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Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810) Tiago Luís Gil Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciência Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso Rio de Janeiro 2002

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Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira

(1760-1810)

Tiago Luís Gil Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciência Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso

Rio de Janeiro 2002

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Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810)

Tiago Luís Gil Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciência Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História.

Banca Examinadora: _____________________________________ Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso – Orientador Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________ Prof. Dr. Karl Martin Monsma Universidade Federal de São Carlos _____________________________________ Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________ Profª. Drª. Sheila de Castro Faria (suplente) Universidade Federal Fluminense _____________________________________ Profª. Drª. Maria de Fátima Gouvêa (suplente) Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2002

Em março de 1763 a vila de Rio Grande era invadida pelas tropas espanholas.

Em meio à confusão, um soldado (cujo nome ignoramos)

lembrou-se de salvar os livros da Provedoria da Fazenda Real.

Hoje estes livros encontram-se num Arquivo, à disposição dos pesquisadores,

graças à diligência daquele soldado. A este desconhecido dedicamos nosso trabalho.

AGRADECIMENTOS

Quem escreve uma dissertação é porta-voz de um número indeterminado

de pessoas, ainda que estas não tenham culpa pelos erros do pronunciamento. É

chegado o momento de fazer os devidos agradecimentos. O primeiro vai para o

grupo de trabalho coordenado pelo Prof. João Fragoso, junto ao Laboratório

Interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Ao professor João pela presença

constante e atenta ao longo destes dois anos. Esteve sempre disponível e

disposto para qualquer orientação, em todos os momentos. Sua inteligência

tornou este trabalho muito melhor. Ao Roberto Guedes e a Silvana, pela

amizade e auxílio acadêmico. Sem vocês não teria sido tão legal. À Cuca

Machado, pelos preciosos comentários aos textos e pela ajuda na identificação

de alguns sujeitos envolvidos em contrabandos. À Luciana Batista, pelas

discussões etílicas e acadêmicas, que poderiam ter sido mais freqüentes. À Célia

Muniz, a quem agradeço os comentários nas reuniões e fico devendo a visita. À

Daniela Barreto, que desertou para o IBGE, mas que deu boa contribuição ao

seu tempo. Ao Carlos Engemann, pelo companheirismo. À Martha Hameister o

agradecimento deve ser muito maior. Discutiu cotidianamente a pesquisa e

contribuiu permanentemente até a última hora. Valeu mesmo. Agradeço à ela

também pelo Miles Davis.

Aos professores da UFRJ: José Murilo de Carvalho, Carlos Gabriel

Guimarães e Monica Grin, pelas proveitosas discussões nas disciplinas. Um

agradecimento especial para o prof. Manolo, pela camaradagem e por aceitar

participar da banca.

Aos professores e amigos da UFRGS: Fábio Kuhn, Eduardo Neumann,

Silvia Petersen, Susana Bleil de Souza, Enrique Padrós e Luis Dario. Um saúdo

especial para o Paulo Terra e pro Mauro Messina.

Outras pessoas, com seu talento, também ajudaram na pesquisa. Em

Porto Alegre, Alessandra Gasparotto, Rodrigo Favreto e Jonas Moreira Vargas

levantaram muitos documentos e o Marcelo Vianna contribuiu com sua

sabedoria. Rodrigo Weimer e Fabrício Prado discutiram oportunamente o

trabalho e trocaram muitas informações. No Rio de Janeiro, Alexandre Vieira

deu uma grande ajuda nas transcrições mais difíceis.

Aos amigos mais distantes: ao Tufy Cairus, em York; à Professora Judith

Farbermann, em Quilmes.

Em Curitiba fica o agradecimento à Mara Barbosa e à profª Maria Luiza

Andreazza. Sua contribuição foi fundamental para o desenvolvimento deste

trabalho.

Em Manaus, para o amigo, professor e antropólogo Raimundo Nonato.

Em Florianópolis, para o viajero e camarada José Basini. Sempre

lembraremos da Feira de São Cristóvão.

Em Campinas, para nossa “colega de casa” Elisabete Leal que discutiu

muitas vezes o trabalho. Também para o prof. Karl Monsma, que nos franqueou

sua biblioteca e aceitou participar da banca. Para o César Kieling que nos

recebeu em sua casa quando preciso.

Para São Carlos, por dívida minha, vai o agradecimento à Carin e ao

Eduardo, que me receberam com carinho.

À Mirta, no Rio de Janeiro, e à Elvira em Porto Alegre, pelo

companheirismo e amizade.

Em Belém fica o agradecimento para o Durval de Souza, pela amizade e

ajuda nas horas difíceis.

Em Resende, aos amigos Tiago Bernardon e Manuela que participaram

com sua amizade.

Para minha querida amiga Flavia Miguel de Souza vai um agradecimento

especial. Participou desde a escolha do título deste trabalho até a última palavra.

Ao Paulista (Clevinho), Kátia, Marcelo, Adalberto, Rita e André, pela

presença sempre constante e pela enorme amizade. Tudo isso deu estímulo a

este trabalho.

À CAPES e à FAPERJ, por financiarem a pesquisa.

Para meu pai e minha mãe, que se esforçaram sempre por mim. Para

minha tia Ester que sempre me incentivou. Sem vocês não teria sido possível.

RESUMO

Este trabalho estuda a importância do comércio de contrabando nas fronteiras

do Rio Grande e do Rio Pardo, ponto de confluência entre os Impérios luso e

espanhol no sul da América, entre 1760 e 1810. Aponta para a existência de

redes de relacionamento, ancoradas em postos de governo, agindo como base de

sustentação do contrabando. Discute a questão da fronteira imperial,

problematiza as interpretações sobre o comércio ilícito e analisa as estratégias

desenvolvidas pelos contrabandistas.

Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810).

ÍNDICE Introdução...................................................................................................................................... 10

A historiografia............................................................................................................................ 12 Os “informantes” ......................................................................................................................... 15 A organização............................................................................................................................... 20

Capítulo 1 – Os embaraços da fronteira: guerreiros, peões e contrabandistas............... 21

A fronteira como um embaraço.................................................................................................... 23 Uma fronteira “Imperial”.................... .......................................................................... 27

Peões e guerreiros: formas de sobrevivência................................................................................ 35 A guerra. ....................................................................................................................... 36 A ação de Santa Bárbara. .............................................................................................. 37 São Martinho................................................................................................................. 38 A “escalada” de Santa Tecla........................................................................................... 43

O contrabando como desembaraço de uma sociedade................................................................. 47 A formação do rebanho.................................................................................................. 47 O custeio da guerra........................................................................................................ 49 Uma prática que perpassava toda a sociedade............................................................... 50

Capítulo 2 – Entre o justo e o certo: o pensamento sobre o comércio ilícito................... 53

O comércio ilícito segundo Sua Majestade................................................................................... 53 Alguns incidentes……………………………………………………………………............................... 55 Um mestre dos disfarces: Luís de Vasconcelos e Souza………………………....................... 64 O caso das vinte mil mulas…………………………………………………………............................. 74

O contrabando na interpretação dos vassalos.............................................................................. 76 O caso das vinte mil mulas – continuação……………………………………….......................... 76 Entre ambiciosos e belicosos: os vereadores de Viamão………………………...................... 78 O “monstro” da lagoa Mirim: Rafael Pinto Bandeira……………………………..................... 82 O entrosado: Antero José Ferreira de Brito………………………………………........................ 83 O forasteiro: o provedor Osório Vieira…………………………………………............................ 87 “O bom e único mercado”: Fernandes Pinheiro e o contrabando………………................. 90

Capítulo 3 – Os caminhos do mercado..................................................................................... 94

A venda do gado: mercados e dinâmicas antes do “contrabando”................................................ 94 O grande mercador……………………………………………………………….................................. 97

O início do contrabando………………………………………………………………......................................... 108 Os “fornecedores”.......................................................................................................... 109 “...aquellos semibárbaros colonos...”: os espanhóis da banda oriental.......................... 109 Os “infiéis” Minuanos…………………………………………………………………............................ 115 Outras notícias da Banda Oriental………………………………………………............................. 119

Capítulo 4 – A produção social da mercadoria....................................................................... 122

O bando: a “pedra filosofal” do comércio ilícito........................................................................... 122 A formação do bando……………………………………………................................................... 124

O passado como herança……………....…………………….....…............................... 124 As formas de cooptação……………………………………………………………............................... 127

“.os aplausos.”…………………………………………………………................................. 128 Negociando medos e expectativas: a acumulação “troglodita”........................ 130 “.sua numerosa parentela.”……………………………………..................................... 135 As contrapartidas de guerra………………………………………………........................ 140 ”Pois assim se mata?”: notas sobre a “proteção” negociada............................ 145 “.é o próprio que se apossa do terreno.”…………………………….......................... 149

As características do Bando………………………………………….…………................................ 152 Estratégias e artimanhas: os contrabandistas em ação……………………………................................ 159

Negócios certos e negócios malfadados.………………………………………….......................... 159 A produção social da mercadoria................................................................................................. 162

Capítulo 5 – Direituras diversas: o escoamento da “produção” e o Império................... 183

O escoamento da produção ......................................................................................................... 183 O trote das bestas……………………………………………………………………............................... 183 O negócios dos couros……………………………………………………………….............................. 187

Poder local e Império................................................................................................................... 195

Conclusão........................................................................................................................................ 201

Fontes Primárias........................................................................................................................... 203

Referências Bibliográficas................................................................................................ 208

INTRODUÇÃO

Tornar-se um criminoso pode parecer uma tarefa fácil. Ingressar no

mundo do crime, certamente não o é. Tentar entender, então, as regularidades

de uma transgressão, que bem pode ser chamada de “mercado”, torna-se uma

tarefa árdua.

Se a falta de fontes sobre um tema pode ser considerada um problema

para os historiadores, em nossa pesquisa preferimos entendê-la como uma

demonstração da competência dos contrabandistas ao ocultar suas ilícitas

transações. Nosso trabalho valeu-se de alguns pequenos e escassos deslizes que

nossos investigados cometeram ao longo de suas carreiras de negociantes.

Esta dissertação poderia tomar, muitas vezes, a feição de um relatório de

delegacia, onde estariam contidos os crimes de uma série de bandidos e

delinqüentes, não fossem estes alguns dos mais importantes homens daquela

terra. Podemos adiantar parte do serviço, informando que pouquíssimos destes

bandidos realmente foram detidos. Alguns chegaram mesmo a ocupar postos de

grande relevância, como o comando da fronteira e o governo do Rio Grande de

São Pedro. Rafael Pinto Bandeira, por exemplo, teve seus negócios investigados

por pelo menos quatro devassas, saindo ileso de todas, antes de tornar-se

governador pela segunda vez e de ser recebido pela Rainha.

Mais de duzentos anos depois o processo é reaberto. Desta vez não há a

preocupação em julgar ou incriminar, mas de perceber as relações entre os

acusados, e destes com o restante da sociedade. O cenário dos crimes era uma

região bastante ampla, que perpassava territórios lusos e espanhóis próximos ao

Rio da Prata. Isso englobava, pelo lado português, Viamão, Rio Pardo e Rio

Grande. Pelo lado espanhol, considerava a localidade de Cerro Largo e suas

11

adjacências, assim como as proximidades do Rio Cebollatí.1 O período vai de

1760, aproximadamente o momento em que se inicia o tipo específico de

contravenção que abordarmos, até cerca de 1810, quando as notícias deste

contrabando passam a ser menos freqüentes.

O contrabando era um negócio que ultrapassava as fronteiras Imperiais,

ainda que só tivesse sentido com a existência destas. Deste modo, buscamos

analisar as formas como se dava esta relação aparentemente contraditória, que

possuía um profundo sentido para os homens que a criaram.

A ilegalidade do oficio não era ignorada pelos contrabandistas. Mas a

forma de interpretar estas negociações variava o suficiente para garantir uma

ampla margem de ação aos negociantes. Examinamos como estas interpretações

contribuíram para criar uma legitimidade para o ilícito, de acordo com as

negociações entre os súditos e as Coroas Ibéricas. Ao trabalhar com um mercado

tido como clandestino, investigamos o quanto este estava articulado com as

estruturas mais típicas da sociedade que o reproduzia.

Por fim, atentamos para as ligações do trato ilícito com outros negócios

coloniais, a fim de perceber como uma economia de Antigo Regime2 se valia

também deste mercado em sua reprodução diária.

Em 1764 o rei de Portugal deliberou a proibição do comércio de mulas

entre os territórios lusos e espanhóis no sul da América. Com o passar do

tempo, outros produtos foram também proibidos, entre os quais o couro.

Todavia, a circulação destes produtos continuou, de forma diferente. A partir de

então, eram relacionamentos ancorados em importantes postos de governo,

envolvendo espanhóis, portugueses e indígenas minuanos, que garantiam a

circulação dos bens proibidos.

Era um grupo que envolvia sujeitos de todos os estratos da sociedade.

Peões, changadores, lavradores, negociantes, estancieiros, militares, oficiais da

1 Seria difícil apresentar dados demográficos confiáveis destas áreas, especialmente dos territórios sob

domínio espanhol, dos quais não temos estatísticas. A população do Rio Grande de São Pedro, em 1780, estaria próxima de vinte mil pessoas, o que indica que era um espaço parcamente povoado em comparação com outras áreas coloniais como o Rio de Janeiro, que na época somava cerca de duzentas e quinze mil pessoas. Cf. IBGE. Estatísticas Históricas do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1986. pg. 19

2 Cf. FRAGOSO, João Luís Ribeiro & FLORENTINO, Manolo Garcia. Arcaísmo como Projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro 1790-1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

12

Coroa, todos articulados em uma rede permeada por relações de reciprocidade e

parentesco.

Durante o período que tomamos, o negócio ilícito foi de um modo ou de

outro, tolerado pelas autoridades lusas, que sempre estiveram informadas de

sua ocorrência. Não se tratava de um simples descaso. Tal negócio, pela sua

saliência econômica e social, era praticado por alguns dos sujeitos mais

relevantes, não só no governo local, como também na defesa dos territórios.

Eram, grosso modo, concessões que a Coroa acabava fazendo, diante de sua

incapacidade de prover militarmente seus domínios e mesmo de reprimir os

tratos ilícitos. Era um território instável, sujeito à ocupação dos espanhóis.

Falamos da importância econômica e social do contrabando não apenas

porque fosse um negócio vantajoso, que trouxesse benefícios materiais, mas

também porque, através dele, a rede de relacionamentos se mantinha e se

multiplicava, agregando qualidades diferentes de homens ao grupo.

Em suma, o comércio de contrabando era marcado por características

típicas de uma economia de Antigo Regime, se mantendo através de redes de

relacionamentos associadas aos postos de controle políticos locais. Era, enfim,

praticado por algumas das “melhores famílias da terra”, descendentes dos

conquistadores que ainda mantinham-se como elite do lugar. O contrabando

contribuía na manutenção daquela sociedade e o fazia não apenas engrossando

os cabedais daquelas famílias, mas servindo de ligação entre os mais diversos

estratos sociais, permitindo que poucos tivessem acesso a ganhos e

relacionamentos vedados a maioria da população, reproduzindo assim a

exclusão e a hierarquia social típicas daquele mundo.

A historiografia

Disse Michelangelo, certa vez, que a escultura que talhara não fora obra

sua, que ela sempre estivera naquele lugar, no coração da pedra, e lhe coubera

apenas retirar a matéria que a encobria. De certo modo, o pensamento dos

historiadores nacionalistas não foi muito diferente. Para eles a nação estava no

pensamento de cada homem do passado. Nesta visão, a fronteira sempre esteve

demarcada.

Um tema como contrabando no Rio da Prata sempre foi deixado de lado,

13

silenciado na medida em que poderia revelar outras relações entre portugueses

e espanhóis além dos conflitos e disputas. Da mesma forma, uma historiografia

preocupada em resgatar os grandes heróis fundadores da nação não poderia

admitir em seu panteão sujeitos com a mácula do comércio ilícito.

É provável que a primeira obra que considera a importância dos negócios

com o Prata na economia colonial do Brasil seja a de Roberto Simonsen,

História Econômica do Brasil.3 Herdeiros desta obra são os trabalhos de

Alfredo Ellis Junior4, Mafalda Zemella5 e especialmente Alice Canabrava.6 Todos

estes trabalhos seguem uma mesma linha de análise, atentando para as trocas

do Prata com a colônia lusitana na América. De um modo geral, esta influência

platina seria reivindicada como uma das marcas do regionalismo paulista,

presente no momento de elaboração destas obras.

Boa parte da historiografia sul-rio-grandense seguiu uma vertente muito

mais nacionalista, reivindicando uma fronteira estável e uma “brasilidade”

incontestável. Mais do que ninguém, eles acreditavam que a fronteira sempre

estivera ali. O tempo só teria retirado as aparas. Um dos poucos trabalhos que

trata sobre o contrabando é o de Guilhermino Cesar, O contrabando no sul do

Brasil,7 que aborda o comércio ilícito ao longo de duzentos anos, sem explicá-lo,

tratando do problema de modo superficial e sem historicidade.

Nos últimos trinta anos, com a profissionalização da atividade do

historiador no Brasil, surgiram interessantes contribuições. Obras como a de

Helen Osório8, Augusto da Silva9 e Martha Hameister10 que abordam

3 SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1937. 4 ELLIS JUNIOR, Alfredo. O Ciclo do Muar. Revista de História. USP: São Paulo, vol. 1, n. 1, 1950. 5 ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:

Hucitec-Edusp, 1990. 6 CANABRAVA, Alice P. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte/São

Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1984. 7 CESAR, Guilhermino. O contrabando no sul do Brasil. Caxias do Sul: UCS, 1978. 8 OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura

Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: PPGHIS-UFF, 1999. (tese de doutoramento Inédita).

9 SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999. (Dissertação de Mestrado Inédita).

10 HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita).

14

tangencialmente o contrabando, já que têm outros objetos em mente. O recente

trabalho de Fabrício Prado percebe no contrabando realizado em Sacramento

um importante elemento dinamizador das redes de relacionamentos,

envolvendo oficiais de ambos os impérios ibéricos.11

Por seu turno, a historiografia argentina já aborda o tema há muito

tempo. No século XIX, em meio à construção da idéia de “nação” argentina,

Bartolomé Mitre mencionava em suas obras o contrabando com os

portugueses12 e o fazia justamente para demonstrar que a única troca possível

com os lusos era a criminosa. A historiografia argentina tendeu a seguir a

postura nacionalista de Mitre até recentemente. Grande exceção é a obra de

Carlos Sempat Assadourian, que apresenta um cenário onde as trocas regionais

são freqüentes e complexas.13 Mais recentemente, o trabalho de Zacharias

Moutoukias vem explorando com primor as estratégias utilizadas pelas elites

espanholas no contrabando, a partir de estudos de redes de relacionamentos

vinculadas ao Império espanhol e com desdobramentos em vários espaços

coloniais.14

Cabe uma nota de reconhecimento. Nosso trabalho não seria possível se

não fosse por três importantes historiadores, pouco reconhecidos nos dias

atuais, que com sua inteligência produziram textos refinados, valendo-se de

muita observação e sensibilidade. Nos referimos a Aurélio Porto15, Geraldo José

Pauwels16 e Emilio Coni17. Poderíamos apontar certas insuficiências de seus

11 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto

Alegre: F. P. Prado, 2002. 12 MITRE, Bartolomé. Ensayos Historicos. Buenos Aires: La Cultura Argentina, 1918. 13 SEMPAT ASSADOURIAN, Carlos. El Sistema de la economía colonial. Mercado Interno, regiones

y espacio económico. Lima: IEP, 1982. 14 MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y control colonial en el siglo XVII - Buenos Aires, el

Atlantico y el espacio peruano. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1987. e MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires en el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992).

15 PORTO, Aurélio. Fronteira do Rio Pardo: penetração e fixação de povoadores. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. IX, (1929). p. 49.; PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. e PORTO, Aurélio. Noticia sobre o Visconde de São Leopoldo. IN: PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Petrópolis: Vozes, v. 1978.

16 PAUWELS, Geraldo José. Contribuição para o estudo dos conceitos de "limite" e "fronteira". Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. (s.d.). p.

17 CONI, Emilio. Historia de las vaquerias de Rio de la Plata 1555-1750. Buenos Aires: Devenir, 1956. e CONI, Emilio. El Gaucho. Argentina, Brasil, Uruguai. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1942.

15

trabalhos, além de discordar de seus compromissos sociais. Mas não se pode

negar que fizeram trabalhos magníficos. Com mais fôlego, sem dúvida, que

muitos de seus críticos.

Os “informantes” Ainda que os contrabandistas que estudamos estivessem amparados por

articulações sociais sólidas, eles evidentemente não tiveram a menor

preocupação de registrar seus negócios ilícitos. Uma boa forma de recuperar

suas atividades e trajetórias foi a partir de denúncias. Estas se davam em

situações extremas, quando nossos investigados extrapolavam os limites

socialmente aceitos de atuação. Diante das denúncias, as autoridades lusas

realizaram algumas investigações que foram analisadas neste trabalho. A partir

destes documentos elaboramos uma lista de todos os envolvidos com as

acusações que lhes foram imputadas. Primamos por analisar as trajetórias dos

homens que se dedicaram ao comércio ilícito, buscando compreender as

estruturas que estavam subjacentes àquele mercado.

Demos prioridade ao estudo de membros da elite. Fizemos esta opção

não apenas por serem casos bem documentos, mas especialmente por que

através deste procedimento pudemos observar melhor a organização e a

hierarquia daquela sociedade, assim como outras características que lhe eram

inerentes.

Isto feito, fomos buscar por estes sujeitos em uma grande variedade de

documentos, tais como registros eclesiais, correspondências oficiais, listas de

moradores, relatos de cronistas, relatórios, inventários, testamentos, mapas,

livros de contabilidade, entre outras fontes possíveis, que foram cruzadas nos

mais diferente sentidos. Realizamos, assim, uma investigação onomástica,

utilizando o “nome” como “fio condutor”18 da pesquisa.

Em função da dificuldade que tivemos no acesso a documentos

produzidos nos domínios espanhóis, nosso trabalho acabou privilegiando a

participação de portugueses no trato ilícito, ficando sub-registrada a ação dos

súditos espanhóis.

18 GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. IN: GINZBURG,

Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: DIFEL/Bertrand Brasil, 1989. pg. 175.

16

Os cronistas Utilizamos quatro relatos de indivíduos que estiveram por aquelas

paragens. Tivemos o cuidado de contrapor estes cronistas com outros

documentos e relatos, além de consultar uma historiografia recente e crítica,

que abordou temas descritos por eles.

O primeiro cronista que utilizamos foi Concolorcorvo19, que percorreu o

caminho de Montevideo a Lima, passando por Buenos Aires e pelas principais

localidades do “camino Real” por volta de 1770. Utilizamos este autor para falar

da “Banda Oriental”, territórios espanhóis a leste do Rio da Prata.

Outra obra que utilizamos foram os diários de um demarcador de limites,

o oficial espanhol Andrés de Oyarvide, que anotou minuciosamente suas

andanças nos trabalhos de delimitação da fronteira na década de 1780. Este

cronista fez importantes observações sobre o contrabando, relatando não

apenas indicando os lugares onde tal negócio se realizava, mas apontando

alguns dos interessados.20

Textos de outros dois demarcadores também foram de grande valia: José

de Saldanha e Félix de Azara. O diário do astrônomo português José de

Saldanha, escrito também na década de 1780, fazia preciosas observações sobre

os indígenas minuano.21 De Azara utilizamos a “Memória Rural do Rio da

Prata”, escrita no início do século XIX. Neste documento, além de fazer

observações sobre o contrabando, Azara chega a propor sua legalização.22

Os oficiais da coroa Utilizamos ao longo do trabalho vários documentos oficiais, produzidos,

em sua maioria por autoridades como o Vice-rei do Brasil, Luis de Vasconcelos,

o Provedor da Fazenda do Rio Grande de São Pedro, Inácio Osório Vieira, o

19 CONCOLORCORVO. (Don Calixto Bustamante Carlos) El Lazarillo de Ciegos Caminantes. Desde

Buenos Aires hasta Lima – 1773. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1942. 20 OYARVIDE, Andrés de. Diario de demarcación. IN: CALVO, Carlos. Recueil Historique Complet

des traités. Paris, 1866. 21 SALDANHA, José de. Diário Resumido, e Histórico ou Relação Geográfica das Marchas e

Observações Astronômicas, com Algumas Notas sobre a História Natural, do País. IN: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vol. LI. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde – Serviço Gráfico, 1938.

22 AZARA, Félix de. Memória Rural do Rio da Prata. IN: FREITAS, Décio. O Capitalismo Pastoril. Porto Alegre: EST - SLB, 1980.

17

governador do Rio Grande, Marcelino de Figueiredo, e um emissário especial do

Marquês do Lavradio (Vice-rei), Francisco José da Rocha. Ponto comum entre

todos estes é a sua avaliação crítica do contrabando.

Os revoltados Como já dissemos, documento especial para perceber o funcionamento

do contrabando é a denúncia. Trabalhamos com duas denúncias muito

circunstanciadas, que deram base para a instauração de “devassas”.

A primeira denúncia partiu de uma carta anônima, chamada “Capítulos

contra Rafael Pinto Bandeira”, que continha várias acusações, especialmente

sobre contrabandos e abusos de poder do Coronel Rafael Pinto Bandeira. Esta

carta foi enviada ao Vice-rei Luis de Vasconcelos em 1783, e uma investigação

para apurá-la foi realizada em 1784.23

Outra denúncia foi feita em 1787 pelo Capitão de Ordenanças Manuel

José de Alencastre. Este não apenas assumiu a autoria das acusações, como teve

que retirar-se para o Rio de Janeiro para evitar perseguições. Segundo o

denunciante, tudo começou com uma briga entre ele e um cunhado do Coronel

Rafael Pinto Bandeira, Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, em função de

uma rês desgarrada do rebanho de Alencastre que fora parar no “rodeio” de

Custódio. Com o desenrolar dos acontecimentos, Custódio Ferreira acabou

prendendo Alencastre, tendo, inclusive, o ameaçado de retirar suas distinções

militares e seu uniforme de Capitão “...com que Sua Majestade foi servido

honrar o suplicante [Manuel José de Alencastre] e o distinguir da plebe...”.24

Alencastre, indignado, redigiu uma enorme carta-denúncia ao Vice-rei,

delatando não apenas os problemas que teve com Custódio, mas todo tipo de

abuso que este e seus aliados (todos vinculados a Rafael Pinto Bandeira)

cometiam naquela fronteira. Como decorrência desta denúncia, foi feita uma

grande “devassa” para apurar aqueles pontos.

As testemunhas Ao longo do período investigado, encontramos seis devassas, sendo que

23 “Capítulos contra Rafael Pinto Bandeira”. Cód. 104. Vol. 06. pg 143. Arquivo Nacional. 24 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.

18

destas, quatro foram examinadas com cuidado, por envolverem questões mais

próximas de nosso objeto.

A primeira destas é relativa à entrega da vila de Rio Grande aos

espanhóis, feita em 1764, e menciona alguns de nossos investigados.25 A segunda

devassa, feita em 1773, tratava exclusivamente sobre contrabandos. A partir

desta fonte, construímos um banco de dados que considerava os envolvidos, os

lugares dos contrabandos, a quantidade e qualidade dos animais e as demais

circunstâncias relatadas. Nesta devassa, testemunharam quinze pessoas entre

militares, criadores e lavradores. É difícil apontar os critérios de escolha das

testemunhas, pois era um grupo bastante heterogêneo.

Em 1779 alguns desentendimentos entre o governador Marcelino de

Figueiredo e o Coronel Rafael Pinto Bandeira acabaram gerando uma outra

investigação, que somou quarenta e seis testemunhas. Desta terceira devassa

abordamos apenas aspectos pontuais, sem esgotá-la, já que privilegiava

questões militares. Como decorrência desta investigação de Marcelino de

Figueiredo, foi realizada uma quarta devassa, um “Conselho de Guerra”, espécie

de tribunal militar.26 Este documento contém informações preciosas sobre

vários envolvidos no contrabando.

A partir dos “Capítulos contra Rafael Pinto Bandeira” foi feita em 1784

uma quinta investigação. Segundo seu organizador, o governador Sebastião

Cabral da Câmara, o critério de escolha das testemunhas privilegiou pessoas de

boa qualidade, e não da “...classe inferior da Republica...”.27 Nesta ocasião

foram chamadas nove pessoas, sendo dois negociantes, um oficial da

administração lusa e seis militares.

