interpretação de textos, de história e de intérprete

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Estudo sobre a hermenêutica filosóficae a importância de seu uso para a escrita da história. As fontes utilizadas são um texto escrito por Ronaldo Vainfas, outro por Ciro Flamarion Cardoso e um terceiro, produzido por estes dois escritores em conjunto. Tais textos pertencem ao livro intitulado Domínios da história:ensaios de teoria e metodologia,organizado pelos autores supra citados.A partir das fontes, tento evidenciar astradições nas quais me movimento e os métodos utilizados pelos por Ciro eVainfas

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  • Antes de iniciarmos esta reflexo sobre a importncia da hermenuticana escrita da histria convm um esclarecimento a respeito da noo de tex-to. A explicao se faz necessria porque ns, historiadores, geralmente ope-ramos com a noo de texto mesmo quando recorremos oralidade, ou faze-mos estudos de imagens, de situaes e de acontecimentos. Temos adotado,via de regra, o princpio de que os textos devem ser compreendidos em seuscontextos, premissa derivada do mtodo interpretativo conhecido como her-menutica romntica ou contextual, proposto por Dilthey.

    No dizer de Hans-Georg Gadamer, um mtodo sistemtico para a com-preenso da histria:

    (...) no se encontra obviamente em Ranke, nem no arguto metodlogo Droy-sen, mas somente em Dilthey, que toma conscientemente a hermenutica ro-

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    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 23, n 46, pp. 229-252 - 2003

    Interpretao de textos, de histria e de intrprete

    Jos Adilon CampigotoUniversidade Estadual do Oeste do Paran

    RESUMO

    Estudo sobre a hermenutica filosficae a importncia de seu uso para a escri-ta da histria. As fontes utilizadas soum texto escrito por Ronaldo Vainfas,outro por Ciro Flamarion Cardoso e umterceiro, produzido por estes dois escri-tores em conjunto. Tais textos perten-cem ao livro intitulado Domnios da his-tria: ensaios de teoria e metodologia,organizado pelos autores supra citados.A partir das fontes, tento evidenciar astradies nas quais me movimento e osmtodos utilizados pelos por Ciro eVainfasPalavras-chave: Hermenutica. Texto.Contexto. Histria.

    ABSTRACT

    Study on the philosophical hermeneu-tics and the importance of its use for thewriting of history. The used sources area text written for Ronaldo Vainfas, ano-ther one for Ciro Flamarion Cardosoand one third, produced for these twowriters in set. Such texts belong to theintitled book Domnios da histria: en-saio de teoria e metodogia, organized forthe authors supply cited. From the sour-ces, I try to evidence the traditions inwhich I myself movement and the me-thods used for the ones for Ciro andVainfas.Keywords: Hermeneutic. Text. Context.History.

  • mntica e a amplia at fazer dela uma historiografia e at uma teoria do conhe-cimento das cincias do esprito. A anlise lgica de Dilthey do conceito do ne-xo na histria representa, segundo a questo em causa, a aplicao do princpiohermenutico, segundo o qual as partes individuais de um texto s podem serentendidas a partir do todo, e este somente a partir daquelas, sobre o mundo dahistria. No somente as fontes chegam at ns como textos, mas tambm a rea-lidade histrica em si um texto que deve ser compreendido. Com esta transfe-rncia da hermenutica para a historiografia, Dilthey tornava-se o intrprete daescola histrica.1

    A proposta de Dilthey extremamente conhecida por todos ns, e doponto de vista terico largamente aplicada e consiste em analisar os textos apartir do lugar de sua produo, isto , do seu contexto. Dilthey tambm am-pliou o conceito de texto, que passou a ser estendido a qualquer objeto decompreenso, ou seja, sua proposta hermenutica comporta o princpio deque a partir de um determinado contexto qualquer objeto pode ser lido co-mo um texto. Assim, podemos compreender por que, tantas vezes ns, histo-riadores, recorremos noo de texto; evidentemente, utilizamos o mtodoromntico.

    O mtodo proposto por Dilthey provoca uma espcie de enredamentonas aporias do historicismo, como demonstrou Gadamer, porque o quadrocontextual que oferece sentido aos textos/objetos no dado pelos deuses oupela natureza, e sim elaborado pelos intrpretes. Logo, quando utilizamos oprocedimento contextual, somos obrigados a inventar os contextos, do con-trrio, os sentidos de nossos textos no se completam. Contexto , portanto,uma pea do mtodo romntico estendida sobre o mundo histrico, mundoconcebido como o grande escrito da vida. Alm de fundamentar-se num con-ceito demasiado amplo de texto e de funcionar como o ponto determinantena construo dos contextos, o procedimento romntico engloba uma tercei-ra falha, a mais grave de todas.

    Quando interpretamos os textos/objetos tentando encontrar o seu senti-do nos contextos, o produto de nosso trabalho como intrpretes jamais con-siderado como objeto de anlise, porque temos a iluso de poder construirnovos sentidos rompendo com o mundo da pr-compreenso, isto , dos sen-tidos transmitidos de uma gerao para outra.

    Foi assim que os textos e seus contextos tornaram-se como que macro-conceitos da escrita da histria. A constatao deste acontecer no mbito dalinguagem e o contato com alguns comentrios sobre a hermenutica, queapontaremos adiante, levaram-nos a tecer algumas ponderaes referentesaos conceitos e s operaes textuais no fazer interpretativo. Escolhemos trs

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  • artigos pertencentes ao livro Domnios da histria: ensaios de teoria e meto-dologia, organizado por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, para es-tabelecer a discusso. Dois destes escritos so referentes arte da interpreta-o e os utilizamos como contrapontos a fim de elucidar a proposta deGadamer. Ao mesmo tempo, recorremos a um terceiro escrito, e empregamostodos como fontes para identificar o mtodo compreensivo aplicado pelosseus escritores.

    INTERPRETAO PSICOLGICA

    H, entre os documentos escolhidos, um especificamente destinado re-flexo metodolgica sobre a interpretao de textos e apresentao de pro-postas de trabalho aos historiadores interessados no fazer interpretativo. Tra-ta-se do captulo 17 do livro acima citado e tem o ttulo: Histria e anlise detexto. O texto iniciado por um subttulo insinuante: Os historiadores e o tra-balho com os textos: da hermenutica do mtodo tradicional aos contatos coma lingstica e com a semitica.

    Dizemos insinuante porque as expresses hermenutica do mtodo tra-dicional e domnios da histria provocam expectativas de sentido sobre acoisa que se ir ler, e se o texto se mantiver fiel ao tema, versar sobre o mtodohermenutico utilizado pelos historiadores da chamada histria tradicional.

    Convm, no entanto, esclarecer que o qualificativo tradicional torna-seaqui uma das balizas da reflexo, tanto para ns quanto para Cardoso, Vain-fas e nossos leitores. Se pertencemos tradio iluminista, a palavra tradicio-nal deve equivaler a coisa ultrapassada, antiga e equivocada, ou coisas utiliza-das ainda somente por pessoas ignorantes. A necessidade de pontuar talconceito j um indicativo de que a perspectiva iluminista no cessou no s-culo XIX e no apresenta incompatibilidades maiores com outras filosofias,tais como o positivismo, o materialismo, e at mesmo com a fenomenologiaou com qualquer outra forma de pensamento, bastando para isso que estejavinculada idia de progresso. Portanto, sempre que aceitamos a equivaln-cia entre os termos tradicional e atrasado, tradicional e ultrapassado, situa-mo-nos na tradio iluminista e na doutrina do progresso.

    Na tese oposta, consideramos o tradicional como algo vlido e verdadei-ro, pois significa que a coisa resistiu ao tempo. Tal posio indica a pertena tradio historicista. Logo, quando compreendemos o tradicional como algoduradouro, consolidado, verdadeiro e eficiente, nos movemos no horizontedo historicismo.

