pedro calmon = história da civilização brasileira

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HISTRIA DA CIVILIZAO BRASILEIRA

Mesa DiretoraBinio 2001/2002Senador Ramez Tebet Presidente Senador Edison Lobo 1 Vice-Presidente Senador Carlos Wilson 1 Secretrio Senador Ronaldo Cunha Lima 3 Secretrio Senador Antonio Carlos Valadares 2 Vice-Presidente Senador Antero Paes de Barros 2 Secretrio Senador Mozarildo Cavalcanti 4 Secretrio

Suplentes de Secretrio Senador Alberto Silva Se na do ra Ma ria do Carmo Alves Se na do ra Mar lu ce Pin to Senador Nilo Teixeira Campos

Conselho EditorialSenador Lcio Alcnta ra Presidente Conselheiros Carlos Henrique Cardim Carlyle Coutinho Madruga Jo a quim Cam pe lo Mar ques Vice-Presidente

Raimundo Pontes Cunha Neto

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Coleo Biblioteca Bsica Brasileira

HISTRIA DA CIVILIZAO BRASILEIRAPedro Calmon

Braslia 2002

BIBLIOTECA BSICA BRASILEIRAO Conselho Editorial do Se nado Federal, cri ado pela Mesa Diretora em 31 de ja neiro de 1997, buscar editar, sempre, obras de va lor his t ri co e cultural e de importncia relevante para a compreenso da his t ria po l ti ca, eco n mi ca e so ci al do Bra sil e re fle xo so breos desti nos d o pas. COLEO BIBLIOTECA BSICA BRASILEIRA A Querela do Estatismo, de Antnio Paim Minha Formao (2 edio), de Joaquim Nabuco A Poltica Ex te rior do Imprio (3 v.), de J. Pandi Calgeras Captulos de Histria Colonial, de J. Capistrano de Abreu Instituies Polticas Brasileiras , de Oliveira Viana Deodoro: Subsdios para a Histria, de Ernesto Sena Presidencialismo ou Parlamentarismo?, de Afonso Arinos de Melo Franco e Raul Pila Rui o Estadista da Repblica, de Joo Mangabeira Eleio e Representao, de Gilberto Amado Dicionrio Biobibliogrfico de Autores Brasi le i ros, organizado pelo Centro de Documentao do Pensamen to Bra si le i ro Observaes sobre a Franqueza da Indstria, do Visconde de Cairu A renncia de Jnio, de Carlos Castello Branco Joaquim Nabuco: Revolucionrio Conservador, de Vamireh Chacon Oito Anos de Parlamento, de Afonso Celso Pensamento e Ao de Rui Barbosa, seleo de textos pela Fundao Casa de Rui Barbosa Histria das Idias Polticas no Brasil, de Nelson Saldanha A Evoluo do Sistema Eleitoral Brasileiro , de Manuel Rodrigues Ferreira Rodrigues Alves: Apogeu e Declnio do Presidencialismo (2 v.), de Afonso Arinos de Melo Franco O Estado Nacional , de Francisco Campos O Brasil Social e Ou tros Estu dos So ci o l gi cos, de Slvio Romero An sio em Mo vi men to, organizado por Joo Au gus to de Lima Ro cha Fes tas e Tra di es Po pu la res do Bra sil, de Melo Morais Filho A Abolio do Comrcio Brasileiro de Escravos, de Les lie Bet hell Quando Mudam as Capitais, de Jos Osvaldo de Me i ra Penna Projeto Grfico: Achilles Milan Neto Senado Fed eral, 2002 Congresso Nacional Praa dos Trs Poderes s/n CEP 70168-970 Braslia DF [email protected] http://www.senado.gov.br/web/conselho/conselho.htm

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Calmon, Pedro. Histria da civilizao brasileira / Pe dro Cal mon. -Braslia : Se na do Fe de ral, Conselho Editorial, 2002. p. 332 (Co le o bi bli o te ca b si ca brasileira) 1. His t ria so ci al, Bra sil. 2. His t ria econmica, Brasil. 3. Histria poltica, Brasil. I. Ttulo. II. Srie. CDD 981

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SumrioEXPLICAO DA 1 EDIO pg. 11 DUAS PALAVRAS SOBRE A 3 EDIO pg. 13 APRESENTAO Pedro Calmon e a Histria da Civilizao Brasileira por Arno Wehling pg. 15 I O descobrimento e a posse do Brasil pg. 25 II A experincia feudal pg. 31 III A colonizao As suas determinantes e os seus rumos O homem pg. 41 IV A unidade virtual Fisionomia geogrfica do pas pg. 51 V As regies de condensao e de disperso Norte e Sul pg. 57 VI A terra disputada Os holandeses Reao nativista pg. 63 VII O contorno do pas A expanso sertanista Enfim uma ptria pg. 79

VIII Prosperidade econmica O reino do acar pg. 93 IX Internamento da colonizao O reino dos metais pg. 99 X O comrcio no sculo XVIII Crescente riqueza pg. 111 XI O trabalho no sculo XVIII Um colono tpico: o jesuta pg. 119 XII A sociedade A casa colonial Esprito da civilizao portuguesa pg. 127 XIII Letras e artes na colnia pg. 133 XIV A Administrao Justia O clero pg. 143 XV As agitaes nativistas pg. 153 XVI O territrio completado Fronteiras do Norte Fronteiras do Sul pg. 163 XVII Revoluo econmica Prdromos da Independncia Fim da era colonial pg. 169 XVIII Fundao do Imprio do Brasil: D. Pedro I pg. 183 XIX A projeo internacional o Imprio e os seus vizinhos Fatalidade histrica A guerra de 1827 pg. 191

XX A poltica brasileira do 1 Reinado e da Regncia Evoluo democrtica pg. 203 XXI O advento de D. Pedro II pg. 213 XXII O progresso material O domnio da mquina O Imprio e as realizaes industriais Nova agricultura pg. 219 XXIII Histria poltica do 2 Reinado pg. 237 XXIV A abolio da escravatura pg. 255 XXV O eplogo da Monarquia pg. 263 XXVI A proclamao da Repblica O 3 Reinado Silveira Martins A conspirao e Deodoro Adeso dos polticos Vsperas do golpe 15 de Novembro Fim do Imprio pg. 277 XXVII A consolidao da Repblica pg. 289 XXVIII Ao construtiva pg. 301 NDICE ONOMSTICO pg. 311 NDICE TOPONMICO pg. 323

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Explicao da 1 Edio

ste livro no um compndio, nem um tratado. uma nova sntese da histria do Brasil: histria social, econmica, administrativa e po ltica. A Histria da Civilizao Brasileira. Destina-se aos estudantes dos cursos superiores. Para os professores so as remisses bibliogrficas. Dar-se-ia por feliz o autor se lograsse interess-los num exame mais detido e til dos fatos do nosso passado fora da cronologia e da onomstica, dos sincronismos e das tbuas dos velhos eptomes, dentro de um esprito cientfico que, nas escolas, j dirige os conhecimentos modernos. Mandava, entretanto, Rousseau: Ne raisonnez jamais schement avec la jeunesse. Obediente ao preceito, este livro se fez: para a mocidade. A distribuio da mat ria e a sua explanao sofrem duas influncias: a do programa do Colgio Pedro II e a do curso de extenso universitria, re gido pelo autor no Museu Histrico Nacional, em 1932. PEDRO CALMON

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Duas palavras sobre a 3 Edio

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m pouco tempo duas edies deste livro se esgotaram. Apresentando a terceira* atualizada com a conveniente reviso bibliogrfica, devemos salientar os esplndidos resultados didticos que a nossa orientao, na maneira de explicar e compreender a histria brasileira, tem obtido nas classes de instruo secundria do pas. Felizmente j no persistimos na lamentvel rotina em que vivia este ensino, es tranho s conquistas e novidades da cincia social, des prendido de suas realidades, fiel aos mtodos arcaicos, infestado de velhas crnicas, de fria nomenclatura, de minuciosas datas e pitorescos pormenores, cuja trama escondia amofinando as jovens inteligncias o conjunto amplamente humano da evoluo nacional. Urgia remover esses obstculos no s boa aprendizagem da nossa histria, como popularizao dela. Nenhum povo tem a conscincia do seu destino e a certeza do seu valor, se ignora o seu passado, ou, o que mais funesto ainda, se no o entende. As grandes naes sou beram construir, com a sua civilizao ma terial, admirveis lendas histricas, Traduzido para o espanhol por Julio E. Payro, com prlogo de Ricardo Levene, o volume 1 da Biblioteca de Autores Brasileiros, organizada pela Comision Revisora de Textos de Historia y Geografia Americana, da Repblica Argentina (Buenos Aires, 1937).

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que lhes do s nobres tradies poesia, alma e sentido. O Brasil, graas s condies surpreendentes de sua formao, ao vero romance de suas origens, ao imenso esforo construtivo de muitas geraes e dispersiva aspereza do seu meio fsico, pde dispensar, nas especulaes do nosso civismo, aquelas lendas. Basta-lhe o sincero retrospecto de sua lenta elaborao, essa sociologia dos tempos idos, o vasto e to vrio painel do seu crescimento aflito e herico. a pintura que abreviada e toscamente des dobramos neste vo lume endereado aos que estudam nos ginsios e liceus. A aceitao da obra generosamente nos recompensa o empenho patritico que lhe dedicamos. Rio, maro de 1937. P EDRO C ALMON

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Apresentao

Histria da Civilizao Brasileira, de Pedro Calmon, foi obra de suces so, para os padres editoriais bra sileiros, durante cerca de 30 anos. A primeira edio foi publicada em 1933, quando seu autor era um jovem intelectual ba iano de h pouco instalado no Rio de Janeiro. Em 1963 o livro, sempre reeditado pela prestigiosa Coleo Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, atingia a 6 edi o, qual se acrescentaram uma edio argentina e uma italiana. Da em diante, profundamente modificada a historiografia brasileira, a obra foi caindo no olvido, at tornar-se raridade bibliogrfica. O prprio Calmon a veria como um trabalho de juventude, menos acabado que a Histria Social do Brasil, a Histria da Casa da Torre ou a Histria do Brasil. Ela possui, no entanto, considerada sua poca, relevantes contribuies, mais tarde desenvolvidas em estudos monogrficos por outros autores ou simplesmente incorporados s novas snteses que surgiram.O AUTOR E SUAS OBRAS

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PEDRO CALMON E A HISTRIA DA CIVILIZAO BRASILEIRA

Pedro Calmon Moniz de Bittencourt vinha de longa tradio aristocrtica baiana, pela ascendncia paterna e mineira, pela materna.

