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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 Dazinimigas às azamigas: sororidade como transformação do imaginário sobre o feminino na experiência das Madalenas Teatro das Oprimidas 1 Patricia da Gloria F. GOMES 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ Resumo O presente artigo parte do ‘mito da inimizade feminina’ para investigar porque ainda hoje tal ideia persiste e continua a fazer parte da construção da identidade cultural e do imaginário sobre o feminino e em que medida a sororidade, termo bastante em voga nos debates feministas e de gênero, consegue ultrapassar o mito e ser incorporado por grupos e indivíduos, contribuindo para combater o estigma feminino que, entre outros, desvaloriza a mulher e lhe atribui a incapacidade de fazer aliança com outras mulheres. Para tal, adota-se como objeto de pesquisa o I Festival Internacional Madalenas, realizado em setembro de 2015, na Argentina, que contou com grupos de Madalenas Teatro das Oprimidas, de várias regiões do Brasil e diversos países. Palavras-chave: Sororidade; Imaginário; Identidade cultural; Madalenas Teatro das Oprimidas. Introdução “Amizade entre mulheres não existe”, “Mulher trabalhando junta não presta”. Quem nunca ouviu essas frases, ditas muitas vezes em tom de brincadeira e adornadas por risos de homens e de mulheres? E igualmente é dito, adotando ainda a linha de raciocínio do senso comum, que “toda brincadeira tem um fundo de verdade”. E é na junção dos sentidos dessas frases corriqueiras que se fortalece a ideia de um mito da inimizade feminina. Tomando emprestada a compreensão de que o mito é “uma narração relativa à origem de tudo o que pode preocupar-nos, atemorizar-nos ou surpreender-nos” (RICOEUR, 1993), não é de se estranhar que, com essa força de ideia originária, ele passe de geração em geração e torne mais forte seus contornos de características de práticas sociais e de identidade. Mas se a identificação da data de origem de tal mito é imprecisa 3 (mas é possível encontrar traços dessa ideia em mitos como o da Medusa ou Hera), atualmente livros, 1 Trabalho apresentado no GP Comunicação, Imagem e Imaginário, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UERJ-RJ, email: [email protected].

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

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Dazinimigas às azamigas: sororidade como transformação do imaginário sobre o

feminino na experiência das Madalenas Teatro das Oprimidas1

Patricia da Gloria F. GOMES2

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ

Resumo

O presente artigo parte do ‘mito da inimizade feminina’ para investigar porque ainda hoje

tal ideia persiste e continua a fazer parte da construção da identidade cultural e do

imaginário sobre o feminino e em que medida a sororidade, termo bastante em voga nos

debates feministas e de gênero, consegue ultrapassar o mito e ser incorporado por grupos e

indivíduos, contribuindo para combater o estigma feminino que, entre outros, desvaloriza a

mulher e lhe atribui a incapacidade de fazer aliança com outras mulheres. Para tal, adota-se

como objeto de pesquisa o I Festival Internacional Madalenas, realizado em setembro de

2015, na Argentina, que contou com grupos de Madalenas Teatro das Oprimidas, de várias

regiões do Brasil e diversos países.

Palavras-chave: Sororidade; Imaginário; Identidade cultural; Madalenas Teatro das

Oprimidas.

Introdução

“Amizade entre mulheres não existe”, “Mulher trabalhando junta não presta”. Quem nunca

ouviu essas frases, ditas muitas vezes em tom de brincadeira e adornadas por risos de

homens e de mulheres? E igualmente é dito, adotando ainda a linha de raciocínio do senso

comum, que “toda brincadeira tem um fundo de verdade”. E é na junção dos sentidos dessas

frases corriqueiras que se fortalece a ideia de um mito da inimizade feminina.

Tomando emprestada a compreensão de que o mito é “uma narração relativa à

origem de tudo o que pode preocupar-nos, atemorizar-nos ou surpreender-nos” (RICOEUR,

1993), não é de se estranhar que, com essa força de ideia originária, ele passe de geração

em geração e torne mais forte seus contornos de características de práticas sociais e de

identidade.

Mas se a identificação da data de origem de tal mito é imprecisa3 (mas é possível

encontrar traços dessa ideia em mitos como o da Medusa ou Hera), atualmente livros,

1 Trabalho apresentado no GP Comunicação, Imagem e Imaginário, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em

Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UERJ-RJ, email: [email protected].

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programas de televisão, filmes e músicas, podem ser preciosas fontes primárias de

exemplos de sua perenidade. De versos de letra de funk da Valeska Popozuda, como “Às

inimigas, vida longa”, passando por títulos ‘blockbuster’, como “Noivas em Guerra” (2009)

ou “Você de novo” (2010), entre outros produtos da indústria cultural; a propalada

inimizade feminina vai sendo afirmada e reafirmada.

