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Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade. INTERDISCIPLINARIDADE E AMBIENTE Selene Herculano [email protected] www.professores.uff.br/seleneherculano "Eu sou pluralista...Quando se fala da psiquiatria, da medicina, da gramática, da biologia, da economia, de que se fala? Que são estas curiosas unidades que se acredita poder reconhecer ao primeiro olhar, mas em relação às quais ficaríamos bem embaraçados para definir os limites?... Unidades que se mantém obstinadamente depois de tantos erros, tantas novidades, tantas metamorfoses, que sofrem às vezes mutações tão radicais que se teria dificuldade em considerá-las como idênticas a elas mesmas... Michel Foucault 1 "O que observamos não é a natureza propriamente dita, mas a natureza exposta ao nosso método de questionamento". (Heisenberg, W. apud F. Capra) Introdução Este texto é uma versão ampliada e revista de um artigo publicado em 2000. Aqui enfocamos as formas de conhecimento, as classificações dos saberes e das ciências, suas inter-relações, as propostas de convergência e síntese. A defesa da interdisciplinaridade e sua construção paulatina ganharam corpo com a questão ambiental. Sua defesa situa-se em um ponto de confluência entre, de um lado, a questão epistemológica/metodológica e, de outro, o princípio da gestão social e participativa da coisa pública. No que tange à questão epistemológica/metodológica, focalizamos as propostas de se sentarem cientistas de diversas áreas de procedência, em regime de colaboração e de socialização de chaves conceituais, dados e informações para o melhor entendimento de uma realidade complexa e da melhor forma de nela intervir. São propostas ora afinadas com a busca de uma alteração paradigmática, conforme sugerida por E. Morin, da passagem do paradigma da simplificação(“conjunto de princípios de inteligibilidade próprios da cientificidade clássica e que, ligados uns aos outros, produzem uma concepção simplificadora do universo físico, biológico, antropossocial” ) para o paradigma da complexidade , defendido por ele como o “conjunto de princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo físico, biológico, antropossocial” (MORIN, 1990:330). A operacionalidade desta 1 Foucault, M. Resposta a uma questão. In: Epistemologia. A teoria das ciências questionada por Bachelard, Miller, Canguilhem, Foucault. ( Rio, Tempo Brasileiro, n. 28, jan/mar 1972)

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Page 1: INTERDISCIPLINARIDADE E AMBIENTE - Sites dos ......Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177

Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.

INTERDISCIPLINARIDADE E AMBIENTE

Selene Herculano [email protected]

www.professores.uff.br/seleneherculano

"Eu sou pluralista...Quando se fala da psiquiatria, da medicina, da gramática, da biologia, da economia, de que se fala? Que são estas curiosas unidades que se acredita poder reconhecer ao primeiro olhar, mas em relação às quais ficaríamos bem embaraçados para definir os limites?... Unidades que se mantém obstinadamente depois de tantos erros, tantas novidades, tantas metamorfoses, que sofrem às vezes mutações tão radicais que se teria dificuldade em considerá-las como idênticas a elas mesmas...

Michel Foucault1

"O que observamos não é a natureza propriamente dita, mas a natureza exposta ao nosso método de questionamento".

(Heisenberg, W. apud F. Capra)

Introdução

Este texto é uma versão ampliada e revista de um artigo publicado em 2000. Aqui

enfocamos as formas de conhecimento, as classificações dos saberes e das ciências, suas

inter-relações, as propostas de convergência e síntese.

A defesa da interdisciplinaridade e sua construção paulatina ganharam corpo com a

questão ambiental. Sua defesa situa-se em um ponto de confluência entre, de um lado, a

questão epistemológica/metodológica e, de outro, o princípio da gestão social e participativa

da coisa pública.

No que tange à questão epistemológica/metodológica, focalizamos as propostas de

se sentarem cientistas de diversas áreas de procedência, em regime de colaboração e de

socialização de chaves conceituais, dados e informações para o melhor entendimento de

uma realidade complexa e da melhor forma de nela intervir. São propostas ora afinadas com

a busca de uma alteração paradigmática, conforme sugerida por E. Morin, da passagem do

“paradigma da simplificação” (“conjunto de princípios de inteligibilidade próprios da

cientificidade clássica e que, ligados uns aos outros, produzem uma concepção

simplificadora do universo físico, biológico, antropossocial”) para o paradigma da

complexidade, defendido por ele como o “conjunto de princípios de inteligibilidade que,

ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do

universo físico, biológico, antropossocial” (MORIN, 1990:330). A operacionalidade desta

1 Foucault, M. Resposta a uma questão. In: Epistemologia. A teoria das ciências questionada por Bachelard, Miller, Canguilhem, Foucault. ( Rio, Tempo Brasileiro, n. 28, jan/mar 1972)

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busca tem-se dado através da tentativa de construção da interdisciplinaridade. Até que ponto

isto vem sendo conseguido é um dos aspectos que enfocaremos aqui.

Quanto ao princípio da democracia participativa, da gestão social da coisa pública,

dele se depreende a necessidade de se baixarem as barreiras que separam o conhecimento

científico do saber do senso comum, das experiências vividas pelo cotidiano da população,

valorizando o seu saber prático no trato com os seus problemas e advogando pela

colaboração entre cientistas e cidadãos: o popular detém um saber prático que técnicos e

governos não têm acerca dos efeitos inesperados das políticas e decisões sobre suas vidas

cotidianas. A questão da necessidade da participação popular em processos decisórios pode

ser exemplificada de diversas formas: em estudos ambientais sobre externalidades sofridas

pela população mais vulnerável, que não é ouvida quando da alocação de indústrias ou de

depósitos de resíduos perigosos, nem nos seus reclamos sobre os seus efeitos sobre sua

saúde; em estudos sobre a aplicação do orçamento-participativo e sobre, de forma mais

genérica, a criação de metodologias para a gestão social da coisa pública, para a

transparência da atuação dos governos.

O reconhecimento de uma sabedoria popular vem sendo introduzido no debate

epistemológico através de propostas diversas, que serão aqui enfocadas, como a de

Funtowicz & Ravetz sobre a “ampliação da comunidade de pares” e a de Irwin, sobre a

construção de uma “ciência-cidadã”, uma ciência que atenda às necessidades e problemas

dos cidadãos e que aproxime experts e cidadãos. E que tem também a ver com o que Morin

chamou de “Ética cívica e humana”, que ultrapassa uma Ética do conhecimento para que se

possa atender à necessidade de se “dominar o domínio” (MORIN, 1998:36).

O paradigma da complexidade e a ampliação da comunidade de pares trazem

aspectos desafiantes e promissores, bem como algumas linhas de tensão, confusões e

mesmo ingenuidades. Pretendemos aqui iniciar o exame de alguns destes aspectos, como,

por exemplo:

1 – tendências e impasses da volta da busca por uma síntese, par a par com o

intensíssimo aprofundamento das especializações: como operacionalizar o paradigma da

complexidade?

2- o relacionamento de dois campos científicos – os da natureza e os sociais – que,

na história da metodologia científica, sempre apareceram em relações hierárquicas (com o

bem conhecido e histórico sentimento de inferioridade das ciências sociais vis à vis as

ciências da natureza, bem como com as bem conhecidas e já anedóticas atitudes a respeito

de profissionais das ciências da natureza que se arrogam a competência para a temática

social, sem maiores investimentos em estudos);

3- a linha divisória entre o que é ciência social e o saber do homem leigo que,

membro da sociedade e a partir das suas próprias percepções e vivências, cria sua matriz

interpretativa: em que o saber deste homem comum, membro da sociedade e aprendendo

sobre ela nas suas vivências, está aquém do conhecimento sistematizado pelo sociólogo? O

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que este último acrescenta ao senso comum e para além dele? Aqui a questão oscila entre

uma certa arrogância de cientistas que desqualificam o saber comum e a atitude oposta, de

vezo romântico e populista, de valorizar apenas o senso prático em detrimento das

observações sistematizadas e desencantadas do cientista social.

Bourdieu criticou o que chamou de "sociologia espontânea" e sua visão dos

problemas sociais vistos pelo prisma do senso comum; criticou a ilusão do saber imediato e a

fé na “tríade mítica” dos pesquisadores empiricistas-positivistas em arquivos, dados e

computadores. Mas ele sublinhou a necessidade de irmos ao banal, ao cotidiano, procurando

objetos a propósito dos quais se possam colocar problemas bem genéricos, assim

enxergando através do pontual, do imediato, as disposições duráveis que funcionam como

matrizes de percepções, de julgamentos e de ações. A história social da miséria, por

exemplo, ele a faz indo ao encontro de miseráveis e do seu cotidiano na periferia pobre de

Paris, ouvindo-os, resgatando suas histórias, trajetórias, percepções e vendo nelas o

epifenômeno de algo mais amplo, a concretização das políticas neoliberais globais. No

enfoque de Bourdieu, o homem comum não é o agente direto com sua fala reflexiva, como

em Habermas, mas ele é mediado pelo sociólogo bem-treinado e sensível, que sabe ler além

das circunstâncias do agente. O pesquisador revela “as coisas enterradas nas pessoas que

as vivem e que não as conhecem e que também conhecem melhor do que ninguém”

(Bourdieu, 1998: 708).