    Afastando-nos um pouco do discurso das Luzes e do historicismo, a pa-

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  • lavra tradio significar para ns, doravante, o conhecimento transmitidoque forma o nosso horizonte de compreenso. Os sentidos comunicados deuma gerao para outra formam o mundo da pr-compreenso necessriopara a efetuao de toda interpretao, por mais isenta que desejemos ou su-ponhamos que elas sejam. Este cuidado nos imprescindvel para que noprojetemos nosso modo de compreender sobre o texto de Vainfas e Cardoso,o que nos levaria, talvez, a levantar falsas acusaes, tais como supor que se-gundo estes autores a hermenutica seja algo ultrapassado. Deste modo, osclassificaramos como iluministas e, do contrrio, os enquadraramos no his-toricismo; mas o objetivo aqui no rotular historiadores.

    Ento, vamos nos ater ao escrito, com expectativas de sentidos, eviden-temente. No primeiro pargrafo do captulo 17 encontra-se o seguinte enun-ciado:

    (...) h historiadores que crem ser a atitude hermenutica de que tanto sefala hoje em dia algo recente. Ledo engano. J o venervel manual de Langloise Seignobos, que data dos ltimos anos do sculo XIX, criticava os que liam tex-tos com a preocupao de neles encontrarem informaes diretas...2

    Estabelecendo um confronto entre o texto citado e o ttulo, notamosprontamente uma certa ampliao do tema, pois j no estamos discutindo omtodo tradicional ou algum procedimento particular. A discusso foi am-pliada para a atitude hermenutica de que tanto se fala hoje em dia, um fen-meno bem mais amplo do que a proposio de Langlois e Seignobos.

    Ocorre que, entre outras coisas, a palavra mtodo foi utilizada como si-nnimo do vocbulo atitude e existem algumas diferenas entre este dois ter-mos que merecem alguma explicitao. Entendemos que mtodo significaprocedimento, processo, arte, tcnica, artifcio e tecnologia, ao passo que ati-tude equivale a jeito, maneira, modo, carter, estilo e costume. Em todo caso,na lngua portuguesa mtodo no equivale a atitude, e isto um ponto deci-sivo para a discusso da hermenutica na perspectiva gadameriana, que te-mos adotado.

    Consideramos extremamente relevante a discusso sobre a antigidadedos mtodos de interpretao, mas pensamos no haver grandes problemascom as formas de pensamento ou tcnicas de trabalho pelo simples fato deserem antigos. A atitude hermenutica, no entanto, algo mais amplo do queo mtodo encontrado no manual de Langlois e Seignobos e apontado porVainfas e Cardoso. A chamada atitude hermenutica, bem longe de ser um m-todo, consiste numa concepo filosfica a respeito da compreenso e da lin-guagem. O procedimento descrito pelos autores como:

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  • (...) crtica interna dos testemunhos, cuja fase inicial exatamente a hermenu-tica ou crtica de interpretao tambm chamada de crtica positiva: a anli-se do contedo do documento e a crtica positiva de interpretao seriam ne-cessrias para firmar certeza do que o autor quis dizer3(...)

    (...) no vai alm de um modelo interpretativo aplicado ao campo da hist-ria. A reflexo histrica porm no esgota o fenmeno da interpretao e a ati-tude hermenutica no caberia em manuais sem o nus de perdas lamentveis.

    No seria justo pressupor que a vinculao da atitude hermenutica aLanglois e Seignobos, conforme aparece no texto de Vainfas e Cardoso, foi ur-dida propositalmente objetivando desqualificar a arte da interpretao. Se as-sim o fizssemos, estaramos utilizando a mesma metodologia extrada domanual que, em princpio, no necessita ser venerado, pois, ao que podemoscompreender, nele est prescrita a sugesto de ... recriar mentalmente as ope-raes que se deveriam ter processado no esprito do autor4 para ter a certezado que eles quiseram dizer.

    A recomendao de Langlois e Seignobos para quem quiser fazer inter-pretao de textos consiste em que o intrprete deve imaginar as coisas quepassaram pela mente do autor no momento em que escrevia. Os escritores domanual sugeriam apenas a utilizao de um dos procedimentos hermenuti-cos. Mtodo antigo, mas atual e usado abundantemente na escrita da histriaporque se trata de um artifcio que empregamos para conferir sentido aosnossos discursos. Cardoso e Vainfas utilizam-se, e muito, deste recurso, comoesperamos demonstrar.

    Antes, porm, deve ficar claro que, se no estivermos atentos, poderemosestar utilizando este mtodo devido ao seu uso generalizado. O processo ocor-re no mbito da interpretao, principalmente de textos, e partimos do prin-cpio de que um escrito somente se torna compreensvel quando o intrpreteconsegue captar o que o autor quis dizer, e no o que efetivamente disse. Omtodo psicolgico associado ao romntico, e em virtude da ampliao doconceito de texto, consideramos os escritos e os acontecimentos como algoque somente adquire sentido se forem descobertas as intenes ou interessesdos escritores ou dos protagonistas sobre o fato que est sendo interpretado.

    O recurso que passava pela mente de um autor para que o intrprete pu-desse captar o sentido de seu texto foi sistematizado por Friedrich D. E.Schleiermacher no incio do sculo XIX. Fillogo, telogo e filsofo, empe-nhou-se no trabalho de conferir cientificidade pratica da interpretao e naconstruo de um mtodo capaz de superar a exegese bblica e a filologia. Aregra bsica para a interpretao dos Textos Sagrados, mais aceita pelos inte-lectuais cristos durante a Idade Mdia, era confrontar os textos de difcil

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  • compreenso com o todo da mensagem crist, e se por acaso o sentido ocul-to no aparecesse, dever-se-ia confront-los com os ensinamentos dos gran-des pensadores do cristianismo. Era uma forma de interpretao fundamen-tada na doutrina patrstica que sofreu grandes modificaes diante doracionalismo, forma de pensamento que propiciou a reabilitao da filologiaclssica. Tal ressurgimento foi corroborado pela reforma luterana, pois Lute-ro questionou as bases da patrstica e sustentou que o sentido oculto dos enun-ciados bblicos deveria ser encontrado no Texto Sagrado mesmo, isto , des-cartou a necessidade da recorrncia aos antigos sbios catlicos.

    Schleiermacher, por sua vez, estendeu o mtodo filolgico para a com-preenso de qualquer texto, mas enfrentou o problema da autoria, pois quan-do se tratava de interpretar Texto Sagrados, o intrprete necessitava admitir oproblema da verdade e dos equvocos contidos nos textos. Ora, os autores dostextos profanos5 so considerados falveis porque, ao contrrio do divino, nopodem transportar para o texto tudo aquilo que pensam. Logo, para com-preender seus escritos e identificar seus erros seria necessrio recriar as ope-raes mentais que fizeram no momento da escrita. Esta tambm foi a reco-mendao metodolgica feita por Langlois e Seignobos.

    O mtodo proposto por Schleiermacher denominado, por Gadamer,de hermenutica psicolgica e fundamenta-se no

    (...) postulado de que importa compreender um autor, melhor do que ele pr-prio teria se compreendido uma frmula que, desde ento, tem sido repetidaincessantemente, e em cujas interpretaes cambiantes caracteriza-se toda a his-tria da hermenutica moderna...6

    Conforme Gadamer, para Schleiermacher, o ato da compreenso reali-zao re-construtiva de uma produo. Tem que nos tornar conscientes de algu-mas coisas que ao produtor original podem ter ficado inconscientes.7

    A tentativa de captar as coisas que ficaram inconscientes ao intrpreteoriginal pode resultar na obteno de interpretaes lgicas e coerentes, masa falha do mtodo consiste em partir do pressuposto que somente os autoresdos textos e os protagonistas dos acontecimentos que interpretamos so in-conscientes. Alm disso, a operao reconstrutiva a sua prpria debilidade,porque a tentativa de recriar as aes que se deveriam ter processado no esp-rito de um autor implica imaginar os seus interesses, as suas pretenses, assuas ambies, os seus objetivos, e assim por diante, atitudes que jamais po-dem ser comprovadas.

