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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 Representação robótica na Ficção Científica: implicações subjetivas 1 Lívia de Pádua NÓBREGA 2 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG Resumo O presente artigo tem como objetivo geral mapear a representação de três robôs da Ficção Científica, sendo dois deles na série de televisão norte-americana Battlestar Galactica e um no filme britânico Ex_Machina, fazendo um contraponto com os anteriores. A partir destes, pretende-se compreender de que modo tais representações revelam uma transformação na forma representacional robótica que propicia a problematização das fronteiras humano/máquina, outros dualismos e suas implicações sobre a subjetividade. Palavras-chave Representação; Subjetividade; Ficção Científica; Battlestar Galactica; Ex_Machina. Breve história da Ficção Científica O reavivamento da Ficção Científica (FC) nos últimos tempos confere-lhe um caráter de centralidade que permite que esta seja vista como a narrativa representativa do mundo contemporâneo (TUCHERMAN, 2005), sintoma e tendência da atualidade, como definem autores com Jean Baudrillard, Daniel Dennett, Katherine Hayles, Peter Sloterdijk e Scott Bukatman. Sua afinidade com a história do tempo presente, referências ao passado e vislumbres em relação ao futuro não é novidade, marcando seu próprio surgimento em meio às descobertas científicas e tecnológicas da Revolução Industrial e as transformações sociais, culturais, políticas e econômicas correlatas a esta. Herdeira dos relatos de viagens que descreviam o desconhecido e os seres fabulosos que povoavam-no, tem em Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein: or the Modern Prometheus, 1818, Reino Unido) de Mary Shelley seu marco inaugural. A expressão “Complexo de Frankenstein” faz referência ao receio de muitas histórias de FC que demonstram uma visão negativa em relação à ciência, a tecnologia e seus frutos. 1 Trabalho apresentado no GP Cibercultura, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, São Paulo, 2016. 2 Doutoranda em Comunicação da UFMG; Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás; Graduada em História pela UFG e Jornalismo pela PUC-GO. E-mail: [email protected]

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1

Representação robótica na Ficção Científica: implicações subjetivas1

Lívia de Pádua NÓBREGA2

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

Resumo

O presente artigo tem como objetivo geral mapear a representação de três robôs da Ficção

Científica, sendo dois deles na série de televisão norte-americana Battlestar Galactica e um

no filme britânico Ex_Machina, fazendo um contraponto com os anteriores. A partir destes,

pretende-se compreender de que modo tais representações revelam uma transformação na

forma representacional robótica que propicia a problematização das fronteiras

humano/máquina, outros dualismos e suas implicações sobre a subjetividade.

Palavras-chave

Representação; Subjetividade; Ficção Científica; Battlestar Galactica; Ex_Machina.

Breve história da Ficção Científica

O reavivamento da Ficção Científica (FC) nos últimos tempos confere-lhe um

caráter de centralidade que permite que esta seja vista como a narrativa representativa do

mundo contemporâneo (TUCHERMAN, 2005), sintoma e tendência da atualidade, como

definem autores com Jean Baudrillard, Daniel Dennett, Katherine Hayles, Peter Sloterdijk e

Scott Bukatman.

Sua afinidade com a história do tempo presente, referências ao passado e vislumbres

em relação ao futuro não é novidade, marcando seu próprio surgimento em meio às

descobertas científicas e tecnológicas da Revolução Industrial e as transformações sociais,

culturais, políticas e econômicas correlatas a esta.

Herdeira dos relatos de viagens que descreviam o desconhecido e os seres fabulosos

que povoavam-no, tem em Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein: or the

Modern Prometheus, 1818, Reino Unido) de Mary Shelley seu marco inaugural. A

expressão “Complexo de Frankenstein” faz referência ao receio de muitas histórias de FC

que demonstram uma visão negativa em relação à ciência, a tecnologia e seus frutos.

1 Trabalho apresentado no GP Cibercultura, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente

do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, São Paulo, 2016. 2 Doutoranda em Comunicação da UFMG; Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás; Graduada em

História pela UFG e Jornalismo pela PUC-GO. E-mail: [email protected]

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Segundo o histórico de Oliveira (2005), a expressão Science Fiction, que já tenciona

os campos da liberdade de criação ficcional e o rigor da ciência, foi usada pela primeira vez

pelo editor Hugo Gernsback em junho de 1929 no primeiro volume da revista Science

Wonder Stories. Anteriormente, o termo scientifiction já havia sido utilizado no número um

da revista Amazing Stories em abril de 1926.

Posteriormente, a literatura, campo primordial no qual inicialmente se desenvolveu a

FC, sofreu influência do editor John W. Campbell, da Astounding Stories, o que iniciou a

chamada Golden Age (1938 – 1950), de influência iluminista. As histórias eram publicadas

em brochuras de papel barato, as pulp magazines para narrar as space operas, aventuras

intergalácticas. Produto da indústria cultural da época, foi considerada pela crítica como um

gênero menor, tal qual a fantasia, o terror, o faroeste e a aventura policial.