Assim, abordaremos a relação entre: 1) ciência e senso comum; 2) ciências da

natureza e ciências sociais; 3) os passos de todas na busca de convergência e até de

síntese e se esta é possível e desejável.

O homem foi à lua, fármacos e novas técnicas da medicina ampliam a vida,

inovações nas tecnologias de comunicação deixam o saber e a informação ao alcance

imediato. Podemos ter hoje mais conforto, conhecimento e liberdade que o mais poderoso

dos reis do passado. Por outro lado, desde os anos 70 vivemos também questionamentos e

certo ressentimento em relação à ciência e à tecnologia por conta dos problemas ambientais

que causam e das incertezas que trazem. Saberes e técnicas tornam o mundo melhor e

também o ameaçam de maneira inaudita. São niveladores sociais e também criam novas

hierarquias. Seria possível vir a desvencilhar-se a ciência do poder?

O processo plural e contingente do conhecimento:

Eis algumas argumentações contemporâneas que apontam para o processo plural e

contingente de construção do conhecimento, para a necessidade da cooperação e

integração entre formas de saberes e ciências:

Habermas, a razão dialógica na ação comunicativa e a intersubjetividade de concordância;

Maturana & Varela e a importância da aceitação dos outros como fundamento do conhecimento;

Popper e a lógica situacional;

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Funtowicz e a comunidade ampliada de pares.

Para Habermas a verdade e a razão são construídas pelo diálogo, emergem do

diálogo e moram na praça pública, no mundo da comunicação discursiva. Não são um a

priori, como pensava Kant, algo com o qual nascemos, nem são históricas, no sentido de

evoluírem histórica, progressiva e teleologicamente, como dizia Hegel. A racionalidade

comunicativa, construída no diálogo, diz respeito à esfera do mundo vivido, onde estão,

segundo Habermas, os chamados alternativos, os verdes, as mulheres, os jovens, etc..., que

procuram vias alternativas de participação e de reconstrução do mundo. Tais alternativos

seriam os agentes daquilo que Habermas denomina um "reformismo radical" e vivenciariam

novas crises, que estariam além da contradição entre forças produtivas e relações de

produção. Habermas modifica e amplia o sujeito revolucionário marxista, que não mais seria

o proletariado fabril. O processo de mudança também se altera: não mais é pensado o plano

de preparação para o dia "D" de tomada do palácio de governo. Torna- se um processo

cotidiano. Tal mundo vivido contrapõe-se ao mundo enquanto sistema, seus poderes

instituídos, suas expertises, que sempre tenta colonizar o primeiro.

Racionalizar, para Habermas, significa cancelar as relações de coerção, superar as

comunicações sistematicamente distorcidas e encontrar o que chama de "intersubjetividade

de concordância" (HABERMAS, 1990:34). Assim, as estruturas da racionalidade não

estariam dadas apenas pelas tecnologias, estratégias, organizações, mas estariam

dependentes de novas estruturas normativas, de um agir comunicativo.

Na ação comunicativa, os participantes seguem seus planos em acordo mútuo,

sobre a base de uma definição comum da situação; a ação social parte, portanto, da

negociação da definição da situação. A ação comunicativa se contrapõe à ação estratégica:

a primeira se orienta para o entendimento mútuo, a segunda para o sucesso, para a

concorrência e a competição.

"Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as consequências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos de sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções, sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários. A coordenação das ações de sujeitos que se relacionam dessa maneira, isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam os cálculos de ganho egocêntricos. O grau de cooperação e estabilidade resulta então das faixas de interesses dos participantes. Ao contrário, falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas... o modelo estratégico da ação pode se satisfazer com a descrição de estruturas do agir imediatamente orientado para o sucesso, ao passo que o modelo do agir orientado para o entendimento mútuo tem que especificar condições para um acordo alcançado comunicativamente sob as quais Alter pode anexar suas ações às do Ego".(HABERMAS, 1989:164,165)

Na ação estratégica os atores se comunicam para alcançar poder ou influência sobre

o outro e/ou através do outro e não com o objetivo de chegar a um consenso, a um

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entendimento último. A ação estratégica é assimétrica e vertical, é racional com relação a

fins. Já a ação comunicativa é simétrica, horizontal, e só pode ser racionalizada em seu

aspecto prático-moral, necessitando, portanto, do cancelamento das relações de coerção. A

ação comunicativa, onde se dá a construção da razão dialógica, só é possível num diálogo

entre iguais, no qual a estrutura de dominação que permeia a situação de diálogo seja

desmontada.

Maturana & Varela (1994) discordam da perspectiva que define o conhecimento como

fundamentado na apreensão de traços característicos pertinentes a um mundo pré-dado, que

é decomposto em fragmentos, perspectiva que deixa de perceber a autonomia de um ser vivo

que cria significados e sentidos. Discordam também do voluntarismo construcionista,

solipcista, que afirma que o organismo inventa e constrói o mundo à sua vontade. Para esses

autores, que unem os aspectos biológicos e cognitivos, o animal e o meio ambiente são como

duas faces do mesmo processo através do qual objeto e sujeito do conhecimento se

especificam mutuamente. Segundo eles, a Biologia nos mostra que o caráter único do ser

humano reside exclusivamente no acoplamento estrutural e social que tem lugar graças à

linguagem e que engendra regularidades próprias à dinâmica da vida social humana. O

fenômeno do conhecimento não pode ser abordado como se existissem "fatos" ou objetos

exteriores a serem estocados em nossa cabeça. Há uma identidade entre cognição e ação. A

experiência de cada coisa exterior é validada de maneira particular pela estrutura humana,

que torna possível a "coisa" que surge da descrição. Há uma circularidade e uma conexão

entre ação e experiência. Cada ato de conhecimento faz emergir um mundo: "toda ação é

conhecimento e todo conhecimento é ação". Tudo que é dito, é dito por alguém. Ou seja, há

uma inseparabilidade entre o modo de ser particular e a maneira pela qual o mundo nos

aparece.

Maturana & Varela concluem que devemos estar sempre vigilantes em relação à

tentação das certezas: a certeza não é uma prova da verdade. O mundo que cada um pode

ver não é o mundo, mas um mundo. Isto implica em uma ética, cujo ponto de referência está

na estrutura biológica e social dos seres humanos e que coloca a reflexão humana no centro

de todo fenômeno social. Se soubermos que nosso mundo é necessàriamente o mundo que

fazemos emergir junto com os outros, cada vez que estivermos em conflito com um outro ser

humano com quem desejamos continuar a coexistir, devemos ver que a certeza dele -

embora tão indesejável quanto possa parecer - é tão legítima quanto a nossa.

Maturana e Varela arrematam que existe uma fundamentação biológica dos

fenômenos sociais, que eles chamam de amor, ou de aceitação de outras pessoas a nosso

lado em nossa vida cotidiana, o que nos faz ampliar nosso domínio cognitivo. Tudo aquilo

que mina nossa aceitação dos outros, seja competição, posse da verdade ou certezas

ideológicas, mina o processo social porque mina o processo biológico que o engendra.

Portanto, o cerne de nossos problemas atuais, segundo os autores, está na nossa ignorância

relativa ao próprio ato do conhecimento. Precisamos não do conhecimento, mas do

conhecimento sobre o conhecimento, o que implica na percepção da responsabilidade dos

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nossos atos cotidianos, tendo em vista que todas as nossas ações participam do processo

que consiste em fazer emergir onde nos tornamos o que nos tornamos juntamente com os

outros.

Maturana e Varela focalizaram a construção do conhecimento na relação entre

sujeito e objeto. Sugerimos aqui acrescentar a esta análise a condição social daquele que

conhece, para insistir na pluralidade de mundos e ângulos percebidos: se cada ato de

conhecimento faz emergir um mundo, e se o conhecimento é ação mais experiência,

podemos inferir que os mundos conhecidos variam em função do sujeito que os apreende.

Tal afirmação nos faria cair no solipcismo e relativismo se não acrescentássemos que a

realidade total construída ou apreendida será a resultante, todavia sempre incompleta, do

conjunto complexo dos diferentes atos de conhecimento dos diferentes sujeitos em suas

diferentes condições sociais (culturais, econômicas, etc…).

O matemático, físico, filósofo e cientista social Karl Popper afirmou (1978) que a

verdade não é a correspondência exata entre uma idéia ou conceito e a realidade. Para ele o

conhecimento, a ciência, não começam por um processo indutivo, observando coleções de

fatos, mas começam por problemas, pela tensão entre conhecimento e ignorância. O ponto

de partida é sempre um problema. O método de solucionar problemas na ciência é o método

da experimentação, do ensaio e erro. Não há ciência objetiva, não há isenção de valor, o

caráter indutivo das ciências naturais é um mito, o cientista natural não é mais objetivo do

que o cientista social, a objetividade científica é um constructo. O que passa por sendo

objetividade é uma tradição de crítica recíproca entre cientistas. A objetividade está no

caráter público e social da ciência, dela ser testada por terceiros. Popper propõe uma

metodologia para as ciências sociais: a lógica situacional, que consiste em analisar a

situação social dos homens para explicar sua ação com a ajuda da situação. Nesta lógica

situacional, há um mundo físico e um mundo social, com suas instituições, que agem sobre

nós e sobre os quais agimos. Popper assim abre espaço para a atividade interdisciplinar e

democrático-participativa no exame de problemas e propostas de soluções.

