construção do perfil político, quer nasperspectivas de voto, com um equilíbrio notoria-mente calculado. O lugar da segunda volta paraLula da Silva é dado como “quase-certo”, e sóum “terremoto eleitoral” (Visão, 11/07/2002) po-deria impedi-lo, dando margens à especulação dequem o acompanhará na disputa pela presidênciado Brasil.

Esta indecisão sobre “quem vai à 2.a voltacom Lula” é logo substituída pela questão“Conseguirá Lula ganhar na 1a volta” no ar-tigo “Lula mais perto” (Visão, 26/09/2002: 88).As atenções no Brasil voltam-se para os inéditos39% que o candidato do PT alcançou nas inten-ções de voto junto do eleitorado brasileiro, e arevista semanal afirma que o que era “antes im-possível, e depois altamente improvável, agoraé já provável embora muito difícil” (Visão,26/09/2002: 88). A revista Visão classifica osatores principais da arena eleitoral em 2002 atra-vés da atribuição de predicados, tais como: o“evangélico” Garotinho, o “sem carisma” JoséSerra, o “destemperado emocionalmente” CiroGomes (Visão, 26/09/2002: 88), todos eles oposi-tores ao ex-líder sindical.

A “hora da mudança”, ou seja, a hora deLula, chegou às bancas em 3 de outubro de 2002.Numa foto de página inteira, Lula da Silva, re-cebe no lead todos os adjetivos do herói vitorioso:“lendário”; “maduro”; “moderado”, e o textoreitera as virtudes de “quem fez o milagre”; “o re-volucionário”; “maestro”; “juntava Marx, Gue-vara e Cristo numa mistura pouco menos queexplosiva” (Visão, 03/10/2002: 110-119), enfim,o “lulinha paz e amor”. Desta vez, há um sen-tido de omnipresença de Lula no texto jornalístico.Ora, se “a palavra já é vestígio de outros discur-sos” (Orlandi, 2001: 47), podemos afirmar que háum entrelaçamento intertextual no texto presente,resíduo de outros textos pré-existentes que foramsendo construídos no decorrer do percurso públicoe político de Lula da Silva.

A adjetivação utilizada sobre os adversários deLula, observada no artigo anterior, mantém-se eJosé Serra ainda ostentava um “sorriso amarelo”enquanto candidato “preferido do sistema”; CiroGomes despertava menos atenções do que a suamulher, considerada “uma atriz muito populare de irradiante simpatia”, ao passo que Garoti-nho ainda é descrito como o “candidato evangé-lico”, ou, “o mais populista e demagógico doscandidatos” (Visão, 03/10/2012: 110-119). A re-vista categoriza os candidatos oponentes, sem, en-tretanto, aprofundar os traços que os constituemenquanto políticos, produzindo um perfil de formaestereotipada. Segundo Jean Maisonneuve, os es-tereótipos são construídos com a função de agre-gar, simplificar e categorizar o mundo. O autortambém explica que o objetivo dos estereótiposnão é “ a busca de uma verdade científica, mas,antes, a de uma eficácia pragmática ou ideológica”(1977: 122). Neste sentido, as observações de ca-

www.bocc.ubi.pt 8 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

ráter empírico são, assim, preteridas em prol deuma apreciação afetiva das pessoas e circunstân-cias.

Figura 2. Visão, 24/10/2002

A Visão de 24 de outubro de 2002 – EspecialBrasil – é uma celebração antecipada da vitória, nasegunda volta, de Lula da Silva, que é capa da re-vista com a sua imagem sorridente, sobrepondo-seà bandeira verde-e-amarela. É, poder-se-ia dizer,uma imagem algo pitoresca. O texto da capa re-vela um Brasil tropical e idealizado: “A nação docarnaval, da Amazónia, do misticismo, da bossanova e da caipirinha”. O Brasil não é só festa, oBrasil está em festa com a vitória iminente de Lulada Silva. A trajetória de vida e política de Lula daSilva fundem-se numa narrativa com o “terríveldramatismo de um romance de Graciliano Ra-mos”13, onde o futuro presidente escreve “o capí-tulo mais importante da sua incrível história”ou, simplesmente, a conclusão de um “conto-de-fadas” (Visão, 24/10/2012: 84-90).