Nos anos 1950 e 1960 viu uma aproximação de temas provenientes das Ciências

Sociais com as revistas The Magazine of Fantasy and Science Fiction (1949) e Galaxy

Science Fiction (1950), principalmente no segundo pós-guerra quando o desencantamento

com a ciência, a tecnologia e a ideia de progresso embutida nestas influenciaram o período

conhecido como New Wave. Provém daí a divisão entre FC hard, romanceando temas

ligados a Física, Química, Astronáutica e Cibernética e FC soft, abarcando temáticas da

Filosofia, Sociologia, Psicologia, História e Comunicação.

Sob o signo da Contracultura surge a vertente cyberpunk, retratando sociedades

distópicas de tecnologia capilarizada, fruto da vitória das grandes corporações que

implantam seus valores. Por isso o cenário deste tipo de FC é quase sempre pós-

apocalíptico.

A partir do tema central da ciência, a FC tematiza indivíduo e sociedade,

possibilitando a problematização da subjetividade – estética, maquínica e do sujeito - e da

realidade.

Para Felinto (2002), a FC é permeada pelo impulso fáustico da criatura de tornar-se

criador e esboça a estranheza de estar diante de um ser animado que não se sabe se está

vivo ou morto (FELINTO, 2005).

Da proibição religiosa de conhecimento do interior do corpo humano para a

possibilidade de dissecá-lo após a morte e o início da cultura visual médica que revelou os

mistérios do funcionamento do corpo em plena vida instaura-se um novo regime de

visibilidade (CRARY, 2013). O autor mostra que o cinema se apropriará dos novos

conhecimentos para criar seu aparato técnico. A maneira de ver o corpo deste novo estatuto

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do visual foi fundamental para a FC. Da interface Medicina, Cinema e Ficção Científica

surge a noção de corpo-máquina (TUCHERMAN, 2005).

Assim, até princípios do século XX a tecnologia era vista como extensão, tendo o

corpo primazia sobre a máquina e sendo tal interface visível. Na atualidade vigora a ideia

do humano absorvido pela máquina, culminando no homem-máquina (FELINTO, 2002).

Se anteriormente as explicações para a vida eram dadas a partir da ideia de um

princípio vital, posteriormente a biologia possibilitou uma maquinação do humano a nível

bioquímico com o conhecimento das interações moleculares e genéticas (OLIVEIRA,

2006a).

Tais deslocamentos serão ilustrados pela FC, não apenas no âmbito dos livros e

histórias em quadrinhos, mas também no cinema, televisão, rádio, jogos e teatro. O sopro de

vida que anima o inanimado esteve presente na cultura judaico-cristã na Bíblia com Adão3 e

no Golem4 judaico, além do Pigmalião5 da mitologia greco-romana. As histórias da

antiguidade clássica e do medievo eram permeadas por monstros, que geralmente

encarnavam o mal e os medos. Quando os autômatos começam a aparecer como

personagens as histórias ganham certo refinamento ao imbricarem imaginação e técnica.

De acordo com Oliveira (2006b), os primeiros autômatos foram os relógios de água,

como a Clepsidra e os de máquina, como os jack, bonecos que saiam de uma pequena casa

com um martelo para anunciar as horas, uma espécie de “cuco”. A automatização permitiu

a criação de um pato artificial por Jacques de Vaucanson em 1739 na França. Em 1883, o

italiano Carlo Collodi romantiza o Pinóquio, um boneco de madeira que sonhava em ser um

menino de verdade. Já nas primeiras histórias ficcionais com autômatos o tom é negativo e

a expressão “Complexo de Pinóquio” atenta contra os seres sintéticos desejosos de se

tornarem pessoas de verdade.

Ainda de acordo com Oliveira, o tom pessimista intensifica-se com as primeiras

histórias de robôs humanoides – de contornos físicos humanos, mas aparência ainda

maquínica - muito diferentes das versões industriais até então realmente existentes. Se já

eram familiares à ficção, só recentemente este tipo de robô foi concretizado com o Asimo

da Honda, cujo nome homenageia o escritor de FC Isaac Asimov. A primeira ficção a tratar

dos robôs foi a peça tcheca R.U.R. (Rossum’s Universal Robots, 1920, Karel Capek).

3 Criado a partir do barro, segundo as escrituras. 4 Ser mítico também criado a partir do barro e que ganharia vida a partir da inscrição hebraica Emet (verdade) em sua

testa. Apagando-se a primeira letra, a palavra Met (morto) poderia se desfazer o Golem. 5 Escultor que tendo criado uma estátua da mulher ideal, apaixonou-se por sua criação. Segundo a lenda, a deusa Afrodite

teria conferido vida à escultura.

