inovacoes: ciclos, crises: o retorno

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INOVAÇÕES CICLOS CRISES economista vienense é apresen- tado hoje como o arauto de um novo liberalismo. No en- tanto, ele julgava inelutáveis a decadên- cia do capitalismo e a transição para o socialismo. Se a tradução francesa da monumental obra History of Economic Analysis de Joseph Aloïs Schumpeter 1 demorou tan- to a aparecer, convém ao menos admitir que ela é particularmente bem-vinda. Pu- blicada em pleno âmago de uma das maiores crises do capitalismo, à com- preensão das quais consagrou o autor uma parte essencial de sua vida, este livro vem propiciar uma reinterrogação a respeito de toda a obra de Schumpeter e de sua extraordinária trajetória dentro da teoria econômica. Trajetória surpreen- dente posto que, se a perspectiva, o mé- todo e o material analítico se enrique- cem incessantemente, a mesma questão central atravessa, porém, toda sua obra teórica: qual o sentido da evolução do capitalismo e de sua dinâmica? Para onde o leva o impulso de suas próprias forças? Uma vez findo o período de cresci- mento sustentado do pós-guerra, e com o retorno das turbulências monetárias, do desemprego em massa e das bruscas flutuações industriais, não é de surpreen- der que inúmeras correntes da teoria econômica contemporânea retornem a essa obra essencial com o objetivo de sondar o presente e, até mesmo, como veremos, o futuro. Assumindo o risco de uma forte sim- plificação, apresentaremos aqui alguns pontos-chaves da démarche de Schum- peter. Ele escrevia, já em 1911, que: "tendo partido de fatos concretos" (no caso, a crise de 1905), ele foi levado a 0 RETORNO DE NOVOS ESTUDOS N.º 12 Benjamin Coriat e Robert Boyer Tradução de Maria Alice L. G. Nogueira 42

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  • INOVAES CICLOS

    CRISES

    economista vienense apresen- tado hoje como o arauto de um novo liberalismo. No en-

    tanto, ele julgava inelutveis a decadn- cia do capitalismo e a transio para o socialismo.

    Se a traduo francesa da monumental obra History of Economic Analysis de Joseph Alos Schumpeter1 demorou tan- to a aparecer, convm ao menos admitir que ela particularmente bem-vinda. Pu- blicada em pleno mago de uma das maiores crises do capitalismo, com- preenso das quais consagrou o autor uma parte essencial de sua vida, este livro vem propiciar uma reinterrogao a respeito de toda a obra de Schumpeter e de sua extraordinria trajetria dentro da teoria econmica. Trajetria surpreen- dente posto que, se a perspectiva, o m- todo e o material analtico se enrique- cem incessantemente, a mesma questo central atravessa, porm, toda sua obra terica: qual o sentido da evoluo do capitalismo e de sua dinmica? Para onde o leva o impulso de suas prprias foras?

    Uma vez findo o perodo de cresci- mento sustentado do ps-guerra, e com o retorno das turbulncias monetrias, do desemprego em massa e das bruscas flutuaes industriais, no de surpreen- der que inmeras correntes da teoria econmica contempornea retornem a essa obra essencial com o objetivo de sondar o presente e, at mesmo, como veremos, o futuro.

    Assumindo o risco de uma forte sim- plificao, apresentaremos aqui alguns pontos-chaves da dmarche de Schum- peter. Ele escrevia, j em 1911, que: "tendo partido de fatos concretos" (no caso, a crise de 1905), ele foi levado a

    0 RETORNO DE NOVOS ESTUDOS N. 12

    Benjamin Coriat e Robert Boyer

    Traduo de Maria Alice L. G. Nogueira

    42

  • "tratar, de modo novo e independente, problemas tericos cada vez mais amplos" (Teoria do Desenvolvimento Econmi- co). Este duplo fio condutor de seu pr- prio pensamento "de modo novo e independente", "de problemas tericos cada vez mais amplos" se revela na prtica particularmente fecundo.