Em 1787, uma nova devassa foi feita a partir da já mencionada denúncia

de Manuel José de Alencastre.28 Foram ao todo vinte e uma testemunhas. No

primeiro dia, foram quatro depoimentos, todos de militares das tropas regulares

de Sua Majestade. Mais quatro militares depuseram em dias posteriores. Depois

25 Devassa sobre a entrega da Villa do Rio Grande às tropas castelhanas. – 1764. Rio Grande: Biblioteca

Riograndense,1937. 26 HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O Antigo Regime. IN: Mattoso, José. História de Portugal.

Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. pg. 162. 27 Cód. 104. Vol. 06. pg. 137. Arquivo Nacional. 28 Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo Nacional

19

destes, foram os “negociantes”, que testemunharam no mesmo dia, 22 de

novembro de 1787. Logo após, foi a vez dos “lavradores” e “estancieiros” do

“Caí” e “Sinos”. Foram oito depoimentos destes no mesmo dia, 24 de novembro.

Foram chamados ainda um condutor de canoas, que havia sido referido na

devassa, um tenente de “Dragões” e um oficial da Fazenda Real.

Se os militares trataram principalmente de violências contra soldados e

de contrabandos, os lavradores do “Cai” e “Sinos” trataram de ratificar as

acusações feitas a Custódio Ferreira, que era comandante do distrito do “Caí”.

Os negociantes, por sua vez, falaram principalmente sobre algumas mazelas que

tiveram em negócios com Rafael Pinto Bandeira, detalhando informações sobre

contrabandos. Notamos que tal devassa fora minuciosamente dividida em três

partes, sendo que cada segmento do processo envolveu grupos de testemunhas

distintos que eram chamados a depor separadamente, prestando informações

apenas no que a eles era referido de forma específica.

Um ponto importante a ser ressaltado é a metodologia que utilizamos

para trabalhar com as “devassas”. Estas eram investigações que abrangiam

grande número de testemunhas, e se pautavam especialmente pela realização de

interrogatórios sobre um tema pontual. Os depoimentos são em si um conjunto

inconsistente pois as impressões de cada informante são bastante diversificadas,

e eram adaptadas por um cânone discursivo criado pelo escrivão a partir de

questões previamente formuladas e com as respostas basicamente já elaboradas.

Analisamos tais documentos como um conjunto único, passível de comparação,

contraste e análise geral, cruzando os testemunhos e suas contradições, bem

como as pequenas diferenças nas respostas.

Algumas histórias só se tornam inteligíveis quando contrastamos todas as

versões dadas sobre elas. Além de considerar quem eram os autores dos

depoimentos, consideramos também suas respostas tomando-as como

tentativas (às vezes vãs) de defender um ponto de vista. Este último aspecto fica

um tanto frustrado pelo filtro imposto pelo escrivão, que tendia a padronizar as

respostas. Há, sem dúvida, o risco de perder a noção de processo ao tomar as

devassas, que são de tempos diferentes, como um único conjunto. Por isso,

examinamos cada qual ao seu tempo, buscando perceber as transformações

ocorridas ao longo do período estudado.

20

A organização O primeiro capítulo, por invocação “Os embaraços da fronteira: guerreiros,

peões e contrabandistas”, trata da fronteira como algo pertinente ao estudo do

contrabando. Fala das opções espaciais que foram tomadas, dando especial

ênfase para a noção de “fronteira imperial”, tal como será definida. Também se

ocupa dos conflitos bélicos entre lusos e espanhóis, e das relações destes

embates com o comércio ilícito. Destaca, por fim, a importância do contrabando

para aquela sociedade.

O segundo capítulo, chamado “Entre o justo e o certo: o pensamento sobre o

comércio ilícito”, pretende discutir as diferentes interpretações acerca do

contrabando, o significado prático destas interpretações, e sua importância

social.

No terceiro capítulo, “Os caminhos do mercado” serão abordados os

antecedentes do contrabando, especialmente no que tange ao comércio de gado.

Destaca-se a figura do “grande mercador” como dinamizador deste comércio.

O quarto capítulo, que chamamos “A ‘produção’ social da mercadoria”, trata

do “bando”, organização social que dava suporte ao comércio ilícito e se valia

deste. Analisa também como o “bando” atuava no comércio clandestino, dando

especial atenção para as articulações sociais.

O quinto capítulo, designado “Direituras diversas: o escoamento da

‘produção’ e o Império” apreende as ligações dos contrabandistas com outros

espaços coloniais, no escoamento das mercadorias e nas relações com o Império

Luso destacando o negócio de mulas para Curitiba e Sorocaba, e o de couros

para o Rio de Janeiro.

Acreditamos poder contribuir para ampliar o quadro de estudos da

economia colonial. Através dos indícios que nos foram deixados por aqueles

homens, pudemos perceber o quão complexa era a sua sociedade.

CAPÍTULO 1

OS EMBARAÇOS DA FRONTEIRA: GUERREIROS, PEÕES E CONTRABANDISTAS

Fronteira é uma destas palavras que se prestam para uma série de

desígnios. Além de polissêmica, a palavra possui alguma difusão entre o senso

comum, que trata de a definir como algo estático e formal. Também entre os

estudiosos, o conceito já foi desenvolvido e trabalhado inúmeras vezes, sob os

mais diferentes olhares e circunstâncias.1 Diante de tudo isso, seria muito

conveniente afastar-se, em benefício próprio, de qualquer discussão que se

1 ZUSMAN, Perla. ¿Terra Australis - "Res Nullius"? El Avance De La Frontera Colonial Hispánica En

La Patagonia (1778-1784). Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. v. 45, (1999). ZIENTARA, Benedikt. Fronteira. IN: EINAULDI, ENCICLOPEDIA. Estado e Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, v. 14. 1989. VERA, Francisco Escamilla. Las fronteras conceptuales de un debate: el significado en Norteamérica del término "Frontier". Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. v. 164, (1999). TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American History. New York: Henry Holt, 1958. RIBEIRO, Júlio Cézar & GONÇALVES, Marcelino Andrade. Região: uma busca conceitual pelo viés da contextualização histórico-espacial da sociedade. Terra Livre. v. 17, (2001). RATZEL, Frederick. As Raças Humanas IN: RATZEL. Geografia. São Paulo: Ática, 1990. PAUWELS, Geraldo José. Contribuição para o estudo dos conceitos de "limite" e "fronteira". Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. (s.d.). OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: - PPGHIS/UFF, 1999. (tese de doutoramento Inédita). NEUMANN, Eduardo. A fronteira tripartida: índios, espanhóis e lusitanos na formação do Continente do Rio Grande. XXI Simpósio Nacional da ANPUH. Niterói. 2001. KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento. Estudos Ibero-americanos. vXXV. (1999). HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HEVILLA, María Cristina. El Estudio de la Frontera En América. Una aproximacion bibliografica. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. v. 125, (1998). GOMES, Flávio dos Santos & QUEIROZ, Jonas Marçal de. Entre fronteiras e limites: identidades e espaços transnacionais na Guiana Brasileira - séculos XVIII e XIX. Estudos Ibero-Americanos. v. XXVIII, 1 (2002). p. 21-50. GOMES, Flávio dos Santos & NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. Outras paisagens coloniais: notas sobre desertores militares na Amazônia Setecentista. IN: Nas Terras do Cabo Norte. Fronteiras, colonização e escravidão na Guiana Brasileira. Séculos XVIII-XIX. Belém: NAEA/UFPA, v. 1999. GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ESCAMILLA, Francisco. El significado del término "frontera". Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. v. 140, (1998). SANTOS, Milton. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: HUCITEC, 1990. PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto Alegre: F. P. Prado, 2002.

22

remeta a este problema. Todavia, nossa opção não foi pela conveniência.

A questão da fronteira é fundamental para se entender o contrabando.

Não apenas para recolocar o problema diante de tudo o que já foi dito, mas

também para refinar tal conceito situando-o no tempo e no espaço que

propomos. O que chamamos de fronteira aqui é referente a uma região. É nesta

região que se desenvolvem as tramas que estudamos, que compreendem

conflitos, negócios, meios de sobrevivência e outros relacionamentos. Por outro

lado, ao propor uma definição de fronteira, não deixamos de lado as noções

específicas do período que tomamos. Aqueles homens, que viveram a segunda

metade do século XVIII, possuíam referências espaciais distintas, muito

orientadas por seus relacionamentos e experiências.

Antes de prosseguir, são necessárias algumas ressalvas. Ao construir o

“cenário” onde se desenrola a “trama”, elencamos apenas elementos que

estavam diretamente vinculados à experiência daqueles sujeitos que

identificamos como contrabandistas. Isso significou a exclusão de uma

infinidade de outros problemas, que não serão mencionados aqui. Nossa

restrição acabou privilegiando três pontos que nos pareceram cruciais no dia-a-

dia daqueles homens: a guerra, o trabalho e o próprio comércio ilícito. Estes três

elementos estavam, por sua vez, profundamente articulados a partir de relações

de parentesco e reciprocidade, geradas e reproduzidas entre aqueles sujeitos.

Não temos dúvida que, diante destes problemas, estes homens tinham a sua

própria noção de fronteira e sua forma de jogar com ela. Pedimos ao leitor que

faça um esforço para desconsiderar a idéia de fronteira nacional, que é própria

dos dias atuais. A idéia de nação não faz o menor sentido para os homens que

estudamos, sendo uma criação do século XIX.2

2 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del

nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

23

A fronteira como um embaraço Mesmo no vocabulário dos homens do século XVIII, inclusive entre

aqueles que estamos estudando, a palavra fronteira era polissêmica. Das várias

referências que colhemos de seu uso na documentação, ela apresenta pelo

menos dois significados muito visíveis: o primeiro é de uma área que engloba as

localidades próximas aos territórios vizinhos e, portanto, passíveis de invasão.

Esta noção variou mesmo no curto período que delimitamos, pois o território

em questão foi parcialmente invadido em 1763. Neste momento, então, eram as

localidades de Viamão e Rio Pardo, e suas adjacências, que correspondiam à

fronteira.

O outro significado, mais utilizado depois da retomada lusa, pós-1777,

diz respeito a áreas específicas, chamadas de “fronteira do Rio Grande” e

“fronteira do Rio Pardo”. Designava, em suma, uma espécie de “corredor”

comum de passagem entre os territórios espanhóis portugueses. Estes

“corredores” eram espaços privilegiados para a ação dos contrabandistas.

A fronteira, num sentido mais amplo, definida como os territórios

passíveis de invasão do inimigo (espanhóis, no caso) foi uma expressão utilizada

certamente entre 1771 e 1808, pelas indicações que temos. Ela se apresenta,

algumas vezes, como sinônimo da delimitação administrativa chamada

“Capitania do Rio Grande de São Pedro”, mas profundamente carregada de

significados. Seu uso está sempre associado a um discurso de ameaça, de

contínua tensão frente ao perigo que representavam os espanhóis vizinhos.

As primeiras referências claras que temos do uso deste termo remontam

a 1771, quando a Câmara de Viamão escreveu várias cartas ao Rei. Nelas, se

referiam ao “...Governador desta Fronteira...”, aos “...povoadores desta pobre

fronteira...” , os “...moradores desta fronteira...” e aos “...pobres desta

fronteira...”, todos como potenciais vítimas da circunstância de serem vizinhos

de um inimigo tão ameaçador aos interesses lusos.3 Poderiam falar na “capitania

do Rio Grande de São Pedro”, mas optaram pelo termo fronteira. Neste sentido,

trata-se de uma opção retórica bastante saliente, com o objetivo de demonstrar

os riscos que corriam aqueles súditos como parte do Império Luso. Tinham lá

3 AHU-RS. Cx. 2. Docs. 168, 170, 173.

24

seus motivos. Ao escreverem aquelas linhas, a vila de Rio Grande estava sitiada

pelos espanhóis. Era um problema bastante concreto.

Assim como aqueles vereadores, também nós optamos por utilizar o

termo fronteira para designar aquela região que abrangia Rio Pardo, Viamão e

Rio Grande (esta última localidade, somente antes de 1763 e após 1776, período

de ocupação espanhola) e suas adjacências. Tomamos este caminho por várias

razões. Em primeiro lugar porque era justamente o fato de ser uma região

próxima a territórios de outro império, o que conferia sentido ao “contrabando”

e aos conflitos militares, que eram, como já dissemos, elementos que faziam

parte da vida dos sujeitos que investigamos. Também é neste espaço que se dava

o processo de transformação do contrabando em mercadoria, como veremos

adiante.

Seria uma abordagem demasiadamente unilateral (e ingênua diante das

fontes) se considerássemos apenas o lado português do problema. Caberia,

neste sentido, observar os territórios espanhóis próximos àquelas povoações

lusas citadas. Estes territórios sob domínios de Espanha também estavam

ameaçados pelo cômputo de conquista do Império Luso, e eram da mesma

forma, permeados pelo negócio ilícito. Deste modo, há uma ampla região, com

características semelhantes (seja a ameaça da invasão, a manutenção diária de

certo contrabando e as redes de relacionamentos) que ultrapassa os domínios de

ambos impérios ibéricos e que tem profunda articulação.

Havia também uma definição mais restrita de fronteira, que dizia respeito a

especificamente duas áreas próximas às localidades de Rio Grande e Rio Pardo. São

as expressões “fronteira do Rio Grande” e “fronteira do Rio Pardo”. Estas

utilizações eram muito freqüentes, e se consagraram após a retomada de Rio

Grande pelos lusos em 1777.

A primeira referência que temos do uso “fronteira do Rio Pardo” é de um

documento de 1768, quando o tropeiro Manuel Munhoz tentou por ela passar com

alguns animais e foi barrado por alegação de andar com contrabando.4 Também se

referia a ela o astrônomo de Sua Majestade, o demarcador José de Saldanha,

quando falava das contínuas visitas que os índios minuano faziam àquela fronteira.5

4 F1243, 153, 153v. AHRS. 5 SALDANHA. Op cit.

25

FIGURA 1

26

A “fronteira do Rio Grande” só é mencionada, na documentação que

utilizamos, após a reconquista lusa da vila de mesmo nome. Tal expressão era

muito freqüente em depoimentos de devassas, devido a sua utilização corrente,

especialmente entre os anos de 1784 e 1787.6 Da mesma forma, o provedor da

Fazenda usou esta definição em 1787, quando falava dos contrabandos que por

lá passavam.

Uma carta ao Vice-rei, escrita em 1784 pelo então governador do Rio

Grande, Rafael Pinto Bandeira, indica a noção destas duas fronteiras como

corredores de passagem, inclusive de contrabandos. Pinto Bandeira dizia que

tanto na fronteira do Rio Grande, como na do Rio Pardo, havia o comércio

ilícito, no qual espanhóis introduziam seus animais nos territórios de Sua

Majestade Fidelíssima. Não obstante seu zelo, Rafael Pinto Bandeira era um dos

que mais se beneficiava de tal comércio.7

Outra carta escrita ao Vice-rei, desta vez pelo provedor da Fazenda Real,

Inácio Osório Vieira, falava que a provedoria ficava muito distante “...das duas

fronteiras...”, o que demonstra o quanto era comum a noção de que havia dois

corredores de acesso junto aos domínios espanhóis, por onde circulavam

homens e mercadorias.8

Estes corredores de circulação também abrigavam a maior parte das

guardas de repressão ao contrabando e defesa do território. Por via lacustre ou

terrestre, havia um relativo controle destas passagens. E quando dizemos

“relativo”, não queremos dizer que era pouco ou precário. Não era o controle

“possível”, mas o “conveniente”. Era, a seu modo, efetivo, mas permitia fugas,

seja sob forma de suborno ou através de redes de relacionamento existentes

entre os contrabandistas e os oficiais encarregados, quando não eram estes os

mesmos sujeitos. Mais do que relativo, este controle era relacional, possuindo

um caráter bem marcante, que é o de existir para uns, mas não para todos. As

articulações sociais serviam de passaporte.

Nestas fronteiras havia também uma grande quantidade de

6 Depoimentos de Antonio José Feijó, Antonio Pinto da Fontoura. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol 09.

pg. 327. Arquivo Nacional. Depoimentos de José Antunes da Porciúncula e Francisco de Oliveira Dias. Investigação de 1784. Cód. 104. Vol 06. pg. 137. Arquivo Nacional.

7 Códice 104. Vol. 06. pg. 122. 8 Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional.

27

estabelecimentos produtivos, como estâncias e lavouras. O próprio Rafael Pinto

Bandeira possuía uma estância na “fronteira do Rio Grande”, chamada “do

Pavão”.9 Estes eram os cenários mais comuns do comércio ilícito, especialmente

porque era nestas fronteiras que o contrabando começava a transformar-se,

através da ação humana, em mercadoria comercializável.

Uma fronteira “Imperial”. Tomamos as localidades de Viamão, Rio Grande, Rio Pardo, Cerro Largo

e as proximidades do Rio Cebollatí como uma fronteira porque fizemos uma

opção clara pelos aspectos relacionados à guerra e ao controle comercial. Estes

dois elementos estão indissociavelmente ligados a presença de Impérios nesta

região, no caso, Portugal e Espanha. Trata-se, neste sentido, de uma fronteira

que chamaremos de “Imperial”.

Uma análise de longa duração nos revela que os conflitos entre lusos e

espanhóis no Rio da Prata eram estruturais àquelas sociedades que habitavam

as áreas de conflito. Eles iniciaram com a fundação de Sacramento em 168010 e

se manifestaram de modo continuado e cumulativo durante todo o século XVIII

e inícios do século XIX. Nos primeiros anos da década de 1760 vamos perceber

um acirramento desta tensão. Neste momento aconteceu o ataque espanhol a

territórios portugueses, que se iniciou em 1762. Daí até 1777 ocorrem derrotas e

vitórias de ambos os lados, que acabaram com a reconquista lusa dos territórios

perdidos. De certo modo, o século XIX ainda ficaria muito marcado por estes

conflitos.11

Também nos primeiros anos da década de 1760 passa a ser considerado

contrabando todo o negócio de mulas e “machos” existentes entre os territórios

lusos e espanhóis na América.12 Mesmo com tal proibição, verificamos a

continuidade deste comércio, que se reproduz até o final do século XVIII.

9 07. 02. 1425 e 07. 02. 1441. Mapas do Arquivo do Exército e depoimento de Antonio Pinto da Fontoura.

Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo Nacional. 10 Alguns autores proporiam que tais conflitos remontariam aos primeiros anos que se seguiram ao fim da

união ibérica. Um exemplo é ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia da Letras, 2000. Todavia, são os problemas gerados a partir de Sacramento que têm ligação direta e conseqüências mais imediatas para nosso problema.

11 PAULA CIDADE, F. de. Lutas, ao sul do Brasil, com os espanhóis e seus descendentes (1680-1828). Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1948.

12 F1243. 5. AHRS.

28

FIGURA 2

29

Percebemos que o comércio ilícito entre portugueses e espanhóis ocorre

ao mesmo tempo em que seus impérios estão em guerra. Esta é apenas uma,

frente a muitas outras características das relações estabelecidas entre lusos e

espanhóis em tempo de guerra. Kühn percebeu através dos registros de batismo

e casamentos de Viamão, nos domínios portugueses, uma grande quantidade de

uniões matrimoniais e de compadrio entre lusos e hispânicos durante o período

da invasão espanhola em Rio Grande.13

Isto nos faz observar que criar laços socioeconômicos e guerrear

simultaneamente com os mesmos agentes, era algo possível para estes homens.

Mais do que possível, algo desejado. Por um lado, a guerra significava, além das

honras, possibilidades de mercês e lucros com o butim. Da mesma forma,

manter negócios e laços com os “castelhanos”, mesmo em tempo de paz, era

algo muito proveitoso. Em tempo de guerra os animais escasseavam,14 e tais

negócios tornavam-se ainda mais interessantes.

Esta situação de simultaneidade de conflito e relacionamentos com os

mesmos agentes já foi percebida para outras regiões coloniais, que eram

também fronteiras. Na Amazônia, durante a maior parte do período colonial,

houve conflitos intensos e disputas territoriais entre portugueses e franceses.

Questões semelhantes com a fronteira platina, como deserções, contrabando,

entre outros negócios, se davam paralelamente aos conflitos dos Impérios. Da

mesma forma, muitas destas relações eram desenvolvidas pelos próprios

soldados e oficiais que estariam encarregados de combatê-las.15

Também entre Sacramento e Buenos Aires percebemos a existência desta

dupla função, e com as mesmas regularidades. Durante o bloqueio espanhol da

Colônia, na década de 1740, num momento de profunda tensão militar, havia

13 KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento. Estudos Ibero-americanos. v. 2. nº XXV (1999). 14 OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura

Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: PPGHIS/UFF, 1999. (tese de doutoramento Inédita).

15 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Economia e Sociedade em área coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-1817). Rio de Janeiro: Graal, 1984; GOMES, Flávio dos Santos. & QUEIROZ, Jonas Marçal de. Entre fronteiras e limites: identidades e espaços transnacionais na Guiana Brasileira. séculos XVIII e XIX. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXVIII, n.1, p. 21-50, junho de 2002; GOMES, Flávio dos Santos & NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. Outras paisagens coloniais: notas sobre desertores militares na Amazônia Setecentista. IN: Nas Terras do Cabo Norte. Fronteiras, colonização e escravidão na Guiana Brasileira. Séculos XVIII-XIX. Belém: NAEA/UFPA. 1999.

30

um fluxo contínuo de comércio entre os súditos dos dois Impérios rivais.16 Os

trabalhos de Moutoukias e Prado17 apontam para uma proeminência de alguns

grupos nas atividades de contrabando no Rio da Prata. Em tempos diferentes,

ao longo do século, alguns grupos mantiveram franquias maiores do que outros,

especialmente para o trato comercial que se desenvolvia em períodos de tensão

militar. Neste ponto, sua análise se aproxima muito do que definimos como um

controle “relacional” do que podia ou não circular pela fronteira.

De fato, restaria perguntar como estas atividades, aparentemente

opostas, poderiam coexistir. Como o contrabando e a defesa dos territórios

imperiais poderiam ser feitas pelos mesmos sujeitos? Talvez quem melhor

soubesse a resposta fosse o Vice-rei Luís de Vasconcelos. Em 1784 ele falava de

um destes sujeitos, o coronel Rafael Pinto Bandeira. Segundo o vice-rei, Pinto

Bandeira se valia de sua autoridade de comandante militar para advogar em

causa própria e mesmo, fazer contrabandos. Ainda assim, o Vice-rei não achava

conveniente criar atritos com o dito comandante, pois ele possuía um talento

especial, o de “...espantar os espanhóis...”.18 De fato, se observarmos a

importância de Rafael Pinto Bandeira nos conflitos ocorridos entre 1763 e 1777,

perceberemos que ele não apenas comandou várias das mais bem sucedidas

investidas lusas no contra-ataque, como despendeu de seu patrimônio pessoal

para a guerra, além de arregimentar homens para a luta contra o inimigo.19

As

tropas regulares de Portugal, enviadas para o conflito, provavelmente não teriam

a força necessárias para o contra-ataque luso.

Esta situação não fora específica daquela fronteira. Havia uma grande

deficiência de Portugal de atuar em áreas periféricas, até mesmo na península.20

16 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto

Alegre: F. P. Prado, 2002. pg. 122-127. Outras evidências também em MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires en el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992).

17 PRADO op cit. MOUTOUKIAS op cit. 18 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos, em outubro de 1784,

sobre o Rio Grande do Sul. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ano IX. 1929. pg. 28.

19 Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael Pinto Bandeira. IN: Revista do Museu e Archivo Público do Rio Grande do Sul. Nº 23. MAPRGS/Livraria do Globo, 1930

20 HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.

31

No Estado do Brasil, a dificuldade era ainda maior. Havia uma necessidade

contínua de negociar a autoridade com os poderes locais para manter a unidade

do Império. Deste modo, a coroa dependia, em muito, da atuação das elites

locais na defesa territorial com seus recursos humanos e bélicos. Por outro lado,

esta circunstância forçava o centro a conceder regalias às elites locais, como

certa autonomia e a tolerância de determinadas práticas. 21

Esta tampouco era uma especificidade do Império Luso. Durante a época

moderna, foi constante a necessidade dos Impérios negociarem com os poderes

locais a manutenção territorial, entre a possibilidade de conquista e a defesa das

áreas ocupadas.22

Estas questões tendiam a fazer a Coroa lusa tolerar as práticas dos

contrabandistas, especialmente quando se tratava de um membro da elite local,

capaz de armar homens para a guerra. De certo ponto de vista, o fortalecimento

destas elites podia ser conveniente como mais uma forma de garantir a defesa

daqueles territórios. Como diziam os vereadores de Viamão, em 1771, se fossem

satisfeitos, ficariam os “...moradores desta fronteira contentes e prontos com

seus filhos e fazendas em uma cega obediência às ordens de Vossa

Majestade...”23

Há nisso tudo um outro problema: a questão dos limites.24 Paralelamente

aos resultados de conflitos, havia a negociação diplomática entre Portugal e

Espanha sobre o traçado de separação entre os dois Impérios. Não vamos aqui,

explorar ou esgotar o tema, já amplamente discutido por diplomatas, militares e

historiadores.25 Vamos apenas apontar alguns elementos que são relevantes

para nossa investigação, e que possuem relação direta com nosso objeto.

Quando dois Impérios chegam a um acordo sobre limites é porque estão

assumindo publica e mundialmente que chegaram a um esgotamento (ainda

21 GREENE, Jack. Negotiated authorities. Essays in colonial political and constitutional history.

Charlottesville & London: The University Press of Virginia, 1994. 22 PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e

Territórios nas Monarquias Européias dos Séculos XVI e XVII. Penélope - Fazer e desfazer a história. v. 6 (1991). p. 119-144. e GREENE. op cit.

23 AHU-RS. Cx. 2. Doc. 170. 24 Com a expressão “limites” estamos nos referindo exatamente a uma linha que delimitaria os territórios

pertencentes a cada um dos Impérios em questão. 25 GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Um ensaio sobre a

formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

32

que temporário) de seu potencial de conquista daquele território. Analogias

poderiam ser feitas com o limes romano, que se iniciou como uma pequena

estrada de ligação entre postos avançados, sendo fortificado mais tarde, e que

garantia a manutenção das conquistas daquele Império, num momento de

recrudescimento de seu potencial ofensivo.26

Portugal e Espanha não colocariam marcos de mármore lavrado como

indicadores dos limites, como foi feito no Tratado de Santo Ildefonso,27 se

tivessem planos imediatos de conquistas das terras vizinhas. Faziam isso para

manter os territórios resultantes de um último avanço ou resistência possíveis.

Podemos ser acusados de dar demasiada atenção para estas questões,

mas acreditamos que elas eram realmente importantes para alguns dos homens

que viviam na fronteira. Não fosse isso, não haveria motivo para que um sujeito

como Rafael Pinto Bandeira enviasse cartas ao Secretário de Ultramar,

Martinho de Melo e Castro, reclamando urgência na demarcação dos limites.28

Algumas denúncias da década de 178029 apontavam que Rafael mantinha

espiões na Lagoa Mirim e em outras paragens, que lhe informavam da

circulação de contrabando pertencente a outros negociantes. Rafael tratava de

perseguir outros contrabandistas com “multas” e confiscos, fazendo isso pelo

“...autorizado posto, que ocupa...”,30 como dissera o Vice-rei Luís de

Vasconcelos ao comentar este problema.

A existência de limites poderia, neste sentido, interessar a um sujeito

como Rafael. Seu controle de decidir o que era ou não passível de apreensão

seria facilitado através marcos estabelecidos pelos Impérios em questão e

avalizados por estes. Rafael teria, por um lado, a chancela do Império para

reprimir o contrabando (alheio). Paralelamente, desfrutava da deficiência do

mesmo Império em atuar nas áreas periféricas, podendo assim, tocar seus

negócios ilícitos. Por outro lado, o conhecimento exato das terras pertencentes a

Portugal possibilitaria aos súditos sua reivindicação na forma de concessões de

26 ZIENTARA, Benedikt. Fronteira. IN: EINAULDI, ENCICLOPEDIA. Estado e Guerra. Lisboa:

Imprensa Nacional - Casa da Moeda, v. 14. 1989.. pg. 311. 27 GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Um ensaio sobre a

formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pg. 197. 28 AHU-RS. Cx. 3. Docs. 262 e 265. 29 Cód. 104. Vol. 06. pg. 143. e Relatório apresentado ao governo de Lisboa... op cit. 30 Relatório apresentado ao governo de Lisboa... op cit.