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Nasceu em Amargosa, na Bahia, a doce Amargosa, como dizia num de seus jeux de mots e desenvolveu os estudos secundrios em Salvador, formando-se em Direito, j no Rio de Janeiro. Em 1926 obteve e doutorado, com a tese O Direito de Propriedade. Sua vida foi, permanentemente, intensa. Na administrao pblica iniciou-se como secretrio de seu tio Miguel Calmon, en to Ministro da Agricultura do governo de Artur Bernardes. Foi tambm Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, de 1938 a 1948 e Reitor entre 1948 e 1966. Ensaiou alguma atividade poltica, sendo deputado estadual e federal pela Bahia. Exerceu ainda, no Governo Dutra, o Ministrio da Educao e Sade. De 1968 a 1985, ocupou a presidncia do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, onde ingressara em 1931. Registre-se que foi de sua autoria, quando deputado estadual, a primeira lei de proteo ao patrimnio histrico e artstico, iniciando um movimento que levaria, nos anos 1930, definio de uma poltica nacional para a questo. No ensino, foi professor catedrtico de Direito Constitucional na Universidade do Brasil e na Pontifcia Uni versidade Catlica e, j Reitor daquela Universidade, prestou concurso para a ctedra de Histria do Brasil do Colgio Pedro II, em 1955, obtendo o primeiro lugar. s suas facetas de administrador e de professor deve ser acrescentada a atividade como pesquisador, canalizada para as centenas de artigos e as dezenas de livros que elaborou, sempre sobre Histria do Brasil. Ademais desta atuao profissional, no seria possvel deixar de mencionar a vocao oratria de Pedro Calmon. Pertenceu, talvez, ltima ge rao de grandes oradores que existiram no Brasil, como seus contemporneos Santiago Dantas e Carlos Lacerda, embora estes se distinguissem na oratria parlamentar e poltica. Mesmo hoje, quase vinte anos passados de sua morte, possvel constatar, no Brasil e no ex terior, o prestgio de Calmon neste campo. Quanto sua obra, ele prprio a classificou em literatura histrica, como as biografias de D. Joo VI, D. Pedro I e D. Pedro II, direito (incluindo-se a uma Histria das Idias Polticas e o belo estudo so bre o estado e o direito nos Lusadas, tema mais tarde desenvolvido pelo historiador portugus do direito, Martins de Albuquerque) e

Histria da Civilizao Brasileira

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histria. Neste grupo, considerava sua obra inicial A Conquista. Histria das Bandeiras Ba ianas e esta Histria da Civilizao Brasileira a quarta. Em matria de concepo historiogrfica, em estudo sobre seu pensamento histrico ns o filiamos matriz historista, ou historicista romntico-erudita, da historiografia brasileira, que teve em Varnhagen sua principal expresso. Isso, sem embargo de suas aproximaes obra de Capistrano de Abreu e s concepes modernistas das quais foi contemporneo, o que, entretanto, no alterou sua fidelidade principal. Pelas concepes do conhecimento e do processo histrico, particularmente pelo papel que atribua ao estado na organizao e encaminhamento da vida social, Calmon derivava seu pensamento histrico do modelo ge ral hobbesiano-hegeliano de estado, o que o fazia lo gicamente aproximar-se de um Ranke, de um Meinecke e, no caso brasileiro, de Varnhagen. Na Introduo Histria do Brasil editada por Jos Olmpio traduz bem este esprito, de resto visvel na maior parte de seus escritos his tricos.A HISTRIA DA CIVILIZAO BRASILEIRA

A Histria da Civilizao Brasileira originou-se das aulas dadas, em 1932, na disciplina Histria do Brasil, do Curso de Museologia, ento vinculado ao Museu Histrico Nacional. Sofreu tambm a influncia do programa do Colgio Pedro II, como declara na Explicao primeira edio. A Histria foi publicada em 1933 no vol. 14 na ento j prestigiosa Coleo Brasiliana e em maro de 1937 o autor pre faciava a terceira edio, o que, para as condies de poca e lugar, era indicativo de gran de sucesso. A explicao para o fato certamente est na sua adoo em di versas escolas de ensino mdio, ento chamadas secundrias, embora o autor destinasse a obra, tambm, aos estudantes de nvel superior. O texto de Calmon realmente inovava e atraa os leitores. Em primeiro lugar, pela concepo de uma histria da civilizao que englobava temas dspares como a organizao poltica e administrativa, a economia, a vida social, as letras e artes, alm do prprio processo de formao territorial e as vicissitudes de sua evoluo como estado nacional. Para os

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interessados em histria, para o pblico culto e para os estudantes os trs grupos de leitores aos quais se dirigiu era certamente uma abordagem inovadora da histria, que correspondia re alizada por Joo Ribeiro mais de trinta anos antes, em 1900, ao lanar seu compndio com a proposta da Kulturgeschichte alem. Pedro Calmon realizou seu exerccio de sntese histrica afastando-se deliberadamente da erudio excessiva ento dominante, praticada pelos epgonos de Varnhagen, sem entretanto voltar-lhes as costas e muito menos rom per com a matriz varnhageniana . Incorporou a erudio s grandes linhas traadas na Histria da Civilizao Brasileira, utilizando-a sempre a ttulo exemplificativo. Identificava-se, assim, ao Zeitgeist da dcada de 1930, que valorizava as perspectivas das cincias sociais e que produziu, em poucos anos, as obras seminais de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala (1933), Caio Prado Jr., Evoluo Poltica do Brasil (1933), Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil (1936) e Roberto Simonsen, Histria Econmica do Brasil (1936), no que j se chamou a redescoberta do Brasil. Com estas quatro obras, de certa for ma pre nunciadas pelos estudos de Oliveira Viana na dcada anterior, o Brasil tomou contato com posies metodolgicas que da por diante marcariam a sua interpretao: a antropologia cultural de Brs do Amaral, o marxismo, o weberianismo e o pensamento sombartiano. Pedro Calmon no se isentou deste clima e a ele procurou corresponder, primeiro com esta Histria e logo com os trs volumes da Histria Social do Brasil, de que a obra agora reeditada foi uma espcie de primeiro esboo nos aspectos scio-antropolgicos. Em segundo lugar, o texto atraa os leitores, porque era escrito de ma neira deliberadamente leve, embora com rigor e preciso de linguagem, no se isentando o autor, num ou noutro ponto, de incluir uma exclamao enftica, uma reticncia irnica ou a metfora elegante. Comparado ao que ainda predominava em matria de sntese histrica disponvel aos leitores da dcada de 1930, a proposta de Calmon fora da cronologia e da onomstica, dos sincronismos e das tbu as dos velhos eptomes, na sua expresso, revelava-se uma tournant tambm em termos de tcnica expositiva.

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Essa preocupao, segundo disse ele prprio, no se devia apenas adeso a uma nova forma de organizar e expor seu objeto. Interessava-o tambm a popularizao da histria nacional como, diramos hoje, uma estratgia da memria social: Nenhum povo tem a conscincia de seu destino e a certeza de seu valor, se ignora o seu passado, ou o que mais funesto ainda, se no o entende. A repercusso da obra na dcada de 1930 foi significativa, com trs edies at 1937. Foi, ainda, publicada em espanhol, na Argentina, em 1937 com prefcio de Ricardo Levene, constituindo-se no volume primeiro da Biblioteca de Autores Brasileiros. A ini ciativa inseriu-se no plano mais amplo, de divulgao de autores e temas brasileiros na Argentina e de autores e temas argentinos no Brasil, dentro de uma poltica de aproximao entre os dois pases.AS FONTES DO AUTOR

A Histria da Civilizao Brasileira foi revista e atualizada pelo autor em edies subseqentes e manteve-se em dia com a bibliografia especializada. Assim, aparecem na bibliografia desde clssicos (j poca) da historiografia brasileira ou sobre o Brasil, como Varnhagen, Handelmann, Capistrano de Abreu, Slvio Romero, Martius, Nina Rodrigues, Teodoro Sampaio, Brs do Amaral, Euclides da Cunha, Calgeras e Joo Lcio de Aze vedo, at auto res contemporneos que comeavam sua produo e que tambm tornar-se-iam textos de referncia, em seguida, se j no eram: Alfredo Ellis Jr., Afonso Taunay, Oliveira Viana, Alcntara Machado, Artur Ramos, J. F. de Almeida Prado, Gilberto Freire, Rodolfo Gar cia, Alfred Mtraux, Ferreira Reis ou Serafim Leite. Para a influncia dos fatores geogrficos sobre a his tria, apareciam referncias a Ratzel e a um autor at ento desconhecido no Brasil, Lu cien Febvre; para a relao entre monocultura e escravido, Karl Marx; sobre o missionarismo, Chateaubriand e Capitant; sobre a expanso europia, particularmente ibrica, alm dos historiadores portugueses, Launoy e van der Lindem. As fontes da Histria da Civilizao Bra si le i ra, por sua vez, constituem o que existia de disponvel sobre o assunto po ca de sua redao, acresci da de referncias nas edies pos teriores.

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Assim, apareciam os manuscritos, editados in dividualmente ou nas colees dos Anais da Biblioteca Nacional, dos Documentos Histricos da Biblioteca Nacional (ento recentemente lanados), dos Inventrios e Testamentos de So Paulo e da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasilei ro. Alm destes, apareciam os cronistas brasileiros, portugueses e de outras nacionalidades, bem como os viajantes anteriores e posteri ores a 1808. Desta for ma, Calmon fez uso, entre outros, de Gndavo, Gabriel Soares de Souza, Frei Vicente do Sal vador, os autores das Cartas Je suticas, Vie i ra, Pedro Taques e Nuno Marques Pereira, junto aos es trangeiros Vespucci, Acosta, Th vet, Lry, Staden e La Barbinnais. No deixou ausentes os clssicos, cujas referncias revelam seu pendor litrio: Gar cia de Resende, Cames, Morus, Shakespeare, Mon taigne, Chateaubriand, Rousseau. interessante observar que este livro de Pedro Calmon foi a pri meira obra de sntese a valorizar o papel informativo dos testamentos como fonte de histria social, revelando-se a o jovem autor atualizado em re lao obra h pouco publicada, Vida e Morte do Bandeirante, de Alcntara Machado, por sua vez o primeiro autor a explorar de modo sistemtico os inventrios e testamentos paulistas da poca colonial. As concluses deste iam de encontro interpretao de Oliveira Viana, ento um texto caro ao autor, a propsito da opulncia da aristocracia paulista. Outro as pecto que merece ser sublinhado em relao s leituras que embasaram o autor foi a preocupao, en to pouco presente em nossa historiografia, de valorizar os trabalhos sobre a Amrica hispnica que dissessem respeito aos contatos entre as duas colonizaes. Destacou, assim, a presena de portugueses em Lima e Buenos Aires, no perodo colonial, bem como algumas das verses platinas sobre os conflitos do sculo XIX com o Brasil.ALGUNS INSTRUMENTOS E ALGUMAS CONCLUSES DO AUTOR

Calmon entendia o conceito de histria da civilizao como uma sntese das histrias setoriais, social, econmica, administrativa e poltica.

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O plano da obra reflete esta perspectiva, mas tambm a preocupao de no valorizar os aspectos poltico-administrativos e sobretudo o seu enfoque puramente factual. Assim, no h um equilbrio aritmtico entre esses diversos aspectos, mas uma certa eqidade que privilegia o social (aqui includas as referncias culturais) e o eco nmico, sem afetar a har monia do conjunto. sintomtico do papel atribudo pelo autor aos aspectos sociais numa histria da civilizao o captulo 12, dedicado Sociedade A casa colonial Esprito da civilizao portuguesa, onde trata da combinao de elementos lusos e tupis na casa colonial, da arquitetura civil e militar, da indstria domstica de algodo e da restrita urbanizao. Trata-se de um prembulo do primeiro volume da Histria Social do Brasil, livro que publicaria no ano seguinte Histria da Civilizao Brasileira, em 1934. Cronologicamente, a obra, na edio de 1958, atribua 175 pginas Colnia, 124 ao Imprio e 23 Repblica. Em captulos, 17 tratam da Colnia, 9 ao Imprio e dois Repblica. Deliberadamente, limitou o autor o estudo da Repblica, politicamente, at sua consolidao em 1898, estendendo as referncias vida material at a dcada de 1920. Fazia-o fiel sua concepo de que perodos recentes escrevia na dcada de 1930 no davam ao historiador uma distncia mnima para a iseno. Ao prefaciar a terceira edio, Pedro Calmon justificava o vis interpretativo de sua obra como uma sociologia dos tempos idos, com o que reforava a preocupao de no limitar-se exposio cro nolgica, mas alar-se compreenso histrica. Fazia-o, ainda, sem o referencial terico com o qual justi fi cou suas posies na introduo Histria do Brasil de vinte anos depois. Vrios so os exemplos desta explicao sociolgica aplicada histria, ao longo da obra: a idia de uma vida nova para o colono portugus e da subseqente ruptura com o universo anterior; a absoro de costumes indgenas pelos colonos desde a primeira gerao; a concepo do jesuta como um colono tpico, mas distinto dos demais; as ocupaes destinadas ao primeiro, segundo e terceiro filhos; a hiptese de que os conventos fos sem os primeiros ncleos nativistas, por serem os frades nascidos no Brasil e letrados; a idia de que, no primeiro sculo da colnia, formara-se nova sociedade mesclada, na qual, em lugar de eu ropeizar-se o indgena, indianizou-se o portugus; a interpretao social das revoltas co loniais e