Contudo, se é verdade que tal mito é reforçado, também o é que há toda uma sorte

de outras experiências sociais que vão concomitantemente demonstrar exatamente o

contrário. Isto é, seria ingenuidade (para não falar em superficialidade de análise) negar o

fato de que há amizade entre as mulheres. E, assim como o mito, nada disto é recente. Há

relatos de experiências desta dimensão desde a Idade Antiga, como nos rituais da Adonia e

Tesmosforia (LE GOFF & TRUONG, 2012). Mas ao que parece nada disso foi suficiente

para derrubar a ideia-força do mito.

O interesse deste artigo parte do mito da inimizade feminina para indagar porque ele

ainda segue sendo reforçado no imaginário? Ainda mais se ele for compreendido como uma

característica atribuída ao feminino, funcionando como mais um elemento de

desvalorização, depreciação e opressão da mulher. Instiga igualmente a pergunta de que

maneira mitos como este contribuem na construção de identidades culturais e nas práticas

sociais?

Adota-se o I Festival Internacional Madalenas, realizado de 15 a 20 de setembro de

2015, em Puerto Madryn (Argentina), como objeto de análise buscando investigar em que

medida é possível promover uma aliança entre as mulheres, rompendo com o imaginário de

uma inimizade feminina. A hipótese levada na mala era a de que o encontro se daria muito

mais por conta de trocas de experiências técnicas – em virtude da utilização em comum da

metodologia teatral do Teatro do Oprimido – do que da necessidade de construir laços de

solidariedade, de afeto. Serão adotados como referenciais teóricos o conceito de estigma

cunhado por Ervin Goffman, Identidade cultural, na perspectiva de Stuart Hall; o de

Imaginário, compreendendo-o como algo constituinte e presente através das culturas e

grupos sociais; e o de sororidade. Para a análise, parte-se da etnografia como metodologia

de pesquisa, na perspectiva de Canclini (2009) de que para se coletar dados é preciso ir a

campo e finca-se o pé nos Estudos Culturais, como um campo que acolheu as teorias

feministas, sendo, inclusive, modificado por elas, como destaca Escosteguy:

3 É verdade que não há registros da evidência de um mito histórico especificamente sobre a inimizade entre mulheres,

como no caso do Mito de Narciso ou da Caverna. Entretanto, as disputas entre mulheres muitas vezes estão presentes

como ações secundárias dentro de mitos principais, como é o caso de Medusa e Atenas dentro do mito de Perseu.

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Hall aponta o feminismo como uma das rupturas teóricas decisivas que alterou uma

prática acumulada em Estudos Culturais, reorganizando sua agenda em termos bem

concretos. Desta forma, destaca sua influência nos seguintes aspectos: a abertura

para o entendimento do âmbito pessoal como político e suas consequências na

construção do objeto de estudo dos Estudos Culturais; a expansão da noção de

poder, que, embora bastante desenvolvida, tinha sido apenas trabalhada no espaço

da esfera pública; a centralidade das questões de gênero e sexualidade para a

compreensão da própria categoria de ‘poder’; a inclusão de questões em torno do

subjetivo e do sujeito e, por último, a ‘reabertura’ da fronteira entre teoria social e

teoria do inconsciente – psicanálise (ESCOSTEGUY, 2001, p.162).

O que também reforça e respalda a relevância de pesquisas sobre as teorias

feministas para o campo da Comunicação.

1 – Azinimigas

A História não segue um curso retilíneo ou mesmo imutável. É possível afirmar que no caso

do Brasil há um oceano de distância entre o período colonial e o atual, que vai desde a

arquitetura das residências até a utilização dos pronomes de tratamento. Tais mudanças não

são instruções alheias ao dia-a-dia da sociedade, mas promovidas pelo próprio ser humano,

único ser vivente capaz de registrar e narrar a História, e integram e constituem o caldo de

cultura em que ele está imerso. Como pontua Laraia: “tudo o que o homem faz, aprendeu

com os seus semelhantes e não decorre de imposições originadas fora da cultura”

(LARAIA, 1986, p.51)

Neste contexto, e a partir da compreensão do mito como uma forma de narrativa,

como sugere Ricoeur, é possível perceber igualmente sua importância como função

educadora, com o intuito de “revelar modelos e fornecer uma significação ao mundo e à

existência humana” (ALMEIDA, 1998, p.63). Isto é, uma espécie de ‘manual de práticas e

costumes sociais’, mostrando o que pode ou não ser aceitável, indicando inclusive punições

a quem escolhesse o ‘caminho errado’. Passados de geração em geração, os mitos

contribuíram para dar sentido ao mundo e organizar os indivíduos, atribuindo a estes

identidades e papéis sociais.

