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- - INTERAÇAO SOCIAL, COMUNICAÇAO E LINGUAGEM EM CRIANÇAS CEGAS Mauro Magalhães* RESUMO Os primeiros passos do desenvolvimento social comunicativo e lingüístico na primeira infancia são descri-- tos. A segui I; são examinadas as interferências que a carência de visão pode ter nestes processos, assim como os aspectos idiossincráticos que introduzem no comportamento infantil Por fim, resseltem-se as possibilidades de compensações e caminhos alternativos que as crianças cegas e seus pais podem trilhar na superação destas dificuldades. Palavras chave: Desenvolvimento infantlZ linguagem, cegueira. SOCIAL INTERACTION, COMMUNlCATION AND LANGUAGE IN BLlND CHILDREN ABSTRACT The first steps of social development, communication and language at the first cbildhood are described The interferences that the vision lack can ha ve on these de velopmenta I processes are exsmined. as well as the idiosyncretic aspects that it introduce in the infant!le behavior. Final/y, the possibilities of compensations and alternative developmental pathways that lhe blind children and theirparents may treck to cape with tbese difficulties are discussed Key words: Infant development, language, blindness. * Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS, Professor da graduação e da pós-graduação da ULBRA Doutorando em Psicologia Evolutiva e da Educação pela Universidade de Santiago de Com postei a (Espanha). 105 Revista de Psicologia, fortaleza, V.1S(1I2l Vl6(ll2l p.lOS . p.1l6 jcn/dez 1997/98 Ano de Publicocõo 2000

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Page 1: INTERAÇAO SOCIAL, COMUNICAÇAO E LINGUAGEM EM … · e linguagem, além de verificar se as seqüências de de-senvolvimento postuladas pelas teorias sobre crianças normais (videntes)

- -INTERAÇAO SOCIAL, COMUNICAÇAO E LINGUAGEM EM CRIANÇAS CEGAS

Mauro Magalhães*

RESUMO

Os primeiros passos do desenvolvimento social comunicativo e lingüístico na primeira infancia são descri--tos. A seguiI; são examinadas as interferências que a carência de visão pode ter nestes processos, assim como osaspectos idiossincráticos que introduzem no comportamento infantil Por fim, resseltem-se as possibilidades decompensações e caminhos alternativos que as crianças cegas e seus pais podem trilhar na superação destasdificuldades.

Palavras chave: Desenvolvimento infantlZ linguagem, cegueira.

SOCIAL INTERACTION, COMMUNlCATION AND LANGUAGE IN BLlND CHILDRENABSTRACT

The first steps of social development, communication and language at the first cbildhood are describedThe interferences that the vision lack can ha ve on these de velopmenta I processes are exsmined. as well as theidiosyncretic aspects that it introduce in the infant!le behavior. Final/y, the possibilities of compensations andalternative developmental pathways that lhe blind children and theirparents may treck to cape with tbese difficultiesare discussed

Key words: Infant development, language, blindness.

* Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS, Professor da graduação e da pós-graduação da ULBRA Doutorando emPsicologia Evolutiva e da Educação pela Universidade de Santiago de Com postei a (Espanha).

105Revista de Psicologia, fortaleza, V.1S(1I2l Vl6(ll2l p.lOS . p.1l6 jcn/dez 1997/98Ano de Publicocõo 2000

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Introdução

Ouais as conseqüências que a cegueira produzno surgimento e desenvolvimento da comunicação? Sa-bendo-se que o desenvolvimento da interação social éa base da capacidade de comunicação, quais recursospoderiam ter, ou desenvolver, as crianças e seus paispara superarem a carência de informação visual no bebêe alcançar os requisitos fundamentais de um processocomunicativo: intenção comunicativa e código compar-tilhado? Como se dá a constituição e permanência dosobjetos no mundo físico e social da criança cega? É odesenvolvimento cognitivo um pré-requisito para o pro-gresso na aquisição da linguagem?

Esta série de questões trazem um interesse cien-tífico evidente, na medida em que o contexto da ce-gueira infantil traz a possibilidade de estudar os citadosprocessos e variáveis de desenvolvimento numa situa-ção crítica, e assim verificar e contrastar hipóteses deri-vadas de teorias muitas vezes antagônicas. O estudodo desenvolvimento psicológico das crianças cegaspoderá vir a esclarecer hipóteses sobre os pré-requisi-tos cognitivos do desenvolvimento da linguagem, so-bre a interdependência de processos de comunicaçãoe linguagem, além de verificar se as seqüências de de-senvolvimento postuladas pelas teorias sobre criançasnormais (videntes) são fixas ou existem trajetórias al-ternativas possíveis.

Interação social e comunicação em criançasnormais (videntes)

O desenvolvimento da linguagem tem sido vistodentro de uma perspectiva interacionista como tendosuas origens nas interações comunicativas que se esta-belecem precocemente entre o bebê e sua figura deapego (Bruner, 1983). As primeiras formas de comuni-cação não verbal entre a criança e o adulto possuemaspectos formais de ritmo, respeito de turnos, manu-tenção do contato visual, entre outros, tal como ocor-rem nas conversações reais. Sendo assim, são chama-das protoconversações. A criança vem ao mundo comum conjunto de comportamentos pré-formados que tempor objetivo atrair e manter o interesse e a atenção doadulto em relação às suas necessidades de alimenta-ção, afeto e estimulação. No plano das relações soci-ais, podem-se identificar as habilidades do recém-nas-cido para atender a estímulos acústicos semelhantes avoz humana, sincronizar seus movimentos corporaiscom a fala do adulto, atender a configurações visuaisdo mesmo tipo que o rosto humano, fixar o seu olhar

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nos olhos do adulto e imitar os movimentos da bocadeste. O neonato é também capaz de transmitir sinaisde comunicação social através do contato visual, e ex-pressões semelhantes ao sorriso e ao choro (Bowlby,1983; Klaus &- Klaus. 1989).