Funtowicz & Ravetz (1997) nos dizem que a visão tradicional de ciência como um

conhecimento seguro e um controle eficiente sobre o mundo natural vem sendo modificada,

introduzindo-se os conceitos de incerteza, de complexidade e de qualidade. A ciência hoje é

vista como algo que coloca em confronto complexidades, que lida com incertezas e defronta

decisões tecnológicas e ambientais urgentes, tanto em escala global quanto local. Assim,

neste contexto novo e amplo, o controle da qualidade dos resultados das pesquisas não

pode mais ser delegado a comunidades de especialistas, o diálogo deve ser estendido a

todos os afetados por uma questão, desde que estejam comprometidos por um debate

genuíno. A isso chamam de "comunidade ampliada de pares". Esta nova comunidade seria o

agente de saber de uma “ciência pós-normal”, que busca resolver problemas advindos de

riscos e do meio ambiente, caracterizados por fatos incertos, valores controvertidos, apostas

elevadas e decisões urgentes. A ciência pós-normal não substitui as formas tradicionais de

ciência, nem contesta a perícia técnica dos especialistas, mas incorpora o diálogo com os

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leigos - membros da comunidade em questão, ecologistas, advogados, jornalistas -

necessários para a transmissão de habilidades e para a garantia de resultados.

As quatro formas de conhecimento; ciência e senso comum, uma relação antagônica

ou complementar?

Os compêndios de Epistemologia e de Metodologia das Ciências classificam as

quatro formas possíveis através das quais nós, seres humanos, portanto racionais,

apreendemos o mundo à nossa volta e construímos uma explicação sobre ele. As formas do

conhecimento humano são:

1. O conhecimento popular ou senso comum: a doxa

2. O conhecimento mágico-religioso: os mistérios, o dogma

3. O conhecimento filosófico, reflexivo: a metafísica, a dúvida

4. O conhecimento científico: a teoria

1 - o conhecimento popular, ou do senso comum, está baseado na experiência concreta e

imediata das nossas vidas particulares e na sua transmissão uns aos outros e às demais

gerações através da cultura popular. Esta forma de conhecimento, segundo os gregos

clássicos, formaria a doxa, a opinião. Para o filósofo Platão (século IV a.C.), a doxa é a

ambiguidade, é falsa, ela "enrosca e gira" e não conduz à verdade (a alethéia), ao verdadeiro

objetivo do conhecimento (a teoria), que seria desvendar a verdade essencial que se oculta

por trás da aparência dos fenômenos. Platão, um filósofo aristocrático que sonhava com uma

sociedade guiada e administrada pelos mais sábios e mais virtuosos, pelo rei-filósofo, via a

doxa como o resultado falso e enganoso dos ardis dos sofistas e seus exercícios de retórica

persuasiva.

A alegoria da caverna, contida na República de Platão, é um bom exemplo de como

o conhecimento falso, do senso comum, é representado como algo oposto ao conhecimento

verdadeiro, obra dos filósofos: imaginemos uma caverna, dentro da qual homens

acorrentados e de costas para a sua entrada vêem as sombras do mundo lá de fora

projetadas sobre a parede ao fundo. Para eles, tais sombras aparecem como sendo reais.

Mas um dia, imaginemos que um desses homens se solta, sai da caverna, contempla a luz,

as essências e desvenda a realidade lá de fora. Aí começa a sabedoria, na contemplação

deste mundo real na sua essência, depois de se ter libertado dos limites do ilusório, da

projeção, do mundo aparente. O que acontece quando esse ser iluminado volta aos seus

companheiros e tenta dizer-lhes que as sombras que pensam ser a realidade são apenas

sombras?

"Figura-te agora o estado da natureza humana em relação à ciência e à ignorância sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda a extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhe estão adiante. presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho

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escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes a mola dos bonecos maravilhosos que lhes exibem ... Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro. com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretém em conversa, outros guardam silêncio ... Supondo-se que se pusessem a conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes das próprias representadas? ... E se um eco lhes repetisse as palavras dos que passavam, não julgariam certo que os sons eram articulados pelas sombras dos objetos? Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilavam... Vejamos agora o que aconteceria se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro que laboravam. Imaginemos um desses cativos desatados, obrigado a levantar-se de repente, volver a cabeça a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer isso sem grande pena; a luz, sendo-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-o de discernir os objetos cuja sombra antes via... Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados? ... Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o libertar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? ... O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla, é a alma que se eleva ao mundo inteligível ... Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se nos impõe à razão como a causa universal de tudo que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos. (Platão, A República, Livro VII)

É em defesa da doxa, do senso comum, que militantes das esquerdas e ecologistas

críticos do cientificismo moderno defendem o conhecimento tradicional das etnias e das

classes sociais subalternas, que vem sendo espezinhado e extinto pelo mundo moderno,

científico. Ou roubado pelos cientistas, que isolam princípios ativos da fauna e flora

amazônica às quais são apresentados pelas populações tradicionais locais. Por outro lado, o

senso comum, apartado das informações científicas, provoca acidentes como o do Césio 137

(em Goiânia, em 1986), ou do envenenamento pelo uso doméstico do óleo ascarel (Rio de

Janeiro).

2 - Uma segunda forma do conhecimento humano é o mágico-religioso, cuja lógica

explicativa se concretiza no dogma, algo no qual se acredita por uma razão de fé, sem

comprovação ou experiência direta. Para os pensadores positivistas do século XIX, o estágio

teológico era uma das fases anteriores e inferiores das sociedades e do conhecimento.

Marilena Chauí (1995) destaca dentre as finalidades da religião a busca de orientação contra

o medo que temos da natureza, buscando forças benéficas contrapostas às forças maléficas

e destruidoras, além de, através da religião, construirmos explicações para a origem, forma,

vida e morte de todos os seres e dos próprios humanos.

No conhecimento mítico-religioso, porém, tendemos a estabelecer falsas relações

entre os fenômenos, a ter uma visão anímica da natureza (as forças da natureza como seres,

animadas como almas), a estabelecer correlações estapafúrdias. (Entre os Aztecas,

sacrificava-se ao deus da chuva as crianças que nascessem com o cabelo em redemoinho,

sinal de que pertenceriam às forças míticas das águas, vitais e difíceis para um povo

habitante de um solo semiárido com o de Yucatán).

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O conhecimento mítico-religioso é criticado por ter a ver com o fabuloso, com o

imaginário, com as invencionices e ilusões, mas é também celebrado como algo arquetípico,

que remonta ao inconsciente coletivo, algo místico e que, curiosamente, continua presente

na liturgia do conhecimento científico. (Lembremo-nos também que o Positivismo, método de

celebração ao Cientificismo, acabou curiosamente como catecismo e como religião da

humanidade). Para o antrópologo Lévi-Strauss, que estudou a estrutura do pensamento

selvagem, não se deveria colocar a magia (o dito conhecimento selvagem) e a ciência (o

conhecimento moderno) como opostos, ou como hierarquizados: melhor seria colocá-las em

paralelo, como duas formas válidas de explicar o mundo e classificá-lo.

Por outro lado, o conhecimento dogmático-religioso tem se caracterizado

historicamente pela intransigência, intolerância, prepotência e arrogância através das quais

os privilégios do monopólio do direito de interpretar o mundo são defendidos pelos seus

sacerdotes. Além do célebre caso da excomunhão de Galileu Galilei, a história da ciência

ocidental está cheia de exemplos da violência e da arbitrariedade através das quais a igreja

tentava coibir as heresias e a ousadia de pensar autonomamente. A este propósito, Carlo

Ginzburg conta-nos, em seu livro O Queijo e os Vermes, a história verídica de um moleiro

dos arredores de Montereale, perseguido pela Inquisição, denunciado por heresia e

impiedade por ter criado uma cosmogonia, isto é, um modelo explicativo para o surgimento

do mundo e seu funcionamento a partir de uma analogia com o seu próprio universo

conhecido, o dos queijos e seus vermes:

"Eu sou sapateiro, você moleiro, e você não é culto. Sobre o que é que vamos discutir? As

coisas da fé são grandes e difíceis, fora do alcance dos moleiros e sapateiros". (Ginzburg, 1987, p.41)

Mas Menocchio insistia, obcecado por ser ouvido e passar aos demais a sua visão

interpretativa do mundo à sua volta:

"Se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas, falaria tanto que iria surpreender. Depois, se me calassem, não me incomodaria." (op.cit, p. 235)

O próprio procedimento científico contemporâneo, tão celebrado em sua

racionalidade, guarda traços litúrgicos e até dogmas de fé que relembram a religião e seus

mistérios. O economista e ex-ministro Delfim Netto já apontou para esta presença, ao criticar

o que ele mesmo denominou de "a mística do mercado":

"Depois das maluquices e estrepolias feitas por "economistas" a partir da pajelança que se chamou Plano Cruzado, aconteceram dois fatos interessantes: 1) generalizou-se a idéia de que os economistas são agentes do mal e que é melhor dispensá-los e 2) generalizou-se a idéia de que o "mercado" é uma instituição religiosa, capaz de produzir o bem, a despeito dos homens maus, o que deu margem a um substancial aumento da crença de que o Estado sempre produz o mal. (...) A inocência com que certas pessoas acreditam na mística do mercado e do Estado mínimo revela, apenas, um dos traços da personalidade brasileira, a sua profunda religiosidade. (...) (Antonio Delfim Netto, A Mística do Mercado, Folha de São Paulo, 19/6/91).