Além de enfatizar as virtudes do candidatocomo provável líder do país: “solidez dasideias”, “densidade dos argumentos”; “equi-líbrio”; “firmeza das convicções e dos princí-pios”, o candidato petista é uma personagem do-tada de características extraordinárias, represen-tante legítimo da sociedade de que faz parte, em-bora seja, às vezes, objeto de desprezo e incompre-ensão (Campbell, 2007).

A intertextualidade que a revista Visão mantémcom a matriz arquetípica das histórias ascensio-nais de outros heróis do nosso imaginário humano

é por demais evidente: Lula da Silva é um he-rói brasileiro, sobrevivente de uma dura realidadeque, mesmo limitado pela condição social e o es-tigma, primeiro de pobre “retirante” e depois pelo“radicalismo esquerdizante”, triunfará ao rece-ber do povo o direito de decidir os destinos da na-ção. Nas sete páginas, onde a revista Visão narra abiografia pessoal e política do candidato petista, éconstruída uma relação emocional e passional como leitor, cuja lógica de aproximação alimenta-se deelementos simbólicos e que, no caso em questão,remetem para as noções de superação, luta e ca-risma, enfim, um conjunto de virtudes presente narepresentação da imagem pública de um presiden-ciável motivado por sólidos princípios: “Lula, numgesto que dá a sua dimensão humana, opôs-se di-zendo: Uma filha minha não vai à televisão paradizer mal da mãe” (Visão, 24/10/2002: 88).

Lula da Silva foi eleito Presidente do Brasilcom 52,7 milhões de sufrágios e na reportagem “Arevolução na continuidade” (Visão, 31/10/2002:102-104), o jornalista da Visão descreve os movi-mentos políticos de “transição pacífica para umnovo capítulo da história do Brasil”. É um textojornalístico de agenda política do novo presidenteque, no final, não perde o tom de “celebração”feita por “milhões de brasileiros”, como se “deum carnaval se tratasse”.

De uma forma geral, os dois veículos de in-formação semanal trataram o tema das presidenci-ais no Brasil, com enfoque no candidato Lula daSilva, com abordagens distintas. O semanário Ex-presso manteve o seu discurso jornalístico orien-tado pelo rigor e empenho numa descrição mais“objetiva” dos fatos. Nos momentos mais narrati-vizados, a emoção era compartilhada pelos atoressociais e políticos do texto, refletindo-se, por isso,no discurso secundário, sem a efetiva presença doolhar do jornalista. Deste modo, o Expresso pro-curou distanciar-se ao máximo dos fatos relatados,assumindo no seu discurso primário a posição deobservador dos acontecimentos sociais e políticos.

A revista Visão, por sua vez, construiu o seutexto jornalístico recorrendo a um relato narrati-vizado e delimitado pela emotividade, à medidaque a vitória de Lula concretizava-se diante doeleitorado brasileiro e dos leitores portugueses.Na forma como o candidato Lula é retratado pelapublicação, deparamo-nos com um elevado graude narrativização, assente na personalização e nas

13 Graciliano Ramos (1892-1953) foi uma das figuras mais im-portantes do Brasil no século XX. Romancista, cronista, político ejornalista, escreveu o consagrado romance Vidas Secas, um livronarrado na terceira pessoa, que aborda a história de uma famí-

lia de retirantes do nordeste brasileiro, cujas condições de vidasub-humanas eram condicionadas por um duro contexto de seca,pobreza e fome.

www.bocc.ubi.pt 9 / 15

Tatiana Calmon

inúmeras virtudes de Lula, enquanto ser humanoe político, bem como na sua trajetória de vida in-vulgar. É possível perceber que a Visão está maispreocupada em fazer com que o leitor se sinta parteda história que está sendo narrada do que propria-mente em transmitir a dialética do processo histó-rico e dos jogos políticos.