Mas, como a História, as narrativas, e, por conseguinte, os mitos, não são imutáveis,

sofrem mudanças e ganham novas vestes ou usos, conforme a sociedade vai se

transformando. E o interesse deste artigo recai justamente nos elementos culturais que

perpassam as marcas temporais. E, ao que parece, o mito da inimizade feminina segue com

fôlego. Mas por que ele persiste?

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Uma das célebres frases de Simone de Beauvoir é que mulher não nasce mulher,

torna-se (BEAUVOIR, 1970, p.172). E a construção da identidade feminina se daria como

qualquer outra, a partir dos elementos e práticas culturais existentes na sociedade. No

entanto, é preciso ter em mente que “toda a história das mulheres foi feita pelos homens”

(BEAUVOIR, 1970, p.167). Assim, os ingredientes para que a mulher ‘se torne’ foram

escolhidos e postos pelos homens.

Evidente, que nos dias atuais já há exemplos de muitas mulheres, grupos de

mulheres, entre outros, que escrevem e contam sua própria história. Porém, ainda assim e

precisamente porque muitos traços permanecem, não anula o processo histórico secular,

onde o ‘ser mulher’, suas características e os papéis sociais atribuídos eram formulados a

partir da perspectiva masculina. Esta dava ao feminino e tudo o que lhe cercava valores

negativos, de menos-valia, pois a identidade da mulher foi cunhada em oposição ao homem

e seus atributos, estes sim positivados.

Nada disso surpreende, uma vez que o poder político – no que diz respeito às

sociedades ocidentais, pelo menos – sempre teve supremacia masculina e seriam eles a

ditarem as regras. Como pontua Hall: “As identidades, portanto, são constituídas no interior

das relações de poder. Toda identidade é fundada sobre uma exclusão e, nesse sentido, é

‘um efeito do poder’” (HALL, 2013, p.95). Assim se a questão da amizade entre os homens

é tida em alta conta e alardeada em mitos, versos e prosas; esta característica faltaria à

mulher, ela seria incapaz de deter tal predicado. Ou como indicou Beauvoir: "A fêmea é

fêmea em virtude de certa carência de qualidades" (BEAUVOIR, 1970, p.10). Em certa

medida, não parece incoerente pensar a aproximação das características do ‘ser mulher’

com o conceito de estigma de Erving Goffman, o qual

será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é

preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo

que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não

é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso (GOFFMAN, 1988, p.13).

Dos três tipos de estigma analisados, ainda pelo autor, o que mais se relaciona à

construção de um imaginário sobre a mulher seria o segundo, o das

culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou

não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir

de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo,

homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político

radical (GOFFMAN, 1988, p.14).

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O mito da inimizade feminina seria, desta forma, um atributo junto a tantos outros

que estigmatizaria a mulher, indicando um defeito de caráter, uma incapacidade. A

identidade feminina, construída em relação à do homem, foi ganhando concretude a partir

da construção de teorias e narrativas de filósofos, médicos, teólogos e até Santos cristãos,

que produziram discursos auxiliando na construção do imaginário sobre o feminino como

inferior, o que pode-se perceber na questão do calor corporal, na antiguidade, como indica

Sennett:

A compreensão antiga sobre o calor do corpo levou a crenças a respeito da vergonha

e da honra. O registro médico, passando de fêmea, fria, passiva e frágil, para macho,

quente, forte e participante, formava uma escala de valores; tratava os machos como

superiores às fêmeas, embora fossem da mesma matéria (SENNETT, 2008, p .44).

Com o respaldo do religioso ao científico, a narrativa que apresentava a mulher

como algo secundário, inferior e repleto de deficiência foi sendo incorporada pelos

indivíduos como um fato dado, uma verdade e passou a integrar o tecido social, as relações

e práticas sociais, como destaca Laraia:

A nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos

condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que

agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. Por isto, discriminamos

o comportamento desviante (LARAIA, 1986. p. 68).

Sim, isso ocorre e pode ser um dos fatores para a presença do mito da inimizade

feminina até os dias atuais, pois é constituinte do imaginário partilhado, isto é “‘a matéria

subterrânea das coisas’, que assegura a coerência secreta do natural e do cultural, do espaço

social e do sentimento estético” (LEGROS et al, 2014, p.101). Contudo, cabe ressaltar que

isso não significa dizer, que nunca houve resistência, transgressões ou práticas dissidentes

ao status quo. Pelo contrário, este trabalho parte da teoria da sociedade intercultural

(HALL, 2013), onde para além do discurso dominante havia (e há) toda uma sorte de outros

discursos, incluindo os que situavam a mulher em um espaço de protagonismo, que

dialogam neste imenso caldo cultural que é a sociedade. Mas não se pode, igualmente,

negar que o peso da herança cultural, reforçada por diversos dispositivos (como programas

de TV, música, novelas, livros, revistas, discursos religiosos ou políticos etc.), é um dos

fatores para a manutenção do mito da inimizade feminina.