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3 - A terceira forma do conhecimento humano é o conhecimento filosófico, reflexivo, que

pode ser definido como um conhecimento não-experimental, que duvida e que especula

sobre as essências e as causas últimas, tendo por principais objetos de reflexão a própria

construção do conhecimento - uma epistemologia, uma cosmogonia - e uma ética, ou teoria

da ação moral. Para Aristóteles (384 a.C.), a filosofia, com este cunho teórico-especulativo,

refletia sobre a physis (o mundo), produzindo uma sabedoria - sophía - que hoje estaria

próximo à teologia, à psicologia e à física. Seria, ainda segundo Aristóteles, algo diferente

das ciências práticas, ou filosofia ativa (a Ética, a Política e a Retórica), que produzem não a

sabedoria - sophía - mas o discernimento - phronésis. A sabedoria seria uma contemplação

sobre aquilo que não podemos modificar, enquanto que o discernimento diria respeito ao que

podemos modificar. (Abaixo da filosofia e do discernimento estariam, para Aristóteles, as

técnicas, dizendo respeito aos modos de fazer da esfera da produção e da gestão do espaço

doméstico e eram atributos dos não-cidadãos, das mulheres, dos metecos (os estrangeiros)

e dos escravos, como por exemplo a Economia.

O saber filosófico, a filosofia, sofreu críticas: críticas dos positivistas do século XIX,

que dela escarneceram, denominando-a de metafísica e atribuindo a ela um estágio

intermediário na evolução social e das mentalidades, mais ou menos correspondente à fase

adolescente no desenvolvimento humano, que seria suplantada pela ciência, entendida como

o alcance da maturidade. Sofreu críticas no seu próprio campo, através de Nietzsche, para

quem a filosofia teria perdido seu valor quando, com Sócrates e a partir dele, tornou-se uma

busca moral, do bem e da virtude e não mais cosmogonias. Segundo Nietzsche, a filosofia

se tornara apenas um inventário das razões que o homem se dá para obedecer.

É recentemente, dos anos 70 para cá, que o interesse pela Filosofia se amplia,

coincidindo com a sensação crescente de nos sentirmos ameaçados pela ciência e

tecnologia contemporâneas nas quais depositávamos tanta confiança e discutindo,

sobretudo, como reintegrar Ética e Ciência, que a neutralidade positivista apartara. A filosofia

tem na dúvida a sua base.

4- A quarta forma do conhecimento humano é o conhecimento científico moderno, que,

embora teórico e conceitual, como o filosófico, é factual, empírico, sistemático, experimental,

verificável e pretende ser neutro nos seus valores. A ciência moderna aproxima-se daquilo

que Aristóteles chamou de filosofia ativa ou ciências práticas, definindo-as como sendo o tipo

de conhecimento do qual decorre uma ação útil, isto é, que incide sobre algo sobre o qual

podemos deliberar e influenciar com as nossas ações. Segundo Aristóteles, não deliberamos

sobre fins, mas sobre meios. Assim, pode-se dizer que, enquanto a filosofia faz exercícios

lógicos tentando responder ao por que, a ciência se resigna a não atingir ao conhecimento

das causas finais, limitando-se a tentar responder ao como, ou, segundo os positivistas, a

estudar as relações entre fenômenos.

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Os saberes dogmático/religioso e científico tem como um ponto comum a criação de

estruturas sociais hierarquizadas: o sacerdote e o cientista estão em relação de

superioridade ao leigo; opõem esoterismo a exoterismo; criam igrejas e fronteiras; estimulam

a reverência, enquanto que os saberes do senso comum e o filosófico não: o último porque

tem na dúvida seu elemento-chave; o saber do senso comum por vir do plano da vida

imediata, da experiência individual e se ater a ela.

Na perspectiva positivista, estes saberes teriam uma gradação e uma relação de

evolução entre um e outro, passando por diferentes estágios2, indo da explicação religiosa

do mundo, fase que corresponderia à infância da humanidade, passando pela filosofia, etapa

de rebeldia adolescente até, finalmente, atingir o estágio científico, positivo. Assim, teríamos

vivenciado historicamente os três estados ou estágios, o teológico, o metafísico e o positivo,

que corresponderiam a três fases do desenvolvimento humano:

Estado Teológico Religião Sociedades

Teocráticas

Infância

Estágio Metafísico Filosofia Revoluções européias

do século XVIII

Juventude

Estágio Positivo Ciência Sociedade Moderna Virilidade

O Positivismo busca aplicar os métodos das ciências naturais às sociais. Neste

sentido, renuncia à busca das causas e das essências dos fenômenos, que seriam

indagações filosóficas, e estuda as relações entre estes para encontrar as leis de

regularidade que os determinam. O sentido do conhecimento na perspectiva positivista é

tornar o mundo previsível - saber para prever, prever para prover. (Certamente inspirado em

Francis Bacon: "saber é poder".)

"Todos os fenômenos estão sujeitos a leis invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objeto dos nossos esforços." (Comte, Curso de Filosofia Positiva)

Na verdade, essas quatro formas de conhecimento não são etapas dispostas

linearmente e progressivamente suplantadas, à medida em que a humanidade avança, como

acreditavam os positivistas. Elas se mesclam e representam antes formas de pensamento de

segmentos sociais diversos, que convivem e conflitam em nossa sociedade. A pressuposição

de que o conhecimento científico moderno é uma forma superior deve ser tomada com

cautela, pois também ele tem seus mitos e sua liturgia, também ele tenta, através do próprio

poder social que lhe é conferido, desqualificar a capacidade do homem comum de construir

sua interpretação para os fenômenos à sua volta em benefício de um novo sacerdote, o

2 O Positivismo foi proposto por Augusto Comte (1798-1857), um francês que foi secretário de Saint-Simon e admirador de Hobbes e que veio, por sua vez, a influenciar J.Stuart Mill, Spencer, Darwin e Durkheim..

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tecnocrata, o cientista. O próprio Positivismo descambou para uma religião, com todo o seu

ritualismo e liturgia. Morin chama nossa atenção para os aspectos dogmáticos de saberes

tidos como teorias científicas – como o marxismo e o freudismo -, que seriam

predominantemente formadas por núcleos não-científicos.3 Ele cita Popper para definir a

diferença entre o dogma, inatacável pela experiência, e a teoria, biodegradável, transitória,

contestável e refutável pelas experiências. (Tendo isto em mente, até que ponto as teorias

das ciências humanas e sociais, pouco sujeitas à experimentação, dado mesmo às

limitações éticas, ficam mais no plano dos dogmas do que no plano científico, eis uma

questão.)

Levi-Strauss em O Pensamento Selvagem, como já mencionado acima, também se

opôs a esta hierarquização de saberes, advogando que as classificações e o pensamento

das tribos ditas primitivas tem a mesma complexidade das classificações científicas.

Frijtof Capra alcançou enorme sucesso de público ao lançar mão de sua autoridade

de Doutor em Física pela Universidade de Viena para chamar nossa atenção para as

aproximações entre as visões de mundo dos físicos e dos místicos orientais, assim fazendo

sua incursão na valoração das filosofias orientais trazidas pelos anos 70 e pela contracultura

hippie. Não que estivesse dizendo novidades, pois a dialética e o Marxismo de há muito

insistiam em noções tais como a Unidade dos Contrários, o eterno devir, a não-neutralidade

da Ciência, etc., mas constituía novidade que essas afirmações viessem do campo das

ciências da natureza, tradicionalmente de cunho empirista, positivista e cientifista e sob a

chancela de um titulado.

Se a doxa era menosprezada no pensamento platônico, ela é revalorizada no mundo

contemporâneo. A doxa significa o diálogo, a palavra não mais do homem excepcional,

iluminado, ou do guerreiro aristocrático e virtuoso, mas de todo aquele que, numa reunião da

sua coletividade, vem ao centro da assembléia e fala das suas experiências e, a partir delas,

da sua visão do mundo.

É assim que, como já mencionado, Habermas nos fala da necessidade de

buscarmos uma razão comunicativa, dialógica, a ser construída democraticamente no

espaço público, num fórum, na praça, no parlatório; que Funtowicz & Ravetz insistem na

necessidade de incorporarmos, em uma ciência pós-normal, o diálogo com os leigos -

membros da comunidade em questão, ecologistas, advogados, jornalistas - necessários para

a transmissão de habilidades e para a garantia de resultados.