    Debilidades parte, o procedimento psicolgico freqentemente utili-zado em conjunto com o mtodo romntico proposto por Dilthey. Como j

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  • vimos, este autor ampliou o conceito de texto para qualquer fenmeno, am-pliando ainda mais o conceito de autoria porque, sendo o mundo histricoconsiderado como um grande escrito, todos os sujeitos podem ser classifica-dos como autores. O afrouxamento dos conceitos de texto e autoria possibili-tou a utilizao, em larga escala, dos mtodos psicolgico e romntico em v-rias reas do saber. No campo da histria, por exemplo, o emprego destes doismtodos bem visvel nos textos que partem do princpio de que as repre-sentaes do social so construdas de acordo com os interesses dos sujeitosque as criam. O problema que os interesses so sempre deduzidos.

    J vimos as dificuldades e as aporias a que a utilizao da hermenuticaromntica conduz. A falha da hermenutica psicolgica reside mesmo no fa-to de que jamais poderemos demonstrar os reais interesses de um autor, a me-nos que estejam literalmente expressos. Por este motivo, tentaremos com-preender os texto de Vainfas e Cardoso identificando os procedimentoshermenuticos por eles utilizados, enquanto evidenciamos nosso modo deinterpretar e evitamos recorrer psique dos autores.

    Cardoso escreveu na introduo aos Domnios da histria que s vezes afalta de preparo filosfico e cientfico dos historiadores ... os faz embarcar emcanoas que lhes parece ir no sentido por eles pretendido, sem verificar se esto ouno furadas.8 O enunciado lgico e faz sentido, porque a falta de preparofilosfico e cientfico serve como explicao para o fato de os historiadorespoderem subir nas embarcaes sem verificar antes o estado em que se en-contram. Entendemos que sempre pode haver alguma espcie de vacilo naproduo do conhecimento, uma vez que o universo no se resume cinciae filosofia. Tais disciplinas so constitudas por conjuntos de enunciados ve-rificveis ou aceitveis dos quais dependem os sentidos dos termos emprega-dos. Por exemplo, os termos lhes parece e pretendido tm a ver com as in-tenes dos sujeitos e indicam o uso da interpretao psicolgica.

    Examinemos, porm, a canoa. O uso da figura da embarcao ou do na-vegador que viaja para alcanar o conhecimento uma tradio bem antigano Ocidente. Guilhermo Giucci fez um excelente estudo acerca das sucessivasmetamorfoses da figura do navegante, da explorao dos mares desconheci-dos e da nau do saber. Partiu do relato da morte de Ulisses, descrita por Dan-te na Divina Comdia. Conforme seu texto, o heri,

    (...) depois de separar-se de Circe, nada pode refrear seu ardente desejo de co-

    nhecer o mundo, os vcios e as virtudes dos humanos (...) encontra-se no mar

    Mediterrneo com um nico navio e alguns companheiros fiis (...). Alm deles

    se estende um mar sem limites, tenebroso, o verde mar da escurido.9

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  • Neste tipo de narrativa, que podemos considerar como uma tradio, omar freqentemente representa o desconhecido, despertando certas emoestais como o medo e a curiosidade. Giucci concluiu que, na Divina Comdia,o temor ressaltado e o desejo de conhecer, reprovado, porquanto o Ulissesde Dante interna-se no oceano Atlntico para alcanar a virtude e o conheci-mento mas naufraga na costa de uma terra ignota.10 A narrativa de Dante po-de nos causar assombro e insegurana, mas nem toda aventura do conheci-mento ser trgica por isso. A moral da tradio grega, conforme depreende-sedo texto de Giucci, pode ser outra porque

    (...) o remoto e o maravilhoso se entrelaam na pica homrica... Odisseu norecua diante do perigo monstruoso interposto em seu caminho de regresso a ta-ca. Ao contrrio, o incentiva, aumentando sua curiosidade em conhecer as ter-ras e os costumes dos ciclopes e ouvir o canto mortal das sereias.11

    A oposio entre a criao do assombro e o incentivo da curiosidade tal-vez seja o resultado do contato entre a tradio crist e a grega, que gerou umparalelo entre a figura de Cristo e a de Ulisses, conforme apontou Giucci. Anave seria um ponto de articulao, uma vez que para os primeiros padres, aimagem da barca cruzando o mar se converteu em referncia emblemtica daIgreja militante deste mundo... e na tradio hagiogrfica, Deus o leme danau. Ele sopra as velas e inevitavelmente guia a peregrinao rumo meta de-sejada.12 Se a igreja a barca, Deus o leme e os cristos os navegantes, e istorepresenta a epopia crist na qual a busca de um certo tipo de conhecimen-to incentivada. A represso da curiosidade ocorre em relao a um modode investigao que no segue os parmetros cristos. A barca pag naufragaenquanto a crist cruza os mares, e nisto identificamos uma tradio segun-do a qual no se deve buscar o conhecimento fora dos padres estabelecidos.

    A tragdia de Ulisses como figura da coao doutrinria obviamenteuma das muitas possibilidades de leitura. Giucci, por exemplo, interpretou asnarrativas de viagem, especialmente a de So Brando, como uma espcie deestilo literrio prprio de um contexto em que as lendas e as cincias se fun-diam. Disse, tambm, que a metfora do viajante homrico no representanecessariamente o desejo de conhecer mundos e espaos ignotos, e sim a pi-lhagem e a explorao realizadas pelos gregos.

    A interpretao feita por Giucci, como se v, fundamenta-se na recor-rncia a um contexto explicativo e faz sentido, mas mesmo que nos escritoshomricos a nave do conhecimento esteja em outra acepo, tal figura utili-zada: a navegao como metfora do conhecimento; a barca como seu vecu-lo e instrumento. O texto de Cardoso e Vainfas a prova documental de sua

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  • aplicao porque refere-se ao preparo intelectual dos historiadores que, seno for suficiente, os faz embarcar em canoas furadas.

    Verificar, antes, se o barco est ou no fazendo gua pode ser conside-rado como um bom conselho em termos de segurana e preservao da vida,especialmente para quem no sabe e nem se atreve a nadar. H, todavia, quemaconselhe atitudes mais arrojadas. Desta maneira Nietzsche escreveu:

    (...) conhecer: este o prazer para quem tem a vontade do leo! Mas, quem fi-cou cansado, esse se tornar apenas um ser passivo, ao sabor de todas as ondas...A est o barco l fora, talvez se rume para o grande nada. Mas quem querembarcar-se nesse talvez? Nenhum de vs quer embarcar no barco da morte!Como, ento, pretendeis estar cansados do mundo?... Mas preciso ter mais co-ragem para pr fim prpria vida do que para dar comeo a um novo verso: sa-bem-no todos os mdicos e poetas.13

    O apelo nietzscheano pode ainda ser radicalizado, pois h quem sugiraque ateemos fogo ao barco das verdades estabelecidas e nos atiremos no gran-de oceano das aventuras do conhecimento. Pensamos que a prudncia umaboa virtude, mas permanecer no cais esperando a certeza de que nada acon-tecer s nossas embarcaes pode custar um preo demasiadamente alto,alm de ser muito cmodo. Afinal, o preparo filosfico e o cientfico no ga-rantem totalmente nossos acertos.

    A utilizao da figura da nave do conhecimento, no texto de Cardoso,torna evidente o pertencimento do autor e do intrprete a uma determinadatradio de fidelidade, ou ento, de questionamento ao mundo do saber esta-belecido. Consideramos no ser necessrio atear fogo ao barco, nem menosdormir no cais, visto que podemos consertar as canoas enquanto navegamos,isto , o preparo filosfico e cientfico pode se dar durante a produo do co-nhecimento.

    O autor, porm, no escreveu que estes alguns historiadores tm medodo desconhecido, mas inferimos que, segundo ele, trata-se de pessoas impre-videntes movidas por algumas pretenses. Como o texto relata, estes nave-gantes entram sem uma devida checagem nas suas embarcaes porque elaslhes parecem ir no sentido por eles pretendido. Logo, as causas da sua impru-dncia so a falta de preparo e a pretenso de ir a algum lugar para onde ascanoas parecem dirigir-se. Esto em jogo o preparo, a aparncia e a vontade.