33

datas e sesmarias. Isso também contribuiria para a manutenção da autoridade

Régia, com a criação de laços de reciprocidade.31 Se uma demarcação de limites

poderia satisfazer a um Império com dificuldades de empreender a conquista,

ela poderia contentar igualmente uma elite local bem estabelecida e ávida pela

manutenção de seu status, que se colocava como signatária das decisões do

centro, e com chancela deste.32

Este tipo de relação entre elite local e Coroa é freqüente na formação do

Estado Moderno, tanto no caso português como em outros Impérios. As formas

de relação variavam, mas de modo geral, havia uma tendência bastante grande

das elites regionais capitalizarem as suas relações com os poderes centrais, e

destes, em garantir sua manutenção com o apoio daquelas.33

Até aqui tratamos dos entraves e condicionamentos existentes para a

circulação na região que tomamos. Isso poderia sugerir que se tratasse de uma

área intransitável, o que seria um grande equívoco. Ainda que os limites de ação

de cada homem estivessem mediados por questões como os relacionamentos e o

poder local, havia uma ampla circulação humana e certamente o “mapa” que

havia na cabeça daqueles homens não era o mesmo que havia na mente do

monarca. Os limites, neste sentido, possuíam significados diferente para os

súditos e a Coroa. Para esta, era a definição de seus territórios. Para os súditos,

era o que separava o comércio do contrabando.

Também seria um tanto reducionista afirmar que houvesse territórios de

identificação comum para todos os súditos. A experiência de cada grupo

“delimitava” uma área de atuação própria. Os indígenas minuano, por exemplo,

que já andavam no Rio da Prata antes de portugueses e espanhóis, mantinham

algumas rotas de circulação de acordo com suas referências ancestrais. Não há

dúvida de que estas experiências se modificaram com a chegada do europeu, e

há vários relatos apontando para isso. O astrônomo demarcador, José de

Saldanha, dizia, em 1784, que os minuano costumavam ir ao Rio Pardo e outras

31 HESPANHA, Antonio Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do

Poder. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998.

32 Trataremos com mais vagar o tema do controle do contrabando nos capítulos 3 e 4. 33 PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e

territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope. nº 6. 1991.

34

povoações lusas em sinal de paz. Além disso, costumavam realizar tratos

comerciais com os portugueses, levando cavalos e recebendo cachaça e fumo.34

Como poderíamos comparar a noção de espaço de um açoriano recém

chegado àquela fronteira com a de um mestiço nascido ali, e que poderia se

valer do contrabando para viver? E como comparar qualquer destas com a de

um soldado lisboeta, que de sua pátria fora para a Índia, desta para a África, e

de lá para Rio Grande? Estas noções estavam determinadas pela herança das

gerações passadas e pela própria experiência destes sujeitos, e seria bastante

cômodo supor que aquele hipotético soldado lisboeta encarasse aquela fronteira

como mais um canto do Império Luso. Ao chegar naquelas terras, alguns

elementos contribuíam na construção de noções comuns. Para o período que

estudamos, a guerra contra os espanhóis foi um especial momento de

sociabilidade entre homens oriundos dos mais distantes confins do Império e da

própria fronteira. No campo de batalha se construíram e ampliaram redes de

relacionamentos que deram base sólida para a tropa e também para negócios

convenientes como o contrabando.

34 SALDANHA. op cit.

35

Peões e guerreiros: formas de sobrevivência.

Os conflitos existentes entre lusos e espanhóis no Rio da Prata do

oitocentos são completamente distintos da noção de guerra existente no século

XX e XXI. Ao acampar com suas tropas em frente à fortaleza espanhola de Santa

Tecla, Rafael Pinto Bandeira queria, muito mais do que ameaçar a vida daqueles

espanhóis, demonstrar o poderio que tinha de arregimentar homens e recursos.

Na marcha para estas operações militares, que objetivavam reconquistar

territórios considerados lusos, iam homens livres, membros da elite local,

escravos, indígenas, peões de todo tipo, pequenos proprietários e posseiros.

Esse conjunto de homens, com representantes de todos os estratos da

sociedade, movimentava-se para o conflito pelas mais diversas razões, entre as

quais o pertencimento a uma rede de relacionamentos e as possibilidades de

obter ganhos, tendo em vista a distribuição do butim, que se fazia logo a pós a

conquista.

Ao trabalhar com estes problemas, enfrentamos o desafio de encontrar na

parca documentação existente elementos que possam nos auxiliar a

compreender melhor esta sociedade. Ainda que os casos que estudamos não

componham um número significativo, eles nos informam sobre as

possibilidades que se apresentavam àqueles homens, e sobre suas opções. As

devassas sobre o Conselho de Guerra que utilizamos foram publicadas durante a

década de 1930, pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, sendo que os

originais encontram-se no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.35 Trata-se de

um corpus documental que inclui depoimentos, prestações de contas,

correspondências, devassas anteriores, entre outros documentos, todos

reunidos para formar parte do processo instaurado em 1779 pelo governador do

Rio Grande de São Pedro, José Marcelino de Figueiredo. Esta documentação

revela dados acerca do desenvolvimento do conflito entre lusos e espanhóis no

Rio da Prata, especialmente pela prestação de contas do butim de guerra e pelos

depoimentos de muitos dos soldados e oficiais que participaram das operações,

que se desenvolveram entre 1773 e 1776. A participação de escravos e peões foi

35 Autos principaes do conselho de guerra a que foi submetido Raphael Pinto Bandeira. Códice 68. Vol. 1.

Arquivo Nacional.

36

muito significativa em todo o conflito, ainda que nenhum cativo tenha sido

depoente no processo.

A Guerra No decorrer da década de 1750, exércitos espanhóis e lusos se uniram

para marcar os limites e expulsar os aldeamentos e missões existentes nas áreas

que seriam entregues a Portugal. Contudo, um novo Tratado, o de “El Pardo”, de

1761, anulou o de “Madri”, e abriu caminho para novas disputas territoriais, que

se iniciaram em 1762, com a tomada da Colônia do Sacramento pelos espanhóis

e, em seguida, da Vila de Rio Grande, sede do governo do Rio Grande de São

Pedro.36 Os espanhóis não tiveram muita dificuldade em tomar as povoações e

fortalezas lusas até chegarem ao Rio Pardo, onde foram detidos em 1763.37 A

luta pela retomada dos territórios perdidos ganhou fôlego a partir de 1773, no

contra-ataque a novas investidas espanholas. Do conjunto das operações de

retomada lusa, três ataques nos interessam neste momento. Foram as tomadas

das fortalezas espanholas de Santa Bárbara (1774), São Martinho (1775) e Santa

Tecla (1776).38 O recorte se justifica, na medida em que o comandante destas

operações, o Coronel Rafael Pinto Bandeira, fora investigado pelo Vice-rei Luis

de Vasconcelos, em 1780, através de um Conselho de Guerra. Pinto Bandeira

fora acusado de descaminhos, contrabandos, entre outros, pelo governador do

Rio Grande, José Marcelino de Figueiredo. Para efeito de aumentar o peso da

culpa do oficial, o governador Marcelino incluiu ainda uma devassa de 1773

sobre contrabandos, na qual havia muitas referências às atitudes ilícitas de

Rafael Pinto Bandeira. Além dos ataques citados, também atentamos para

alguns saques realizados por oficiais subordinados a Rafael, e que foram

igualmente narrados nos processos.

36 CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período Colonial. São Paulo: Editora do

Brasil, 1970. Pg. 161. e PAULA CIDADE. Op cit. 37 PAULA CIDADE. Op cit. 38 RMAPRGS. notas de fim. A partir de agora, utilizaremos apenas a abreviatura “RMAPRGS” para

referir aos “Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael Pinto Bandeira”, já que tal publicação contém o documento na íntegra.

37

A ação de Santa Bárbara Em dois de janeiro de 1774, sob o comando de Rafael Pinto Bandeira e

outros oficiais, um grupo de mais de cem homens assaltava a fortaleza

castelhana de Santa Bárbara, rendendo um grupo que somava, entre indígenas

das missões, oficiais e soldados espanhóis, cerca de oitenta combatentes. A

fortaleza foi ocupada e desmantelada, sendo o produto da conquista distribuído

entre os participantes vitoriosos. Aos espanhóis coube “...se entregarem uns, e

fugirem os mais para o mato...”, sendo depois capturados.39 Segundo Rego

Monteiro, os indígenas e “vaqueanos” das proximidades que estavam na

fortaleza conseguiram fugir para suas casas.40

No corpo luso predominavam três grupos militares, os Dragões,

corporação permanente e regular do exército de Sua Majestade, a chamada

“Cavalaria Ligeira”, formada por diversos sujeitos da localidade, e sob o

comando direto de Rafael Pinto Bandeira.41 O terceiro grupo era o das tropas

auxiliares, compostas também por locais, entre outros, mas recrutadas apenas

em circunstâncias especiais. Os auxiliares tinham um leque de recrutamento

maior.

Pelo que pudemos verificar, na ação de Santa Bárbara a predominância

fora de homens livres, não havendo referência a participação de escravos no

lado português. A listagem de distribuição do butim indica apenas membros da

cavalaria ligeira e das tropas auxiliares, sendo que todos foram, como se dizia,

“por sua conta”42, ainda que indicassem Rafael Pinto Bandeira como o

arregimentador. Seguindo esta listagem, percebemos uma grande diferenciação

do pagamento dos participantes, associada à hierarquia militar e de diferenças

entre os regimentos. Tal critério era comum na distribuição do butim sendo o

nível mais baixo da hierarquia os chamados “inferiores”, que incluíam soldados

e peões43 Contudo, as listas de butim são incompletas, quando as comparamos

39 RMAPRGS. pg. 258. 40 REGO MONTEIRO, Jônathas da Costa. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-

1777). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979. 41 Essa corporação é tida como “particular” de Rafael Pinto Bandeira por VELLINHO, Moysés.

Fronteira. Porto Alegre: Editora Globo/EdUFRGS, 1975. 42 RMAPRGS. pg. 382-383. 43 RMAPRGS. pg. 226.

38

a outros documentos, como os depoimentos da devassa instaurada, nos quais os

soldados e oficiais contavam suas participações e ganhos. Muitos destes

militares presentes em Santa Bárbara, e que haviam recebido sua parte do

montante, não foram citados pelas listagens. Ainda assim, alguns testemunhos

são coincidentes com as listas e nos fazem pensar que apesar de incompletos, os

dados apresentados são exatos, pois são coerentes com os dos depoimentos.

Pelas condições de combate que se dispunham aos lusos no momento do

ataque, podemos entender a ação de Santa Bárbara como uma contra-ofensiva

realizada pelos membros do quadro militar mais estáveis. Ainda não estavam

cotados para a guerra um grande número de indivíduos. Adiante se incluiriam

escravos. O montante dos empregados na tomada era constituído de forças

locais, na medida em que a ação de retomada efetiva ainda estava sendo gestada

pelos oficiais lusos.44

Do lado espanhol a situação era diversa. Na fortaleza estavam encerrados

não apenas militares permanentes, mas também grande número de indígenas

guarani, convocados dos povos missioneiros que restavam da expulsão dos

jesuítas. Além dos guarani, é possível que muitos dos oitenta soldados

“correntinos” que participaram da operação45 fossem indígenas “abipones”46 que

eram continuamente incorporados nos contingentes militares daquela

localidade, como nos indica Djerendejian47. Infelizmente não sabemos até que

ponto tais indivíduos ganhavam com estes conflitos, mas é possível que a

própria incorporação no exército já fosse uma alternativa, em um tempo de

“vacas magras” da economia correntina.48

São Martinho Um ano e alguns meses depois do ocorrido em Santa Bárbara os

grupamentos comandados por Rafael Pinto Bandeira voltavam a ação na

44 REGO MONTEIRO, Jônathas da Costa. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-

1777). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979. Pg. 260. 45 idem. Pg. 225. 46 Indígenas naturais de Corrientes, nos domínios espanhóis. Cf. DJENDEREDJIAN, Julio. ¿Un aire de

familia? Producción agrícola y mercados desde Corrientes y Entre Rios a Rio Grande do Sul, fines del siglo XVIII y comienzos del XIX: algunas reflexiones comparativas. Primeras Jornadas de História Comparada. Porto Alegre. 2000

47 DJENDEREDJIAN. op cit. 48 Idem.

39

importante posição espanhola de São Martinho.49 Desta vez, seu corpo militar

incluía efetivamente um leque social mais amplo. A tropa contava com duzentos

e cinco “oficiais inferiores, soldados, agregados, bombeiros, peões e

escravos”.50 No forte espanhol havia oficiais, cerca de dezoito soldados dragões

espanhóis e vinte e um índios, além dos cento e tantos indígenas que fugiram

durante o ataque.51

Ao tomarmos as listas de butim, verificamos uma maior heterogeneidade

nos participantes dos ganhos, já que citam grupos auxiliares, de cavalaria

ligeira, bem como peões e agregados que acompanharam membros dos

grupamentos auxiliares. Tal é o caso do espanhol Lucas Coitinho e seu fiel peão,

Paulo, que foram juntos para o combate, pelo lado português, e recebendo

juntos a quantia de 15$720 réis, resultado do butim. Contudo, também havia

aqueles senhores que enviavam alguém em seu lugar no combate, como o

tenente João Barbosa da Silva, que mandou o índio Lourenço para a ação, e que

nada recebeu. A falta de pagamento não deve estar associada ao fato do

guerreiro ser indígena, mas, pelo fato do pagamento não ser imediato e de nem

sempre haver cobrança pelos interessados.52 De qualquer modo, não podemos

afirmar isso com certeza. O que podemos acrescentar é que outros sujeitos, não

índios e não escravos, também ficaram sem nada receber, como Albino Ribeiro

Bayão e Isidoro de Faria.53

Para a tomada de São Martinho dispomos do cálculo realizado para a

divisão do butim. O valor total do saque, retirado o quinto de Sua Majestade, foi

calculado em 6.015$184 réis.54 Para fins de divisão cada oficial inferior, soldado,

agregado, bombeiro, peão ou escravo participante foi contado como um. Os

oficiais subalternos foram contados como dois. Os capitães tiveram peso três, e

o comandante, peso doze.

49 REGO MONTEIRO. Op cit. Pg. 259. 50 RMAPRS. pg. 189. 51 MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. Op cit. Pg. 259. 52 Tal é o caso do furriel de Auxiliares, José Alves Coelho: a “presa se dividiu pelas partes interessadas e

que ele testemunha também não recebera a sua parte nessa ocasião por estar distante em Viamão, e também porque ele testemunha por não ter necessidade a não procurou, mas tanto que a teve foi pedi-la ao procurador do Coronel Rafael Pinto Bandeira, que era João Luis morador no Rio Pardo, o qual logo sem repugnância alguma lhe satisfez”. RMAPRGS. pg. 108.

53 RMAPRGS. pg. 384. 54 Do espólio de guerra era retirado o “quinto” para Sua Majestade.

40

Se atentarmos para quem eram estes sujeitos, seus patrimônios e

trajetórias, verificaremos que hierarquia militar e social se confundem. No caso

da operação de São Martinho, os oficiais subalternos, os capitães e o

comandante eram todos provenientes da elite, não apenas por pertencerem a

famílias que ocupavam cargos importantes na localidade, como pelos seus

recursos, redes de relacionamentos e por suas propriedades. Da mesma forma,

os chamados “oficiais inferiores”55, assim como os soldados e a gama de

escravos, agregados e peões que faziam parte do último segmento de

distribuição, eram indivíduos com poucos cabedais e recursos.

Ainda que estes estratos inferiores não fossem privilegiados na

distribuição dos bens adquiridos na guerra, estas ações ainda significavam para

eles possibilidades bem interessantes de melhoria de vida. Se considerarmos, tal

como nos sugerem as listas de distribuição, que um escravo ganhava cerca de

25$000 réis por uma operação como a de São Martinho, estaremos diante de

um cativo que tem amplas possibilidades de adquirir sua liberdade. Pelo preço

de inventários da época, um escravo adulto do sexo masculino podia ser vendido

entre 50$000 e 80$000 réis.56 A guerra, neste sentido, era uma forma extra de

aumentar o pecúlio. Mesmo para os agregados e peões, assim como para muitos

pequenos proprietários, o conflito representava a sua incorporação a um

determinado grupo, o que poderia muito bem lhes render importantes vínculos

e relacionamentos, que poderiam ser significativos para uma melhoria social ou

material.

As regras para distribuição do butim foram definidas de cima, pelo

próprio Marques de Lavradio. Seu conteúdo é bastante claro, e trata da parte

que caberia a cada um dos combatentes, de acordo com sua posição e “sem

exceção alguma”. Ao comandante se daria ¼ do total, aos seus subordinados,

outro ¼. Aos demais, ½ do total do butim. Em momento algum se excluem da

possibilidade do ganho os escravos ou quaisquer outros baixos estratos

empregados no serviço de guerra.

Havia ainda formas menos convencionais de ganhos resultantes da

55 São os oficiais da patente de Alferes para baixo. 56 APERGS. Inventários post-mortem de Bernardo Baptista: 1º Cartório de Órfãos e ausentes. Nº 68.

maço 6.

41

guerra, especialmente o chamado “descaminho”, ou seja, o desvio de

propriedade comum apresada em ataque. Esta contravenção não atingia apenas

os interessados na divisão, mas significava perda de parte do quinto de Sua

Majestade, o que motivou as autoridades a investigar o butim. Os depoimentos

dados ao Conselho de Guerra, assim como a devassa que o precedeu informam

sobre a estrutura social que está por detrás desta corrupção.

O capitão de Dragões Francisco Alves de Oliveira prestou interessante

relato em seu depoimento, quando do Conselho de Guerra de Pinto Bandeira.

Segundo ele, logo após a ação de Santa Bárbara, tomou o caminho de Rio Pardo

junto com dois combatentes auxiliares, Gabriel Aires e Mateus José. Durante o

percurso os dois queixavam-se do excesso de descaminhos que as presas de

guerra estavam submetidas, sendo que pouco ficaria para a divisão, e seriam

todos prejudicados. Ao saber disso, o Capitão Francisco Alves inquiriu a ambos

a razão pela qual Rafael Pinto Bandeira, enquanto comandante da ação, não

punha um fim a estes abusos, ao que ambos responderam que “...como havia de

por cobro se diziam que o dito Coronel Rafael Pinto Bandeira também entrava

nos mesmos descaminhos...”.57 Esse depoimento, em muito corroborado por

outras fontes e testemunhos, nos indica a participação e o controle por parte

desta elite dos ganhos resultantes dos ataques.

Tal controle não definia apenas o acesso de alguns a esta parte “oculta”

do butim, que seria provavelmente distribuída entre os participantes do desvio,

mas também definia o quando tais informações poderiam circular, e o quanto

convinha, muitas vezes, não ter ciência destes fatos. O almoxarife da Fazenda

Real, responsável pelo controle dos animais apreendidos, teve a vida ameaçada

em determinada situação, quando tentou barrar uma movimentação de animais

desencaminhados. Um dos combatentes envolvido sacou a pistola do coldre e

disse: “...hora se você tivesse vontade de morrer, eu não tinha dúvida de o

matar...”58. Ainda assim, o almoxarife Antonio da Silveira Ávila depôs, pelo

menos no processo feito em Porto Alegre, que antecedeu o Conselho de Guerra.

Talvez o medo de que algo semelhante lhe acontecesse fez com que Miguel

Martins Serra, lavrador de Rio Pardo, testemunhasse indicando os delitos de

57 RMAPRGS. pg. 73. 58 RMAPRGS. pg. 313.

42

Rafael Pinto Bandeira, mas afirmando veementemente que “...que ele

testemunha nunca crera a semelhantes ditos...”59, ainda que neste caso, a

testemunha tivesse relações especiais com Rafael.

Mais do que este controle, tais ocorrências nos informam das articulações

entre os membros da elite. O cabo de Dragões Ricardo José de Magalhães, em

seu depoimento, afirmou que sabia do descaminho e que após a tomada dos

animais, julgara, junto com outros companheiros, que “...o dito coronel Rafael

Pinto Bandeira tivesse mandado alguns animais para sua estância e para a do

capitão João da Costa Severino...”.60 Em outro caso, o tenente auxiliar

Francisco José Martins alertou para o desvio de gado logo após o ataque de

Santa Bárbara “...sendo tudo conduzido até as margens do Rio Pardo a uma

estância do Capitão Cipriano Cardoso, em cujo sitio nessa primeira noite foi

desencaminhada a maior parte da dita cavalhada...”.61

Estamos diante de três membros da elite local, que eram igualmente o

alto comando do ataque terrestre aos espanhóis nestes anos de conflito. Rafael

Pinto Bandeira, Cipriano Cardoso e João da Costa Severino eram grandes

estancieiros e estavam conectados ao esquema que definia a parte dos ganhos

do butim. Esta lógica de organização não apenas estava orientada pela

hierarquização da sociedade, como era parte do esquema que reproduzia e

sustentava esta ordem social. Os recursos materiais estavam ali dispostos, era

preciso que alguém os administrasse de modo a manter a ordem social vigente.

Não seria esta guerra que iria desorganizar a sociedade. Não apenas a elite, mas

o conjunto da sociedade, incluindo os homens livres pobres, os escravos e os

outros tantos com vários estatutos de subordinação estavam de acordo com esta

norma, e sabiam muito bem os caminhos que deveriam seguir para chegar a

algum lugar na estrutura social. A participação destes homens no esquema de

desvio do butim e seu compromisso com estas relações demonstram o quanto

sabiam jogar, dentro das possibilidades de ação que lhes eram oferecidas. Não

apenas o medo os fazia silenciar frente a acusações contra Pinto Bandeira. A

esperança de entrar para seu bando e poder obter alguma inserção, era

59 RMAPRGS. pg. 60. 60 RMAPRGS. pg. 84. 61 RMAPRGS. pg. 57.

43

igualmente uma opção válida, quando muitas outras podiam estar já

descartadas. A sobrevivência estava, sem dúvida, acima da legalidade.

A “escalada” de Santa Tecla Na tarde de 24 de março de 1776 houve o encontro derradeiro entre o

comandante luso Rafael Pinto Bandeira e o capitão espanhol Luis Ramires:

“Logo que nos topamos, o primeiro cotejo foi dois abraços, e depois três beijos,

dois nas faces, e um nos beiços, cumprimento, que é a primeira vez, q’ vejo:

ofereceu-se-me com toda a Fortaleza...”62. Este amigável colóquio encerrava a

negociação realizada para a entrega de um dos últimos baluartes espanhóis das

guerras entre lusos e castelhanos no Prata, entre 1763 e 1777: a fortaleza de

Santa Tecla. Mais do que a espada, eram a negociação e o jogo de honras as

armas mais potentes nas mãos de portugueses e espanhóis nestes conflitos. Isso

não significa que a estratégia militar, além do impacto técnico e numérico não

fossem importantes. O fato de muitos castelhanos, como já citamos, fugirem

“para o mato” 63 nos dá a importância desta artimanha. Contudo, ainda assim

havia uma transação, que concedia espaço para a fuga, como um passo possível

para a rendição.

Deste conflito saíram muitas investigações, que resultaram em mais de

sessenta depoimentos, além de uma grande quantidade de correspondências e

outros tantos documentos.64 Neste montante, raríssimas são as ocorrências

concretas de agressões e de mortes. A morte e o extermínio não eram os

objetivos destes conflitos, mas suas conseqüências últimas. A ação de Santa

Tecla é, neste sentido, um bom exemplo. Aqui as táticas militares que envolviam

a tomada de assalto não funcionaram e as tropas lusas tiveram que acampar

durante dias, aguardando um momento para o ataque, que acabou igualmente

frustrado. Durante vários dias, as tropas continuaram aguardando, até o

momento em que os espanhóis resolveram render seu forte. Desta entrega

resultou o contato que acima narramos, bem como uma carta de capitulação de

onze itens, nos quais os espanhóis procuram garantir certas prerrogativas, que

62 RMAPRGS. pg. 375. 63 RMAPRGS. pg. 258. 64 RMAPRGS.

44

envolviam a manutenção de honras militares e o atendimento aos feridos.65

Aparte a negociação oficial estabelecida entre os dois comandantes,

houve um pequeno embate de dádivas, nos momentos que se seguiram aos

cumprimentos dos briosos oficiais. O capitão espanhol mandou entregar ao

comandante luso “...um pouco de biscoito, erva e tabaco...” e Rafael Pinto

Bandeira, em troca, “como não tinha que mandar-lhe dei uma moeda d’oiro a

cada soldado, dos que trouxe o mimo.”66. Fica ainda presente uma certa

“humildade”, frente à recepção do presente. Afirmar que nada possuía além de

umas moedas de ouro, diante de um presente constituído de gêneros

absolutamente comuns na região, como a erva-mate e o tabaco, significa uma

demonstração do poderio de Rafael, capaz de arregimentar elevado número de

homens, recursos e ainda se colocar com superioridade tenaz em uma troca de

presentes.67

Pinto Bandeira triunfara não apenas na conquista da fortaleza, com seus

artefatos bélicos, com seus homens, estratégias e cavalos, mas triunfara

igualmente no campo da honra, acolhendo o inimigo em sua derrota,

negociando os termos de rendição e administrando com eficácia o

relacionamento com o comandante espanhol.

A partir dos depoimentos de Santa Tecla verificamos algumas

características daquela sociedade em guerra. Se atentarmos bem, observamos

que o ritmo do conflito é bastante lento. Ainda que os ataques de Santa Bárbara,

São Martinho e Santa Tecla representem uma contra-ofensiva lusa na área, um

momento de acirramento da ação portuguesa, os intervalos entre um e outro

combate são largos, tendo, no mínimo, seis meses entre as ações de São

Martinho e de Santa Tecla. Isso significa que, para as populações afetadas mais

diretamente pela guerra, especialmente as residentes em Rio Pardo, Triunfo e

Viamão, aquele conflito não representava uma transformação na rotina. Muito

mais importante era um possível engajamento nestas operações, como uma

forma de ganho por parte de alguns, mas também como uma possibilidade de

criação e manutenção de laços com aqueles oficiais que detinham não apenas o

65 Tal documento foi transcrito por REGO MONTEIRO. Op cit. Pg. 284. 66 RMAPRGS. p. 375. 67 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.

45

controle das operações, mas que representavam o que havia de mais expressivo

na elite local.

Rafael Pinto Bandeira foi submetido a um Conselho de Guerra que ainda

está longe de ser explicado68. Sua prisão, seu julgamento e sua absolvição pela

própria Rainha ainda devem ser tomados de forma mais atenta. Ainda que a

escolha das testemunhas que foram enviadas para o Rio de Janeiro seja algo

difícil de compreender, alguns aspectos são interessantes de serem observados.

Entre as 20 testemunhas, selecionamos dois “lavradores” para uma

aproximação: Antonio Dutra e Manuel Gomes Porto.

Antonio Dutra veio para a América da Ilha do Faial. Tinha cerca de 27

anos quando depôs junto ao Conselho de Guerra, em 1780. Esteve nas operações

de Santa Bárbara e Santa Tecla, sendo que, desta última, prestou interessante

relato. Segundo ele, depois de todos os ataques, e do cerco à fortaleza, as tropas

tomaram o caminho de Rio Pardo, para onde também iam os bens tomados dos

espanhóis. Ele, testemunha, “viera na mesma condução acompanhando as

carretas”69, só não chegando ao Rio Pardo porque “sua casa ficava perto e se

retirou, e deixou ficar os mais companheiros”70. Dutra, membro do corpo

auxiliar, havia se juntado aos soldados de Cipriano Cardoso, antes da formação

dos grupos maiores que reuniam vários comandos, e que partiam,

posteriormente, para os ataques às fortalezas.71

Partindo da definição “lavrador” que lhe foi atribuída pelo Conselho de

Guerra e considerando a descrição que fez de sua trajetória pós-combates,

podemos entender Dutra como um produtor sem muitos recursos, que se valia

de alternativas de serviço como a guerra, para obter ganhos inesperados.

Através da guerra também podia articular contatos não apenas com os

comandantes, como Cipriano Cardoso e Rafael Pinto Bandeira, mas igualmente

com outros tantos combatentes. A expressão “companheiros”, utilizada por ele e

repetida por outros tantos depoentes do processo, nos indica o quanto estes

68 O trabalho de Augusto da Silva é o que mais se aproxima, ainda que tenhamos discordâncias com sua

análise. SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999. (Dissertação de Mestrado Inédita).

69 RMAPRGS. pg. 70. 70 RMAPRGS. idem. 71 RMAPRGS. pg. 70.

46

acampamentos eram espaços de sociabilidade daqueles homens. Em uma destas

noites de acampamento, antes da capitulação de Santa Tecla, o próprio Rafael

Pinto Bandeira reuniu todo o grupo e “...dizia que cuidassem todos em se

empregar com valor, porque permitia o governador do Continente José

Marcelino que se não pagasse o quinto...”72. Esta passagem também foi referida

por outras testemunhas, como Manuel Pereira Lagoas, “que por ele testemunha

estar distante não ouviu, mas disseram os camaradas era para se não pagar

quinto”73. Estes instantâneos do acampamento nos indicam, além da constante

preocupação com o resultado econômico do ataque, o referido grau de

sociabilidade que aquele conflito proporcionava.