Estas condutas são a princípio de caráter refle-xo; o adulto será quem Ihes atribuirá intencionalidade,interpretando-as como se fossem dotadas de intenções.A atitude interpretativa do adulto irá codificar os com-portamentos do bebê produzindo os primeirosreferenciais de significação que orientarão a consistên-'cia e regularidade dos seus comportamentos em rela-ção ao bebê (Spitz. 1979). Deste modo serão desen-volvidas as primeiras pautas comunicativas pré-verbaisentre a mãe e o bebê, as protoconversações (Bruner.1983), que nestas etapas iniciais são guiadas pelo adulto.Ochaíta (1993) enfatiza que as condutas de subjetivi-dade primária pré-forrnadas no bebê, somente se con-verterão em intencionais se o adulto é capaz de atri-buir-lhes intenções comunicativas, isto é, interpretá-Ias,exagerá-Ias, e respondê-Ias de maneira adequada.

O desenvolvimento das interações sociais emcrianças normais segue algumas etapas previsíveis quesignificam uma complexidade crescente na maneira dacriança perceber o seu parceiro adulto e, simultanea-mente, a si mesma Nos primeiros 2 ou 3 meses devida, os comportamentos do bebê não possuem inten- .ções comunicativas. Estas começam a aparecer porvolta do terceiro mês. O sorriso automático surge comoresposta à visão da face humana sorridente e vista defrente. Pode-se dizer que esta é uma reação do bebê aum estímulo que assinala que situações prazerosas decontato social estão prestes a acontecer, e evidenciamque sua capacidade de antecipação, isto é, sua vivênciado tempo, está desenvolvendo-se (Spitz. 1979). A se-guir, produzem-se seqüências comportamentaisalternantes entre reações do bebê e do adulto, quepodem ser denominados ciclos de interação. A comu-nicação com os pais irá adquirir formas mais elabora-das na medida em que a criança aperfeiçoa sua capa-cidade de antecipação do comportamento adulto. Aconsistência e a regularidade dos comportamentosmaternos em relação à criança possibilitam que estaaprenda a antecipar estes comportamentos em deter-'minadas situações que assim se tornam familiares. Aantecipação é pré-requisito para a construção de ci-clos de interação social, que se caracterizam pelasincronicidade entre os comportamentos da mãe e dacriança (Pérez-Fereira. 1997).

Num primeiro momento, a capacidade de ante-cipação está na dependência da iniciativa do adulto,

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que é quem sustenta a interação e a conduz. São asprotoconversações ao nível de iruersubjetividede pá ..mária (Trevarthen &- Hubley, I 978), onde o bebê ain-da não exibe intenções comunicativas. Aos poucos acriança assumirá a iniciativa do jogo, e isto significaque atribui ao outro a qualidade de agente, isto é, algoque possui capacidade de agir em resposta. A capaci-dade de antecipação a princípio está limitada a contex-tos caracterizados pela familiaridade e regularidade.Num padrão de desenvolvimento ótimo, aos novemeses a antecipação associa-se à coordenação da aten-ção às pessoas e aos objetos, e a criança exibe com-portamentos que supõem o compartilhar da perspecti-va do outro. Estes últimos são os seguintes: atençãoconjunta, protoimperativos e protodeclarativos. Estassão pautas comunicativas intencionais denominadas porTrevarthen e Hubley (1978) de intersubjetividede se-cundária. Neste momento, o bebê deixa de interessar-se separadamente pelos objetos ou pelas pessoas e passaa comunicar-se com estas a respeito dos objetos, emum processo denominado triangulação. A atenção con-junta pode observar-se no que Campos e Stenberg( I981) denominaram de episódios de referência soci-al: a criança observa a reação social do adulto diantede novas situações, objetos ou pessoas, a fim de codi-ficar o fato como algo perigoso, bom, interessante, etc.O protoimperativo refere-se a gestos nos quais a crian-ça pede que o adulto faça algo que não tinha intençãoprévia de fazer. A criança agora gesticula para a mãe,pedindo o copo de água. Antes, apenas estendia osbraços e chorava, sem considerar a presença da mãe.O protodeclarativo refere-se aos comportamentos queexpressam o desejo que a criança tem de que o adultopreste atenção a objetos ou fenômenos que a ela pare-cem interessantes, a fim de compartilharem um inte-resse comum. Um exemplo ilustrativo é o comporta-mento de acender e apagar a luz, vocalizando 'Ahh!"e mostrando o fenômeno que lhe parece interessantepara o adulto (Pérez-Pereira, 1997).

Nos comportamentos acima citados, o parceiroé mais do que um agente, pois a criança mostra sercapaz de ler a intenção do outro. Ela não faz mera-mente algo para o outro, mas o contato visual aparecena busca de ler a intenção do outro que é agora consi-derado como um sujeito com intenções e desejos pró-prios (Górnez et al., 1995). Os preto-imperativos e osprotodeclarativos constituem a primeira forma de co-municação intencional na criança, pois ela é capaz detransmitir uma intenção ou interesse em relação a umobjeto ou fenômeno a outra pessoa.

De acordo com Bruner (1983), os jogos com

objetos constituem a base para a elaboração das se-qüências de turnos implicadas nas conversações. Estesjogos permitem o intercâmbio de papéis entre os par-ceiros, em ações do tipo "dar e tomar", "esconder emostrar", e, neste sentido, são precursores dos meca-'nismos deíticos implicados nas conversações verbaisfuturas, tais como as distinções "eu", "tu", "aqui", "ali".

O avanço da comunicação social está imbrica-do com os avanços do desenvolvimento da personali-dade, com a constituição de uma imagem de si, e tam-bém com o estabelecimento das ligações afetivasessenciais entre a criança e os seus cuidadores. A li-gação afetiva definida se manifesta de modo ostensi-vo através da angústia do oitavo mês, isto é, o medode estranhos e a busca constante da presença mater-na. Pode-se dizer que a construção do si mesmo ésimultânea e solidária com a construção das relaçõessociais com um outro percebido de modo cada vezmais complexo e de importância afetiva cada vez maisespecífica e definida.