Para o Expresso, Lula é um candidato forte eestá presente em todas as peças jornalísticas, masesta força não é omnipresente. Ele divide o seuprotagonismo com outros atores sociais de rele-vância para o pleito presidencial, como, por exem-plo, os candidatos dos partidos opositores, lideran-ças partidárias ou institutos de sondagem eleitoral.Parece-nos que as bases sobre as quais o discursojornalístico do Expresso é construído legitimam opacto social que a publicação estabeleceu com oseu leitor com vista a promover uma informaçãofactual, desprovida de influências políticas e ideo-lógicas.

4.2 A candidatura às eleições de 2006No Brasil, as eleições presidenciais de 2006 fo-ram antecedidas por uma das crises políticas maisgraves vividas pelo Brasil no ano de 2005. Umperíodo marcado por escândalos de corrupção en-volvendo a cúpula do partido do governo, o Par-tido dos Trabalhadores, comissões parlamentaresde investigação, cessações de mandato e denúnciasque atingiram o “todo-poderoso” Ministro das Fa-zenda14, Antonio Palocci, que acabou por sobre-viver às crises e às críticas e começou 2006 comoparte integrante do governo de Lula da Silva.

Se desde 15 de julho, encontramos no sema-nário Expresso referência às presidenciais no Bra-sil, é apenas a notícia publicada em 12 de agosto,“Perfume de escândalo”, que introduz os seus lei-tores ao cenário pré-eleitoral brasileiro. Estamosperante um artigo equilibrado na atenção que dá aLula da Silva (candidato) e ao seu principal opo-sitor e provável adversário na segunda volta: Ge-raldo Alckimin.

Na edição do dia 23 de setembro de 2006, oExpresso dedicou uma reportagem de página in-teira a Lula da Silva com o título “Lula outravez” e o subtítulo “O Presidente brasileiro vaiganhar as eleições de 1 de Outubro. Mas estasemana rebentou mais um escândalo...” (Ex-presso, 23/09/2006: 35). O emprego da conjunçãoadversativa “mas” estabelece um confronto implí-

cito entre a vitória, pressupostamente imerecida, ea corrupção reinante no seu mandato anterior. Poroutro lado, para Marilei Grantham, a presença dasreticências além de marcarem uma continuação dafala, representam também um “espaço lacunar desentidos” (2002: 20) que, ao contrário de operarcom a falta de sentidos, abre espaço para o excessode significação. Entretanto, como a autora obser-vou na sua investigação, nem sempre as reticênciastrabalham com a liberdade de interpretação, sendo,por vezes, instrumentos de direção que os sentidosdevem tomar.

Figura 3. Expresso, 23/09/2006.

O que ficou suspenso no enunciado, através douso das reticências, é sugerido na imagem que ilus-tra o texto e ocupa parte considerável da página. Odesenho humorístico, expresso através da carica-tura de Lula da Silva, satiriza a iminente vitóriado candidato à reeleição apesar de todos os escân-dalos que emergem a cada dia no seu governo. Équase uma sátira ao “jeitinho brasileiro”15. Destavez, o Expresso conta uma história que começaem 2002, quando Lula da Silva é eleito presidentepela primeira vez numa menção ao seu percursode vida: “Pela primeira vez na História, o paíselegia um ex-torneiro mecânico com um dedodecepado numa máquina industrial, monoglota

14 Em Portugal, a designação do cargo é de Ministro das Finan-ças.

15 O “jeitinho brasileiro” representa, numa conceção de fácil

entendimento, a astúcia ou esperteza do povo brasileiro na horade resolver problemas ou esquivar-se do cumprimento das regrasdos poderes instituídos.

www.bocc.ubi.pt 10 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

e sem curso superior. Uma versão tropical deLech Walesa” (Expresso, 23/09/2002: 35).