Manuel Gomes Porto chegava ao Conselho de Guerra para testemunhar

quando contava cerca de 37 anos.74 Alguns anos antes, em 1764, se encontrava

na condição de capataz do quartel do Rio Pardo durante curto período, entre os

meses de fevereiro e dezembro daquele ano.75 Seu caso parece ser semelhante ao

de muitos outros seus contemporâneos. O emprego sazonal, fosse na guerra,

fosse como capataz em algum posto ou estância, eram atividades que

interessavam aos pequenos proprietários, ainda que não saibamos da situação

de Manuel durante aquela década de 1760. Passados os conflitos Manuel

reivindica para si uma sesmaria no Rio Pardo, onde mantinha em 1784 um

pequeno rebanho de trezentas reses e quarenta cavalos.76 Só em 1800 é que sua

propriedade é reconhecida, com a concessão do Conde de Rezende.77 A principal

função de Manuel fora a de observar e explorar o campo inimigo. Essa função

fora muito importante, especialmente no cerco de Santa Tecla, quando temia-se

que os espanhóis enviassem reforços para os sitiados. Da mesma forma que

Antonio Dutra, Manuel Porto participou das operações de Santa Bárbara e

Santa Tecla, ausentando-se de São Martinho.

72 RMAPRGS. pg. 63. 73 RMAPRGS. pg. 68. 74 RMAPRGS. pg. 81. 75 F1242. 224. AHRS. 76 RMAPRGS. pg. 489. Nota 29. 77 F1249. 170v. AHRS.

47

O contrabando como desembaraço de uma sociedade. A importância do comércio ilícito para uma parcela significativa da

população daquela fronteira não foi pequena. É difícil dizer quantas pessoas se

envolveram diretamente no contrabando, mas a maior parte das fontes que

utilizamos indica uma grande disseminação desta prática. Alguns elementos,

contudo, podem nos fornecer algumas pistas para apurar o quanto este negócio

era importante para aquela sociedade. O contrabando guarda relação com o

próprio desenvolvimento da produção pecuária na fronteira, como também com

formas alternativas de sobrevivência e manutenção de status.

A formação do rebanho.

Sendo o gado muar um dos principais gêneros contrabandeados,

comecemos observando a relação entre a sua produção na fronteira e aquele

comércio ilícito.

Um mapa de animais, feito em 1741, não contava entre seus listados nem

burros nem mulas,78 em oposição às mais de vinte mil éguas.79 Em 1804, um

mapa semelhante apontava a existência de mais de cinco mil burros que unidos

às mais de cem mil éguas de cria, produziam mais de vinte mil mulas anuais.80

Estes sessenta anos testemunharam um enorme crescimento desta criação.81

Não é possível, através destes dados, verificar o quanto este rebanho é resultado

da criação, pois o período compreende várias guerras, quando os animais eram

muito utilizados e sua produção diminuía.

Seria difícil identificar um momento em que o rebanho asinino82 passa a

ser significativo na fronteira. O primeiro registro que encontramos de ingresso

destes animais na região é em 1753, através da ação de Cristóvão Pereira de

Abreu, que adquiriu os animais nos domínios espanhóis, dispondo inclusive da

78 Quando falamos “burro”, estamos nos referindo ao “Equus asinus”, que também é conhecido como

“jumento”. Do cruzamento induzido de um burro com uma égua “Equus cavalus” sai um híbrido estéril, a que chamamos “mula”.

79 Mapa das Fazendas povoadas de gado no Rio Grande de São Pedro. AHU-RS. Cx. 1 doc. 38. 80 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570. 81 OSÓRIO. op cit. pg. 104. 82 Gado Asinino é relativo a burros e burras.

48

permissão do Governador de Buenos Aires para tal feito. 83

Em 1763 já havia uma quantidade significativa de burros e mulas na

fronteira, que foi relatada por ocasião da invasão espanhola.84 Outra evidência

deste fato, é a manifestação contrária dos súditos do lugar a uma lei régia que

proibia a existência de mulas no Estado do Brasil. Argumentavam eles que se

dedicavam àquela criação, e que teriam muitos prejuízos com a lei.85

Acreditamos que o início efetivo da produção de muares na fronteira se

deu no final da década de 1750. Todavia, paralelamente ao desenvolvimento

desta produção, ocorre um contínuo contrabando destes animais. Isso pode nos

indicar o quanto o ingresso ilegal de animais pôde contribuir para o

desenvolvimento da pecuária naquela região.

Em 1768 o governador do Rio Grande, Sá e Faria, dava ordem para o

estabelecimento da criação de muares, que seria feita apenas com os burros

apreendidos dos contrabandistas.86 Nos anos de 1767 e 1768 identificamos três

tropas de gado que levavam burros dos domínios espanhóis para os territórios

lusos. Uma delas, conduzida pelo espanhol Eugenio Barragam, levava onze

burros e quatrocentas éguas, o que seria uma quantidade de animais muito boa

para se iniciar uma produção de mulas. No mesmo período Manuel Munhoz

tentou introduzir cerca de 30 burros, sendo detido. A quantidade que traziam

era significativa. Em 1784, dos sessenta e dois proprietários de burros da

freguesia do Triunfo, próxima a Viamão, apenas dezenove possuíam mais do

que onze burros, e somente oito daqueles criadores possuíam mais do que trinta

destes animais. Tal freguesia possuía, àquele tempo, um dos maiores rebanhos

asininos da fronteira.87

83 Carta de Christovão Pereira de Abreu a Don. Joseph de Andonaegui. Sala IX, Legajo 3.8.2. AGN.

Agradeço a Fabricio Pereira Prado pela cessão do documento. Uma boa análise sobre Cristóvão Pereira de Abreu está em HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita).

84 Relação apresentada pelo Senado da Câmara do Continente do Rio Grande de São Pedro. APUD: OSÓRIO. Op cit. pg. 107.

85 F1243. 5. 86 REGO MONTEIRO. op cit. pg. 172. baseado no Cód. 104. Vol. 15. 87 SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e Sociedade do Rio Grande do Sul: século XVIII. São

Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984.

49

O custeio da guerra. Em uma carta datada de dezembro de 1774, o Marquês do Lavradio falava

sobre Rafael Pinto Bandeira. Dizia que Rafael seguira ao pai, Francisco Pinto

Bandeira, em muitos pontos, ainda que não chegasse “...ao ponto de ter as

outras boas circunstâncias que ele teve...” 88 Isso acontecia porque Rafael

deixara a tropa de Dragões para, posteriormente, ser capitão de cavalaria ligeira

irregular “...para continuar com sua tropa a fazer as corridas de gado e

cavalhadas e ainda sem ordem para isso, em que tem feito um grande

cabedal.”89 Essa informação de que Rafael fazia junto de outros sócios arreadas

de gado nos campos inimigos, foi minuciosamente descrita para Lavradio por

um oficial seu, destacado na fronteira, chamado Francisco José da Rocha.90

Rocha afirmava, ainda, que Rafael lhe teria dito que era o único rico o suficiente

para montar duzentos e cinqüenta homens para estas arreadas.

Não eram só as arreadas que lhe garantiam o enriquecimento. Em 1773, o

provedor da Fazenda Real, Inácio Osório Vieira, promovera uma devassa para

apurar denúncias de contrabando ocorridas naquela fronteira. Das quinze

testemunhas, oito apontaram Rafael Pinto Bandeira como interessado naqueles

negócios. E as denúncias apontavam um esquema bastante elaborado de

compra e venda, envolvendo peões, criadores e oficiais da Coroa.

Mas não era apenas o enriquecimento que movia Rafael. Ao comando da

recém criada cavalaria ligeira, também conhecida como corpo de aventureiros,

Rafael pôde destacar para o serviço uma boa parcela de aliados e agregados,

reforçando os laços e estabelecendo uma hierarquia bastante clara e formal.

Muitos dos componentes da cavalaria ligeira estavam, ao lado de Rafael,

envolvidos em contrabandos e arreadas. Tal é o caso Joaquim Rodrigues de

Aguiar, que já andava ao lado de Rafael em vários outros negócios, e teve grande

ascensão em seus postos da cavalaria.91 Era através de uma refinada rede de

reciprocidades que Rafael conseguia reunir, e “montar”, aqueles duzentos e

cinqüenta homens que teria mecionado ao oficial luso. 88 AHU-RS. Cx. 3. Doc. 189. Grandes trechos da carta de Lavradio são citados neste documento. 89 AHU-RS. Cx. 3. Doc. 189. 90 Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.73. 91 RMAPRGS. Pg. 179.

50

Resultado de tudo isso foi o número significativo de homens que Rafael

levou para a guerra contra os espanhóis. No ataque de São Martinho, por

exemplo, temos a confirmação de vinte e quatro sujeitos que foram junto de

Rafael, de um total de duzentos e cinco homens. Todavia, vinte e quatro é o

mínimo, sendo que poderiam ser muitos mais.92 Inclui-se ainda a possibilidade

de Rafael ter armado muitos destes homens, uma vez que dificilmente a Coroa

teria condições para tal, visto que mal dava conta dos soldos e fardas.93

Através destas relações e do próprio serviço de contrabando, Rafael

contou com uma base social indispensável para o custeio da guerra. O Estado

Luso teve grande dificuldade de investir naquela guerra, e teve na ação daqueles

homens, que também se dedicavam ao contrabando, um auxílio imprescindível.

Uma prática que perpassava toda a sociedade. Assim como foi fundamental no abastecimento de reprodutores do

rebanho e contribuiu para bancar os conflitos contra os espanhóis, o

contrabando possuía um significado mais geral, perpassando todas os estratos

sociais como uma forma de sobrevivência e reprodução da vida social.

De todos os sujeitos que identificamos como contrabandistas nenhum

pareceu manter uma dedicação exclusiva a este negócio. Eram lavradores,

soldados, criadores de animais, oficiais da coroa, negociantes, entre outras

atividades possíveis, que se valiam do comércio ilícito como uma alternativa

extra para obter ganhos econômicos, relacionamentos ou outras benesses

possíveis. Esta diversidade de empregos é uma característica de sociedades pré-

industriais, como a que estamos tomando.94

Miguel Martins Serra era um destes homens. Ao testemunhar em 1780,

em um Conselho de Guerra, dissera que vivia “...das suas lavouras...”. Fora

enviado antes da guerra para espionar a Colônia do Sacramento a pedido do

governador do Rio Grande. Nesta mesma oportunidade levou por conta de

Rafael Pinto Bandeira algumas fazendas para trocar por animais, conduzindo na

92 RMAPRGS. pg.190 e 384. 93 OSÓRIO. op cit. 94 GOUBERT, Pierre. Cent Mille Provinciaux au XVII siècle - Beauvais et Beauvasis 1600-1730.

Paris: Flamarion, 1968.

51

volta tropas de animais para Rafael.95 Atuou também de mensageiro e depois

como soldado. Participou nas ações de Santa Bárbara e Santa Tecla, sendo que

na segunda fora como carreteiro da tropa, levando parte dos mantimentos. 96

Neste sentido, o comércio ilícito era para Miguel Martins uma atividade sazonal

e complementar. Assim como ele, muitos outros tinham no contrabando uma

alternativa de sobrevivência, frente a possíveis incertezas na lavoura, na criação

ou em outras atividades.

Também a elite local percebia no contrabando uma forma de garantir sua

posição e manter conexões com o restante da sociedade. Um sujeito como

Rafael Pinto Bandeira, após ser acusado de contrabandista por inúmeras

pessoas e passar sem constrangimento por várias investigações, assumiu o

governo interino da capitania do Rio Grande de São Pedro por duas vezes.97

Também várias pessoas associadas a Rafael exerciam postos importantes na

fronteira. O capitão de Dragões Carlos José da Costa e Silva era cunhado de

Rafael e possuía um dos mais importantes postos militares da região. Da

mesma forma, seus irmãos Felisberto e Evaristo, assim como outro cunhado,

Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, eram comandantes militares de seus

distritos, possuindo um grande poder entre a população.98

Ao morrer, em 1795, Rafael teria provavelmente a maior fortuna da

“fronteira”, possuindo várias propriedades. Em apenas uma delas, a “Estância

do Pavão”, Rafael possuía quarenta e nove escravos, e cerca de trinta mil reses.99

Neste sentido, o contrabando contribuía também para a manutenção da

hierarquia social.

Para se manter enquanto um negócio interessante, o contrabando

necessitava de certas garantias sociais. Em primeiro lugar, uma ampla base

social que desse sustentação a quem o praticava. Isso se materializa na ampla

rede de relacionamentos que Rafael Pinto Bandeira liderava. Junto a ele

estavam lavradores, criadores, peões, negociantes, estancieiros, oficiais da

95 Devassa de 1773. 1ª testemunha. RMAPRGS. pg. 316. 96 RMAPRGS. pg. 488. Depoimento na Devassa... 97 SILVA. op cit. 98 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo Nacional. 99 Inventário de Rafael Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 211. maço

13. APERGS.

52

Coroa e militares, todos associados através de relações de reciprocidade100 e

parentesco, numa grande teia. Da mesma forma, era também a posição de

Rafael e de outros seus associados na estrutura social e no acesso aos postos de

mando político que garantia a manutenção do comércio ilícito por eles

desenvolvido.

Percebemos assim, que o comércio ilícito está profundamente

determinado por aspectos típicos de uma economia de Antigo Regime, baseada

em redes de reciprocidade e no controle do mercado a partir de instâncias

políticas e sociais, em uma sociedade fortemente hierarquizada e desigual. De

sua parte, também o contrabando era responsável pela manutenção desta

ordem. Permitia que determinadas pessoas tivessem acesso a negócios vedados

à maioria. Estando à frente de postos de governo, especialmente o controle das

fronteiras, Rafael Pinto Bandeira prendera várias pessoas por contrabando,

mantendo para isso espiões nos caminhos de passagem entre os domínios lusos

e espanhóis.

100 O tipo de reciprocidade variava de acordo com cada relação. Veremos isso no capítulo 4.

CAPÍTULO 2

ENTRE O JUSTO E O CERTO: O PENSAMENTO SOBRE O COMÉRCIO ILÍCITO

O contrabando segundo Sua Majestade Ao aconselhar o magnífico Lorenzo de Médicis, Maquiavel pontuou três

modos possíveis para se preservar as cidades e principados conquistados:

“O primeiro é aniquilá-los. O outro é residir neles. O terceiro é deixá-los viver com suas leis, retirando uma renda e criando internamente um governo de poucos que manterá o consenso. Tal governo, consciente do fato de existir pela vontade do príncipe, sabe que depende de sua benevolência e poder e tem todo o interesse em agir de modo a conservar a situação.” 1

O florentino concluía afirmando serem mais oportunos o extermínio e a

residência do que a condescendência com os súditos. Contrariando o receituário

maquiavélico, foi a benevolência o principal meio utilizado pelos monarcas

portugueses. No trato com as colônias, sempre agiram de forma muito contida,

delegando poderes aos locais e contando com o apoio destes na conservação dos

vastos territórios d’aquém e d’além mar.2 Longe de qualquer suspeita de inépcia

por parte das autoridades lusas, esta prática estava profundamente orientada

pelo pensamento ibérico do século XVII e que, além de dialogar com a obra de

Maquiavel, mantinha uma postura crítica em relação a este. 3

1 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora Paz & terra, 1996. Pg. 33. 2 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações

ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN: FURTADO, Junia Ferreira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. e também em GREENE, Jack P. Negotiated authorities. Essays in colonial political and constitutional history. Charlottesville and London: The University Press of Virginia, 1994.

3 É o caso de Baltasar de Faria Severin. HESPANHA. António Manuel. A fazenda. IN: O Antigo Regime. História de Portugal. vol. IV. Lisboa: Editorial Estampa. Pg. 181.

54

A mais destacada corrente de pensamento na península ibérica durante

os séculos XVII e XVIII estava ancorada nos princípios da chamada “segunda

escolástica”.4 Tal vertente postulava um retorno à filosofia clássica,

especialmente Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. Um dos mais importantes

princípios defendidos era a mediação popular. Defendia a possibilidade de

colocar em xeque a legitimidade, não da monarquia, mas do monarca, pelo

atributo de incapacidade ou tirania. Ao povo, cabia reivindicar o direito de ser

bem governado com justiça e honra. Subjacente a este princípio havia outro,

igualmente importante, que versava sobre o “bem comum” (utilitas publica).

Esta noção sustentava a supremacia do interesse da comunidade em detrimento

do interesse particular. Para resguardar este interesse havia a figura do Rei

como guardião da justiça, primeira das atribuições reais. Tais noções estavam

amplamente difundidas, e mais de uma vez os súditos reivindicaram o direito a

rebelião, partindo do pressuposto da ilegitimidade de certas posturas da Coroa,

especialmente no ultramar.5 Estas noções permanecem vivas até o final do

antigo regime, ainda que ocorram profundas mudanças na gestão do governo

durante a segunda metade do século XVIII.6

A manutenção do Império, das possessões e senhorios do Rei fora de

Portugal era garantida, além da administração oficial diretamente vinculada à

corte, por uma densa rede de relacionamentos que estava ancorada nos poderes

locais. Não era apenas por uma questão de princípios que o Rei de Portugal não

poderia aniquilar os territórios ou residir neles, como teria sugerido Maquiavel.

A política lusa dependia de uma constante negociação com as elites locais. Era

do resultado desta negociação que se garantia a manutenção territorial e política

do Império, e conseqüentemente, para a Coroa, uma ampliação do número de

súditos e de ganhos econômicos.7

4 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996. 5 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações

ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN: FURTADO, Junia Ferreira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. (Agradeço a Martha Hameister pela indicação deste texto).

6 SUBTIL, José. Governo e Administração. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998.

7 HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.

55

Por causa desta fragilidade havia interesse, por parte da Coroa, em

manter uma negociação constante e diversificada. Por vezes tinha que dar conta

da demanda de grandes parcelas de súditos, que revoltados, exigiam a defesa do

bem comum pelo Rei, diante da atitude ambiciosa de algum particular. Em

outros casos, a Coroa dava vazão às solicitações de determinados grupos ou

particulares, o que muitas vezes colocava por terra o almejado princípio do

utilitas publica. Contudo, mesmo nestas ocasiões, a justificativa para a

concessão se fazia em nome da comunidade, do bem comum. Estamos diante de

uma prática muito recorrente no ultramar luso e que dizia respeito diretamente

à manutenção deste universo. Por outro lado, esta também era uma prática

argumentativa bastante convincente e que, à sua maneira, também contribuiu

para a manutenção da ordem social do Império português.

Procuramos saber as formas de que se valeu a Coroa lusa para garantir o

controle social frente a um tipo específico de insubordinação e transgressão: o

contrabando. Tratamos de perceber a maneira como a Coroa e alguns de seus

emissários mais próximos (como Alexandre de Gusmão e o vice-Rei Luís de

Vasconcelos e Souza) percebiam e lidavam com o problema do contrabando,

fosse na atitude frente aos transgressores ou nas fórmulas que criavam para

compreendê-lo.

Alguns incidentes. Em inícios de 1741 foram presos dois mercadores portugueses em Lisboa,

sob acusação de contrabando. A mercadoria apreendida consistia em um caixote

de relógios ingleses de propriedade de Rodrigo Xavier Teles de Meneses (Conde

de Unhão). Ainda que esteja fora de nosso recorte, tal ocorrido serve para ajudar

a compreender alguns dos casos que encontramos no rio da Prata. Em 21 de

março daquele ano, um dos principais assessores do Rei, Alexandre de Gusmão,

escrevia ao referido Conde, cobrando-lhe reflexão sobre seu ato. Nesta carta,

Gusmão iniciava abusando do superlativo, afirmando que tal transgressão

mereceria “exemplaríssimo castigo”. Na seqüência, contudo, entra em cena um

dos principais recursos discursivos da monarquia: a piedade.

56

“...como príncipe magnânimo e pio, conhecendo que V. Exa. Ignora as obrigações de vassalo e as regras do ofício do bom governador, usando de sua piedade, é servido ordenar – ‘que V. Exa. se abstenha de passar semelhantes ordens, não favorecendo nem ainda permitindo ou tolerando que haja, nem passem contrabandos nos portos desse Reino...”8

Como punição, o Rei solicitava ao dito Conde que adquirisse as

Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas) e as fizesse ler por um secretário

pelo período de seis meses. Destacamos dois aspectos que ficam salientes: a

dissimulação do monarca e o argumento da piedade.

A dissimulação, que fica evidente quando o problema é encarado como

uma simples desinformação do acusado, era uma forma de negociação frente a

impossibilidade de impedir com eficácia o contrabando. Por outro lado, era uma

forma velada de informar o acusado do pleno conhecimento que a Coroa tinha

do comércio ilícito e de seus envolvidos, ainda que não tivesse interesse em

punir a todos, quanto mais alguém de importância social no Reino. Para as

autoridades lusas, ainda que o contrabando não fosse algo aceitável, era melhor

que o rompimento com um nobre.

Tal atitude dissimulada era encoberta pelo discurso da piedade Real. Ao

minimizar a pena de Teles de Meneses, o Rei assumia um de seus papéis mais

importantes, o de supremo juiz:

“... ao ameaçar punir (mas punindo, efetivamente, muito pouco), o Rei se afirmava como justiceiro, dando realização a um tópico ideológico essencial no sistema medieval e moderno de legitimação do Poder, ao perdoar, ele cumpria um outro traço da sua imagem – desta vez como pastor e como pai -, essencial também à legitimação. [...] Tal como Deus, ele desdobrava-se na figura de Pai justiceiro e do Filho doce e amável.” 9

O problema do “perdão”, como um dos atributos do Rei, foi tomado pelos

coevos de modo muito sistematizado, também dentro do pensamento da

“segunda escolástica”. Domingos Antunes Portugal apontava em 1673 que para

a concessão do perdão havia necessidade de uma justa causa. Ao mesmo tempo,

afirmava que uma justa causa seria a vontade do príncipe, ou seja, retornava ao

8 GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1981. Pg. 34. 9 HESPANHA. António Manuel. A punição e a graça. IN: HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O

Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. pg. 221.

57

jogo da piedade, enquanto um elemento de afirmação do poder Real frente a

uma variedade de vassalos a julgar.10

A clemência era objeto da preocupação de Maquiavel, ao se questionar se

era melhor ser temido do que amado. Ao responder à pergunta, pontuava que

era preferível ser ambas as coisas, ainda que, por vezes, o terror fosse um tanto

necessário. De certo modo, Maquiavel postulava de forma quase caricatural o

que a Coroa lusa fazia com muita sutileza e dissimulação. Ambos sabiam que

“...o temor é mantido pelo medo de ser punido, o que nunca termina.” 11

Tempos antes de Gusmão enviar aquela carta, no sul da América

portuguesa, o governador André Ribeiro Coutinho publicava uma portaria para

o degredo de alguns homens presos por introdução de mercadorias dos

domínios espanhóis nos territórios de Sua Majestade Fidelíssima. Tais sujeitos

pretendiam “...vender alguns gêneros de fácil consumo, que sobejam

ordinariamente aos lavradores, e levam ouro em peças e moeda e ainda em

prata, que é a substância das monarquias, fazendo-se réus de crime...”.12

Acabaram todos presos na Ilha de Santa Catarina.13

Desconsiderando a completa ausência de chances que tais sujeitos

tiveram de obter o perdão de Sua Majestade, talvez por sua falta de importância

social ou pouca relevância na defesa do Império, o documento nos informa um

pouco mais sobre o problema do ingresso ilícito de bens nos domínios lusos. A

menção aos valores, especialmente o metálico, é significativa. Por trás disso

havia a preocupação com o saldo positivo no comércio externo, além da

expectativa de acumulação dos metais, imprescindíveis para a estabilidade

econômica. Na teoria financeira dos séculos XVII e XVIII, a acumulação de

metais e o equilíbrio no comércio exterior eram alguns dos pontos necessários

para o crescimento da riqueza do Reino, juntamente com o crescimento

populacional, da indústria e da agricultura14. Um dos maiores expoentes da

teoria financeira do século XVII foi Baltasar de Faria Severim. Ao criticar os

autores que tomaram como objeto o governo político, como Maquiavel, Severim 10 Idem. Pg. 220. 11 MAQUIAVEL. op cit. Pg. 101. 12 ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. vol.1. pg. 126. 13 idem. pg. 127. 14 HESPANHA. António Manuel. A Fazenda. IN: HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O Antigo

Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. Pg. 182.

58

dizia que estes “...escrevem dos grandes tesouros e rendas que o Príncipe há de

ter, e não dão remédios para se ajuntar este dinheiro, e para as rendas do

presente se desempenharem.”15

Tal problemática continuou atual durante o século XVIII. Em 1748, o já

referido Alexandre de Gusmão escrevia uma pequena carta ao Rei, falando dos

problemas da receita do Reino:

“O dinheiro é o sangue das monarquias extraído do corpo delas enfraquece da mesma forma que acontece aos corpos humanos quando se lhes tira o sangue. A este modo de fraqueza se vai conduzindo Portugal, pois que tanto se trabalha em extrair-lhe a moeda que ele caminha para a pobreza e por conseqüência para a ruína.” 16

Impressiona a semelhança com o texto já citado de André Ribeiro

Coutinho, quando fala da prata como “substância das monarquias”. Gusmão

“carrega nas tintas” propondo uma analogia que tem como conseqüência final a

“morte” do Reino. A analogia do corpo é bastante convincente, na medida em

que neste período prevalece a noção corporativa de sociedade, onde cada parte

constitutiva do Reino estaria ligada ao restante, na mesma relação em que os

órgãos estariam para o corpo humano. A extração da substância vital faria todo

o corpo social desfalecer, não apenas a cabeça, entendida na figura do Rei.17 É o

que se percebe na continuação do documento: “...continuamente se vai

empobrecendo com perda irreparável para seus habitantes que sentem este

dano sem lhe poderem aplicar remédio.”18 Isoladamente, os habitantes não

teriam condições de remediar o problema, e cabia a ação de Sua Majestade,

como protetor e “cabeça” da sociedade. Esta perspectiva também era objeto da

“segunda escolástica”, e se enquadrava no princípio, já referido, da mediação

popular. Se a cabeça não organizasse a sociedade de modo justo, diante da

dificuldade, era legítimo trocá-la ou revoltar-se.

15 Severim, Baltasar de Faria. Advertimentos dos meios mais eficazes e convenientes que há, para o

desempenho do patrimônio real e restauração do bem público destes Reinos de Portugal sem opressão do povo e com comum utilidade de todos. APUD: HESPANHA. António Manuel. A Fazenda. op cit. Pg. 181.

16 Lata 3. Doc. 19. IHGB. 17 HESPANHA, Antonio Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do

Poder. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. pg. 118.

18 Lata 3. Doc. 19. IHGB.

59

Ter no Rei o “cabeça” da sociedade é uma noção que marca o final do

Antigo Regime português. Já no termo do século XVIII a figura do Rei centraliza

grande parte das prerrogativas do governo, através de uma estruturação mais

eficaz dos meios de gestão.

Ao tomar esta problemática, estamos apenas apresentando alguns dos

caracteres do pensamento político dos séculos XVII e XVIII. Questões como a

mediação popular (especialmente na sua forma mais comum, a representação

ao Rei) e a preocupação com o equilíbrio do comércio externo serão pontos

reincidentes na documentação que trata do contrabando.

Tais preocupações não eram as únicas da Coroa em sua atuação no drama

do comércio ilícito. A manutenção do Império em regiões remotas dependia de

uma intrincada rede de relacionamentos, uma teia densa, que se expandia por

todo o Império luso e que se valia das mais distintas alianças. Além destas

alianças, havia a prática, por parte da administração lusa, de fazer vista grossa a

toda uma sorte de atitudes ilícitas de seus vassalos, ainda que isso tivesse um

limite. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo aponta a dissimulação e o

segredo como algumas das principais táticas empregadas pelos administradores

lusos a partir do século XVII19. Muito mais do que a repressão violenta estas

eram as armas que garantiam a continuidade territorial e populacional de

Portugal no Ultramar, frente a qualquer tipo de rebelião. Segundo o autor,

havia, por trás desta prática, uma profunda adesão a uma “teoria da

legitimidade da dissimulação” que influenciaria todas as esferas da gerência

lusa.

Partindo desta noção podemos procurar entender alguns casos

interessantes da atuação de Sua Majestade em negócios no Ultramar. Em 1749 a

Coroa intervinha diretamente na cobrança de dívida que um comerciante

português, Feliciano Velho Oldemberg, tinha a receber na praça de Buenos

Aires. Para efetuar a cobrança, a Coroa valeu-se da ação de seu representante

mais próximo daquela cidade, Luís Garcia de Bivar, governador da Colônia do

Sacramento. Novamente era Alexandre de Gusmão o interlocutor indicado pelo

19 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações

ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN: FURTADO, Junia FerReira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. Pg. 229.

