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  • Abandonai qualquer esperana, vs que entrais

  • Prefcio

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    Essa a frase que Dante, na Divina Comdia, viu inscrita na Porta do Inferno. No inferno das prises no existem placas, mas o condenado sabe que vai comear seu padeci-mento. Quando as grades se fecham, abre-se um mundo de violncia, corrupo, superlotao, promiscuidade e descaso muito descaso por parte das autoridades pblicas, famlias e sociedade1.

    O antigo Coordenador Nacional da Pastoral Carcerria, Padre Fran-cisco Reardon (Padre Chico)2, costumava chamar as Casas de Deteno e Distritos Policiais de coraes do inferno.

    A Pastoral Carcerria e a denncia de tortura no sistema prisional es-to intimamente ligadas. No possvel visitar uma unidade prisional, ver o que ocorre no seu interior e ficar indiferente. Calar, ficar em silncio e com-pactuar com as irregularidades negar o prprio objetivo da Pastoral Carce-rria: evangelizar e ser a presena da Igreja de Jesus Cristo no crcere.

    Evangelizao o anncio da Boa Nova de Jesus Cristo e a denncia de tudo aquilo que reduz, que agride, que ofende a dignidade da pessoa humana,

    1 Palavras de Dom Luciano Mendes quando da Campanha da Fraternidade em 1997.

    2 Padre Francisco Reardon (Padre Chico) faleceu em 18 de novembro de 1999. Ele comparava a ao dos agentes da Pastoral Carcerria como um barco que segue con-tra a mar da opinio pblica, nas igrejas e na sociedade, tentando defender a vida, a dignidade e a integridade fsica e moral dos presos, porque, segundo ele, a nossa voz e a nossa luta o eco e vestgio dos marginalizados

    Abandonai qualquer esperana, vs que entrais

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    dos filhos e das filhas de Deus. Ser presena da Igreja que anuncia o Reino, e comunica o Esprito que a todos move plena libertao, lutar pelo fim de todas as prises, especialmente das cadeias nas quais o ser humano enjau-lado em condies muito inferiores ao que aceito aos animais irracionais, num tratamento de pura crueldade e reduo do humano a uma coisa (coi-sificao) coisa esta no dotada de dignidade, de honra, de alma e, ainda, estigmatizada e torturada.

    Tratam a gente como animais e esperam que saindo daqui a gente se comporte como seres humanos. Esta frase foi dita em uma priso brasileira diretamente ao Relator Especial das Naes Unidas sobre a Tortura, Sr. Nigel Rodley, em agosto de 2000. E continua sendo atual.

    Essa presena ativa e combativa da Pastoral Carcerria nos crceres faz com que tenhamos um longo histrico de relatrios de denncias de tor-turas e maus tratos no sistema prisional brasileiro. Claro que no somos os nicos a realizar este trabalho: existem rgos ou projetos pblicos espec-ficos e organizaes no governamentais que visitam as unidades prisionais com a finalidade de relatar, denunciar e cobrar dos rgos responsveis medi-das para diminuir os impactos degenerativos provocados em todas as pessoas privadas de sua liberdade. Entretanto, talvez sejamos um dos mais antigos grupos a realizar esse trabalho.

    Nossa luta abrange garantir a integridade do corpo, esprito e mente dessas pessoas. E num sistema prisional, que foi criado para conter e pu-nir em lugares oficiais e institucionais de aplicao de flagelos e cruelda-des, este no um trabalho simples. Nossos agentes esto focados em olhar as pessoas como um todo, entender seu sofrimento, registrar a crueldade perpetrada pelo Estado e tomar todas as medidas cabveis frente aos rgos competentes para denunciar esse horror. Desta forma, estamos em linha com os ensinamentos e exemplo de Jesus Cristo, bem como misso colo-cada a ns pela Igreja.

  • Prefcio

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    No Conclio Vaticano II, toda a Igreja chamada a estar atenta, prote-ger e defender as pessoas submetidas a maus tratos e a qualquer tipo de tortu-ra, nos seguintes termos:

    Tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilaes, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as prprias conscincias; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana. Todas estas coisas e outras se-melhantes so infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilizao humana, desonram mais aqueles que assim pro-cedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gra-vemente a honra devida ao Criador. (Constituio pastoral sobre a Igreja no mundo atual, GS 27).

    Isto porque (...) cada um deve considerar o prximo, sem exceo, como um outro eu, tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessrios para lev-la dignamente (...) (GS 27).

    Fazendo uma retrospectiva desse trabalho, o histrico dos relatrios de denncias e maus tratos antecedem aos da Pastoral Carcerria. O primei-ro de que tenho conhecimento foi realizado por uma comisso de visitas s prises no ano de 1831 em uma cadeia no Estado de So Paulo. muito triste constatar que muitas das coisas ali relatadas se repetem nos presdios do Bra-sil atualmente:

    (...) imunda, pestilenta, com ar infectado, estreita, no tem as necessrias divises: em uma mesma sala esto envolvidos o ladro, o assassino, os correcionais e outros de menores cri-mes. (...) Na Cadeia de So Paulo, os presos so tratados com a ltima desumanidade, seu alimento quase nenhum, e dado no longo espao de 24 horas; enfim, a fome, a nudez, a falta de asseio, o ar empestado pelo carbnico e fumo, so os contnuos

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    tormentos daqueles desgraados; e o que lucrar a Sociedade com um Crcere to horroroso e to irregular? A familiariza-o com o crime, o dio s Leis, e imoralidades incalculveis; portanto, se os presos j perderam os direitos da humanidade, conserve-se este Crcere que bem mostra a tirania dos tem-pos em que foi feito; porm, se os presos ainda no perderam a compaixo, se a Sociedade deve melhorar a sorte dos des-graados, e no faze-los muito infelizes: enfim, se a Sociedade deve punir os delitos e tomar as medidas necessrias para os prevenir, de absoluta necessidade a pronta e indefectvel re-forma de to horrorosa priso3.

    O primeiro documento da Pastoral Carcerria no Brasil o Estudo da CNBB, N4, publicado no ano de 1974 e resultado do Primeiro Encontro Nacional de Agentes da Pastoral Carcerria, realizado no Rio de Janeiro, de 07 a 09 de agosto de 1973. Este o primeiro relato oficial da Igreja no Brasil relativo ao sistema prisional e Pastoral Carcerria. Nesta publicao, en-contramos o primeiro relatrio que trata de torturas e maus tratos no sistema carcerrio brasileiro e j no embrio a Pastoral Carcerria e a proposta do fim das prises:

    (...)H prises onde os presos so deixados no mofo, duran-te meses, nas condies em que se encontravam no ato da pri-so: comendo mal, sem cama e, s vezes, sem a roupa do corpo. Vezes h em que o detido no tem qualquer possibilidade de comunicar-se com a famlia a qual, por sua vez, no consegue localizar o preso, pois lhe negado qualquer informao neste sentido. Isto ocorre principalmente com aqueles que so sub-

    3 SALLA, Fernando.As prises em So Paulo: 1822-1940. So Paulo: Annablume/Fapesp, 1999, pag. 50.

  • Prefcio

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    metidos tortura, fato comum em no poucos crceres e que levaram inclusive, as mortes que passaram por suicdio4.

    Outro relato sobre tortura, publicado por este mesmo documento da CNBB, refere-se s torturas, aos maus tratos e violncia sexual com as mu-lheres presas:

    de uma priso de mulheres, onde a vigilncia exercida pela polcia militar, foram feitas denncias de graves arbitrarie-dades: espancamentos, maus tratos e at violncias sexuais.5

    Perante este relato, em um relatrio do Ministrio da Justia em 1972, que teve como objetivo fazer um levantamento da realidade carcerria do Pas, j constatando que era calamitosa, um Juiz de So Paulo ergue-se pelo fim das prises (seu nome, infelizmente, omitido talvez por segurana, j que neste perodo vivia-se a ditadura no Brasil):

    Certas prises prestariam mais servio sociedade se no existissem.6

    Ao longo dos ltimos anos, de 1990 at os dias de hoje, a Coordenao Nacional da Pastoral Carcerria, de modo sistemtico, tem feito denncias das torturas e dos maus tratos perpetrados nos sistemas prisionais aos rgos competentes do Poder Judicirio da Unio, dos Estados, Ministrio Pblico Estadual, Defensoria Pblica do Estado, CNPCP, DEPEN, CNJ, STF.

    Quando os referidos rgos nacionais no conseguem intervir, dimi-

    4 CNBB. Pastoral Carcerria. Estudo da CNBB, N 4. So Paulo: Edies Pauli-nas, 1977, pag. 14.

    5 CNBB. Pastoral Carcerria. Estudo da CNBB, N 4. So Paulo: Edies Pauli-nas, . 1977, pag. 14.

    6 CNBB. Pastoral Carcerria. Estudo da CNBB, N 4. So Paulo: Edies Pauli-nas, 1977, pag. 15.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    nuir ou reverter a situao de violncia nas unidades prisionais, recorremos s organizaes e instncias internacionais, como a Anistia Internacional, a ONU, a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    Dentre os relatrios de grande repercusso em nvel nacional e inter-nacional, gostaria aqui de destacar os que foram realizados respectivamente pelo Padre Francisco Reardon (Padre Chico) e Jose de Jesus Filho:

    Relatrio sobre o MASSACRE NA CASA DE DETEN-O DO CARANDIRU, de 2 outubro de 1992. Este rela-trio atualmente serve de base para todas as pesquisas em relao ao massacre na Casa de Deteno do Carandiru, alm de ser um dos documentos mais relevantes das de-nncias das violaes ocorridas neste fatdico episdio.

    Relatrio sobre Tortura: UMA EXPERINCIA DE MONITORAMENTO DOS LOCAIS DE DETENO PARA PREVENO DA TORTURA, de 2010, publica-do pela Ed. Paulus. Pela edio desse relatrio, a Pastoral Carcerria recebeu o 16 Prmio de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Rep-blica (SDH/PR), em reconhecimento por seu trabalho de combate tortura nas prises.

    Nessa oportunidade, apresentado um novo relatrio que apresen-ta e problematiza 105 casos de torturas e maus tratos, acompanhados pela Pastoral Carcerria, desde a realizao das denncias, passando pelo pro-cesso de apurao, at o seu encerramento. Trata-se, portanto, de um im-portante retrato de como o sistema de justia lida com essas ocorrncias nos presdios do Brasil.

    Por fim, gostaria de recordar a recente visita do Papa Francisco ao campo de concentrao de Auschwitz, em 29 de julho de 2016, em Cracvia, na Polnia, onde num passado recente (na Segunda Guerra Mundial) houve o

  • Prefcio

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    extermnio de mais de um milho de pessoas. O Papa, em silncio, percorreu a unidade e somente deixou escrito: Senhor, perdoe tanta crueldade.