    Os julgamentos por aparncia podem ser ligados facilmente falta depreparo, j que tanto a filosofia quanto a cincia, na tradio ocidental, re-presentam instrumentos teis para que o ser humano treine seu olhar e vejao mundo para alm dos aspectos exteriores. Trata-se do mito do olho clnico.

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  • A dificuldade reside em demonstrar que os outros enxergam e se guiampelas aparncias, sendo que alguns fenomenlogos partem do princpio deque conhecemos basicamente os aspectos exteriores dos fenmenos. Almdisso, possvel que faamos projees quando afirmamos que os outros vemsomente a exterioridade das coisas, e ento abre-se o espao das teorias psi-colgicas.

    No texto de Cardoso, algum pretende ir a algum lugar e parece-lhe quea coisa vai naquela direo. A interpretao psicologista, porque mais difcilde comprovar que algum est julgando pelas aparncias demonstrar as suaspretenses quando no h provas textuais. Com efeito, podemos subir numacanoa por vrios motivos, at mesmo para simplesmente estar nela ou pe-rambular sem traar um rumo exato e ver onde vai aportar. Isto quer dizerque o texto de Cardoso faz sentido, mas seus enunciados extrados da herme-nutica psicolgica no podem ser demonstrados, pois as intenes e preten-ses dos historiadores incautos podem ser bem outras. Somente eles podemexpress-las, e tudo o mais que afirmarmos sobre os desejos e pretenses dosoutros no passar de uma suspeita feliz. No ir alm de uma forma de con-ferir sentido s nossas interpretaes.

    Cardoso, no entanto, utiliza-se deste expediente outras vezes como, porexemplo ao indicar alguns pontos comuns entre os historiadores ligados aosAnnales e os marxistas.14 Numa sntese de sua autoria, recorre s ambies,aos interesses e s preocupaes dos historiadores vinculados escola france-sa.15 Ainda no mesmo texto, explica que o paradigma iluminista se deu con-forme uma perspectiva que pretendia estender aos estudos sociais o mtodocientfico,16 e que ... seus partidrios escrevem uma histria que pretendemcientfica e racional... pois ... acreditava-se que fora de tal atitude bsica o sa-ber histrico no responderia s demandas surgidas.17 Ora, ambies, crenas,convices, preocupaes e interesses, quando no expressos claramente, sooperaes que supomos processadas no esprito das pessoas, e que Langlois eSeignobos aconselhavam recriar para o correto entendimento dos textos. Es-taria Cardoso seguindo o manual de Langlois e Seignobos, recriando as ope-raes que se processaram na cabea dos historiadores incautos ligados es-cola dos Annales? As coisas que passavam pela alma de Cardoso no momentoem que escrevia o seu texto so impossveis de precisar aqui, mas o autor re-correu aos interesses, s crenas, s convices, s preocupaes, s preten-ses, aos fenmenos mentais, ou seja, psicolgicos. As recorrncias feitas peloautor no so frutos de nossas suspeitas, e sim elementos textuais retiradosde seu escrito.

    certo que Cardoso no desconhece a hermenutica psicolgica, umavez que criticou alguns intrpretes do marxismo exatamente por recorrerem

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  • psique de Marx e Engels, tratando ... Marx e Engels como se fossem perfeitos im-becis que teriam pretendido ver a base econmica, absurdamente, como uma es-pcie de glndula capaz de gerar idias e instituies.18 Sua crtica vlida, por-que ningum pode comprovar cientificamente o que Marx e Engels pretendiamde fato, mesmo que possamos listar os enunciados em que as expressaram li-teralmente. Podemos argumentar que escreveram tais coisas com outros ob-jetivos. Alm disso, no h mrito algum em imbecilizar quem quer que seja.Todavia, Cardoso escreveu que esses intrpretes dos textos marxistas no le-ram as correes feitas por Engels e nem conhecem os aperfeioamentos queo marxismo sofreu. Pensamos que, igualmente, no seja uma boa atitude dopesquisador empenhar-se em idiotizar os intrpretes que recorrem ao psico-logismo, ao contexto, ou filologia, mesmo porque ele fatalmente se envolve-ria em um caso ou noutro. Como dissemos anteriormente, ningum de nsnasce imune s tradies. Cardoso ridicularizou os intrpretes que achinca-lharam Marx e Engels. Se nos empenharmos em fazer chacotas do texto deCardoso estaremos caindo naquilo que Gadamer chamou de armadilhas dalinguagem.

    possvel, pensamos, discutir idias e apontar as falhas dos mtodos semo recurso desmoralizao das pessoas que pertencem e defendem outrasperspectivas tericas e se utilizam de outros mtodos de interpretao. O ata-que virulento ao oponente pode ser uma opo retrica amplificada com orecurso hermenutica psicolgica. Tal ampliao emana do postulado deSchleiermacher de que o intrprete de textos deve empenhar-se em percebercoisas que podem ter ficado inconscientes ao produtor original. A herme-nutica filosfica rechaa tal pressuposto. Vamos nos ater demonstrao doemprego dos mtodos de interpretao feito em Cardoso e Vainfas e, ao mes-mo tempo, tentando colocar-nos sem a pretenso da imunidade porque a fun-o da hermenutica filosfica exatamente esta: fazer com que nos reconhe-amos humildemente, movendo-nos dentro de tradies. Portanto, se devemosnos referir a alguma coisa que ficou inconsciente, sobre a nossa psique quedevemos nos voltar.

    Quanto aos intrpretes de Marx e Engels, a hermenutica filosfica, porser uma perspectiva voltada reflexo de si, no antipositivista nem con-tra o marxismo, e sim uma forma de fazer cincia considerando as determi-naes do momento compreensivo. Trata-se de uma atitude necessria a to-do historiador que deseja evitar ou, ao menos, deixar evidentes as armadilhasda linguagem. Nessa perspectiva, nos deparamos com o dado de que a lingua-gem, pela fora da tradio, nos conduz a dizer coisas que de outro modo nodiramos, e isto no acontece por falta de conscincia ou de preparo intelec-

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  • tual, mas porque, de outro modo, ningum compreenderia nossos textos. As-sim, manifesta-se a fora da linguagem no fazer compreensivo.

    Para ilustrar, recorremos a estes enunciados de Cardoso. Ele escreveu que...os ps-modernos costumam, com efeito, ser mais apodticos e retricos do queargumentativos: abundam em seus textos as afirmaes apresentadas como sefossem axiomticas e auto-evidentes, no sendo ento demonstradas....19 Sabe-mos perfeitamente que deste texto em que se apresenta uma possvel caracte-rstica dos ps-modernos, a de costumarem ser mais apodticos e retricosdo que argumentativos, no podemos generaliz-la a todos os partidrios dochamado ps-modernismo. Sabemos, igualmente, que esta no seria uma qua-lidade suficiente para caracterizar algum como ps-moderno. Mas, pelo quefoi demonstrado at aqui, a hermenutica psicolgica um procedimento doqual resultam enunciados apodticos e retricos no sentido de que no po-dem ser demonstrados, podendo at ser classificados como axiomticos e au-to-evidentes, e isto o resultado da aplicao do mtodo.

    A recorrncia psicologia dos sujeitos no fazer interpretativo nem porisso deixa de ser um procedimento funcional, pois nos permite compreender,de forma lgica, textos e situaes. Apresenta, porm, o grande inconvenien-te de que jamais poderemos comprovar o que realmente passava pela mentede um autor no momento em que escrevia seu texto, ou o que pensava umsujeito quando praticava uma ao, a no ser que a coisa esteja expressa. En-to, caracteriza-se o que Michel Foucault20 chamou de interpretao ou her-menutica da suspeita.