A classificação e separação das ciências

A Epistemologia classifica e decompõe as ciências, mas com variações, segundo a

época e o olhar do classificador. Aristóteles, como vimos, as separou em ciências práticas ou

ativas, sobre aquilo a respeito do qual podemos deliberar, e teóricas ou contemplativas sobre

mundos fora do alcance de nossa intervenção (como, por exemplo, as esferas celestes). As

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ciências práticas eram a ética, a política e a retórica e por meio delas o cidadão atingiria a

phronésis, o discernimento, e influenciaria os destinos coletivos da pólis, da coletividade,

através da construção dos valores éticos-morais, da organização política e via fala

comunicativa.

As ciências teóricas seriam, segundo Aristóteles, puramente contemplativas (daí

vem a palavra teoria, cerne da ciência, pois que theorein, no grego clássico, significava ver,

contemplar); eram ciências especulativas, englobando o que hoje temos como a teologia, a

física e a psicologia, sendo seu objeto de reflexão a physis, o mundo físico e espiritual, um

mundo que não poderíamos modificar com nossas ações, mas que, todavia, poderíamos

tentar entender. Assim, o conhecimento teórico diria respeito ao estudo dos seres que

existem e agem independentemente da ação humana. As ciências teóricas foram divididas

por Aristóteles segundo o critério de imutabilidade ou de movimento: a metafísica, estudo do

ser sem qualquer mudança; a física ou ciências da natureza (estudo dos seres que têm

matéria e forma e que estão submetidos ao movimento); a matemática (estudo de seres

imutáveis, dotados de forma, mas sem matéria).

Na Idade Média os Escolásticos (os padres da Igreja Católica e os mestres monacais

que, do século IX ao XV elaboraram uma filosofia cristã, de inspiração platônica-aristotélica)

dividiam os estudos em dois grupos: o quadrivium (aritmética, geometria, música e

astronomia), onde era tomado por objeto de conhecimento tudo o que podia ser medido, e o

trivium (a gramática, a lógica e a retórica). As artes técnicas, estas eram transmitidas pelas

corporações de ofícios.

Chauí sublinha a permanência da classificação de Aristóteles até hoje, que se reflete

na estrutura das nossas universidades: ciências matemáticas ou lógico-matemáticas,

ciências naturais (teórico-contemplativas, segundo Aristóteles), ciências humanas ou sociais

(ciências práticas ou ativas), ciências aplicadas (arquitetura, direito, etc).

Para um filósofo francês contemporâneo, Foucault (1926-1984), contudo, há

diferenças. Segundo ele, as ciências se dividiram a partir do século XIX em:

1 - ciências dedutivas; 2 - ciências empíricas, que estabelecem relações entre fenômenos objetivos ou objetiváveis; 3 - reflexão filosófica.

As ciências empíricas, no que diz respeito ao ser humano, segundo Foucault, seriam

básicamente três, ou três "regiões epistemológicas", para ser fiel ao palavreado do autor:

a Biologia, que estuda o homem como um ser vivo que tem funções, recebe estímulos e se adapta;

a Economia, que o estuda como um animal que trabalha, produz riquezas, modifica o meio ambiente; um ser que tem necessidades, interesses e conflitos;

3 Morin, op.cit, pp 21 – 23.

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a Filologia, que o estuda como um animal que cria e usa uma linguagem, que diz alguma coisa, que tem sentido, que cria significados.

Dito de outra forma:

1) Vida, 2) Trabalho-produção-garantia da vida-sobrevivência 3) Linguagem, comunicação, criação de significados e sistematização dos saberes

sobre vida e trabalho são as três regiões epistemológicas por excelência.

Dessas três regiões, derivam as ciências humanas:

O CONHECIMENTO SOBRE O SER HUMANO, SEGUNDO FOUCAULT:

CIÊNCIAS EMPÍRICAS CIÊNCIAS HUMANAS

Biologia: Vida; funções, estímulos e adaptações do ser vivo

Psicologia: ajustamento (função e norma)

Economia: Trabalho; necessidades, desejos e interesses; produção; sobrevivência

Sociologia: conflito e regra

Filologia: linguagem; significados; comunicação; ciências

Linguística: significação e sistema

Assim, o estudo a respeito do homem seria empírico apenas enquanto estudasse

suas três realidades objetivas: sua vida, seu trabalho/produção, sua linguagem. A estas três

"regiões epistemológicas", a este "triedro dos saberes" corresponderiam, como projeções, a

"região psicológica", a "região sociológica" e a "região de estudo da literatura e dos mitos".

Tais projeções seriam as ciências humanas (ou ciências desumanas, na medida em que têm

por objeto construções, discursos a respeito do que se pensa ser o Homem); elas são

recentes e nem seriam ciências, por terem um pé na filosofia.

As ciências humanas, sublinhava Foucault, não estudam o que o homem é, mas

como ele pensa ser, isto é, estudam suas representações; não estudam relações entre

fenômenos empíricos, mas construções humanas a partir deles, estudam conceitos, normas,

regras, instituições e sistemas que são construídos pelos homens a partir da vida, da

produção, da comunicação. As ciências humanas - e a Sociologia dentre elas - teriam por

isso familiaridade com a filosofia, seriam precárias e perigosas, não seriam ciências. Por que

precárias? Porque elas não poderiam ter a metodologia das ciências naturais empíricas, já

que o corte, o distanciamento entre o estudioso e seu objeto seria impossível, porque a

mensuração teria pouco sentido, porque a neutralidade seria inviável, porque a

experimentação controlada seria aética. Por que perigosas? Porque, em sendo filosóficas,

seriam críticas, libertárias, tornariam evidentes que os fenômenos sociais não são realidade

naturais, portanto perenes e universais, mas seriam históricos, construídos em determinadas

circunstâncias de enfrentamentos sociais. Um estudo sociológico sobre a produção e

circulação das riquezas, por exemplo, pode envolver aspectos filosóficos, questionamentos

éticos que um estudo empírico, dos fatos em si, não poderia ter.

"Pode-se dizer que o domínio das ciências humanas é coberto por três "ciências"- ou, antes, por três regiões epistemológicas, todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas umas com as outras; essas regiões são definidas

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pela tríplice relação das ciências humanas em geral com a biologia, a economia, a filologia. Poder-se-ia admitir que a "região psicológica" encontrou seu lugar lá onde o ser vivo, no prolongamento de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também na suspensão que os interrompe e limita, se abre à possibilidade de representação; do mesmo modo, a "região sociológica" teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome re confere a representação da sociedade em que exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ele reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada; enfim, naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos, a análise de todas as manifestações orais e de todos os documentos escritos, em suma, dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos." (FOUCAULT, 1987: 372-373)

No campo específico das ciências humanas, Chauí destaca ter a investigação do

humano evoluído também de três maneiras diferentes:

1. o período do Humanismo, com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo. É o estudo do homem como agente moral, criador de civilização; 2. o período do Positivismo, quando as ciências sociais se investem de uma aura científica, saindo do campo filosófico e mimetizando as ciências da natureza; 3. o período do Historicismo (com Dilthey 1883 - 1911, filósofo e historiador alemão herdeiro de Kant, Fichte, Hegel): Dilthey insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e, portanto, entre ciências naturais - Naturwissenschaften - e as humanas, que seriam vistas por ele como ciências do Espírito ou da Cultura - Geisteswissenschaften. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor, de significado, de sentido e finalidade. O homem não criou a Natureza, mas o mundo social e aí residiria a originalidade das ciências humanas: são históricas, porque são obras do homem. Assim, as ciências do espírito - Hermenêutica -, não podem e não devem usar o método de observação-experimentação, mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, que são históricos, surgindo no tempo e transformando-se com o tempo. As Ciências Humanas não são irredutíveis às ciências naturais: e cada época histórica tem sua visão de mundo, seus fatos psíquicos, políticos econômicos etc.

O problema com o Historicismo é que pode resultar em relativismo (validade para

apenas uma época e cultura, não podendo haver universalização) e em Filosofia da História

(que considera cada formação sócio-cultural como etapa de um processo histórico universal).

Chauí identifica ainda a ocorrência de três “rupturas epistemológicas”, três mudanças

paradigmáticas importantes no campo das ciências humanas, no século XX:

1. a Fenomenologia, que, contrariando a visão positivista, garantiu validade às ciências humanas, diferentemente da validade das ciências naturais: os fenômenos humanos, em sua essência, não podem ser decompostos em fenômenos da natureza.

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2. O Estruturalismo, que veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, de sistemas, de totalidades organizadas na qual o todo não é a soma das partes. 3. O Marxismo, que fala das condições objetivas e os fatos humanos e sociais como expressão e resultado de contradições sociais, lutas e conflitos.

Tais correntes, no entanto, não parecem ser rupturas e também trazem problemas: a

perspectiva fenomenológica pode cair no psicologismo e solipcismo; o estruturalismo levado

ao extremo desconsidera a agencia humana e parece ser resultante de uma visão pessimista

produzida por uma sociedade de não-sujeitos; o marxismo torna irrelevantes as variáveis

culturais, reduzidas a epifenômenos das lutas econômicas.