    Considerada em seu conjunto, a con- tribuio fundamental de Schumpeter foi certamente ter em plena hegemonia da teoria esttica do equilbrio, na sua verso walrasiana ou austraca for- ado os quadros dominantes, abrindo espao para a dinmica, que ele prprio denomina teoria da evoluo econmica. Trs momentos essenciais, corresponden- do a trs obras capitais (Teoria do De- senvolvimento Econmico, 1911; Busi- ness Cycles, 1939; e Capitalismo, Socia- lismo e Democracia, 1942), demarcam sua pesquisa, significando cada um deles como o prprio autor indicou alargamento do quadro terico.

    De incio, na Teoria do Desenvolvi- mento Econmico, Schumpeter parte de um modelo terico simples que ele de- nominou "circuito". Por suas caracters- ticas, esse modelo inicial est muito pr- ximo dos modelos de equilbrio geral walrasianos de concorrncia, onde os ajustamentos econmicos feitos num tem- po abstrato e no periodizado no deixam lugar possibilidade da crise, nem pos- sibilidade de rupturas dinmicas. Com o intuito de introduzir essa dupla possibi- lidade o que alis seu objeto , o autor formula desde ento uma de suas hipteses centrais. a atividade do em- presrio, enquanto introdutora de inova- es no sistema (as quais constituem tam- bm rupturas nas rotinas e no desenrolar

    ordinrio do circuito), que permite que se passe a um universo dinmico. Condi- o permissora da inovao: o empres- rio inovador "desvia" capital de seu uso corrente (que conduz simples repro- duo nos mesmos moldes) com o fito de introduzir na economia novas combina- es (novas tecnologias, novos produtos, novos mercados. . .). Esse capital orien- tado para a inovao chamado por Schumpeter de "crdito". O encadeamen- to crdito/inovaes/novas combinaes constitui o elemento dinmico do siste- ma. Desta forma, seqncias lgicas apa- recem e se desenvolvem necessariamente em um processo posteriormente quali- ficado de "destruio criadora": a uma fase de expanso suceder uma outra, de recesso. Uma vez absorvida a inovao pelo sistema e reinstaurada a rotina, o circuito tende a voltar a seu equilbrio inicial.

    A esta representao em termos de movimento cclico, Schumpeter se dedi- car em Business Cycles, que constitui o segundo grande momento de sua obra. Sem abandonar o universo das represen- taes abstratas e dos encadeamentos l- gicos, o mtodo e o campo de observa- o se abrem considerao e ao exame minucioso de sries temporais longas de preos, de emprego, de produo indus- trial. . . A partir de ento, o autor tem em vista uma teoria unitria do ciclo ou, melhor dizendo, dos ciclos. Retomando os trabalhos de seus predecessores neste domnio e apoiando-se em sries estats- ticas (porm "estilizando-as" fortemen- te), ele reconstri o movimento do capi- tal como um movimento essencial e ne- cessariamente cclico desembocando num desenvolvimento em quatro seqncias.

    Art igo pub l icado em Le Monde Diplomatique de se- tembro/1984. Traduo de Maria Alice L. G. Nogueira. 1 O presente artigo se baseia,

    no que tange ao pensamento de Schumpeter, nas trs obras centrais, que so: The Theory of Economic De- velopment. New York, Oxford University Press, 1961. Origi- nalmente publicada em ale- mo, em 1911. Verso em portugus: Teoria do Desen- volvimento Econmico. Rio de Janeiro , Fundo de Cul- tura, 1961. Business Cycles. A Theoreti- cal, Historical and Statistical Analysis of the Capitalist Process. New York, McGraw- Hill , 1 . ed . 1939, 2 vols. No h traduo em por- tugus. Capitalism, Socialism and Democracy. New York, Har- per & Row, 1942-1950. Ver- so em portugus: Capita- lismo, Socialismo e Democra- cia . Rio de Janeiro , Fundo de Cultura, 1961. A obra History of Economic Analysis (New York, Oxford University Press, 1954) existe tambm em portugus: Hist- ria da Anlise Econmica. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961.