Desta forma, sendo colocadas em uma posição social abaixo dos homens, as

mulheres e as formas de conhecimento do feminino, foram postas na invisibilidade,

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desmerecidas. E se a sociedade adotava esse imaginário atribuído à mulher, ela própria foi

incorporando o papel social no qual ela não poderia ser protagonista.

2 – Azamigas4

Se o esperado ainda hoje, dentro do estigma feminino, é que mulheres não desenvolvam

relações de amizade, pois competem entre si, qualquer coisa que fuja a isso tende a ser

depreciado. Isto porque, “toda relação entre os homens faz nascer em um uma imagem do

outro” (SIMMEL, 1991, p.10 apud LEGROS et al, 2014, p.70). O problema é que as

imagens não são vazias, elas vêm com uma carga inicial de ‘imaginário’, da herança

cultural. Não raro, mulheres que se reúnem, seja para um bate-papo corriqueiro ou discutir

sobre mudanças nas políticas de gênero, são tratadas como ‘fofoqueiras’ e ouvem frases

como “Mulher só se junta para falar mal da outra”, “Devem estar tramando para pegar um

cara rico”; ou têm sua militância ridicularizada como: “Se tivesse um tanque de roupa para

lavar não tinha tempo para ficar de mimimi”, “Isso é falta de homem”, etc. Comentários

deste tipo não fazem distinção de gênero ou ideologia política do emissor.

E justamente por isso, o I Festival Internacional Madalenas: Teatro das Oprimidas,

realizado de 15 a 20 de setembro de 2015, em Puerto Madryn (Argentina), despertou o

interesse de análise para este artigo. Por que mulheres de vários países teriam interesse em

se reunir? Quais fatores motivariam esse encontro? A hipótese levada na bagagem foi a de

que o interesse era por serem praticantes do Teatro do Oprimido e desejarem um lugar para

troca de experiências sobre a técnica. Contudo, a partir da pesquisa participante, pode-se

perceber que essa hipótese foi ganhando a companhia de outros motivos, para além da

técnica teatral, como a necessidade de uma tomada de decisão política dentro do

movimento internacional de Teatro do Oprimido e também de socialidade, como indica

Fernandes (2009), que seria um desejo de se estar-junto , de comunhão, resgatando o

sentido etimológico da palavra comunicação – que vem do latim communicare, mesma

origem da palavra comungar, que significa repartir, compartilhar, ter e pôr em comum.

Madalenas: teatro das oprimidas

A história das Madalenas: Teatro das Oprimidas (MTO) em muito se assemelha à

trajetória histórica dos movimentos feministas, principalmente com relação à necessidade

4 Apesar de sua origem imprecisa, algumas referências atribuem a autoria da expressão à travesti katylene

(http://katylene.mtv.uol.com.br/). Atualmente, essas expressões se tornaram gírias populares.

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de falar sobre as opressões às mulheres e de transformar a sociedade. O embrião começou a

ser desenvolvido em dezembro de 2009, com duas oficinas no Rio de Janeiro ministradas

por Bárbara Santos, à época Curinga5 do Centro de Teatro do Oprimido6 e hoje é

coordenadora do projeto Kuringa em Berlim, onde mora e desenvolve o Teatro do

Oprimido, e da Rede Internacional Madalenas; e pela diretora teatral, Alessandra Vannucci.

De janeiro a maio de 2010, foi ganhando corpo, com a realização de Laboratórios7

realizados no Rio de Janeiro e Ceará (Brasil) e nos países de Moçambique e Guiné-Bissau.

A ideia de utilizar o nome Madalena veio da inspiração da personagem da bíblia,

que carrega em si uma interpretação ambígua, onde às vezes é representada como santa e

outras como prostituta. Ressalta-se que, apesar do nome, a proposta não é uma discussão

religiosa sobre a personagem, mas parte dela para discutir as referências históricas sobre o

papel da mulher, principalmente nos mitos que ainda estão presentes na construção da

subjetividade da mulher, como o caso da inimizade feminina. Atualmente, há grupos de

Madalenas em várias partes do Brasil, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiânia, Rio de

Janeiro (capital e Búzios); e em países como, além dos acima citados, Argentina Alemanha,

Peru, Itália, Portugal, Áustria e França. Por conta disso, foi criada a Rede Internacional

Madalenas.