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Para a autora, com os androides – robô que além de possuir a forma física humana,

tal qual o humanoide, possui também a aparência semelhante à orgânica, sendo distinguível

de seus criadores somente por testes específicos – as histórias se complexificam, as

fronteiras humano/máquina se tornam mais fluidas e o tom moralizante da tecnologia como

força inteligente, mas perigosa, intensifica-se. É emblemático do período o filme Blade

Runner: o caçador de Androides (Blade Runner, 1982, EUA), baseado no livro Androides

sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K. Dick (Do Androids Dream of Eletric Sheep?,

1968, EUA).

Ela explica que com o surgimento do computador, as histórias o adotam. Se os

humanoides ficcionalizados até então tinham o inconveniente do corpo, que a tradição

ocidental via como locus da emoção, a nova geração se caracteriza pela desmaterialização,

ilustrada em filmes como Transcendence (2014, Reino Unido/China/EUA), que dá corpo a

teorias como a do cientista austríaco Hans Paul Moravec sobre a possibilidade futura de

transferir memória e consciência humana para suportes físicos tecnológicos, como o

computador, atingindo uma espécie de imortalidade e concretizando o projeto pós-

humanista.

Nas fronteiras entre monstros, autômatos, robôs humanoides, androides e pós-

humano, foram ficcionalizados ainda os ciborgues, seres humanos com alguma capacidade

restaurada ou aguçada pela técnica, como uma prótese de perna mecânica em alguém que

teve o membro amputado, por exemplo (TUCHERMAN, 2005). A presença de criaturas

diversas na FC embota fronteiras que pareciam estabelecidas e seguras como um ponto de

apoio até então. Muitos destes seres foram exaustivamente definidos dentro e fora da

academia como híbridos, termo que pressupõe uma pacificação dos campos hibridizados,

ocultando os conflitos que podem permear a relação dialógica entre duas ou mais formas

subjetivas.

Segundo Felinto (2003) é preciso tencionar as dicotomias e não partir do

pressuposto de que os opostos se desfazem pela impossibilidade de existência de tensões

permanentes. A esse percurso dá-se início na próxima seção.

Subjetividades em jogo

O pensamento racionalista cartesiano postulava a mente como exclusiva do sujeito,

garantindo sua distinção e superioridade em relação aos animais e as máquinas. Para

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Descartes, autômatos e animais compartilhavam o fato de possuírem ações reflexas, não

respondendo pelo pensamento. Apenas o sujeito era reflexivo e presente em si mesmo

(OLIVEIRA, 2006a).

Sujeito e subjetividade, sabemos, são conceitos axiais na centralidade

simbólica do ser ocidental. A visão essencialista de uma interioridade

psicológica no sujeito humano está presente em Platão e Aristóteles;

associa-se à concepção judaico-cristã de alma, que se expande em

elaboração sensorialistas na filosofia medieval, e chega ao racionalismo

moderno (SODRÉ, 2002, p. 149-150).

Segundo a autora, Nietzsche, Marx e Freud abalam os limites deste sujeito

autocentrado, na medida em que pontuam corpo, história e inconsciente como fatores

externos que determinam a consciência. O golpe final do sujeito cartesiano é dado por

Foucault, que avança em complexidade ao ponderar que a experiência não pode prescindir

do mundo físico, do contexto e da ação do tempo, pois a vida, o trabalho e a linguagem

possuem espessura e temporalidade.

Enquanto o dualismo cartesiano delimitou as fronteiras do ser, pensadores

posteriores esmoreceram tais delimitações. A FC tornou-se terreno privilegiado para

problematizar o ser, a sociedade, a ciência, a técnica e os limites entre todas estas esferas.

Binômios como humano/máquina, cultura/natureza, corpo/mente, feminino/masculino,

natural/artificial, orgânico/inorgânico, biológico/não-biológico, entre outros, ganharam

espaço no imaginário tecnocientífico, seja na divulgação científica ou na criação ficcional.

Ainda que recorra às divisões duais já preconizadas por Descartes, a FC também deve às

desconstruções empreendidas por outros pensadores contra o sujeito cartesiano, pois

complexifica as bordas, possibilitando diversas problematizações.

Se Lévy Strauss já via no binarismo a estrutura básica do funcionamento da mente

humana, a FC opera sobre as dicotomias e tem seu ápice no pós-humano, que configura-se

como desejo de transcender os duplos e apagar as diferenças (FELINTO, 2006). Cientistas

como o já mencionado Hans Paul Moravec e Martin Minsky subvertem a lógica cartesiana

ao desassociarem completamente corpo e mente, acreditando em um tipo de vida possível à

mente após a morte do corpo perecível.

Explorar-se-á o esgarçamento das fronteiras a partir da representação robótica em

forma de humanoides e androides na série Battlestar Galactica e na imbricação entre

humano e máquina em Ex_Machina que permite a criação de um robô com aparência

humana, mas que esconde partes evidentemente maquínicas em sua estrutura corporal,

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sendo, portanto, um contraponto tanto à máquina quanto ao humano, já que carrega em si

ambas as especificidades. Desta forma, o pós-humano foi aqui citado somente a título de

contextualização histórica, não fazendo parte das análises a que se dá início agora.

