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Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação São Paulo - SP 05 a 09/09/2016 1 Bandido bom é bandido morto x direitos humanos: os justiceiros e os demolidores da sociedade contemporânea 1 João Vitor Rachid BASTOS 2 Giovani Pagliusi Lobato e MOURA 3 Centro Universitário FIAM FAAM, São Paulo, SP Resumo Utilizando um método de comparação de perfis de personagens, este artigo busca observar o fenômeno da justiça com as próprias mãos no universo da ficção seriada, em específico, a série Demolidor (Netflix, 2015-2016) comparando com a sociedade brasileira. O método consiste em observar as situações de três personagens: Matt Murdock, Demolidor e Justiceiro e apresentar o comportamento de cada um em casos de resolução de problemas relacionados a crimes com o intuito de traçar um panorama social de cada personagem, buscando entender a causa e consequência do ato de linchamento. Observamos que os respectivos acontecimentos da narrativa ficcional fazem com que os três perfis assumam uma comunicação invariavelmente verídica com o pensamento social. Palavras-chave: Matthew Murdock; Demolidor; justiceiro; linchamento; justiça. Introdução Este artigo é a consequência de um estudo de pré-iniciação científica, ainda em andamento, vinculado ao Núcleo de Estudos de História em Quadrinhos Álvaro de Moya - NEHQ-AM do curso de Rádio, Televisão e Vídeo do Centro Universitário Faculdades Integradas Alcântara Machado FIAM, no ano de 2016. Orientado pelo Prof. Ms. Giovani Pagliusi Lobato e Moura, o projeto foi motivado pelas atividades do núcleo que integram em sua grade de atividades, entre uma delas, a análise dos perfis de personagens dos quadrinhos, as transformações desses perfis na mudança de plataformas de mídia, tais como Cinema e Ficção Seriada e a consequência destas transformações no impacto da audiência, no consumo e na sociedade. Por conta das indagações estudadas nessa frente do núcleo, surge a curiosidade de entender de que maneira a construção moral de um personagem afeta, se 1 Trabalho apresentado no GP Políticas e Estratégias de Comunicação, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa da Intercom, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Estudante de graduação em Comunicação Social, com habilitação em Rádio, Televisão e Vídeo pelo Centro Universitário FIAM FAAM, e-mail: [email protected] . 3 Orientador do trabalho. Professor do curso de Rádio, Televisão e Vídeo do Centro Universitário FIAM FAAM e doutorando no Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, e-mail: [email protected].

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

1

Bandido bom é bandido morto x direitos humanos: os justiceiros e os demolidores da

sociedade contemporânea1

João Vitor Rachid BASTOS2

Giovani Pagliusi Lobato e MOURA3

Centro Universitário FIAM FAAM, São Paulo, SP

Resumo

Utilizando um método de comparação de perfis de personagens, este artigo busca observar o

fenômeno da justiça com as próprias mãos no universo da ficção seriada, em específico, a

série Demolidor (Netflix, 2015-2016) comparando com a sociedade brasileira. O método

consiste em observar as situações de três personagens: Matt Murdock, Demolidor e Justiceiro

e apresentar o comportamento de cada um em casos de resolução de problemas relacionados a

crimes com o intuito de traçar um panorama social de cada personagem, buscando entender a

causa e consequência do ato de linchamento. Observamos que os respectivos acontecimentos

da narrativa ficcional fazem com que os três perfis assumam uma comunicação

invariavelmente verídica com o pensamento social.

Palavras-chave: Matthew Murdock; Demolidor; justiceiro; linchamento; justiça.

Introdução

Este artigo é a consequência de um estudo de pré-iniciação científica, ainda em

andamento, vinculado ao Núcleo de Estudos de História em Quadrinhos Álvaro de Moya -

NEHQ-AM do curso de Rádio, Televisão e Vídeo do Centro Universitário Faculdades

Integradas Alcântara Machado – FIAM, no ano de 2016. Orientado pelo Prof. Ms. Giovani

Pagliusi Lobato e Moura, o projeto foi motivado pelas atividades do núcleo que integram em

sua grade de atividades, entre uma delas, a análise dos perfis de personagens dos quadrinhos,

as transformações desses perfis na mudança de plataformas de mídia, tais como Cinema e

Ficção Seriada e a consequência destas transformações no impacto da audiência, no consumo

e na sociedade. Por conta das indagações estudadas nessa frente do núcleo, surge a

curiosidade de entender de que maneira a construção moral de um personagem afeta, se

1 Trabalho apresentado no GP Políticas e Estratégias de Comunicação, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa da Intercom,

evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Estudante de graduação em Comunicação Social, com habilitação em Rádio, Televisão e Vídeo pelo Centro Universitário

FIAM FAAM, e-mail: [email protected].