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da revoluo pernambucana de 1817; a pioneira anlise sociolgica do perodo regencial, a re ferncia Cabanagem como uma revolta de pobres contra ricos e Constituinte de 1823 como um conflito entre a gleba e o comrcio. Neste livro aparecem tambm algumas tipologias empregadas pelo autor, em relao ao senhor de engenho, ao paulista (pequeno proprietrio, com qualidades marciais, lavoura escassa) e ao missionrio. economia o autor emprestou tambm um novo significado, hoje empalidecido ante nosso conhecimento a partir da obra de Simonsen e da historiografia econmica posterior, mas pioneiro em 1933. Considerou em subcaptulos os produtos agrcolas, os metais, o trfico e as companhias de comrcio, demonstrando ateno para com os ritmos conjunturais do sculo XVIII. Da mesma forma valorizou as relaes dos portugueses com a prata peruana, tema que somente seria tratado de forma monogrfica por Alice Canabrava em 1940. Elaborou, tambm, uma segura sntese sobre a evoluo da poltica econmica entre o mer cantilismo colbertista e o liberalismo. Aplicou tambm algumas categorias da psicologia social, para analisar as caractersticas indgenas em relao a hbitos, indumentria e alimentao, associando-se do sertanejo contemporneo. Da mesma forma comentou a interinfluncia das lendas de origem africana e as trazidas pelos colonos portugueses, de inspirao medieval. Se no primeiro caso mostrava-se influenciado pela polmica em torno do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, no segundo tratava de relaes que foram estudadas logo depois por Gilberto Freire, em Casa Grande e Senzala e Srgio Buarque de Holanda, em Razes do Brasil e Caminhos e Fronteiras. Ao contrrio da maioria de seus contemporneos, porm, atribuiu importncia decisiva ge ografia. Comeou, mesmo, por uma premissa determinista, afirmando que as instituies eram conseqncia do solo, como ensinaram Bodrim e Montesquieu, o que explicaria a riqueza do acar como da aristocracia canavieira. O processo colonizador seria, assim, indelevelmente marcado pela geografia: o uso intensivo e precoce das poucas reentrncias existentes no litoral; as correntes de ventos facilitando os contatos martimos entre Bahia e Pernambuco, Bahia e Esprito Santo e Rio de Janeiro So Vicente Santa Catarina, estabelecendo por mar vnculos coloniais

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quando ainda no existiam caminhos por terra; as diferenas de comportamento entre o homem do planalto e da baixada, aspecto, alis, retomado de Slvio Romero, que o estudara no Brasil Social; e a importncia do rio So Francisco como polarizador de povoamento, mesmo na poca pr-colonial. De tudo isso conclua Calmon pela constituio de uma sociedade de tipo atomstico, individualista e pouco cooperativa, ecoando a tese ento dominante de Oliveira Viana sobre o assunto. Sob o ngulo das instituies, Calmon afirmou alguns pontos de vista que continuam significativos, a despeito dos quase 70 anos que nos separam: o direito portugus teve de adaptar-se, sobretudo na parte processual, no primeiro sculo da colonizao e conviveu com os costumes locais por longo tempo, tese que Rodolfo Garcia tambm esposou; nesta poca, a obra portuguesa foi eminentemente militar, o que valeu-lhe o domnio da colnia; o senhor de engenho j constitua uma nobreza reconhecida no incio do sculo XVII (baseava-se para afirm-lo, nos Dilogos das Grandezas); ocorria com freqncia at o sculo XVIII a absoro das funes rgias pelos mu nicpios e a preeminncia das milcias, fato este s revertido com a introduo do exrcito regular em 1764, endossando ambas as teses de Martius; no Imprio, foram importantes a criao do Conselho de Ministros, em 1847, atribuindo novo perfil ao Executivo e a crise do Gabinete Zacarias, em 1868, origem remota na Repblica. Nestes dois ltimos aspectos acompanhava, respectivamente, a Tavares de Lira, em seu estudo sobre as instituies imperiais e a Olivei ra Viana, em O ocaso do Imprio. Outro trao peculiar Histria da Civilizao Brasileira foi o uso dos procedimentos comparativos, como tambm faria em seguida Srgio Buarque de Holanda contrapondo o semeador ao ladrilha dor. Ainda uma vez predominou em Calmon a influncia geogrfica e no a sociolgica; como no autor de Razes do Brasil, comparou a ex panso sulista, baseada na escravizao dos ndios e na busca do ouro, nordestina marcada pelo gado, e utilizou o mesmo procedimento ao estudar a formao das fronteiras setentrional e meridional.

A Histria da Civilizao Brasileira tem, portanto, muitos mritos. Pela sntese a que se prope, s antecipada, noutra perspectiva,

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por Joo Ribeiro. Pela atualizao face poca, recolhendo as inquietaes modernistas com uma nova interpretao do Brasil, mas sem afastar-se da filiao historista matriz de Martius Varnhagen, como o fariam seus contemporneos, a comear por Gilberto Freire, que tinha pelo autor da Histria Geral do Brasil uma opinio pouco lisonjeira. Pelo uso pioneiro de conceitos e abordagem e pela afirmao de hipteses mais tarde aprofundadas por outros pesquisadores, como o enfoque das revoltas coloniais, das revolues, do processo de independncia e do perodo regencial como palcos de confrontos entre segmentos sociais. E, finalmente, pela leveza de estilo, que atendeu preocupao comunicativa do autor, afirmada desde a primeira edio. A obra bom exemplo de como iniciava-se a re percusso so bre a historiografia stricto sensu ainda presa s concepes estadistas do historismo, das novas te orias sociolgicas, politolgicas e econmicas que haviam dado uma personalidade definitiva s cincias sociais. ARNO WEHLING

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I O Descobrimento e a Posse do Brasil

terra do Brasil j era conhecida dos europeus antes da armada de Pedro lvares que a descobriu para Portugal. Mas nenhuma outra data antecede, na cronologia do nosso pas, a de 1500. Pedro lvares Cabral destinava-se s ndias, com a maior expedio que ainda partira de Lisboa em busca do oriente, e ao samorim procurava, para tratar com ele a conquista e o comrcio das especiarias. O capito-mor da esquadra portuguesa devia saber da existncia de ilhas ocidentais no seu roteiro, aparentemente o mesmo de Vasco da Gama, cujos pilotos de Melinde levava consigo, e a quem sucedia. Mas no considerava a hiptese de explorar outros territrios do lado da Amrica. Em 22 de abril de 1500, oitavrio da Pscoa, viu com surpresa desenhar-se no horizonte o perfil de uma montanha. Estava-se na poca dos descobrimentos martimos. De ano a ano, as caravelas de Portugal, expedidas outrora pelo infante D. Hen rique para o alto mar misterioso, conduzidas depois ao priplo africano, aos cruzeiros de Madeira e Aores, alargavam o domnio colonial da ptria.

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26 Pedro Calmon A geografia fabulosa da antiguidade deixara de interessar os navegantes, que tinham achado no equador um clima hospitaleiro, onde Virglio, como Plato, acusara sol e calor imprprios vida humana.1 Na escola de Sagres no se liam mais os latinos, seno os rabes, e os cosmgrafos portugueses tinham organizado os mapas mais exatos do seu tempo. Conheciam tudo o que se acrescentara, no mundo, s obras de Strabo e Ptolomeu, e acompanhavam, num estudo direto, as idias dos genoveses, dos venezianos e dos catales acerca dos pases da especiaria. Quase a sbitas, como que se transformara o reino numa vasta empresa mercantil. Era uma cruzada de novo gnero, embora de fundo idntico, se a grande curiosidade do ignoto nascia da vontade de pos su-lo para a f, estendendo a religio de Cristo aos povos pagos. Por isso Pedro lvares inqueriu da terra, procurou uma abrigada na costa, distribuiu aos ndios pequenos presentes, e depois de dez dias de demora continuou viagem. surpreendente a naturalidade com que o escrivo da frota, Pero Vaz de Caminha, participou ao rei o descobrimento: no tem uma palavra sequer de espanto, a resplandecer o regozijo pela inesperada fortuna. E assim seguimos por este mar de longo at tera-feira doitavas de pscoa, que foram XXI dias dAbril, que topamos alguns sinais de terra... Tambm no levava a armada pedra de padro, com que costumavam os portugueses assinalar as suas descobertas: fez-se uma cruz tosca com as armas e divisa de Vossa Alteza que lhe primeiro pregaram... O escrivo resumia as impresses iniciais do Brasil. A terra era de tal modo graciosa que daria tudo, mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que ser salvar esta gente, e esta deve ser a 2 principal semente que Vossa Alteza em ela deve lanar...1 Disse uma panegirista, que che ga ram os portugueses, com a espada, onde no chegou Santo Agostinho com a pena. (Co mpndio Nar ra ti vo do Pe re gri no da Am ri ca, edio de 1731, p. 206). Ver P. JOSEPHO ACOSTA, De Natura novi orbis, p. 29 e segs., Salamanca, 1588. Depois de 1892, quando BALDAQUE DA SILVA mostrou tecnicamente a inverossimilhana do acaso, os historiadores portugueses sustentam que o descobrimento do Brasil foi um fato perfeitamente voluntrio da parte de CABRAL, e conforme as instrues secretas del-rei (FIDELINO DE FIGUEIREDO, Estudos de Histria Americana, p. 29, So Paulo).

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Cabral abrangeu com a vista vinte lguas de litoral, que creu ser de uma ilha, a que chamou de Vera Cruz. O Brasil-portugus de 1500 reduziu-se a uma ilha hipottica: trinta anos bastaram para que um continente inteiro brotasse daquela aventura. Deveras, o rei D. Manoel no deu nova terra a importncia que merecera; contentou-se de comunicar o seu achamento s naes e mandar-lhe uma frota de explorao, logo no ano seguinte, mais para ver que lucrar, com um intuito cartogrfico que visava, sobretudo, s futuras navegaes da ndia. VESPUCCI J em 1501 surge, nas costas do Brasil, um piloto, misto de astrnomo e aventureiro, Amrico Vespucci, florentino, que viera Amrica com Alonso de Ojeda, um ano antes de Cabral: o seu esprito expande-se por este litoral amplo, cho ao norte, difcil e montuoso ao sul. Vespucci pertencia raa dos Marcos-Polo: os viajantes-divulgadores, hbeis novelistas, que alimentavam com os seus relatos, algo fabuloso, a fome de civilizaes exticas que devorava a Europa de aps-cruzadas. Ligou o nome ao continente novo, batizou, com Andr Gonalves, chefe daquela frota de trs navios, os acidentes da costa do Brasil, desde o cabo de S. Roque at S. Vicente, de acordo com o calendrio cristo.3 De modo que, a 28 de agosto de 1501, viam o cabo de Santo Agostinho, a 4 de outubro a foz do rio de S. Francisco, a 1 de novembro a baa de Todos os Santos, a 1 de janeiro de 1502 o falso rio de Janeiro, a 6 a angra dos Reis, S. Sebastio no dia 20 e S. Vicente a 22. Dentro dessa onomstica havia de enquadrar-se a primeira colonizao, de um Brasil homogneo, o das tentativas de penetrao, que depois se desdobrou, pelo saarto dentro, pela ourilha do mar acima e abaixo, at limites de Espanha. A expedio de Vespucci, em 1501, retificou notcia do escrivo Caminha: no havia ilha de Vera Cruz, mas terra de Santa Cruz, que era tudo Amrica. E marcou-lhe o contorno, que passa a ser dos mapas, a partir de 1502, quando Cantino fez o seu: em dois anos a geografia se renovara.3 Porto Seguro, Histria Geral do Brasil, 3 ed., I, 114 (notas de CAPISTRANO DE ABREU).