60

Rei. Em sua correspondência com Garcia de Bivar, Gusmão demonstra a política

de dissimulação adotada pela Coroa em relação ao contrabando. Ao solicitar

intervenção de Bivar junto ao governador de Buenos Aires, Gusmão deixava

claro o quanto a Coroa sabia do comércio de contrabando existente no rio da

Prata:

“...ainda que o comércio dos Portugueses nesses continentes da colônia e Buenos Aires seja manejado continuamente em uma negociação clandestina, toda dependente de um mero contrabando [...] sendo, como é, proibido pelas leis e ordens dos governos de Portugal e Castela, contudo, com o lapso do tempo na continuada tolerância do mesmo comércio, de muitos anos a esta parte, pelos governadores e oficiais de Justiça e Fazenda das ditas duas praças fronteiras, mediante a boa harmonia e amizade das Coroas e dos vassalos de ambos os Reinos...” 20

Gusmão não somente admitia ter plena ciência das atividades ilegais,

como assumia, igualmente, a permissividade com que a Coroa tratava tal tema,

pelos ganhos que seus súditos obtinham deste negócio. Ao assumir seu

conhecimento do assunto e sua benevolência em relação àqueles vassalos

contrabandistas, o Rei se colocava na figura de um pai generoso. Contudo, esta

postura exigia uma reciprocidade, esperada de filhos leais:

“...com a mesma tolerância, que Sua Majestade proteja os seus vassalos interessados no mesmo comércio, me ordena o dito Senhor que avise V. Sª. para que se empenhe com a maior eficácia com o governador de Buenos Aires a favor de Feliciano Velho Oldemberg...”21

Neste documento ressalta-se, com efeito, a adoção da teoria da

dissimulação como forma de atuação da Coroa em locais onde se fazia difícil sua

intervenção efetiva. A expressão “tolerância” é continuamente utilizada, não

apenas explicitando a dissimulação, mas indicando a benevolência e a piedade

Real frente ao pleno conhecimento das atividades ilícitas e passíveis de punição.

Além disso, Gusmão afirmava que o contrabando era executado e tolerado “de

muitos anos a esta parte”22, denotando a ancestralidade da política de

dissimulação frente ao problema do comércio ilícito no rio da Prata.

20 GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1981. Pg. 54. 21 Ibidem. Grifo nosso. 22 Ibidem.

61

Da mesma forma, ressalta-se no texto a intenção de negociar. Esta

permitia aos vassalos que transgredissem a lei e cobrava esta permissão quando

necessário. Assim, o Rei não deixava de beneficiar os súditos, de modo geral,

garantindo que todos tivessem acesso a alguma permissividade Real,

especialmente quando estavam distantes de sua magnificência e longe de atingir

alguma graça. De certo modo, era uma forma de evitar as temidas revoltas.23 Por

outro lado, era uma forma possível de colocar em prática o velho princípio do

bem comum, ainda em voga.

Durante os anos 1750 algumas capitanias do Brasil foram atingidas por

um grande infortúnio. Além da seca, que afetara em cheio às plantações, as

criações de cavalos da Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão sofriam a

concorrência do “...grande número de cavalgaduras que os espanhóis

introduziram nas Minas, de que resultava depreciamento no valor dos Cavalos

daquele sertão...”, como dizia o governador do Maranhão, em 1754.24 Por conta

desta situação, os habitantes daqueles sertões haviam solicitado junto ao Rei

medidas que lhes favorecessem.

Em 1761 o monarca atuava em defesa daqueles homens, proibindo a

entrada e saída de bestas muares de seus domínios no Estado do Brasil. Fazia

isso em defesa do “bem comum dos lavradores dos sertões da Bahia, de

Pernambuco e do Piauí”, que eram prejudicados pela introdução daqueles

animais. A arte da negociação aqui se mantém, sob a continuada alegação do

bem comum. Interessante notar que neste caso a expressão “bem comum” é

qualificada, referindo-se apenas aos lavradores dos sertões, e não ao um

abstrato conjunto de súditos. Seguia presente a idéia da mediação popular, não

apenas como legítima, mas como indispensável para a boa sobrevivência do

Reino. Foram aqueles lavradores que reivindicaram a justiça do Rei. Era para

eles que se devia dar mercê e praticar a justiça.

Nem todos os vassalos de Sua Majestade ficaram satisfeitos. Os

moradores do Rio Grande de São Pedro fizeram uma representação ao Rei,

23 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações

ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN: FURTADO, Junia Ferreira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001.

24 Cód. 952. Vol. 38. pg. 413. Arquivo Nacional.

62

afirmando que eram criadores de bestas muares, que dependiam daquelas

criaturas para manter-se naquelas paragens.25

Em 24 de dezembro de 1764, o Rei deliberava outra vez a respeito do

assunto. Desta vez, concedendo e incentivando a criação de muares, bem como

sua circulação na colônia. Novamente, invocava o princípio da utilidade comum

para referendar sua decisão. Ao contrário da posição anterior, desta feita era o

“bem comum dos meus vassalos”26 que era o fundamento e base da vontade

Real. Ainda assim, o Rei não havia desagradado aos criadores dos sertões da

Bahia, Piauí e Pernambuco, pois mantinha a proibição aos muares vindos dos

domínios espanhóis, até mesmo porque tal introdução prejudicava aos vassalos

criadores de muares do sul.27

Ao afirmar sua atitude, o Rei demonstrava-se novamente na figura de um

pai zeloso. A própria forma como apresenta sua mudança de opinião denota

isso: “Que por quanto não podia ser da minha Real intenção prejudicar aos

Meus Fiéis vassalos que dentro do continente do Estado do Brasil se tinham

louvadamente aplicado à criação das bestas muares…”28. Era mais uma vez a

cabeça da sociedade corporativa funcionando e garantindo sua conservação

econômica e política. Esta preocupação legislativa da Coroa é mais uma

característica do pensamento político do final do antigo regime. Como parte

integrante do processo de centralização do poder do Rei, e da reestruturação e

fortalecimento do aparato administrativo, as leis vinham a delimitar cada vez

mais as liberdades e espaços dos vassalos. Emanada pelo monarca, a legislação

contribuía para seu fortalecimento como “cabeça” da sociedade e reforçava sua

posição de mantenedor do bem-estar e da segurança. 29

Textos produzidos pela Coroa ou por seus administradores que tratassem

sobre a circulação de gados dos domínios espanhóis para os territórios lusos na

América seriam escassos entre 1765 e 1780. Entretanto, na colônia, os

problemas estavam apenas começando. Tal comércio nunca chegara a ser 25 ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:

Hucitec-Edusp, 1990.pg. 93. 26 Carta do Rei ao Vice-Rei Conde da Cunha. APUD: SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do

Brasil. São Paulo: CEN, 1940. Pg. 191. 27 Ibidem. 28 Ibidem. 29 SUBTIL, José. Governo e Administração. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN:

MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998.

63

considerado ilegal, e muitos se dedicavam a ele. Por outro lado, ao proteger

aqueles vassalos criadores de muares, o Rei ficara em crédito. Todo pai zeloso

merecia a lealdade de seu filho. Essa questão, muito discutida, especialmente no

Rio Grande de São Pedro, dera motivo para a criação de muitos documentos.

Por hora estaremos atentos para o que pensavam o Rei e seus encarregados

mais próximos.

Após estes incidentes a Coroa não mais tratou de deliberar com especial

atenção para o problema das bestas muares da América. De certo modo, já era

farta a legislação a respeito. Além das instruções acima citadas, as próprias

Ordenações Filipinas previam a restrição da circulação de animais entre

Portugal e Espanha. Eram permitidas apenas as mulas estritamente necessárias

para o transporte. A própria circulação de gados era objeto importante desta

legislação que previa penas severas para os infratores que circulassem grande

quantidade de gado. Exceção à regra, os burros (equus asnus), poderiam

circular livremente, tanto na Europa como na América, ainda que este fosse um

ponto freqüentemente polêmico e discutível.30

Mesmo tendo criado esta legislação, a Coroa lusa utilizou-se ainda de

novos princípios jurídicos para justificar embaraços a negócios de gado no rio

da Prata. Ao barrar uma negociação de gado em 1780, o governador do Rio

Grande de São Pedro alegava como motivos as proibições Régias ao comércio

com estrangeiros, e nem sequer mencionava as proibições ao ingresso de

muares:

“...as Reais ordens de Sua Majestade Fidelíssima que expressamente proíbem a compra e venda nos seus domínios e portos da América de quaisquer gêneros pertencentes a estrangeiros, exceto em caso de urgente necessidade…” 31.

Neste episódio a política adotada pelo governador foi, ainda, a do

segredo. Deu-se que uma tropa de animais foi apreendida pela guarda

portuguesa quando ingressava no continente do Rio Grande, vinda dos

domínios espanhóis. Após o confisco e a retirada do quinto, os animais foram 30 Ordenações Filipinas. Versão ON LINE. Versão para internet baseada na edição de Cândido Mendes,

Rio de Janeiro, 1870. http://www.uc.pt/inti/proj/filipinas/ORDENACOES.HTM. Consultado em 08/08/2002.. Pg. 1268.

31 Cód. 104. Vol. 02. pg. 164-170. Arquivo Nacional.

64

entregues a um comissário espanhol encarregado de receber a devolução dos

gados contrabandeados. Este retirou parte do gado para distribuir entre seus

soldados e tratou logo de vender o restante para um estancieiro do Rio Grande,

o reverendo padre Pedro Pereira Fernandes de Mesquita. O estratagema foi logo

descoberto e o governador da capitania, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da

Câmara ordenou que se devolvessem os gados e o dinheiro para as partes, mas

sob total sigilo, especialmente pelo envolvimento de um sujeito dedicado ao

combate ao contrabando.32

Poucos anos depois a rainha Dona Maria, a louca, baixava um alvará

sobre contrabandos e descaminhos no Estado do Brasil. É provável que tal

documento objetivasse um controle maior sobre outros negócios ilícitos da

colônia. Contudo, tal alvará foi utilizado por autoridades locais para regulação

do contrabando de animais. As suas principais deliberações previam a cobrança

de quinto dos contrabandos apreendidos, assim como a perseguição, prisão e

multa aos contrabandistas. Aqueles que prendessem contrabandistas em

flagrante delito ficariam com 4/5 do total da carga. Tampouco haveria jurisdição

para a ação anticontrabando. Qualquer pessoa poderia prender contrabandistas

em qualquer lugar.

Tal documento nos demonstra a continuada preocupação que a Coroa

mantinha com os contrabandos. Segundo a rainha, tal alvará se dava não só

pelos contínuos prejuízos da Real Fazenda com os extravios, mas,

especialmente, pelo “...dano irreparável do comércio lícito e legal de meus leais

vassalos...”. Novamente a preocupação com os vassalos era argumento para a

atitude régia. O “bem comum” continuava a ser um bom artefato discursivo.

Contudo, tal documento é mais interessante pela sua recepção, especialmente

na fronteira.

Um mestre dos disfarces: Luís de Vasconcelos e Souza. Numa tarde de maio de 1789 o vice-Rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e

Souza, dava ordem de prisão para dois homens acusados de conspiração.

Joaquim da Silva Xavier e Joaquim Silvério dos Reis estavam envolvidos numa

32 Cód. 104. Vol. 02. pg. 164-170. Arquivo Nacional.

65

grande trama que acabou passando para a história com o nome de

“Inconfidência Mineira”.33

Naquele dia, Vasconcelos e Souza não perdeu um minuto sequer. Ao

saber das acusações e desconfianças, tratou logo de encarcerar a todos que

podia.34 Havia sido aconselhado por um sobrinho a agir de forma muito

diferente. Luís Antonio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena, havia

sugerido total sigilo e discrição para o caso, a fim de negociar com os

conspiradores, “...sem grande publicidade...”35, especialmente pela força que

aqueles homens tinham na localidade. Uma clara política de dissimulação

estava presente no pensamento de Barbacena.36 Todavia, Vasconcelos e Souza

prendeu aqueles homens e ordenou que se fizesse uma rigorosa devassa para

apurar o crime de conspiração, bem ao contrário do que esperava Barbacena.

Talvez porque Barbacena lembrasse que em outros momentos era a

dissimulação uma das principais armas de que se valia Vasconcelos e Souza.

A maneira como o mesmo Vice-rei lidava com certos problemas

relacionados com a fronteira do Rio Grande e, em especial, com o contrabando,

não frustraria nenhuma das expectativas de Barbacena. O porquê de

Vasconcelos não ter dissimulado em relação aos inconfidentes é uma questão

que não se propõe agora, ainda que a comparação seja interessante. O que nos

interessa é verificar a atitude de Vasconcelos em relação a outras transgressões,

e que da mesma forma que o motim mineiro, colocavam em risco a manutenção

da totalidade do Império.

Em oito de novembro de 1783 Luís de Vasconcelos enviava duas cartas.

Possuíam um conteúdo muito semelhante e eram destinadas a dois oficiais da

Coroa portuguesa que exerciam seus postos no Rio Grande de São Pedro. Os

destinatários eram o governador do Rio Grande, Sebastião Cabral da Câmara e o

comandante da fronteira, Gaspar José de Matos Ferreira e Lucena.

Aconteceu que o Vice-rei havia recebido uma carta, assinada pelos

“pobres da fazenda Real”37 como se pretendiam seus autores. A mensagem

33 MAXWELL, Kenneth. A Devassa da devassa. São Paulo: Paz e Terra. 1985. pg. 178. 34 Ibidem. 35 Idem. Pg. 177. 36 Idem. Pg. 169. 37 Cód. 104. Vol. 06. Pg. 145v. Arquivo Nacional.

66

continha uma extensa lista de acusações que era feitas ao coronel Rafael Pinto

Bandeira, a maior parte delas relativas ao comércio ilícito praticado por tal

sujeito.38 Diante de uma listagem tão grande de reclamações de um número

ignorado de súditos, Luís de Vasconcelos ordenara, secretamente, a dois oficiais

distintos que apurassem as queixas.39 Para o governador Cabral da Câmara

ordenou que devesse “... procurar informar-se com o maior segredo de todo

o seu conteúdo [das denúncias]...”.40 Da mesma forma, ordenara ao comandante

da fronteira, Gaspar José de Matos Ferreira e Lucena, que procurasse

“...debaixo do maior segredo descobrir a verdade ou falsidade de todos

aqueles fatos para me dar a mais exata e fiel informação...”.41 O governador

Cabral da Câmara, contudo, enviou alguns dias depois uma carta afirmando a

impossibilidade de levar a investigação secreta a cabo, devido à falta de

confiança que tinha de possíveis testemunhas. O Vice-rei lhe escrevia

novamente em março de 1784, reafirmando a necessidade de uma investigação

discreta:

“a opressão do povo, como os interesses da Fazenda Reais eram e deviam ser os verdadeiros estímulos para Vossa Senhoria procurar adquirir as informações mais exatas, ainda que estas se viessem a alcançar por um modo indireto, para a tempo se aplicarem os meios mais próprios para se evitarem as péssimas e enormíssimas [sic] conseqüências que se podem recear daqueles sobreditos fatos [...] não faltam pretextos nem deixam de haver muitos rodeios para se conhecer a verdade sem que esta pareça estranha e ofensiva a qualquer que haja de ser dela o informante...”42

Seguindo as instruções de Vasconcelos e Souza, tanto o governador como

o comandante da fronteira realizam suas investigações. Cabral da Câmara

acabou fazendo uma pequena devassa, interrogando várias pessoas sobre

pontos genéricos das denúncias, de modo a despistar eventuais desconfianças

sobre o real fim da investigação. O governador remeteu para o Vice-rei, logo

38 Analisaremos tal documento com mais atenção na próxima parte. Um autor que trabalhou com esta

fonte de modo muito sério e com outro enfoque foi SILVA. op cit. 39 SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De Bandoleiro a Governador. Relações entre os poderes

privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: 1999 (Dissertação de mestrado – PPGH/UFRGS).

40 Cód. 104. Vol. 5. Pg. 175. Arquivo Nacional. Grifo nosso. 41 Cód. 104. Vol 5. Pg. 175-176. Arquivo Nacional. Grifo nosso. 42 Cód. 104. Vol. 6. Pg. 560. Arquivo Nacional. Grifo nosso.

67

depois, não apenas os autos dos interrogatórios, mas toda a descrição do

procedimento utilizado, onde se percebe a total preocupação com a discrição.43

Já o comandante da fronteira, Ferreira e Lucena, enviou um relatório

sucinto onde citava as denúncias e declarava, abaixo de seu conteúdo, a

veracidade das informações. Não citou fontes nem testemunhas, mas confirmou

a maioria das denúncias.

Durante todo o processo, Vasconcelos e Souza manteve uma preocupação

muito séria de manter sob total sigilo a investigação realizada. Novamente

temos tônica da dissimulação como uma estratégia bem elaborada de

manutenção da ordem social. Não se tratava apenas de uma prática regular dos

administradores portugueses, mas sim, do resultado de um esforço intelectual

metropolitano, que se enquadrava dentro da problemática dos poderes e

deveres dos príncipes. Já em meados do século XVII, no Conselho Ultramarino,

tal noção se fazia presente para legitimar a posição frente aos conflitos na

colônia: “porque, quando as forças não são conformes ao respeito dos fins, é a

dissimulação em tais matérias o meio mais seguro entre a conservação do

estado e autoridade dos príncipes”44 Talvez isso ajude a explicar a ação forte de

Vasconcelos e Souza frente aos inconfidentes, na medida em que neste incidente

conseguira agir com rapidez, prendendo logo aqueles que ele chamava de

“cabeças”.

Já no caso das denúncias de contrabando, o Vice-rei encontrava-se frente

a um dos mais conceituados militares que a Coroa portuguesa contava no Rio

Grande. Rafael Pinto Bandeira havia se destacado por comandar o ataque e

tomada de importantes fortalezas castelhanas e de contribuir, deste modo, para

a retomada de territórios reivindicados pela Coroa e súditos lusitanos. O Vice-

rei sabia bem disso. Em um relatório45 que fez ao secretário de Estado e

Ultramar, Martinho de Melo e Castro, Vasconcelos declarara que tinha por

verdadeiras aquelas denúncias feitas contra Rafael, mas que, ainda assim:

43 Cód. 104. Vol. 9. Pg. 233. Arquivo Nacional. 44 Parecer do Conselho Ultramarino e Treslado de uma junta que se fez sobre os avisos que agora se

tiveram do Rio de Janeiro e da morte de Luiz Barbalho Bezerra. Rio de Janeiro, 1644. AHU – Bahia. Luisa da Fonseca. Doc. 1077. pg. 6-7. APUD.: FIGUEIREDO. Op cit. Pg. 230.

45 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos, em outubro de 1784, sobre o Rio Grande do Sul. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ano IX. 1929.

68

“...não me pareceu conveniente romper inteiramente com o dito oficial, que no

tempo da guerra é muito necessário naquele continente pelo préstimo que tem

de espantar os espanhóis e conhecer pela experiência aquelas vastas

campanhas que tem pisado...”.46

Para tentar coibir as atitudes ilícitas de Rafael, o vice-Rei adotara a

dissimulação, fazendo-se “desentendido”47 do problema, e indicando o citado

oficial para comandante da “maior vigilância sobre os contrabandos, e o fiz

responsável da falta de providência que fosse necessária para o reprimir.”48

Fica patente a manutenção da teoria da dissimulação até fins do século

XVIII. A atitude e os argumentos utilizados por Vasconcelos demonstram esta

permanência. Diante da impossibilidade de coibir com eficácia o contrabando,

Vasconcelos optou por utilizar-se de armas mais sutis, na esperança de que

Rafael contivesse seus ilícitos negócios, ainda que soubesse que “sendo o

remédio paliativo, o será também a emenda”. Para Vasconcelos, a opção que

restava seria trazer Rafael para o Rio de Janeiro, afim de afastá-lo dos

contrabandos por algum tempo. O Vice-rei estava ciente de sua impossibilidade

de agir, e da necessidade de bancar o desinformado, para em momento

oportuno, agir convenientemente.

O assunto não se encerrou por ali. Novamente, em um ofício de dezembro

de 1786, o Vice-rei queixava-se da continuidade dos contrabandos, dos

problemas diplomáticos que isso gerava com os domínios espanhóis e da

responsabilidade de Rafael Pinto Bandeira:

“... me pareceu muito conveniente ao serviço de Sua Majestade e ao sossego recíproco de ambas as fronteiras, mandá-lo retirar para esta capital debaixo do pretexto de me ser necessário ter com ele uma secretíssima conferência sobre diversos negócios daquele continente...”.49

Novamente surgia a idéia de retirar Pinto Bandeira da fronteira, com o

objetivo de tentar eliminar ou diminuir o contrabando. Algo neste documento

guarda relação com as cartas enviadas pelo vice-Rei tempos antes, para o

46 Idem. Pg. 28. 47 Ibidem. 48 Ibidem. 49 Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico

do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ano IX. 1929.

69

governador e para o comandante da fronteira. Não apenas o sigilo era

necessário para o bom desempenho da política de dissimulação, como também a

necessidade contínua de “pretextos” para as atitudes tomadas, o que demonstra

a fragilidade do poder das autoridades lusas no contexto. O governador

necessitava de pretextos para realizar uma investigação e para inquirir diversas

pessoas sobre um tema que era de sua responsabilidade, o que, por si só,

dispensaria qualquer pretexto. Da mesma forma, o vice-Rei, autoridade máxima

na colônia, carecia de pretextos para chamar um Oficial para o Rio de Janeiro.

Na continuação da carta, o Vice-rei dá mais algumas pistas sobre os

relacionamentos entre a Coroa e os súditos dentro da política de dissimulação.

Não se tratava de uma via única, com a dissimulação praticada exclusivamente

pela Coroa. Segundo Vasconcelos e Souza, um súdito como Rafael Pinto

Bandeira sabia muito bem desta situação como também sabia jogar com ela:

“...ele sabe figurar com grande astúcia e sutileza para se mostrar muito necessário naquele continente, capacitando-se talvez que todos os seus procedimentos por péssimos que sejam devem ser disfarçados e tolerados por quem governa apesar das funestas conseqüências que possam produzir...”.50

A dissimulação, neste sentido, adquiria uma dimensão muito maior. Os

súditos faziam-se de fiéis vassalos e a Coroa tratava os problemas como se deles

ignorasse, tentando, de algum modo, colocar-lhes barreiras. Rafael sabia muito

bem o papel que tinha a desempenhar. Nisso destacava-se com ótimas atuações.

Neste mesmo ofício, Vasconcelos e Souza informava a Coroa sobre as

novas medidas anticontrabando. Já que Rafael Pinto Bandeira estaria no Rio de

Janeiro, a seu pedido, o vice-Rei iria indicar um governador para o Rio Grande

que pudesse “... com todo o disfarce e segredo possível adquirir as notícias

mais exatas sobre os referidos contrabandos e os seus principais cabeças que

os tem promovido...”.51 Era a nova tentativa que tinha de apurar fatos sobre o

comércio ilícito. Continuava, depois de vários anos de tentativas frustradas, com

a intenção de manter o disfarce e o segredo, como algumas das poucas armas

que lhe restavam. As investigações continuaram, mas sem efeito. Rafael Pinto

50 Ibidem. 51 Ibidem.

70

Bandeira foi ao Rio de Janeiro, e dali para Lisboa, onde foi recebido com honras

pela Rainha. Retornou, depois, para o Rio Grande de São Pedro e aos seus

negócios, lícitos ou não.52

A teoria da legitimidade da dissimulação, incorporada pela administração

lusa concebia uma condição para seu uso. Se atentarmos novamente para as

palavras dos membros do Conselho Ultramarino, que talvez seja quem melhor

explicitou este ideário, era “quando as forças não são conformes ao respeito

dos fins”53 que a dissimulação se fazia necessária para conservar a autoridade, e

subentendam-se, os próprios territórios do príncipe. Frente a este ponto, resta

saber o que justificaria o emprego da dissimulação no lugar das “forças”, no

combate ao contrabando no sul da colônia lusa.

Um elemento recorrente nos documentos produzidos por Vasconcelos e

Souza é o temor (real ou não) da perda do Rio Grande para os espanhóis.

Quando o Vice-rei escreveu ao governador e ao comandante da fronteira

pedindo investigações sobre os contrabandos, fazia pouco mais de cinco anos

que os portugueses haviam retomado terras que reivindicavam na região. Um

dos grandes responsáveis pela vitória lusa fora Rafael Pinto Bandeira.

Para Vasconcelos, o Rio Grande era um território arriscado, “... sendo

tantas vezes atacado e quase sempre ameaçado de inimigos tão vizinhos...”. 54

Esta preocupação com a ameaça espanhola é constante em todo o relatório que

fez ao secretário de Estado e Ultramar em 1784. A possibilidade da guerra, como

a alternativa mais factível para a retomada de terras também acompanha o

texto. Em diversos momentos Vasconcelos falava de suas iniciativas visando a

ampliação dos rebanhos para o abastecimento das tropas, seja com rações ou

montarias. Da mesma forma, em algumas partes, relembrava o acontecido de

1762, quando os espanhóis tomaram a vila de Rio Grande sem maiores

dificuldades. No oficio que enviou em 1786 para Lisboa, Vasconcelos e Souza

novamente retomava a questão da possibilidade da perda do Rio Grande, e

demonstrava toda sua preocupação com as sutilezas necessárias para a

52 SILVA. op cit. 53 Parecer do Conselho Ultramarino e Treslado de uma junta que se fez sobre os avisos que agora se

tiveram do Rio de Janeiro e da morte de Luiz Barbalho Bezerra. Rio de Janeiro, 1644. AHU – Bahia. Luisa da Fonseca. Doc. 1077. pg. 6-7. APUD.: FIGUEIREDO. Op cit. Pg. 230.

54 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos... Op cit. Pg. 24.

71

manutenção da ordem naquele território, especialmente no trato com os

espanhóis.55

A preocupação de Vasconcelos reflete uma inquietação de boa parte da

administração portuguesa em relação à manutenção de seus domínios no sul da

América. Ainda assim, Vasconcelos construía, em seus documentos, um cenário

de profundas incertezas, onde qualquer erro ou falta de tato político poderia

colocar em risco a fronteira. Tendo em conta que estamos analisando

documentos produzidos para a própria administração lusa (um relatório e um

ofício) e considerando que o público leitor era constituído especialmente pelo

secretário de Estado e Ultramar e pela Rainha, era conveniente a Vasconcelos

justificar toda a flexibilidade de sua conduta pela ameaça continuada da perda

dos territórios. Neste sentido, a constante referência aos espanhóis vizinhos e

belicosos não deixava de ser uma parte importante da argumentação utilizada

pelo Vice-rei, ainda que fosse baseada em problemas concretos.

Dentre os problemas analisados por Vasconcelos e Souza relativos a

fronteira, o contrabando tinha especial destaque. O Vice-rei faz uma

interpretação bastante refinada sobre a questão, propondo uma diferenciação

entre os agentes envolvidos no comércio ilícito e suas principais motivações.

Para iniciar seu argumento, Vasconcelos criava um cenário de

decadência. Na narração do Vice-rei56 surgiam vítimas e culpados, governadores

extravagantes e comerciantes ambiciosos. O Rio Grande era um vasto território

onde não havia produção suficiente e nem comércio significativo. Uma área sem

esperança para os povos, onde as iniciativas distintas da criação do gado

estariam fadadas ao fracasso. A Coroa tentara iniciar ali a produção de linho

cânhamo e de cochonilha, mas só obtinha insucessos e despesas avultadas. A

criação de animais nas fazendas de Sua Majestade estava em total decadência,

quase não havia animais para a remonta das tropas militares. Não fosse

suficiente, a Coroa sustentava, sem nenhuma compensação, aldeias inteiras de

índios ociosos, que em nada contribuíam para a Fazenda Real.

A tragédia tinha culpados. Os principais vilões, segundo Vasconcelos e

Souza, eram os governadores do Rio Grande: “A maior parte dos que tem

55 Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro... Op. Cit. 56 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op. Cit.

72

ocupado aquele governo ou tem ali estado sem se moverem do lugar da sua

residência, entregues ao ócio e a indolência ou tem governado por mera

fantasia...”57 Entre os principais problemas estavam a falta de alternativas

econômicas viáveis para os súditos e a falta de ação contra o comércio ilícito. O

governador José Marcelino de Figueiredo foi um destes, que, governando por

aparências e “ ...deixando viver os povos sem indústria e sem comércio, não

procurou fechar a estrada... ”58 propiciando assim o crescimento do

contrabando. Com esta afirmação, o Vice-rei preparava a apresentação de mais

dois personagens da trama: os vassalos miseráveis e os ambiciosos

contrabandistas.