A possibilidade destes avanços descritos ocorre-.rem da maneira esperada está na dependência da sen-sibilidade materna para interpretar o comportamentodo seu filho e responder adequadamente. As respostasda mãe e as situações por ela criadas devem ter carac-terísticas de regularidade, estrutura previsível e de ca-ráter repetitivo, permitindo a alternância de comporta-mentos sincronizados entre ela e seu bebê. Estascaracterísticas constituem a essência do que Bruner( 1983) denominou formatos.

É inegável a importância da informação visual noestabelecimento destas situações de interação social tãoessenciais para o desenvolvimento da linguagem e dacomunicação. Neste sentido, devemos perguntar-nosquais seriam as conseqüências da carência de infor-mação visual para o desenvolvimento destes processosna criança cega. As crianças cegas têm sido vistas comoapresentando déficit no desenvolvimento social eco-'municativo devido à carência da informação visual (eg..Dunlea, 1989, Preisler, 199 L Urwin, 1984). Este dé-ficit pode ser agravado se os pais não são capazes deinterpretar apropriadamente os comportamentos e ossinais emitidos pela criança cega, dificultando o esta-belecimento de vias alternativas no desenvolvimentode relações sociais.

Interação social e comunicação: os efeitos dacarência de visão

A expressão emocional do sorriso aparece niti-damente a partir do terceiro mês em crianças videntes.

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Este processo está relacionado com a maturaçãoneurofisiológica da visão (Spreen, Risser &- Edgell,1995). Spitz (1979) considerou o sorriso automáticodo terceiro mês como um precursor do objeto, poisesta é uma reação limitada à face humana sorridente evista de frente (a criança não sorri quando o rosto estáde perfil); e também indiferenciada, no sentido que obebê sorri a toda e qualquer face. Por outro lado, oaparecimento da resposta de sorriso é um fator rele-vante para a estimulação dos comportamentos sociaisdos pais, que sentem-se mais motivados para a interaçãocom o bebê. Neste período, começam a aparecer osprimeiros ciclos de intercâmbio de comportamentosalternantes entre a mãe e o bebê. Nestes ciclos, torna-se fundamental a percepção visual por parte da crian-ça das expressões e reações da mãe.

O estabelecimento de um ciclo interativo podeser comparado a uma "dança" (Bee, 1986). na qualhá o entrosamento dos comportamentos de ligaçãoafetiva. Para o adulto, o ingrediente crítico na forma-ção de uma ligação afetiva genuína com o seu bebê éa oportunidade de desenvolver uma mutualidade decomportamentos de ligação afetiva, isto é, praticar uma"dança" até que ao seguirem um ao outro ambos ob-tenham calma e prazer. Isto leva tempo e muitos en-saios. No início, os pais iniciantes não sabem inter-pretar as pistas fornecidas pelo bebê e a interaçãonão terá as características ótimas de sintonia esincronicidade. Mas à medida que cuidam do bebê,brincam e falam com ele, o processo se aperfeiçoa.Quanto mais fácil e previsível se tornar o encaixe doscomportamentos, maior satisfação os pais parecemsentir e mais forte se torna a ligação afetiva com ofilho (Bee, 1986).

De acordo com Bowlby (1983), tanto os bebêscomo os adultos possuem condutas pré-figuradas, ca-racterísticas da espécie humana, que os predispõempara a interação mútua e resultam na formação do vín-culo de apego sob as condições adequadas. O bebênasce com uma série de condutas reflexas que buscamo contato corporal. como por exemplo a sucção e apreensão; apresenta comportamentos perceptivos diri-gidos para estímulos sociais, além de manifestar sinaisde comunicação, tais como a fixação do olhar e a pre-ferência por sons semelhantes à voz humana. Estascondutas são a princípio não intencionais, mas irãoadquirir intencionalidade na medida em que recebe-rem atenção e resposta adequada por parte dos adul-tos que a rodeiam.

No caso da criança cega, evidentemente, estasituação está dificultada, pois carece de um sistema

sensorial tão importante como a visão para perceber asreações maternas e associar e produzir comportamen-tos contingentes às mesmas. As vocalizações e respos-tas de sorriso da criança cega não são contingentes aoscomportamentos da mãe (Ais, Tronick &- Brazelton.1980; Rowland, 1984; Messer. 1994) Por outro lado,é freqüente que a criança cega mantenha-se em silên-cio diante da estimulação da mãe, o que pode ser erro-neamente interpretado como inexpressividade. deixan-do a mãe desconcertada e desmotivada para a interação(Ais et al., 1980).

Fraiberg (1977) estudou um grupo de bebêscegos que sorriam menos e, obviamente, não mostra-vam o fitar mútuo. Depois de algum tempo, a maioriados pais destes bebês cegos começaram a achar queeles os rejeitavam; ou concluíam que os bebês estavam.deprimidos. Estes pais sentiam-se menos ligados a seusfilhos cegos do que aos outros filhos. Nestas famílias, aautora observou que as mães cada vez mais evitavamos seus bebês.

Ochaíta (1993) considera muito importante as-sinalar que os problemas acima citados não derivamdiretamente da cegueira, visto que os bebês possuemum repertório mais amplo de condutas pré-figuradas ede vias alternativas para relacionar-se com os adultos.E são estes adultos, próximos à criança, que podemalterar seus comportamentos com relação ao bebê porcausa da cegueira deste. Porém, o trauma afetivo re-sultante do nascimento de uma criança cega, as difi-culdades em aceitar o fato, e as expectativas paternascatastróficas em relação ao futuro do bebê, formamum contexto sombrio a ser superado. O comportamentodo bebê não apresentará as características clássicas de'um bebê normal. e os pais tendem a afastar-se, princi-palmente se levarmos em conta que o olhar e aexpressividade facial são as condutas pré-figuradas maisimportantes no momento de eliciar os comportamen-tos de tipo maternal. Sendo assim, o que pode ser alte-rado são os sistemas de condutas do adulto, pois estesdevem ser instruídos em programas de educação espe-ciais a aprender a identificar as condutas pré-figuradasalternativas que o bebê possui, a fim de que possamdirigir estas primeiras interações e empreender o tra-balho de codificação e atribuição de intencional idadeaos comportamentos do bebê. Este tema será aborda-do mais adiante.