Independente da nacionalidade, a proposta do MTO é mantida, no sentido de ser

uma experiência cênica feita por mulheres e para mulheres (mas apresentada também para o

grande público, sem distinção de gênero ou faixa etária), buscando investigar os motivos

pelos quais elas se deixam oprimir e como reagem à opressão de gênero; além de

possibilitar um espaço de discussão e troca com a intenção de gerar alternativas que

contribuam para a superação de opressões vividas pelas participantes e, de modo mais

amplo, na sociedade. Utilizar a metodologia do Teatro do Oprimido é partir da concepção

de que todas as pessoas são artistas e, portanto, podem atuar cenicamente; e de que o teatro

é uma “arma de libertação” (BOAL, 2011, p.11).

Contudo, o que chama a atenção com relação ao Madalenas – e também anima a

escolha do MTO como objeto de pesquisa para a tese de doutorado – é o tempo de quase 40

4 São chamados Curingas os técnicos artístico-pedagógico, conhecedores da metodologia do Teatro do Oprimido e

responsáveis pela formação dos grupos, por ministrar oficinas e realizar atividades relacionadas à produção cultural de um

trabalho artístico. Essa denominação foi criada por Augusto Boal, a partir do método do Sistema Curinga idealizado e

introduzido por ele no Teatro Arena.

6 O Centro de Teatro do Oprimido localiza-se na Av. Mem de Sá, 31-Lapa/Rio de Janeiro. Outras informações podem pela

página www.ctorio.org.br

7 O Laboratório Madalena foi pensado como uma experiência que utiliza a metodologia do Teatro do Oprimido para

discussão de gênero, mas não é uma técnica do TO, como é o Teatro Invisível, Teatro Fórum, entre outras.

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anos que se levou para que o debate sobre a opressão feminina fosse tratado como algo que

merecia atenção e cuidado específico. Afinal, a metodologia do Teatro do Oprimido

começou a ser desenvolvida no início da década de 1970, por Augusto Boal, em um período

no qual as questões de gênero também tinham um importante papel na luta política (e sem

contar que as opressões contra as mulheres são seculares), mas somente em 2009 que foi

possível começar um trabalho voltado especificamente para à opressão feminina. De acordo

com Bárbara Santos, o MTO surgiu da inquietação de que “Em todo o lugar que a gente vai,

a opressão contra as mulheres é um tema constante. E a gente começou a perceber que era

preciso criar um espaço para falar desses temas com uma certa intimidade, sem os

homens.”8

De alguma forma, a inquietação que motivou o Madalena Teatro das Oprimidas

(MTO) se avizinha e muito da ideia de sororidade, bastante em voga nos debates feministas

atuais. Ressalta-se, no entanto, que o presente artigo não vai se ater às discussões que o

próprio conceito vem levantando entre diferentes grupos feministas9, e escolhe adotar a

propostas geral do conceito que é a de ser uma aliança entre mulheres, em uma dimensão

ética, política e prática do feminismo.

Neste sentido, a proposta dos grupos de Madalenas, presente na fala da Bárbara

Santos citada acima, se coaduna com a intenção da sororidade, nesse reconhecimento de

irmandade entre as mulheres, de companheirismo a partir do afeto (da vontade de estar-

junto) e objetivos em comum, vendo na força da união um motor para o protagonismo

feminino. Um evidente combate ao pregado pelo mito da inimizade feminina. A

especificidade do MTO, em relação a outros grupos feministas, reside na adoção da

metodologia do Teatro do Oprimido e na aposta da arte como mediadora para a

transformação da sociedade.

8 A íntegra do artigo pode ser acessada pela página:

http://www.berlinda.org/BERLINDA.ORG/Pessoas/Eintrage/2011/8/30_Transformar_a_realidade._Barbara_Santos_e_o_

espaco_KURINGA.html

9 Apesar de bastante empregado em muitas discussões de gênero e feministas, o conceito de sororidade não tem aceitação

unânime. Entre as críticas feitas está a de que ele seria excludente, pois seria um privilégio da mulher heterossexual,

branca e de classe média; o que excluiria não apenas os homens, mas mulheres negras, as transexuais, entre outras.

Entretanto, um dos pontos de consonância sobre a definição do conceito é de que ele é um pacto entre mulheres e

possibilidade de construção de um espaço de troca entre elas. Ao não tratar deste tema no presente artigo, não significa

que as críticas não sejam relevantes e nem que há uma ‘pureza’ no conceito, mas parte-se da compreensão de que também

há divergência entre os diversos grupos feministas – e, portanto, na maneira como entendem o conceito – e que tal tema

merece um espaço maior de reflexão.

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Por nós, pelas outras, por mim!10

Mas isso tudo poderia funcionar muito bem na teoria e na prática ser de outra

maneira, perdendo, por exemplo, a característica de ser um espaço exclusivo para as

mulheres. De certa forma, a existência de vários grupos de Madalenas dá pistas de que as

motivações iniciais persistiram e ainda servem para alimentar as formações. Mas até que

ponto isso poderia ser percebido ao juntar grupos de vários países e regiões do Brasil, como

no I Festival Internacional Madalenas (FIM)? Ou seja: seria possível a sororidade se operar

também entre grupo de origens e temáticas distintas ou o evento seria apenas para

discussões teóricas?