    Ns, agentes da Pastoral Carcerria, que adentramos diariamente nos presdios e cadeias do Brasil, lembramos sempre a frase do nosso gran-de Pe. Chico, que questionava: possvel morrer-se em Auschwitz, depois de Auschwitz?

    Infelizmente, h sempre a mesma resposta: sim! Os nossos presdios so extenses do que aconteceu nos campos de concentrao. As torturas e os maus tratos so as prticas corriqueiras das casas de punio e castigos, que chamamos de presdios. Enquanto houver presdios, cadeias, campos de torturas e de maus tratos, Auschwitz continuar sendo uma triste realidade.

    Pe. Valdir Joo SilveiraCoordenador Nacional da Pastoral Carcerria CNBB

  • Introduo

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    O presente relatrio fruto de um esforo coletivo de v-rios membros e apoiadores da Pastoral Carcerria, com apoio da Oak Foundation e do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Nele apresentamos os resultados de dois anos de intenso trabalho e reflexo acerca da preveno e do combate tortura, que envolveu o acompanhamento e a anlise de 105 casos denunciados, que com-puseram um banco de dados, atividades de formao em diversos Estados e visitas a dezenas de unidades prisionais em todas as regies do Pas.

    Para alm de uma atualizao do antigo relatrio da Pastoral Carce-rria sobre a tortura, publicado em 2010, buscou-se uma reestruturao de conceitos e prticas, com base na hiptese de que as inovaes institucionais e legais realizadas nos ltimos anos, e defendidas pela Pastoral Carcerria, al-teraram, mas no contriburam para a erradicao da tortura no sistema car-cerrio. Tambm optamos por analisar detidamente o papel das instituies do sistema de justia neste contexto, especialmente observando criticamente as aes do Judicirio, do Ministrio Pblico e da Defensoria Pblica.

    Alm disso, a tortura foi tratada no curso do projeto como um elemen-to estrutural da gesto prisional brasileira, e no como um resultado de ms prticas ou da perverso de determinados indivduos, estando estreitamente vinculada com o processo massivo de encarceramento em curso, arquitetado

  • introduo

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    para vitimar jovens, negros, pobres e os habitantes de todas as periferias ur-banas e existenciais do Pas, onde h sofrimento, solido e degrado humano, como j recordou diversas vezes o Papa Francisco.

    Sobretudo, buscou-se que o presente relatrio fosse um material de debate e fortalecimento da ao dos agentes da Pastoral Carcerria, que dia-riamente se defrontam em todo Pas com situaes desumanas de violncia e violaes de direitos. especialmente para este pblico e com este propsi-to que o presente documento foi pensado, ainda que os achados e concluses aqui expostos possam contribuir para outras reas de atuao e produo de conhecimento.

    No captulo 1, buscou-se elaborar a perspectiva de tortura utilizada no curso dos trabalhos, e que foi construda aps o seminrio nacional sobre o tema, realizado pela Pastoral Carcerria em junho de 2015.

    No captulo seguinte, feito um breve resgate do contexto legal da atuao da Pastoral Carcerria, no que toca prestao da assistncia reli-giosa e humanitria nas prises, um levantamento dos principais obstculos dessa atividade, e, por fim, apresentado o resultado de uma pequena pesqui-sa sobre a tortura realizada com membros da organizao.

    No captulo 3, os protocolos de trabalho e a metodologia de estrutura-o do banco de dados acerca dos casos de tortura so apresentados, como forma de compartilhar e promover a experincia.

    Os captulos 4 e 5 se concentram na anlise dos dados obtidos, no que tange ao perfil dos casos denunciados, principais temas identificados, e na avaliao da atuao das instituies do sistema de justia, bem como das prticas adotadas de investigao e documentao.

    Por fim, o captulo 6 traz os resultados de uma experincia de moni-toramento realizada em 19 unidades prisionais no Estado de So Paulo, que abrigam presos provisrios, com objetivo de lanar luz sobre as condies de aprisionamento e violncias especficas sofridas por esta populao.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    Apesar do amplo universo de temas e preocupaes abordadas, diver-sos assuntos relacionados no puderam ser devidamente tratados em razo de limitaes prprias de tempo e espao, mas certamente sero objeto de ou-tras aes e publicaes futuras.

    Nas pginas a seguir, no h qualquer pretenso de apresentar verda-des cientficas ou concluses acima de qualquer questionamento, mas, sim, de introduzir os resultados de uma pesquisa e de uma vivncia especfica de enfrentamento tortura, com mritos e limitaes, que embasam e reafir-mam a luta da Pastoral Carcerria pela construo de um mundo sem crce-res e de justia social.

  • introduo

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  • 1. Uma nova abordagem sobre a tortura

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    A priso em si uma tortura, uma forma de castigo cor-poral que inflige grave sofrimento pelo sequestro do tempo e da liberdade, pela desestruturao dos vncu-los do preso com a realidade, pelo controle e mitigao dos prazeres e pela marcao social, fsica e psquica dos apenados. Porm, h situaes em que mesmo o sofrimento legal permitido em relao ao apri-sionamento, que encontra suas limitaes nas leis e tratados internacionais, extrapolado e levado ao extremo.

    Em artigo publicado no jornal Libration, em 7 de dezembro de 1974, intitulado A morte lenta de Andreas Baader7, Jean-Paul Sartre descreve brevemente a visita que fez ao preso referido no ttulo, tido poca como ter-rorista por alguns e preso poltico por outros, e caracteriza suas condies de aprisionamento como uma tortura sem torturador, onde pessoas em outros cmodos apenas pressionavam determinadas alavancas e acionavam cer-tos mecanismos, matando Andreas pouco a pouco, por meio de elaboradas tcnicas aparentemente triviais de isolamento e privao de sentidos.

    No Brasil, a tortura tipicamente identificada como um procedimento sdico e individualizado, que se realiza com tcnicas cruis de afogamento,

    7 Original: http://etoilerouge.chez-alice.fr/docrevinter/allemagne1.html Traduo para o ingls: https://www.marxists.org/reference/archive/sartre/1974/

    baader.htm

    http://etoilerouge.chez-alice.fr/docrevinter/allemagne1.htmlhttps://www.marxists.org/reference/archive/sartre/1974/baader.htmhttps://www.marxists.org/reference/archive/sartre/1974/baader.htm

  • 1. Uma nova abordagem sobre a tortura

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    eletrochoque, espancamento, pau-de-arara, e outras tantas formas abjetas de inflio de dor. Mas h tambm outras maneiras de se torturar indivduos, e at populaes inteiras, ainda que a figura do torturador no se faa to clara, nem sua inteno seja to evidente, como apontou Sartre em seu artigo.

    Ainda que as referidas tcnicas de terror estatal, to difundidas no imaginrio popular, continuem plenamente em uso no Brasil, no sistema car-cerrio a tortura tambm se opera por meio da ausncia de servios bsicos, da hiperlotao das celas, da alimentao deficiente, da insalubridade do am-biente prisional, pelos bondes loucos, regimes de isolamento, surtos virti-cos e bacteriolgicos, ameaas e violncias cotidianas, pelos procedimentos disciplinares humilhantes, revistas vexatrias, partos com algemas e tantas outras situaes.

    Nas masmorras brasileiras, a tortura tambm passou a ser um con-junto de procedimentos, continuada e difusa, como descreveu o socilogo e agente da Pastoral Carcerria Rafael Godoy8, e que se constitui como instru-mento essencial de gesto e manuteno da ordem de um sistema baseado na violao de direitos, e que no pode prescindir da violncia para efetivamente cumprir seu papel de controle de determinados grupos e classes sociais.

    Por sinal, no existe uma definio nica de tortura incorporada ao sistema jurdico brasileiro. Alm das Convenes Contra a Tortura e Ou-tros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes, da ONU e da OEA, promulgadas respectivamente pelos Decretos n. 40/1991 e Decre-to n. 98.386/89, a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, define os tipos penais relacionados com a tortura, sendo que as trs definies possuem caracte-rsticas prprias, alm de distintas formas de controle, mas que no cabe aqui esmiuar.

    Importa destacar que mesmo dentro das estreitas conceituaes legais atuais, notadamente em relao s citadas convenes, condies degradan-

    8 http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2029

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    tes de aprisionamento podem e devem ser entendidas como tortura, na me-dida em que provocam sofrimento intencional agudo, realizado pela ao ou omisso de agentes pblicos, com um propsito pressuposto de punio ou medida preventiva, e margem de qualquer legalidade.

    evidente que os agentes que pressionam as alavancas dessa mquina de tortura no so apenas aqueles servidores que atuam diretamente nos pre-sdios, mas tambm os gestores, dirigentes polticos e membros do sistema de justia, que dos seus gabinetes viabilizam, por ao ou omisso, o funciona-mento desta engrenagem de dor e sofrimento.

    A percepo dessa tortura estrutural e estruturante para o sistema pri-sional impe o abandono de conceitos anacrnicos e limitados, como a defi-nio da tortura como um crime de oportunidade, e a reviso das suas estra-tgias de enfrentamento, atualmente estagnadas no binmio criminalizao/criao de mecanismo de monitoramento.

    nesse sentido que o direito penal se converte no mais inadequado dos instrumentos para lidar com a tortura, uma vez que pressupe a individuali-zao precisa da conduta e a identificao de vnculos subjetivos com o crime praticado, que simplesmente no podem ser encontrados em todos os casos. Alm disso, a responsabilizao penal afirma uma culpa individual absolu-tamente falsa, baseada no etiquetamento e na punio do criminoso, e que oculta funes estruturais e os beneficirios reais da tortura.

    Ainda que no atual contexto no seja possvel descartar a responsabi-lizao criminal de agentes envolvidos diretamente com esta prtica abjeta, fetichizar esta via jurdica como soluo, ou propagandear que a falta de punio que promove a tortura apenas refora as iluses do controle penal e da hipercriminalizao dos conflitos sociais, que acabam sempre vitiman-do os extratos mais vulnerveis e marginalizados da sociedade. No limite, o Estado quem deve ser sempre responsabilizado, por todas as vias polticas e jurdicas possveis.

  • 1. Uma nova abordagem sobre a tortura

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    Por sinal, no agenciamento poltico dos inmeros tipos penais pos-sveis para enquadrar atos de violncia estatal alm do crime de tortura em suas variadas formas (Lei n. 9.455/97), como o crime de maus tratos (art. 136 do Cdigo Penal), a leso corporal (art. 129 do CP), a omisso de socorro (art. 135 do CP), a prevaricao (art. 319 do CP), e o abuso de autoridade (Lei n. 4.898/65), entre outros, que muitos casos terminam prescritos ou no inves-tigados adequadamente.

    tambm no debate artificial e abstrato da diferena entre tortura e outros tratamentos cruis ou degradantes que subjaz o perigo de sua manipu-lao para fins de rebaixamento do sofrimento de pessoas ou grupos, ou redu-o da reprovabilidade de determinadas condutas. Apenas concretamente, e aps detida anlise das circunstncias do fato e das caractersticas da vtima, que se pode falar se que possvel em alguma forma de diferenciao.