3 Orientador do trabalho. Professor do curso de Rádio, Televisão e Vídeo do Centro Universitário FIAM FAAM e doutorando

no Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, e-mail: [email protected].

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aproxima ou transforma tanto o universo da trama em si quanto o espectador, visto como o

olhar da sociedade real. Precisamente, de que forma acontece a influência ou não da justiça

em ocorrências criminosas e como isso afeta a movimentação dos personagens na trama.

A proposta desse artigo é fazer uma análise dos valores morais dos personagens da

série Demolidor: Matthew Murddock, Demolidor e Frank Castle. Comparando esses valores

com os valores morais dos linchadores na sociedade, pretendemos verificar possíveis

semelhanças e diferenças, considerando a justiça com as próprias mãos na ficção e na

realidade, juntamente com um sistema judiciário falho, onde a população não acredita na

máquina pública e a vê, ainda, como um obstáculo.

Matthew Murddock perdeu, quando criança, seu pai, um boxeador que acabou

morrendo para a máfia. Já adulto, tornou-se um advogado que procura combater a

criminalidade em Hell’s Kitchen com o uso da lei como forma de se fazer justiça. Quando não

consegue vencer usando a lei, assume o personagem Demolidor, um vigilante que usa da

força física e da violência como forma de justiça. Lutando contra criminosos, ele castiga-os

com dor física, mas não os matando. Tanto para o Matthew Murddock como advogado e

como vigilante, ambos acreditam que há redenção no indivíduo, portanto, não há necessidade

de matá-lo. Já Frank Castle, um ex-soldado que perdeu sua família em um tiroteio de grupos

que queriam controlar o tráfico na região, também procura fazer justiça com as próprias mãos,

usa da força física e da violência, especialmente de armas de fogo, para combater o crime

organizado. Ele não acredita em redenção, diferente do Demolidor. Todos aqueles que ele

considera culpados, são executados.

Podemos ver três visões sobre a justiça entre os perfis: aquela que acredita no

sistema judiciário e nos direitos humanos, a que quer punir, mas não vê a morte como solução

e a mais extrema, que vê a morte como a única solução para a criminalidade.

No decorrer da narrativa, essas três visões sobre os valores morais se confrontam,

gerando um próprio questionamento por parte do Matthew Murddock e uma luta física entre o

Demolidor e o Frank Castle.

Realizando um levantamento de casos de linchamento, junto com a bibliografia e a

história narrada na série, o método utilizado foi a verificação de um sistema judiciário falho,

junto com uma polícia sem crédito, e quais as consequências que esse fato tem sobre a

sociedade.

A partir disso, foi possível notar que a população passou a criar as suas próprias leis

dentro da comunidade, e julgando assim, aqueles que não estavam dentro dos padrões aceitos.

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Esse julgamento, onde a população era o próprio juiz, o júri e o carrasco, condenava e

executava o acusado.

Contrário ao que ocorre na série, onde apenas aqueles que cometeram crime são

acusados e julgados pelos justiceiros, na sociedade pessoas inocentes foram acusadas e

executadas, sem ter o direito de julgamento. O sistema falho que provocou esse ocorrido,

também falhou ao não julgar aqueles que lincharam, em especial por conta do anonimato.

Através do artigo, será possível verificar possíveis motivações por de trás dos

linchamentos, os valores e os rituais que são praticados nas execuções. Ambos ocorrem dentro

da ficção e da realidade, mas as consequências são diferentes para a população.

1. Série Demolidor (Daredevil, 2015)

A série Demolidor, criada em 2015 e exibida pelo serviço de streaming da Netflix,

conta a história de Matthew Murddock, um advogado que luta contra o crime por meios

legais, e também como justiceiro, por meios ilegais.

A série começa contando a história de Matthew Murddock, que vive com o seu pai,

Jack Murddock, um boxeador sem muita expressão no mundo da luta.

Aos nove anos de idade, Matthew sofre um acidente, onde tenta salvar um senhor de

ser atropelado. Por conta desse acidente, acaba perdendo a visão. Ao mesmo tempo em que a

perde, ganha superpoderes sobre os outros sentidos, como uma melhora na audição, força,

agilidade, etc.

Seu pai, com problemas financeiros, acaba aceitando uma luta arranjada. No decorrer

da luta, Jack decide mudar os rumos da luta e acaba vencendo seu oponente. Ao sair do

ginásio, é encurralado pela máfia, que acaba matando-o. Matthew encontra seu pai morto.

Com a morte do pai, Matthew acaba conhecendo Stick, um senhor que possui as

mesmas habilidades que ele, e aceita ser treinado pelo mesmo.