Metodólogos das Ciências Sociais, como Pedro Demo e Maria Clara Minayo,

definem algumas características como particulares das ciências humanas e sociais e que as

distinguiriam das ciências da natureza: o objeto das ciências sociais é histórico, neste sentido

é provisório; elas tem consciência histórica; não há separação entre sujeito e objeto, suas

manifestações são mais qualitativas; e as ciências sociais têm um caráter ideológico

inevitável. Até que ponto não poderíamos estender tais particularidades às ciências em

geral?

Bruno Latour critica um sistema de saber que vê um “monoculturalismo” do lado da

natureza unificada e universal, que nos une em um mundo de partículas, átomos, genes,

neurônios, e um “multiculturalismo” do lado da cultura, que nos dividiria e nos particularizaria.

Assim, o que nos uniria seria a natureza, as qualidades primeiras e o que nos separaria

seriam aspectos superficiais, crenças, representações falaciosas, ou seja, as qualidades

segundas. Estaríamos concordantes sobre a natureza e discordaríamos sobre as culturas.

Para Latour, as duas posições, a do mononaturalismo e a do multiculturalismo são

prematuras ou mesmo ilícitas. 4

A proposta classificatória de Foucault sobre as ciências empíricas não é

absolutamente um consenso. Prodi, por exemplo, notório biólogo italiano contemporâneo, vê

a linguagem e o pensamento como partes da biologia humana, não os colocando, portanto,

como fez Foucault, em diferentes regiões epistemológicas:

"Geralmente, falando de biologia, referimo-nos a digestão, hormônios, impulso venoso, biologia molecular e assim por diante. A linguagem e o pensamento são considerados parte de outro capítulo (...). Nós, pelo contrário, afirmamos que a linguagem e o pensamento fazem parte da biologia humana e constituem seu traço distintivo. O fato de serem complicados e atualmente obscuros não autoriza a distinguí-los da biologia para formar um capítulo próprio, o das chamadas ciências humanas (PRODI, 1993:103)

4 Bruno Latour e a guerra das ciencias, Folha de São Paulo/Mais, 15/11/98)

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As buscas por síntese ou convergência

Todo o acima exposto nos exemplifica e confirma as diferentes buscas de

recomposição de saberes fragmentados, ora como síntese, ora como formas de

convergência e cooperação. A busca por uma síntese das ciências se dá a partir do

surgimento de um novo tema: a chamada crise dos paradigmas, por sua vez um tema

derivado de um novo debate construído nos anos 80 a respeito da pós-modernidade:

estaríamos vivendo uma realidade de tal forma original e tão intensa em seu processo de

mutação que os modelos explicativos tradicionais e suas premissas seriam por demais

simplistas e inadequados para enfocar uma realidade multifacetada, poliédrica, complexa,

para usar a expressão de Morin.

Essas buscas ocorrem de maneiras diferentes: 1- a partir da convicção a respeito da

crise paradigmática e de rupturas epistemológicas; 2- a partir da proposta de integração-

convivência e troca de saberes, entre as ciências e entre as ciências e o senso comum; 3- a

partir da reintrodução da Ética na construção do conhecimento; 4- a partir da retomada da

consiliência, com a hegemonia da Biologia. São formas embrionárias, ensaísticas e ainda

muito insuficientes. Vejamos cada uma:

A primeira delas tem a ver com o diagnóstico de uma crise paradigmática. Segundo

Thomas Kuhn, as ciências e as comunidades científicas são caracterizadas pela existência

de paradigmas compartilhados. São os paradigmas nada mais que modelos ou padrões de

explicação vigentes e aceitos. Derivam de soluções concretas de problemas e também

funcionam como um critério para selecionar quais problemas a comunidade científica supõe

solucionáveis e que vão então se tornarem objeto de estudo. O que não for solucionável é

rechaçado para o campo da metafísica, das abstrações filosóficas, dos enigmas. Assim, o

paradigma também serve como definidor do campo científico. Mas novos problemas surgem,

enigmas até então fora do campo científico se impõem à decifração, fazendo com que a dita

“ciência normal”, a ciência já aceita, entre em crise e novas teorias, esboçando um

movimento por um novo paradigma, apareçam para dar conta de tais problemas, decifrando-

os. Como sublinha Kuhn, as teorias não se desenvolvem gradualmente para se ajustarem a

fatos que se encontravam presentes todo o tempo; em lugar disso, elas surgem ao mesmo

tempo que os fatos. (Por exemplo, a teoria quântica e os fenômenos subatômicos

desconhecidos antes do século XX). Ou seja, elas problematizam, elas criam problemas, se

colocam questões. (Algo semelhante já havia sido dito por Marx, quando este afirmou que a

humanidade só se propõe problemas que possa resolver). Um paradigma também é definido

pelo autor como sendo uma constelação de crenças, valores e técnicas compartilhados pelos

membros de uma comunidade científica. Uma vez aceito o paradigma norteador, a

comunidade científica estaria liberada da necessidade de reexaminar constantemente seus

próprios princípios, aumentando, assim a sua própria eficiência.

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O propósito do ensaio de Kuhn é o de examinar a mudança paradigmática no campo

das ciências naturais ou empíricas e tecer considerações críticas entre a ciência

normalmente aceita e a ciência em crise, um momento fecundo para a elaboração e

disseminação de novos paradigmas. E também para a resistência a eles. A ciência evolui

através de mudanças paradigmáticas, por vezes difíceis de serem aceitas pela própria

comunidade científica, que, segundo o autor, frequentemente suprime inovações

fundamentais que seriam demasiado subversivas para a "ciência normal" já estabelecida e

para suas realizações e fundamentos já amplamente reconhecidos. Foi assim, por exemplo,

com a Revolução de Copérnico na astronomia, que marcou uma mudança fundamental em

relação à teoria de Ptolomeu, que acreditava ser a Terra o centro do sistema solar: o

paradigma geocêntrico caiu por terra, substituído pelo paradigma heliocêntrico.

Essa transição de um paradigma a outro não é um mero processo de acumulação e

sim uma reconstrução revolucionária do campo científico. Tais revoluções científicas são

precedidas por um sentimento crescente de que o paradigma anterior deixou de funcionar,

deixou de ter força explicativa para novos problemas emergentes.

Para Kuhn, a ciência passa por diferentes estágios: um estágio pré-paradigmático,

quando um bom número de escolas ou correntes competem entre si pelo domínio explicativo;

um estágio pós-paradigmático, quando o número de escolas se reduz muito, quase sempre a

um - o paradigma. É quando, segundo o autor, começa de forma mais eficiente a prática

científica. A partir daí, a evolução científica far-se-á por saltos paradigmáticos e que

caracterizam o padrão de desenvolvimento daquilo que Kuhn designa como uma ciência

madura. A evolução científica recusa um paradigma quando já há um outro pronto a ocupar

seu lugar, quando há a propensão de aceitar um outro.

Kuhn abre algum espaço para considerar as ciências sociais. Por que, pergunta-se

ele, as ciências sociais estão sempre debatendo se são ou não são ciências? Não há este

tipo de preocupação entre as ciências da natureza. (O autor ressalva que, dentre as ciências

sociais, é a Economia a que menos se pergunta tal coisa). Uma das respostas que dá diz

respeito à coexistência de paradigmas, o que colocaria as ciências sociais na fase pré-

científica, a bem dizer. Na Economia podemos citar os monetaristas, os estruturalistas etc.

Na Sociologia, marxistas, funcionalistas, interacionistas etc...

Chauí, todavia, nos lembra que diferentes teorias, diferentes paradigmas podem

coexistir também nas ciências da natureza, como, por exemplo na Física, que hoje abrigaria

"três teorias físicas simultâneas - a quântica, para os átomos; a newtoniana, para os corpos

visíveis; a da relatividade, para o movimento da velocidade da luz, regidas por conceitos e

métodos diferentes, excluindo-se umas às outras e todas elas verdadeiras para os

fenômenos que explicam"5. É algo que guarda pontos de contato com o que o filósofo

brasileiro Newton Da Costa chama de 'quase-verdades' das ciências.6

5 A teoria quântica foi elaborada por Max Planck (1858- 1947) para explicar as propriedades dos átomos e moléculas. De acordo com a teoria quântica, a energia é emitida em pacotes denominados quanta; A Teoria da Relatividade, elaborada por Albert Einstein (1879 - 1955) nos diz da velocidade

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Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.

Vivemos um momento de intensificação dos ritmos, dado principalmente pelos

avanços das tecnologias de comunicação. Vivemos também um momento de surgimento e

de agudização de novos problemas, tais como a deterioração ambiental, da perda da

biodiversidade, da interferência do ser humano na essência dos processos naturais, como

com as sementes transgênicas e as experiências de clonagem e criação in vitro. Todas estas

mudanças têm sido vistas, com base em Kuhn, como sintomas de uma crise paradigmática.