A escolha deste primeiro parágrafo ironizadesde o início a figura de Lula da Silva. O polacoLech Walesa também teve origem humilde, operá-ria e sindical antes de tornar-se presidente da Poló-nia, mas parece-nos que transformar Lula da Silvanuma versão tropical do dirigente polaco poderiaser entendido como sarcasmo. O peso daquilo queentendemos como o “não-dito” tem um valor con-siderável nesta construção textual. É possível ob-servar como o semanário faz a linguagem funcio-nar ao seu serviço, conduzindo o leitor a produzira mesma conclusão que o texto, ou seja, que Lulada Silva é um manipulador e estrategista político:“dizia não gostar de política mas soube mudarde discurso”; “de choro fácil ao falar da mãee das privações da infância, deu lugar a outromais afinado com a liturgia do cargo”; “Lula jácom a voz mais mansa”; “Um político cada vezmelhor no que a política tem de pior”; “capazde desdizer a sua própria retórica” (Expresso,23/09/2002: 35). Como é possível compreender,o Expresso produziu no seu discurso evidências da“extensa lista de escândalos de corrupção” dogoverno petista e de um presidente que ao assumiro poder, calou-se “diante dos escândalos” e justi-ficou “abusos dizendo que a corrupção é endé-mica no Brasil”.

Se o sentido de uma palavra expressa posiçõesideológicas em jogo no processo socio históricoem que é produzida, e se toda a formação discur-siva oculta a sua dependência das formações ideo-lógicas (Minayo, 2000), a construção discursiva dosemanário revela a intenção de criticar a imagempública de Lula da Silva, ou, pelo menos, suscitardúvidas acerca da sua idoneidade. Mesmo quandorevela os números de crescimento económico noBrasil relacionados com a gestão do candidato doPartido dos Trabalhadores, a informação serve demote para contextualizar novos escândalos de cor-rupção e colocar em dúvida as suas declarações:“Perante a desmoralização do Partido dos Tra-balhadores e de atos pouco éticos, ele disse-setraído. Nunca revelou por quem” (Expresso,23/09/2002: 35).

A notícia publicada pelo Expresso após a ree-leição dava conta da vitória de Lula com um to-tal de “60,83% dos votos” e das possíveis mudan-ças nos ministérios. O título da notícia “Depoisda vitória, a dança das cadeiras” (Expresso,04/11/2006: 33) é uma metáfora que alertava paraas possíveis mudanças nas figuras principais dosministérios, mas, ao mesmo tempo, é uma forma

de descredibilizar o evento ao retirar-lhe a serie-dade, comparando-o com uma brincadeira de cri-ança.

O semanário, nas palavras do jornalista, con-tinuou cético em relação ao programa político dopetista, afirmando que o Brasil tinha registado umdos “piores índices de crescimento entre os paí-ses emergentes”, e, portanto, uma mudança con-sistente nos rumos do país seria “pouco plausível”(Expresso, 04/11/2006: 33). Observamos que acrise política enfrentada por Lula da Silva e as elei-ções em 2006 foram constantemente relacionadas.A publicação não recorre a especialistas, como so-ciólogos ou cientistas políticos, para comentar oevento, tomando para si a responsabilidade de es-pectador dos factos.

A edição do dia 21 de setembro da revista Sá-bado foi a primeira a trazer uma reportagem sobreas eleições presidenciais no Brasil. Podemos ob-servar que, desde o início do segundo semestre de2006, é a primeira vez que o tema é diretamenteabordado. Na reportagem de cinco páginas, “Dasforjas ao Palácio”, o relato começa em Nova Ior-que, “nos corredores do Palácio de vidro” (Sá-bado, 21/09/2006: 64-68), onde Lula da Silva, omenino pobre oriundo das forjas – onde se trans-forma ferro em aço –, cumpre mais um compro-misso como Presidente da República. A publica-ção, inicialmente, contextualiza o seu leitor acercados escândalos, envolvendo o candidato à reelei-ção e à cúpula do partido dos trabalhadores. Arevista assume uma postura de denúncia, quandoafirma ironicamente que “Lula da Silva tem-sedado bem na vida” para logo, em seguida, relatarmais um escândalo, desta vez envolvendo a com-pra de um dossiê político, e informar de que nadaadianta “estrebucharem” os adversários do candi-dato Lula, “as sondagens não param de lhe ga-rantir sucesso”.

Percebe-se um sentido de desconstrução daimagem de Lula, até porque o texto rapidamenteretoma a temática dos escândalos de corrupçãono governo. As construções dos dois textoscontrapõem-se. A segunda parte da reportagem in-valida a tese da primeira e ficamos sem entender seLula é o mocinho ou se é o vilão: “com moradana ironicamente chamada praça dos Três Pode-res, o Presidente controlou toda a governaçãoe quase toda a oposição a troco da distribuiçãofarta de dólares” (Sábado, 21/09/2006: 64-68).