Os anos se passam e Matthew volta a Hell’s Kitchen, junto com seu amigo Foggy,

ambos formados em direito. Os dois abrem um escritório de advocacia, Nelson & Murddock.

O primeiro caso da dupla é o assassinato do namorado de Karen Page, que é acusada de

assassiná-lo. Matthew, usando dos seus poderes, consegue ir atrás dos culpados, disfarçado.

Quanto mais vai descobrindo sobre o ocorrido, percebe que há pessoas poderosas por trás de

todos os grandes crimes da cidade.

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Com a investigação, disfarçado de Demolidor, Matthew consegue chegar a um dos

grandes nomes do mundo do crime, Wilson Fisk. Conhecido como Rei do crime, ele é um dos

poderosos que manda na cidade.

Lutando de dia, como advogado, utilizando de meios legais, e de noite, usando uma

máscara, como justiceiro, Matthew consegue aos poucos, encurralar o rei do crime,

colocando-o na cadeia.

Mesmo prendendo-o, a criminalidade não diminui. Na luta, acaba encontrando um

adversário, que também procura acabar com o crime na cidade, utilizando de meios mais

extremos. Frank Castle (Punisher) é um ex-soldado, que ao voltar para a Hell’s Kitchen,

presencia sua família ser morta em meio a uma guerra sobre o controle do tráfico de drogas na

cidade. Sobrevivendo desse ataque, ele decide caçar os culpados da morte de sua família.

No decorrer da série, tanto o Demolidor, como o Punisher se enfrentam, pois veem

diferentes modos de se fazer justiça com as próprias mãos. Matthew não concorda com

Castle, que executa aqueles que ele considera culpados.

2. Garantia de direitos pela Constituição Federal

O Estado democrático de direito garante a todo o cidadão o respeito das liberdades

civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do

estabelecimento de uma proteção jurídica.

Segundo a constituição federal de 1988, art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade4.

Os seguintes parágrafos do Art. 5º, da constituição federal garantem os direitos aos

cidadãos, em caso de acusação de crimes de sangue ou contra a propriedade, direito a ampla

defesa e julgamento apenas pelas instituições legais do Estado, como o poder judiciário:

III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em

geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a

ela inerentes;

4 Constituição federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso

em: 13/07/16.

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LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença

penal condenatória;

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e

fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de

transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a

liberdade provisória, com ou sem fiança5;

Esses julgamentos, realizados por uma figura representando o poder jurídico do

Estado, no caso o juiz, é um personagem neutro, que julgará segundo critérios objetivos e

impessoais, sem deixar o emocional sobrepor à razão (MARTINS, 1996, p.12).

Quando um indivíduo, que não possui poder legal, assume o papel do Estado, e passa

a julgar o suposto acusado, o mesmo também é um criminoso, podendo ser acusado desde

cárcere privado, até tentativa de homicídio.

Esses julgamentos assumem diversas formas na sociedade: desde julgamentos

públicos, onde uma parcela da comunidade irá julgar e punir o acusado, sem que haja uma

possibilidade de direito a defesa, e punições por pequenos grupos, ou apenas um indivíduo,

que também assumirá o papel de juiz e de carrasco (MARTINS, 1995, p. 299). Em ambos os

casos, há uma ilegalidade. Porém, mas do que uma ilegalidade há uma necessidade de o

cidadão assumir o poder do Estado, ao qual ele não acredita mais como instituição reguladora.

Os termos da constituição selecionados no começo do tópico ajudarão a entender

mais adiante a complexidade sobre o ato de linchar, verificando quais motivações levam ao

indivíduo a quebrar as leis em favor da “justiça com as próprias mãos”, ignorando a

legalidade do Estado em julgar um indivíduo.

Mais do que quebrar as leis, veremos nos próximos capítulos que há toda uma visão

de moralidade sobre o ato de linchar, acompanhado de rituais que caracterizam todo o

processo.

3. Três visões sobre a Justiça: Matthew Murddock, Demolidor e Punisher

5 Constituição federal de 1988, Art. 5º.

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Na série Demolidor, vemos que Matthew Murddock, como advogado, utiliza de

meios legais – dentro do poder judiciário – para punir os que estão a margem da lei. Já o

Demolidor e Frank Castle, utilizam da “justiça com as próprias mãos” – uso da força física de

maneira ilegal – como uma possível solução para a violência em Hell’s Kitchen. Cada um

possui seu motivo e sua visão sobre como ela deve ser empregada perante as determinadas

situações.