Já na saída do Rio de Janeiro, ainda no Aeroporto internacional Tom Jobim, a

hipótese inicial de um encontro teórico começou a ser tencionada. Logo no setor de

embarque do Galeão foi possível encontrar duas integrantes do Madalenas Anastácia, um

coletivo de mulheres negras, vinculado ao Centro de Teatro do Oprimido, sendo que uma

mora no Rio de Janeiro e outra em Salvador. E não parou por aí, a conexão em Buenos

Aires, no Aeroparque, provocou o encontro de Madalenas de Porto Alegre, de Paris, do Rio

de Janeiro. O fato de ainda não terem sido apresentadas não evitou a aproximação e,

principalmente, o reconhecimento.

É verdade que como os voos foram na véspera do FIM, tal fato ajudou nesses

encontros. Porém o que o tornou ingrediente capaz de balançar a hipótese foi que as

Madalenas, independente do seu lugar de origem, estavam usando a camisa ou outro item

(bolsa, brinco, etc.) com a logo das Madalenas (Figura 1). Essa ideia foi divulgada nos

canais de comunicação dos grupos, a partir da Rede Internacional Madalenas, com grande

adesão, como uma forma de ajudar no reconhecimento das Madalenas entre si, pensando

que alguma poderia estar tendo alguma dificuldade ou mesmo para já ir estreitando os laços

de socialidade (FERNANDES, 2009).

Figura 1

10 Verso extraído do refrão do funk “Se empodera”, autoria de MC Lidi, idealizadora do Coletivo Pagufunk. A íntegra

desta música pode ser acessada no link: http://soundclound.com/pagufunk/se-empodera

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O FIM reuniu 80 Madalenas (de um total de 180 inscrições feitas), que foram em

grupos ou individualmente representando seu grupo. Do Brasil foram de Santa Catarina,

São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia; além das Madalenas da Argentina (Rosario, Buenos

Aires e Puerto Madryn), França, Guatemala, Alemanha, Áustria, Suíça, Estados Unidos,

Katmandu, Espanha e Itália. O idioma principal era o espanhol, mas havia tradução para o

inglês (feita por participantes que se voluntariavam) e, quando era solicitado, para o

português. Havia Madalenas que se voluntariaram também para alternar no cuidado com as

crianças, filhos de integrantes do grupo Magdalenas Rosario. O que demonstra também que

o FIM não foi percebido pelas participantes como um evento cheio de reservas, mas sim

como um espaço também de convivência, de integração e cuidado com as outras.

Outro ponto que faz a aproximação direta com a noção de sororidade diz respeito à

faísca que fez eclodir a proposta do I Festival Internacional Madalenas. Segundo o relato de

Bárbara Santos, no segundo dia do evento, o FIM começou a ser traçado no III Encontro

Latinoamericano de Teatro do Oprimido, realizado de 10 a 15 de fevereiro de 2014, em La

Paz (Bolívia), quando observaram que apesar da maioria da plateia ser composta por

mulheres, nas mesas de debate não havia essa representação – e o que não falta são

praticantes de TO e curingas mulheres.

Foi sugerida a inclusão de mulheres nas palestras, explicando a necessidade de

colocar em pauta a discussão de gênero e a opressão à mulher, mas a produção do Encontro

negou e um dos comentários feitos foi que as mulheres queriam dividir o Teatro do

Oprimido. Ora, se a metodologia do TO propõe o trabalho com oprimidos e opressões, que

cisão seria essa? As Madalenas perceberam que estavam, por mais que soasse incoerente,

diante de uma opressão, de uma prática social já pontuada por Beauvoir, a qual: “O lugar da

mulher na sociedade é sempre eles que estabelecem” (BEAUVOIR, 1970, p.98), ou pelo

menos continuam tentando estabelecer.

Assim, as Madalenas presentes no Encontro não apenas realizaram um evento

paralelo, durante o III Encontro, como ato político em combate ao ocorrido; como

perceberam que era fundamental também promover a luta por direitos das mulheres e contra

as opressões dentro do próprio movimento de Teatro do Oprimido e começaram a produzir

o que seria o I Festival Internacional Madalenas, realizado em 2015.

Repare que o que se está destacando não é de uma rixa entre grupos de Teatro do

Oprimido, mas um imaginário sobre a mulher que ainda persiste – como trabalhado no

primeiro ponto deste artigo – e segue promovendo apagamento de presença e das questões

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das mulheres, mesmo em um ambiente onde, em teoria, se propõe a compreender as

dinâmicas das opressões (qualquer uma delas) e a fazer a escolha pelo lado do oprimido.