Outros argumentam que todas estas alterações convergem para a mesma velha coisa de

sempre: a exacerbação da dominação, do paroxismo do poder, de renascimento de proto-

colonialismos etc…7 Dito de outra forma, mudanças tecnológicas não se fazem acompanhar

por mudanças nas relações e nas estruturas sociais.

A aludida crise dos paradigmas é vista por Bourdieu como um falso dilema. Para ele,

essa crise só pode ser assim percebida pelo saber hegemônico, ameaçado na sua

hegemonia. Ao contrário, o que temos é uma pluriparadigmaticidade bem-vinda, oriunda do

reconhecimento de diferentes atores construindo diferentes conhecimentos. Ao propor a

superação da falsa dicotomia entre o subjetivismo do construtivismo (a realidade como um

constructo) e o objetivismo positivista da realidade como um fato (o realismo da estrutura), e

ao criar o enfoque do "Estruturalismo construtivista" ou "Construtivismo estruturalista"8,

Bourdieu mostrou o poder simbólico que certas categorias profissionais modernas -

jornalistas, intelectuais, cientistas, juristas, artistas - têm de criar realidades, na medida em

que são socialmente dotadas da autoridade da versão universalizante e oficial, que impõe

como universal o que é particular, que neutraliza o contexto histórico, que desenraíza, oculta

e naturaliza questões.

constante da luz e da expressão da energia de um corpo pela sua massa. Mostra ainda que a gravidade dos corpos deofrma o espaço ao seu redor.. Eistein mostrou que a teoria newtoniana não se aplica a corpos muito pesados ou de velocidades muito altas. 6 Newton da Costa: filósofo brasileiro, autor de O Conhecimento. SÃo Paulo, Discurso Editorial/Fapesp, 1997, criou em 1963 a lógica paraconsistente, que admite contradições, tida como a lógica da liberdade. Enquanto a lógica clássica se baseia na não-contradição – uma sentença não pode ser falsa e verdadeira a um só tempo – na evolução da ciência as contradições aparecem. Da Costa proõe entao a lógica não-clássica ou lógica paraconsistente. Da convivência do que é tido como incompatível. Lógica que tem sido pensada também para a robótica, pois, admitindo contradições, faria o robô pensar mais como um ser humano. Ou nas atividades bélicas, no controle dos sinais de trânsito etc. Tudo que sai do binário sim e não. Morin também nos fala da convivência de duas idéias contrárias para conceber o mesmo fenômeno, como o da partícula, que ora se manifesta como onda, ora como corpúsculo (MORIN, op. cit.: 29) 7 Refiro-me aqui aos autores que recusam a perspectiva de uma era pós-moderna, como, por exemplo, Callinicos, em seu libelo marxista Against Postmodernism, a marxist critique. Oxford: Polity press/Basil Blackwell, 1989. 8 "Por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existe, no mundo social e não apenas em termos simbólicos, linguagem, mitos, enfim, estruturas objetivas que independem da consciência e do desejo dos agentes e são capazes de guiar e de constranger práticas e suas representações. Por construtivismo, quero dizer que existe uma gênese social, de um lado, dos padrões de percepção, pensamento e ação que são constitutivos do que chamo habitus e, do outro lado, de estruturas sociais e em particular do que chamo campos e grupos, especialmente do que é usualmente chamado de classes sociais." Pierre Bourdieu em Outras palavras: ensaio para uma Sociologia reflexiva, 1990. Ver também do autor O poder Simbólico e Sobre a Televisão.

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A suposta crise da Sociologia é para Bourdieu um progresso em direção à

cientificidade, pois é a crise da ortodoxia, que se vê enfrentada e desafiada pelas heresias.

Assim, a suposta crise paradigmática tem mais a ver com um processo de democratização e

de reconhecimento da pluralidade de atores e suas diferentes verdades.

Na segunda proposta, mais do que exatamente uma síntese, haveria a

integração/convivência e troca de saberes: a coexistência e a cooperação entre disciplinas.

De acordo com Naomar de Almeida Filho (1997), haveria seis formas diferentes de

construção desta coexistência e cooperação: a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a

metadisciplinaridade, a interdisciplinaridade auxiliar, a interdisciplinaridade, e a

transdisciplinaridade:

1) Na multidisciplinaridade, temos um conjunto de disciplinas que tratam simultaneamente de uma dada questão, problema ou assunto, sem que os profissionais implicados estabeleçam entre si efetivas relações no campo técnico ou científico. Nela há uma justaposição de disciplinas, sem uma cooperação sistemática entre os diferentes campos disciplinares e a coordenação, quando existente, é de ordem administrativa, na maioria das vezes externa ao campo científico. O exemplo dado pelo autor versa sobre as práticas ambulatoriais tradicionais, ou no acompanhamento de pacientes hospitalizados, quando os profissionais da saúde trabalham isoladamente, cada um na sua competência, sem intercâmbio e sem cooperação.

2) Na pluridisciplinaridade há objetivos comuns e um certo grau de cooperação mútua

e uma perspectiva de complementaridade. Por exemplo: ainda na área da saúde, as reuniões clínicas onde casos de pacientes são discutidos por algum supervisor ou chefe de serviço, trocando-se informações de diversos profissionais; as mesas-redondas ou painéis de diferentes especialistas sobre um mesmo tema, etc… A pluridisciplinaridade pode assim, portanto, ser entendida como uma prática interna a um campo e suas subdisciplinas.

3) A metadisciplinaridade se dá quando “a interação e as inter-relações entre as disciplinas são asseguradas por uma metadisciplina que se situa em um nível epistemológico superior”, que não funciona como coordenadora, mas como integradora do campo metadisciplinar. O exemplo de Almeida Filho são as matemáticas e o uso de sua linguagem formalizada de comunicação científica aplicada pelas diversas disciplinas. No que diz respeito as ciências sociais, a metadisciplinaridade pode ser exemplificada pela presença da Economia como catalisadora das interpretações sobre o mundo sócio-político-cultural.

4) Quanto a interdisciplinaridade, Almeida a desmembra em interdisciplinaridade

auxiliar, salientando uma relação assimétrica: “diferentes disciplinas interagem sob a dominação de uma delas, que se impõe enquanto campo integrador e coordenador”. O exemplo ainda nos vem da área da saúde, entre as chamadas disciplinas paramédicas e a medicina.

5) A segunda forma de interdisciplinaridade, a interdisciplinaridade tout court, seria

“estrutural, com tendência à horizontalização das relações de poder entre os campos” e implica na identificação de uma problemática comum, levantamento de uma axiomática teórica e/ou política básica e uma plataforma de trabalho conjunto.

Podemos afirmar que, no campo das ciências sociais – Sociologia, Ciência Política,

Antropologia Social, Psicologia Social, a interdisciplinaridade é hoje praticada. Mas vale

chamar a atenção para a Sociologia, que parece ter nascido sob a chancela da

metadisciplinaridade, no sentido de que se pautou por outra disciplina já consagrada, situada

em nível epistemológico superior: a Biologia, que foi inicialmente o grande paradigma

norteador. E assim evoluiu, seguindo a Matemática, ao introduzir o cálculo como elemento de

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verdade, e a Economia e a hegemonia da produção ao tomá-las como fator explicativo da

sociedade.

6) Por último, a difícil questão da transdisciplinaridade, que adviria da criação de um campo teórico, operacional ou disciplinar de tipo novo e mais amplo. Nele há “a integração de disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática geral compartilhada”. A coordenação seria dada por uma finalidade comum, haveria a tendência à horizontalização de poder e este novo campo desenvolveria uma autonomia teórica e metodológica diante das disciplinas que o compõem.

É voz corrente e aceita que a temática ambiental vem despontando enquanto um

campo novo, complexo, de encontro e cooperação entre os diferentes saberes que lhe dizem

respeito. No caso brasileiro, esta nova temática tem inspirado a criação de alguns programas

de pós-graduação interdisciplinares, que foram desenhados como este espaço desejado de

cooperação e de integração dos diferentes saberes afetos ao meio ambiente, tais como:

Biologia, Ecologia, Medicina, Ciências Sociais, Engenharia, Direito, Química, Filosofia, etc.9

Até que ponto as experiências destas pós-graduações caminham em direção a uma

transdisciplinaridade?

As questões ambientais, nos seus aspectos globalizantes, holísticos, totalizantes,

vêm impondo estudos que construam uma aproximação e trabalho comum entre as ciências

da natureza e as ciências sociais: algumas destas confluências são fáceis, como no caso da

Geografia, que passa a examinar: ajustes/desajustes da relação sociedade/natureza através

das temáticas da água (inundações, secas, energia), da erosão (natural e antrópica), do solo

(sistemas agrícolas), do subsolo (mineração); ou no caso da Demografia, estudando a

pressão demográfica sobre o espaço. Todavia, a aproximação com as ciências empíricas ou

da natureza vem sendo difícil pelo lado da Sociologia: Como admitir os fatores biológicos

sem cair no campo do determinismo e da execrada Sociobiologia? Além de dificuldades

metodológicas, a política desta aproximação também oferece percalços: como conciliar a

proposta moral e seu tom normativo com a premissa da neutralidade das ciências empíricas?