A Sábado confirma e legitima o papel de Lulacomo candidato ultra-dimensionado, quando nasreportagens seguintes, onde são traçados os per-fis dos candidatos à presidência mais mediatiza-

www.bocc.ubi.pt 11 / 15

Tatiana Calmon

dos no Brasil, Heloísa Helena do PSOL (Sábado,28/09/2006) e Geraldo Alckimin do PSDB (Sá-bado, 04/10/2006), o candidato petista divide maisuma vez o protagonismo com os outros principaisatores políticos da eleição. Isto verifica-se, querseja através da atualização dos fatos inerentes aosescândalos de corrupção em que os dirigentes doPT estiveram envolvidos, quer no posicionamentopolítico dos seus adversários.

Lula volta à ribalta no dia 1 de novembro como sugestivo título: “Me engana que eu gosto” (Sá-bado, 01/11/2006), na primeira edição publicadaapós ser reeleito com “60,8% dos votos”. Nova-mente o título da reportagem está assente num tro-cadilho, recurso estilístico usado em grande partedos títulos das reportagens retiradas do corpus dainvestigação para análise. Prematuramente, a pu-blicação volta a relacionar a vitória de Lula comos escândalos de corrupção do seu governo. A fo-tografia em particular, que ilustra as metades dasduas primeiras páginas do texto, revela um Lulacompletamente à vontade, com a mulher, Marisa,no discurso da vitória.

Figura 4 e 5. Sábado, 01/11/2006

O tema das denúncias de corrupção envol-vendo o presidente Lula da Silva acompanha todaa estratégia discursiva do semanário. A publi-cação coloca-se na posição de testemunha ocu-lar quando relata que Lula da Silva, na altura noescândalo dossiê “Vedoin”16, estremeceu o Palá-cio da Alvorada ao saber da prisão de dois mem-bros do PT num hotel em São Paulo com um va-lor de aproximadamente 644 mil euros. O pre-sidente vociferou: “Imbecis! Não posso acre-ditar...Outra vez...Bando de tarados” (Sábado,01/11/2006: 64-66).

Apesar de não existirem provas irrefutáveisacerca do conhecimento ou participação do presi-dente nos esquemas de corrupção, a publicação fezo que nenhuma Comissão Parlamentar de Investi-gação conseguiu no Brasil, relacionar o presidente

com diversos escândalos no seu primeiro períodode governação.

As notícias que constituem o corpus de aná-lise, no veículo semanal Visão, começaram a serpublicadas alguns meses antes da eleição. Em 28de setembro de 2006, a revista publica uma repor-tagem inteiramente dedicada às presidenciais de2006: “Lula, um presidente de ferro”.

O conceito de Presidente da República insere-se numa formação discursiva que reconhece na fi-gura do chefe de Estado, enquanto representantede toda nação, um conjunto de valores nobres rela-cionados com o cargo em questão. Todavia, para apublicação do grupo Impresa, Lula da Silva aindanão correspondia a este “ideal” de chefe político eé mais uma vez apresentado como o metalúrgicoque se tornou “o primeiro operário-chefe do Es-tado do Brasil”. O primeiro parágrafo começacom uma declaração de Lula assumindo que “sóum fator extraterrestre” (Visão, 28/09/2006: 72-80) poderia impedi-lo de ser reeleito.

O Manual de Redação da Folha publicado em2001, adverte que no texto jornalístico fazer usodo recurso da ironia pode causar alguma confusãoao leitor, e esclarece que tal procedimento requercautela: “nem sempre a ironia que parece óbvia aoautor é compreendida como tal pelo leitor e, emexcesso, tende a irritá-lo” (75). Para DominiqueMaingueneau (2001), o que a ironia produz é umenunciado que invalida ao mesmo tempo que fala,como observamos no trecho do texto jornalísticoanalisado (“Lula, um presidente de ferro”):

“A 1 de outubro, ficará a saber-se se o pri-meiro operário a atingir a chefia do Estadobrasileiro vai manter-se por mais quatroanos ou se foi atacado por algum extra-terrestre, vampiro ou sanguessuga – os bi-chos raros alegadamente responsáveis pe-las bruxarias que ameaçam o candidato.”(Visão, 28/09/2006: 73).