Durante a série, as suas tentativas de usar a lei como forma de justiça vão sendo

frustradas conforme se percebe que o sistema não funciona como deveria. No episódio dez, da

primeira temporada, Foggy descobre que Matthew é o Demolidor. Em um debate sobre a

descoberta, Foggy o questiona diversas vezes sobre o porquê de ele não usar a lei para fazer

justiça. Sobre esse questionamento, Matthew responde o seguinte: “Eu ouvi uma menininha

chorando na cama, em um prédio descendo a rua. Seu pai gostava de ir ao seu quarto tarde da

noite, enquanto a esposa dormia. Eu chamei a proteção ao menor, como deveria, mas a mãe

não acreditava. E o pai era esperto. Ele garantiu que o que fez não deixasse marcas. A lei não

podia ajudar aquela garotinha. Mas eu podia.”

Podemos notar que, Matthew utilizou-se da lei para fazer justiça, chamando o serviço

de proteção ao menor para proteger a criança do pai que a abusava. O pai, sabendo que há

falhas no sistema, evitou que houvesse provas contra ele, assim não sendo acusado.

Perante a essa situação, Matthew precisou assumir a figura de vigilante e, usando de

meios fora da lei, linchou o pai da garota, que ficou internado durante um mês. Em sua

explicação para Foggy, Matthew não acha que o que fez foi certo, mas necessário.

Na segunda temporada, é contada a história de Frank Castle, um militar que perde a

sua família em um tiroteio entre a máfia. Diferentemente de Matthew, que procura primeiro

utilizar de meios legais para combater o crime, Castle já utiliza de meios extralegais para

vingar a família. Movido pelo desejo de descobrir quem os matou, Castle usa seus

conhecimentos militares e mata aqueles que são considerados culpados.

No episódio três da segunda temporada, o Demolidor é amarrado no telhado do

prédio, após atrapalhá-lo. Enquanto está amarrado, ambos começam a discutir sobre a eficácia

de cada um. Em certo momento, Castle responde as críticas com a seguinte frase: “Você os

joga na cadeia, todos o chamam de herói, certo? E em um mês, uma semana ou um dia depois,

estão de volta nas ruas fazendo a mesma coisa.”

Para Castle, os que morrem precisavam morrer, pois mereciam. Murddock considera

que a morte não é uma opção, pois, há bondade no ser humano, mesmo que um pouco. Essa

oposição entre os pensamentos mostra que para Murddock, há redenção no ser humano. Como

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cristão, acredita que todo o ser humano pode se arrepender de seus atos e mudar. Já para

Frank, um soldado treinado nas forças de elite do exército americano, quem poupa o lobo,

sacrifica a ovelha6.

Matthew Murddock, através do sistema, consegue até certo ponto que os acusados

sejam punidos pelos crimes que cometeram, mesmo que a sentença proferida seja menor do

que Matthew acredita que deveria ser. A maior conquista, como advogado e usando de meios

legais como forma de punição, ocorreu no último episódio da primeira temporada. Murddock

consegue prender Wilson Fisk, conhecido como rei do crime, depois de inúmeras tentativas

usando a lei, e as margens da lei.

Entretanto, o sistema é passível de corrupção e Fisk consegue, no decorrer da

segunda temporada, obter o controle da prisão. A prisão dele não foi nada mais do que

simbólica, pois, não está sendo feita a justiça e o indivíduo não está sendo punido, e muito

menos resocializado.

4. Justiça real x Justiça ficcional

Como pôde ser verificado, o fator que provoca os fenômenos de linchamento é a

ausência de um sistema judiciário efetivo. A população, quando perde a confiança tanto no

poder judiciário, quanto na própria polícia, procura outros meios para solucionar o possível

crime. Ela não acredita mais nas leis, e vê nelas um sistema burocrático, somado a um alto

custo com todo o processo7, que dificilmente irá beneficiá-la. A alternativa para esse

problema é o linchamento do suposto acusado, que será julgado e executado pela própria

população, de forma rápida. (MONÊGO, 2014, p. 2).

Podemos ver dois exemplos de mobilização popular: O mob lynching e o vigilantism.

Enquanto o primeiro é a mobilização de um grupo contra um determinado indivíduo que

cometeu ou não um crime, o segundo é um indivíduo, ou até mesmo um grupo, que procura

estabelecer valores morais e condutas sociais através do uso da violência. O mob lynching

ocorre de forma espontânea, rápida, para justiçar rapidamente uma pessoa que possa ou não

ter cometido tal crime. Já o vigilantism ocorre em especial por um indivíduo, ou um pequeno

6 "A compaixão nem sempre é uma virtude. Quem poupa a vida do lobo, condena a morte as ovelhas." – frase atribuída ao

poeta francês Victor Hugo (1802 – 1885). 7 Para valores sobre os processos judiciais, acessar a página: https://jus.com.br/artigos/4485/o-custo-financeiro-do-processo.