Seguindo uma linha de análise que considerava a administração colonial

dentro da esfera de responsabilidades do Rei como pai de seus súditos,

Vasconcelos impunha aos governadores a necessidade de criação de alternativas

de sobrevivência para os vassalos. Neste sentido, na falta destas alternativas,

qualquer desvio de conduta dos súditos não só era legítimo como aguardado:

“...a origem principal dos mesmos insultos [atividades ilícitas] que tinha sua raiz no desmazelo, no ócio dos povos, e na falta da precisa regularidade com que se devia procurar aplicá-los a industria e ao trabalho para nele se entreterem abandonando os seus reprovados costumes.”59

Uma das primeiras medidas necessárias para acabar com aquela situação

miserável era dar outra forma a distribuição de terras na área. A distribuição

que havia estava longe da que Sua Majestade gostaria. A exclusão do acesso a

terras, na óptica de Vasconcelos era mais um agravante na decadência daquela

fronteira. O problema, contudo, não estava na hierarquização que privilegiava

uns em detrimento de outros. Estava na concentração demasiada que havia

naquelas paragens, onde uns dispunham de grandes extensões que manejavam

a seu critério, de forma ambiciosa e contra as ordens de Sua Majestade, que

concedia terras conforme as condições e qualidades de cada suplicante, sem

abuso e preocupado com o “bem comum”:

57 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op cit. Pg. 17. 58 Ibidem. 59 Idem. Pg. 18.

73

“... para haver de qualquer providência se estender a todos os vassalos de Sua Majestade devem uns cooperar para a felicidade de outros, de modo que, sendo as utilidades particulares, possam em comum fazer a felicidade do Estado [...] que não façam a uns mais abundantes e a outros muito indigentes, devendo conseqüentemente a balança para bem universal conservar um equilíbrio tão certo e proporcionado que possa regular a possibilidade e a impossibilidade, reduzindo-se os ociosos ao trabalho e convocando-se os dispersos e sem domicilio a sociedade de outros já estabelecidos.” 60

Novamente a tônica do “bem comum” permeia as argumentações do

Vice-rei, que se apresenta zeloso da justiça entre os vassalos como todo

administrador fiel deve ser. Esta preocupação com o bem estar dos vassalos não

afetava de modo algum o bem estar particular. Como o próprio Vasconcelos

afirmou, a felicidade geral depende das utilidades particulares, desde que não

houvesse abuso ou ambição por parte de uns. Esta noção, criada no século XVII,

dentro do paradigma corporativo da “segunda escolástica”, ainda mantinha-se

forte em fins do século XVIII.61

Não era a preocupação com o bem estar dos súditos, contudo, que regia a

vida na fronteira do Rio Grande. Além dos governadores ineptos ou

desinteressados, havia outra sorte de gente que prejudicava o Real interesse no

bem dos povos. Ao reafirmar em seu Relatório a falta de oportunidades que

havia para os vassalos no Rio Grande, Vasconcelos nos diz quem eram aqueles

homens ambiciosos, e como eles agiam. Havia, segundo ele,

“grande número de indivíduos brancos, índios e mestiços que andam vagando por aqueles distritos sem meios de subsistirem e sem agências para os procurarem, seguindo quase por necessidade um modo de vida servil debaixo da subordinação dos famosos mestres dos contrabandos, que os chamam e convidam para os acompanharem nos rodeios e caminhos que ele tem praticado no giro de seus ilícitos comércios.”62

O problema, para Vasconcelos, residia na falta de zelo de uns e na

desenfreada ambição de outros, contribuindo assim para o mal estar geral e

60 Idem. Pg. 29. 61 Mais sobre o assunto em HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O Antigo Regime. op cit. Pg. 118-122. 62 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op cit. Pg. 29. Grifo

nosso.

74

decadência daquelas paragens. Ainda que pudesse verificar no contrabando

uma forma de inclusão daqueles homens miseráveis, a preocupação com os

conflitos com Espanha e com as grandes perdas que havia nos rendimentos da

Fazenda Real eram argumentos muito mais significativos para Vasconcelos.

O caso das vinte mil mulas Ignora-se quando foi feito o requerimento. Tudo o que sabemos é que o

despacho de Dom João VI, permitindo que Antônio Manuel de Jesus e Andrade

ingressasse nos domínios do Brasil com vinte mil mulas fora dado em meados

de 1802. Sabemos também, pela resposta Régia, que o argumento utilizado por

Jesus e Andrade fora de que tinha dívidas para receber de alguns castelhanos

que estavam do outro lado da fronteira, no valor de setenta mil cruzados. Tal

dívida havia sido contraída na casa de comércio que Jesus e Andrade dizia ter,

no Rio Grande de São Pedro. Como não tinham outra forma de pagar o que lhe

deviam, os castelhanos ofereceram a Jesus e Andrade vinte mil mulas, para o

ingresso das quais ele pedia licença ao Príncipe.

Ao conceder a permissão, Dom João argumentava que era justa a

solicitação daquele vassalo, ainda que fosse sempre preferível reprimir o

contrabando. O negócio, contudo, foi entendido por Sua Alteza como uma

importação necessária, dentro da mesma perspectiva que o governador Cabral

da Câmara havia tomado em um caso anterior, já citado:

“...é contudo de recíproco interesse das nações não estorvar as importações que qualquer particular se arrisque a fazer de gêneros necessários ou mesmo úteis ao país, como são as bestas muares, de que não há criação suficiente...”63

Além da necessidade, Dom João considerou importante o recebimento da

dívida por parte de Andrade e Jesus, além da tributação que tal negocio iria

proporcionar à Coroa.

É possível supor que o argumento da criação insuficiente de muares

tenha sido apresentado por Andrade e Jesus. Este foi considerado legítimo pelo

63 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.

75

Príncipe Regente, após a consulta à Real Junta de Comércio e Navegação.64 O

parecer desta Junta foi determinante, e Dom João nem mesmo averiguou as

informações dadas por Jesus e Andrade. Seria mesmo verdade?

64 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.

76

O contrabando na interpretação dos vassalos.

“...nenhum negro é tão bruto que confunda o mar com um Rio, por grande que seja...”

(Governador de Angola, 1772) 65

A palavra “interpretação” presta-se ao título por dois motivos. O primeiro

refere-se às formas como os vassalos encaravam o comércio ilícito, sobre seus

pontos de vista. Uma segunda leitura diz respeito à encenação, à aparência com

que alguns destes vassalos tratavam o problema do qual eram atores. Ainda que

lhes fosse oferecido um leque de possibilidades de ação, havia um papel muito

claro para representar frente ao Rei, a partir do que se esperaria de um fiel

vassalo.

O caso das vinte mil mulas – continuação. A produção de muares nos domínios portugueses havia sido bem maior

que a demanda, ao contrário do que pensava o Príncipe. Nenhuma das

afirmações de Jesus e Andrade puderam ser confirmadas.66 Jesus e Andrade não

havia sido honesto com o Príncipe. O que pretendia, então, este estranho

vassalo? Conseguiria ele dar prosseguimento ao seu plano?

Em outubro de 1804 um número elevado de súditos (163), ditos todos

criadores de mulas, enviou um “abaixo-assinado” ao Rei pedindo a suspensão

da licença que este havia concedido a Jesus e Andrade para introdução de vinte

mil mulas nos domínios portugueses. Entre as pessoas que notoriamente

apoiaram a solicitação estavam o governador Paulo Gama e o comandante da

fronteira e portos do Rio Grande, Manuel Marques de Souza. Tal documento é

extraordinário, e fornece muitos elementos sobre o pensamento daqueles

súditos criadores de mulas.

A elaboração deste documento teve um interessante processo. No período

de tempo imediatamente após o pedido de Jesus e Andrade, cerca de doze

estancieiros, que já se designavam “povo desta capitania que vive da criação de

65 Carta de d. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, [governador e capitão geral de Angola], em

resposta a José de Azevedo Monteiro de Faria, tenente encarregado do governo do presídio de Caconda, sobre a diligência da qual está encarregado para descobrir nos Rios de Sena o comércio de ouro, prata e pedras preciosas. 1772. DL 81, 02. Doc. 20. fl. 62-63. IHGB.

66 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.

77

bestas muares”67, escreviam ao governador solicitando apenas a elaboração de

uma relação dos estancieiros que criavam mulas no Rio Grande, com a

discriminação do números de bestas muares, dos reprodutores e dos animais

produzidos em 1803 e anos anteriores. Era o início do processo que barraria os

negócios de Jesus e Andrade. Nesta primeira solicitação, diziam ao governador

que necessitavam da relação “para justo requerimento que intentam fazer

dirigido ao bem comum desta capitania”.68 Através deste documento

percebe-se a manutenção da noção de “bem comum”, e sua validade como um

argumento de reivindicação, ainda que estivesse sendo utilizado para a defesa

de um grupo bastante restrito. Este grupo tinha pretensões de representar uma

parcela maior de criadores de animais, além do benefício que todos teriam em

decorrência do ganho destes poucos.

Pouco tempo depois era enviado ao Rei o “abaixo-assinado” de outubro

de 1804, que pedia a cassação da licença de Jesus e Andrade. Novamente o

documento apresenta-se como um clamor do “povo que vive da criação de

bestas muares”. Esta designação serviu para apresentar o grupo de doze

homens, que elaboraram o primeiro documento, assim como para referir-se ao

conjunto de mais de centro e cinqüenta súditos que estavam de acordo com o

documento final. De certo modo, aquele grupo inicial acreditava-se com

legitimidade suficiente para falar em nome de outros tantos criadores que mal

conheciam, na medida em que solicitaram ao governador a sua listagem. Por

outro lado, ao incorporarem ao seu pedido um número muito maior de súditos,

construíam de modo muito mais sólido a sua legitimidade.

No interior do documento era ressaltada a falsidade do argumento

apresentado por Jesus e Andrade. Segundo o “abaixo-assinado”, Jesus e

Andrade nunca tivera casa de comércio nem condições de emprestar ou vender

a crédito para ninguém, muito menos para espanhóis. O documento dizia que

Jesus e Andrade havia sido peão em seus “primeiros tempos”, ocupando-se

depois em fazer albardas, e que recentemente servia de escrivão e tabelião,

ofícios onde seria “moralmente impossível” juntar o dinheiro referido.

Ressaltando a condição social do sujeito, diziam ainda que ele “...nunca teve

67 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570. 68 idem. Grifo nosso.

78

negócio algum, nunca teve que fiar e sempre foi, e é, necessitado...”. Além

disso, diziam que como vassalo, “...nada tem servido ao Estado...”. O

documento, que manifestava notoriamente a revolta de seus autores, afirmava

ainda que era proibido, segundo uma “lei positiva”69 de Sua Majestade, a

introdução de bestas muares de Espanha. Por causa desta proibição, não havia

como tributar o ingresso destes animais.

A possibilidade do empobrecimento dos súditos da capitania e a sua

decadência foram argumentos utilizados inúmeras vezes. Era um argumento

muito convincente, que se baseava na hipótese de que, empobrecidos os

criadores do Rio Grande, não haveria quem defendesse aquela fronteira, já que

a presença das tropas lusas era insuficiente. Foi um argumento muito aceito e

inclusive o Vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza havia o tomado por correto.

Este argumento também havia sido utilizado em outro documento, que

solicitava a proibição da criação de mulas na Minas, muitos anos antes70, e que

era recorrente no discurso produzido pelos oficiais da Câmara de Viamão. Além

da possível perda dos territórios, haveria, segundo aqueles homens, uma perda

eterna dos tributos cobrados na região, especialmente os dízimos. Terminavam

afirmando a necessidade da revogação da licença, novamente evocando o “bem

comum do Estado e dos Povos desta Capitania”.71

Entre ambiciosos e belicosos: os vereadores de Viamão.

“Nunca é pobre quem tem bons amigos e sabe alguma arte”.72 Rafael Bluteau

No dia 23 de setembro de 1771 os vereadores de Viamão enviaram sete

correspondências ao Rei, seguidas de mais três até o final daquele ano. Um

grupo novo estava assumindo aquela instituição e pelo que parece, estavam

dispostos a dar voz a antigas demandas locais. Das sete cartas enviadas, três

particularmente nos chamaram a atenção e estão intimamente ligadas a nosso

69 São leis formuladas em termos gerais, com o objetivo de formar princípios jurídicos. Cf.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 1.

70 SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil. São Paulo: CEN, 1940. 71 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570. Grifo nosso. 72 BLUTEAU. Raphael. Vocabulário Portuguez e latino. Rio de Janeiro: UERJ,S.D. pg. 556.

79

objeto. Cinco tinham como tema algo relacionado ao comércio ou produção de

animais, e até onde pudemos averiguar, os vereadores eram também

estancieiros73. Isso já nos informa muito sobre as preocupações daquela Câmara,

e sobre suas prioridades e interesses.

A primeira carta que observamos foi uma que trata sobre o ingresso de

muares vindos dos domínios espanhóis.74 O documento inicia com a referência

ao Real decreto de 24 de dezembro de 1764, que previa a proibição do ingresso

de animais de origem espanhola no Estado do Brasil. Segundo os vereadores,

era preciso reforçar esta lei que só vinha a beneficiar e valorizar as mulas

crioulas. A Câmara lamentava o não cumprimento do decreto por parte das

autoridades régias e declarava que os fazendeiros só poderiam dar aumento às

suas crias se aquele decreto fosse efetivo.

O restante do documento trata da ruína que tal comércio ilícito causa, e

da “dor e mágoa” que os criadores do Viamão encontravam-se diante de tal

situação. O apelo é visível. Na seqüência, pediam o cumprimento da lei, com a

perseguição tenaz aos contrabandistas e a apreensão efetiva dos animais. Tais

medidas, segundo os oficiais da Câmara, diminuiriam em muito os

contrabandos, mas também uma série de roubos e “mortes violentas” que

ocorriam naquelas campanhas. O último e especial argumento era a paz com os

espanhóis. Para tanto, não só os vereadores afirmavam que não queriam ser

“motores de uma guerra”, mas também relembravam com ênfase a perda dos

territórios de Sua Majestade em 1762. Já vimos como este argumento era

especialmente cruel para os administradores lusos, e absolutamente

convincente.

O segundo documento é ainda mais carregado. Trata sobre a existência

de criações de muares nas Minas, o que, segundo aqueles vereadores, era algo

inadmissível.75 As Minas já tinham riquezas em “puro ouro” e pedras preciosas,

e podiam dispensar-se da criação das bestas, única riqueza da fronteira. Os

vereadores pediam que os animais reprodutores das Minas fossem degolados,

movidos pelo “clamor” e “lamentos da quebra que experimentam” os

73 Relação de Moradores de 1784. F1198. AHRS. 74 AHU-RS. Cx. 02. Doc. 173. 75 AHU-RS. Cx. 02. Doc. 170. Grifos nossos.

80

moradores daquela fronteira do Rio Grande. Novamente reivindicavam o

cumprimento do decreto de 24 de dezembro de 1764, que também previa a

exclusividade que teriam os criadores do Rio Grande na produção de muares.

Segundo os vereadores, somente o cumprimento deste decreto é que garantiria

o “bem comum desta república”.

A “ambição” dos mineiros é reafirmada em todo o documento. Era este

desejo avultado de ganhos que ameaçava o bem comum. Caberia ao Rei, como

promotor da justiça, providenciar o equilíbrio das oportunidades, como já dizia

o Vice-rei Vasconcelos76. Os moradores das Minas Gerais seriam “ricos de meios

onde se podem empregar”, muito ao contrário dos moradores daquela “pobre

fronteira”, que não possuíam outras agências que lhes garantissem “...de donde

se alimentem, mas que da dita produção de suas crias...”. Não é preciso

provar que tanto nas Minas como no Rio Grande havia casos de pessoas que

realmente não tinham muitas oportunidades77. Mas este argumento,

considerando a dimensão do Império Luso e a preocupação com o bem estar da

república era bastante convincente e revestia seus autores de uma profunda

preocupação com as coisas do Império, como administradores zelosos. A

expressão “de donde se alimentem” aumenta ainda mais a cena, colocando em

xeque a condição de sobrevivência de um súdito de Sua Majestade.

Os vereadores concluíam exigindo atuação da Coroa. Ao fazer isso,

deixavam no ar o conhecimento que tinham de alguns dos pontos de fragilidade

do Rei naqueles confins, frente ao medo do ataque espanhol. Diziam que aquela

medida solicitada deixaria: “os moradores desta fronteira contentes e prontos

com seus filhos e fazendas em uma cega obediência às ordens de Sua

Majestade, como até o presente se tem comportado nas públicas ocasiões que o

tempo tem oferecido.” Demonstravam o quanto eram importantes na defesa

daquelas terras e o quanto o Rei necessitaria de seus recursos e pessoal, como já

acontecera e como poderia continuar a acontecer, se o Rei lhes atendesse.

76 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op cit. 77 MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio

de Janeiro: Graal, 1986. e HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita).

81

Mantinha-se o jogo de forças entre os poderes locais e centrais, sempre decidido

através de uma sofisticada negociação.

Outra carta é um pedido de suspensão de um imposto sobre os couros do

gado bravio.78 Segundo os vereadores, aquele gado xucro já não existia, e ainda

que houvesse um imposto para este, incluía também o gado doméstico. Segundo

a carta, os gados domésticos já pagavam os dízimos, e neste sentido, não cabia a

manutenção do antigo imposto, que sobretaxava suas criações. Esta carta, ainda

que não tratasse diretamente de nosso problema, reitera alguns dos problemas

que percebemos em outros documentos. As suas primeiras linhas demonstram

com clareza a preocupação dos vereadores em convencer. A ação dos vereadores

em fazer aquele pedido era feita “Seguindo o exemplo de Cristo, e sua instrução

na matéria de bem pedir, condoídos das lástimas dos pobres desta

fronteira...”. A continuada argumentação da miséria manifesta-se aqui, mais

uma vez. Aqueles criadores de gado seriam pobres que precisavam da “Régia

Benevolência” para sobreviver, tal como a preocupação com a “ruína” e com a

“quebra”.

Os vereadores utilizaram-se ainda do argumento de autoridade para

ratificar sua petição. E que autoridade! Comparam sua posição com a de Jesus

Cristo, Deus filho, segundo a tradição católica. Ao pedir ao Rei coisa tão

importante, nada mais faziam do que serem bons cristãos. Contudo, os

incrementos narrativos usados para convencer ao Rei não paravam por ai. A

adulação foi também bastante explorada, quando utilizavam, por exemplo, a

possível atitude do Rei como “...beneplácito da Sua régia benevolência...”. Mas

o melhor ficava para o final. Os súditos contemplados pela atitude Real,

“...gostosos e obedientes se darão os parabéns de viverem debaixo da Real

proteção, benéfica, soberana e compassiva...”. Era também uma forma de

relembrar a fidelidade de gente tão necessária para a defesa daquelas terras,

como vimos em documentos anteriores.

Esta leitura das cartas da Câmara de Viamão nos revela a disseminação

da noção do “bem comum” entre os súditos até fins do século XVIII, e como

vimos no caso das vinte mil mulas, até início do XIX. Por outro lado, os

78 AHU-RS. Cx. 02. Doc. 168

82

habitantes daquela fronteira bem sabiam como jogar com o argumento da

perda territorial, que efetivamente preocupava as autoridades e a Coroa. Vimos

ainda que o argumento da miséria do povo, como um importante peso na

balança do bem estar público era amplamente utilizado e tinha como

sentimento antagônico a “ambição” de alguns vassalos.

O “monstro” da Lagoa Mirim: Rafael Pinto Bandeira. Provavelmente jamais saberemos quem foram os autores da denúncia.

Mas em fins de 1783 o vice-Rei, Luís de Vasconcelos, recebia uma carta

anônima79 que fazia várias acusações ao coronel Rafael Pinto Bandeira,

especialmente sobre suas atividades contrabandistas. Era assinada por “Súditos

de Vossa Excelência”, que diziam que aquele fora “o meio mais seguro que

achamos para o nosso refúgio”. Não era à toa que em determinada parte do

texto referiram-se ao acusado, Rafael Pinto Bandeira, como “aquele monstro”.

Ainda que nos sejam desconhecidos seus autores, o documento é

contemporâneo destas atividades contrabandistas e trata diretamente delas.

Embora se pretenda uma denúncia, o texto está carregado de interpretações e

juízos que manifestam, de várias maneiras, algumas das idéias acerca do

contrabando correntes entre os súditos de Sua Alteza naquela fronteira.

Podemos, através do texto, fazer algumas afirmações sobre seus autores.

Eram possivelmente pessoas que haviam tido problemas com Pinto Bandeira,

tendo, inclusive, prejuízos devido aos negócios deste último. Pela minúcia da

descrição de alguns casos narrados, é possível que alguns destes tenham

participado ativamente do comércio ilícito, seja junto de Rafael ou com outros.

Também conheciam muito bem as proximidades da Lagoa Mirim, palco dos

principais acontecimentos narrados. O documento, além de ser uma denúncia, é

um pedido de proteção ao Vice-rei. Era a forma de que aqueles homens se

valiam para reivindicar a proteção da justiça régia, com a qual,

conscientemente, contavam.

Como outros documentos peticionários, era carregado de uma certa

dramaticidade. O argumento da miséria continua válido e convincente: “...os

79 Cód. 104. Vol. 06. p. 145v. Arquivo Nacional.

83

pobres da Fazenda Real são os que sentem os prejuízos avultados que aquele

monstro lhe causa...”. Novamente o antagonismo entre a miséria dos povos e os

interesses particulares de um homem ambicioso. A ambição é um adjetivo

especialmente atribuído a Rafael neste documento: “...o dito comandante

contrabandista é tão ambicioso que punha espião para saber quando passava

alguma canoa para a dita lagoa mirim...”. Já vimos em outros documentos o

quanto a ambição tem de valor contrário à noção de “bem comum”. Neste

sentido, também este documento reivindica esta posição, o bem público acima

de qualquer coisa. Isso não significa um antagonismo entre o público e o

particular. Nesta mesma noção de bem comum, prega-se que é da felicidade

particular que se tem a felicidade geral, desde que haja equilíbrio de

oportunidades. Ganhar é legítimo, mas ganhar de modo desproporcional,

abusivo, em detrimento de outros súditos, não. Mesmo uma concessão

particular como uma sesmaria ou mesmo outra mercê poderia contribuir para o

“bem comum” da república.80 Esta noção está disseminada entre a sociedade

colonial.

O entrosado: Antero José Ferreira de Brito. Em 1784 o provedor da Fazenda do Rio Grande, Inácio Osório Vieira,

enviava um breve relato da situação dos contrabandos na fronteira com os

domínios espanhóis. Entre outras questões, Osório Vieira se dizia um tanto

confuso sobre os procedimentos em relação ao contrabando e que por isso,

havia consultado “...o único letrado que havia...”, o “Doutor” Antero José

Ferreira de Brito.81

O dito Antero era provavelmente formado em direito, pelo que nos indica

seu testamento, seu inventário e as referências feitas a ele. Tivemos a fortuna de

encontrar em seu inventário uma listagem superficial de sua biblioteca, onde

foram citadas cerca de quarenta e duas obras, muitas em vários tomos, somando

80 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite

senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi. v. 1, (2000). p. 123-152.. 81 Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional.

84

setenta e quatro volumes.82 Em resposta ao pedido do provedor Osório Vieira,

Antero nos deixou um texto, o único de sua autoria a que tivemos acesso além

do testamento,83 e que tratava justamente sobre a legislação do contrabando e a

interpretação jurídica desta.

Antero era sobrinho e herdeiro de Antonio Pinto Carneiro, um grande

estancieiro do Rio Grande que também fora administrador dos índios da Aldeia

dos Anjos e que contava com um patrimônio bastante significativo.84 Foi

provavelmente para administrar os bens herdados que veio para o Rio Grande,

já que era nascido no Rio de Janeiro, tendo morado muitos anos em Lisboa. Era

também detentor do hábito de Cristo que lhe dava direito a uma tença, que

talvez nunca tenha recebido.85 Ao morrer deixava um patrimônio significativo,

que incluía quatro propriedades fundiárias, dezesseis escravos, plantações, um

rebanho com mais de dois mil e quatrocentos animais, sendo que deste total,

setenta e oito éguas eram destinadas para a criação de mulas, juntamente com

quatorze burros que Antero mantinha com exclusividade para a mesma

produção.86 Não era apenas a produção que relacionava Antero com o negócio

de gado naquelas terras, ele ainda possuía um campo de invernada (destinado à

engorda dos animais), que costumava arrendar para tropeiros e negociantes de

gado. Um destes, o padre tropeiro Manuel Gracia Mascarenhas, ficou lhe

devendo trinta mil réis pelo uso do dito campo. Antero era, sem dúvida, um

homem profundamente articulado com o negócio de gado no Rio Grande de São

Pedro, atuando na produção e circulação de animais, ainda que fosse de fora

daquele meio.

Seus comentários sobre o contrabando são marcados por um discurso

aparentemente técnico, preocupado em apresentar uma interpretação correta

da legislação existente que proibia o contrabando. Para tanto, se utilizava de

vários artifícios jurídicos, especialmente sobre o caráter das penas. Segundo

Antero, as introduções de animais espanhóis nos domínios portugueses não

82 Inventário e testamento de Antero de Brito. APERGS. 1º Cartório de órfãos e ausentes. Porto Alegre.

Nº.131. maço. 09. AGRADEÇO A JONAS MOREIRA VARGAS, QUE GENTILMENTE ME PASSOU A SUA TRANSCRIÇÃO DE TAIS DOCUMENTOS.

83 Não temos conhecimento de outro texto seu. 84 Inventário de Antonio Pinto Carneiro. APERGS. Nº 600. Maço 06. 85 Inventário e testamento de Antero de Brito. Op cit. 86 Idem.

85

poderiam ser tidas como contrabando, principalmente pelo fato de que a

punição para estas introduções era pecuniária, e a punição para os

contrabandos poderia incluir castigos físicos:

“Estas introduções não são crimes em rigor, não são furtos, não contém descaminhos de diReitos Reais não envolvem delitos [...] As penas da introdução das bestas muares são cíveis, e não passam de pecuniárias; as penas de que trata o dito Alvará são crimes e até corporais, e por isso tanto pela natureza das culpas como pela das penas, que lhe correspondem à lei que regula neste continente a introdução daqueles animais, não é nem os Estatutos da Junta do Comércio, nem o Alvará que o confirma e amplia e a lei que aqui regula é o Decreto privativo e particular de 24 de dezembro de 1764, cujo objeto é de muito diversa natureza, e tão diversa quanto os objetos do dito Alvará são de reprovada e criminosa natureza e os do nosso Decreto são só de natureza proibida e não criminosa.”87

Através destes argumentos Antero minimizava o caráter de crime dos

homens que traziam mulas dos domínios espanhóis para os territórios

portugueses. Ao afirmar isso, estamos comparando seu argumento com os de

inúmeras outras avaliações de seus contemporâneos, que consideravam como

contrabando estas introduções, e deste modo, as viam como atitudes criminosas

e reprováveis. Além disso, tanto o governador Sebastião Cabral da Câmara,

como o príncipe regente, em 1803, nos informavam de uma legislação que

proibia a importação de gêneros estrangeiros para a colônia, e que já estava em

vigor em 1780.

Antero fazia, notadamente, talvez a única defesa daqueles ingressos

redigida neste período. Ainda que lhes considerasse como atos proibidos,

minimiza em muito a culpa daqueles homens, chegando a propor que tais

atitudes não eram crimes a rigor. No mesmo ano que Antero escrevia, vários

homens haviam sido presos por tais ingressos de muares nos domínios lusos. 88

O consultado defendia a importância do direito de defesa dos réus ser

resguardado, ainda que lhes coubesse provar sua inocência frente a uma

acusação do provedor, pelo título que este último detinha, como administrador

da fazenda pública.

87 Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional. Grifo nosso. 88 F1245. 12v, 13. AHRS. Grifo nosso.

86

Entre as obras de sua biblioteca encontramos tomos das Ordenações

Filipinas, que são devidamente citadas no documento sobre os contrabandos.

Contudo, a citação parece um tanto quanto alheia ao assunto, e pode ter sido

utilizada como um recurso narrativo, que buscava atribuir protocolos de

verdade à argumentação de Antero.