    O Prometeu moderno: o empresrio inovador

    SCHUMPETER JUNHO DE 1985

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  • INOVAES, CICLOS E CRISES: O RETORNO DE SCHUMPETER

    2 Perroux, F. La Pense co-

    nomique de J. A. Schumpeter. Genve, Droz, 1965. Este li- vro, que rene dois ensaios, continua sendo a melhor intro- duo ao pensamento do mestre vienense.

    A inovao no

    corao do problema

    Baseado neste esquema lgico, deter- minado em cada caso pelo mesmo pro- cesso de inovao, Schumpeter prope a representao de vrios ciclos entrelaa- dos; em Business Cycles, ele retm trs deles. Em primeiro lugar, os ciclos lon- gos, ou de Kondratiev (de uma durao de 50 a 60 anos): assim, ao ciclo da Revoluo Industrial (txtil, mecaniza- o: 1790-1840), suceder o do vapor e da ferrovia (1844-1890). A partir de 1898, e interrogando-se sobre os dezes- seis primeiros anos que se seguiram a essa data, Schumpeter acreditava ter de- tectado o desencadeamento de um novo ciclo dito "neomercantilista", cujas ino- vaes tecnolgicas principais so a ele- tricidade ou a qumica, mas onde as pr- ticas protecionistas ligadas extenso do mercado mundial desempenham tambm um papel importante. Seus sucessores e discpulos estendero essa construo at o perodo atual; teramos entrado, assim, a partir de 1974, na fase descendente de Kondratiev.

    No interior dos Kondratiev, ocorrem os ciclos Juglar com uma dezena de anos de durao, ligados aos movimentos do investimento; e, no interior destes lti- mos, ocorrem ainda ciclos mais curtos: os Kitchin, ligados aos movimentos dos estoques, com uma durao de aproxi- madamente quarenta meses. A ttulo de ilustrao, vale lembrar aqui que Schumpeter, curiosamente, situa a crise de 1929 na confluncia excepcional de trs depresses acumuladas: as do Kon- dratiev, do Juglar e do Kitchin. Estaria assim explicada a crise?

    Joseph Schumpeter evita, no entanto, uma viso demasiadamente mecanicista da questo. Se, de um lado, ele confirma sua hiptese sobre o papel central da inovao no desencadeamento e no inte- rior dos ciclos (a partir de algumas ino- vaes de base, a inovao se difunde "por blocos"), de outro, ele trata de chamar a ateno para o papel dos "fa- tores externos" ou das "dimenses ins- titucionais" do contexto econmico que podem deformar sensivelmente os inter- valos e os ritmos descritos pelos "fatos estilizados" representados pela esquema- tizao dos movimentos cclicos.

    A inovao no corao do problema

    Em Capitalismo, Socialismo e Demo- cracia, o ltimo e provavelmente o mais conhecido de seus livros, por ser o mais

    acessvel, Schumpeter procede a uma es- pcie de reavaliao geral de sua viso econmica. Prestando ambgua homena- gem a Marx, "visionrio e profeta", ele anuncia a inelutvel vitria do "socialis- mo". Contudo, nada parece mobilizar seu entusiasmo. Muito pelo contrrio, a passagem para o socialismo advm, para ele, da destruio do quadro institucio- nal que permitia a inovao e a auto-re- generao regular do elemento dinmico do sistema. Trs sries de elementos evi- denciam, segundo Schumpeter, a destrui- o desse quadro institucional. O capi- tal, em seus movimentos de concentra- o e liquidao, teria ido muito longe: ele destruiu as "camadas protetoras" constitudas pelas pequenas e mdias empresas, artesos, explorao familiar e o elemento intelectual que fornecia ao capital seu alicerce social e inovao, sua base criadora. A partir da, a grande empresa burocratizada chamada por K. Galbraith, discpulo de Schumpeter, de "tecnoestrutura" incapaz de assumir riscos e de inovao. "A apro- priao essncia e motor do compor- tamento do empresrio se encontra desmaterializada, desvitalizada, absen- testa." Ela opera num vazio "preenchido por uma floresta tropical de novas re- gulamentaes (. . .). Ao final, no so- brar ningum que se preocupe em de- fend-la" (trata-se aqui da propriedade ou da apropriao).