A retórica da mensagem textual da Visão pros-segue de forma panfletária, relacionando todos osindícios de envolvimento de Lula da Silva com osesquemas de corrupção: “69 parlamentares in-criminados, a maioria petista”; “...limpar o ca-minho para os candidatos do PT”; “quem enco-mendou o dossiê foi o segurança de Lula”; “En-volvido na trama estava também Oswaldo Bar-gas, marido da secretária particular de Lula”;“Watergate brasileiro”. O modo de produção

16 Em setembro de 2006, integrantes do PT foram acusadosde tentar comprar, de Luiz Vedoin, um dossiê falso com acusa-

ções contra o candidato à corrida pelo governo de São Paulo: JoséSerra (PSDB).

www.bocc.ubi.pt 12 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

do material textual analisado tem diversas caracte-rísticas inerentes ao discurso sensacionalista, taiscomo a exploração de estereótipos sociais, a valo-rização da emotividade em detrimento da informa-ção e a exploração exagerada do carácter extraor-dinário dos acontecimentos.

Na reportagem publicada a pouco dias da se-gunda volta, “Lula lá, lá...” (Visão, 26/10/2006),a imagem de um presidente de mãos dadas como popular lutador brasileiro de boxe, Popó, ocupaduas páginas inteiras da revista Visão de 26 de ou-tubro. A iminente vitória do petista é abordada nopróprio lead que diz: “Apesar do “dossiêgate”71 lhe rondar a porta, o Presidente brasileirodisparou, de novo, para a reeleição. O seu ca-risma, o aumento do poder de compra, a justiçasocial vencem a condenação ética” e explica queo Brasil “é o país das coisas fantásticas”, inclusi-vamente na política.

Figura 6 e 7. Visão, 26/10/2006

Neste sentido, acreditamos que a revista Visãoempreendeu um significativo esforço para destacara questão do “esvaziamento da credibilidade” dogoverno de Lula como instrumento de ameaça à re-putação do candidato à presidência: “o escândalo,seja ele político-sexual, político-financeiro ou depoder, pode corroer e esvaziar essas fontes de po-der simbólico, que são a reputação e a confiança”(Thompson, 2002: 13-14).

A questão do esvaziamento de credibilidade equebra de confiança são bastante percetíveis nasabordagens da revista. A publicação menciona que“nas últimas investigações deste escândalo [...]surgiram nomes de figuras que estão ou estive-ram muito próximo de Lula”. O jornalista fazainda referência a um “reputado jurista” que “emparte me confirmou” (Visão, 26/10/2006: 70-78)ser impossível investigar um presidente em plenacampanha eleitoral.

No último texto do corpus, “Evolução sem re-volução” (Visão, 02/11/2006), a revista semanaldivulga a reeleição do presidente Lula com “70%dos sufrágios”. Este novo momento político –

as renovadas condições de governabilidade alémda própria condição de novo presidente –, são astemáticas exploradas pela publicação que não seomite de emitir opinião, ao dizer que a vitória deLula é mais significativa tendo em conta que Alc-kimin foi um candidato: “Sério, competente, po-lítico de centro/centro-esquerda com um longopercurso, de prefeito a deputado e a bom gover-nador de São Paulo”, enquanto a Lula da Silvarestava “sacudir do capote a água suja dos es-cândalos que lhe sucedem há 15 meses, e nãoacrescentar-lhe mais água”.

Resta, pois, concluir que Lula foi o ator so-cial de maior relevância na revista Visão no pe-ríodo analisado, o que não significa, necessaria-mente, que o protagonismo que lhe é concedidoseja um protagonismo favorável à sua candidaturaou ao seu estilo de governação. O candidato à re-eleição presidencial foi constantemente criticadopela publicação, numa estratégia de descredibili-zação da sua figura pública e política através doobjeto de persuasão, “corrupção”.