Ainda assim, os argumentos utilizados são muito bem elaborados, sendo

notória uma boa formação retórica. Entre seus livros encontramos dez volumes

das obras de Cícero, além da “Retórica” de Vossio e da “Gramática”, do mesmo

autor. Estava, neste sentido, bastante ambientado com a literatura

recomendada pela Coroa. Em 1759, foram baixadas “Instruções para os

Professores de Gramática Latina, Grega, Hebraica, e de Retórica, ordenadas e

mandadas publicar, por El Rey Nosso Senhor”. Entre aquelas instruções, havia

uma que dizia: “Usará também o Professor para sua particular instrução da

Retórica de Aristóteles, das Obras Retóricas de Cícero, de Longino; Dos

Modernos, Vossio Rolin, Fr. Luís de Granada, e de outros de merecimento;”. 89

Haja vista todo o empenho de contrariar opiniões correntes, argumentando com

refinamento, Antero devia concordar plenamente com a avaliação de Sua

Majestade, nestas mesmas “Instruções”, quando o Rei dizia ser a:

“...Retórica a Arte mais necessária no Comércio dos Homens, e não só no Púlpito, ou na Advocacia como vulgarmente se imagina. Nos discursos familiares; nos Negócios públicos; nas Disputas; em toda a ocasião em que se trata com os Homens, é preciso conciliar lhes a vontade...” 90

Antero de Brito é sem dúvida um caso interessante. O fato é que ele

poderia ter pensado inúmeras outras interpretações para a legislação sobre os

contrabandos, mas optou por uma que minimizava o caráter criminoso destes

feitos. Talvez porque estivesse associado ou negociasse com algum daqueles

sujeitos. Talvez alguns destes contrabandistas arrendassem seus campos de

invernada. Mas, se isso ocorreu, Antero deve ter sido muito competente na

ocultação de seus atos ilícitos, pois não nos deixou pistas sobre eles. Tudo o que

fez foi narrar sua opinião ao provedor e de modo muito apropriado, o que não

89 APUD: ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. “Apêndice Documental”, IN: A reforma pombalina

dos estudos secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. 90 Ibidem. Grifo nosso.

87

era nenhum crime. Sobre a recepção de suas idéias pouco sabemos. O próprio

provedor da Fazenda Real, que solicitou seus comentários, não atentou muito

para eles. Em sua carta ao Vice-rei aponta o pedido a Antero como prova de seu

zelo e de como desejava “muito acertar”. A carta de Antero acabou servindo

para demonstrar fidelidade, ainda que tivesse outras utilidades.

O provedor Osório Vieira. Em fins da década de 1760, Inácio Osório Vieira tornava-se Provedor da

Fazenda do Rio Grande de São Pedro.91 Ao longo de seus vinte e cinco anos

neste posto, Vieira testemunhou inúmeros casos de atividades ditas ilegais e

contravenções de toda ordem. Muitos destes casos foram narrados nas várias

cartas que o Provedor escreveu aos seus superiores, ao Vice-Rei, no Rio de

Janeiro, e ao governador do Rio Grande. Segundo seu próprio relato, o provedor

veio de Portugal para a América muito jovem, após a morte de seu pai, na

tentativa de obter algum meio de sobrevivência, já que em Portugal não tivera

muitas oportunidades. Veio com a família, pela qual se sentia responsável, na

qualidade de varão que incluía a “mãe viúva e três irmãs donzelas, e a outro

irmão”.92 Em 1752 recebeu um posto de escrivão da Fazenda Real de Gomes

Freire de Andrade, obtendo em 1765 o posto de Provedor da Fazenda da

Capitania do Rio Grande de São Pedro.93

Em 1769, em seus primeiros anos como Provedor, lançou um edital sobre

os contrabandos94, o que já demonstrava um pouco de sua visão sobre o tema.

Era de sua responsabilidade o combate aos contrabandos e o zelo pelos

rendimentos da Fazenda Real, e a construção do texto utilizada por Osório

Vieira nos indica a seriedade com que tratava o assunto. Identificava os

contrabandos como uma “ingratíssima rebelião”, promovida por vassalos que

gozavam da proteção Real e agiam de modo infiel com “diabólicos excessos”.

Para Osório, a forma de combater estes abusos era a punição exemplar, de

91 F1243. 139v. AHRS. 92 AHU. Rio de Janeiro. Cx. 67. doc. 15784. 93 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 11. Porto Alegre: AHRS, 1995. pg. 165. 94 Edital passado pelo Provedor da Fazenda Real Inácio Osório Vieira sobre as mulas de contrabando.

F1243, 213v. AHRS.

88

modo que “...o castigo de uns sirva de exemplo a boa tranqüilidade de todos.”95

Neste sentido, Osório não compactuava com a política de dissimulação, muito

adotada pelo Vice-rei Luís de Vasconcelos. Todavia, ainda que ameaçasse desta

forma agressiva, não encontramos nenhuma referência de punição rigorosa

efetuada por Osório Vieira. Sua melhor tentativa talvez tenha sido a Devassa

dos contrabandos de 1773, na qual várias pessoas foram interrogadas e várias

acusações foram feitas. Contudo, tal processo foi encerrado sem que ninguém

fosse sequer admoestado. Não sabemos quem deu ordem para o

“arquivamento”.

Lendo os documentos produzidos por Osório Vieira teremos uma

imagem muito boa deste homem, chegando mesmo a acreditar em seu zelo e

seriedade, algo de que apenas suspeitamos. Há que se dizer que, pelos relatos de

várias autoridades que lhe defenderam no final de sua vida, quando rogou ao

Rei uma aposentadoria, Osório Vieira levou uma vida modesta e sem muitos

recursos.96 Tampouco encontramos qualquer evidência de propriedades

vultuosas ou negócios que tivesse. Contudo, esta imagem pode ser muito

enganadora e procuraremos atentar, em seu texto, para outros elementos, que

possam nos indicar aspectos mais gerais. A boa imagem de Osório Vieira pode

ser um simples fruto de sua competência ao apresentar-se como bom vassalo e

não de sua verdadeira situação. Contudo, é da apresentação de Osório Vieira

como bom vassalo que percebemos um primeiro ponto: o zelo.

Tanto para o provedor, como para outras autoridades do período, o

“zelo” pelas coisas Régias ou interesses públicos era muito importante.

Poderíamos dizer que a falta de “zelo” em um administrador colonial

corresponderia a “ambição” dos particulares, em oposição ao “bem comum”. O

próprio Vice-rei, Luís de Vasconcelos, para desqualificar o governador do Rio

Grande, em 1784, acusou este de “falta de zelo”97. Em 1787, ao apresentar um

breve relato sobre os contrabandos ao vice-Rei Vasconcelos, Osório Vieira dizia

que muito se interessava

95 Idem. 96 AHU-RS. Cx. 03. doc. 243.. 97 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op. Cit.

89

“nas matérias que tendem ao zelo e arrecadação da Real Fazenda, como o que desejo muito acertar, principalmente em tudo o que Vossa Excelência for servido determinar-me rogando-lhe a este respeito, e atentas as circunstâncias, se sirva determinar o que devo obrar.” 98

Ainda que não fosse uma situação concreta, era um argumento muito

convincente.

Em 1784, como vimos, Antero de Brito tentou convencer Osório Vieira

que os ingressos de animais dos domínios espanhóis não eram, a rigor, crimes.

Contudo, o bacharel não obteve sucesso em sua apreciação, se julgarmos pelas

palavras de Osório, passados quatro anos daquela ocasião:

“O principio fundamental de se evitarem os contrabandos é procurar extinguir os contrabandistas e não sendo estes processados, perseguidos e afetados com as penas do alvará de 5 de janeiro de 1785 ficarão continuando nos mesmos delitos, e se não conseguirá ao menos diminuir em parte o número de indivíduos que escandalosamente se empregam no manejo destes mesmos contrabandos.”99

Mais do que escandaloso, este mercado era dominado por homens infiéis.

Esse era um dos pontos mais significativos para Osório Vieira. Uma vez que o

Rei havia pensado nos vassalos ao lançar o decreto de 24 de dezembro de 1764,

era esperado que os súditos respeitassem esta atitude, como bons filhos. Em um

Decreto, que baixou em 6 de outubro de 1788, Vieira advertia que “...tem

chegado ao escandaloso progresso de serem estes mesmos fazendeiros, a cujo

benefício se encaminha o espírito daquele real decreto, os infiéis

transgressores dele, passando aos tropeiros escritos de venda de mulas

ainda não manifestadas...”100

Se tomarmos a dimensão que tinham estas expressões, constataremos

que eram fortes as acusações feitas por Vieira. Segundo Bluteau101, infiéis eram

aqueles que não professavam a “lei de Jesus Cristo”, ou seja, de algum modo,

Vieira comparava os estancieiros do Rio Grande de São Pedro aos não cristãos,

fossem pagãos, idólatras, judeus ou mouros, em sua falta de fidelidade. Por

98 Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional. 99 Cód. 104. Vol. 10. pg. 397. Arquivo Nacional. Grifo Nosso. 100 F1245. 170. AHRS. 101 BLUTEAU. op cit.

90

terem comerciado com os castelhanos, estes homens estavam em “pecado”

diante de Sua Majestade Fidelíssima.

Se os estancieiros, que deveriam estar gratos a Sua Majestade eram

infiéis, os soldados responsáveis pela perseguição aos contrabandistas, que

acabavam participando deste comércio, eram vítimas da situação: “...os mesmos

oficiais comandantes das guardias contíguas ao campo, obrigados da

indigência que vivem, esperançados na utilidade de que se comprometem

mandarem pelos seus soldados fazer o mesmo contrabando...”102

Os estancieiros, proprietários de terras e agraciados pelas leis régias,

mantinham uma postura ambiciosa ao desejarem obter mais ganhos sobre a

Fazenda Real. Por outro lado, os soldados da fronteira, vítimas de necessidades

e infortúnios, nada cometiam de errado ao integrarem-se ao comércio ilegal de

gados, mesmo sendo estes os responsáveis diretos pela perseguição aos

contraventores.

A visão de Osório Vieira se aproxima muito da do Vice-rei Luís de

Vasconcelos. Para ambos havia a figura dos “cabeças” que lideravam os

contrabandos, aliciando, em seus negócios, inúmeros homens que estavam sem

alternativas. Para ambos, igualmente, a solução passava pela ação sobre estes

cabeças. A diferença entre estava na maneira de agir. Para Vasconcelos, todo o

sigilo e astúcia eram necessários onde as forças não permitiam a ação mais

pronta. Para Osório Vieira, aqueles homens deveriam ser logo detidos. Ainda

que tenham planejado estes estratégias, ambos não tiveram sucesso, e os

contrabandos viraram o século.

“O bom e único mercado”: Fernandes Pinheiro e o contrabando. Em 1808 foi produzido um interessante documento sobre o ingresso de

muares espanhóis nos domínios portugueses. Partindo da mesma

documentação que Antero de Brito analisou, o também bacharel em direito,

José Feliciano Fernandes Pinheiro, elaborou toda uma explicação para

demonstrar o quanto tal ingresso era criminoso, além de ser danoso ao

comércio lícito.103

102 Cód. 104. Vol 10. pg. 397. Arquivo Nacional. 103 Lata 111. Pasta 07. IHGB.

91

José Feliciano Fernandes Pinheiro era natural de Santos, e aos dezoito

anos foi estudar em Coimbra, onde formou-se, alguns anos depois, em direito.

Afora sua formação acadêmica, Pinheiro também trabalhou alguns anos como

tradutor da “Tipografia Calcográfica e Literária do Arco do Cego”. De sua

tradução saíram vários livros em português, versando sobre história, história

natural, agricultura entre outras áreas.104 Sua vida intelectual, contudo, foi ainda

mais refinada. Publicou em 1822 os “Anais da Capitania de São Pedro”, uma

obra de história do Rio Grande de São Pedro. Em 1839 ajudou a fundar o

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), participando, ainda, em

mais quinze associações científicas até o fim de sua vida.105 Publicou também,

em 1841, uma biografia dos irmãos Alexandre e Bartolomeu de Gusmão. Em

1825 recebeu o título de “Visconde de São Leopoldo”.106

Em 1808, Pinheiro exercia o cargo de Juiz da Alfândega do Rio Grande de

São Pedro e andava, evidentemente, muito preocupado com a questão dos

ingressos de animais. O governador Paulo Gama lhe solicitara, em 19 de maio de

1808, um parecer sobre o assunto.107

Se Antero de Brito se valia de um discurso baseado em elementos

jurídicos, Pinheiro impregnava seu texto de noções de economia, procurando

demonstrar, através desta argumentação, as conseqüências negativas da

introdução do gado espanhol nos domínios portugueses. Da mesma forma que

Antero, seus argumentos são bem construídos e sua erudição é bastante

evidente, abusando de expressões pouco usuais nos demais documentos oficiais

deste período.

O texto inicia fazendo referência às “funestas conseqüências” do ingresso

do gado espanhol. Ao longo do texto, tal comércio também é denominado como

“ruinoso”, e principal causa da decadência daquela. Pinheiro acaba refletindo

uma velha noção corrente entre aqueles súditos, na qual o Rio Grande vivia uma

eterna decadência. Como argumento justificativo, deveria ser muito

convincente, já que temos registro de seu uso desde a década de 1770.

104 PORTO, Aurélio. Noticia sobre o Visconde de São Leopoldo. IN: PINHEIRO, José Feliciano

Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Petrópolis: Vozes, v. 1978. pg. 44. 105 Idem. Pg. 46. 106 Idem. Pg. 41-42. 107 Lata 111. Pasta 07. IHGB

92

Na seqüência do documento, Pinheiro afirma que poucos argumentos

bastariam para provar que o ingresso dos animais era problemático. Todavia,

isso não seria preciso, haja vista que já havia toda uma legislação que proibia

aquele negócio, o que era muito superior e bastava por si. Aquela proibição era,

segundo ele, “sabiamente sancionada por um direito municipal e privativo.”

Este mesmo argumento fora utilizado por Antero de Brito para argumentar o

contrário. Para Antero, por ser baseada em um direito privativo a legislação que

proibia o ingresso era menos válida que outras. Para Feliciano Pinheiro, isso era

uma prova de sua legitimidade. Privativo está, neste sentido, associado ao

direito do Rei sobre seus domínios, diferente de outras formas legais, que teriam

outros trâmites de constituição.108

Uma grande influência deve ser atribuída a Alexandre de Gusmão. Não

apenas Feliciano o citou, como mantinha em sua biblioteca vários documentos

produzidos por aquele. Entre outros, o próprio Feliciano copiou para si um texto

denominado “Cálculo sobre a perda do dinheiro do Reino dado a El Rey no ano

de 1748”. Neste documento, Gusmão defendia a limitação das importações, pela

perda de dinheiro e metálico que estas proporcionavam.109 Além deste texto de

caráter econômico, Feliciano também conhecia textos diplomáticos de Gusmão,

especialmente sobre os tratados de limites.

Pinheiro construiu uma lógica que associava o aumento da produção e da

riqueza ao protecionismo. Se os criadores de muares do Rio Grande sofressem

concorrência dos animais produzidos fora dos domínios portugueses, teriam

prejuízos, ficariam sem interesse e empobreceriam, com o que a povoação

perderia força e tudo ficaria arruinado. Neste sentido, seria obrigação do

governo prezar por aqueles súditos que se dedicavam a criação de muares.

Argumento semelhante ao utilizado pelo Rei para incentivar as criações e

proibir o ingresso de animais espanhóis em 1764, documento de que Feliciano

Pinheiro tinha total conhecimento, pois o citou em uma nota de rodapé.110

Por outro lado, era preciso que o Brasil buscasse um saldo positivo na

“balança do comércio”. Diante da importação de manufaturas da Inglaterra e da

108 HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. 109 Lata 03. Doc. 19. IHGB. 110 Lata 111. Pasta 07. IHGB

93

situação das províncias espanholas, era necessário “considerar as recíprocas

precisões deste país e as da América Espanhola”.111 Pinheiro se utilizava, assim,

de argumentos bastante significativos para uma economia de antigo regime,

especialmente na questão da proteção dos súditos e seus negócios como base

para a “felicidade geral”. Mas, ao mesmo tempo procurava adequar estes

elementos a novas conjunturas, apresentando esta política de proteção aos

súditos como necessária no mercado mundial, especialmente na concorrência

do Brasil com outros países. A figura do monarca como pai, associada à noção

de “bem comum” ainda tinha um significado importante, e garantiam algumas

permanências. Era o que Feliciano propunha para que todos os súditos se

dedicassem ao “bom e único mercado”, e se afastassem do contrabando.

Pudemos verificar vários dos argumentos utilizados para coibir, ocultar

ou justificar o ingresso de animais dos domínios espanhóis para os territórios

lusos na América, em um contexto em que estava proibida esta passagem.

Vimos como estas avaliações estavam permeadas por alguns paradigmas do

pensamento político lusitano e escolástico, especialmente as questões da

dissimulação, do “bem comum” e da mediação popular. Pudemos verificar a

reiteração destas idéias em vários documentos, por autores diferentes e em

distintos contextos e problemas.

Procuramos, através destes estudos pontuais, verificar algumas

regularidades no entendimento e trato com o contrabando. Percebemos que

havia uma profunda desigualdade no tratamento dispensado, de acordo com

cada um dos avaliadores, o que dava uma ampla margem de ação para

autoridades e contrabandistas frente à subjetividade que havia, não apenas nas

formas de encarar o problema, mas igualmente na forma de combatê-lo.

Todo este discurso, aparentemente contraditório, acabava justificando o

problema do contrabando por razões de Estado. Diante da reiterada ameaça dos

inimigos espanhóis, e da possibilidade de perda territorial, e econômica, havia

um clima de liberalidade em relação àquela forma de comércio indesejada.

Tolerância poderia ser uma palavra síntese. Mas uma tolerância profundamente

negociada no cotidiano da relação entre os súditos e a Coroa.

111 Ibidem.

CAPÍTULO 3

OS CAMINHOS DO MERCADO

A venda do gado: mercados e dinâmicas antes do “contrabando”.

Seguindo as pistas do provedor da Fazenda Real, Osório Vieira, vamos

àquela que ele considerou a mais freqüente mercadoria que ingressava

ilicitamente nos domínios portugueses: as bestas muares. Atentamos para as

formas como os animais eram comercializados, seus diferentes circuitos e

dinâmicas.1

Ao longo do século XVIII, e especialmente após o surto das minas,

percebemos um constante interesse português em alcançar os centros

produtores e distribuidores de muares que estavam nos domínios espanhóis ao

sul da América, mais exatamente em Córdoba, Buenos Aires e Santa Fé. A

presença de interesses lusos junto ao Rio da Prata é muito mais antiga, sendo

bem estudada por inúmeros trabalhos.2

As primeiras iniciativas bem sucedidas com o objetivo de buscar acesso

as produções de muares do Rio da Prata talvez sejam as investidas de Domingos

de Brito Peixoto. Este havia saído de Santos em fins do século XVII e se dirigira

ao sul, onde fundou a povoação da Laguna. Seu filho, Francisco de Brito Peixoto

escrevera, no início da década de 1720, cartas para o governador de São Paulo,

Rodrigo César de Menezes, narrando o contato que tivera com alguns 1 Cód. 104. Vol. 10. pg. 397. Arquivo Nacional. 2 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto

Alegre: F. P. Prado, 2002. NEUMANN, Eduardo. O trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata Colonial - 1640-1750. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. HAMEISTER, Martha Daisson. O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita). CANABRAVA, Alice. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1984. MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y control colonial en el siglo XVII - Buenos Aires, el Atlantico y el espacio peruano. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1987. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.

95

castelhanos. Entre os castelhanos, encontrava-se um tal Roque Zoria, que foi

enviado junto com a carta para dar informação ao governador.3 Em cartas

seguintes, Brito Peixoto afirmou que alguns destes castelhanos foram aos

domínios de Espanha e depois regressaram à Laguna, informando dos contatos

que fizeram e das possibilidades de negócios que havia com os comerciantes de

Santa Fé, nos domínios espanhóis4. Santa Fé destacava-se, neste período, como

grande produtora de muares para as regiões mineradores de Espanha. Era

igualmente um centro comercial de grande importância:

“...es escala del Paraguai a donde basan las barcas y balsas de yerba, tabaco y azúcar y demás géneros de aquella prova. Y por esta razón es frecuentada por mercaderes del Perú, Reino de Chile y Prova. del Tucumán”. 5

A compra de gados nesta localidade fornecedora fica evidente na mesma

carta, quando Brito Peixoto noticiava dos animais que trouxeram os castelhanos

que passavam pela vila: “Também me noticiou o dito castelhano traziam

muitas mulas e machos para venderem...” 6

Brito Peixoto e seu núcleo povoador não travaram contatos apenas com

os castelhanos. Outro importante grupo a estabelecer relações com aqueles

portugueses foram os índios minuano. Este grupo atuava de forma muito efetiva

no comércio de gado, especialmente cavalos, burros e mulas. Tais indígenas não

apenas vinham oferecer seus animais junto às povoações lusas como igualmente

colaboravam na captura de gado selvagem. Muito do gado fornecido pelos

minuano era obtido através de saques às estâncias espanholas, acusação

freqüentemente feita por autoridades do Rio da Prata:“...os veis precisado a

representar la imposibilidad de evitar la comunicación que frecuentaban los

3 Inventários e testamentos de São Paulo. Vol. XXVII, 1921. APUD: FORTES, João Borges. Rio Grande

de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941. pg 13. 4 Carta de Francisco de Brito Peixoto. 22/1/1722 APUD: FORTES, João Borges. Rio Grande de São

Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941. pg. 17. 5 Instrucciones de Martinez de Salazar a Andrés de Robles, Buenos Aires, 2/4/1674, en AGI-Charcas 278.

APUD: GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial. México: Grijalbo, 1983. Pg. 398.

6 Carta de Francisco de Brito Peixoto. 22/1/1722 APUD: FORTES, João Borges. Rio Grande de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941. pg. 18.

96

indios Minuanes [sic] con los portugueses y de algunos españoles refugiados a

su abrigo, prácticos del país.” 7

Estes primeiros contatos foram certamente muito importantes para

garantir as características que o negócio de animais viria a ter mais tarde. O

contato privilegiado com minuano e espanhóis pelos herdeiros do clã de Brito

Peixoto foi indispensável para a reprodução e aumento destes negócios.

Contudo, por uma série de ausências documentais, é difícil verificar a

manutenção destes laços por este grupo familiar até a década de 1760, quando a

documentação torna a manifestar estes laços.

No início da década de 1720, Bartolomeu Pais de Abreu propunha a

construção de um caminho que ligasse o Rio Grande a São Paulo. A abertura

deste caminho, contudo, só teve inicio a partir da ordem que Antonio da Silva

Caldeira Pimentel passou para Francisco de Souza Faria, em 1727. Segundo o

regimento passado a Souza Faria, este não poderia conflitar com

“...Índios , ou castelhanos, que estejam nas nossas povoações, ou se encontrem em caminho, ou nas campanhas, procurando paz e amizade com eles, expedindo para isso do que leva o que entender ser necessário, procurando mesmo que conheçam, e entendam que esta marcha se encaminha somente a ter com eles comércio de negociação conveniente a todos, e não a tirar-se alguma com violência”8

A abertura deste caminho só se encerrou na década de 1730. Os primeiros

anos que se seguiram à abertura do caminho das tropas foram de significativa

circulação de animais.9 O ingresso de bestas muares produzidas pelos súditos

espanhóis era absolutamente livre, salvo o devido pagamento dos impostos,

chegando a ganhar ares oficiais, o que fica evidente em inúmeros documentos

produzidos entre 1730 e 1760.10 Exemplo disso ocorre quando do

estabelecimento da “guarda do Porto”, posto de controle de circulação por terra

e mar, destinado à defesa do território. Seu regimento previa a contagem das

7 Real Cédula al governador de Buenos Aires. Aranujuez, 18 de mayo de 1772. Copia em Campaña del

Brasil, t. I, pg. 477. APUD: CONI, Emilio. El Gaucho. Argentina, Brasil, Uruguai. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1942. pg. 97.

8 Documentos Interessantes para a história e Costumes de São Paulo. vol. XVI, parte I. São Paulo.. 9 Um bom estudo sobre a construção do caminho das tropas, com especial ênfase a atuação de Cristóvão

Pereira de Abreu é HAMEISTER. op cit. 10 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 1. Porto Alegre: AHRS/IEL, 1977. pg. 103,

224-225.

97

tropas de bestas que passavam para “a parte do Norte”11 e a cobrança dos

direitos reais por cada cabeça de gado, que haveriam de se contar “muito

exatamente”12. Este documento, de 1740, dá um significativo destaque para o

ingresso dos animais dos domínios espanhóis que nos indica a maneira como

estes gados circulavam com facilidade:

“Passando cavalos mansos ou vacas para a dita parte do Norte, observará o comandante que nenhum passe que seja reiúno, que devem estar registradas na Vedoria, conforme o bando de este têm marca, porque se correram neste campo, ou tem as castelhanas por se haverem comprado aos estancieiros ou tropeiros dos domínios de Castela; e todos os sobreditos animais passarão com despacho do Governo.”13

Importa, neste momento, ressaltar o fato de que não havia nenhuma

restrição a circulação de animais entre os domínios de ambos os Impérios. Com

os dados que apresentamos, até então, é bastante difícil pensar como se

estabelecia uma rota de ingresso, quanto mais um circuito comercial estável.

Para tentar buscar algumas destas respostas, vamos estudar com atenção um

caso razoavelmente documentado.

O grande mercador Francisco Pinto de Vila Lobos era o que poderíamos chamar de

“excêntrico”. Em uma consulta feita pelo Conselho Ultramarino em 1749, o

governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, dizia que tal homem

tinha “terrível procedimento”. Segundo o governador, Vila Lobos havia feito

inúmeras desordens na sua guarnição militar, sendo que a pior fora quando

“...fingiu-se de louco [...] esteve no hospital mas reconhecido o fingimento foi

solto...”.14 O farsante acabou sendo rejeitado em algumas consultas para

promoções militares por suas atitudes.

Foi logo depois de perder uma destas promoções que Vila Lobos escreveu

ao Rei de Portugal pedindo o alongamento de uma concessão que tinha, para

“...ir à Colônia do Sacramento e às Minas...”. O pedido não se dava à toa. Tal 11 Ponto localizado à beira da barra do Rio Grande. 12 Anais do Arquivo Histórico... op cit. pg.133. 13 Idem. pg. 133. Grifo nosso. 14 AHU-RJ. Cx. 60. Doc. 14136.

98

sujeito mantinha negócios nos quais a circulação entre os dois pontos, o de

compra e o de venda, tinha em Sacramento e Minas alvos essenciais.

Ele não fora de todo esquecido pelo monarca, pois este lhe renovou a

concessão. Mais do que isso, Vila Lobos tinha outras regalias, como a permissão

do Rei espanhol para negociar mulas em seus territórios americanos.

Começamos a entender o que pretendia fazer entre Sacramento e as Minas. Em

1751, o governador de Sacramento Luís Garcia de Bivar noticiava ao Conselho

Ultramarino que o...

“...Vice-rei de Lima mandou ordem ao Governador de Buenos Aires, para impedir a negociação de mulas concedida por El Rei Católico ao Alferes Francisco Pinto de Vila Lobos e que se lhe remetesse as ordens de Sua Majestade Católica, porque tomava sobre si este negócio, o que esse está executando, não obstante, ter já pago as Caixas Reais 6000 pesos de direitos e ter feito a despesa principal.”15

O interessante é que apenas em um momento de fracasso do plano de

Vila Lobos é que foi perceptível sua atuação no negócio de compra e venda de

muares. Neste contexto, contudo, não se tratava de um impedimento exclusivo

ao dito mercador, mas se dava em um momento de profunda tensão entre os

dois Impérios na região, em paralelo a uma das inúmeras demarcações de

terras. Os comerciantes portugueses com negócios em Buenos Aires estavam

“assustadíssimos”16, pelo temor de que algo de anormal acontecesse.

Em agosto de 1751 tivera um novo deslize. De Madrid vinham ordens

para que daquele momento em diante foi vetada a concessão, pelo volume que o

negócio tomava.17 A carta do Marques de la Ensenada dizia ainda sobre a rota

seguida, através do Rio Grande e daí para as Minas, e sobre a quantidade,

contando os seis mil animais que havia na tropa anterior.

15 Anais da Biblioteca Nacional – Inventário de Documentos Relativos ao Brasil existentes no Arquivo de

Marinha e Ultramar – Rio de Janeiro, 1756- 1757. Vol. 71. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional - Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951. pg. 179.

16 Idem. 17 Reales Ordenes - Legajo 3. 1747-1751 - Sala IX 24.10.11 – AGN. Agradeço a Fabricio Pereira Prado

pela concessão do material.

99

FIGURA 3

100

Outro documento espanhol18, de 1752, nos informa com muito mais

detalhes sobre os negócios de Vila Lobos. Não sabemos muito bem quem fizera

este documento, nem mesmo com que objetivo exato. Mas tal papel nos informa

da provável data da permissão espanhola para os negócios do alferes, em agosto

de 1749, em Madrid.