Representação robótica na Ficção Científica

Como atenta Felinto (2003), discorrer sobre apresentação é descritivo e não explica

os fenômenos. É preciso interpretar à luz do conceito de representação. O conceito de

representação vem da Antiguidade Clássica (século IV a.C.) e surge como desejo de

apreender o real o mais fielmente possível, dado que este é inimitável. A representação é

tomada como forma de significação e atribuição de sentido. É a forma pela qual um

fenômeno é lido, tornando-se passível de entendimento.

De acordo com Hall (2002), representação é a produção de sentidos mediante a

linguagem. O sentido não está embutido no que é representado, mas resultado da prática

que busca conferir significação por meio de um sistema de correspondências entre as coisas

e os conceitos convencionados para as mesmas. O sentido precisa ser captado pela

interpretação do simbólico.

Dentro dessa perspectiva, a representação implica em fazer sentido mediante o

vínculo entre o mundo das coisas e o dos signos. Segundo Hall (2009) a produção de

sentido depende da prática de interpretação que é sustentada pelo uso do código e a

interpretação da pessoa que está do outro lado.

Há na FC, portanto, uma representação robótica que pode ser mapeada por meio da

interpretação. Assim, a representação é aqui entendida como uma possibilidade de

apresentar algo sem a pretensão totalizante de ser a única forma representativa possível. O

mapeamento da representação dos robôs em produtos da FC convocam à reflexão sobre a

própria subjetividade humana tencionada em sua interação com o maquínico.

Análise: Cylons - robôs humanoides

Battlestar Galactica (BSG) é uma saga transmidiática norte-americana desenvolvida

em diversos seriados de televisão, filmes, jogos, HQs e websódios na internet. Criada por

Glen A. Larson em 1978, a série original teve apenas uma temporada devido ao alto custo

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de seus efeitos especiais. Posteriormente, a mistura de alguns episódios foi transformada em

dois filmes.

Na trama, a espécie humana teria nascido em um planeta chamado Kobol, dividido

em 13 tribos, as Colônias, sendo seus habitantes os coloniais. Um desastre natural teria

obrigado as colônias a migrarem para colonizar outros 12 planetas, tendo ficado a 13ª

colônia (Terra) perdida das demais. No enredo, os cylons são os antagonistas dos humanos,

criados por estes e se rebelado contra seus criadores.

Em 1980 houve a tentativa de recriação da franquia com Galactica 1980, que não

continha quase nenhum personagem do seriado original e contava a história da nave

Galactica quando esta encontra o lendário planeta Terra. Uma nova junção de episódios foi

transformada em filme a partir dessa série.

Em 2003 foi gravada uma minissérie que daria origem no ano seguinte a mais

longeva versão da série, veiculada de 2004 a 2009, sendo esta aqui analisada. A primeira

temporada revela que inicialmente os humanos haviam criado seu próprio inimigo: os

cylons, robôs humanoides encarregados dos mais diversos trabalhos para a humanidade. A

aparência do cilônios, como foram traduzidos no Brasil, pode ser considerada tosca, com

contornos humanos, mas carcaça maquínica que lembra as armaduras de metal utilizadas

por guerreiros antigos. Esta faz com que os cylons sejam bastante altos, mas caminhem com

certa restrição de movimentos e fazendo muito barulho nas articulações, o que faz com que

sejam apelidados de torradeiras. Uma luz vermelha percorre todo o visor do olhar e

nenhuma comunicação verbal é ouvida deles, pois quando aparecem conversando é sempre

entre si e o espectador não tem acesso ao que é dito. Esta versão é chamada de centurião,

termo que remete a um tipo de oficial da hierarquia militar das legiões do antigo Império

Romano.

A aparência maquínica faz com que os cylons de BSG representem a máquina

diametralmente oposta à condição humana. Como uma versão primitiva da própria espécie

robótica, estes robôs ilustram a distinção em relação aos humanos que pregava o

pensamento cartesiano por esboçarem ações reflexas desvinculadas do pensamento. Após

terem passado muitos anos colonizando um planeta próprio sem que ninguém soubesse

sobre eles, quando resolvem voltar ao planeta de seus criadores têm apenas um objetivo, a

destruição a que se entregam exclusivamente, sem sequer tentar comunicar-se com aqueles

a quem consideram adversários.

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A questão que a diferença entre cylons e humanos traz é a dicotomia

humano/máquina. Consequentemente, o advento da sociedade técnica teorizada pelos

frankfurtianos. Tucherman (2004) define técnica como mediadora do ser humano e do

mundo, ponte entre indivíduo e natureza. Por techné ela define o aspecto concreto da

técnica, seus utensílios, materiais, processos e saber fazer. O conceito traz consigo a noção

de métis como forma de inteligência prática que capacita a operar sobre a técnica. A técnica

seria então o “[...] conjunto de elementos, dos gestos ligados à fabricação e à utilização de

sistemas, melhorando, ampliando as performances dos corpos nas suas relações com o

meio ambiente” (p. 6, grifo da autora). Sistema deve ser visto aí no sentido de que uma

técnica é capaz de operar uma transformação sistêmica, integrando atividades antes isoladas

e gerando uma nova racionalidade que atravessa os métiers.