    Tanto no ponto inicial quanto na che- gada, a inovao, as novas combinaes e o crdito ocupam o lugar central. En- tretanto, no decorrer da elaborao, o dispositivo foi se ampliando incessante- mente, confrontando-se com a histria econmica, com as sries estatsticas, in- troduzindo cada vez mais o papel das condies institucionais propcias ou no inovao e ao desenrolar da "destrui- o criadora".

    A viso e, mais ainda, a construo permaneceram consideravelmente imper- feitas e inacabadas: "Os futuros econo- mistas devem considerar esta obra (...) como um ponto de partida", advertia Schumpeter (Business Cycles, introdu- o); em particular, pode-se interrogar, como Franois Perroux2, sobre a ques- to de saber se o fato de introduzir um ciclo, oscilando em torno de uma linha de equilbrio, constituiria uma teoria dinmica ou um sucedneo da velha teo- ria esttica neoclssica. Alm do mais, mesmo se aceitando a idia de ondas

    44 NOVOS ESTUDOS N. 12

  • longas de inovao que desestabilizam e revitalizam o crescimento econmico, resta explicar como e por que estas lti- mas surgem.

    Estas observaes, e muitas outras, fizeram com que a posteridade imediata de Schumpeter tenha ficado essencial- mente circunscrita a alguns poucos dis- cpulos fiis.

    Todavia, no perodo atual, quando novamente se manifesta, depois da fase de expanso dos anos 50 e 60, uma nova depresso duradoura, e quando as muta- es tecnolgicas sempre situadas por Schumpeter, explicitamente, em lugar central parecem desempenhar um pa- pel capital, no h por que se surpreen- der com o fato de que sua obra seja no- vamente colocada em destaque.

    O fato que sua problemtica apre- senta a vantagem de aparentemente dar conta das caractersticas essenciais da longa crise que estava em gestao desde fins dos anos 60, eclodiu a partir de 1973 e se aprofundou desde ento.

    Quer se trate da amplitude das trans- formaes sofridas atualmente pelos sis- temas produtivos nacionais sob o impul- so conjugado de uma nova ordem tecno- lgica com uma intensificao da concor- rncia em escala internacional (novos produtos, novos mercados...); ou da maneira pela qual so desestabilizadas as "rotinas" que anteriormente haviam assegurado a prosperidade das firmas e a coerncia dinmica das normas de pro- duo e de consumo; quer se trate, ao contrrio, da identificao de novos atores que se valem da desarticulao do modo de crescimento para antecipar e suscitar a emergncia de necessidades que, anteriormente, s podiam se expres- sar ao nvel dos mercados a obra de Schumpeter parece poder fornecer res- posta a tudo. Sua hiptese central rela- tiva aos efeitos de longo alcance das inovaes, o papel fundamental atribudo ao empresrio em oposio ao administrador que se limita a respon- der quase automaticamente aos sinais do mercado no quadro de um sistema dado de diviso das tarefas , mas tambm a imagem da crise como "destruio cria- dora" no poderiam ter encontrado me- lhor repercusso numa poca em que floresce o triplo slogan: "Viva a inova- o, abaixo o Estado, viva o empresrio (e o mercado)! Adeus aos trinta glorio- sos anos de prosperidade do ps-guerra, viva a crise!"

    Do mesmo modo, a problemtica neo- schumpeteriana parece poder dar conta da profundidade e da durao de uma desacelerao do crescimento, a qual re- siste tanto aos efmeros estimulantes das polticas de reaquecimento de ins- pirao keynesiana, quanto s diferen- tes terapias conservadoras tentadas na Gr-Bretanha, nos Estados Unidos e, a partir da, estendidas maior parte dos outros pases.

    Enquanto monetaristas, neoclssicos e keynesianos atribuem esses males so- mente inadequao das polticas econ- micas, os discpulos contemporneos de Schumpeter fornecem slidos argumen- tos de explicao desta ruptura das ten- dncias eufricas dos anos 60. Para estes ltimos, as dificuldades atuais so con- seqncia lgica da fase de prosperidade: as inovaes advindas da ltima guerra mundial, ao se difundirem, levaram eliminao dos lucros das empresas e das indstrias que pioneiramente as haviam introduzido. Simetricamente, o cresci- mento s retomar um curso sustentado se os "blocos" de inovaes consegui- rem oferecer novos campos ao investi- mento e expanso da demanda.