5 Considerações FinaisO Expresso construiu a imagem do candidato Lulaem 2002 relacionando a sua figura pública coma evolução do período eleitoral no Brasil. A fi-gura do candidato petista, enquanto persona po-lítica não foi explorada pelo semanário, optando,pelo contrário, por uma estratégia discursiva pau-tada pelo distanciamento, cabendo ao discurso se-cundário a responsabilidade de fazer apreciaçõesde valor. Em 2006, o semanário Expresso pautou-se, de igual modo, por uma postura genericamenteinformativa muito embora as expressões e o lé-xico escolhido para retratar a temática analisada– escândalos de corrupção e presidenciais – sinali-zassem sentidos negativos, caracterizando Lula deforma constantemente depreciativa.

Por seu turno, a Visão associou constantementeo percurso de vida de Lula com a biografia políticado candidato do Partido dos Trabalhadores. Já naprimeira leitura exploratória das matérias, perce-bemos que a revista não se absteve de fazer apre-ciação valorativa de todos os candidatos ao pleitoeleitoral, nomeadamente de Lula da Silva, líderoperário, sindicalista, esquerdista. A modalizaçãocom base numa adjetivação prolífica foi uma dasmarcas discursivas mais evidentes do discurso darevista Visão. Afinal, “adjetivar é assumir valores”que denunciam a posição ou a reação do “falantediante do que vê” (Lineide Mosca, 1993: 267).Nas presidenciais de 2006 a revista Visão relaci-

www.bocc.ubi.pt 13 / 15

Tatiana Calmon

onou de forma contundente o presidente com osescândalos de corrupção, assim como descredibi-lizou a sua imagem política através do uso recor-rente da ironia nos seus enunciados.

As sucessivas quebras de confiança levam a so-ciedade a desconfiar não somente de líderes espe-cíficos, mas da classe política em si, como umaclasse em estado de permanente suspeita. Ao uti-lizar adjetivos e juízos de valor negativos sobre aadministração de Lula enquanto presidente, a re-vista associou-o a uma imagem de um candidatonão-confiável, estabelecendo um sentido de inap-tidão para a governança em artigos cada vez maisconcentrados na abordagem negativa dos aconte-cimentos e nos aspetos pessoais que pudessem de-negrir a sua imagem pública.

Na Sábado observámos que o tema “corrup-ção” fomentou a (des) construção da imagem deLula e revelou um evidente empenho em capturar aatenção do leitor, cujo acesso aos bastidores da po-lítica se dava por intermédio das informações queapontavam para o envolvimento do presidente nosesquemas de corrupção.

Se olharmos de forma abrangente para as elei-ções de 2002 e 2006, constatamos que a im-prensa semanal portuguesa optou por enquadra-mentos distintos contribuindo, nalguns casos, paraa mitificação (eleições presidenciais de 2002) e,noutros, para a desmitificação da figura pública deLula da Silva (eleições presidenciais de 2006).

Estando cientes de que a interpretação dos da-dos obtidos nesta pesquisa é um ato subjetivo e umprocesso incompleto – que se encerra e recomeçano momento da leitura – não pretendemos, por-tanto, generalizar as nossas conclusões acerca damaterialidade discursiva de cada veículo, afinal a“incompletude é característica de todo processo designificação” (Orlandi,2001: 27). Enquanto per-sona política, Lula da Silva pode ser descodificadosob vários ângulos e abordagens diferentes, masnão atendermos à intertextualidade que os textosjornalísticos mantêm, neste caso, com elementospresentes em outras formas narrativas como a epo-peia e a sátira, equivaleria a negligenciarmos a ori-gem logomítica das notícias e, em parte, a preo-cupação dos jornais em ajustar as notícias ao uni-verso de receção dos seus leitores (com base numalógica dual de “bem” versus “mal”), no sentido deaumentar o número de exemplares vendidos.

6 Bibliografia

Barthes, R. (2007). Mitologias. São Paulo. Diefel.

Betto, F. (1989). Lula, biografia política de umoperário. São Paulo: Estação Liberdade.

Campbell, J. (1990). O poder do mito. São Paulo:Palas Athena.

Campbell, R. (1991). 60 Minutes and the news: amythology of middle America. Urbana: Uni-versity of Illinois Press.