Acesso dia 05/07/16, às 09h24min.

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grupo, que procura estabelecer um valor moral perante o criminoso, julgando a sua conduta

baseado no valor daquela comunidade (MARTINS, 1995, p. 297).

Esses dois exemplos podem ser encontrados tanto na sociedade brasileira, como na

série Demolidor.

Na sociedade brasileira, temos inúmeros casos de linchamento que ocorreram tanto

por consequência de crimes de sangue, quanto por crimes contra a propriedade. O ato de

linchar é uma tentativa de construção (ou desconstrução) da sociedade. Ele serve para punir

aqueles que a justiça não conseguiu. Esses atos ocorrem especialmente em áreas urbanas

periféricas, também ocorrendo em áreas rurais, pois, o poder judiciário não chega a essas

localidades. A ineficácia do sistema cria os linchadores, que buscam legitimar os atos através

de uma lógica primitiva que a violência tem que ser respondida com violência (MIRANDA,

2016, p. 6). Nos grupos em que ocorrem os linchamentos, é criada sobre o ato uma

racionalização da própria ação, justificando o ato em si. Diferente da classificação desses

grupos como irracionais, ou até inumanos, há uma lógica no ato em si, baseado em questões

morais e uma busca pela paz, através da violência.

Já na série Demolidor, vemos que o vigilantismo é uma maneira de manifestação

onde há uma possível ideologia de autodefesa (SINHORETTO, 2001, p. 4). O Demolidor

julga quem merece ser punido por infringir determinada lei, baseado em seus valores morais

como cristão e como advogado. Quem estava fora desses padrões era considerado um infrator,

que precisava ser punido.

Em ambos os casos, o linchamento é uma possível solução para a criminalidade, é

uma forma de intimidação contra os supostos infratores, mas não apenas isso. Demonstra-se,

então, que o objetivo do linchamento não é somente fazer justiça, mas vingar a violação de

um código estabelecido por dada comunidade.

Entretanto, há grandes diferenças entre os supostos criminosos da sociedade

brasileira e da série Demolidor.

Tanto Matthew Murddock, como advogado e como Demolidor, como Frank Castle,

procuram atingir os grandes criminosos de Hell’s Kitchen, a exemplo o rei do crime. Não são

medidos esforços para vencer essa guerra.

Já na sociedade brasileira, as principais vítimas dos linchadores são os jovens, em

especial os negros e de periferia, que sofrem as acusações. Um caso muito famoso, e que

retrata bem o estereótipo criado pela sociedade sobre o possível suspeito de roubo: um

professor de história da rede pública do Rio de Janeiro foi confundido com um assaltante. Foi

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espancado e acorrentado pela população, que não o executou, pois a polícia chegou ao local.

O jovem só foi libertado pelos policiais após dar uma aula sobre a Revolução francesa8.

Em ambos os casos, tanto nos linchamentos ocorridos na sociedade, como na série,

há um fator em comum: o anonimato dos participantes.

Essa dificuldade para identificar os agressores, dificulta as investigações, pois há

dificuldade em indicar os linchadores, que muitas vezes são protegidos pela própria

comunidade. Mas não é o único fator. Além da dificuldade, o próprio sistema muitas vezes

não identifica esses atos como uma forma ilegal de se fazer justiça (MARTINS, 1995, p. 302).

A polícia, por sua vez, é complacente com os linchadores. Um caso também famoso

mostra o descredito que a população tem sobre a justiça e o braço armado do Estado: um

grupo de pessoas invadiu uma delegacia que acabara de prender um suspeito de um crime e o

executou dentro do próprio local9.

Esse descredito com a força policial é origem de um sistema que não consegue

solucionar os crimes: apenas 8% dos crimes são solucionados10

.

Tanto na série, como na realidade, a ineficiência do poder judiciário, junto com a

força policial, despertam o desejo de insegurança na população. Veem neles um sistema caro,

corrupto e ineficaz. Uma das possíveis soluções, que atende de forma imediata a necessidade

da comunidade, é o linchamento. Não há custo, não há burocracia e com o indivíduo morto,

não voltará a cometer o mesmo crime.

5. Religião e a morte

Como 86% da população brasileira é cristã11

, os valores morais estabelecidos na

sociedade também o são. Logo, um dos mandamentos da bíblia é: não matarás12

. Como então,

uma sociedade que tem como princípio esse mandamento executa indivíduos?