28 Pedro Calmon BRASIL E ORIENTE Mas a Vespucci no animara o otimismo de Pero Vaz de Caminha: o pas pareceu-lhe desprovido de metais e sem outra riqueza alm da canafstula e da madeira de tingir, o pau brasil, que a Europa costumava importar da sia. Quando a ndia tinha os segredos e os tesouros de uma civilizao remota merc do primeiro almirante ocidental, aquela terra verde e pobre, povoada de um gentio que devorava o seu semelhante, como aconteceu a dois marujos no cabo de S. Roque, no havia de atrair os nautas-mercadores. E no atraiu. 4 A expedio de 1503, na qual voltou Vespucci, j comandando uma nau, foi um esforo isolado, a fim de apurar-se o primeiro lucro da longnqua colnia. Dois navios, dos seis com que Gonalo Coelho sara de Lisboa, abarrotaram-se de pau de tinta 5 6 em Cabo Frio, onde deixaram uma feitoria com vinte e quatro homens, e levaram a Portugal um conhecimento positivo do Brasil interior, at quarenta lguas dentro das florestas e montanhas, quantas entrou o florentino ardendo em curiosidade. Aspereza, selvageria, paisagem nada mais viu Vespucci, que supriu com os detalhes de uma fauna fantstica, que imaginou, a escassez de notcias sedutoras. Era um mundo brbaro; nada tinha de comum com as terras da especiaria. Esta decepo passa a refletir-se na poltica colonial do reino: o Brasil era uma promessa, a ndia a realidade. Por isso correram ao oriente os grandes de Portugal, como outrora corriam frica. E o oriente lhes bastou. Se no fosse a concorrncia estrangeira, o Brasil ressurgiria, para a colonizao, depois da runa da ndia: a sua histria sofreria um atraso de sculo e meio.4 5 6 Vd. o comentrio de MONTAIGNE, Essais, III, VI, sobre o abandono em que ficaram os canibais, por no terem os espanhis (portugueses) encontrado no pas deles os metais preciosos. Vd. carta de VESPUCCI, Notcias para a Histria e Geografia das Naes Ultramarinas, p. 153, Lisboa, 1812. curioso notar que Thomas Morus escreveu a sua clebre Ilha da Utopia, 1517, fantasiando o relato de um dos 24 companheiros de Vespucci...

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A disputa dos povos navegadores fez com que Portugal lhe desse as sobras do seu imprio transocenico: o Brasil, inicialmente, foi obra da emulao internacional. Entre perd-lo e resguard-lo, adotou a Corte de Lisboa o alvitre de transform-lo numa colnia de comrcio.7

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Vd. FRANCISCO DANDRADA, Chronica do muy to alto e muy to po de ro so rey des tes Reinos de Portugal Dom Joo o III, IV, 130, Coimbra, 1796. Refletiam esse desprezo pelo Brasil os cronistas das Dcadas. CAMES no reservou es pa o nos Lusadas para o Brasil...

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II A Experincia Feudal

conteceu que os judeus foram obrigados a emigrar, aoitados por uma perseguio feroz (1506). O seu instinto mercantil adivinhara as riquezas naturais do Novo Mundo. Teriam aqui tranqili8 dade e segurana. O Santo Ofcio no os inquietaria. Para o oriente foram os guerreiros: para o Brasil, os pacficos cristos-novos. Ferno de Noronha, em 1503, contratando o comrcio do pau-brasil,9 preconizou essa colonizao hebraica: era judeu, como tantos povoadores de Pernambuco e da Bahia no I sculo. mobilidade, facilidade de adaptao e humildade de vida, juntavam aqueles imigrantes a virtude da pacincia. Quando s se pensava em minas de ouro e no escambo das drogas orientais, eles agricultaram a terra, admirando a semelhana da sua flora com a de S. Tom, deram conquista do Brasil um aspecto puramente agrcola, e lhe determinaram o destino. Entre o Cabo Frio e o de S. Roque, as primeiras navegaes delimitaram a zona da madeira, a cujo trfico se entregaram, de 1503 a8 9 Sobre a iseno do S. O. que tinham os cristos-novos, vd. SIMONEM MARQUES, Braslia Pontifcia, I, 286, Lisboa, 1749. O homem que vinha ao Brasil, a fazer madeira de tinta, era brasileiro. Como o portugus, que passava ao Peru, era peruleiro (Dilogo das Grandezas, edio da Acad. Bras., p. 37).

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32 Pedro Calmon 1531,10 quase livremente, umas e outras acamaradadas dos gentios, expedies portuguesas e francesas. Foi a poca da extrao, que precedeu do cultivo, do comrcio, que antecedeu da lavoura, por isto capitulada na histria geral das navegaes. Os ndios distinguiam portugueses e franceses pela barba: os loiros eram franceses, como se v da relao da viagem de Gonalo Coelho (...e tinham quase todos a barba 11 ruiva...). Hans Staden confirma: Disseram-me que se tinha barba vermelha como os franceses, tambm tinham visto prtugueses com igual barba, mas eles tinham geralmente barbas pretas. 12 Os navios partiam de Honfleur (como o Espoir, 1503), Dieppe (nau Bretoa, 1511, Joo Ango), S. Mal, San Lucar (Solis, 1514), Corunha (D. Rodrigo de Acua, 1525), Lisboa ou Porto, indistintamente, arribando ao Brasil como a terra de todos, que j interessava aos portos da Bretanha quando a diplomacia portuguesa achou conveniente intervir. Em 1520 Schoener dividia a Amrica austral em duas partes: Braslia sine papagalli e Braslia inferior.13 O PAS O pas era alegre, os ares sos, os ndios domveis, pois conseguiram viver com eles alguns degredados, como o bacharel de Canania (1502-1530), um espanhol que foi encontrado, entre potiguares, de beios furados, o Caramuru na Bahia, Joo Ramalho no sul, depois Martim Soares Moreno no Cear. Os portugueses a desfrutavam sade: o piloto de Ferno de Magalhes, portugus, antes de guiar-lhe a armada volta do mundo, morara no Brasil quatro anos: um seu filho, tido de uma ndia, o acompanhou na grande viagem. Vespucci julgara-o como a um paraso: Terra mui salutfera..., acrescentaria Gndavo.14 Urgia, pois, defender o Brasil, garantindo a posse portuguesa: em 1516 foi mandado, com dois navios, Cristvo Jacques, para policiar a costa e deixar em algum surgidouro feitoria, moda das de frica.10 11 12 13 14 Vd. J. F. de ALMEIDA PRADO, no seu erudito ensaio Primeiros Po vo a do res do Brasil, p. 43 e segs., S. Paulo, 1935. PORTO SEGURO, Histria do Brasil, 3 ed., I, 100. Viagem ao Brasil, ed. da Acad. Bras., p. 87, Rio, 1930. SIEG. GUNTHER, La Epoca de los descobrimientos, p. 39, Barcelona, 1916. Tratado da Terra do Brasil, ed. da Acad. Bras., 1923.

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Fundou-a em Pernambuco. Essa feitoria floresceu; o capito Pero Capico experimentou a plantao de canas-de-acar e chegou a exportar algum, em 1521 o primeiro acar feito na Amrica; porm decaiu, entre 1521 e 1530, talvez por falta de gente, sendo afinal destruda por um galeo francs. Coube a Martim Afonso de Souza, em 1530, caar os corsrios franceses, reavivar os vestgios do domnio de Portugal e levantar outras povoaes, principalmente no rio da Prata, j procurado pelos navegantes espanhis. A expedio, confiada a um fidalgo poderoso, devia traar na geografia americana o mapa poltico. Demarcaria a colnia, distribuiria pela costa os povoadores, daria s feitorias um sistema administrativo e expulsaria os traficantes, estrangeiros. Duas naus, um galeo e duas caravelas bastaram para o empreendimento, que ainda os navios portugueses tinham sobre os estrangeiros a vantagem da pesada ar tilharia, que os ou tros navegantes no logravam montar nos seus barcos e fora uma das razes do sucesso nutico-militar de Vasco da Gama e dos outros almirantes da ndia. 15 Em Pernambuco, tomou Martim Afonso trs navios franceses; mandou dali para o norte, na direo do Maranho, a plantar padres de posse, Diogo Leite, com duas caravelas (descobriu este a costa leste-oeste at a baa de Gurupi); e seguiu para o sul, no rumo franco do rio da Prata, fim da sua viagem, porque era considerado o limite meridional do Brasil. Na Bahia encontrou o vians Diogo lvares, pelos tupinambs chamado de caramuru, que era como o chefe do lugar, casado com uma filha do morubixaba (Catarina Paraguau) e com larga descendncia mameluca. Refere a tradio que esse portugus, nufrago de 1509, fora depois Frana num navio de comrcio e l batizara a mulher, dando tambm ao representante de D. Joo III, rei de Portugal, completos informes da terra do Brasil. MARTIM AFONSO Sabemos, todavia, que a instncias do doutor Diogo Gouva, diretor de um colgio clebre de Paris, D. Manoel e D. Joo III no aban 15 GARCIA DE REZENDE, Crnica de D. Joo II , cap. 181.

34 Pedro Calmon donaram o Brasil, enviando em seu socorro as esquadras de 1516 e de 1530: restava indagar a origem de to certo conhecimento da Amrica que teria o doutor, destacado, como um embaixador comercial, na corte francesa. A Bahia, pois, estava ocupada. Martim Afonso surgiu no Rio de Janeiro, onde levantou casa forte e fez explorar o pas, durante dois meses, por quatro homens; e quatro meses depois foi fundear em Canania. Expediu dali uma fora de 80 homens, em companhia de um lngua que achou na terra, Francisco de Chaves, a dizer que podia entregar 400 escravos carregados de ouro e prata. Essa gente no voltou; parece que a trucidaram os carijs dos campos de Curitiba. Desceu mais Martim Afonso, sempre vista da costa: a sua capitnea encalhou na altura do Chu, houve de desistir da subida do rio da Prata, misso em que investiu Pero Lopes, seu irmo, autor do Dirio da Viagem e voltou a S. Vicente. Deparou a Joo Ramalho, to identificado com os goianazes como Caramuru com os tupinambs, e lanou os fundamentos de uma verdadeira colnia, a primeira que se construiu boa maneira portuguesa. Uma vila no chegava; levantou outra na fronteira margem da ilha de S. Vicente. Era a porta do Brasil. A civilizao franqueou-a, para ganhar o interior, planalto acima, desdobrando-se sobre os campos que se estendiam, abertos, at as paragens espanholas, o Paraguai ou o Peru: no norte, igual papel desempenharam as feitorias da Bahia e de Pernambuco. Em sentido divergente alargaram o meridiano portugus: o limite de Tordesilhas foi burlado ainda em 1530. Experimentava-se a necessidade de dar possesso uma fronteira natural considervel. Por isso Martim Afonso como Cristvo Jacques costeara o Brasil at o Prata; por isso as navegaes para o norte procuraram progressivamente o Amazonas, mar dulce de Pinzn, que os castelhanos do Peru desceram primeiro. A definio do pas antecedeu ao seu aproveitamento; s expedies de contorno se seguiram as de fixao. Em 1530 Martim Afonso fazia cartografia; em 1534 criou o Estado. Merc da sua viagem,

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por muito tempo se chamou do Brasil a margem esquerda do rio da Prata. Uma carta del-rei da Espanha, de 1594, falava em poblar un pueblo en esas provncias a la banda del Brasil16 CAPITANIAS A diviso em capitanias era uma lembrana feudal ajustada ao sentimento do tempo. Os fidalgos pobres do reino disputavam alguma senhoriagem para o seu patrimnio desfeito, e s em ultramar el-rei lhes daria, por que se povoassem as colnias. Na ndia as mesmas concesses prendiam os guerreiros, que l iam enriquecer e brigar. Nem el-rei gosta va da sua fazenda, nem recorria a medidas violentas para colonizar o Brasil: distribua-o em feudos de 100 e 50 lguas de litoral. A primeira doao foi em 14 de maro de 1534. Dos capites escolhidos, militaram alguns na ndia e eram bravos soldados: Duarte Coelho (Pernambuco), Francisco Pereira Coutinho (Bahia), Aires da Cunha (o norte), Vasco Fernandes Coutinho (Esprito Santo); Martim Afonso e seu irmo Pero Lopes ficaram com S. Vicente e Santo Amaro; Porto Seguro coube ao rico vians Pero do Campo Tourinho; Ilhus ao escrivo da fazenda da Corte Jorge de Figueiredo Correia; a costa leste-oeste a Fernando lvares de Andrade, tesoureiro-mor do Reino, a Joo de Barros, o historiador e quele Aires da Cunha e Antnio de Barros Cardoso; e Paraba do Sul a Pero de Ges, companheiro de Martim Afonso. O ACAR Apenas duas capitanias vingaram. A no ser em S. Vicente e Pernambuco, fracassaram todas as empresas, de grandes cabedais, incio do desenvolvimento mundial do comrcio que se aplicaram a explor-las: ou porque os portugueses s sabiam trabalhar para si, no para capitalistas, que, moda de Holanda, esperavam em Lisboa o seu provento, ou porque no se antecipara aos trabalhos um reconhecimento da terra e sua efetiva ocupao. Assim em Ilhus, Lucas Giraldes, que comprou a capitania ao seu donatrio, fez edificar oito engenhos, e tanto foi roubado pelo feitor (que depois se es16 LUIS ENRIQUE AZAROLA GIL, La Epo pe ya de Manuel Lobo, p. 31, Bu enos Aires, 1931.