    Cardoso e Vainfas utilizam-se, pois, da hermenutica psicolgica, masno os condenamos por isto. Ademais, se analisarmos detidamente nossostextos veremos que em algum momento seguimos o mesmo modelo inter-pretativo. Armadilhas da linguagem, fora da tradio, dinmica prpria dofazer interpretativo, histria residual, como diz Gadamer. Os organizadoresde Domnios da histria escreveram coisas que no poderiam demonstrar, masno cremos que eles, Schleiermacher, Langlois e Seignobos, inclusive ns se-jamos ps-modernos. Isto uma evidncia de que uma tradio pode ultra-passar as fronteiras dos contextos. Talvez uma das caractersticas dos ps-mo-dernos seja a tentativa de evitar a interpretao psicolgica e a hermenuticacontextual ou romntica, mas tal classificao se daria pela aplicao do m-todo romntico.

    O procedimento romntico, como j indicamos, consiste em compreen-der textos e acontecimentos colocando-os nos contextos em que ocorreramou foram produzidos. Tais contextos podem ser recortados pelos vieses eco-nmico, poltico, cultural, religioso, social, ou mesmo pela juno de todosestes aspectos, formando um quadro que oferece um sentido para o objeto

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  • que est sendo interpretado. A utilizao do mtodo contextual igualmenteverificvel nos textos de Vainfas e Cardoso, e isto ocorre porque os modos deinterpretao fazem parte do conjunto de coisas que executamos por fora datradio. Em outras palavras, os procedimentos hermenuticos plasmam-seem nossos escritos pelo simples fato de que a escrita da histria sempre im-plica alguma forma de compreenso. Esta somente se efetua quando o senti-do se completa.

    O USO DO MTODO ROMNTICO

    O fazer hermenutico nada mais do que a operao compreensiva sema qual existiriam somente textos incompreensveis, mas isto no significa quea hermenutica se esgota nos seus mtodos. O uso dos procedimentos, no en-tanto, pode ser detectado nos textos porque um dos critrios bsicos para queum mtodo seja considerado cientfico a sua reprodutibilidade. O caminhometodolgico percorrido necessita oferecer a possibilidade de ser trilhado ou-tras vezes e com o mesmo sucesso. Da aplicao deste resulta que podemosidentificar os modelos de interpretao utilizados.

    Examinemos, ento, um texto de Vainfas. Num dos artigos de Domniosda histria, intitulado Histria das mentalidade e histria cultural, o autor fazuma ...contextualizao da histria das mentalidades no quadro maior da his-toriografia filiada ao movimento dos Annales.21 Segundo o texto, aquilo que

    (...) denominado por muitos como escola dos Annales, o grupo de historiadores

    liderados por Bloch e Febvre se constitui, antes de tudo como um movimento...

    uma sensibilidade, um conjunto de estratgias voltadas para combater um tipo

    de histria que se fazia na Frana e que dominava a universidade no incio do

    sculo atual.22

    Ainda conforme o texto, a histria dominante na universidade francesaera preocupada com fatos polticos, diplomticos, militares, ciosa de documen-tos considerados autnticos, furtando-se ao dilogo com outras disciplinas.

    O conjunto de estratgias desenvolvido para combater a histria domi-nante, de acordo com o texto, surgia assim num contexto acadmico, em meioa um combate entre intelectuais. Isto no quer dizer que, para Vainfas, o mo-vimento intelectual em si explicao suficiente para o surgimento da NovaHistria. O contexto, no entanto, oferece sentido ao objeto, j que, neste qua-dro, podemos saber o que esta coisa chamada Nova Histria. Entre outrossentidos possveis, trata-se de algo semelhante a um movimento intelectual

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  • surgido no meio acadmico francs cujos partidrios empenhavam-se nocombate a um tipo de histria que se escrevia no incio do sculo atual. Re-corrncia ao contexto prova do recurso hermenutica contextual.

    O mtodo aqui utilizado por Vainfas, no entanto, conduz a duas dificul-dades insuperveis. Em primeiro lugar, nenhum contextualista pode escapar acusao de que os contextos foram inventados pelos intrpretes para con-ferir sentido aos textos e aos acontecimentos decifrados. Com efeito, os con-textos no foram criados pelos deuses, pelos ventos ou pelas tempestades. Soobras de narradores, explicadores e intrpretes. Alm disso, consistem emuma construo seletiva porque o sujeito que trata de compreender utilizan-do-se deste mtodo agrega aos contextos somente os aspectos que contribuempara a boa compreenso de um acontecimento ou de um texto. Desta forma,a compreenso contextual sempre uma construo viciada, mas este no o seu maior problema. O que torna reprovvel o mtodo contextual, ou seja,a hermenutica romntica o pressuposto da supremacia do presente sobreo passado e do intrprete sobre o interpretado.

    Quando recorremos a um contexto do passado (e esta a prtica comumna escrita da histria), em geral consideramos que hoje sabemos mais do queontem, significando que conhecemos melhor as coisas que aconteceram ouos textos que foram escritos porque as pessoas envolvidas no possuam ocontexto. Se partimos do contexto do presente, consideramos que a nossa an-lise melhor do que as feitas por pessoas que no recorrem ao quadro con-textual. Se a nossa viso de histria for decadentista, diremos que ontem sa-bamos mais do que hoje, que as civilizaes do passado foram superiores, eassim por diante.

    A supremacia do passado conduz ao derrotismo. A perspectiva da supe-rioridade do presente, em suas variedades, acarreta a iluso da supremacia dointrprete. No por acaso que o texto de Vainfas se inicia com um manifes-to apresentado por Geoffrey Lloyd para ...suprimir as mentalidades como ob-jeto da histria, sob a alegao de que elas exprimem um equvoco terico.23

    Vainfas comenta que a crtica no nova e que a chamada Nova Histriaabriu-se de tal modo a outros saberes e questionamentos estruturalistas, queps em risco a prpria soberania e a legitimidade da disciplina, sobretudo emalgumas verses ou profisses de f da histria das mentalidades. O resulta-do, como diz o texto, foi o declnio das mentalidades e a desero dos histo-riadores a ela dedicados para outros campos24.

    A interpretao feita por Vainfas um exemplo da aplicao do mtodoromntico, da tese de que hoje sabemos mais do que ontem porque, confor-me o seu texto, os historiadores da Nova Histria aceitaram tantos questio-namentos estruturalistas que o resultado foi a decadncia das mentalidades e

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  • a debandada dos historiadores para outros campos do saber. Poderiam ter si-do mais prudentes, alis hoje enxergamos o contexto que os adeptos das men-talidades no vislumbravam; podemos ver seus erros e acertos, pois, como dizVainfas, atualmente

    (...) tm-se, de toda forma, com Ginzburg, Chartier e Thompson, trs modelospossveis de histria da cultura os quais, embora de diferentes e at excludentesmaneiras, reabilitam a importncia dos contrastes e conflitos sociais no planocultural, evitando, quando menos, as ambigidades e concepes interclassistase descritivas de algumas vises da histria das mentalidades.25

    Sabemos mais que ontem o mote da hermenutica romntica que,para alm disso, no acoberta erros formais porque a aplicao do mtodogarante que os sentidos se completem coerentemente. Por um lado, a coern-cia formal extrada dos objetos interpretados a partir da hermenutica ro-mntica no a isenta de seu parentesco com o discurso do progresso e no aimpede de reproduzir as mazelas, as ingenuidades e os preconceitos do cien-tificismo racionalista e da f na cincia; alimenta o preconceito contra outrasformas de saber e outras culturas que narraram e interpretam os aconteci-mento passados e presentes sem recorrer aos contextos. Por outro lado, o queVainfas escreveu pode ser verificvel e bem pertinente, pois devemos identifi-car os erros do passado e aprender a evit-los, mas a hermenutica filosficaparte do princpio de que devemos primeiramente identificar e evidenciarnossas falhas no momento mesmo da interpretao.