    Nesse sentido, um estudo norte-americano recente, realizado com vti-mas de tortura fsica e outras prticas tipicamente identificadas com formas de tratamento cruel ou degradante (manipulaes psicolgicas, humilhaes, exposio a condies desumanas de aprisionamento etc), constatou que no h diferena substancial no que tange aos danos psicolgicos de longo prazo, e questiona se a diferena entre essas prticas real ou aparente9.

    No curso deste projeto, buscou-se registrar, encaminhar e organizar os casos numa dupla perspectiva de tortura: tpica e estrutural. A primeira sen-do aquelas situaes tpicas de violncia, fsica ou psicolgica, infligidas por determinados agentes contra determinados sujeitos, e que poderiam even-tualmente ser enquadradas nos termos da Lei n. 9.455/97, e a segunda sendo aquelas formas efetivamente difusas de tortura, com mltiplos responsveis, vtimas nem sempre determinadas, e que muitas vezes articulam diversas privaes de direitos, aes e omisses do Estado.

    9 Baolu M, Livanou M, Crnobari C. Torture vs Other Cruel, Inhuman, and De-grading Treatment: Is the Distinction Real or Apparent?. Arch Gen Psychia-try.2007;64(3):277-285. doi:10.1001/archpsyc.64.3.277

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    No se trata de uma separao rgida, mas apenas de uma forma de orga-nizao dos casos trabalhados no curso do projeto, sendo importante ressaltar que diversas denncias realizadas traziam ambos os elementos de caracteriza-o. Numericamente, dos 105 casos registrados, 73% possuam elementos do que chamamos de tortura tpica, e 45 (42%) de tortura estrutural.

    Para alm do necessrio aprofundamento deste debate, importan-te sublinhar que a tortura no um conceito esttico no tempo; um termo em disputa, cujo significado historicamente construdo. Por essa razo, di-versas prticas punitivas consideradas legtimas e aceitveis no passado so hoje entendidas como formas brbaras e reprovveis de tortura.

    Assim, mais do que nunca se faz necessrio alargar o significado jur-dico e poltico do termo, afirmando sem sombra de dvidas que a forma como o Estado brasileiro processa e aprisiona seres humanos em seus pores sim uma prtica estrutural e sistemtica de tortura, ainda que operada por tortu-radores nem sempre bvios.

  • 1. Uma nova abordagem sobre a tortura

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  • 2. A Pastoral Carcerria

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    Mesmo sem ser um mecanismo formal de monitora-mento e fiscalizao do sistema carcerrio brasileiro, a Pastoral Carcerria historicamente foi capaz de pro-ver uma viso reconhecidamente nica desta comple-xa e degradante realidade, que se distingue consideravelmente das abordagens puramente acadmicas, administrativas ou jurdicas sobre o tema.

    Tal fato se d no apenas pela seriedade e capilaridade nacional do trabalho realizado pelo conjunto da organizao, mas tambm pela presen-a constante no crcere, o que possibilita a construo de vnculos reais de solidariedade com os presos e seus familiares, bem como uma interlocuo rotineira com agentes penitencirios, dirigentes polticos, e as autoridades do sistema de justia.

    Essa presena se viabiliza em razo do exerccio da assistncia reli-giosa e humanitria aos encarcerados, que, longe de ser uma atividade mera-mente voluntria ou cuja realizao se encontra no campo da discricionarie-dade da administrao penitenciria, uma obrigao do Estado e um direito do preso que se concretiza pela ao dos representantes de igrejas e grupos religiosos.

    Nesse sentido, para melhor compreenso do trabalho da Pastoral Car-cerria, abordamos a seguir alguns aspectos sobre os marcos legais desse ser-vio, seus obstculos e, principalmente, a opinio dos agentes da organizao acerca da preveno e do combate tortura.

  • 2. A Pastoral Carcerria

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    2.1. Marco legal da atuao da Pastoral Carcerria

    A assistncia religiosa pessoa presa direito constitucionalmente garantido10, que no pode ser alterado ou revogado (clusula ptrea), e se vin-cula prpria inviolabilidade de culto e crena, tambm prevista na Consti-tuio Federal e na Declarao Universal dos Direitos Humanos11.

    As Regras Mnimas para Tratamento de Pessoas Presas, da Organi-zao das Naes Unidas, tambm conhecidas como Regras de Mandela, garantem aos representantes religiosos a manuteno de servios regulares, bem como a realizao de visitas pastorais privadas aos presos de sua religio, sendo que nenhum preso pode ser privado de tal ateno12.

    Alm disso, a assistncia religiosa direito do preso previsto na Lei de Execuo Penal (LEP), em seu art. 41, inciso VII, e no comporta qualquer tipo de cerceamento ou restrio, nem mesmo em relao aos presos cum-prindo isolamento disciplinar, preventivo ou regime disciplinar diferenciado (RDD), assim como a assistncia material, jurdica e de sade, que no pode ser negada em hiptese alguma, tanto que a Resoluo n. 08/2011, do Con-selho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, veda expressamente a instrumentalizao da assistncia religiosa para fins de disciplina.13.

    10 Art. 5, VII - assegurada, nos termos da lei, a prestao de assistncia religiosa nas entidades civis e militares de internao coletiva.

    11 Artigo 18 - Toda a pessoa tem direito liberdade de pensamento, de conscincia e de religio; este direito implica a liberdade de mudar de religio ou de convico, assim como a liberdade de manifestar a religio ou convico, sozinho ou em comum, tanto em pblico como em privado, pelo ensino, pela prtica, pelo culto e pelos ritos.

    12 Rule 65 - 2. A qualified representative appointed or approved under paragraph 1 of this rule shall be allowed to hold regular services and to pay pastoral visits in private to prisoners of his or her religion at proper times. - 3. Access to a qualified represen-tative of any religion shall not be refused to any prisoner. On the other hand, if any prisoner should object to a visit of any religious representative, his or her attitude shall be fully respected. (sem traduo oficial).

    13 Art. 1 III - a assistncia religiosa no ser instrumentalizada para fins de disciplina, correcionais ou para estabelecer qualquer tipo de regalia, benefcio ou privilgio, e ser garantida mesmo pessoa presa submetida a sano disciplinar.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    A Lei n. 9.982, de 14 de julho de 2000, tambm assegura o acesso dos religiosos de todos os credos aos estabelecimentos prisionais civis ou milita-res, e o Decreto Presidencial n. 7.107/2010, que promulgou o Acordo entre o Governo da Repblica Federativa do Brasil e a Santa S, relativo ao Estatuto Jurdico da Igreja Catlica no Brasil, tambm versa sobre a questo:

    Artigo 8 - A Igreja Catlica, em vista do bem comum da so-ciedade brasileira, especialmente dos cidados mais neces-sitados, compromete-se, observadas as exigncias da lei, a dar assistncia espiritual aos fiis internados em estabeleci-mentos de sade, de assistncia social, de educao ou simi-lar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, ob-servadas as normas de cada estabelecimento, e que, por essa razo, estejam impedidos de exercer em condies normais a prtica religiosa e a requeiram. A Repblica Federativa do Brasil garante Igreja Catlica o direito de exercer este ser-vio, inerente sua prpria misso.

    O Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria (CNPCP), incumbido legalmente de propor diretrizes para a poltica criminal e execu-o das penas14, produziu regulamentao exaustiva sobre o tema, na j citada Resoluo n. 08/2011, e que deve servir de baliza e parmetro mnimo para a realizao da assistncia religiosa em todos os estados da federao.

    Entre os principais dispositivos desta norma, destacamos algumas disposies essenciais, que se constituem como verdadeiras prerrogativas de atuao, e que tambm auxiliam nas aes de preveno e combate tortura:

    14 Art. 64. Ao Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, no exerccio de suas atividades, em mbito federal ou estadual, incumbe:

    I - propor diretrizes da poltica criminal quanto preveno do delito, administrao da Justia Criminal e execuo das penas e das medidas de segurana;

  • 2. A Pastoral Carcerria

    39

    1 Garantia de acesso dos representantes religiosos a todos os espaos de permanncia das pessoas presas, inclusive enfermarias, celas disciplinares, de seguro e de trnsito;15

    2 Previso de comunicao antecipada e por escrito no caso de suspenso da entrada na unidade prisional;16

    3 Garantia de entrevista pessoal privada e sigilosa com o preso.17

    2.2. Obstculos para a realizao da assistncia religiosaApesar da sua ampla regulamentao e garantias de realizao, no

    incomum que a assistncia religiosa seja ilegalmente cerceada, sob os mais variados argumentos, ou que sejam impostas barreiras burocrticas para difi-cultar o seu exerccio. Esses problemas, alm de inviabilizarem a prtica reli-giosa em diversos aspectos, impactam diretamente na capacidade da Pastoral Carcerria de exercer um monitoramento efetivo da realidade prisional.

    Entre os principais problemas enfrentados pelos agentes da Pastoral Carcerria, elencamos alguns, que foram reiteradamente levantados du-rante as conversas e atividades de formao ocorridas no curso deste projeto:

    1 Suspenses injustificadas e sem prvio aviso das ativida-des de assistncia religiosa.

    2 Excesso de burocracia para o cadastramento de novos agentes e renovao de credenciamentos antigos, que por

    15 Art. 3 - Ser assegurado o ingresso dos representantes religiosos a todos os espaos de permanncia das pessoas presas do estabelecimento prisional.

    16 Art. 2 - 3 - A suspenso do ingresso de representantes religiosos por deciso da administrao penitenciria dever ser comunicada com antecedncia de 24 horas e s pode ocorrer por motivo justificado e registrada por escrito, dando-se cincia aos interessados.

    17 Art. 4 - A administrao prisional dever garantir meios para que se realize a en-trevista pessoal privada da pessoa presa com um representante religioso. Pargrafo nico. Ser garantido o sigilo do atendimento religioso pessoal.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    40

    vezes acabam tendo um custo considervel e demandan-do muito tempo;

    3 Proibio ou restrio de entrada em determinados es-paos da unidade prisional (seguros, celas disciplinares, celas de transito, etc);

    4 Restrio arbitrria de horrios e dias de visita, que mui-tas vezes impossibilitam que seja dada a devida ateno a todos os presos e espaos da unidade prisional;

    5 Limitao arbitrria do nmero de agentes de pastoral por visita, sem respeitar qualquer proporo em relao ao nmero de presos ou ao tamanho da unidade;

    6 Tratamento discriminatrio entre distintas igrejas e gru-pos religiosos;

    7 Impossibilidade de realizao de conversas reservadas com os presos;

    8 Imposio de cursos de formao aos agentes ministra-dos pela prpria Administrao Penitenciria, em des-respeito autonomia das igrejas para formar seus repre-sentantes.