36 Pedro Calmon tabeleceu no recncavo com engenho prprio) como pelos aimors, que tudo perdeu. Entretanto, prximos daquele floresceram outros engenhos, de colonos. Em Porto Seguro o Duque de Aveiro, que adquiriu a capitania a seu dono, igualmente mandou construir vrios engenhos, que pereceram. Vasco Fernandes Coutinho, donatrio do Esprito Santo e homem opulento, inverteu a riqueza granjeada na ndia em engenhos poderosos, e de tal forma lhe o atacou o gentio, que morreu sem lenol para a mortalha. Desgraa maior ocorreu ao capito da Bahia, que gas tou numa boa frota a sua fortuna, comeou dois engenhos, teve-os de molidos pelos tupinambs e acabou trucidado por eles, aps um naufrgio, na ilha de Itaparica. Pernambuco e S. Vicente prosperaram, porque inteligncia dos seus povoadores se aliou o interesse dos negociantes. A cana-de-acar, transplantada das ilhas da Madeira e do Cabo Verde, dera to bem ali que no reclamava rega, nem terra alta, nem adubo, como nos stios de origem. 17 Passaram a ser duas grandes estncias de acar; e de tal forma a lavoura progrediu, que em poucos anos os pobres colonos que vieram com Duarte Coelho, eram homens abastados, perdulrios e magnficos, dissipando com os seus cmodos uma renda pingue, que de ano a ano se renovava com as safras crescentes. de 1546 o incio das exportaes de Pernambuco. Criara-se uma riqueza-padro, e, conseqentemente, uma aristocracia colonial.18 O lucro do acar foi espantoso, porque simplicidade da in dstria, com o tosco engenho de gua ou o de trapiche movido por bois, se juntava copiosa mo-de-obra, primeiramente de ndios cativados, depois de negros de Guin. Em S. Vicente, Brs Cubas, procurador de Martim Afonso, introduziu o monjolo, que vira na China. No havia mquina mais singela que esse pilo dgua, que pisava o milho: tornou-se o aparelho usual do roceiro.17 18 GABRIEL SOARES, Tratado Descritivo, p. 154 (Edio Varnhagen). Confirmao da Lei de Montesquieu e de algum modo de Borin quanto s instituies, decorrentes do aspecto do solo.

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O engenho de acar foi a fbrica aristocrtica. Circulou por isso um adgio: Quem quiser o Brasil do Brasil, traga o Brasil para o Brasil isto , o capital, representado pelos escravos.19 Os prprios governadores-gerais, continuando a tradio dos donatrios, negociaram francamente em acar, desde Mem de S, at Diogo Luiz de Oliveira, a quem D. Luiz de Cspedes acusou de abarrotar os navios com a sua exclusiva mercadoria. Negociaram os militares, como os capites do forte de Recife, que tiveram tavernas at 1602, mandadas fechar pelo Governador Diogo Botelho; 20 negociaram os desembargadores, os fidalgos desterrados, como D. Francisco Manoel de Melo, os jesutas, e as ordens religiosas, os funcionrios do Estado, todos. Floresce Portugal. A sua moeda torna-se a mais conhecida da 21 Europa. OS ENGENHOS Martim Afonso, em 1532, associara-se a um holands, Eras mo Schetz, para montar o seu engenho, o dos Erasmos, o mais famoso do Brasil por aquele tempo. Parece que o mesmo Schetz lhe deu os planos; tambm era o intermedirio para os mercados flamengos. Enriqueceu de tal modo a firma que ele fundou em Holanda, para vender o acar de S. Vicente, que os Schetz se enobreceram e, pelo correr do sculo, se tornaram em famlia ducal (de Usel).22 Moa-se cana em Per nambuco, em 1538, porm decerto pelo sistema da ilha da Madeira,23 onde a produo do acar orara em cento e vinte mil arrobas no fim do reinado de D. Manoel.19 20 21 22 Cf. memorial ho lan ds, 1641, Revista do Inst. Archeol. Pernamb., V, p. 168. Revista do Instituto Hist., v. 73, vol. 5, parte I, 139. Shakespeare, in Othelo, faz Desdmona exclamar: Believe me I had ratter fave lost my purse Full of cruzadoes. (Act 3. sc. IV.) FERNANDO DONNET, Notes... lhistoire des mi gra ti ons des Anver so is, etc. in Pu blicaes do Arquivo Nacional, XIV, 30-1. O engenho de S. Jorge dos Erasmos foi mandado ven der pelos netos de Erasmo Schetz em 1593: pe di am por ele de 12 a 14 mil ducados. Duarte Coelho declarou, em 1549, ter mandado buscar homens prticos a Portugal e a Galiza e s Canrias s minhas custas e alguns que vm a fazer os engenhos...,(CAPISTRANO DE ABREU, nota a Por to Se gu ro, I, 230-1). D. Joo III mandara passar ao Brasil vrios lavradores de canas das ilhas.

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38 Pedro Calmon Na vila de Machico (donde passaram Bahia, em 1549, alguns fidalgos-agricultores, que naquele mesmo ano comearam aqui o plantio das canas, 24 prensa manual, anterior a 1542, sucedera o engenho dgua, e para atender aos pequenos lavradores havia o lagar do prncipe, comum a eles mediante certo imposto (um tero do gnero produzido), como no Brasil se praticou com os engenhos reais, de que nos do notcia Gabriel Soares e Frei Gaspar de Madre de Deus. 25 O mecanismo primitivo s foi modificado no governo de D. Diogo de Menezes (1608-1612) quando um clrigo espanhol do Peru trouxe um tipo de moenda constante de trs cilindros verticais, que por meio de entrosas se faziam girar com rotao do cilindro do meio. Um conjunto de circunstncias propcias protegeu a nascente indstria. O acar fora aceito por toda a Europa como um condimento indispensvel. Ainda em 1577 o Rei D. Sebastio encantava a Corte de Espanha com doces e outras guloseimas de acar, coisa rara em Castela segundo o cronista.26 O preo, to deprimido em 1497 que fora el-rei forado a reduzir as exportaes de Madeira, subira ao dobro ou triplo nos mercados de Flandres (principal entreposto e da um velho interesse holndes pelo Brasil), de Veneza e Inglaterra. As pedras do Malabar e o ouro de Sofala esgotavam-se; mas os judeus, que vendiam acar, enriqueciam, a termos de estender-se a cultura da sacarina pelos Aores e Canrias, febrilmente fomentada, a ocupar grandes organizaes financeiras que teciam, entre vrias praas europias, a rede do crdito. Duarte Coelho contou em Pernambuco com o auxlio daqueles capitalistas-comissrios; sub-rogavam-se nas responsabilidades do governo para intensificar, criar uma economia, que lhes devolveu com alto juro os cruzados do emprstimo. No houve melhor negcio na24 25 Cartas do Brasil, p. 89, ed. da Acad., Rio, 1931. Mem. para a hist. da capitania de S. Vicente, ed. Taunay, p. 171. Tambm os Dilogos das Grandezas do Brasil: os mais ricos tm engenhos com ttulos de senhores deles, nome que lhes conce de Sua Majestade em suas cartas e provises, e os demais tm partidas de canas... (Edio da Acad. Bras., p. 33). J em 1549 Duarte Coelho dizia que os mais poderosos faziam engenhos, outros os canaviais... (CAPISTRANO, nota a Porto Seguro, I, 230). Frei BERNARDO DE BRITO, Crnica de el-rei D. Sebastio, p. 166, Lisboa, 1837.

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poca e os impulsos dessa cobia resolveu D. Joo III a dar ao Brasil um governo regular. Em 1549, depois de ter comprado aos herdeiros de Francisco Pereira Coutinho a capitania da Bahia, mandou Tom de Souza fundar a capital da colnia.

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III A Colonizao As suas Determinantes e os seus Rumos O Homem

t 1549 o Brasil era pouco mais que as duas feitorias aucareiras, S. Vicente e Pernambuco, constringidas ambas pelo gen tio, e uma srie de pequenos estabelecimentos isolados no litoral, vi vendo das suas transaes com os selvagens, ora amigos e brandos, ora adversrios implacveis, e da extrao da madeira, principal ou nica riqueza, de Itamarac para cima. 27 No se sabia onde acabava aquela costa, nem o que havia no interior. No Norte, os ndios, no Sul, a serra do Mar, impediam ainda uma penetrao; fora era conquistar duplamente a terra, fechada e defendida, populao indgena que vagava sombra das montanhas e das florestas. A criao de um governo geral, trazendo, com a cidade o jesuta a catequese religiosa a par de um mtodo de ocupao resolvia a um tempo o problema da posse e da paz, entre forasteiros e caboclos. A colonizao tornou-se prontamente associativa e expansiva.27 CAPISTRANO, Nota a Porto Se guro, 1, 228.

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42 Pedro Calmon BAHIA O gnio colonial portugus nada mais belo imaginou do que a capital do Brasil quinhentista, levantada, entre 29 de maro e 6 de agos to de 1549, com toda a sua aparelhagem municipal, numa colina sobranceira baa de Todos os Santos. Os seis jesutas que acompanharam o governador representavam a ordem eclesistica. Tom de Souza, com os seus trezentos e vinte homens darmas (que todos logo depois se tornaram agricultores), era o Estado militar. Quatrocentos degredados (afinal assimilados pela sociedade incipiente) formavam o povo. Uma vereana extraordinria, eleita segundo as praxes dos conselhos de Portugal, transportara para o Brasil a entidade comunal. Tinha Salvador nome que D. Joo III deu cidade mil almas, e j os casebres de taipa, segundo o seu destino, eram pao do governo, casas do conselho, alfndega, cadeia. 28 Em quatro meses fixara-se aquela gente num stio defensvel por quatro faces,29 murara-o, arruara-o, abrigara ali uma administrao, erguera a sua S de palha (a igreja da Ajuda), artilhara a muralha, por sinal to provisria que em vinte anos desapareceu, e instalara uma capital, com o seu funcionalismo, a sua justia, os seus armazns. De comeo, trabalharam todos, na promiscuidade mais completa, no se furtando o governador, ao lado dos padres, a ajudar os artfices, como se uma vida nova acabasse aqui privilgios e diferenas de Portu gal. Um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar no Brasil, havia de dizer o Padre Vieira. Essa idia de vida nova a impresso inicial do colono ao embarcar para a sua longa travessia. O oceano era mais que uma distncia; era uma ciso. Desde as primeiras expedies, o europeu que imigrou fez na Amrica uma vida em tudo diversa da que tivera at ento. De acordo com o meio, o clima, a gente que encontrou na Amrica. Ultra equinoctialem non peccari. Ele transformou-se.28 29 Em 1563 o colgio da Companhia comeou a ser construdo em for ma de fi ni ti va. A Ajuda estava pronta, de pedra e cal, dez anos de po is. As obras do Pao do Governador ficaram concludas em 1623 (Documentos Histricos, XX, 48). FRANCISCO DANDRADA, Crnica de D. Joo III, I v., 132.