A dificuldade do bebê cego em perceber a re-gularidade dos comportamentos maternos e a conse-qüente incapacidade de antecipar o que vai ocorrer na.interação resulta na ausência de instâncias de jogo so-cial convencional entre mãe e bebê cego, tal como

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observado por muitos investigadores (Ais et al.. 1980;Rowland, 1984; Urwin. 1984).

Devido aos mesmos motivos citados, acima nãose observaram instâncias de protoimperativos (condu-tas de petição) nem protodeclarativos (condutas deatenção) na criança cega. Não ocorrem gestos comu-nicativos típicos, nem miradas dirigidas ao outro ou aoobjeto ou acontecimento em questão. Preisler (1991)interpretou a ausência destes comportamentos comocarência de intersubjetividade secundária, isto é, a in-capacidade de compartilhar suas intenções ou conhe-cimentos com outros.

A semelhança destes limitações das crianças ce-gas com o comportamento de autistas levou algunsautores a argumentarem que elas possuem dificulda-des no desenvolvimento do seu ego (Burlingham, 1964;Wills, 1979), e uma deficiência na consciência de si,que por sua vez levaria a atrasos na utilização de pro-nomes pessoais e no estabelecimento do jogo simbóli-co (Fraiberg, 1977; Dunlea. 1989). Estes são traçoscornportamenrais que têm sido observados nas crian-ças autistas (Frith, 1989; Hobson, 1993).

Hobson (1993) considera que, embora em al-guns casos existem fatores de comorbidade explicativosdas semelhanças entre autistas e cegos, os sintomas tí-picos de autismo podem produzir-se em crianças ce-gas que são normais em outros aspectos. As criançascegas apresentam ecolalia, problemas na capacidadede estabelecer o jogo simbólico, na capacidade de com-partilhar, e no uso de pronomes pessoais; porém, so-mente alguns poucos poderiam ser diagnosticados comoautistas. Este autor assinala que, na maioria das crian-ças cegas, a maior parte dos problemas parecem resol-ver-se em torno dos sete anos.

Hobson (1993) considera que a hipótese maisadequada para explicar estes fatos é uma falha no de-senvolvimento social da criança, mais especificamenteno processo denominado triengulsçéo. que a cegueiraproduz. Triangular no relacionamento eu-tu significacompreender a perspectiva do outro em relação a umobjeto que está no campo de percepção de ambas aspartes. O triângulo de relação neste caso é formadopela criança, pelo adulto, e pelos objetos e fenômenosdo meio externo aos quais os comportamentos de am-bos fazem referência. A triangulação se produz quan-do a criança" encontra-se em condições para captar adiferença entre o que significa o objeto para ela e oque significa para outra pessoa" (Hobson, 1993, p.24).Porém, a carência de informação visual traz uma limi-tação dramática para a percepção das atitudes psicoló-gicas exteriorizadas de outras pessoas em relação a fe-

nômenos e objetos específicos. A criança deve primei-ro reconhecer que determinados objetos podem ser oalvo de atenção de outras pessoas, a seguir deve iden-tificar as atitudes emocionais das mesmas em relação aestes objetos, e finalmente contrastar os seus própriossentimentos e atitudes com os das pessoas. Esta é asituação em que se produz uma triangulação entre duas"atitudes psicológicas" e um único "objeto" ao qual sereferem. É evidente que a carência de informação vi-sual traz dificuldades sérias para o cumprimento desteprocesso de triangulação. Neste sentido, Urwin (1984)salientou que a visão joga um papel importante naregulação que faz o bebê da atenção do adulto, poissão os olhares e gestos de assinalar que permitem aeste saber o que a criança quer fazer, suas intençõesem relação aos objetos. Os protodeclarativos eprotoimperativos são comportamentos de caráter pre-dominantemente visuo-rnanual. Além disto, enquantoque a criança vidente no final do primeiro ano irá indi-car o interesse que possui sobre determinados objetosdo mundo exterior, a criança cega não terá aindaconstruido representações permanentes destes objetos.A permanência dos objetos em crianças cegas é cons-tituída com um atraso entre 8 e 36 meses em relaçãoàs crianças videntes. Somente após a aquisição da no-ção de objeto permanente é que a criança cega pode-rá interessar-se por objetos fora de seu entorno irnedi-:ato e iniciar o diálogo sobre os mesmos através deprotodeclarativos e protoimperativos por vias alternati-vas à visão.

Os estudos realizados levam a crer que são aschaves tácteis mais do que as auditivas que condu-zem a criança cega a localizar e compreender a per-manência dos objetos (Ochaita, 1993). Neste senti-do, sob condições adequadas, o bebê cego e o adultopodem estabelecer sistemas de comunicação pre-ver-bal sobre os objetos com os quais o primeiro tenhaexperiência táctil. mesmo que a iniciativa para a co-municação tenha que partir do parceiro adulto nestasprimeiras etapas. Este caminho alternativo será exa-minado no tópico a seguir.

A capacidade de compensação e oestabelecimento de formas alternativas deinteração e comunicação nas crianças cegas

A porcentagem de crianças cegas que apresen-tam características comportamentais semelhantes aosautistas. assim como um atraso generalizado envolven-do outras áreas do desenvolvimento, é de aproxima-damente 20% da população de cegos de nascimento

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(Fraiberg, 1977). Este padrão de desenvolvimento nãoé hegemônico graças ao estabelecimento de formasalternativas de relação social desde o estabelecimentoda intersubjetividade primária (ciclos de interação, for-matos) e, a seguir, no desenvolvimento da intersubjeti-vidade secundária (jogo social e comunicação).