Com isso, pode-se verificar que o FIM carrega na sua origem o desejo da existência de um

espaço de irmandade entre as mulheres e a necessidade de pôr em pauta as questões que são

emergentes para elas.

Motivadas por isso, decidiram produzir coletivamente no Festival um Manifesto11

da Rede Madalenas Internacional, tomando como base cinco pontos: espaço para as

mulheres, envolvimento comunitário, compromisso político (transformação da realidade),

investigação estética e articulação em rede. Os itens foram divididos e colocados em uma

mesa com folha de papel em branco. As participantes podiam circular entre as mesas e

acrescentar o que gostariam. Entre os pontos, o primeiro apresenta precisamente o interesse

deste artigo em trabalhar a ideia de sororidade entre as Madalenas, pois demonstra a razão

delas para a existência de espaços para as mulheres, como pode ser percebido nos trechos

abaixo do Manifesto:

- Para vencer a ideia patriarcal de que estamos sozinhas;

- Os espaços exclusivos para mulheres são imprescindíveis para perceber os

micromachismos, além de nos permitir um clima de liberdade e autonomia, de

empatia, uma intimidade profunda que nos permite falar com confiança;

- Para romper cadeias de opressões sexistas, raciais, classistas, étnicas, etc.;

- Precisamos de um espaço exclusivo porque a sociedade historicamente nos

colocou em espaço de subalternidade e aprisionamento do qual queremos nos

libertar. São formas de opressões específicas ‘naturalizadas’ que todos

reproduzimos cotidianamente e ficou entranhada em nossa subjetividade. Assim,

precisamos coletivamente nos reconstruir e para tanto necessitamos de um espaço

estético, cultural e educativo.

O conhecimento desses fatos, durante a pesquisa de campo, foi contribuindo para

esmaecer cada vez mais a hipótese inicial. Entretanto, não é que a metodologia e a prática

do Teatro do Oprimido foram deixadas de lado, mas mesmo quando o debate ocorria nesta

áreas, os relatos e as falas que surgiam e a maneira de se trabalhar eram de outra dimensão

que não a pura técnica. Como, por exemplo, na dinâmica que ocorria a partir das

apresentações públicas das peças e performance dos grupos. No dia seguinte à

apresentação, a proposta era escolher um ponto do trabalho que poderia ser passível de

crítica e construir uma sugestão estética (e não apenas falada). As participantes se dividiam

e escolhiam a peça que gostariam de trabalhar, sempre mantendo uma ou duas integrantes

11 A proposta é que a edição final do Manifesto seja apresentada no IV Encontro Latinoamericano de Teatro do Oprimido,

a ser realizado em Leon (Nicarágua), entre os dias 15 e 25 de janeiro de 2016.

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do grupo que se apresentou. A intenção foi de colaborar de forma efetiva, apresentando

sugestões que poderiam ou não ser aproveitadas pelos grupos.

Outro ponto que pode ser destacado ainda sobre a metodologia, foi na atividade

onde as participantes foram divididas em oito grupos, procurando deixar o mais

diversificado possível, com a proposta de investigar razões para as dificuldades de montar

um grupo Madalena e como fazer para dar continuidade ao grupo. Depois das discussões

cada grupo fez um resumo que foi apresentado e debatido na roda com as 80 participantes.

Entre os pontos levantados sobre as dificuldades estão a falta de recursos financeiros

(este aspecto foi citado em todos os grupos) e a de conseguir efetivamente formar vínculo

entre as integrantes. Com relação à manutenção da continuidade, alguns grupos partilharam

sua experiência para captar recursos e deram sugestões como, por exemplo, a venda de

doces e camisas ou concorrer a editais públicos. Especificamente sobre os vínculos, duas

falas que estiveram presentes em todos os grupos foram: primeiro a necessidade de se estar

atenta às especificidades, as diferenças entre as próprias mulheres, para não promover um

espaço de exclusão e sim possibilitar vínculos. E a segunda foi a emergência também de

fortalecer as redes regionais e internacionais das Madalenas, para troca de experiências,

divulgar as ações que os grupos fazem e estreitar os laços de amizade.

3 – Junta azamigas

Em muitos filmes, seriados, letras de música, assim como em conversas em bares ou falas

ditas no calor de discussões é possível perceber, ainda hoje, traços de um imaginário

cultural que coloca a mulher em um lugar de submissão, opressão, no qual tanto ela quanto

a sabedoria feminina são empurradas para a sombra e estigmatizadas, e poucas vezes há

reações críticas a isso. O que se pretendeu mostrar neste trabalho é que isso não ocorre à

toa, uma vez que “o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os

diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de

uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”

(LARAIA, 1986, p. 68). E, desta forma, como pontua Adorno: “Tudo o que surge é

submetido a um estigma tão profundo que, por fim, nada aparece que já não traga

antecipadamente as marcas do jargão sabido, e não se demonstre, à ‘primeira vista’,

aprovado e reconhecido” (ADORNO, 2002, p.18).