A terceira proposta de convergência se dá pela troca entre ciências e senso comum,

já abordada.

A quarta seria uma proposta de síntese, de superar a fragmentação pela Ética.

Como salientou Morin, falta reconhecer a complexidade – do real e dos saberes – pelos

“cientistas burocratizados” e formados por modelos clássicos de pensamento, que

enclausuram e fragmentam o saber, que separam o homem da natureza e que revestem o

conhecimento científico de esoterismo. Morin propõe a unidade da ciência e da filosofia – via

Ética – apontando para o mote “Ciência com Consciência”. A Ética suplantaria os aspectos

negativos e os efeitos perversos de uma suposta neutralidade científica. (E que está

exemplificada nas polêmicas atuais sobre clonagem, alimentos transgênicos, etc.). Por outro

9 Ver o trabalho “Programas de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e similares no Brasil – uma listagem preliminar”, feito por José Augusto Drummond e Andreia Schroeder. Revista Ambiente e Sociedade, NEPAM, Campinas, ano I, número 2, 1º semestre de 1998, pp. 139 – 149,

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lado, é necessário, todavia, levarmos em consideração a ameaça de, em nome da Ética,

virmos a ter os avanços cientificos obstaculizados por dogmas religiosos.

Nesse sentido, a propalada unicidade da ciência tem se limitado até aqui a ser

apenas uma forma romântica de se acenar para a superação de uma fragmentação de

saberes trazida pelo instrumentalismo das especializações e está envolta no desejo

manifesto da retomada da inspiração ética. Assim, a complexidade está reconhecida. Mas

continua faltando a invenção metodológica para a apreensão e operacionalização desta

complexidade.

Seria a consiliência uma quinta proposta de síntese? Para o biólogo Edward Wilson,

propositor de uma nova disciplina, a Sociobiologia, uma exploração cooperativa entre as

ciências sociais e naturais seria possível, desde que a Biologia fosse o campo fundacional. O

conhecimento tenderia assim a uma coerência, que ele chama de “consiliência”, adotando

um termo cunhado em 1840. Segundo ele, teria sido a ausência de conexão consiliente entre

as ciências naturais e as sociais - entre as considerações sobre a natureza biológica da

humanidade e as maneiras como as pessoas pensam, como a sociedade se organiza, como

criam suas leis e pensamento moral - a explicação das experiências totalitárias, de busca de

sociedades pretensamente ideais. (Trata-se de uma reviravolta engenhosa na crítica que lhe

fazem, a de ser a Sociobiologia um determinismo de pensamento que se harmonizaria com

ideários totalitários como o nazista). O argumento de Wilson dirige-se contra o

construtivismo, que leva a acreditar não ser nenhuma verdade relevante, na medida em que

cada um e cada profissão teria a sua verdade. Para Wilson, a verdadeira cultura é a

chamada cultura viva, uma “atividade coletiva de mentes” operante em cérebros, em mentes

ativas. Ele então distingue esta cultura dos “artefatos culturais” produzidos e que estariam

fora da esfera da cultura viva. Quando exploramos a cultura de civilizações extintas, seus

artefatos não existem, segundo ele, até que sejam reintroduzidos em uso através do estudo

realizado por mentes vivas. A cultura se transmite pelas mentes de uma geração às mentes

da outra, pelos artefatos.

As propostas de Wilson têm sido rechaçadas pela academia. Por ser perigosa, por

ser simplista, por ser redutora, etc. E por retomar a proposta de unidade da ciência, que,

segundo Rorty, teria sido o grito de guerra dos positivistas lógicos nos anos 30 e 40, quando

pretendiam a unidade entre a Psicologia, a Ciência Política e a Biologia.10

Conclusões

1. As formas de conhecimento humano – prático, religioso, filosófico e científico – estão

entrelaçadas e coexistem, não somente como exteriorizações de visões de mundo de

diferentes grupos sociais, mas também porque há componentes dos demais em cada um

10 Ver R. Rorty em seu artigo “Contra a Unidade”, transcrito na Folha de São Paulo/Mais, de 22/3/98.

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destes (aspectos dogmáticos e litúrgicos no conhecimento científico, aspectos filosóficos no

conhecimento religioso, aspectos científicos no conhecimento prático, etc.)

2. Se as Ciências Sociais nasceram tentando mimetizar os métodos das ciências da

natureza, estas últimas parecem agora permeáveis a se enxergarem com certas

características até então tidas como peculiares tão somente às Ciências Sociais: a

historicidade, a contingência, a não-neutralidade.

3- A proposta de construção da interdisciplinaridade tem ficado muito aquém das

expectativas, no que tange às ciências naturais e sociais, ao passo que, entre os ditos

domínios conexos, ela consiste mais em uma volta sobre algo que já havia antes que

recortes profissionais e corporativos impusessem sua tática definidora de campos distintos.

4. Dado o nível de aprofundamento das especializações, é impossível e romântica a proposta

da grande síntese, que vem se reduzindo a exortações de inclusão de aspectos éticos nas

escolhas da racionalidade científica, a ensaios anticientificistas decepcionantes, de

roupagem new age”, e a um debate sobre a unidade da ciência, eivado de conteúdo

ideológico por ambos os lados contendores. A busca da unidade da ciência – no caso em

tela, a Ciência Ambiental (no singular) é, por enquanto, uma proposta que diz mais respeito a

aproximação dos saberes – filosófico, religioso, prático e científico, do que a construção de

um campo cientifico unificado.

5. O conhecimento prático do homem comum é tão valioso quanto o do cientista na busca da

solução de problemas, principalmente naqueles relacionados aos riscos ambientais.

6. Como disse Bourdieu, não há crises paradigmáticas e sim uma bem-vinda crise de

hegemonia.

7. A experiência interdisciplinar na área do meio ambiente não ultrapassou as fases

multidisciplinar e pluridisciplinar. Estamos motivados pelo bom desejo de formar um campo

comum, com regras e operações, vocabulário e pressupostos compartilhados, e por um

aceno de boas intenções, de defesas arriadas, de convite ao convívio entre estudiosos e

pesquisadores de campos distintos e até aqui vividos com exemplos de assimetria e

desconfiança, mas não construimos ainda a interdisciplinaridade, que tem ficado no nivel

individual, singular, na própria pessoa do pesquisador de uma área que é autodidata em

outras. É o modelo que chamo provisoriamente de padrão Leonardo Da Vinci e que, embora

bem-vindo, corre o risco de se caracterizar pela superficialidade generalista e que porisso

tende a ser visto com reservas. Complementando o quadro desfavorável, nossas agências

de fomento à pesquisa ainda não dispõem de um campo/comitê de avaliação interdisciplinar

e tendem a ver em propostas interdisciplinares apenas uma justaposição tática de

departamentos e/ou unidades mais frágeis. As universidades, que reproduzem em seus

programas de pós-graduações a sua estrutura departamental estanque, têm dificuldades

administrativas para enquadrar projetos interdisciplinares. A proposta de se trabalhar

juntando ciência e senso comum, isto é, colocando ombro a ombro cientistas e movimentos

sociais, também é vista com reticências, com temor de aparelhamentos e partidarizações

políticas.

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8. Na perspectiva construtivista da elaboração do conhecimento, iniciada com o século XX, a

ciência não mais é vista como uma observação da própria realidade para a definição dos

fatos, leis, propriedades, seus efeitos posteriores e previsões, mas como uma construção de

modelos. Assim, o conhecimento é uma aproximação, é contingente e é corrigível.

9. Dizia Kant, o filósofo alemão (1724-1803) que para muitos inaugura a filosofia moderna11,

que o conhecimento racional tem dois objetos: a natureza (conhecer seus fenômenos para

controlá-la) e a liberdade (criar a sociedade libertária). O primeiro objeto estaria no campo

das ciências empíricas, o segundo no campo da filosofia. As ciências humanas, enquanto

inspiradas pela liberdade, pelo bem-estar e pela felicidade do homem, estariam neste campo

filosófico. Estaria aí a razão da impotência das ciências sociais? Marx, também, por outra

linha argumentativa, nos fala das mudanças intensas no crescimento das forças produtivas,

enquanto que as relações sociais de produção mudam muito mais lentamente.

10. No entanto, as coisas vêm mudando nas últimas décadas, contrariando Aristóteles: a

engenharia genética, a biotecnologia contemporâneas são evidências do quanto passamos a

poder alterar o mundo físico com nossas ações. É interessante salientar que, de Aristóteles

para cá, os usos possíveis do conhecimento parece que viraram pelo avesso: hoje as

ciências naturais sentem-se capazes de alterar o mundo com as suas ações (sementes

transgênicas, bichos patenteados, clonagem, criação de órgãos artificiais, modificação da

rota de asteroides, etc...), enquanto que as ciências sociais hoje em dia sentem-se

impotentes para compreender o mundo social e, menos ainda, capazes de nele interferirem.

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11Nossa filósofa Marilena Chauí acentua que a contruibuição de Kant ao estudo da Razão é usualmente referida como tendo sido uma "revolução copernicana" em Filosofia. (Chauí. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 1995:77)

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