    Sabemos que todos esses percalos do mtodo romntico podem ser mi-nimizados e at evitados sem abandon-lo, mas a falha principal do mtodoest na perspectiva, uma vez que quem o utiliza identifica, demonstra e peem evidncia os erros e acertos dos outros sem que o produto de sua prpriainterpretao seja examinado; como se o intrprete fosse um sujeito noafetado pela histria. Aqui encontramos a fonte de muitas contradies queas reflexes da hermenutica filosfica podem nos ajudar a reconhecer e aevitar, fazendo-nos voltar os olhos sobre ns mesmos na qualidade de intr-pretes. Desta forma, devemos deixar claro, neste texto, que estamos nos mo-vendo na tradio platnico-aristotlica porque compreendemos os escritosde Cardoso e Vainfas, mas descartamos o pressuposto de que a linguagem se-ja um instrumento ao nosso dispor. Tentamos evidenciar as tradies nasquais nos movemos sem pressupor que somos isentos fora das tradies e,por isto, evitando agir como se fssemos superiores aos outros.

    Nenhum intrprete imune s armadilhas da linguagem, e no se con-clua do que foi escrito at aqui que Vainfas se utiliza apenas do esquema in-

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  • terpretativo romntico, enquanto Cardoso se serve exclusivamente do mto-do psicolgico. Um olhar mais detido sobre os textos de Vainfas pode detec-tar o uso da metodologia proposta por Schleiermacher. Numa parte de seutexto, Vainfas escreveu que animava os fundadores dos Annales a perspectivade construir uma histria interdisciplinar.26 Neste enunciado, a parte tra-balho dos historiadores vinculados aos Annales adquire significado no to-do o estado de nimo daquelas pessoas, as suas intenes, aquelas coisasque jamais podero ser demonstradas.

    Vainfas usou os dois mtodos at aqui discutidos e Cardoso, igualmente.Num dos textos, escrito em cooperao, os dois autores fazem um comentriosobre os estudos de Lucien Febvre acerca da obra de Rabelais. Asseveram que,

    (...) com efeito, foi com base numa exaustiva pesquisa do vocabulrio presente na-quela obra que Febvre, divergindo dos que afirmavam o atesmo de Rabelais, de-monstrou a mentalidade pr-lgica que caracterizava o homem europeu do s-culo XVI, homem essencialmente religioso, e por isso mesmo, incapaz de descrer.27

    Evidentemente, no se trata de contestar as teses de Febvre nos seus as-pectos lgicos e de coerncia interna. O sentido que podemos compreender que, para Febvre, Rebelais no poderia no crer porque era um homem dosculo XVI, e homens daquela poca ou que viveram naquele contexto eramincapazes de no crer.

    Neste caso, os hermeneutas romnticos recorreram a um contexto espe-cialmente religioso ou cultural, a Europa do sculo XVI, e o enunciado ad-quiriu um sentido lgico. A compreenso efetuou-se porque a parte, a figurade Rabelais, encaixou-se no todo, o conjunto dos homens que viveram na-quele contexto.

    Se considerarmos que o ato de crer radicalmente diferente da compro-vao cientfica, os povos incapazes de descrer pertencem a uma mentalidadepr-lgica. Assim estabelecemos uma diferena ntida entre o contexto emque vivemos e aquele em que viveu Rabelais. Movemo-nos ento em uma tra-dio bem prxima do positivismo comtiano, porque Comte dividia as eta-pas da histria de forma bem semelhante: Idade Mtica, Metafsica e Cientfi-ca. Isto evidencia que, nesta parte do texto, tanto Febvre quanto Cardoso eVainfas moveram-se no interior da tradio positivista; mas confessamos quetambm ns, porque compreendemos os seus enunciados e no nos pora-mos a defender que estejamos vivendo na mesma poca que Rabelais. Pensa-mos que o trabalho do historiador no deve consistir em classificar pocassempre demonstrando a superioridade da sua sobre as outras.

    A tese de que os europeus do sculo XVI eram incapazes de descrer l-

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  • gica, coerente e faz sentido, mas comporta aquele grande inconveniente defundamentar-se na supremacia do presente sobre o passado e do intrpretesobre o interpretado. A evidncia disto a expresso mentalidade pr-lgica,cujo sentido, embora suspenso pelo uso das aspas, fora a nossa adeso a cer-tas tradies porque, como vimos, se considerarmos que Rabelais viveu emuma poca anterior nossa, em que a mentalidade era pr-lgica por forada linguagem, compreenderemos que seguiu-se sua poca o perodo da men-talidade lgica, uma vez que na tradio lingstica latina o prefixo pr in-dica aquilo que antecede alguma coisa. Se aceitarmos o pressuposto da tradi-o racionalista de que o pensamento lgico superior a outras formas deconceber o mundo, a poca em que viveu Rabelais ser necessariamente infe-rior seguinte. O texto de Cardoso e Vainfas no indica qual. Ser esta emque vivemos? Pode ser... Neste caso, escreveramos afirmando a superiorida-de do presente.

    No evidente, contudo, que nossa poca seja melhor do que as passadasou futuras, nem uma necessidade imperiosa afirmar a grandeza de nossotempo. Importa considerar que fazemos isto por fora de uma tradio, ou se-ja, devido ao uso do mtodo hermenutico contextual, procedimento funda-mentado no pressuposto de que o intrprete pode executar sua leitura sem serafetado pela linguagem. Tal incolumidade pode ser apontada como uma he-rana da esttica de Aristteles, para quem a bela linguagem era aquela em queo escritor ou falante se isentava, permitindo que a verdade e os fatos como quefalassem por si mesmos. Se, no entanto, admitirmos os efeitos da linguagemna produo de sentidos, perceberemos a importncia do mundo pr-com-preensivo e o valor da hermenutica filosfica para a escrita da histria.

    Vainfas e Cardoso admitem a importncia da hermenutica, e para elesa arte de interpretar ...definida em termos que hoje parecem ingnuos.28 No-vamente, o enunciado faz sentido, mas ali o esboo conceitual da hermenu-tica est muito reduzido, posto que vinculado proposta de Langlois e Seig-nobos. Estes historiadores incentivaram o uso do mtodo interpretativo dahermenutica psicolgica para a escrita da histria, e podemos dizer que al-canaram grande sucesso por meio desta sugesto, j que o procedimento ainda utilizado em larga escala e at mesmo por seus mais severos crticos.

    A hermenutica, no entanto, no se reduz aos mtodos psicolgico e ro-mntico. Segundo Gadamer, existe ainda o mtodo filolgico. Mais antigo ecriticado, porm menos utilizado por historiadores de ofcio, o procedimen-to filolgico igualmente um mtodo de interpretao de textos. Consiste emdescobrir o significado de uma parte do texto no seu todo. Assim, o sentidode uma frase, por exemplo, dado pelo todo textual ao qual ela pertence.

    Apontemos, sem mais delongas, que o mtodo filolgico to deficiente

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  • quanto o romntico e o psicolgico, pois o fillogo, igualmente, no explicitana sua interpretao a sua pertena s tradies.

    Conclumos, portanto, do que foi visto at aqui, que os trs mtodos her-menuticos apresentam a mesma deficincia, isto , no consideram a forada linguagem nas suas prprias interpretaes e, neste sentido, podemos apro-veitar a crtica tecida sobre a hermenutica em Domnios da histria, mas coma ressalva de que vale somente para os mtodos, embora Cardoso e Vainfas te-nham apenas se referido proposta psicolgica. O problema, ento, localiza-se no espao metodolgico, pois quando utilizamos os procedimentos filol-gico, psicolgico e romntico, reduzimos a arte de interpretar a simples mtodosde compreenso. O fazer interpretativo no se reduz aos seus mtodos ou apropostas metodolgicas para a correta interpretao de textos e acontecimen-tos. A hermenutica filosfica uma proposta de incluso da figura do intr-prete no ato de interpretar. Renega a idia de podermos analisar um texto fa-zendo-o expressar a sua muda verdade por meio de um mtodo eficaz.