    Os obstculos impostos assistncia religiosa, inclusive as restries ilegais ao trabalho dos agentes da Pastoral Carcerria, devem ser uma preo-cupao real no apenas do conjunto da Igreja Catlica, mas tambm do siste-ma de justia, e de todos os rgos responsveis pela fiscalizao da execuo penal, j que se trata de uma violao de direitos praticada tambm contra a populao carcerria, e no apenas contra os representantes das igrejas e grupos religiosos.

    Nesse sentido, possvel afirmar que tais problemas se tornam ainda mais graves em relao aos grupos religiosos minoritrios, ou com pouca es-trutura de trabalho, que notoriamente tm mais dificuldade para reagir con-tra arbitrariedades, ou mesmo acessar os espaos de privao de liberdade.

  • 2. A Pastoral Carcerria

    41

    Por se tratar de uma atividade exercida de forma voluntria, que mui-tas vezes s se viabiliza por um grande esforo de indivduos e comunidades, o Estado deve oferecer a necessria abertura e facilidades aos representantes religiosos, se guiando estritamente pelas leis e normas vigentes, e responden-do pelas eventuais arbitrariedades e prejuzos causados.

    Alm do desafio de mapear de forma mais precisa tais violaes, e en-frentar essas ocorrncias de forma estratgica, preciso tambm continuar empoderando os agentes da Pastoral Carcerria quanto aos seus direitos, de-veres, e os meios adequados para reportar e combater abusos.

    2.3. Pesquisa com agentes da Pastoral Carcerria sobre tortura

    A Pastoral Carcerria possui trs nveis distintos de coordenao (na-cional, estadual e diocesana), que se articulam de forma autnoma para orga-nizar e animar o trabalho dos agentes pastorais que visitam os crceres, bem como enfrentar os desafios do sistema prisional em suas regies de trabalho.

    Para possibilitar melhor compreenso da atuao da Pastoral Car-cerria no enfrentamento tortura, e orientar os trabalhos formativos e de articulao sobre o tema, foi realizada uma pesquisa com 26 coordenadores e lideranas de 22 Estados e Distrito Federal, que estiveram presentes no Seminrio sobre Tortura e Encarceramento em Massa, que ocorreu em So Paulo nos dias 13 e 14 de junho de 2015.

    Apesar do pequeno nmero de participantes no levantamento, tais in-formaes so representativas de um conjunto maior de experincias, que abrangem quase todos os Estados da Federao, e apesar de alguns questio-nrios terem sido levados aos Estados para preenchimento em grupo, bus-cou-se priorizar num primeiro momento a anlise das opinies e respostas de um grupo seleto de lideranas e multiplicadores de conhecimento, com algum conhecimento prvio sobre combate e preveno tortura.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    42

    Sem prejuzo, seria extremamente importante a estruturao de uma consulta mais ampla futuramente, tambm vinculada s atividades de forma-o e articulao com os grupos locais da Pastoral Carcerria.

    Entre os principais dados colhidos, destaca-se que 100% dos partici-pantes apontaram as visitas aos estabelecimentos prisionais como uma das principais formas de identificao de casos de tortura, e 17 dos 26 (65%) as-sinalaram que os familiares de pessoas presas tambm so fontes imprescin-dveis de informaes, o que apenas refora a necessidade de promoo das prerrogativas de atuao dos agentes pastorais, bem como o estreitamento das relaes com grupos e organizaes de familiares.

    Sobre o gnero das vtimas dos casos de tortura que denunciaram, 50% respondeu que apenas lidou com situaes envolvendo a populao masculi-na, 4% apenas com a populao feminina, e 46% afirmou que j lidou com ca-sos de ambos os gneros. certamente um resultado que espelha a realidade desigual do aprisionamento em relao aos gneros, mas que aponta para um crescente envolvimento dos agentes da Pastoral Carcerria com a realidade do encarceramento feminino.

    Questionados sobre quais autoridades so oficiadas ou notificadas pela Pastoral Carcerria local, houve uma distribuio razoavelmente uniforme entre Ministrio Pblico, Juiz e Defensoria Pblica (respectivamente 28%, 25% e 21%), mas de especial preocupao que 17% tenha dito que a situao encaminhada prpria direo do presdio, uma vez que tal procedimen-to pode colocar em risco a vida e integridade fsica da vtima, especialmente quando servidores do sistema penitencirio so os acusados.

    Alm disso, 11 dos 26 (42%), afirmou que no acompanha o caso aps a denncia, e apenas dois (7%) relataram j ter ocorrido, em sua experincia, al-guma forma de responsabilizao dos sujeitos envolvidos. um dado tambm importante, que demonstra a necessidade de contribuir mais para o engaja-mento dos agentes pastorais no acompanhamento dos casos, que de suma

  • 2. A Pastoral Carcerria

    43

    importncia para a segurana dos envolvidos e a efetividade das denncias. Sobre a atuao do sistema de justia na apurao dos casos, a insatisfa-

    o generalizada restou clara na pesquisa, ainda que a Defensoria Pblica se destaque como a instituio com o maior nvel de aprovao, ao mesmo tempo em que ostenta uma mdia de desconhecimento ligeiramente superior, fruto, sobretudo, de sua estruturao recente e ainda francamente deficitria.

    19%

    27%54%

    GrficoII-AvaliaodaatuaodoJudicirio

    Noconheo SaAsfatria InsaAsfatria

    27%

    15%58%

    GrficoI-AvaliaodaatuaodoMinistrioPblico

    Noconheo SaEsfatria InsaEsfatria

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    44

    Questionados se j haviam sofrido ameaa ou represlia, ou temiam sofrer, em razo da denncia de casos de tortura ou outras violaes de di-reitos, 50% responderam afirmativamente, o que um nmero consideravel-mente alto, uma vez que o questionrio foi aplicado entre lideranas e coor-denadores estaduais, cujo trabalho consideravelmente menos vulnervel do que o dos agentes de pastoral que atuam na ponta, em dioceses distantes ou com pouca visibilidade, e que consequentemente possuem menos estrutura e contatos para fazer frente a possveis ameaas e retaliaes.

    Por fim, tambm o medo de retaliaes que a prpria pessoa tortura-da ou seus familiares sentem foi apontado por 84% dos participantes como o principal obstculo para a realizao de denncias. um dado que confirma a situao de extrema vulnerabilidade das pessoas privadas de liberdade, que muitas vezes precisam conviver diariamente com seus agressores, e que re-sulta numa enorme subnotificao de casos de violaes graves de direitos no sistema prisional, que jamais so relatados s autoridades competentes.

    31%

    34%

    35%

    GrficoIII-AvaliaodaatuaodaDefensoriaPblica

    Noconheo SaDsfatria InsaDsfatria

  • 2. A Pastoral Carcerria

    45

    Os dados destacados espelham as preocupaes e vises de um grupo expressivo de agentes pastorais, e que apontam para algumas aes que de-vem permear os trabalhos da organizao, especialmente no campo da pre-veno e do combate tortura:

    a) Cuidado com os presos e familiares, especialmente aque-les que se dispem a realizar alguma denncia de viola-o de direitos;

    b) Cuidado com os agentes da Pastoral Carcerria, especial-mente aqueles que se encontram mais vulnerveis;

    c) Cuidado com as prerrogativas de atuao dos agentes que realizam a assistncia religiosa, para que ela possa ser realizada em toda sua abrangncia; e

    d) Cuidado com a formao sobre preveno e combate tortura, e com a construo de protocolos eficientes de documentao e acompanhamento dos casos.

  • 3. Construindo um mtodo de denncia e acompanhamento de casos

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    48

    Uma das primeiras preocupaes no incio deste projeto, que se conjuga com a necessidade de melhor compreen-so do fenmeno da tortura, e com as iniciativas de for-mao dos membros da Pastoral Carcerria, foi a cons-truo de um protocolo efetivo de atuao diante das inmeras denncias de tortura recebidas, que pudesse contribuir para a responsabilizao dos envol-vidos, ao mesmo tempo em que permitisse a coleta do maior nmero possvel de informaes, especialmente sobre como o sistema de justia recepciona e trata os casos.

    Foi necessrio realizar uma extensa pesquisa nos rgos do sistema de justia sobre as denncias anteriormente feitas pelos advogados da orga-nizao, especialmente da assessoria jurdica da Pastoral Carcerria de So Paulo, que se mostrou imprescindvel para a reconstituio histrica e elabo-rao de todo o trabalho no curso deste projeto.

    O resultado foi a consolidao gradual de um protocolo que, apesar de ainda demandar aperfeioamentos, mostrou-se adequado para atingir os ob-jetivos propostos no projeto, uma vez que em apenas 20% dos casos denuncia-dos nenhuma providncia foi adotada ou informada, sendo que no relatrio anterior da Pastoral Carcerria, de 2010, este nmero beirava 50%.

  • Construindo um mtodo de denncia e acompanhamento de casos

    49

    Apenas para que se tenha tambm outra base de comparao, a Ouvi-doria Nacional de Direitos Humanos, em seu Balano Anual de 2015, relatou que em apenas 5,9% dos casos encaminhados pelo rgo houve alguma res-posta da rede acionada18, composta por Ministrio Pblico, Conselho Tutelar, Delegacias de Polcia e Secretaria de Segurana Pblica, Conselhos de Direi-tos e Corregedorias.

    A equipe do projeto buscou no atuar na qualidade de advogados cons-titudos das vtimas , uma vez que tem sido um princpio bsico da Pastoral Carcerria Nacional no substituir o Estado em suas atribuies bsicas , mas cobrar e fiscalizar o trabalho dos rgos e instituies competentes.

    Ainda que a abordagem adotada seja mais prxima das prticas de vic-tims advocacy, o auxlio prestado s vtimas e aos denunciantes se resumiu facilitao das denncias, buscando os canais oficiais mais eficazes e adequa-dos, e as orientaes jurdicas sobre possibilidades e perspectivas de encami-nhamento do caso.

    A breve exposio deste protocolo de atuao, que se pretende realizar aqui, no um manual prtico, mas apenas uma exposio para a compreen-so do mtodo adotado no curso do trabalho, e uma forma de compartilha-mento das informaes e experincias, especialmente com os demais mem-bros da Pastoral Carcerria.

    O fluxo bsico do protocolo pode ser simplificado em quatro proces-sos, ainda que esta seja apenas uma formulao didtica, no uma sequn-cia perfeita de etapas, j que algumas se sobrepem e se intercruzam cons-tantemente:

    Comunicao do fato => Denncia => Acompanhamento => Interveno => Registro

    18 Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (2015). Balano Anual da Ouvidoria Na-cional de Direitos Humanos. Braslia: Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, disponvel em http://www.sdh.gov.br/noticias/2016/ja-neiro/CARTILHADIGITALBALANODODISQUE1002015.pdf

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    50

    3.1. DennciaNo h uma forma nica para a realizao de denncias em casos de tor-

    tura, ainda mais em se tratando de um trabalho com dimenso nacional, num pas caracterizado pelas imensas desigualdades e especificidades regionais. A escolha das autoridades oficiadas depende das consideraes sobre essas dife-renas, e do histrico conhecido de atuao das instituies em cada local.