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O homem... O homem era o portugus o ma ri nhe i ro das ar madas, o colono, campons lo iro do nor te de Portu gal, ne go ci an te mo reno, ju deu ou mouro, ho mem darmas de Lisboa... (produto de muitas ra as his tricas, porm geralmente bran quiide, ner voso, in quieto, homo Me diterraneus) . Era o n dio . E era o ne gro. O NDIO O ndio falava, na maior extenso da costa, uma lngua comum: o tupi. Mas as suas procedncias eram vrias, seus tipos antropolgicos diversos, como distinta a sua cor (havia abajus e abanas, claros e escuros), peculiares os seus costumes, o idioma inconfundvel. O tupi litorneo foi o inimigo virtual do tapuia sertanejo, que ele vencera nas regies ribeirinhas, repelindo-o para o interior. O tapuia era o gentio das lnguas travadas, o que no pertencia comunidade tupi e vivia mais barbaramente do que o ndio da costa, posto em entendimento com os brancos, e por estes influenciado desde as primeiras viagens. Os grupos indgenas principais seriam (segundo Martius): I. Tupis e guaranis os guerreiros; II. Gs ou Crans os cabeas; III. Guck ou Coco os tios; IV. Crens ou Guerens os velhos; V. Parecis ou Poragis os de cima; VI. Goitacs os corredores da mata; VII. Aruak ou Aroaquiz a gente da farinha; VIII. Lengoas ou Guaicurus os cavaleiros; IX. ndios em transio para a cultura e a lngua portuguesa.30 Von den Steinen refundiu aquela classificao, identificando, alm de tupis e gs (ou tupis e tapuias, que so os grupos propriamente histricos), os carabas, ou nu-aruaks, os goitacs, os panos, os miranhas e os guaicurus. Estendem-se os carabas (vindos das Antilhas) pela bacia amaznica tendo alcanado, no sculo XVII, a margem norte do rio de S. Francisco: caraba era a tribo dos pimenteiras, do sul do Piau. Os30 Vd. a sinopse de RODOLFO GARCIA, Etnografia, Dicc. do Inst. Hist., I, 251; e a smula do assunto por ANGYONE COSTA, Introduo Arqueologia Brasileira, cap. III, S. Paulo, 1934.

44 Pedro Calmon nu-aruaks, modificados pelas civilizaes americanas do golfo do Mxico ou do Peru, deram o homem de Pacoval, o mais perito oleiro dentre todos os indgenas, cuja cermica marajoara (na embocadura do Amazonas, onde podiam ter encalhado restos da cultura incsica escoados rio abaixo), sem igual na arqueologia brasileira. Panos e Miranhas so povos dispersos pelas florestas de Mato Grosso e de vrios afluentes do Amazonas. Aos primeiros pertencem os ca-xinaus. Por fim os guaicurus, os ndios cavaleiros do pampa, errantes entre os campos do Rio Grande do Sul e os pantanais do Paraguai, formavam uma exceo, prpria ao seu meio pastoril e ao contato de outras tribos sanguinrias, como os paiagus, na barbrie continental.31 O tupi era o mais assimilvel e inteligente. Pescava, navegava nas suas canoas monxilas ou entranadas de palha, era igualmente agricultor, cultivando em roas temporrias a mandioca, o milho, a batata, o fumo, e as mulheres coziam o barro, em que moldavam um tosco vasilhame, melhor do que a cuia dos tapuias, e teciam fibras moles para as redes (toda a sua comodidade) e os ornamentos. 32 Construam casas de coivaras, cobertas de pindoba, em geral vastas cabanas que comportavam at trinta famlias, e as suas aldeias tinham ao redor paliadas, que as defendiam. No conheciam a propriedade particular, nem outra economia coletiva alm da conservao da caa ou da pesca moqueada, para o indistinto consumo da tribo. O que era de um era de todos.33 O tapuia, entretanto, desafeito agricultura, errando pelos matos, desconhecendo a rede, porm dispondo de armas mais perfeitas que os tupi-guaranis nem construa aquelas aldeias nem se mostrava acessvel ao comrcio dos civilizados. 34 Fosse porque eles se aliaram aos31 32 Vd. A. METRAUX. La civilisation matrielle des tribus tpi-guarani, Paris, 1926; e La civilisation matrielle et la vie sociale et religeuse des indiens de le Brsil meridional , Rev. do Inst. de Etnologia. Tucuman, 1930, tom. I. Histoire vritable dun voyage curieux fait par ULRICH SCHMIDEL de Straubing, dans lAmrique ou le nouveau monde, Nuremberg (1599), p. 244. Vd. a sntese de ANTONIO SERRANO, Historia de la Nacion Argentina, I, 532, Buenos Aires, 1936. PADRE MANOEL DA NBREGA, Cartas do Brasil, edio da Academia, I, p. 91; HANS STADEN, Viagem ao Brasil, cap. XX; GABRIEL SOARES, Tratado Descritivo, edio Varnhagen, p. 318. GONALVES DIAS, O Brasil e a Oceania, pgs. 63 e 74, ed. Garnier.

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tupis, seus inimigos remotos, fosse pelo seu insupervel pendor guerreiro, o tapuia continuou a ser, pelo tempo adiante, o hostil, o adversrio, o selvagem, a quem se havia de exterminar, no de apaziguar. As mais ferozes guerras feitas pelos colonos aos indgenas visaram os gs do Nordeste (Cear, Rio Grando do Norte, Paraba, rio de S. Francisco e Piau), do Esprito Santo e Porto Seguro (aimors) e Campos de Goitacases, da bacia do Paran (guaicurus, coligados com paiaguases nos rios Paraguai e Guapor). A arma predileta do tupi era o tacape ou espada-maa, que Thevet e Lry descreveram, fabricada de uma dura madeira e com o punho embrulhado em tecido de palha (atarabb). Mas o tapuia de preferncia usava a azaguaia, ou dardo de arremesso, e como defesa a rodela. Distinguia-se ainda pelo uso de bodoques nos lbios e orelhas, inaptido para pesca ou a navegao, na qual s empregava a balsa, e o hbito da dormida na floresta, junto de uma fogueira, sem a choa nem a rede dos tupis. Da diziam os cronistas serem invencveis os tapuias, nmades, que no ofereciam aos colonos uma resistncia fixa, nem tinham 35 povoaes onde pudessem ser atacados, como os gentios da costa. O NEGRO Da frica viera o negro para os trabalhos da lavoura, em que se mostrara superior ao ndio. A economia da colnia, os interesses do comrcio e da Coroa, a prpria religio (pois os jesutas, defendendo intransigentemente a liberdade dos indgenas, aconselhava a substituio deles, na roa, pelos negros da Guin) orientaram para o Brasil uma migrao negra que, por trs sculos, sangrou os vastos reservatrios humanos dfrica. Foram primeiramente os homens da Guin (at 1811), depois os do Congo, j a partir de 1548 os de Angola, 36 trazidos aqueles baa de Cabinda, pelo rio Zaire, por sobas, vidos do troco, e predadores portugueses; em seguida o trfico lanou os braos a toda a provncia de Angola, e envolveu o sul do continente, at Moambique,35 36 GARCIA, Diccion. do Inst. Hist., I, 262. Doc. in VISCONDE DE PAIVA-MANSO, Histria do Congo, p. 84 Lisboa, 1877. Do Comrcio portugus, para Mina do Oro j falava Vespucci, 1508, Cartas de ndia, p. 91, Madri, 1878.

46 Pedro Calmon tornando o negcio de escravos o mais lucrativo e amplo da terra. Os prprios rgulos vendiam os cativos, feitos por diversos modos, fossem prisioneiros de guerra ou condenados escravido pelas suas dvidas ou pequenos delitos. Os negociantes s tinham o trabalho de recolh-los aos portos, onde em vastos trapiches se acumulavam os pretos, postos em ferros, espera de navio que os transportasse. O seu preo era sempre nfimo, em relao ao que obtinham na Bahia ou em Recife. De comeo, a moeda corrente foi o bzio do sul da Bahia, muito apreciado pelos africanos.37 Depois, com o desenvolvimento das plantaes de tabaco na Bahia, passaram a ser os rolos de fumo o dinheiro em voga. Trs rolos de tabaco ordinrio valiam um negro. Este mesmo escravo era vendido no Brasil por 150$ e 200$. Era haussa, gge ou nag, do norte, ou bantu do sul da frica. O primeiro, belo tipo de trabalhador, distinguia-se pela sua religio muulmana, em conseqncia de anterior comrcio com os rabes: era um negro altivo, econmico, asseado, guerreiro; as suas tribos foram as mais belicosas da regio do Nger. Os gges eram fetichistas, como os demais africanos, e falavam uma lngua geral, o iorub, mais conhecida no Brasil pela designao de nag, nome de um dos grupos de pretos da Costa dos Escravos, importados em grande quantidade no decorrer dos sculos XVII e XVIII.38 Os gges seriam preferidos para os servios domsticos, alcanavam altos preos como escravos dceis, e formaram a mais densa populao negride das nossas cidades, enquanto os pretos de piores qualidades (bantus), como os congos, eram mandados para minas e para os campos, onde o seu crescimento vegetativo foi por isso muito inferior ao dos minas. A diversidade das lnguas (cujo estudo a to pouco interes39e das raas, entre os pretos importados, salvou o Brasil de uma sou) conquista africana, que por vezes o ameaou, apesar das desavenas37 38 FREI VICENTE DO SALVADOR, Histria do Brasil, 3 ed., p. 99. MARTIUS, Atravs da Bahia, trad. de Piraj da Silva, 2 ed., p. 96; NINA RODRIGUES, As Raas humanas, Bahia, 1894, LAnimisme ftichiste des negres de Bahia, Bahia, 1900; MANOEL QUIRINO, A Raa Africana e os seus costumes na Bahia, Ann. do 5 Congresso Bras. de Geogr., vol. I; ARTUR RAMOS, Os Horizontes Mticos do Negro na Bahia, Bahia, 1932, e O NegroBrasileiro, p. 29, Rio, 1934. Cf. memorial do arcebispo da Bahia, Revista do Inst. Hist., vol. 65, I, 341.

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irremediveis e repugnncias que separavam aqui os escravos das vrias procedncias, que tinham outros cultos e falavam outros dialetos. Assim em Minas Gerais: uma grande rebelio de escravos s fracassou porque angolas e minas queriam reis diferentes dizia a carta-rgia de 18 de junho de 1725. 40 Na Bahia todos os levantes de negros tiveram a mesma causa de pronto malogro. INFLUNCIA INDGENA Do ndio adotou logo o colono numerosos hbitos, abandonando os da Europa. Construiu como ele a choa com a fibra da embira ou do timb. Assim Estcio de S, desembarcando no Rio de Janeiro, em 1565, fez os tujupares, que so umas tendas ou choupanas de palha, para morarem....41 Fortificou-se como o ndio, nas cercas de pau-a-pique. Vestiu um forro de algodo, em lugar de couraa, e que constituiu a defesa predileta dos bandeirantes.42 Substituiu o trigo pela mandioca. Aprendeu a moquear a carne, para conserv-la. No quis outra cama alm da rede, que era para os tupis o nico traste. A rede (bang) tambm a sua mortalha. A rede (serpentina) tambm o seu veculo. No trabalho do campo imitou o 43 n dio, derrubando e queimando para a plantao, e cobiando sempre terras novas, numa ocupao progressiva do solo. Conquistado o Cabo, por exemplo, o donatrio de Pernambuco repartiu as terras (dos ndios expulsos) por pessoas que as comearam logo a lavrar, as quais, como acharam tanto mantimento plantado, no faziam mais que com-lo e plant-lo da 44 mesma rama e nas mesmas covas. Os sertanejos ainda agora andam como os ndios, isto , uns atrs dos outros, por um carreiro como formigas.45 Fumam o mesmo pito. O seu alimento para a jornada a mesma farinha de guerra. A canoa, com que passam os rios, igual canoa tupica, de uso universal no Brasil. O feiticeiro exerce a mesma influncia e a teraputica sertaneja toda indgena (a suco das feridas para expelir o mal, o emprego de inmeras ervas, as mezinhas).40 41 42 43 44 45 Annaes do Archivo Nacional, XV, 76. FREI VICENTE DO SALVADOR, Hist. do Bras., 3 ed., p. 181. FREI VICENTE, ibid., pgs. 57-59. GABRIEL SOARES, op. cit., p. 360. FREI VICENTE, ibid., p. 201. FREI VICENTE, ibid., p. 66.