Campbell, J. (2007). O herói de mil faces. SãoPaulo: Pensamento.

Campbell, R. (1991). 60 Minutes and the news: amythology of middle America. Urbana: Uni-versity of Illinois Press.

Carey, J. (1975). A cultural approach to commu-nication. In J. Carey, Communication as cul-ture: essays on media and society (pp. 13-36). Winchester: Unwin Hyman.

Chilton, P. (2004). Analyzing political discourse:theory and practice. London: Routledge.

Eliade, M. (1978). Mito e realidade. São Paulo:Perspectiva.

Fairclough, N. (2001). Discurso e mudança social.Brasília: Universidade de Brasília.

Fairclough, N. (2003). Analyzing discourse. Lon-don: Routledge.

FOLHA DE SÃO PAULO (2001). Manual de reda-ção. São Paulo: Publifolha.

Foucault, M. (1987). A arqueologia do saber. Riode Janeiro: Forense Universitária.

Grantham, M. (2002). Da releitura à escritura:um estudo da leitura pelo viés da pontuação.Tese de Doutoramento em Letras. Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul.

Grimal, P. (1987). A mitologia grega. São Paulo:Editora Brasiliense.

Hansen, L. (2006). Security as practice: discourseanalysis and the Bosnian war. London: Rou-tledge.

Lima, Venício A. (2007) A Mídia nas Eleições de2006. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.

Maisonneuve, J. (1977). Opiniões e estereótipos.In J. Maisonneuve, Introdução a psicossocio-logia (pp. 110-125). São Paulo: Edusp.

Maingueneau, D. (1987). Novas tendências emanálise do discurso. Unicamp: Pontes.

www.bocc.ubi.pt 14 / 15

A Trajetória de Lula à Presidência e os Ecos na Imprensa Semanal Portuguesa. Uma análise de discurso

Malinowski, B. (1954). Magic, science and reli-gion and other essays. USA: The Free Pass.

Meurer, J. L. & Motta-Roth, D. (2002). Gêne-ros textuais e práticas discursivas: subsídiospara o ensino da linguagem. Bauru: Edusc.

Minayo, M. C. de S. (2000). O desafio do conhe-cimento: pesquisa qualitativa em saúde. SãoPaulo: Hucitec.

Mosca, L. do L. S. (1990). A subjetividade no edi-torial: uma análise retórica-argumentativada adjetivação. Tese de Doutoramento emLetras. Universidade de São Paulo.

Motta, L. G. (2002). Imprensa e poder. Brasília:Universidade de Brasília.

Motta, L. G.; Lima, J. A. & Costa, G. B. (2004).Notícia e construção de sentidos: análise danarrativa jornalística. Revista Brasileira deCiências da Comunicação, julho-dezembro,(2). São Paulo.

Orlandi, E. P. (2001). Análise do discurso e inter-pretação. In: E. P. Orlandi, Discurso e texto:formação e circulação de sentidos (pp.19-27). São Paulo, Campinas: Editora Pontes.

Orlandi, E. P. (2006). Discurso e leitura. SãoPaulo: Cortez.

Palmeira, M. & Herédia, B. (1995). Os comíciose a política das facções. Anuário Antropoló-gico, (94): 31-94. Rio de Janeiro.

Paraná, D. (2009). A história de Lula: o filho doBrasil. Rio de Janeiro: Objetiva.

Pereira, M. (2010). O lulismo no poder. Rio deJaneiro: Record.

Rubim, A. A. C. (2004). Visibilidades e estraté-gias nas eleições de 2002. In A. A. C. Ru-bim (org.), Eleições presidenciais em 2002 noBrasil: ensaios sobre mídia, cultura e polí-tica (pp. 7-28). São Paulo: Hacker.

Schudson, M. (1978). Discovering the news: asocial history of american newspaper. USA:Basic Books.

Schwartzenberg, R.-G. (1978). O estado espetá-culo. Rio de Janeiro: Difel.

Thompson, J. B. (2002). O escândalo político: po-der e visibilidade na Era da mídia. Petrópo-lis: Vozes.

www.bocc.ubi.pt 15 / 15