    Para Schumpeter e seus discpulos contemporneos, trata-se antes de tudo de processos longos e descontnuos. As- sim escrevia ele, desde 1911: "Contudo, nenhuma terapia pode impedir o grande processo econmico de desqualificao das empresas, das existncias, das formas de vida, dos valores culturais, dos ideais; esse processo no seio da economia de propriedade privada e de concorrncia o efeito necessrio de todo novo impulso econmico e social. . . " (Teoria da Evo- luo Econmica). Com base nessa con- vico e superando os expedientes de curto prazo, o schumpeterismo fornece coerncia intelectual e pertinncia ideo- lgica a uma transformao totalmente significativa dos objetivos e dos instru- mentos da poltica econmica. Schum- peter, apstolo de uma macroeconomia da oferta numa variante, ao mesmo tem- po, inteligente e politicamente aceitvel: com efeito, no to fcil em certos pases operar transferncias em favor dos empresrios, numa poca em que as re- converses industriais implicam uma im- portante ajuda social aos trabalhadores afetados. . .

    As observaes precedentes podem ter deixado a falaciosa impresso de uma grande homogeneidade das anlises neo- schumpeterianas da crise. Na verdade,

    Os ciclos, onde parece caber tudo

    JUNHO DE 1985 45

  • INOVAES, CICLOS E CRISES: O RETORNO DE SCHUMPETER

    O mercado

    ou as foras sociais

    Depois da

    tempestade, a bonana.

    Para quem? 3 Reportar-se bibliografia

    neo-schumpeteriana contem- pornea citada no final do artigo, abaixo.

    Bibliografia da corrente neo-schumpeteriana contempornea Para um panorama geral da herana de Joseph Alos Schumpeter, remete-se a di- versas obras coletivas, resul- tantes de colquios internacio- nais realizados recentemente. Entre outras: Heertje, A. Schumpeter's Vision. Capitalism, Socia- lism and Democracy after 40 Years. Eastbourne, Praeger, 1981. Frisch, H. Schumpeterian Economics. Eastbourne, Prae- ger, 1982. "Cahiers d'conomie Poli- tique" e "Centre d'Antropo- logie conomique". L'Ht- rodoxie dans la Pense co- nomique, 1984: Marx, Keynes, Schumpeter, colquio interna- cional. Paris, junho de 1983 (no prelo). A problemtica schumpeteria- na tem sido utilizada, em particular, por pesquisadores especializados em cincia e tecnologia com o intuito de dar conta da crise atual e, notadamente, das relaes en- tre mudanas tcnicas e de- semprego estrutural:

    esta corrente comporta oposies e con- trovrsias que refletem no somente o carter inacabado da construo do mes- tre, como, involuntariamente, as incer- tezas e contradies que perpassam as transformaes atuais. Trs destas opo- sies ressaltam da literatura recente.

    O mercado ou as foras sociais

    O revigoramento das inovaes resul- ta da prpria depresso ou supe a reto- mada do crescimento? Como vimos, o sistema schumpeteriano deixa descober- to um elemento aparentemente inexpli- cado no seio da teoria: a cronologia das inovaes maiores e dos surtos de dina- mismo das empresas. No surpreende, portanto, o fato de que seus sucessores tenham procurado determinar as influn- cias que em resposta o sistema econmico e social exerce sobre a gnese e difuso das inovaes.

    Para alguns, como G. Mensch3, o en- rijecimento da concorrncia no mago da depresso leva as empresas a romperem com suas rotinas e a buscarem novos sis- temas tecnolgicos. A debilidade das mudanas tcnicas desde a guerra seria, portanto, logo superada por um mecanis- mo de seleo no qual o Estado deve intervir minimamente... sem, de modo algum, sustentar as "empresas proble- mticas" que esto inevitavelmente con- denadas. De acordo com essa concepo, seria suficiente deixar agir livremente as foras do mercado para que a depres- so dos anos 80 fosse superada.