Os caminhos alternativos para o desenvolvimen-to se constróem primeiramente através da compreen-são por parte da mãe que o comportamento de ficarquieto do seu filho não significa apatia mas sim umaforma de prestar mais atenção à estimulação que seapresenta. A mãe deve estar ciente que são possíveis enecessárias formas alternativas de interação social quenão requeiram o uso da visão. O emprego do tato e damotricidade, junto com a vocalização são recursos al-ternativos indicados (Ais et al.. 1980; Urwin. 1984).Neste sentido, a mãe pode segurar a mãozinha de seubebê e realizar movimentos rítmicos e regulares acom-panhados de vocalização, que aos poucos resultarãoem ciclos de interação ou jogos. Estas estratégias de-vem ser estabelecidas muito cedo, antes dos cincomeses; pois nessa etapa de intersubjetividede primáriaa criança não tem intenções comunicativas e é o adul-to que deve guiar a interação e atribuir intenções asações do bebê. Sendo assim, é importante que os paisrecebam informações e aprendam a compreender si-nais comunicativos alternativos à visão. Urwin (1983)encontrou um desenvolvimento satisfatório da interaçãoentre crianças cegas e suas mães, no qual observouque estas buscavam encontrar no comportamento dosbebês sinais ou expressões que pudessem significar al-guma classe de resposta às suas próprias iniciativas.Preisler (1991) também observou padrões semelhan-tes a este em díades mãe-bebê cego. Em conseqüên-cia, sabe-se que os intercâmbios visuais não são im-prescindíveis para as primeiras formas de comunicaçãocriança-adulto. As mães de crianças cegas devem po-der interpretar outros indícios que estas manifestamfrente a sua proximidade, tais como os movimentos debraços e pernas ou da boca.

Posteriormente, ao redor dos sete meses, os paisdevem estimular a criança a explorar os objetos domeio externo propondo situações de busca de obje-tos, preferentemente sonoros, que lhe apresenta aoalcance da mão, ajudando a sua busca com incenti-vos verbais e brindando as conquistas neste sentido.Ao redor dos 9 meses, as crianças cegas e seus paispodem estabelecer relações de jogo social que utili-zam principalmente a motricidade e as vocalizações,tais como bater palmas, imitação vocal, fazer cóce-gas, e movimentos conjuntos. No decorrer destas

interações é importante que os pais estejam sensíveis,às alterações na expressão facial dos bebês, nos seusestados de humor e mudanças de atenção, a fim deque possam atribuir significados a estes sinais e con-duzir mais adequadamente os ciclos de interação. Em'contraste, estão ausentes do repertóriocomportamental das crianças cegas os gestos conven-cionais de oferecer, mostrar ou assinalar. Estes sãosubstituídos por gestos idiossincráticos, como jogar ocorpo para trás quando estão no colo da mãe ou gol-pear os seus braços (Pérez-Pereira &- Castro, 1994).

A ausência de gestos comunicativos convencio-nais nas crianças cegas levou alguns pesquisadores(Preisler, 1991) a pensar que estes sujeitos não estabe-lecem intersubjetividede secundária antes de pronun-ciarem as primeiras palavras. A linguagem seria umcompensador importante para esta carência.

Todavia, as crianças cegas não conseguem atra-ir a atenção dos seus pais e iniciar um jogo sem o esta-belecimento prévio do contato corporal. Somente pró-ximo aos dois anos logram fazê-lo sem este pré-requisito .(Pérez-Pereira, 1997).

Preisler (1991) considera que após um ano ascrianças cegas começam a utilizar vias alternativas àvisão para chamar a atenção dos seus pais sobre osobjetos sonoros. Apesar de manterem seus corpos efaces imóveis, as observações coletadas em vídeo mos-traram que estas crianças dirigiam sua atenção para osom através de uma leve inclinação no sentido do mes-mo. A autora considera que esta categoria de movi-mentos poderia ser um meio para estabelecer comuni-cação com o adulto sobre os objetos, sempre que estepossa interpretar estes movimentos ou "assinalamentoscorporais" como interesse pelos objetos. Porém, resul-ta muito difícil para os adultos darem-se conta destesmovimentos sutis e mesmo interpretá-los como vias al-ternativas de indicar objetos, pois a face e os membrospermanecem imóveis e inexpressivos.

Ochaíta (1993) considera, portanto, que re-sulta mais fácil estabelecer o processo de triangulaçãocom objetos próximos com os quais a criança tenhaexperiência táctil, mesmo reconhecendo que os da-dos disponíveis indicam que a criança cega adquirea permanência dos objetos tácteis com algum atra-so, e consequentemente atrasa-se a comunicaçãosobre os mesmos.

Por outro lado, principalmente explorando aspotencialidades do contato corporal e das vocalizações,parece possível que as crianças cegas e seus pais cons-truam uma rede de significados sem a participação davisão. A conduta de referência social. tão importante

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para a criança situar-se diante de situações ou pessoasestranhas, deve ser suprida através do contato corpo-ral dos pais, pois este compensará a ausência de infor-mação visual do filho (Pérez-Pereira, 1997). .