A nascente ordem de mundo caracterizada pela criação dos cylons é fruto de uma

nova racionalidade técnica incitada pelos humanos. Estes passam a conviver com os robôs

criados na mais pura acepção do termo: robota, do tcheco, trabalho escravo ou forçado

(OLIVEIRA, 2006b). Diversas vezes no seriado o arrependimento por terem se dado o

poder da criação é expresso pelos personagens, conscientes de que o mal que enfrentam sob

o risco de extinção da espécie humana é de suas responsabilidades. O ápice da técnica com

a construção de seres robóticos passível de servirem aos humanos é visto com remorso,

denotando o que Simondon denominou de tecnofobia (FELINTO, 2003). O autor recorre ao

teórico francês para explicar os três tipos de relação do indivíduo com os objetos técnicos,

sendo: neutra em relação ao objeto inanimado; vinculando-o ao sagrado, despertando, por

conseguinte, a vontade de poder; visão deste como ser inteligente e hostil, que ainda que

traga benesses para a humanidade, traria também consequências negativas.

Simondon acredita que a técnica tem origem na saturação de uma fase mágica da

cultura. Na fase mágica há harmonia e integração entre sujeito e objeto. O mundo parece

atender aos anseios do ser humano, mas na medida em que começam os conflitos entre

humano e mundo, religião e técnica surgem como caminhos para solucionar o conflito. A

história é repleta de referências religiosas, confirmando que se tal dicotomia apresenta as

possibilidades de explicação do mundo e se o ser precisa escolher entre uma delas - posto

que adotar ambas seria igualmente conflitivo - a repetitiva analogia da FC à religião seria

resquício da tomada de um caminho – o da técnica – mas incapacidade de desvincular-se da

escolha e consequentemente do caminho que deixou para trás. Tal proposta descamba no

existencialismo de um indivíduo em constante incompletude.

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O caminho da técnica combate a ideia de uma máquina inteligente fora da ação

humana, mas evidencia a perda de controle humano sobre sua própria criação que deixa de

ser escrava para tornar-se a principal ameaça. Sob suas carcaças metálicas, os cylons

alegorizam o mal e o medo humano em relação a uma tecnicidade que escapa a seu

comando. Se Simondon (FELINTO, 2003) não diferencia natural e artificial, colocando o

artificial como um natural suscitado, os cylons corporificam tendências familiares à

humanidade, com o desejo de destruição, por isso são tão temíveis. Em analogia à ideia de

progresso vinculada ao iluminismo e que teria culminado na produção de armas de

destruição fundamentalmente tecnológicas durante as guerras mundiais, o desenvolvimento

técnico do qual os cylons são frutos propicia o questionamento: “aonde o progresso nos

levou?”.

Simondon postula três níveis de evolução dos objetos técnicos. No primeiro ele é

mera ferramenta restrita a fins utilitários; com as máquinas, entra em relação com o

indivíduo, podendo até mesmo substituir-lhe e finalmente a ideia de conjunto, preconizada

na indústria automatizada. Tal percurso pode ser identificado na série com a concepção de

robôs que deveriam restringir-se a servir a humanidade. Tal relação se torna mais complexa

quando estes adquirem poder de se multiplicar e criar tropas adversárias.

O tom moralizante a respeito do desenvolvimento tecnológico aponta para o dilema

entre ver a tecnologia como um meio ou como um fim. Sobre os perigos de uma perspectiva

instrumental que fetichiza a técnica, Felinto (2003, p. 9-10) pergunta: “[...] devolver a

tecnologia à dimensão de uma suposta objetividade e de um papel de meio não resultaria

numa visão antropocêntrica do objeto técnico como mero instrumento passivo e sujeito à

vontade suprema do ator humano?”. A resposta é dada no desenrolar da história que lembra

que a técnica não é neutra nas mãos de um sujeito onipotente em plena posse de sua

subjetividade e vê o objeto como sistema que se acopla a materialidade do corpo humano e

assim gera novos sistemas em processos de progressiva complexidade.

Santaella (2009) propõe pensar nas novas tecnologias como parte do processo

evolutivo do ser humano. De modo contrário, a moral que a representação essencialmente

maquínica dos robôs humanoides de BSG apresenta é a materialização do desenvolvimento

técnico em sua vertente mais perigosa e hostil à evolução humana.