    Ao contrrio, para outros, como Ch. Freeman, as invenes e inovaes radi- cais no tm relao com o carter as- cendente ou descendente da conjuntura de longo prazo. De fato, tudo depende, para eles, do modo como as foras so- ciais e os meios financeiros disponveis permitem a mobilizao das inovaes. Em conseqncia, a tecnologia por si s no pode forjar uma sada para a crise: seria necessrio, para tanto, que novos sistemas tcnicos fossem engendrados, os quais, ao reunir os blocos de inovaes, assegurassem uma mobilizao do con- junto da economia. Ora, na conjuntura cinzenta dos anos 80, os primeiros efei- tos da mutao tecnolgica podem consis- tir num desequilbrio estrutural e per- sistente do empergo. Polticas macroeco- nmicas ativas se fazem, portanto, ne- cessrias para vencer a crise.

    Surge assim um amplo leque de posies doutrinrias que, no prprio

    seio do neo-schumpeterismo, vo de um liberalismo esclarecido a um interven- cionismo renovado. Sada da crise: nica e determinista ou aberta e mltipla? As pesquisas atuais se inscrevem em duas linhas distintas, e nisto refletem a ambigidade do prprio Schumpeter em um ponto, no entanto, fundamental.

    Seguindo a lgica da teoria do ciclo dos negcios, toda uma corrente buscou inserir as fases de depresso longa na problemtica geral dos ciclos encadeados (Kitchin, Juglar, Kondratiev). Assim, de- presso e retomada do crescimento se inscrevem dentro de uma regularidade (ainda que aproximativa): vinte e cinco anos de conjuntura cinzenta se sucedem a vinte e cinco anos de crescimento rpi- do. A partir da, conforme o adgio de- pois da tempestade, a bonana, autores como I. Wallerstein prognosticam uma sada da crise para o incio dos anos 90, em virtude da equao: 1967 (data pre- sumida da inf lexo do Kondratiev) + 25 = 1992. De um ponto de vista es- tritamente metodolgico, tal concluso no est isenta de equvocos. . .

    Uma segunda corrente insiste no ca- rter endgeno da transio da prospe- ridade depresso atribuindo um carter entretanto aberto recuperao econ- mica. Com efeito, embora estimuladas pelo enrijecimento da conjuntura, a in- veno e, mais ainda, a implantao de um sistema scio-tcnico no deixam de constituir um processo incerto, desequi- librado e freqentemente catico. Disto testemunha, por exemplo, a diversidade de solues exploradas pelos diferentes pases capitalistas para vencer a fase de- pressiva que comea aps 1920. Igual- mente, as atuais estratgias das firmas, dos movimentos operrios e dos Estados esto longe de explorar uma sada de crise gerada por uma terceira revoluo industrial: solues puramente regressi- vas (deslocamento do trabalho para re- gies onde os salrios e a proteo social so menores, redues dos salrios e dos benefcios sociais, intensificao e pro- longamento da durao do trabalho. . .) ou progressivas (utilizao de novas tec- nologias valorizando o saber-fazer, ne- gociao de compromissos dinmicos restaurando as bases de um crescimento da produtividade. . .) se sucedem ou so experimentadas simultaneamente. So- mente a f do doutor Pangloss permiti- ria representar este processo como a convergncia para uma sada de crise,

    46 NOVOS ESTUDOS N. 12

  • conhecida de longa data! Esta observa- o leva a assinalar uma terceira difi- culdade da corrente neo-schumpeteriana. Tecnologismo ou mudanas conjuntas das formas de organizao e dos siste- mas tecnolgicos? As anlises da crise se distinguem, de fato, pela extenso maior ou menor dada ao conceito de inovao. Se, para muitos, a mudana antes de tudo de ordem cientfica e tec- nolgica, para outros, a compatibili- dade entre as inovaes sociais, institu- cionais e as mutaes tecnolgicas que est em jogo na sada da presente crise.

    Amanh o liberalismo?