Após o estabelecimento da comunicação pré-verbal, as crianças cegas, assim como as videntes, co-meçarão a produzir as primeiras palavras reconhecí-veis. O acesso à linguagem abre um novo universo paraa criança cega, pois entrará em contato com uma infi-nidade de informações e conhecimentos inacessíveissem este recurso. Além disto, a linguagem possibilita aexpansão dos seus contatos sociais, minimizando o ris-co de isolamento social.

o desenvolvimento da linguagem nascnanças cegas

O desenvolvimento do aspecto léxico da lingua-gem tem sido abordado desde duas perspectivas dis-tintas sobre como se dá a construção do significadodas palavras. A primeira, com base em teorias dacognição, considera que as palavras projetam os con-ceitos que as crianças formaram em seus intentos decompreensão da realidade. Portanto, estabelecem umaseqüência na qual os processos de formação de con-ceitos devem preceder a projeção dos mesmos na lin-guagem. Considerando que a informação visual tempapel central em nosso conhecimento da realidade, asteorias de aquisição da linguagem que dão prioridadeao desenvolvimento cognitivo atribuem também umpapel capital à informação visual no desenvolvimentoda linguagem. A segunda abordagem considera que osignificado das palavras pode ser deduzido a partir dainformação que oferece a posição da palavra na ora-ção, como por exemplo, os adjetivos após os substan-tivos (Pérez-Pereira. 1991).

Andersen, Dunlea e Kekelis (1984) dentro daperspectiva cognitivista disseram que as crianças cegas"contextualizam as palavras", isto é, associam determi-nadas palavras determinados contextos e desta formaaprisionam seu uso a determinadas situações, e nãopermitem o processo de generalização intrínseco à for-mação dos conceitos. Portanto, consideram que o pro-cesso de formação de conceitos estaria limitado nascrianças cegas. Por outro lado, Barret (1989) observouque as crianças videntes, em seu repertório de 10 a 15primeiras palavras, usam estas em contextos muito de-finidos, pois estão relacionadas a contextos definidosde interação entre pais e filhos, e representam eventosou aspectos das situações freqüentem ente vivenciadasna vida familiar. Porém, nas crianças cegas isto se pro-

longa pelo menos até quando atingem 50 palavras derepertório léxico. Por outro lado, crianças videntes têmacesso à maior diversidade de contextos a fim de exer-cer generalizações, e talvez adquiram os conceitos umpouco mais cedo do que as cegas. No caso destas, éabsolutamente lógico encontrar problemas nesta área,pois a falta do canal visual diminui a possibilidade deformar categorias mediante a generalização. Basta ima-ginar as dificuldades que há de ter uma criança cegapara, com os dados auditivos e táteis. formar categori-as do tipo "veículos" ou "animais".

O fato de ter que recolher a informação medi-ante o tato resulta que a criança cega, nas primeirasfases de aquisição da linguagem, nomeie preferente-mente os objetos com os quais tenha experiência dire-ta, como são os móveis e utensílios domésticos. Ocor-rendo o contrário com os nomes de animais, os quais édifícil discriminar sem o canal visual (Ochaíta, 1993).

O fenômeno da sobre-extensão, tão característi-co e expressivo nas crianças videntes, não é claramen-te evidenciado nas crianças cegas. Quando uma crian-ça vidente chama uma vaca de "au, au". estáprovavelmente generalizando o fato de ambos, a vacae o cão, terem quatro patas. Não obstante, Ochaíta(1993) argumentou que a "sobre-extensão" de crian-ças cegas teria de ser efetuada a partir de dados táteis,gustativos ou sonoros, tornando difícil o reconhecimentodeste fenômeno por videntes.

Pérez-Pereira e Castro (1997) argumentaramque quando falta para as crianças cegas a referênciasensorial sobre o significado de determinada palavra,suprem esta carência através da observação da posi-ção que a palavra ocupa na estrutura sintática dasfrases pronunciadas pelas pessoas a sua volta. A faltada referência sensorial estimularia as crianças cegas aprestar muita atenção à linguagem. Portanto, segun-do estes autores, a idéia de alguns autores (eg.. Clark.1974) que consideraram que as crianças cegas utili-zam palavras sem conhecer o respectivo significado(verbalisrno) não é adequada.

Em relação às "palavras de ação", Bigelow(1987) observou que, durante o período em que emi-tem uma única palavra, as crianças cegas referem-sesomente às suas próprias ações, e nunca às ações de'outras pessoas. E na etapa correspondente às frases deduas palavras, Urwin (1983) e Dunlea (1989) rara-mente encontraram referências à ações alheias. Sendoassim, consideraram a fala das crianças cegas comoegocêntrica ou nâo-descentrada até o período em queemitem um repertório de 100 palavras. Estes autoresapelam a uma explicação em termos das dificuldades

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cognitivas decorrentes da ausência de visão como sen-do a causa do atraso no desenvolvimento da lingua-gem nas crianças cegas.

Os estudos de Landau e Gleitman (1985) argu-mentaram a favor de uma visão inatista da aquisição dalinguagem, e portanto não encontraram evidências dediferenças significativas entre cegos e videntes em as-pectos sintáticos, relações semânticas, uso de verbos taiscomo ver (see) e olhar (Jook) e no desenvolvimento glo-bal médio indicado pelas L.M.E.. Porém, seus métodosforam acusados de tendenciosos em termos dos dadosescolhidos e da maneira de analisá-los (Mills, 1987).

Por outro lado, Pérez-Pereira e Castro (1994) emsuas observações sobre as funções pragmáticas da lin-guagem em uma criança cega e sua gêmea vidente,constataram que a gêmea cega emitia mais palavrasrelacionadas com suas próprias ações e desejos que avidente nas fases de longitudes médias de emissões(LME) entre 2,13 e 3,26. Todavia, estes autores nãochegaram a conclusões tão radicais como Dunlea(1989), que considerou que as crianças cegas não uti-lizariam palavras para referirem-se a localização e pro-priedades de objetos, muito menos para as ações deoutros. A criança cega emitiu alguns, embora poucos,termos para referir-se a localizações e propriedades dosobjetos; e as suas pontuações na categoria "descriçãode acontecimentos externos" não diferiam de sua irmã.