    HERMENUTICA FILOSFICA: INTERPRETAO INCLUSIVA

    As prticas interpretativas nas quais o texto considerado como um ob-jeto separado do intrprete sustentam-se na conjuno de duas antigas tradi-es: o racionalismo metdico e a esttica de Aristteles. A primeira bas-tante evidente, conhecida e assumida. Trata-se do pressuposto de que osmtodos nos auxiliam a evitar os erros, idia brilhantemente defendida porImanuel Kant. A teoria aristotlica da bela linguagem, como dissemos ante-riormente, fundamenta-se na eliso do falante ou escritor.

    Os procedimentos hermenuticos que elidem a figura do intrprete fun-damentam-se num dos pressupostos da teoria da linguagem instrumental,derivada do pensamento aristotlico. Tal pressuposio consiste em admitirque, na condio de intrpretes, no somos afetados pela linguagem no mo-mento da compreenso, e disto resulta que sobrepujamos a antiga linguageme criamos uma nova quando interpretarmos um acontecimento ou um texto.Segundo esta perspectiva, a linguagem um instrumento por meio do qualns, seres humanos, comunicamos nossos pensamentos uns aos outros, po-dendo utiliz-la conforme a nossa vontade.

    A tradio grega equaciona pensamento e linguagem por meio da dial-tica, como se pudssemos iniciar sempre uma linguagem nova sobre novos eantigos objetos, porquanto a condio bsica o fim das coisas antigas paraque as novas adquiram existncia. Esta concepo instrumental encontra-sena base dos mtodos romntico e psicolgico e representa a causa do empo-

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  • brecimento da interpretao porque exclui a autocrtica do intrprete no mo-mento da compreenso. O intrprete no se ocupa em perceber o seu perten-cimento s tradies, e por causa disto ocorre, s vezes, declarar-se contrrioao uso de teorias e mtodos que ele mesmo utiliza. A concepo no-instru-mental da linguagem vincula-se ao pensamento heideggeriano e apresenta-secomo um modo de evitar tal embarao.

    Heidegger escreveu que a linguagem a morada do ser, isto equivale adizer que o lugar onde os seres se do compreenso. Logo, nesta perspec-tiva, a linguagem no instrumento porque no opera no modo dialtico. Te-se demonstrada por Gadamer e de onde se extrai o seguinte raciocnio: po-deramos comear agora a falar de um modo totalmente novo, ou seja,desconhecido para todas as pessoas, mas necessitaramos traduzir o conte-do de nossa comunicao, pois, do contrrio, no seramos compreendidos.Portanto, todas as coisas compreensveis so enunciadas dentro de um mun-do dado, em que as palavras possuem sentidos que no podemos manipularao nosso bel-prazer para que a comunicao se efetue. A impossibilidade damanipulao dos sentidos em vista de toda a compreenso o fenmeno dapertena que afeta o intrprete e nos conduz s armadilhas da linguagem quea atitude hermenutica pode ajudar a reconhecer, a evidenciar e a evitar.

    Cardoso e Vainfas partem da concepo instrumental da linguagem eapresentam algumas sugestes metodolgicas para os historiadores que seocupam da interpretao de textos. Tal ponto de partida os conduz a sugerirque evitemos a hermenutica em favor das tcnicas da lingstica e da semi-tica. Uma das propostas a utilizao do quadrado semitico do qual os au-tores fazem uma demonstrao, aplicando-o ao discurso de posse, na Presi-dncia da Repblica, do marechal Humberto de Alencar Castello Branco.

    O trecho destacado para a interpretao deste discurso que se refere compatibilidade entre desenvolvimento e democracia, se bem compreende-mos, o seguinte:

    (...) portanto, que cada um faa a sua parte e carregue a sua pedra, nesta tarefa

    de soerguimento nacional. Cada operrio e cada homem de empresa, este prin-

    cipalmente, pois a ele lembrarei esta sentena de Rui Barbosa: nas classes mais

    cultas e abastadas que devem ter o seu ponto de partida as agitaes regenera-

    doras. Demos ao povo o exemplo e ele nos seguir.29

    Segundo a interpretao feita pelos autores a partir do quadrado semi-tico, o discurso de Castello Branco revela um modo de raciocinar tpico dopensamento conservador e antipopular. O fato de no estar investida a posi-

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  • o s2 que seria a liderana popular no desenvolvimento, mostra que tal coisa considerada impossvel ou impensvel.30

    O quadrado semitico bem til e funcional para interpretarmos e clas-sificarmos textos, identificando os modos pelos quais as outras pessoas racio-cinam, no caso, o modo de pensar do marechal. Trata-se de um procedimen-to da hermenutica filolgica, uma vez que a compreenso efetua-se na basedos elementos textuais. A parte que o dito sobre as classes mais cultas ad-quire sentido no todo que o texto, a saber, o discurso sobre o desenvolvi-mento e a democracia. Mas, como se v, os intrpretes analisam o texto co-mo se a linguagem sobre a superioridade das elites fosse algo totalmente dooutro, no caso, de uma das lideranas do regime militar.

    A tradio da primazia das elites no desenvolvimento da histria no exclusividade do pensamento conservador e antipopular, pois sempre quecompreendemos uma tradio estamos envolvidos, de alguma forma, por ela.Os prprios textos de Vainfas e Cardoso podem servir como evidncia distoporque, na introduo aos Domnios da histria, Cardoso acentuou que

    (...) a inexistncia, por enquanto, de teorias globais satisfatrias sem dvida tor-na difcil a defesa de uma perspectiva holstica, sem a qual no h como proporuma mudana do estado de coisas imperante em direo a um futuro distinto.31

    A afinidade desta tese com o discurso de Castello Branco evidente por-que a construo de teorias globais tem sido historicamente uma tarefa dosintelectuais, digamos, de uma elite pensante. Evidentemente, trata-se de umenunciado articulado por um historiador, e outro, por um militar. Os objeti-vos e os contextos so diferentes e tudo o mais; porm, a tradio a mesmaporque confere a liderana a uma elite. Pode-se argumentar que se trata dediscursos distintos, porque um conservador e o outro revolucionrio, masos dois propem mudanas no estado das coisas. O discurso do marechal e odo historiador articulam-se em um nmero maior de pontos do que gosta-ramos que fosse: a lngua a mesma, e semelhantes a estrutura gramatical eo sentido das palavras. O quadrado semitico, no entanto, foi aplicado exclu-sivamente sobre os enunciados do militar, por causa disto, os aspectos pro-blemticos da interpretao feita pelos historiadores no poderiam aparecer.

    A falha do quadrado semitico, da filologia, da hermenutica romnticaou psicolgica sempre a mesma: o intrprete no volta o olhar sobre si mes-mo. O uso destes mtodos pode resultar em leituras coerentes e lgicas, masno ajuda o intrprete a perceber-se e a explicitar-se como tal. A hermenuti-ca filosfica, desta forma, rompe com a doutrina iluminista pois o intelectualmudar, antes de tudo, o estado das coisas que imperam sobre si mesmo.

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  • As reflexes de Cardoso permitem que nos compreendamos como intr-pretes romnticos, psicologistas ou fillogos, visto que o autor fundamentou-se nos escritos de Jean-Claude Gardin para definir os aspectos centrais do quechamou de tendncia hermenutica nas cincias sociais. Preferimos nos fun-damentar nas ponderaes de Gadamer e na sua proposta de uma hermenu-tica filosfica. As razes desta escolha devem ficar claras nesta parte final.

    O primeiro aspecto levantado por Cardoso, no enquadramento da ten-dncia hermenutica, o princpio da dualidade natureza/cultura. Cardosoescreveu que os partidrios desta tendncia adotam o pressuposto de que ...o comportamento humano e seus resultados so essencialmente diferentes dosfenmenos estudados pelas cincias naturais, o que impede qualquer aproxima-o metodolgica entre as duas.32

    Ancorados na proposta gadameriana, defendemos que o reconhecimen-to da pertena do intrprete desloca o antigo dilema da duplicidade entre na-tureza e cultura, porque tanto uma quanto a outra so interpretadas. A her-menutica filosfica no um mtodo para compreender ou explicareficazmente a natureza ou a cultura. a adoo de um posicionamento filo-sfico de auto-reflexo e autoconhecimento do intrprete que, enquanto rea-liza seu trabalho, torna explcita em seus textos a sua pertena, torna visveisas armadilhas da linguagem, pondo a descoberto o mundo da pr-compreen-so e evitando conduzir-se pela fora dos sentidos preestabelecidos.