Análise: Número Seis – a versão androide dos cylons

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Enquanto os cylons representam o modo pelo qual os humanos criaram seus

próprios inimigos, a personagem Número Seis dentro da mesma série aponta para um nível

de evolução técnica no qual os próprios robôs são capazes de criar a versão melhorada de si

mesmos: os androides. Fisicamente igual aos humanos, a versão androide é composta por

material biológico. A novidade é a aparência indistinguível dos humanos, que acaba

surpreendendo-os com o que a própria chamada de abertura da série chama de evolução dos

cylons, que agora possuem várias cópias. Paradoxalmente, os cylons maquínicos também

têm em sua composição material orgânico, como fica claro em passagens nas quais a

tripulação da nave Galactica consegue apreender um Raider Cylon, nave na qual os robôs

não atuam por dentro da carcaça, pois a nave é o próprio robô. Com o interior cheio de

tecidos, sangue, secreções e cheiros, o dispositivo conta com um cérebro, que deve ser

morto para ser desativado, permitindo assim que a carcaça seja utilizada como veículo por

qualquer pessoa que aprenda a manejar seus controles.

A “versão humana” - como os androides são referidos em um dos episódios em

contraposição à “versão máquina” - quando mortos têm sua memória e consciência

replicada em um ou vários seres sintéticos idênticos. A capacidade de replicação e a

dificuldade de se diferenciar humanos e androides são os principais perigos oferecidos pelo

protótipo aprimorado. Enquanto a realidade mostra diversos cientistas empregando esforços

em pesquisas para transferir memória e consciência humana para hardwares, tal

empreendimento revela-se uma realização plena no mundo dos robôs, que transcendem a

morte a partir do download de si mesmos.

Neste cenário, Número Seis é uma espécie de líder que vive em meio a tripulação da

nave que carrega os últimos remanescentes humanos sem que ninguém a perceba. Ela só é

visível para Gaius, o cientista que passou dois anos envolvido amorosamente com ela sem

saber de sua real condição. Durante este período, ela teria auxiliado-o a compreender os

algoritmos do sistema de defesa contra os cylons na colônia Cáprica. Ignorando que

Número Seis era um agente infiltrado, Gaius lhe dá as condições que possibilita o retorno

dos cylons. Esconder seu papel de traidor da frágil condição humana após os ataques passa

a ser seu objetivo. É sintomático que um cientista seja o responsável pela abertura da

possibilidade de ataque aos humanos pelas máquinas.

Em outros cenários, Número Seis aparece simultaneamente coordenando operações

de destruição humana. Sua performance do comportamento interativo humano é de

assimilação tão perfeita que a humanidade parece uma segunda natureza da personagem,

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que além de atributos humanos como o amor, o ciúme, a raiva, o sentimento de vingança e

o desejo é imbuída também de religiosidade. Inúmeros diálogos entre a androide e Gaius

são travados a partir de tentativas dela de convencê-lo da existência e poder de Deus, a

quem todos – humanos e máquinas – deveriam ser tementes e realizar as vontades. O

ímpeto religioso monoteísta de Número Seis contrapõe-se ao politeísmo greco-romano dos

humanos da história e ao ceticismo do cientista, para quem as explicações sobre o mundo

não são divinas, mas científicas.

O fato da androide ser uma máquina, mas ter desenvolvido uma natureza muito

semelhante à humana convida à problematização de uma subjetividade marcada pelos

limites tênues entre ciência e religião. Na medida em que os cylons maquínicos representam

o auge na ruptura da fase mágica na qual indivíduo e natureza viviam em harmonia e

integração, os cylons androides representam a escolha do caminho da técnica, mas também

o olhar constante para o caminho religioso deixado para trás e que as máquinas fazem

questão de lembrar a todo o instante, como se este tivesse sido o momento de erro da

humanidade.

A máquina passa a ser o novo ambiente da experiência humana em conflito que

tenciona as fronteiras dualistas entre humano/máquina, entre outros, trazendo para a cena a

hipótese de existência de uma subjetividade maquínica que permite questionar os limites

entre o que é ser humano, o que é ser máquina e quais os contornos subjetivos destas

experiências. Tal tensão tem sua expressão máxima no filme Ex_Machina, no qual a

possibilidade de subjetividade maquínica alcança seu auge, mas a representação corporal da

máquina possui caráter intermediário entre os cylons maquínicos e os androides

aparentemente humanos de BSG.

Análise: Ava – o maquínico encoberto pelo humano

Diferente do cylon visualmente maquínico com sua carcaça humanoide metalizada e

do androide que se parece com o humano de BSG, o robô do filme Ex Machina: Instinto

Artificial (Ex_Machina, 2015, Reino Unido) circula no entrelugar destas duas formas de

representação. Visivelmente humana em sua aparência, Ava esconde estruturas claramente

maquínica embaixo de apetrechos como peruca, roupas e calçados.

A parte traseira de sua cabeça e daí pescoço, tronco, braços e pernas exibe

internamente fios e cabos por onde são transmitidas luzes azuladas. O material transparente

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que protege o maquinário é revestido por uma tela branca. Seu rosto, mãos e pés são

próteses muito próximas de membros reais. As partes intermediárias como ombros, colo,

peito e quadril são cobertas por tecido cinza também com tela. Sua mente é confeccionada

em gel compactado e possui sexualidade programada para a heterossexualidade.