    Nesse sentido, o preceito bsico adotado foi que os casos deveriam ser encaminhados apenas para instituies com plena independncia para apu-rar o ocorrido, e com prerrogativas de atuao para tanto, como a Defensoria Pblica, o Ministrio Pblico e o Judicirio. Ocasionalmente, o caso foi envia-do para outros rgos, como Ouvidorias e Conselhos de Direitos, ou mesmo para a Administrao Penitenciria, mas apenas em situaes muito espec-ficas, em que se constatou ser esse o encaminhamento mais eficaz, e que no colocava em risco a vida e integridade fsica das vtimas e denunciantes.

    No se trata de reforar o descrdito ou a desconfiana contra deter-minadas instituies ou grupos, mas de um princpio bsico que deve orien-tar qualquer apurao de prtica de tortura: no pode haver confuso entre a figura do investigado com a do investigador, em qualquer nvel que seja, con-forme recomendado em diversos manuais, inclusive no Protocolo de Istam-bul, que um manual internacional das Naes Unidas para a investigao e documentao eficaz de casos de tortura.

    As denncias foram sempre formalizadas, para que nenhuma autori-dade alegasse desconhecimento da situao, e para que fosse possvel cobrar e acompanhar o caso. Apesar de parecer uma regra bsica, no incomum que muitas situaes sejam tratadas de maneira informal ou apenas verbalmente pelos agentes da Pastoral Carcerria, especialmente quando se formam vn-culos de confiana com autoridades especficas.

    O contedo da denncia foi definido pelas informaes obtidas direta-mente com a vtima ou denunciante, e por outros dados relevantes que pude-

  • Construindo um mtodo de denncia e acompanhamento de casos

    51

    ram ser pesquisados. Mas estabelecemos que competia ao Estado brasileiro, inclusive s instituies do sistema de justia, diligenciar de forma imediata e efetiva para a apurao do caso, conforme compromisso assumido internacio-nalmente com a ratificao das Convenes da ONU e Interamericana contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes.

    Por fim, mostrou-se indispensvel desde o incio orientar as providn-cias das autoridades, solicitando a realizao de medidas especficas, como a oitiva da vtima e das testemunhas, realizao de exames periciais pertinen-tes, juntada de documentos relevantes, entre outras.

    Em resumo, a denncia:

    1 Foi dirigida para autoridade com independncia e com-petncia para apurao do caso;

    2 Foi formalizada, por meio fsico ou virtual;3 Continha as informaes possveis de serem colhidas

    pela Pastoral Carcerria, considerando o dever do Estado de investigar e obter as informaes necessrias para o processamento da denncia;

    4 Orientava o trabalho das instituies e autoridades noti-ficadas, com a solicitao de diligncias especficas.

    3.2. Acompanhamento e intervenoA experincia demonstrou que to indispensvel quanto fazer a de-

    nncia acompanhar de perto sua tramitao, especialmente para garantir a adoo das medidas necessrias, a proteo da vtima ou do denunciante, bem como coletar o mximo possvel de informaes sobre o seu processamento.

    Em diversos casos acompanhados no curso do projeto foi possvel no-tar que providncias mnimas s foram adotadas aps sucessivas cobranas, e em algumas situaes somente aps o envolvimento dos rgos correcio-nais da Defensoria Pblica, do Ministrio Pblico e do Judicirio, conforme ser tratado mais adiante.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    52

    A cobrana foi peridica e formal, e no curso dos trabalhos foram so-licitadas informaes acerca dos desdobramentos do caso a cada dois meses, levando-se em considerao o tempo necessrio para a realizao de dilign-cias e as possibilidades da equipe responsvel, sendo que, quando nenhuma in-formao era recebida aps sucessivas cobranas, a Corregedoria competente era acionada para apurar a possvel negligncia da autoridade notificada.

    Atuando como denunciante e, portanto, como terceiro diretamente interessado, a Pastoral Carcerria tem plena legitimidade no apenas para acionar as autoridades responsveis, mas tambm para cobrar informaes e, eventualmente, intervir questionando resultados ou recomendando provi-dncias diversas ou complementares.

    Em resumo, o acompanhamento e interveno compreende:

    1 Solicitao peridica de informaes;2 Anlise das informaes e formulao de questionamen-

    tos ou sugestes; 3 Envolvimento das Corregedorias quando no houver in-

    formao de providncias adotadas.

    3.3. Coleta de dadosA coleta de dados sobre os casos de uma forma sistemtica de es-

    pecial importncia para a construo de uma memria institucional, para a elaborao de anlises mais amplas, e para a troca de informaes entre os diversos sujeitos que atuam na preveno e combate tortura.

    na articulao das informaes presentes nos casos individuais, para identificar os problemas coletivos e estruturais, que a coleta desses dados en-contra seu significado mais potente.

    O possvel prejuzo com a perda de informaes e a descontinuidade no acompanhamento das denncias tambm reforaram a necessidade de ela-borao de um banco de dados que pudesse ser coletivizado com os demais

  • Construindo um mtodo de denncia e acompanhamento de casos

    53

    membros da organizao, e que no fosse apenas um instrumento pontual de pesquisa, mas tambm uma ferramenta de trabalho e um repositrio seguro de informaes.

    Nesse sentido, primeiro foi elaborada uma planilha bsica de registro e acompanhamento de casos, constantemente alimentada, e estabelecidas regras para o armazenamento uniforme e virtual dos documentos. Posterior-mente, foi empregado um software gratuito de gesto de projetos19, que, alm de banco de dados, serviu para organizar os prazos e atividades da equipe.

    Obviamente que no h uma forma nica de sistematizao de casos. No se trata aqui de ensinar como faz-lo, uma vez que cada organizao e grupo de Pastoral Carcerria atua com distintas realidades e possibilidades, mas apenas de ressaltar a importncia do registro contnuo e sistemtico, ainda que de forma simples, para que essas experincias possam beneficiar um conjunto maior de pessoas, e auxiliar no combate efetivo tortura.

    19 https://podio.com/site/pt

  • 4. Anlise dos casos denunciados

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    56

    Os 105 casos analisados e apresentados no presente relat-rio foram colhidos e organizados no curso dos dois anos deste projeto, e so ilustrativos da experincia da Pasto-ral Carcerria Nacional no perodo, no que tange pre-veno e o combate tortura, e indicam questionamentos e possibilidades de respostas que merecem ateno.

    Primeiramente, importante ressaltar que nem de longe esses 105 ca-sos so estatisticamente representativos da prevalncia de casos de tortura que ocorreram no perodo; sequer so estatisticamente representativos da quantidade de casos tratados pelo conjunto da Pastoral Carcerria, que na maioria das vezes lida com a situao em nvel estadual ou local.

    A caracterstica em comum dos casos que todos tratam de violaes de direitos contra pessoas presas (mesmo que no momento da priso) e fami-liares de pessoas presas, que possivelmente poderiam ser enquadradas como tortura tpica ou estrutural, ou outras formas de tratamento cruel ou degra-dante, dependendo da perspectiva adotada.

    Todos os casos foram denunciados pela prpria Pastoral Carcerria, ou em algum momento a Pastoral foi chamada pelos envolvidos para auxiliar ou intervir. Logo, no foram registrados ou acompanhados casos denuncia-dos pela imprensa ou outras organizaes, uma vez que a inteno foi justa-mente estudar o universo de denncias que chegam Pastoral, e as respostas do sistema de justia.

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    57

    Dois tipos de casos foram registrados no banco de dados para fins pes-quisa: o primeiro tipo so os que chamamos de casos novos, que renem 72 denncias de tortura realizadas no curso do projeto, entre 01/07/2014 e 08/07/2016, e o segundo tipo, que chamamos de antigos, so 33 casos pes-quisados apenas na cidade de So Paulo, denunciados pela Pastoral entre 13/12/2005 e 24/01/2013, e que foram localizados aps extensa pesquisa no Frum Central Criminal da Capital.

    Optou-se por fazer a pesquisa de casos antigos em funo da perda e de-sorganizao da maior parte dos registros que conformaram o relatrio passa-do da Pastoral Carcerria sobre tortura, de 2010, e para que fosse incorporada anlise atual uma perspectiva mais abrangente historicamente. Para a realiza-o dessa atividade, a Pastoral contou com o apoio de estudantes e docentes da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.20.

    Os resultados e as anlises de ambos os tipos de caso so apresentados conjuntamente no presente relatrio, uma vez que os achados so bastante si-milares, especialmente em relao atuao do sistema de justia. Vale ressal-tar, porm, que, quando necessrio, as diferenas sero devidamente indicadas.

    Por fim, importante destacar que em 39 casos (37% do total) ainda h procedimentos e apuraes pendentes de concluso, que sero devidamente acompanhados, e que nesses casos as anlises foram feitas com base nas in-formaes e documentos fornecidos at o dia 10/08/2016.

    4.1. Meios de recebimento da dennciaA maioria dos casos foi recebida pela equipe do projeto por meio eletr-

    nico (e-mail institucional, formulrio eletrnico no site e redes sociais), com destaque tambm para o atendimento pessoal de presos e familiares realiza-do em visitas s unidades prisionais ou na sede da Pastoral Carcerria, que permaneceu como uma importantssima porta de entrada de denncias.

    20 Esta fase do projeto contou com apoio e financiamento do Fundo Mackenzie de Pes-quisa (Mackpesquisa).

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    58

    Considerando apenas os 72 casos novos, a importncia dos meios vir-tuais torna-se ainda mais marcante, representando 63% do total, o que prova-velmente reflete a crescente popularizao desses instrumentos de comuni-cao, e o esforo da Pastoral Carcerria Nacional para estruturar essas portas de entrada:

    O formulrio eletrnico disponibilizado no site da instituio para a realizao de denncias de tortura, elaborado no curso do projeto, apesar do formato bastante rudimentar e ainda pouco intuitivo, se mostrou uma fer-ramenta bastante til colocada disposio dos membros da Pastoral Car-cerria e do pblico em geral. Um dos objetivos da Pastoral aprimorar esse sistema online de denncia, que pode se tornar um importante canal de co-municao de violaes contra presos no crcere.

    provvel que esses meios virtuais de realizao de denncias ga-nhem ainda mais importncia com o passar do tempo, pela j citada popula-rizao dessas ferramentas, mas tambm em razo da possibilidade de maior resguardo da identidade do denunciante, uma vez que mesmo nas visitas aos

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    5

    10

    15

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    Redessociais Carta Telefone Formulriovirtual

    Email Atendimentopessoal

    GrficoIV-Meioderecebimentodasdenncias

    CasosanFgos Casosnovos

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    59

    presdios realizadas por agentes da Pastoral Carcerria, no raro que elas ocorram sob estrita vigilncia.