48 Pedro Calmon Do ndio, tem o sertanejo a natural imprevidncia, a resignao, a incapacidade de poupana. A sua indstria caseira (balaios, esteiras, tecidos de algodo que as mulheres fiam, a cermica de barro) indgena. Conserva do ndio a atitude habitual de descanso, de ccoras, a maneira de trazerem as mes os filhos s costas, o jeito de desbravarem o mato e descobrir-lhe as veredas. Comem na cuia, guardam as reservas no jirau, defumam os legumes, como os tupis o faziam no sculo I; e a modo destes, no bebem quando fazem as refeies. O colono contemporneo de Tom de Souza, adaptou-se, imitando o gentio. Por isso a histria social da Amrica nada tem de comum com a da Europa: respira o ambiente, transuda esse ar mido das nos sas bacias hidrogrficas... A ESCRAVIDO O ndio, para ser til, devia ser ensinado; os jesutas estudaram-lhe a lngua e o atraram ao convvio dos brancos. Associaram-no vida colonial, incutindo-lhe a f crist o tornaram assimilvel, fizeram do selvagem um instrumento de trabalho. Mas no bastava o ndio. A principal riqueza era a cana-de-acar, cujo granjeio no se afazia do ndio, refratrio vida sedentria; foi necessrio ir buscar frica o negro. Interessava ao Brasil, como brao, e frica, como comrcio. Sem a lavoura do Brasil as conquistas portuguesas de costa dfrica pereceriam naqueles tempos de indeciso colonial, sempre as correntes migratrias procura de fortuna fcil. De 1575 a 1591, a exportao de escravos de Angola subira a 25.053, protegido o trfico para o Brasil por uma diminuio de direitos, 100%, em relao ndia. 46 No comeo do sculo XVIII, s a Bahia importava 25 mil por ano. 4746 47 VISCONDE DE PAIVA-MANSO, Histria do Congo, pgs. 84 a 140. L. G. DE LA BARBINNAIS, Nouveau voyage outour de monde, III, 180, Paris, 1728.

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Entre 1550 (incio do trfico negreiro) e 1850 entraram no Brasil de 6 a 8 milhes.48 medida que prosperou a indstria aucareira, o negcio de escravos floresceu: e at que ambos esses interesses, pelo seu vulto, caracterizaram a economia ultramarina.49 Ora, o negro, despejado aos milhares numa terra parecida com a sua frica, de paisagens e climas semelhantes, no perdeu as qualidades puramente raciais, acrescidas do seu cabedal mtico; o negro introduziu no Brasil (regio agrcola: zona de expanso do africano) novo Guin, na frase do escritor dos Dilogos das Grandezas, o contingente de lendas e crenas, que, enriquecido das indgenas, temperou a simplicidade, a credulidade e a timidez do povo ibrico, embebido de medievalismo. Na primeira gerao, o colono era um impressionvel, hesitante entre as formas sociais primitivas que surpreendera na Amrica e as suas tradies cultas; ento o fidalgo darmas servia os ofcios de justia e o cavaleiro se afazendava como o plebeu de sangue mourisco. Na segunda e demais geraes absorveu, com crescente abandono do atavismo europeu, os costumes brbaros que o cercaram e empolgaram. A revogao das Ordenaes do Reino, na parte relativa aos processos, coincidiu com as primeiras aplicaes do direito ptrio. Pero de Ges, comandante da frota guarda-costas, lembrara em 1551: para a colonizao desta terra ir avante, era necessrio em muitos casos deixar de seguir as Ordenaes, que tinham sido feitas no havendo respeito aos moradores do Brasil.50 Em S. Vicente, os costumes alteraram as leis portuguesas des de 1543, quando se decidiu por vereao, que uma s testemunha bastaria para qualificar o delito de detrao... 51 Assim, por uma troca de influncias, sensvel desde 1549, o indgena, o negro e o branco, coabitando na terra ampla e misteriosa, porm deles, criaram um indivduo mdio e uma sociedade mdia, que, por serem locais, j eram brasileiros.48 49 50 51 ROBERT O SIMONSEN, Histria Econmica do Brasil, I, 205, So Paulo, 1937, cal cula em 3.300.000 a importao total de escravos. PEDRO CALMON, Esprito da So ciedadeColonial, pgs. 165 e segs. PORTO SEGURO, Histria do Brasil, 3 ed., I., 311. FREI GASPAR, Histria da Ca pi ta nia de S. Vicente, p. 173.

50 Pedro Calmon Os jesutas concorrem intelectualmente para esse abrasileiramento do colono, fazendo-se indianistas metidos com os caboclos para convert-los, adotando-lhes os linguajares, por fim usando os seus utenslios, adaptando-os sua rude peregrinao. Em vez de europeizar-se o selvagem, foi o branco que se indianizou,52 a suprir a insuficincia dos seus recursos com os da terra. O jesuta possua, sobre todos os outros homens, a vocao de congraamento, que to bem desempenhou na China: no Brasil, a sua obra de uma profunda intuio humana. Explica parte da evoluo nacional; pelo menos este Brasil mameluco, mestio, harmonioso na aparente confuso tnica,53 afinal equilibrado e como veremos quase homogneo.

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H sempre nas alianas de ndios e portugueses no Brasil uma figura feminina, que os aproxima, purificando em amor o sacrifcio da sua raa. a Paraguau na Bahia, a Arco-Verde em Pernambuco e a Tibiri em S. Paulo. Uma Margarida amansou os ai mors, se gundo Frei Vicen te do Salvador; ca sando com uma ndia, me de Robrio, Belchior Dias se congraou com os tapuias do Nordeste; os jandus fizeram pazes por intermdio de uma rapariga que Joo Pais Florio tirar a da taba; Manoel Pires Maciel pa ci fi cou o alto S. Francisco por meio de Catarina, a filha do chefe caiap, com quem casou... GILBERTO FREIRE, Casa Grande & Senzala, p. 88, Rio, 1934. Hbrida desde o incio, a sociedade bra si le i ra de to das da Amrica a que se constituiu mais harmoniosamente quanto s relaes de raa...

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IV A Unidade Virtual Fisionomia Geogrfica do Pas

catequese dos ndios, acompanhando a caa aos ndios pelos escravizadores, a luta pela pos se da terra, a cor ri da s minas, deslocaram para o sul, para o norte e para o centro as foras colonizadoras que ainda no se tinham imobilizado nos canaviais. As dificuldades de assistncia entre os brancos e indgenas, os conflitos polticos (governo de Duarte da Costa, 1554), a primeira liga de selvagens e franceses (governo de Mem de S, 1560) contra a dominao portuguesa, no puderam desviar dos seus rumos aquela civilizao que se infiltrava e alargava. Sentira-se, logo aps a criao do governo-geral, que as determinantes geografias impeliam os rudes e vidos colonos ao descobrimento de um imprio imensa rea em que Portugal, renovando-se, expandiria a sua raa. A verdadeira unio nacional no Brasil, psicolgica, traziam-na em mente os homens do sculo I; deveras, este pas, que contm tantos pases, foi um s na viso de conjunto, totalizante, do portugus que o achara. ... Tem esta terra mil lguas de costa, toda povoada de gente que anda nua...54 em 1549 escrevera um jesuta.54 Cartas do Brasil , ed. da Acad. Bras., I, 97.

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52 Pedro Calmon Nenhuma das atuais naes da Amrica foi assim homognea nos seus comeos: e continuou homognea na sua evoluo. Brasil chamou-se toda a terra; um s governador-geral (que a efmera diviso em dois governos, 1573, foi uma breve tentativa de desmembramento) o administrou, zelando sobretudo a conservao e defesa do pas; um s idioma o unificou, feito do portugus influenciado pelo tupi, idioma mameluco tambm: 55 a mesma predominncia do fator fsico se lhe revelou, de um a outro extremo. Os jesutas foram um agente ativssimo dessa homogeneizao, mas s leis da geografia humana cabe a maior responsabilidade do macio brasileiro. Os missionrios orientaram a penetrao; eram-lhe os olhos vigilantes, a lngua pacificadora. A unidade do Brasil, porm, j fora adivinhada pelo ndio. Um conto tupinamb dizia que o Brasil era o pombo, cujo corao ficava na Bahia.56 A distribuio das raas indgenas parece tambm antecipar-se geografia poltica, pela coincidncia entre o bloco tupi-guarani e o territrio da Amrica portuguesa. 57 A colonizao lusa substituiu, em todo o seu vasto habitat, aquela grande raa, que em parte assimilamos ou eliminamos.55 Vd. TEODORO SAMPAIO, Revista de Filologia e Histria, fasc. IV, 465-72. A pa ten te de no me a o de Dio go Coelho de Albuquerque para capito-mor do Cear notava: ... e ter muita experincia... e prtica dos ndios, e saber-lhes a lngua... (1465, Rev. do Instituto do Cear, XXVI, 43). Em algumas capitanias, como em So Paulo, Rio Grande do Sul, Ama zo nas e Par, onde a ca tequese mais influiu, o tupi preva le ceu por mais tempo ain da. Nas duas primeiras falava-se entre os ho mens do cam po a lngua geral at o fim do sculo XVII. (TH. SAMPAIO, O Tupi na Geografia Naci o nal, Rev. do Inst. da Bahia n 54, p. 51). FREI VICENTE DO SALVADOR, Histria do Brasil, pp. 102-3. o que se verifica do mapa de A. MTRAUX, La civilisation matrielle des tribus tupi-guarani, p. 9, Pa ris, 1923. A li nha oci den tal da ex pan so tupi-gua ra ni pas san do pelo esturio do rio da Prata, subia o Paraguai, e pelo GuaporMadeira, atingia o Amazonas, diluindo-se na bacia imensa. So bre a unidade, ddiva da natureza, SLVIO ROMERO, Ensaio de So ci o lo gia e Literatura, p. 111, Rio, 1900.

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Restaria, para devidamente estimarmos a influncia da fisiografia brasileira, considerar que qualquer colono, em lugar do portugus, observada a igualdade de situaes, faria o que ele fez. Sim, o relevo da terra, o seu sistema fluvial, as condies da cabotagem, o meio enfim, esboaram a histria do Brasil; sumariaram o captulo que o homem escreveu. De algum modo, pode-se ler a evoluo do Brasil no seu mapa, na sua distribuio de populaes, o devassamento da terra, a procura das fronteiras, o sentido da poltica exterior e geogrfica, que a natureza assim nos deu. Resumamos a lio do mapa e vejamos como o homem modificou a fatalidade das leis naturais. O CENRIO O Brasil (figura de uma harpa, j dissera Frei Vicente)58 59 tem uma extensa costa de 9.200 quilometros, extremamente pobre de acidentes que a beneficiassem. Faltam mediterrneos, pennsulas, gol fos, ilhas considerveis...60 As reintrncias, que permitiam navegao um repouso, vestbulos do continente, eram o esturio amaznico, e, passando as lagunas entre o Par e o Maranho, S. Lus, a foz do Parnaba, o Apodi, o Potengi, o Paraba, o Capibaribe, o S. Francisco, Au da Torre, a Bahia, Ilhus, Porto Seguro, Vitria, Cabo Frio, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Santos, Canania, Paranagu, S. Francisco do Sul... Logo se assinalaram por povoaes, obras de defesa ou estabelecimentos de comrcio,61 vivazes, embora isolados, merc da difcil, muitas vezes impossvel intercomunicao, pois o regime dos ventos dividia a cabotagem em quatro sees. Isolamento, entretanto, que obstava a ida, e tambm tornava improvvel a volta, e assim fixava e nacionalizava. Da o retardamento da conquista da costa LesteOeste, sendo no I sculo o58 59 60 61 Histria do Brasil, p. 19. Corresponde a um alongamento de 57% sobre a linha poligonal envolvente que de 5.864 quilmetros. ALFREDO LISBOA, Dicionrio do Instituto Histrico , I, 40. CAPISTRANO DE ABREU, Captulos de Histria Colonial, 1 ed., p. 1. As migraes, disse A. C. HADDON, seguem a linha de menor resistncia e se escoam pelas zonas ou canais abertos entre as barreiras. (BRUNHES & VALLAUX, La Gographie de lhistoire, p. 245).