Na história do cristianismo, vemos que havia grupos que matavam em nome de

Deus, a fim de estabelecer os valores que a religião estabelecia. Esses grupos, que se

8 Para mais informações sobre o caso, acessar a página: http://oglobo.globo.com/brasil/professor-da-uma-aula-de-revolucao-

francesa-para-nao-ser-linchado-13088092 Acesso em: 05/07/13, às 10:06. 9 Para mais informações sobre o caso, acessar: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2015/11/suspeito-de-matar-mulher-e-bebe-

e-morto-facadas-em-delegacia-no-ac.html. Acesso em: 05/07/16, às 10h30min. 10 Para mais informações sobre os dados, acessar: http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2014/04/maioria-dos-crimes-

no-brasil-nao-chega-ser-solucionada-pela-policia.html. Acesso em: 06/07/16, às 11h06min. 11 Censo IBGE 2010. 12 6º mandamento da bíblia sagrada.

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denominavam cruzados, tinham os valores cristãos como valores morais, mas, mesmo assim,

matavam aqueles que os quebravam.

A morte do linchado, para os linchadores, é tanto física, quanto simbolicamente.

Quando um indivíduo é acusado de ter cometido um determinado crime – seja de sangue, ou

contra a propriedade – há um julgamento primitivo sobre o fato ocorrido (MARTINS, 1996,

p. 20).

Na sociedade, vemos essa lógica nos julgamentos proferidos pela população: matar é

errado. Portanto, se um indivíduo matou, ele tem que morrer. Mas não apenas morrer, mas

morrer de uma maneira desumana.

Quando a sociedade assume o papel de carrasco, o ato de linchar tem o intuito de

desumanizar o linchado. Essa desumanização pode ocorrer de várias maneiras, desde o

linchamento, até a castração do indivíduo ainda vivo, e a exibição do cadáver, como forma de

reprovação do comportamento impróprio, não aceito pela sociedade.

Na série, vemos essa desumanização do acusado bem representada no episódio um,

da segunda temporada. Matthew descobre que uma pessoa – ainda não tinha conhecimento

sobre Frank Castle – que está fazendo “justiça” também pela cidade. Diferentemente de seu

conceito de justiça, os acusados eram executados. Ao investigar várias mortes ligadas à máfia,

ele chega a um frigorífico. Lá, encontra vários corpos de supostos integrantes da máfia,

pendurados em ganchos de ferros, junto com os corpos de outros animais mortos.

Já na sociedade brasileira, casos de desumanização do acusado são frequentes, não

sendo levado em consideração o crime em si. Um caso de linchamento ocorreu em São Luís,

no Maranhão: um homem, de 29 anos, foi amarrado em um poste, em plena luz do dia, e

espancando com socos, chutes, pedradas e garrafas. Quando a polícia chegou no local, o

acusado já estava morto.

Como é possível notar, o ato de linchar é uma resposta, muitas vezes de forma

desproporcional, ao suposto ato cometido. Tanto na realidade, como na série, a

desumanização é uma tentativa de punição13

.

Essas práticas indicam que estamos em face de rituais de exclusão ou

desincorporação e dessocialização de pessoas que, pelo crime cometido,

revelaram-se incompatíveis com o gênero humano, como se tivessem

exposto, por meio dele, que nelas prevalece a condição de não-humanas. As

mutilações e queimas de corpos praticadas nesses casos são desfigurações

que reduzem o corpo da vítima a um corpo destituído de características

13 Para mais informações sobre o caso, acessar: http://extra.globo.com/casos-de-policia/assaltante-amarrado-em-poste-

espancado-ate-morte-por-pedestres-em-sao-luis-16686215.html. Acesso: 07/06/16, às 18h15min.

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propriamente humanas. São portanto, rituais de desumanização daqueles

cujas condutas são socialmente impróprias (MARTINS, 1995, p. 20).

A morte, para aqueles que acreditam que há um inferno, é um castigo eterno, para

quem pecou. Uma possível relação entre a religião e o linchamento talvez seja o castigo

divino que o indivíduo terá.

Nos seguintes trechos da bíblia, é condenado tanto o roubo, como furto: Levítico

24:1714

, Êxodo 21:1215

, Êxodo 20:1516

.

Baseado na bíblia, como valor moral, o homicídio e o furto são condenados pela

sociedade. Ainda assim, por que a sociedade pune com a morte, já que ela é pecado? Em

Êxodo 22:2, a bíblia diz: “Se o ladrão for achado roubando, e for ferido, e morrer, o que o

feriu não será culpado do sangue”. A morte, quando é em julgamento sobre algum pecado

cometido anteriormente, é considerada justiça. Baseado nessa lógica, o linchamento em uma

sociedade de maioria cristã, é considerado aceitável, uma forma de justiça aceita por Deus.