    4.2. Distribuio geogrfica de casosOs 105 casos se distribuem em 16 Estados mais o Distrito Federal, e 47

    municpios. Apesar disso, h uma concentrao bastante elevada de denn-cias em So Paulo, o que se justifica pela grande populao carcerria do Es-tado, pelo trabalho da equipe concentrado na cidade de So Paulo, e pela bus-ca ativa de casos antigos denunciados pela Pastoral Carcerria na capital.

    Excludos os casos antigos e considerando apenas aqueles denuncia-dos no curso do projeto, o quadro se torna melhor distribudo, com uma ligeira maioria de casos (52%) denunciados fora do Estado de So Paulo.

    Gois, Mato Grosso do Sul e Esprito Santo se destacam pelo contraste do alto nmero de denncias em relao sua populao prisional, relativa-mente pequena comparada com outros Estados, porm no possvel concluir de imediato que haja maior incidncia de tortura nestes sistemas, uma vez que mltiplos fatores podem ter influenciado na construo desses nmeros.

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    SP MG GO MS ES PR SC RJ PB MT RS RN DF BA AP AL AC

    GrficoV-Distribuiogeogrficadoscasosnovos

    Casos

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    60

    Equipes locais bem articuladas e atuantes da Pastoral Carcerria po-dem ter contribudo com um maior nmero de denncias. J em locais de dif-cil acesso, ou nos quais a comunicao por meio telefnico e virtual limitada, a comunicao de ocorrncias equipe do projeto pode ter sido prejudicada.

    Nesse sentido, o que mais chama a ateno justamente o pequeno n-mero de casos das regies Norte e Nordeste, apesar dos problemas prisionais amplamente documentados e divulgados pela imprensa nestas regies, espe-cialmente nos ltimos dois anos. A geolocalizao dos casos pode fornecer um panorama mais ilustrativo desta situao:

    notvel a persistncia da invisibilidade do sistema prisional do Norte e no Nordeste do Pas, especialmente nos locais distantes da capital, apesar dos esforos da Pastoral Carcerria e de outras organizaes para mitigar este desconhecimento, e inclusive levar algumas situaes mais crticas s instncias internacionais de defesa dos direitos humanos.

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    61

    Tal situao extremamente problemtica, uma vez que as unidades pri-sionais do Sudoeste so geralmente encaradas como o padro nacional de encar-ceramento, e acabam por eclipsar outras realidades, extremamente diferentes e peculiares, nas quais a tortura e outros problemas tpicos do sistema no podem ser abordados e enfrentados com as mesmas prticas e chaves de leitura.

    4.3. Distribuio por gneroApesar de a maioria dos casos tratarem de violaes de direitos prati-

    cadas contra homens em privao de liberdade, o fato de 43% das denncias envolverem vtimas mulheres um dado que chama especial ateno, uma vez que elas correspondem a apenas 5,8% da populao carcerria total, se-gundo dados do Departamento Penitencirio Nacional de dezembro de 201421, ressaltando que alguns casos abrangiam ambos os gneros.

    Mesmo considerando apenas os 72 casos novos, que so mais unifor-mes em termos de forma de recebimento e metodologia de tratamento, o qua-

    21 DEPEN (2014). Levantamento de informaes penitencirias INFOPEN De-zembro de 2014. Braslia: Ministrio da Justia, disponvel em : http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf

    46

    67

    01020304050607080

    Mulheres Homens

    GrficoVI-Distribuiodecasosporgnero

    Mulheres Homens

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    62

    dro ainda permanece bastante desproporcional, com 27% de denncias en-volvendo vtimas mulheres.

    Ainda que no seja possvel afirmar categoricamente que a populao feminina encarcerada mais vulnervel tortura, um dado que exige maior ateno, especialmente considerando que h fatores efetivamente de risco envolvendo o encarceramento feminino, como o abandono familiar sofrido pelas presas, a persistncia de presdios mistos (onde as mulheres se conver-tem em franca minoria), a invisibilidade social, as violncias sexuais, a ausn-cia de polticas pblicas especficas e o desrespeito sistemtico das normas prprias inscritas LEP e nas Regras das Naes Unidas para o tratamento de mulheres presas, tambm conhecidas como Regras de Bangkok.

    fato, tambm, que o sistema prisional brasileiro estruturalmente machista, sendo grande parte das suas polticas pblicas desenhada exclusi-vamente para a populao masculina.

    Nos presdios mistos, por exemplo, que representam 17% do total de unidades prisionais do pas22, mas cuja existncia ilegal consideravelmen-te ignorada, no incomum que as reivindicaes especficas da populao feminina sejam desconsideradas quando conflitam com os interesses da po-pulao majoritria masculina, ou que as presas relatem prticas discrimina-trias na distribuio de vagas de trabalho, educao e atendimento mdico.

    Num presdio visitado no interior do Amazonas, por exemplo, que con-tinha trs raios masculinos e um feminino, sem separao efetiva das popu-laes, ao convocar um representante de cada raio para uma conversa entre direo da unidade, Pastoral Carcerria, Defensoria Pblica, Ministrio P-blico e Judicirio, se apresentaram quatro presos homens, sendo necessria a interveno dos agentes pastorais para que uma presa fosse chamada para falar pela populao feminina do estabelecimento.

    22 DEPEN (2014). Levantamento de informaes penitencirias INFOPEN Junho de 2014. Braslia: Ministrio da Justia, disponvel em :

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    63

    4.4. Tipos de violnciaOs casos denunciados so, em sua maioria, situaes complexas, que

    articulam diversas formas de violncia. Muitas das situaes registradas envolvem sesses de espancamento por mltiplos agentes, condies degra-dantes de aprisionamento, graves omisses de socorro e atendimento mdi-co, violncias sexuais envolvendo estupros ou empalaes, tratamentos hu-milhantes, imposio de isolamento prolongado como forma de castigo, entre outras tantas barbaridades que resultaram em sofrimento fsico e psquico agudo, e at em morte.

    Apesar da noo ampliada de tortura que se pretendeu construir no cur-so deste projeto, 66% das situaes denunciadas envolveram agresses fsicas, o que indica a persistncia de formas bastante tpicas de tortura. Agresses ver-bais, que englobam ofensas diversas e ameaas, estiveram presentes em 33% dos casos registrados, sendo que em 35% dos registros foram tambm relatadas ocorrncias de tratamento humilhante, como a imposio de revistas invasi-vas, regras disciplinares desumanizadoras, longos perodos em determinadas posies constrangedoras, agachamentos, nudez forada, entre outras.

    Em 21% dos casos foram relatadas situaes de omisso na prestao de assistncia mdica, algumas resultando no bito da vtima, e em 20% foi apontada alguma forma de negligncia na prestao de assistncia material, no que tange a itens bsicos de higiene, alimentao e vesturio. Em 25% dos casos, outras condies degradantes de aprisionamento foram denunciadas, como a superlotao, celas pouco iluminadas, sem ventilao ou insalubres.

    Nos seis casos em que consta alguma forma de violncia sexual, chama ateno que a maioria envolvia mulheres como vtimas. Deste total, constam dois casos de estupro, uma denncia de empalao, e trs casos de proce-dimentos envolvendo nudez forada diante de outros presos e servidores, inclusive um em que as genitlias das presas teriam sido fotografadas como forma de humilhao e aplicao de castigo.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    Como dito anteriormente, comum que os casos de tortura articulem mltiplas formas de violncia. Pessoas espancadas so tambm ofendidas e ameaadas, e depois isoladas em celas disciplinares insalubres, privadas de atendimento mdico ou assistncia material bsica. Presos que questionam as condies de encarceramento so achacados e espancados, e a privao de servios bsicos instrumentalizada para agravar o sofrimento infligido.

    Portanto, mesmo denncias que no contexto aviltante do sistema car-cerria brasileiro podem parecer triviais, como o uso arbitrrio de algemas, e rotinas de segurana que envolvem colocar presos com o rosto contra o cho, ou com os braos para trs e o tronco extremamente inclinado, quando repetidos exausto e publicamente, e somados a tantas outras violaes de direitos, tornam-se rituais de humilhao e despersonalizao, e podem ser considerados como tortura, uma vez que so capazes de provocar sofrimento psicolgico agudo e, consequentemente, graves danos s vtimas.

    4.5. Local da ocorrnciaCom a ressalva de que algumas denncias apontam mltiplos locais de

    ocorrncia, como no caso em que as vtimas so espancadas na rua, no mo-

    71

    70

    37

    35

    10

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    0 10 20 30 40 50 60 70 80

    Condiesdegradantesdeaprisionamento

    Agresso

  • 4. Anlise dos casos denunciados

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    mento da priso, e posteriormente na Delegacia ou presdios, foram registra-dos cinco locais mais frequentes, com destaque evidente para os locais de pri-vao de liberdade.

    O local de maior ocorrncia dos casos foi em unidades prisionais des-tinadas a presos sentenciados (42% do total de denncias), ressaltando que foram utilizadas as informaes oficiais dos rgos responsveis pela Admi-nistrao Penitenciria, ainda que na prtica seja extremamente comum que mesmo prises para sentenciados abriguem presos provisrios e vice-versa.

    Foram registrados tambm muitos casos ocorridos na rua (21% do to-tal), no momento da priso em flagrante, em delegacias (8%), apesar da ten-dncia de esvaziamento das carceragens, e tambm em unidades destinadas a presos provisrios (20%).

    Diante desses nmeros, apesar de ser tentador afirmar que os presos provisrios so mais suscetveis tortura, no nos parece ser essa a leitura mais apropriada, uma vez que cada etapa processual da ritualstica penal, que por vezes se vincula a espaos especficos de privao de liberdade, traz pos-

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    66

    sibilidades e formas de violncia prprias, que se conjugam para dar forma ao ethos torturante do sistema criminal.

    4.6. Perfil dos denunciadosEm quase metade dos 105 casos registrados, os denunciados foram

    identificados como servidores do sistema penitencirio, sendo que esse n-mero chega 58% do total quando computados apenas os 72 casos novos, de-nunciados no curso do projeto.

    Policiais foram citados como responsveis em 49 casos de tortura (46%), e em 17 a funo do denunciado no foi especificada ou no foi possvel identificar, ressaltando que em algumas situaes haviam mltiplos agentes envolvidos (policiais e agentes penitencirios). Tambm no foi feito um re-gistro separado de policiais civis e militares, uma vez que ficou evidente a di-ficuldade das vtimas de fazer este tipo de diferenciao.

    Por fim, em hiptese alguma possvel afirmar que determinadas categorias de servidores se envolvem mais em prticas de tortura do que outras, e seria extremamente contraproducente para os objetivos da pre-

    52

    49

    17

    1

    GrficoIX-Funodoagentedenunciado

    Agentepenitencirio Policial Noespecificado Guardacivil

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    67

    sente pesquisa reforar responsabilidades individuais e esteretipos con-tra determinadas categorias, uma vez que a tortura fenmeno estrutural, cujos responsveis e beneficirios transcendem os muros dos crceres e das delegacias.