Neste mesmo estudo, Pérez-Pereira e Castro(1994) reconheceram que a linguagem da menina cegaestá mais orientada a si mesma nas fases iniciais, po-rém a partir dos 3,5 anos até os 5J anos, as irmãsfazem um uso semelhante da linguagem nas categoriasde emissões denominadas "ação pessoal" e "determi-nação pessoal". A interpretação destes autores buscacompreender estes fenômenos do ponto de vista daexperiência vivida do sujeito, e argumentam que amenina cega usa a linguagem para descrever suas pró-prias ações e desejos na medida em que estes constitu-em uma fonte experiencial importante para ela e facil-mente constatável. Além disto, consideram que a maiorfreqüência de verbalizações sobre suas ações imedia-tas ou sobre o que está fazendo no momento, pode serum recurso que a menina cega utilize para regular ver-balmente sua ação, pois carece da informação visualsobre o curso de seu comportamento. Portanto, estesautores trazem uma interpretação diferente de estudosanteriores (Bigelow, 1987; Dunlea, 1989), relacionandoa fala orientada à ação em curso ou imediata com suafunção de regulação do comportamento.

Outra característica funcional encontrada na falada menina cega estudada por Pérez-Pereira e Castro

(1994) é a alta incidência de chamadas e vocativos.Dunlea (1989) considerou que estes dispositivos sãoutilizados pela criança cega para chamar e monitorar aatenção do adulto. Por outro lado, Pérez-Pereira eCastro (1994) enfatizaram a função mais.freqüentem ente registrada de obter informação sobrea presença e a localização das pessoas no ambiente.

Em relação ao desenvolvimento morfológico,alguns estudos examinaram o aspecto da sobre-regula-rização de morfemas em cegos (eg.. Andersen, Dunlea&- Kekelis. 1984). Este fenômeno faz parte do desen-volvimento normal da linguagem em crianças videntese manifesta-se nitidamente na conjugação "regular" deverbos irregulares, como, por exemplo, quando a cri-ança conjuga o verbo "caber" na 3a pessoa do singulardizendo "cabeu" ao invés de "coube". A criança res-peita as regras de conjugação do respectivo grupo deverbos, e portanto o seu erro tem lógica. A ausênciadeste fenômeno em crianças cegas levou Andersen,Dunlea e Kekelis (1984) a considerarem que elas nãoanalisam a linguagem. Por outro lado, Pérez-Pereira eCastro (1994) não encontraram diferenças significati-'vas sobre este aspecto entre as irmãs gêmeas de seusestudo acima citado, e considerou, portanto, que amenina cega apresentou capacidade de análisemorfológica da linguagem e utilizou regras.

A aquisição dos pronomes pessoais em crian-ças cegas foi descrita como atrasada em relação àsvidentes. Crianças videntes aos 2 anos não produ-zem erros neste aspecto, e aos três anos dominamcompletamente o sistema de pronomes. Porém, ascrianças cegas não usam de modo criativo antes dametade do terceiro ano; sendo que a:ntes fazem umuso sincrético dos pronomes através de formas paraexpressar desejos ("Eu quero .... "), erros de inversãotais como dizer "este é teu cavalinho" ao invés de "esteé meu cavalinho" (Fraiberg &- Adelson, 1973)Fraiberg e Adelson (1973) encontraram também um.atraso expressivo das crianças cegas no uso estávelda primeira pessoa do pronome pessoal (eu) e outrasformas de autoreferência (me, mim, meu). As crian-ças cegas adquirem estas formas quase dois anos de-pois da crianças videntes. Fraiberg e Adelson (1973)interpretaram que isto se deve à uma dificuldade naconstrução do eu, pois a imagem corporal ajudarianeste processo. Por outro lado, pode-se argumentarque devem ser analisadas as circunstâncias destes er-ros de inversão, pois as crianças cegas podem cometê-los em circunstâncias de imitação de adultos, quandoestes, aproveitando o exemplo anterior, aproximam-se da criança e comentam "este é teu cavalinho". Além

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disto, não são todas as crianças cegas que produzemerros de inversão (Pérez-Pereira, 1998).

Em relação ao desenvolvimento sintático, a com-plexidade morfosintática mensurada pela longitudemédia das emissões se diferenciou entre as irmãs doestudo de Pérez-Pereira e Castro (1994), porém nadireção oposta à esperada. A menina cega apresentoulongitudes médias de emissões um pouco maiores queas de sua irmã vidente. Os autores interpretaram estasdiferenças como devidas à utilização mais freqüentede rotinas e repetições por parte da menina cega.

O uso freqüente de imitações, repetições e roti-nas na expressão lingüistica de crianças cegas poderiaser interpretado como indicativo de que a linguagemdos cegos é como a de um papagaio que não analisa oque diz. Pérez-Pereira (1991) considera que estas for-mas podem ter uma função mais específica no desen-volvimento da linguagem na criança cega, e que nãorepresentam uma forma inferior de expressão lingüísti-ca. Este autor considera que as rotinas são usadas porcrianças cegas com uma função de orientação na rea-lidade; por serem frases pertinentes a contextos deter-minados, servem para identificar e diferenciar situa-ções, fomentam a interação social e desenvolvem alinguagem. Analisando a linguagem de uma meninacega, Pérez-Pereira ( 1991 ) constatou o elevado uso deimitações e repetições com expansão e modificadas,indicando que são utilizadas como instrumento de aná-lise da linguagem. O autor também salientou o caráterprogressivo que tiveram as imitações, repetições e roti-nas, na medida em que as emissões nas quais apare-cem são mais complexas gramaticalmente do que oconjunto de produções. Isto quer dizer que o modeloimitado e repetido serve como um suporte que conduze facilita a progressão para formas de maior longitudee complexidade gramatical do que se fossem apenasrepetições espontâneas e irrefletidas. Além disto, estasproduções cumprem um papel importante na comuni-cação e mantêm a continuidade da conversação.