6. Trabalho, objeto e a vida.

O trabalho, para a sociedade moderna, é uma forma de afastar o indivíduo da

criminalidade e da violência, pois estará ocupando o tempo ócio. Quando o indivíduo

trabalha, ele passa a ser honesto e responsável, enquanto aquele que está desempregado, aos

olhos da sociedade, é vagabundo (CARBONE, 2008, p. 183). Essa ideia, com bases na

industrialização, mostra a importância do trabalho e, quem não se encaixa nele, está fora dos

padrões da sociedade.

Os linchamentos contra indivíduos que cometeram furtos são um dos mais comuns

na sociedade17

. Isso ocorre quando o suspeito é identificado no ato do crime, ou quando outro

indivíduo o identifica como tal suspeito.

Em muitos casos onde o suspeito é julgado pela população, não é levado em

consideração o objeto em si, mas o próprio ato em si. O roubo, para a população, é mais que

uma afronta ao indivíduo, mas uma afronta a ao seu esforço.

14 Levítico 24:17: “Todo aquele que matar um outro ser humano será também executado.” 15 Êxodo 21:12: “Quem ferir a qualquer outra pessoa e provocar sua morte, será também morto.” 16 Êxodo 20:15: “Não matarás.” 17 Dados do Núcleo de estudos em violência (USP)

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Tanto na série Demolidor, punido pelo Frank Castle com a morte, quanto na

sociedade brasileira, punidos pela população, a morte é a resposta da sociedade para o crime

em si. Mas, por que então é tirada a vida do acusado por um objeto roubado?

O alto custo de vida no Brasil faz com quem o objeto seja mais do que ele mesmo,

mas uma extensão de seu esforço e dedicação para adquiri-lo. Portanto, roubar um celular, por

exemplo, é a mesma coisa que roubar uma parte da vida do indivíduo que o comprou. Foram

horas gastas para tê-lo, e em questão de segundos, é tomado por outro. Esse sentimento eleva

a importância do objeto e ignora a vida do suspeito.

Consequências

O linchamento não é uma solução para o problema de segurança pública, mas sim,

um agravamento do próprio problema. Nessa lógica, os fins justificam os meios e, portanto, a

violência justifica a violência. É um ato de sacrifício, pois, se houvesse essa motivação, o

indivíduo seria entregue a justiça. Esses atos são praticados por um grupo de pessoas, em sua

grande parte, motivadas pela raiva, que procuram julgar de maneira lenta e tortuosa o

indivíduo (SANTOS, 2004, p. 1).

Citado anteriormente, vemos que essa violência tem consequências muitas vezes

contra pessoas que não cometeram nenhum ato ilegal, mas foram julgadas sem provas e sem

um direito a resposta. Há uma necessidade de se achar culpados para tais crimes.

No Demolidor, esse justiçamento tanto por parte do Demolidor, quanto do Frank

Castle tomam outras proporções. Conforme ambos vão combatendo o crime utilizando seus

respectivos métodos, vai-se investindo, por parte das próprias organizações criminosas, em

armamentos mais especializados, incluindo mercenários treinados. Essa guerra entre os

justiceiros e o crime organizado, afeta diretamente a população, que, sem ter o mesmo poder

que ambos, acabam sofrendo as consequências. Essa guerra só tende a aumentar, conforme as

organizações criminosas veem mais obstáculos impostos pelo justiçamento.

Portanto, as consequências para a sociedade entre uma guerra da população contra o

crime organizado é uma violência que não atinge necessariamente aqueles que de fato

cometeram um crime, mas pessoas inocentes que podem ser julgadas e não ter nenhum direito

à defesa. Há uma descrença no sistema judiciário, onde a população não acredita nas leis.

Assim, ela passa a criar a sua e impor os seus valores morais. Aqueles que não se encaixam

nesses valores, são classificados como possíveis suspeitos de cometer determinado crime.

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A mídia, por sua vez, tem um papel muito importante nos casos de linchamentos.

Muitos deles, divulgados pelos meios de comunicação, despertam o sentimento de

insegurança na população, que vê como única alternativa, o uso da violência. Esse

comportamento passa a ganhar credibilidade, pois ganha destaque nas grandes mídias

(Produções do III PSICOINFO e II JORNADA do NPPI, 2006, p. 75).

Há uma banalização da violência, onde o ciclo de violência passa a ser algo aceito e

justificável, pois não é um ato exclusivo de determinada comunidade, mas do país como um

todo.

Considerações Finais

Examinando os artigos da constituição federal, referente ao artigo 5ª, junto com a

série Demolidor, foi-se verificado que o processo de linchamento, ignorando totalmente os

direitos garantidos pela constituição, são uma consequência do descrédito da população sobre

a justiça do Estado. Esse processo de linchar segue determinados ritos e valores morais de

cada comunidade. Isso ocorre tanto na realidade, como na ficção. Porém, as consequências

para a população são diferentes.