    4.7. Discriminao em razo de raa, etnia, gnero ou orientao sexual

    Em 12 casos foi possvel identificar formas explcitas de discriminao por parte dos agentes pblicos denunciados, sendo que em quatro casos as v-timas de tortura, todas negras, foram alvo de injria racial, e em trs casos a orientao sexual das vtimas foi apontada como um dos motivos que enseja-ram as agresses e violaes de direitos.

    Foram tambm identificados cinco casos em que as questes de gnero se mostraram bastante proeminentes, especialmente pela objetificao sexual da mulher presa, e violaes de direitos envolvendo o exerccio da maternida-de, como a poltica de partos com algemas, e denncias de violncias praticadas contra mulheres encarceradas identificadas como mes disfuncionais.

    Porm, esses 12 casos citados, ainda que sejam mostras explcitas do imbricamento da tortura com prticas discriminatrias, no so representa-tivos da abrangncia e dimenso das violaes do tipo praticadas no sistema prisional. Na verdade, a pouca visibilidade dessas situaes no banco de da-dos elaborado neste projeto que chama mais a ateno, inclusive com a not-vel ausncia de casos envolvendo estrangeiros, populaes indgenas, sade mental e minorias religiosas.

    Com a experincia prtica de visitas da Pastoral Carcerria e o dilogo permanente com a populao prisional, possvel afirmar que grupos discrimi-nados passam por uma experincia prisional ainda mais penosa, uma vez que o crcere um espao prprio de reproduo e reforo das relaes de opresso, mas isso dificilmente se converte em denncias ou registros formais.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    68

    A maior dificuldade e vulnerabilidade dessas populaes para acessar e utilizar os mecanismos existentes de denncia pode ser uma das explica-es possveis, mas certamente um assunto que demanda maior aprofunda-mento, e talvez um trabalho mais especfico.

    4.8. Grupos de interveno e tropas de choqueEm 15 casos grupos de interveno, em sua maioria composto por

    agentes penitencirios, so citados como provveis autores de agresses fsi-cas e outras violaes de direitos, envolvendo o Grupo de Interveno Rpida (GIR) de So Paulo, o Grupo de Operaes Penitencirias (GOPE) de Gois, o Grupo Penitencirio de Operaes Especiais (GPOE) da Paraba, e o Grupo de Interveno Ttica (GIT) de Minas Gerais.

    Trata-se de um fenmeno novo e de especial preocupao, j que cada vez mais Estados tm replicado a experincia, treinando e equipando grupos de agentes penitencirios para situaes de combate e incurses em unidades prisionais, que se caracterizam, em regra, segundo relatos de presos e familia-res, pela violncia, pelo anonimato dos agentes envolvidos e pela total falta de controle das autoridades do sistema de justia.

    So agentes pblicos que muitas vezes atuam com o rosto coberto e sem identificao nominal, munidos com diversos tipos de armamento letais e menos letais, e at utilizando ces treinados, e que aparentemente so em-pregados para tarefas absolutamente diversas, como revistas de rotina e con-teno de rebelies deflagradas.

    Apesar de questionamentos realizados junto ao Departamento Peni-tencirio Nacional, no existem dados precisos sobre esses grupos no que tange a sua quantidade, nmero de servidores envolvidos, forma de treina-mento, registro de suas aes, nem sobre suas normas regulamentadoras ou protocolos especficos de uso da fora.

    Em So Paulo, por exemplo, uma incurso do Grupo de Interveno Rpida (GIR) na Penitenciria Feminina de Santana resultou em uma de-

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    69

    nncia de mltiplas agresses, tambm documentada pelo Mecanismo Na-cional de Preveno e Combate Tortura23, inclusive com registro fotogrfico das leses sofridas por diversas presas. O caso foi levado ao conhecimento do Ministrio Pblico do Estado de So Paulo, porm nenhuma providncia con-creta foi adotada.

    Tambm so comuns os relatos de danos ou destruio de pertences pessoais dos presos, como pequenos eletrodomsticos, livros e roupas, du-rante as revistas realizadas, alm de ofensas, ameaas e tratamento cruel por parte dos agentes.

    A apurao das violncias praticadas por tais grupos extremamente difcil, uma vez que virtualmente impossvel identificar os responsveis ou individualizar condutas, e a excepcionalidade das suas aes acaba por jus-tificar a falta de qualquer acompanhamento, bem como o uso aparentemente indiscriminado da fora.

    Alm disso, ainda que no estejam presentes de forma constante em todas as unidades prisionais, a possibilidade de interveno desses grupos termina pairando sobre toda populao prisional como uma ameaa latente, j que a sua utilizao vista como uma forma de sano, no um procedi-mento regular ou voltado para situaes extremas.

    Alguns projetos e tentativas de regulamentao em nvel estadual tm buscado limitar as aes dos grupos de interveno, estabelecendo que de-vam ser:

    a) Excepcionalssimas; b) Claramente motivadas, com base em norma especfica;c) Realizadas por agentes claramente identificados;d) Autorizadas judicialmente; e) Acompanhadas pelo Judicirio, Defensoria Pblica, Mi-

    nistrio Pblico e Conselho da Comunidade;

    23b MNPCT. Relatrio de visita a Penitenciria Feminina de SantAna. Outubro de 2015. Braslia. Disponvel em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/temas-de-atuacao/tortu-ra/relatorios-mnpc/penitenciaria-feminina-santana

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    70

    f) Amplamente registradas, inclusive por vdeo e meio fo-togrfico; e

    g) Amparadas em um detalhado protocolo de uso da fora.

    Porm, ainda que o debate carea de maior aprofundamento e trans-parncia nas informaes pblicas sobre o tema, a extino desses grupos de interveno deveria ser uma pauta seriamente considerada, uma vez que o seu emprego parece ter se convertido em pouco mais do que uma ferramenta de punio e terror.

    Por fim, importante frisar que o uso de tropas de choque policiais trazem os mesmos problemas, sendo que dois dos 15 casos citados envolviam grupamentos especiais de policias militares, no havendo qualquer benefcio na substituio de um pelo outro.

    Especificamente sobre o caso de So Paulo, outras consideraes se-ro tecidas adiante, quando da anlise da experincia de monitoramento nos Centros de Deteno Provisria paulistas.

    4.9. Uso de armas menos letais Outra questo preocupante o crescente nmero de denncias envol-

    vendo a utilizao de armamentos menos letais dentro de unidades prisio-nais, como bombas de efeito moral, balas de borracha e, principalmente, spray de pimenta.

    Dos 11 casos em que este tipo de situao foi identificada, dez so re-centes, sendo que no primeiro relatrio sobre tortura elaborado pela Pastoral Carcerria Nacional, em 2010, esta questo sequer estava entre as preocupa-es analisadas, o que indica a sua relativa novidade.

    O spray de pimenta, que vm se popularizando no sistema prisional, um composto qumico que causa irritao nos olhos e vias respiratrias, dor e at cegueira temporria, e pode ser convertido em um instrumento de tortura, sozinho ou conjugado com outros procedimentos.

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    71

    Em unidades prisionais, que em sua grande maioria se caracterizam pelo ambiente fechado e com pouca ventilao, sua utilizao extrema-mente perigosa, uma vez que o composto se dispersa pelo ambiente das ce-las e corredores, e obviamente no distingue presos e presas que podem ter reaes mais graves, como aqueles que possuem alguma forma de cardiopa-tia, problemas respiratrios, alergias especficas e gestantes, podendo at levar morte.

    Outra questo problemtica que seu uso no deixa vestgios visveis, e mesmo a vermelhido na regio dos olhos e nariz desaparecem rapidamen-te, ou podem ser confundidas com outras reaes alrgicas e fisiolgicas, tor-nando a documentao do fato por percia ou fotografia extremamente difcil.

    Em um caso denunciado pela Pastoral Carcerria Nacional, relatando mltiplas violaes de direitos no Centro Prisional Feminino de Cachoeira do Itapemirim, no Esprito Santo, entre elas o uso arbitrrio e excessivo do referido spray, a prpria unidade prisional apresentou todos os relatrios de ocorrncia do tipo entre os dias 10/01/2016 e 22/02/2016.

    Surpreendentemente, num curto perodo de menos de dois meses a unidade registrou oficialmente oito casos de utilizao do spray de pimen-ta, sendo que os prprios relatos oficiais apresentavam situaes absurdas, como a utilizao do armamento em presa imobilizada, e contra internas em aparente surto psicolgico.

    Em um dos relatrios fornecidos, n. 03/2016, registrado generica-mente que as internas teriam dado alterao, desrespeitando os procedi-mentos da unidade, sendo necessria uma espargida de spray de pimenta na cela para restabelecer a ordem no local. Ao final, dito que no houve regis-tro de maiores alteraes.

    A falta de um protocolo mnimo para a utilizao do armamento to evidente, que em quase todos os registros fornecidos sublinhado que o Spray GL-108/OC foi utilizado seguindo orientaes do fabricante, sem qualquer

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

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    meno a normas ou orientaes da prpria administrao penitenciria, se que existem ou so efetivamente empregadas.

    4.10. Castigos coletivosOutro problema visualizado a prtica de castigos coletivos, que ape-

    sar de absolutamente ilegal, frequentemente relatada por presos e familia-res, sendo que no curso do projeto foram registrados oito casos, praticamente todos em So Paulo, envolvendo de suspenso de atividades recreativas at o trancamento de populaes inteiras dentro de celas superlotadas durante dias, sem direito sequer sada para o banho de sol. Tambm nas visitas aos CPDs, relatadas adiante, a questo dos castigos coletivos foi central.

    Transferncias em massa de presos para unidades prisionais distan-tes e a suspenso coletiva de visitas de familiares e representantes religiosos tambm so extremamente comuns como forma de punio coletiva, e em ge-ral dispensam a imputao de qualquer falta especfica ou individualizao de conduta, bastando consideraes genricas de segurana.

    Em um caso denunciado pela Pastoral Carcerria, ocorrido no Centro de Deteno Provisria de Vila Independncia, na capital paulista, aps uma suposta ocorrncia de agresso contra um agente penitencirio, um raio in-teiro da unidade teria sido punido com diversas restries coletivas de direi-tos, como tranca por mais de 15 dias sem banho de sol, proibio de visitas e jumbos24, alm da suspenso da assistncia religiosa realizada pela Pastoral Carcerria.

    Em resposta ao Juiz Corregedor dos Presdios da Capital, a prpria Ad-ministrao Prisional, apesar de negar os fatos narrados, reconheceu a trans-ferncia em massa de cerca de 60 presos da unidade, apontados generica-mente como lideranas negativas do pavilho, sendo que apenas um preso estava respondendo a procedimento disciplinar em razo da citada agresso.