Considerações finais e perspectivasde intervenção

Ao contrário do que pensavam alguns autores (eg.,Andersen, Dunlea &- Kekelis, 1993), a linguagem nas cri-anças cegas tem um desenvolvimento semelhante às cri-anças videntes (Pérez-Fereira &- Castro, 1994). O únicotraço distintivo é a utilização mais freqüente de algunsmecanismos de aprendizagem da linguagem, tais comoas imitações, as repetições e as rotinas, assinalando umadiferença somente quantitativa (Pérez-Fereira, 1994).

Portanto, sabendo-se que as crianças cegasaprendem a falar sem dificuldades especiais (salvo ex-ceções), pode-se dizer que a existência de gestos co-municativos convencionais não é um pré-requisitonecessário ao aparecimento da linguagem. Isto suge-re a independência da linguagem com relação a ou-tras formas de comunicação nâo-linguística. como sãoos gestos. É possível que os mecanismos responsáveispelo desenvolvimento da linguagem sejam mais espe-cíficos, e que o aparecimento das palavras, contraria-mente às opiniões de alguns, não tenha sua origemnos gestos comunicativos. Porém, não se está afirman-do que a qualidade das interações sociais e o estabe-lecimento de significados compartilhados com os adul-tos não seja favorecedora deste processo. Foi descritocomo a criança cega e seus pais podem desenvolveroutros meios para relacionarem-se e comunicaremsuas intenções empregando o tato, o movimento e avocalização nâo-linguística.

Infelizmente, o padrão de desenvolvimento des-crito nos últimos parágrafos não é generalizado a todasas crianças cegas. Algumas apresentam sérios transtor-nos em seu desenvolvimento social e comunicativo, comcaracterísticas semelhantes aos autistas. cujas relaçõessociais são pobres e reduzidas, e uma ausência de com-portamentos comunicativos e de linguagem.

Em termos da intervenção sobre os problemasoriundos da deficiência visual, assim como nas demaisdesordens do desenvolvimento, é imprescindível queocorra o mais cedo possível. A abordagem dos pais é abase do processo. Estes devem ser informados paraque possam compreender melhor o desenvolvimentodos seus filhos e prover as condições adequadas paraprornovê-lo. Sabe-se que os pais reagem com uma sé-rie de comportamentos típicos, tais como a negação dadeficiência do filho, revolta, culpa, sentimento de fra-casso, e, muitas vezes, buscam soluções mágicas.

A administração da informação aos pais é umrecurso precioso e deve ser o eixo do processo de in-tervenção. Estes devem ser informados das caracterís-ticas e do padrão de desenvolvimento das crianças ce-gas, com um conhecimento preciso do que pode seralcançado em todas as áreas. Deve-se fomentar a sen- .sibilidade dos pais para interpretar adequadamente ocomportamento dos filhos e orientar sobre comporta-mentos a serem adotados em situações cotidianas.

A intervenção no ambiente doméstico pode serum recurso importante. As posições dos móveis e tam-bém a disponibilidade de indícios podem ser ajusta-dos a fim de que facilitem para a criança a orientaçãono espaço.

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o acesso à linguagem deve ser visto como a vitó-ria mais importante no desenvolvimento das criançascegas. Pois, graças ao domínio deste recurso, serãocapazes de aceder a uma grande quantidade de infor-mação sobre o ambiente físico e sócio-cultural. E alémdisto, a linguagem pode ser um instrumento muito útilpara dirigir e regular seu comportamento.

Neste sentido, a função interacional é talvez oaspecto mais importante a ser cuidado em programasde intervenção. A linguagem irá desenvolver-se combase na história de interações comunicativas entre acriança e seus pais. A capacidade de comunicação dobebê apoiar-se-à na sensibilidade dos pais para inter-pretar as condutas da criança, outorgar significado àssuas reações e estabelecer ciclos de interação(protoconversações) com a mesma. A construção designificados compartilhados e a capacidade de atençãoconjunta formam a sustentação para o aparecimentoda linguagem. Tendo como suporte o aspectointeracional, Pérez-Pereira e Castro (1994) sugeriramuma série de procedimentos de intervenção que sãodescritos nos parágrafos a seguir.

Os aspectos articulatórios da linguagem podemser sensibilizados na criança através do contato da suapele com os lábios dos pais, tanto quando estes estive-rem falando, quanto em silêncio, a fim de que a crian-ça identifique o estado de ausência de movimentos e anecessidade dos mesmos. Em combinação, deve-seestimular a exploração manual dos lábios e boca doadulto, enquanto este fala.

É recomendado que os pais repitam os sons ouas primeiras palavras do filho na medida em que esteas emite. No caso de palavras, é indicado que usememissões que expandam ou expressem mais comple-tamente as intenções da criança. O uso apropriadoda linguagem pode ser promovido através da nomea-ção, comentário ou descrição dos objetos, sons e ati-vidades, na medida em que a criança as experimenta.Todas as descrições que estimulem o interesse da cri-ança sobre os fenômenos de seu entorno são impor-tantes. Estas descrições devem explorar o maior nú-mero de aspectos dos acontecimentos e não somenteetiquetá-los. Devem ser oferecidas informações e des-crições sobre aspectos físicos, formais e funcionais dosobjetos. Os acontecimentos sociais devem ser igual-mente identificados, tais como vozes, ações, e a pre-sença das pessoas.

O emprego de canções, rimas e contos pode serum recurso importante para manter um contato "a dis-tância" com a criança. O incremento da interação so-cial deve ser fomentado através da participação em jo-

gos com outras crianças. Quando a criança estiver maisdesenvolta, devem ser introduzidos jogos que impli-quem a troca de papéis, pois ajudam a utilizar umalinguagem próxima a uma conversação real. Os jogose troca de papéis desenvolvem as habilidades de res-peito de turnos, emprego adequado de pronomes pes-soais e pessoas verbais, e reduzem o emprego excessi-vo de imitações exatas.

Finalizando, deve-se salientar que a elaboraçãode um programa de intervenção deve partir de umacompreensão da criança em foco, e que as sugestõesacima devem ser encaradas como indicações básicas egenéricas.

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