    Tal mudana de perspectiva provoca naturalmente a reao contrria dequalquer pessoa acostumada ao objetivismo cientfico, e este o segundo as-pecto realado por Cardoso. Consoante seu texto, a tendncia hermenuticanas cincias sociais nos conduz a

    (...) afirmar ser desejvel, no campo humano ou social, levar em conta o papeldos indivduos e dos pequenos grupos, com seus respectivos planos, conscin-cias, representaes (imaginrio), crenas, valores e desejos. Num outro nvel, odo observador, seria preciso reconhecer que, com sua subjetividade, faz parte in-tegrante daquilo que estuda conduza isto ou no a recomendar alguma ine-fvel empatia com os indivduos ou grupos tomados como objetos de estudo. 33

    Apesar da nossa inegvel empatia com o texto de Cardoso, devemos con-siderar que a recomendao para estudar indivduos e pequenos grupos, suasconscincias, representaes, crenas, valores e desejos no tm a ver, neces-sariamente, com a hermenutica. Alm disso, podemos faz-lo utilizando-nosdo mtodo romntico, do psicolgico, do filolgico ou do analtico, uma vezque as conscincias, as representaes, os valores, as crenas e os desejos po-dem servir de contextos para a compreenso. Podem igualmente ser tomados

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  • como universo psicolgico dos grupos e dos sujeitos, ou ainda podem ser sim-plesmente analisados como tais.

    A tese de que o observador faz parte do objeto que estuda, prpria da fe-nomenologia, no relevante para a hermenutica filosfica, porque no setrata de um estudo das subjetividades. O ponto fundamental em relao aosujeito que interpreta que este sujeito somos ns. Trata-se da incluso doeu intrprete no fazer compreensivo, introduzindo a prtica da autocrtica,que consiste em considerar que a linguagem usada por ns estava no mundoantes que aqui chegssemos, e no podemos inventar outra totalmente novapara expressar o que queremos, sob pena de cairmos no solipsismo. No setrata, pois, de empatia ou indiferena, e sim de um questionamento constan-te sobre aquilo que dizemos e o modo pelo qual compreendemos as coisas.

    Cardoso referiu-se a este constante questionar-se em que

    (...) so postas em dvida ou rechaadas as formas usuais de validao do co-

    nhecimento. Neste ponto, as posies variam bastante, indo da subjetividade do

    autor individual ou do leitor implcito igualmente individual s posies de gru-

    pos de pessoas diversamente designados: comunidade interpretativa, comuni-

    dade textual, sociedade discursiva. Em qualquer hiptese, tratar-se-ia de um

    processo hermenutico de interpretao, no caso da histria tomado de emprs-

    timo de preferncia a uma certa antropologia, com maior freqncia a de Clli-

    ford Geertz ou alguma outra vertente do culturalismo relativista.34

    O autor tem razo ao expressar que a hermenutica filosfica nos leva aquestionar as formas de validao do conhecimento consideradas como usuais,mas isto ocorre na medida em que a posio do intrprete no fazer compreen-sivo sempre questionada. Este interrogar-se o passo decisivo, o que nonos impede de analisar a forma como os outros interpretam seus textos e seusobjetos, mas em nosso texto este olhar crtico deve estar voltado, antes de tu-do, sobre ns que somos os intrpretes. Isto ocorre quando detemos nossaateno no fazer interpretativo, na ao que une nosso trabalho e o daqueleque escreveu o texto objeto de interpretao. Se compreendemos o que umautor diz porque, de alguma forma, aprovando ou rechaando partes docontedo que nos transmitido, a tradio qual pertence o texto que inter-pretamos chega at ns. Se assim no fosse, no poderamos compreendernada do que foi escrito. Por isso, compreendemos sempre a partir de tradi-es, independentemente da existncia de comunidades interpretativas, tex-tuais e de sociedades discursivas. O costume de vincular a interpretao a umdeterminado grupo, elidindo a figura do intrprete, deriva do mtodo romn-

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  • tico de interpretao, procedimento que, como foi visto, difere em muito dahermenutica filosfica.

    Na perspectiva da hermenutica gadameriana, o critrio de validade doconhecimento est na prpria dinmica da interpretao: a compreenso seefetua quando o sentido se completa. Deste postulado Gadamer retirou quetoda interpretao em que o sentido est completo vlida at que se apre-sentam as suas falhas. Podemos, no entanto, questionar a utilidade deste cri-trio, pois se a hermenutica filosfica fosse aplicada somente para compreen-der, criticar ou apoiar os textos alheios e os acontecimentos e fenmenos nosquais no estamos envolvidos, sua utilidade ser mnima. Se, no entanto, con-duzir-nos para a crtica do nosso fazer interpretativo, mais que til, ser in-dispensvel para evitarmos as armadilhas da linguagem.

    No se trata, portanto, de um culturalismo relativista, e menos ainda deum intelectualismo absolutista, mas de uma resistncia fora da linguagem,uma proposta de conhecimento e reconhecimento das coisas preconcebidas(a chamada estrutura da pr-compreenso), e de uma atitude crtica diantedas tradies que nos envolvem para alm do espao delimitado das culturas,das classes sociais e do prprio discurso.

    Cardoso ainda fez uma advertncia em relao ...inevitabilidade deuma multiplicidade de interpretaes para cada objeto de estudo, mas conside-ramos que a multiplicidade de interpretaes um dado emprico e que ml-tiplo no , a fortiori, sinnimo de incomensurvel, irracional, subjetivo oucatico. Concordamos com a tese de que o fazer interpretativo nos expe aoperigo dos excessos. Voltamos, ento, ao incio deste texto: tanto prejudicialir longe demais quanto permanecer na imobilidade. Por isso, a atitude auto-crtica da hermenutica torna-se to fundamental tambm para ns, que atua-mos no campo do saber histrico, e nisto compartilhamos das palavras deCardoso, uma vez queparticularmente influentes sobre os historiadores foramas reflexes relativas s formas da representao histrica, sendo esta ltima pos-tulada como elemento constitutivo por excelncia do pensamento histrico.35

    Pensamos que o problema maior no conceber o mundo como repre-sentao ou como processo, mas a forma pela qual nos percebemos dentrodestas tradies.

    NOTAS

    1GADAMER, Hans-Georg. Verdade e mtodo. 2 ed.Petrpolis: Vozes,1997, p. 308.2 CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domnios da histria: ensaios de teoriae metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 375.

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    Interpretao de textos, de histria e de intrprete

    Dezembro de 2003

  • 3Idem.4 Idem.5 Em oposio ao sagrado.6 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 299.7 Idem.8 CARDOSO & VAINFAS. Op. cit., p. 11.9 GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso: o novo mundo. So Paulo: Cia das Le-tras, 1992, p. 23.10 Idem, p. 24.11 Idem, p. 25.12 Idem, p. 33.13 NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratrustra. 4 ed. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1987, pp. 212 213.14 V. CARDOSO & VAINFAS, 1997, p. 9.15 Idem, p. 8.16 Idem, p. 4.17 Idem.18 Idem, p. 12.19 Idem, p.19.20 RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetria filosfica. Rio deJaneiro: Forense, 1995, pp. 118 120.21 CARDOSO & VANIFAS. Op. cit., p. 128.22 Idem, p. 130.23 Idem, p. 127.24 Idem, p. 146.25 Idem, p. 158.26 Idem, p.130.27 Idem, p. 377.28 Idem, p. 375.29 Idem, p. 388.30 Idem.31 Idem, p. 14.32 Idem, p. 16.33 Idem.34 Idem.35 Idem, p.17.

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    Jos Adilon Campigoto

    Revista Brasileira de Histria, vol. 23, n 46

    Artigo recebido em 8/2003. Aprovado em 10/2003.