    24 Produtos de higiene e alimentos fornecidos por familiares.

  • 4. Anlise dos casos denunciados

    73

    Os castigos coletivos, alm de aviltantes e contrrios lei, podem cons-tituir por si s uma forma de tortura, e sua devida apurao demanda uma atuao proativa das instituies responsveis, no sentido de verificar rapi-damente as denncias in loco, o que dificilmente ocorre, terminando por im-possibilitar a documentao desses fatos.

  • 5. Anlise da atuao do sistema de justia

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    76

    A pesar de ser notria a subnotificao de ocorrncias de tortura e outras violaes de direitos nos espaos de privao de liberdade, milhares de casos so denuncia-dos anualmente, sendo que apenas a Ouvidoria Nacio-nal de Direitos Humanos registrou mais de 7.500 casos entre 2014 e 2015.

    Apesar desses nmeros, rarssimas denncias acabam em aes con-cretas de responsabilizao ou reparao das vtimas, por conta de uma srie de filtros, cujas caractersticas e mecanismos especficos so pouco conhe-cidos, e que so operados no mbito do sistema de justia por juzes, promo-tores e defensores. Os dados e anlises aqui expostos buscam lanar uma luz sobre essa questo.

    Nos 105 casos estudados no curso deste projeto, mltiplas autoridades foram notificadas, com especial destaque para a Defensoria Pblica e o Mi-nistrio Pblico:

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    DefensoriaPblica

    MinistrioPblico

    Judicirio

    ExecuAvo

    OutrosrgosouinsAtuies

    GrficoX-AutoridadesnoAficadas

  • 5. Anlise da atuao do sistema de justia

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    A pesar de ser notria a subnotificao de ocorrncias de tortura e outras violaes de direitos nos espaos de privao de liberdade, milhares de casos so denuncia-dos anualmente, sendo que apenas a Ouvidoria Nacio-nal de Direitos Humanos registrou mais de 7.500 casos entre 2014 e 2015.

    Apesar desses nmeros, rarssimas denncias acabam em aes con-cretas de responsabilizao ou reparao das vtimas, por conta de uma srie de filtros, cujas caractersticas e mecanismos especficos so pouco conhe-cidos, e que so operados no mbito do sistema de justia por juzes, promo-tores e defensores. Os dados e anlises aqui expostos buscam lanar uma luz sobre essa questo.

    Nos 105 casos estudados no curso deste projeto, mltiplas autoridades foram notificadas, com especial destaque para a Defensoria Pblica e o Mi-nistrio Pblico:

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    MinistrioPblico

    Judicirio

    ExecuAvo

    OutrosrgosouinsAtuies

    GrficoX-AutoridadesnoAficadas

    Em algumas situaes especficas, a prpria Administrao Prisional foi acionada, ou outros rgos, como Ouvidorias e Conselhos de Direitos, le-vando em considerao a segurana da vtima e do denunciante, e uma avalia-o de qual era a medida mais eficaz em relao ao caso concreto.

    Os problemas e dificuldades encontrados junto s referidas insti-tuies, apesar de algumas poucas excees, guardam bastante similarida-de em todo o Pas, e a despeito das transformaes recentes na arquitetura institucional brasileira, a comparao dos casos antigos (de 13/12/2005 24/01/2013) com os casos novos (de 01/07/2014 08/07/2016) denunciados pela Pastoral Carcerria no apontam avanos significativo na qualidade das apuraes.

    Entre as inovaes institucionais, podemos destacar a estruturao da Defensoria Pblica em diversos Estados da Federao, sua incluso entre os r-gos da execuo penal pela Lei n. 12.313/2010, e as medidas reformadoras da Justia, que resultaram na criao do Conselho Nacional de Justia e do Con-selho Nacional do Ministrio Pblico, pela Emenda Constitucional n. 45.

    Problemas como a morosidade, o no esgotamento das medidas jurdi-cas cabveis, a documentao deficiente dos casos, a aparente falta de intimi-

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    78

    dade com os manuais e protocolos nacionais e internacionais sobre o tema, e a desconsiderao das especificidades da tortura nos ambientes de privao de liberdade permanecem como obstculos quase instransponveis para a de-vida resoluo das situaes denunciadas.

    Talvez um dos dados mais ilustrativos e emblemticos desta pesquisa se refere ao fato de que em nenhum dos 105 casos analisados, em 16 Estados e no Distrito Federal, e encaminhados para diversas autoridades, houve at o momento qualquer responsabilizao de um agente pblico ou do prprio Estado, seja na esfera civil, criminal ou administrativa.

    Tampouco foi instaurada qualquer ao penal para apurao de crime de tortura ou de qualquer outro tipo penal relacionado (abuso de autoridade, leses corporais, maus tratos, etc), nem foi proposta qualquer ao indeniza-tria em favor das vtimas.

    Em apenas um caso um servidor foi administrativamente responsabi-lizado, mas no pela prtica do ato denunciado, e sim pelo simples fato de ter descumprido normas internas que determinavam o encaminhamento ime-diato da vtima para a realizao de exame de corpo de delito, sendo que ao final do procedimento sua pena foi mitigada para uma repreenso escrita.

    Alm disso, em apenas 22% dos casos foi instaurado inqurito policial, o que seria uma medida bsica na maioria das circunstncias, e em apenas 3% dos casos foi proposta ao civil pblica para lidar com as situaes estrutu-rais denunciadas.

    Em 20% dos casos, nenhum procedimento foi instaurado ou informa-do, o que significa uma ocorrncia significativa de negligncia ou dficit de transparncia por parte das instituies acionadas.

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    0 5 10 15 20 25 30 35 40 45

    Procedimentoapuratriojudicial

    ProcedimentointernodoMP

    Inquritopolicial

    ApuraoemcorregedoriaououvidoriaadministraDva

    Nenhumprocedimentofoiinstauradoouinformado

    ProcedimentointernodaDefensoria

    Aocivilpblica

    Aopenal

    Aoindenizatria

    GrficoXI-Procedimentosinstaurados

  • 5. Anlise da atuao do sistema de justia

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    dade com os manuais e protocolos nacionais e internacionais sobre o tema, e a desconsiderao das especificidades da tortura nos ambientes de privao de liberdade permanecem como obstculos quase instransponveis para a de-vida resoluo das situaes denunciadas.

    Talvez um dos dados mais ilustrativos e emblemticos desta pesquisa se refere ao fato de que em nenhum dos 105 casos analisados, em 16 Estados e no Distrito Federal, e encaminhados para diversas autoridades, houve at o momento qualquer responsabilizao de um agente pblico ou do prprio Estado, seja na esfera civil, criminal ou administrativa.

    Tampouco foi instaurada qualquer ao penal para apurao de crime de tortura ou de qualquer outro tipo penal relacionado (abuso de autoridade, leses corporais, maus tratos, etc), nem foi proposta qualquer ao indeniza-tria em favor das vtimas.

    Em apenas um caso um servidor foi administrativamente responsabi-lizado, mas no pela prtica do ato denunciado, e sim pelo simples fato de ter descumprido normas internas que determinavam o encaminhamento ime-diato da vtima para a realizao de exame de corpo de delito, sendo que ao final do procedimento sua pena foi mitigada para uma repreenso escrita.

    Alm disso, em apenas 22% dos casos foi instaurado inqurito policial, o que seria uma medida bsica na maioria das circunstncias, e em apenas 3% dos casos foi proposta ao civil pblica para lidar com as situaes estrutu-rais denunciadas.

    Em 20% dos casos, nenhum procedimento foi instaurado ou informa-do, o que significa uma ocorrncia significativa de negligncia ou dficit de transparncia por parte das instituies acionadas.

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    Inquritopolicial

    ApuraoemcorregedoriaououvidoriaadministraDva

    Nenhumprocedimentofoiinstauradoouinformado

    ProcedimentointernodaDefensoria

    Aocivilpblica

    Aopenal

    Aoindenizatria

    GrficoXI-Procedimentosinstaurados

    Na maioria dos casos, como se pode verificar no grfico acima, foram instaurados procedimentos internos do Ministrio Pblico (inqurito civil pblico, notcia de fato, apurao preliminar etc), e procedimentos apurat-rios na esfera judicial, mas cuja natureza no se confunde com aes cveis ou criminais propriamente ditas. Trata-se de incidentes em processos de exe-cuo ou processos em departamentos especializados do Tribunal paulista, como o DIPO 525 e o DEECRIM26, e que na prtica funcionam como juzos preliminares de admissibilidade, que podem arquivar as denncias ou enca-minh-las para as autoridades competentes para iniciar a persecuo penal.

    A seguir, elencamos alguns dos pontos mais importantes verificados no curso da pesquisa, no que toca atuao do sistema de justia, e ao final elencamos algumas avaliaes especficas sobre o recebimento e processa-mento dos casos pelo Ministrio Pblico, Defensoria e Judicirio.

    25 Departamento de Inquritos Policiais.

    26 Departamento de Execues Criminais.

  • Tortura em tempos de encarceramento em massa

    80

    5.1. Oitiva da vtima e testemunhasO contato direto e imediato com a vtima deveria ser a primeira provi-

    dncia adotada por qualquer autoridade incumbida de apurar uma denncia de tortura. Alm de ser uma forma de confirmar os fatos relatados e colher outras informaes, tambm possibilita a verificao do estado fsico e psi-colgico da vtima, e a realizao de documentaes prprias do caso, como o registro fotogrfico de eventuais marcas de leses.

    no contato direto com defensores, promotores e juzes que a vtima pode ser melhor informada acerca dos seus direitos, da forma de apurao do caso e de possveis medidas de proteo contra retaliaes.

    Porm, em apenas 48 dos 105 casos denunciados as vtimas foram ou-vidas de alguma forma no decorrer da apurao. Esse nmero se torna ainda mais alarmante quando se excluem os 15 casos em que a oitiva ocorreu so-mente perante a Administrao Penitenciria, e chega-se concluso que em apenas 31% das ocorrncias analisadas as vtimas foram ouvidas por defenso-res, promotores ou juzes.

    Trata-se de um dado extremamente preocupante, uma vez que sem o contato direto com a vtima ou o grupo afetado, as chances de real compreen-so e apurao da denncia tornam-se virtualmente nulas, pois o medo, as di-ficuldades de comunicao e as restries de acesso aos espaos de privao de liberdade pelos denunciantes tornam grande parte dos relatos carentes de maior detalhamento e complementao.

    Apenas para ilustrar os riscos da falta de contato direto com a vtima, em uma denncia de tortura ocorrida no Centro de Deteno Provisria de Be-lm II, na capital paulista, ao ser ouvida perante a administrao da unidade, a vtima negou o fato, e somente em juzo confirmou o relato feito pela Pastoral Carcerria, afirmando ter sofrido presso na unidade prisional para se retratar.

    Porm, no incom