E é precisamente essa lógica, contida neste imaginário partilhado, que alimenta e dá

a força necessária para que mitos como a inimizade feminina continuem a ser válidos, tanto

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para homens quanto para mulheres. Até porque uma vez que o poder político e poder de

atribuir significados esteve prioritariamente em mãos masculinas, a mulher aprendeu a

como se perceber, segundo indicado por Beauvoir, “não tal como existe para si, mas tal

qual o homem a define. Cumpre-nos, portanto, descrevê-la primeiramente como os homens

a sonham, desde que seu ser-para-os-homens é um dos elementos essenciais de sua

condição concreta” (BEAUVOIR, 1970, p.177).

Contudo, é preciso atinar que o giro histórico dessa roda de menos-valia da mulher

não foi liso, mas cheio de obstáculo, como o movimento feminista das décadas de 1960 e

1970, mas também vários exemplos de lutas pelos direitos das mulheres, muitas vezes

individuais, como foi o caso da violência que Maria da Penha sofreu e de sua luta de 20

anos para prender o agressor, que foi tão emblemática e virou Lei Federal12, batizada com o

nome dela, e que protege todas as mulheres. Essas ações contribuíram para ir quebrando o

estigma atribuído à mulher e dar novos contornos à construção da identidade cultural e

imaginário sobre o feminino, indicando que “a manipulação adequada e a criativa desse

patrimônio cultural permite as inovações e as invenções” (LARAIA, 1986, p. 45). Não se

pode perder de vista que o imaginário não é imutável.

E é precisamente nesse sentido que o presente artigo percebe que a ideia de

sororidade pode contribuir para promover essas ‘inovações’ – como pode ser analisado a

partir dos grupos Madalenas Teatro das Oprimidas, espalhados pelo mundo –, no sentido de

que

a compreensão que cada mulher tem de si mesma precisa ser modificada. Mas é a

tomada de consciência das experiências compartilhadas pelas mulheres, como um

grupo social historicamente subordinado aos homens, que permitiria passar do

descontentamento e do mal-estar com a própria condição a reivindicações baseadas

em uma perspectiva identitária de grupo (BIROLI, 2013, P.96)

As motivações que movem as Madalenas se coaduna à sororidade no que diz

respeito ao encontro entre os integrantes em si e os diversos grupos, pois pautam-se no

desejo de aliança entre as mulheres; e no estabelecimento de um espaço dedicado a elas

para encontros afetivos e debates sobre temas que lhes são emergentes.

A especificidade das Madalenas em utilizar a metodologia do Teatro do Oprimido

tende a ampliar o poder de ação, uma vez que a teoria parte do princípio de que qualquer

pessoa é naturalmente um ator (BOAL, 2011) e pela técnica ser um forte instrumento de

investigação das opressões (inclusive contra as mulheres) e da possibilidade de construir

12 Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Acesse a íntegra em www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-

2006/2006/lei/l11340.htm

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alternativas para as situações de violência físicas ou simbólicas, começando na produção e

apresentação da peça e desembocando na vida, na transformação da sociedade.

A partir da pesquisa de campo, o que pode ser observado no FIM é que ainda há

muito o que ser feito para romper com o estigma feminino e transformar o imaginário

social. As dificuldades são tanto de ordem externa quanto interna dos grupos, para citar um

exemplo disso é que não se conseguiu fechar uma data para a realização da segunda edição

do Festival. Mas, apesar disso e utilizando os meios disponíveis, as Madalenas continuam

dando provas de que não vão esquecer as discussões e as alianças construídas no FIM,

interagindo pelas redes sociais e promovendo ações concretas e continuadas. Tanto que se

organizaram para uma mobilização internacional, que ocorreu no Dia Mundial de combate à

violência contra a mulher (25 de novembro), onde os grupos em seus locais de origem

apresentaram a performance “Desmaio Madalenas”, construída no FIM. As apresentações

foram gravadas e integram um pequeno vídeo que seria apresentado em janeiro de 2016, no

IV Encontro Latinoamericano de Teatro do Oprimido, na Nicarágua. Desta forma, as

Madalenas seguem sem se esquivar de uma das características básicas do Teatro do

Oprimido, o qual, nas palavras de Boal: “Teatro é conflito, luta, movimento, transformação,

e não simples exibição de estados de alma. É verbo, e não simples adjetivo” (BOAL, 2008,

p.73).

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