54 Pedro Calmon cabo Calcanhar um novo cabo No, e a navegao entre o Maranho e Cear, uma das mais dificultosas e trabalhosas de todo o mar (Ant nio Vieira), s possvel no inverno.62 As correntes e ventos favoreciam as comunicaes entre Pernambuco e a Bahia, normais antes da abertura do caminho do S. Francisco (1590), e facilitavam o comrcio entre a Bahia e as capitanias do Sul, de modo tal que raramente se fez por terra a viagem para Ilhus, Porto Seguro e Esprito Santo, ncleos de abastecimento, pelas farinhas e madeiras, das frotas del-rei. Entre o Rio de Janeiro e S. Vicente a navegao era constante e sem perigos, pela variedade de abrigos que havia no litoral e regularidade dos ventos, o mesmo sucedendo at a ilha de Santa Catarina, que deixou de ser espanhola em virtude dessa proximidade martima de Santos, que no tolerara a existncia do estabelecimento castelhano donde Cabeza de Vaca, em 1547, partira para o Paraguai. De outro lado, a cordilheira do mar, obstculo primeiramente, foi depois proteo da Amrica portuguesa, como fortaleza natural que desenvolve a sua muralha de Santa Catarina ao Esprito Santo, deixando entre os contrafortes e o oceano uma fmbria frtil, onde mariscaram colonos e estrangeiros, sem verdadeiro domnio sobre o pas. Gra as cordi lhe i ra que, negan do profundidade, dava exten so conquista os cors ri os que as saltaram Santos, como Cavendish, no atingiram S. Paulo, e no houve frota de inimigos, desde Piet Heyn (mesmo a que devastou em 1640 o recncavo baiano), que fizesse render Vitria do Esprito Santo, posta no cncavo das suas abruptas montanhas. A escassez daquela faixa martima condenaria vida medocre de entrepostos as povoaes que a cresceram: Desterro, Paranagu, Santos, Angra dos Reis, at o sculo XIX Vitria. Mas desempenhou o seu papel histrico de ampliar a posse ao longo do litoral, e defend-lo;62 Vd. CAPISTRANO DE ABREU, Os Ca mi nhos antigos e povoamento do Brasil, p. 107, Rio, 1930. O Padre Serafim Leite descobriu ou tra car ta de Vi e i ra, do rio das Amazonas, 21 de maro de 1661, em que revela: de oito embarcaes do Maranho, s uma chegara a Pernambuco... (Jornal do Commercio, 24 de outubro de 1937).

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por isso, quando a explorao intensiva do Brasil lhe granjeou a grande riqueza dos sculos II e III, a terra toda era lusitana. O serto veio mais tarde: a fachada precedeu casa, como a muralha precedia, nos castros, cidade. S no Piau a civilizao rumou do interior para o litoral: um farto adstrito bacia do S. Francisco. A serra do Mar tornou tambm independentes os movimentos de expanso, de Santos para Paranagu e Laguna, e da colnia do Sacramento, e de S. Paulo a Itu para as Misses e o rio Paraguai. O homem do planalto no sabia o que o homem da baixada tentava. Erguia-se entre eles o vasto divisor de guas da cordilheira. Por isso, algum tempo, quando se instalou a capitania de S. Paulo e minas do Ouro, Santos e a orla martima, at a extrema do Brasil, puderam ser desanexados daquela e dados do Rio de Janeiro erro administrativo, que logo se desfez.63 A enormidade do territrio e sua fisionomia geogrfica, determinantes do isolamento dos grupos, engendrou a nossa sociedade de tipo atomstico (Oliveira Viana), que no conheceu a forma cooperativa seno acidentalmente, e se conservou, desde a era do acar at do caf, estruturalmente individualista. No somente a ausncia de solidariedade, tam bm a descoordenao do povoamento tornou impreciso e hesitante, espontneo e sinuoso o movimento de conquista e aproveitamento da terra. O Brasil desenvolveu-se caracterizado pela independncia do homem em face de ao reguladora do Estado, apenas limitada no sculo III, em razo das exploraes mineiras, mas vitoriosa nos refolhos e na amplitude do pas. Comeava pelo fator portugus, misto de clandestinos religiosos (judeus) e sociais (degredados), que se adaptaram imediatamente ao meio novo e criaram aqui uma individualidade diferente: a rebeldia favoneada pela liberdade. Mamalucos, notados j em 1549 por Hans Sta64 den, ndios corrompidos pelos traficantes, mulatos e pretos forros ou fugidos, formaram o grosso da populao, indiferente aos preceitos63 64 AFONSO TAUNAY, artigo no Jornal do Commercio, 3 de Janeiro de 1932. Viagem ao Brasil, ed. da Acad., p.55.

56 Pedro Calmon polticos, seduzida pela vida livre, preferindo a sua emancipao, do campo, s coibies da cidade, esta hierarquizada e policiada como em Pernambuco, na Bahia, em S. Paulo. A histria do Brasil teria de refletir esse desequilbrio de origem, entretanto concordante com a sua unidade espiritual.

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V As Regies de Condensao e de Disperso Norte e Sul

cultura de cana, em Pernambuco, estendia naturalmente o povoamento ao longo da costa, para a Paraba e para Alagoas. Na Bahia, a atividade aucareira foi mais restrita. Notou Gndavo: Tem (a Bahia) dezoito engenhos... tambm se tira neles muito assucre, ainda que os moradores se lanam mais ao algodo que a canas dassucres porque se d melhor na terra.65 Graas ao algodo, o povoamento ali se libertou do recncavo e procurou o serto. OS PASTORES O gado, depois de 1560, espalhou-se pelas savanas do Nordeste com uma rapidez, uma vitalidade admirveis. A primeira caravela carregada de vacas das ilhas do Cabo Verde chegara Bahia em 1550. Outras se seguiram, de modo a formar cada fazendeiro um ncleo pastoril, que prosperou beira da cidade, auxiliando-lhe as lavouras. Mas o progresso dos rebanhos foi imprevisto. Havia em breve tanto gado junto das roas65 Tratado da Terra do Brasil, p. 29.

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58 Pedro Calmon que era foroso larg-lo pelos campos argilosos e pobres,66 a caatinga, que se desenrolam, uniformes, entre Feira Velha e o Itapicuru, e para o Centro e Nordeste, entre rios e serras do sistema do Espinhao. Um dos criadores, Garcia dvila, companheiro de Tom de Souza, fez curral em Itapagipe, depois em Itapo, afinal em Tatuapara, onde se acasteleou numa torre. Em 1587 os currais de Garcia dvila subiam a dez67 (Gabriel Soares) e o padre Ferno Cardim (1583) disse que a sua capela de Tatuapara era a mais formosa que h no Brasil. 68 O RIO DE S. FRANCISCO Em 1573 Garcia dvila chegou a Sergipe, onde lanou os fundamentos de uma colonizao. Quando Cristvo de Barros con quistou aos caets aquela terra (1590), as pontas de gado, tangidas do Sul, passavam o Itapicuru. De 1590 a 1600, as campinas entre o rio Real e o S. Francisco se povoaram de to numeroso concurso de pastores, que acrescenta Frei Vicente do Salvador (1627) dali se provm de bois os engenhos da Bahia e Pernambuco e os aougues de carne. 69 O S. Francisco foi um polarizador. Nenhum outro rio do Brasil teve uma funo histrica to constante. A sua importncia, como condensador de povos, pertence arqueologia da Amrica; Gabriel Soares nos d notcia da localizao, naquele vale frtil, cimitarra de terras agrcolas cortando o desolado serto, de todas as raas indgenas do Brasil, excetuados apenas guaranis e aruaques: assim gs, cariris, carabas, tupis. Cada uma dessas famlias, rivalizando com a vizinha, conquistara em tempos pr-colombianos o seu direito de beber e pescar no rio providencial, espcie de torrente milagrosa que ficava para alm da caatinga inabitvel, estrada mvel, enriquecendo com as cheias peridicas, como o Nilo, um solo salitroso e fecundo.66 CAPISTRANO DE ABREU, Introduo aos Dilogos das Grandezas, ed. da Acad., pgs. 13-5; Dilogo das Grandezas, p. 43. O alvar de 1701 proibia que se trouxesse o gado a dez lguas da beira-mar, in BRS DO AMARAL, Anotaes a Accioli, II, 360. Tratado Descritivo, p. 48. Tratado da terra e gente do Brasil, ed. Rod. Garcia, p. 312, Rio, 1925. Histria do Brasil, p. 336.

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Histria da Civilizao Brasileira

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De Pernambuco e da Bahia, os criadores seguiram lenta, mas seguramente, o rumo do S. Francisco. Depois acompanharam-lhe as margens. Embarcados, os pioneiros chegaram barra do Rio Grande, subiram at Carinhanha, remontaram s terras centrais, que foram mais tarde as Minas Gerais. Nem para alcanar o S. Francisco os do Nordeste precisavam armar as suas bandeiras: o prprio deslocamento dos rebanhos e a necessidade de pastos, que tornaram as fazendas imensas,70 alargaram o mbito do gado at o vale maravilhoso. Deveras, o S. Francisco atraiu os rebanhos de Pernambuco, cujos engenhos passaram a dispor apenas dos bois necessrios ao manejo do trapiches, tanto que de l se abasteciam das boiadas inumerveis, ao tempo dos holandeses. Na Bahia, pelos vales do Jacupe, do Pojuca, do Itapicuru e do Real, os rebanhos rumaram na direo LesteOeste, enquanto o rio Pa raguau se transformava em outra estrada do povoamento. Cachoeira, no Paraguau, obra sertanista, como Tatuapara: os Adornos, netos do Caramuru, fizeram ali o seu quartel de inverno. Esses bandeirantes rechaaram os tapuias, introduziram gado pelo vale acima, e desviando-se das matas do Orob, onde morrera Gabriel Soares (1592), penetraram a bacia do rio de Contas. A Casa da Torre (de Garcia dvila), retomou, em 1627, os trabalhos do seu fundador, e achou a comunicao com o S. Francisco, por Jacobina. Recolhera a experincia de Belchior Dias Mora, que subira ou acompanhara o S. Francisco, entre a barra do rio Salitre e o Paramerim, de l trazendo histrias de minas de prata, que justificaram, por cento e cinqenta anos, expedies, pesquisas, caas de ndios. O gado rompeu com os sertanistas. As estradas de boiadas foram os caminhos definitivos. Por eles transitou o exrcito portugus, nas guerras com o flamengo invasor de Pernambuco, e por eles rolou o povoamento semeando aldeias e vilas70 HANDELMANN, Histria do Brasil, ed. do Inst. Hist., p. 333: O criador de gado no pode suportar vizinhana prxima, porque para pastagem ele precisa de vastas extenses de terrenos. ...Il faut se sparer pour vivre. (VIDAL DE LA BLACHE, Principes de Gographie Humaine, p. 36, Paris, 1922).

60 Pedro Calmon por todo o Nordeste. Os vales (como, no Sul, os do Paraba e do Tiet) so sempre os escoadouros preferidos, porque a h alimento, sombra e frescura: o mapa dos caminhos do Nordeste , de um modo geral, a sua hidrografia. As terras de mais demorada conquista foram as de entre-rios, secas e sfaras, onde o homem um hspede mal aceito. O Paraguau levou s chapadas, o rio das Contas ao serto de Caetit, o Jacupe ao serto do Morro do Chapu, o Itapicuru serra de Itiba, o Vaza-barris a Jeremoabo, o S. Francisco ao Brasil central. Ainda a conquista do Piau se serviu de um vale: o Gurguia. Pelo Jequitinhonha, os primeiros bandeirantes atingiram Minas Gerais. Somente as florestas do sul (inadas de aimors salteadores) e os catingais margem dos caminhos do gado, desprezados por melhores pas tagens, e que apenas no sculo XIX se povoaram obstaram ao desbravamento do atual territrio da Bahia, revelado e ocupado pelos vaqueiros. Em 1600, a linha extrema da colonizao passava por Penedo, Sergipe, Natuba, Cachoeira, e continuava pela costa abaixo, para entrar novamente no serto em Angra dos Reis ou Parati, Taubat, S. Paulo. Cinqenta anos depois a mesma linha, comeand