Através dos artigos pesquisados, juntamente com a análise de determinados

episódios da série Demolidor, pudemos verificar as motivações para o justiçamento, como

uma forma punitiva a determinado ato que a comunidade local considera como fora dos

padrões e a desumanização da vítima, que precisa morrer tanto fisicamente, quanto

simbolicamente.

Na série, Matt Murddock, como advogado, procura os meios legais para punir

aqueles que estão praticando atos ilegais. O personagem sabe que o sistema é falho e quando

consegue prender um dos maiores criminosos da cidade, percebe que ele comanda a

penitenciária. Já como Demolidor, ele usa de meios extralegais para fazer justiça, de acordo

com os seus valores. Ele enfrenta os criminosos da cidade com o uso da força da violência,

mas sem matá-los. Ele acredita que há redenção do indivíduo. Diferentemente do Demolidor,

Frank Castle usa da violência em sua forma mais extrema: a morte. Através dela, ele pune

aqueles que considera que merecem morrer. Não deixa nenhum inimigo vivo, porque não

acredita em redenção. Se alguém matou, merece morrer.

Essa violência é uma consequência de um sistema judiciário ao qual a sociedade não

deposita mais confiança, pois não vê resultados nas punições proferidas pela justiça. O

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infrator comete o crime e logo em seguida estará solto, segundo o pensamento da mesma,

cometendo novamente os crimes. Além da própria burocracia, que é vista como um fator

negativo e que atrapalha o próprio sistema, os processos judiciais são caros, inviabilizando

ainda mais a alternativa legal como meio de solução do problema. A força policial, por sua

vez, também não consegue cumprir com a sua tarefa de investigação sobre os crimes

ocorridos. Uma instituição que consegue concluir apenas 8% dos casos, não é visto como uma

possível solução para sociedade. A população passa a ser o juiz, o júri e o carrasco nos

próprios julgamentos, como uma alternativa rápida, barata e eficiente.

A morte do linchado é justificada através de valores morais da comunidade, que

veem o ato como uma autodefesa, e não um crime em si. Pode-se matar um suspeito se ele

tiver cometido determinado crime, porque esse crime é pecado, portanto, Deus irá puni-lo. E

não punirá quem o matou. Consequentemente, o ato será reproduzido de forma mais

frequente, muitas vezes atingindo pessoas inocentes, que sofreram do ódio e do sentimento de

insegurança. Quem pratica esse crime não é julgado, pois, há o anonimato daqueles que o

fazem. A comunidade protege os seus próprios justiceiros.

Em vista disso, uma possível alternativa para o justiçamento é o investimento em

políticas públicas, como escolas, infraestrutura, etc. Esses investimentos são o primeiro passo

para a diminuição da criminalidade. É preciso fazer também uma reforma no sistema

judiciário e na própria polícia, com mais investimento e mais recursos para investigações.

O linchamento é uma consequência da falta de segurança pública, com instituições

desacreditas e poucos investimentos nessa área e em tudo o que está envolvido, ou seja, é

preciso pensar na sociedade como um todo, visto que todas as esferas da sociedade precisam

harmonizar-se. Quando houver de fato essa reforma no sistema, não será mais necessária a

justiça popular.

REFERÊNCIAS

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http://revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/view/14250. Acesso em: 05 jun. 16,

10:26

MIRANDA, Ximena Silva Franklin de. Linchamentos: crime ou justiça popular?.

Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev. 2016. Disponivel em:

http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.55292&seo=1. Acesso em: 10 jul. 2016,

15:10.

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Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(2): 11-26, outubro de 1996.

MÔNEGO, Gilmar Luiz; MÔNEGO, Franco Cruz. Justiça com as próprias mãos.

Disponível em:

http://www.pm.sc.gov.br/fmanager/pmsc/upload/ccsnoticias2/ART_ccsnoticias2_2014_08_27

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Produções do III PSICOINFO e II JORNADA do NPPI. Psicologia & Informática. 2. Ed.

São Paulo, 2006.

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linchamentos no Ceará. Disponível em:

http://www.historia.uff.br/cantareira/novacantareira/artigos/edicao5/justica.pdf. Acesso em:

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SINHORETTO, Jacqueline. Linchamentos e resolução de litígios: estudos de caso de

periferias de SP. Disponível em:

http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5201&I

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SINHORETTO, Jacqueline. Os justiçadores e sua justiça linchamentos, costume e

conflito. São Paulo, 2001. Originalmente apresentado como dissertação de mestrado,

Universidade de São Paulo, 2001.