Ava é criação de Nathan Bateman, dono da ferramenta de buscas mais utilizada na

rede mundial de computadores e que vive em uma casa isolada nas montanhas. Caleb Smith

é um programador na empresa de Nathan que é selecionado para passar uma semana com

ele para conhecer e testar seu projeto de Inteligência Artificial (I.A.).

A grande questão levantada pelo filme é se Ava é uma criação com I.A. consciente

ou que imita consciência em relação a si mesma e aos outros. Tanto para seu criador quanto

para o avaliador, importa saber se ela de fato sente, simula ou ainda uma terceira via: se

finge sentimentos.

Oliveira (2006a) lembra que cientistas como Moravec e Minsky definem processos

mentais como a manipulação de representações simbólicas de acordo com a lógica. A

simulação de computador seria capaz de modelar a vida mental humana a partir de

respostas mais objetivas. Há uma concepção funcionalista da mente que crê que as emoções

e os sentimentos não são experiências físicas para o cérebro, mas gatilhos que possuem

papel funcional abstrato – a ação concreta sobre o mundo não é fundamental para o

pensamento. Assim as máquinas seriam capazes de experimentar estados mentais genuínos

e esboçar emoções e consciência.

Ainda segundo a autora, uma crítica possível a esse pensamento são os processos

subjetivos que atuam como estímulos que desencadeiam reações como respostas. Enquanto

a corrente de Moravec e cia pode dizer que estes podem ser interpretados e de forma

funcional descarregar impulsos elétricos cerebrais, as correntes que o criticam precisam

compreender melhor de que modo os processos bio-físico-químicos podem originar estados

de sensibilidade.

Oliveira (2006a) recorre ao médico neurologista e neurocientista português António

Damásio para defender a subjetividade – e consequentemente a complexidade - como o

último possível reduto hoje de diferenciação do humano em relação às máquinas. Para que

tal alternativa seja válida é preciso ainda compreender melhor como os seres atuam por

associação, investigando a relação entre padrões neurais e mentais. Outro problema a ser

solucionado é compreender o papel do self. “A ‘aparência’ da emoção pode ser simulada,

mas o modo como os sentimentos são sentidos não pode ser copiado em uma peça de

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silício” (DAMÁSIO, 2000, p. 397 apud OLIVEIRA, 2006a, p. 144). Só o humano é capaz

de produzir a cultura com a qual recobre de significados o apoio inerte do corpo orgânico.

Nos limites do pensar sobre o que é o humano, o que é o maquínico, o que é a

consciência e quem é capaz de exibi-la, Sodré (2002) coloca que a técnica propicia hoje o

desenvolvimento de novas formas de consciência. Estendendo a reflexão do autor à análise

de Ava, pode-se concluir que esta configura-se como um novo dispositivo de consciência,

um metaforizador tecnológico que a caracteriza como uma categoria subjetiva e técnica ao

mesmo tempo. O teórico define consciência subjetiva como aquela que processa

reflexivamente os conteúdos da percepção individual. Ele recorre ao filósofo fenomenólogo

alemão Jaspers para designar como consciência a interioridade de uma vivência; o saber

vivido e objetivo de alguma coisa, oposto ao inconsciente; a autorreflexão, consciência de si

mesmo e que implica reflexibilidade. Comportamentos como os mecanismos perceptivos,

os hábitos adquiridos, as repetições do caráter, as disposições de memória e as

predisposições e habilidades não dependeriam da consciência, mas de inferências

automáticas do sistema nervoso. O pensamento coaduna-se em Oliveira (2006a), que

lembra que as Ciências Cognitivas revelaram que 95% das atividades que pensava-se

depender da consciência, como razão e inteligência, são feitas automaticamente. Dilemas

semelhantes têm sido colocados pela Neurociência, Inteligência Artificial e Filosofia ao

postularem a inteligência dissociada de consciência.

Ainda segundo Sodré, os novos estudos mostram que é possível aprender, pensar e

raciocinar sem a consciência, que não possui uma localização determinada – no cérebro,

como muito já se imagina e é reforçado pela FC. Seu funcionamento é marcado por

operações informacionais que funcionam por associação. Para ele, a consciência subjetiva é

uma metáfora do que se chama mundo real e não uma cópia da experiência deste. Sendo

assim, a consciência pode estar em qualquer lugar, inclusive em uma máquina, desde que se

atente para o advento de uma nova forma de consciência, localizada na máquina e

assumindo aspectos funcionais desta, mas criada pelo humano, “[...] é preciso deixar claro

que a consciência é sempre humana, ou seja, uma metaforização aberta – e não um fechado

automatismo funcional -, que portanto depende da interação homem-máquina” (SODRÉ,

2002, p. 137, grifo do autor).