    Por um lado, efetivamente, a inova- o inerente Terceira Revoluo In- dustrial serve com freqncia de biombo a um determinismo tecnolgico em duas variantes, liberal ou ps-marxista. Para os primeiros, a crise no mais do que a expresso do atraso das regulamenta- es pblicas e da defesa das vantagens adquiridas pelos "oligoplios sociais". Para os segundos, o perodo atual mos- tra, uma vez mais, a inadequao das relaes sociais capitalistas ao desenvol- vimento histrico e inexorvel das for- as produtivas. Segundo uma opinio intermediria, seria o atraso da forma- o dos homens e das mentalidades pa- tronal e sindical que explicaria o blo- queio da reestruturao industrial.

    Porm, a prpria obra de Schumpeter oferece uma crtica dessas duas vises, em parte reducionistas: ele mesmo es- tendeu incessantemente o campo de sua anlise s transformaes institucionais e sociais que marcam a histria do capi- talismo (ver Capitalismo, Socialismo e Democracia), embora ele tenha prognos- ticado um enfraquecimento da inovao motivado pela socializao da funo empresarial.

    Ainda uma ltima corrente insiste no papel conjunto das inovaes econmi- cas e sociais na gnese de um crescimen- to cumulativo, tratando-as de maneira simtrica em relao s mudanas dire- tamente tecnolgicas. Para muitos mar- xistas (como E. Mandel), radicais (como D. M. Gordon, S. Bowles, Th. Weiss- kopf) ou institucionalistas (como C. Pe- rez), no h qualquer correspondncia estrita entre sistema tecnolgico e con- texto scio-institucional. Muito pelo con- trrio, qualquer sada para a crise pode ser bloqueada pelas contradies gera-

    das pelas mutaes tcnicas. Em corro- borao a essa tese, pode-se invocar in- meros exemplos histricos; as concluses apresentadas nos trabalhos dos autores do presente artigo vo, alis, neste sen- tido.

    Nesse particular, os seguidores de Schumpeter no chegaram a solucionar a ambigidade fundamental de sua obra: embora constituindo uma crtica da teo- ria do equilbrio geral, esta obra no logrou alcanar uma teorizao acabada (um paradigma) da evoluo da econo- mia capitalista. Ela definiu uma viso e uma problemtica mais do que um mo- delo e um conjunto de respostas precisas.

    Assim, a referncia contempornea ao economista vienense , ao mesmo tempo, onipresente e ambgua, posto que ela pode justificar tanto uma forma reno- vada de liberalismo (o mercado como mecanismo darwiniano de seleo dos empresrios inovadores), quanto um tipo de intervencionismo que se inscreve nu- ma lgica keynesiana retificada e enri- quecida pela considerao das estruturas produtivas e das mudanas tcnicas.

    Paradoxalmente, a prpria ambigi- dade da mensagem schumpeteriana con- tribui para seu poder de seduo junto a atores sociais bem diversos (dos filhos de maio de 1968, em busca de um mo- dernismo convivial, a uma nova raa de empresrios, passando por uma tecno- cracia do aparelho de Estado). Se, por um lado, problemas de mutaes tecno- lgicas inteiramente reais so evi- denciados, outros aspectos referentes organizao scio-poltica permanecem, no raro, na penumbra.

    Em realidade, necessrio constatar todavia que o neo-schumpeterismo define hoje uma das raras problemticas que conferem legitimidade e coerncia a uma reorientao das representaes e das polticas em um sentido eminentemente favorvel aos empresrios (no so eles, afinal, os nicos heris da economia?).

    No deixa de ser curioso que Schum- peter seja, hoje em dia, utilizado como arauto de um novo liberalismo; ele que, ao contrrio, temia a decadncia do ca- pitalismo e a transio para o socialismo, apesar de julg-las inelutveis. Benjamin Coriat vinculado ao Centre de Recherches en Sciences Sociales du Travail, na Frana; Robert Boyer pertence Universidade de Paris VII e ao CNRS/ CEPREMAP.

    Novos Estudos CEBRAP, So Paulo n. 12, pp. 42-47, jun. 85

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