Com base no autor, o cérebro pode ser concebido como uma máquina – não como

mecanismo físico, mas estrutura lógica – guardadas as diferenças entre o sistema nervoso,

que implicam variabilidade e morte celular e os padrões estáveis de um artefato. Assim,

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Ava ilustra o desenvolvimento de uma nova forma de consciência, fruto da criação humana,

mas que esbarrando na impossibilidade de ser tal qual a de seu criador, limita-se a uma

imitação da consciência deste, ainda que a maioria dos comportamentos que exiba possam

ser classificados como inteligentes, mas dissociados da consciência.

Cabe sempre à consciência humana, na verdade, determinar o grau de

realidade das coisas [...] toda e qualquer realidade só pode ser assim

estabelecida em relação ao sujeito humano, colocando-se este último no

centro da definição do real e do potencial (SODRÉ, 2002, p. 123).

É possível à Ava exibir comportamento inteligente, fruto de sua I.A., mas este não

advém de uma consciência tal qual a humana, posto que até mesmo para existir esta

depende do humano. É possível, no entanto, falar no desenvolvimento de uma nova forma

de consciência, não humana, maquínica, resultado da criação humana para a máquina. Esta

seria capaz de atuar de modo inteligível de modo semelhante a uma consciência genuína,

mas não configura o que se entende de fato como consciência, posto que esta é prerrogativa

humana.

Na medida em que a história questiona até que ponto a máquina pode ter

capacidades humanas, traz para o cerne da discussão o humano e o que compõe sua

subjetividade. Esta pode ser simulada/fingida ou realmente sentida por uma subjetividade

maquínica? Tal qual a história de um experimento em I.A. que Caleb conta a Ava sobre

Mary, um computador que sabe tudo sobre cores, mas vive em um quarto preto e branco e

que ao sair e conhece as cores do mundo torna-se tão próxima à condição humana quanto

uma máquina pode ser, é quando sai da casa de Nathan na cena final do filme e vê as

pessoas, a cidade e a natureza que Ava vive a experiência humana. De que forma ela

experiencia isto ainda é uma incógnita e um desafio para as Ciências Cognitivas com a I.A.

e a Robótica, a Neurociência e a mente e as Ciência da Informação com os computadores e

redes. Desta forma, não poderia ser objetivo deste texto responder até que ponto o

sentimento é uma subjetivação ou apenas uma resposta aos estímulos de feromônios, como

defendem correntes reducionistas da Biologia. Buscou-se mostrar, entretanto, de que

maneira Ava representa uma transformação na representação robótica na FC com uma

correlata complexificação na problematização da subjetividade em um tempo e espaço no

qual humanos e máquinas estão em constante interação.

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Conclusão

O presente artigo mapeou a representação robótica na Ficção Científica a partir de

três robôs para traçar as transformações na forma representacional destes, de modo a

perceber como os seres sintéticos, ao tencionar os limites entre humanos e máquinas,

permitem problematizar a subjetividade. Para tanto, fez-se necessário oferecer um breve

histórico da FC ao longo do tempo, bem como da representação de robôs em histórias da

vertente para se chegar a forma representacional robótica na FC atual. O levantamento

permitiu ver o gênero como terreno privilegiado para refletir sobre as relações entre

indivíduo e tecnologia, que encontram na atualidade sua centralidade. Explanou-se ainda

sobre a Subjetividade e as transformações desta. Assim, foi possível compreender como a

FC caracteriza-se hoje como uma narrativa que possibilita a reflexão sobre as tensões

presentes na atualidade a partir da imbricação entre humanos e máquinas.

Como primeira análise tem-se os cylons da série norte-americana Battlestar

Galactica, que com suas carcaças maquínicas parecidas com as armaduras de guerreiros

medievais, opõem-se diametralmente a condição humana, permitindo que este e a

sociedade, a técnica e a máquina, sejam problematizados nas telas a partir de relações que

tencionam binômios, como cultura/natureza, corpo/mente, feminino/masculino,

natural/artificial, orgânico/inorgânico, biológico/não-biológico, entre outros. Tais

dicotomias são locus de tensão que fogem à pacificação dos pares, como querem dar a ver

os discursos que encobrem o conflito a partir do uso de expressões como “híbridos”.

Posteriormente, analisou-se a versão androide androide dos cylons do mesmo

seriado que ao aproximarem-se da composição e representação humana, tornam tênues as

fronteiras entre os dualismos já colocados, intensificando o caráter de conflito de tais

representações que embotam as bordas entre humano e máquina.

Finalmente, tem-se a análise de uma Inteligência Artificial que mescla partes

semelhantes às humanas e de máquinas, esboçando os dilemas colocados por uma

subjetividade maquínica representada em seu auge, mas cuja representação física possui

caráter intermediário entre os dois objetos primeiramente analisados. Ao ocupar o

entrelugar da representação robótica, Ava problematiza a questão da consciência e a

possibilidade desta ser recriada ou imitada em uma máquina, tematizando assim questões

atuais e consonantes às novas descobertas de áreas como as Ciências Cognitivas,

Neurociência e Ciências da Informação.

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Acesso: 21 de junho de 2016 às 08:10