O dito mercador havia acordado com as autoridades espanholas a

concessão para levar 3823 mulas de Santa Fé para o “Rio Grande”, além de

oito que “prevenido Francisco Pinto”19 já havia remetido para Sacramento. Todo

este gado estava contabilizado visando especialmente a tributação. Todavia, o

mercador português não fora honesto em seu procedimento. Tentou juntar

doze mil mulas de inúmeros criadores de Santa Fé para “extraerlas

clandestinamente” e pôr-se em longa marcha para o Rio Grande.

Alguns anos depois, o nome de Vila Lobos fora novamente aludido em

documentos espanhóis. Em poucas palavras, falava sobre suas atividades de

extração de mulas para os domínios portugueses entre 1749 e 1753.20

Seu caso remete ao de um grande mercador, capaz de movimentar

volumosas quantidades de mercadorias em distâncias grandes, podendo obter

lucros extraordinários. Quando da arrematação do registro de Curitiba, o

provedor da Fazenda de Santos escreveu ao Rei afirmando que o valor da

concessão era baixo, diante dos ganhos que este registro proporcionava. Para

tanto, narra o caso de uma tropa que vinha se aproximando do registro: “...me

persuado que será o rendimento mais avultado por me constar que entre

outras mais tropas, vem uma de cinco mil bestas que se aqui chegar,

ela só renderá a Vossa Majestade seis contos de réis...”21 Esta poderia até ser

a tropa de Vila Lobos, mas o que queremos atentar aqui são os valores que são

movimentados por este tropeiro, que conduzia tropas de igual vulto. À isso,

18 II – 31, 30, 1 – nº 2. Biblioteca Nacional. 19 Tal como o documento se refere ao sujeito. Num tom de clara contrariedade, atribuindo-lhe uma astúcia

inconveniente. 20 Ralação de papéis existente num arquivo de Buenos Aires, por meados do século XVIII. I – 28, 34, 29.

Biblioteca Nacional. 21 Carta do Procurador para o Rei, alertando dos erros no contrato com M. Cordeiro e dando os tropeiros,

número de animais por tropeiro e quantias arrecadadas pelo registro de Curitiba no ano de 1751. ARQUIVO NACIONAL. Documentos Históricos: Provedoria da Fazenda de Santos – I - leis, provisões alvarás, cartas e ordens reaes. Coleção no 445, vols. XIII - XX. II – Livro da Junta da Arrecadação da Fazenda Real. Vol. II. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia, 1928. O Grifo é nosso.

101

devemos considerar que o cálculo levou em conta que apenas metade dos

direitos pertenciam à Coroa. Só de tributos em Curitiba, uma tropa deste porte

pagava algo em torno de doze contos, uma quantia significativa se levarmos a

rigor o cálculo feito pelo provedor de Santos para o Rei. Estimar os ganhos que

esta tropa poderia proporcionar para seu proprietário é um tanto difícil, na

medida em que não temos informação sobre os valores negociados na compra, e

pouco sabemos dos valores praticados nos pontos de venda. De qualquer modo,

esta estimativa nos dá alguma idéia do volume deste negócio.

Não temos dados sobre os recursos materiais que Vila Lobos dispusera

para a empreitada. Mas temos alguma informação sobre as articulações que

dispunha para obter as concessões que usufruiu. O mesmo Gomes Freire de

Andrade, que narrou a história das desordens provocadas pelo sujeito, é quem

nos dá estas pistas. Segundo ele, Vila Lobos obteve a patente de Alferes “...posto

que foi promovido por filho do Sargento-mor engenheiro do mesmo nome, e

sobrinho do tenente e Marechal de Campo General José Fernandes Pinto

Alpoim...”. 22 Gomes Freire afirma que, mesmo com tais credenciais, o dito

alferes não deveria ser novamente promovido. Todavia, nos demonstra o quanto

eram importantes os seus laços parentais, a ponto de serem citados como

motivos para ascensão na carreira militar. Tal importância é comentada pelo

governador da Colônia do Sacramento, alguns anos antes de Gomes Freire e das

ditas “desordens” provocadas pelo alferes. Segundo ele, Vila Lobos teria

“...a circunstância de se haver aplicado ao exercício da Artilharia e de Engenheiro, querendo seguir seu avô Manuel Pinto de Vila Lobos, coronel da Artilharia com exercício de engenheiro na Província do Minho [...] e seu pai Francisco Pinto de Vila Lobos, sargento-mor engenheiro na mesma Praça : e a seu Tio o sargento-mor atual da Artilharia do Rio de Janeiro José Fernandes Pinto Alpoim, onde tem adquirido crédito notório, com o seu grande préstimo”.23

De alguma forma Francisco Pinto de Vila Lobos adquiriu um cabedal

social muito mais em função do pai, do tio e do avô do que baseado em seus

talentos. Recebeu assim uma “herança imaterial”, conforme aponta Levi,24

22 AHU–RJ. cx. 60. doc. 14.136. 23 Informação do governador da Colônia. AHU–RJ. cx. 55 doc. 12755. 24 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. .

102

mesmo que não tivesse feito muito para aumentar ou manter este “patrimônio”.

Contudo mesmo as “desordens” que provocara, e que possivelmente lhe

privaram de promoções mais freqüentes, seu núcleo familiar ainda mantinha

importantes vínculos que possibilitaram e garantiram que ele pudesse circular

com animais entre os dois Impérios, e com despacho favorável de ambos.

Seu pai era Capitão do terço de artilharia na praça de Sacramento a partir

de 1738, quando enviou uma solicitação de ajuda de custo para transporte até a

Colônia.25 Da mesma forma, seu tio, José Fernandes Alpoim, era também oficial

militar, sargento-mor do terço de artilharia do Rio de Janeiro e designado para

acompanhar as tropas da expedição de Gomes Freire de Andrade ao sul, no

início da década de 1750. É possível que neste contexto, em um momento de

contatos fortes e regulares entre militares espanhóis e portugueses tenham se

formado relacionamentos que deram base de sustentação para a ação de Vila

Lobos como tropeiro nos domínios castelhanos, a partir de um domicílio

comercial em Sacramento. A maior parte das fontes que utilizamos remete-se a

ele como estando em Sacramento. Também uma solicitação que fez em 1749,

pedindo “...repassar provisão de licença por tempo de um ano para poder ir a

Nova Colônia e Minas...”26 nos indica isso.

Pelo fato de permanecer boa parte do tempo em Sacramento, e tendo pai

e tio atuando naquela redondeza, Vila Lobos teve acesso a redes que envolviam

especialmente comerciantes e produtores dos domínios espanhóis, além de

contatos que lhe possibilitaram obter a concessão para a circulação em

domínios espanhóis do próprio Rei Católico. Além disso, para obter licença e

circular pela colônia, a herança recebida ainda era o bastante, como nos indica a

aprovação do requerimento feito em 1749.27 Por sua vez, Francisco Pinto de Vila

Lobos, o filho, acabou investindo o que herdara na atividade comercial,

descuidando um tanto da reprodução dos relacionamentos e articulações sociais

que seus ancestrais haviam construído e reproduzido com bastante

competência. Ele se limitara a utilizar-se destas relações, sem reproduzi-las da

devida maneira.

25 AHU-RJ. cx.43 doc. 10016. 26 AHU–RJ. cx. 43. doc. 14287. 27 Idem.

103

Certamente Vila Lobos não era o único a realizar negócios com muares.

Um contemporâneo seu, chamado Francisco Vila Sana, saiu de Santa Fé em

1752 levando mais de novecentas éguas e vinte mulas.28 Sem pagar direitos e

sem autorização, foi perseguido pelas autoridades espanholas. Não sabemos se

foi pego em algum momento. Temos o registro de sua passagem pelo Rio

Grande de São Pedro em 1754:

"...Dom Francisco de Vila Sana e companhia que conduzia ele suplicante dos domínios de Espanha para este continente uma numerosa tropa que contou cinco mil ou mais animais fazendo-a transportar para o registro de Viamão para que passem aos domínios de São Paulo e Minas...” 29

Também um tropeiro chamado Bartolomeu Chevar havia passado do Rio

Grande para as Minas Gerais em 1754.30 Ele levava consigo 3780 bestas muares,

gerando impostos no valor de mais de cinco contos de réis.

Seguindo o rastro deixado por estes grandes mercadores, verificamos

várias regularidades. Em primeiro lugar, a região de Santa Fé, nos domínios

espanhóis, aparece como um dos principais centros fornecedores. Esta região

certamente possuía destaque durante o século XVIII como grande produtora de

muares.31 Ao que tudo indica, a rota seguida passava pelo chamado Rio Grande

de São Pedro, já em territórios lusos, seguindo daí para Curitiba e Sorocaba,

está última um grande centro redistribuidor, especialmente através da “Feira de

Sorocaba”, que dava ênfase aos muares.

Importante reparar que, via de regra, era um único sujeito (com seus

auxiliares) que conduzia a tropa de um extremo a outro. Isso se tornará mais

aparente quando verificarmos que outra forma do gado passar às Minas era

através de inúmeros intermediários, que no fim das contas, a sua maneira,

também abasteciam de gado os centros consumidores. Afora Vila Lobos, pouco

sabemos dos outros condutores.

Se não dispunham de grandes recursos para a compra do gado nos

territórios espanhóis, certamente dispunham da confiança e do crédito dos

28 Mss. I – 28, 34, 20. BNRJ. 29 F1242. 21v-23. AHRS 30 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pg.

130. Tal referencia seria de um livro de registro geral da Vila de Santana da Parnaíba, o que fora “comunicado” a Sérgio Buarque de Holanda por outro pesquisador.

31 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial. México: Grijalbo, 1983.

104

criadores para obter os animais e levá-los ao seu destino final. Vila Lobos teria

tentado ajuntar uma tropa de doze mil animais, baseado apenas no crédito que

dispunha, pois os animais não eram seus.32 Da mesma forma, o citado

Bartolomeu Chevar, segundo Sérgio Buarque de Holanda, teria sido cobrado nas

Minas pelos tributos que fiara, já que provavelmente não dispunha de dinheiro

corrente para pagá-los, e necessitou vender os animais para obtê-lo.33 A falta de

metal circulante deveria ser um complicador para estes negociantes. Todavia,

um homem como Vila Lobos não deveria ter muitos problemas com isso, como

pudemos observar. Seus relacionamentos deveriam garantir boa parte de sua

empresa, especialmente os que herdara de seu tio e de seu pai. Da mesma

forma, Bartolomeu Chevar obteve aceitação para o fiador que apresentou. É

provável que só obtivera isso devido a sua competência de estabelecer contatos e

relacionamentos. Caso contrário, dificilmente chegaria às Minas.

Importa apontar para a quantidade de animais que levavam. Nos casos

apresentados, as tropas freqüentemente passam de três mil animais. Essa

quantidade, arrecadada com dinheiro ou crédito, era muito importante se

considerarmos o risco da viagem. Não apenas a alimentação dos tropeiros, mas

também as perdas com mortes de animais e o pagamento de peões eram

despesas que deveriam fazer parte da contabilidade do proprietário da tropa.

Além disso, havia ainda as despesas com os tributos de licença e passagem de

animais que (por mais sonegados que fossem) poderiam representar uma

despesa formidável para quem percorria mais de dois mil quilômetros.

Acrescenta-se também a intenção do tropeiro em ganhar o suficiente para si e

para dar continuidade satisfatória ao seu negócio. Todavia, isso são conjecturas,

pois pouco sabemos das despesas que se faziam. Um documento, contudo, nos

da algumas pistas. Em maio de 174934 alguns moradores de Rio Grande foram

chamados a prestar informações ao governador em nome de Sua Majestade.

32 II – 31, 30, 1 – nº 2. Biblioteca Nacional. 33 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pg.

130. 34 Resposta que deram os moradores casais deste estabelecimento sobre o pagamento que lhe [ilegível] o

Cel. Governador Diogo Osório Cardoso, cuja mandou registrar vocalmente. 1749. ANAIS DO AHRS. vol. 1. pg. 234. Nota: A transcrição cita o ano de 1739. Porém, os documentos adjacentes estão todos com datas do ano de 1749, e na ordem correta. Importante notar que a transcrição não foi assegurada por quem a fez.

105

Tratava-se de uma consulta para saber a quem deveriam pertencer os direitos

cobrados em Curitiba, das tropas que iam para as Minas. Os consultados, ao que

parece todos envolvidos de um modo ou outro com o negócio de gado35,

disseram que deveria pertencer ao Rio de Janeiro, pois em São Paulo:

“...há os grandes gastos que nele se fazem e também nos parece danoso o dito direito pelas muitas perdas que recebem os comerciantes pela aspereza do caminho e passagens de dez mil réis cada rês, fora infinitos ribeiros que estando cheios dão muito detrimento às tropas e pela muita despesa que se faz em [ilegível] dos condutores delas.” 36

Reivindicavam, ainda, a não cobrança das montarias dos condutores, que

sem elas “...se não pode conduzir tropa alguma...”, além de pedirem tempo

suficiente para o pagamento dos direitos, “...pela muita distância aonde eles

[negociantes] vão dar saída e a demandar seu pagamento...”. 37

Os casos que discutimos até aqui são de grandes comerciantes. Havia,

neste mesmo período, entre 1749 e 1755, muitos negociantes “pequenos”, que

levavam poucas quantidades de gado, e dos quais temos poucos registros, muito

menos de negociações nos domínios espanhóis. Uma hipótese pode ser

apontada: este período, do final da década de 1740, que podemos estender até o

final da década de 1750, é o momento culminante destas grandes tropas. Após

este período fica mais difícil detectar a existência e reprodução destas

negociações de vulto.

Pudemos localizar apenas um caso, no final da década de 1780, quando o

Sargento-mor da Legião da Capitania de São Paulo, Joaquim José de Macedo

Leite, levou gados do Rio Grande para São Paulo, diretamente. Em 16 de março

de 1789 o governador noticiava ao Vice-rei a presença do dito Sargento-mor no

Rio Grande para comprar gado para as tropas de São Paulo. 38 Tempos depois,

em 22 de setembro de 1790, passava o Sargento pelo registro de Curitiba, mas

na condição de fiador da tropa de um tal Manuel de Souza Teixeira, que levava

35 Segue a listagem dos consultados: Manuel de Lima Veiga, Domingos Martins, Domingos Gomes

Ribeiro, Lucas Fernandes da Costa, Antonio Simões e Manuel Francisco da Costa. 36 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS, 1977 pg. 234. Grifo

nosso. 37 idem. pg. 235. 38 Cód. 104. Vol. 11. pg. 75. Arquivo Nacional.

106

duzentos cavalos.39 Logo em seguida ele passava no registro de Sorocaba,

juntamente com Souza Teixeira e seus duzentos cavalos. Mas neste momento,

além dos duzentos cavalos passaram mais três tropas conduzidas por aqueles

condutores, com os valores respectivos de 227$500, 268$040 e 116$250 réis,

demonstrando que os animais que ambos conduziam eram muitos mais, mas

sem discriminar as espécies40. O problema fica na perda das fontes do registro

de Curitiba, pois todos os animais que passaram em Sorocaba também vinham

do registro curitibano, com despacho deste.

A divisão dos animais em quatro tropas pode ter sido uma forma de

negociação feita com os administradores do registro, já que apenas duas (uma

de cada) passaram sem dívidas, sendo que as demais passaram com promessa

de pagamento, a qual deve ter sido paga, pois em 1801, numa lista dos

devedores do registro, nenhum dos dois constava como devedor.41 Percebe-se

claramente que Macedo Leite e Souza Teixeira aproveitaram sua viagem ao

serviço Real para também comprarem gados para si ou para venda.

O caso de Macedo Leite, ainda que próximo dos anteriormente citados,

guarda profundas diferenças. Primeiramente o número de animais, bem abaixo

dos praticados na década de 1750. O dito Sargento comprara gado no Rio

Grande (e não nos domínios espanhóis) e o fizera a pedido das tropas lusas

estabelecidas em São Paulo, ainda que aproveitasse para comprar mais algum

gado. Há uma enormidade documental a ser examinada pelos historiadores e

que trata dos registros de Curitiba e Sorocaba42. Esta documentação é

basicamente contábil, tratando dos negócios feitos com cada um dos tropeiros

que passaram naqueles estabelecimentos de fisco.

Como dissemos, após a década de 1750 fica mais difícil detectar a

presença de negociantes de longa distância, que se deslocassem do rio da Prata

para as Minas. Não afirmamos isso apenas por uma constatação empírica. Há

uma explicação para isso que possui relação direta com atuação dos Coroas

ibéricas em seus domínios. A partir de 1761, o ingresso de animais dos domínios

39 II – 35, 25, 62. Bilhete nº 1166. Biblioteca Nacional. 40 Relação das guias do Registro de Sorocaba. II – 35, 25, 25-27. Biblioteca Nacional. 41 Relação dos devedores da Casa Doada e conta das importâncias que recebeu no Registro de Curitiba

(1800-1801). Biblioteca Nacional. II - 35,25,47. 42 II – 35, 25, 25-27, II – 35, 25, 5; II – 35, 25, 63 são exemplos destes documentos.

107

espanhóis para os domínios lusos passa a ser proibido. Ainda assim, tal

comércio tem continuidade. Importantes mudanças ocorreram, tornando mais

arriscadas as iniciativas de conduzir animais de um extremo a outro. Por outro

lado, uma nova possibilidade de circulação através de um mercado

fragmentado, com revezamento de negociantes, toma forma predominante,

dando espaço para a atuação saliente das elites das diversas localidades que

compõem o trajeto. Os gados seguem circulando dos domínios espanhóis para a

região das minas portuguesas, mas com articulações sociais distintas das

anteriores, ainda que igualmente refinadas.

Quando falamos de um mercado fragmentado nos referimos a

participação de diversos “intermediários” que estariam no caminho que separa o

núcleo produtor do centro consumidor. No caso dos grandes comerciantes,

como Vila Lobos, apenas um sujeito fazia esta ligação. Através da ação

fragmentada destes intermediários, os animais eram conduzidos do rio da Prata

para Sorocaba e região das Minas. Esta prática, contudo, não se iniciara a partir

de 1750, mas já era desenvolvida paralelamente, como um artifício de

comercialização de gado para aqueles que não dispunham de recursos para fazer

viagens longas.

108

O início do contrabando

1761: o Rei de Portugal decidira proibir a existência de mulas em seus

territórios na América. Havia muitos anos que criadores da Bahia, Pernambuco,

Piauí e Maranhão se queixavam da introdução das bestas vindas dos domínios

espanhóis do Prata. Sua Majestade julgou que era melhor acabar com elas de

vez. Indignados com a decisão régia, muitos vassalos, especialmente do Rio

Grande de São Pedro, solicitaram uma revisão das medidas, afirmando que

viviam e dependiam da criação daquelas bestas muares e que a tal decisão só

viria prejudicar os seus negócios, bem como os interesses da Fazenda Real. Em

dezembro de 1764 o Rei facultava a criação das bestas muares, mas mantinha a

proibição para o ingresso das mulas espanholas, que deveriam ser

exterminadas.43

Passava então a ser considerado “contrabando”, ou seja, ilícito, o

comércio de muares entre os domínios lusos e espanhóis na América, passível

de apreensão e punição pecuniária. “Passível” é com certeza a palavra mais

adequada, na medida que nem sempre estes ingressos de animais dos domínios

espanhóis eram interditados. Percebemos algumas formas de que se valeram

súditos espanhóis e portugueses para dar continuidade aos seus negócios e, a

despeito da nova legislação, continuar comerciando animais de distintas

espécies. Trata-se de demonstrar a permanência do mercado, e os subterfúgios

utilizados para tanto.

É importante ter em mente a diferença que existe entre as pretensões de

uma legislação e aquilo que é realmente apropriado e praticado pelos homens,

os quais a lei tenta disciplinar. Não propomos que a legislação tenha

transformado as relações sociais que se davam no rio da Prata colonial.

Tampouco queremos percebê-la sem nenhum impacto. Tal legislação investiu

de autoridade determinados oficiais, encarregados do controle destes

contrabandos. Essa relação de poder tornou-se, nas mãos de determinados

grupos, um instrumento de definição do que era ou não passível de apreensão e

em última instância, do que era ou não contrabando.

43 F1243, 5v-6. AHRS.

109

Os Fornecedores Chamaremos de fornecedores àqueles que, dispondo de gado ou couro

obtidos nos domínios espanhóis, os passavam aos portugueses e outros

interessados estabelecidos no Rio Grande de São Pedro. Em momento algum

esta expressão é referida nos documentos que analisamos. É por nós utilizada

com o objetivo de esmiuçar mais a rota que seguiam as mercadorias. Estes

sujeitos possuíam relações muito próximas com os negociantes portugueses. O

que os diferencia, contudo, é sua especialização na tarefa de produzir ou,

principalmente, captar mercadorias de diferentes produtores. Tais agentes

encontravam-se espalhados nos territórios que os espanhóis chamavam de

Banda Oriental, ou seja, seus domínios a leste do Rio da Prata. Não parece haver

nenhuma identidade entre os homens que se dedicavam a este trabalho, salvo,

evidentemente, os pertencentes ao grupo indígena minuano, habituais

fornecedores de animais aos portugueses.

“aquellos semibárbaros colonos”: os espanhóis da banda oriental44

De todas as coisas que impressionaram Concolorcorvo45 quando de sua

passagem por Montevideo, a presença dos “gaudérios” foi das mais

comentadas. Segundo o autor, eram rapazes que viviam em um modo muito

selvagem, com freqüentes incursões ao campo para capturar bois e vacas,

ficando a maior parte do tempo em ocupações pouco recomendáveis. A banda

oriental, todavia, possuía uma diversidade econômica muito maior. Mantinha

uma vasta produção pecuária e tritícola,46 além de ser uma área de forte

presença de imigrantes, fossem os “Canários”, vindos das ilhas, famílias de

Buenos Aires e, em grande medida por sujeitos vindos de Corrientes, Paraguay,

44 CONCOLORCORVO. op cit. pg. 33 45 Viajante de Cuzco que percorreu o caminho entre Montevideo e Lima. 46 GELMAN, Jorge. Sobre esclavos, peones, gauchos y campesinos: el trabajo y los

trabajadores en una estancia colonial rioplatense. IN: Santamaria, D. Estructuras sociales y mentalidades en América Latina. Siglo XVII y XVIII. Buenos Aires: Biblos, v. 1990. GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros. Buenos Aires: Editorial Los Libros del Riel, 1998.

110

Santiago del Estero e Córdoba,47 áreas de onde havia constantes fugas

populacionais em busca de trabalho.48 Certamente uma das maiores produções

era de couros, o que foi percebido por Concolorcorvo em 1773:

“El principal renglón de que sacan dinero los hacendados es el de los cueros de toros, novillos y vacas [...] Por el número de cueros que se embarcan para España no se pueden inferir las grandes matanzas que se hacen en Montevideo y sus contornos, y en las cercanías de Buenos Aires, porque se debe entrar en cuenta las grandes porciones que ocultamente salen para Portugal y la multitud que se gasta en el país.”49

O viajante aponta um dos principais gêneros contrabandeados entre

espanhóis e lusos: o couro, que certamente não era o único. As bestas muares

também tinham um importante espaço neste contrabando. O contrabando de

couro era proibido pelas autoridades espanholas e por elas perseguido com

vigor. Com os muares era um pouco diferente.

Quase que paralelamente à proibição do ingresso de mulas dos domínios

espanhóis se dá o avanço do Império espanhol sobre terras ocupadas por

portugueses e pretendidas pelo Império luso. A primeira legislação sobre o

ingresso de muares é de 1761, sendo corrigida em 1764. A chamada “invasão”

das tropas espanholas ocorre em 1763. Por motivos cronológicos e por outros

que vamos apresentar, defendemos que não há nenhuma relação entre a invasão

espanhola e a proibição. Tal embargo se dá em um momento de relativa paz

entre os dois impérios e por motivos basicamente econômicos.

Com a ocupação espanhola em 1763, a chamada “Banda Oriental” estava

estendida até a vila de Rio Grande, que fora igualmente ocupada pelos

espanhóis. Para este período possuímos evidências do contrabando. Este se

mantém durante toda a ocupação e continua existindo depois da retomada lusa

destas terras, em 1777.

O processo de demarcação dos limites que se iniciou logo após o fim do

conflito contou com a participação de importantes sábios a serviço das duas 47 APOLANT, J. A. Padrones Olvidados de Montevideo del siglo XVIII. v. I y II. Separata del “Boletín

Histórico del Estado Mayor del Ejercito, no 104-105 y no 106-107. Montevideo: Imprenta Letras, 1966. 48 FARBERMAN, Judith. De las "provincias de arriba". Labradores y jornaleros del interior en la

campaña porteña (1726-1815). XVI Jornadas de História Economica. Quilmes. 1998.. 49 CONCOLORCORVO. op cit. pg. 31.

111

Coroas. Podemos destacar neste momento dois destes demarcadores. Andrés de

Oyarvide, pelo lado espanhol e José de Saldanha, pelo lado português. Ambos

fizeram observações sobre o estado dos campos que estavam sendo divididos, e

sobre os sujeitos que ali habitavam. Como resultado disso, dispomos de algumas

notas relevantes sobres os indivíduos que forneciam gados e couros aos

portugueses do Rio Grande. Talvez estes sejam os documentos mais detalhados

sobre este comércio. Afora isso, contamos com algumas parcas referências à

perseguição dos delinqüentes pelas autoridades coloniais.

Ao chegar nas proximidades do Rio Cebollatí (nordeste do atual

Uruguay), o demarcador apontou que naquelas terras havia muitos

“changadores, nombre que dan a las gentes que se emplean en estas faenas de

matanza de reses [...] hacen sus cueros y tratan con los Portugueses del Rio

Grande, que se los compran a cambio de bebidas, tabaco negro y algunas

ropas”50 Adiante no texto, o autor explica que os ditos “changadores” levavam os

couros em cargueiros até o rio Cebollatí, seguindo em canoas até o rio Grande.

Talvez este fosse o caminho que fazia o “espanhol Pepe”51, citado por muitas

testemunhas em duas devassas instauradas no Rio Grande de São Pedro, uma

em 1784 e outra em 1787.

Pepe devia ser muito popular entre os portugueses. Fora citado como

notório contrabandista em 178452. Três anos depois, fora novamente apontado

por sete dos vinte e um depoentes de uma devassa. Em 1784, a testemunha João

Coutinho de Amorim53 disse que Pepe havia trazido uma carga de couros em

uma grande canoa, pela Lagoa Mirim, até a vila de Rio Grande. Seu depoimento

envolvia ainda dois negociantes da vila do Rio Grande, Domingos Rodrigues e

Manuel Rodrigues Lima, sobre os quais pouco sabemos. Pepe teria alugado a

canoa para fazer contrabando que fora apreendido pelo depoente. Ainda assim,

algum tempo depois Pepe agira novamente. Desta vez levava “a carga de

quatorze rolos de tabaco de fumo e alguma porção de biscoito” em uma canoa

50 OYARVIDE, Andrés de. Diario de demarcación. IN: CALVO, Carlos. Recueil Historique Complet

des traités. Paris, 1866 t. VIII, pg. 1. 51 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327v. 52 Depoimento de João Coutinho de Amorim. Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg. 140. Arquivo

Nacional. 53 ibidem.

112

de quatro remos, que fora igualmente apreendida, desta vez no “Sangradouro”54

da Lagoa Mirim.

Na devassa de 1787, Pepe foi melhor apresentado. Sabemos algo sobre o

que Pepe levava, e como. Mas com quem negociava? Nicolau Cosme dos Reis,

negociante da vila do Rio Grande, nos dá algumas pistas:

“... sabe por lhe dizer o espanhol Pepe que o coronel Rafael Pinto Bandeira lhe tinha vendido uma canoa mas que não sabe por que preço nem se o ajuste foi feito para ser paga a dinheiro, ou em couros, e que sabe que o dito espanhol Pepe conduzia publicamente para esta vila couros da campanha embarcados em canoas.”55

Tal espanhol mantinha negócios com o coronel Rafael Pinto Bandeira,

que ao tempo da devassa já havia ocupado o cargo de governador interino e era

comandante da “Cavalaria Ligeira”. Interessante notar que fora o próprio Pepe

que contara o negócio que fizera ao negociante Nicolau Cosme dos Reis, ainda

que não falasse sobre o pagamento. Na denúncia que originou a devassa,

Manuel José de Alencastre dizia que Rafael teria vendido a canoa a Pepe em

troca de quinhentos couros.56 A testemunha José Vieira da Cunha confirmou a

forma de pagamento, ainda que não soubesse o número exato de couros.57

Retornemos com o demarcador Oyarvide. Durante toda a narrativa,

percebe-se um profundo desprezo do cronista pelos “changadores”. Para

Oyarvide, estes sujeitos eram criminosos não apenas pelas atrocidades que

cometiam freqüentemente, como assassinatos e desordens. Eles estariam

dizimando os depósitos de gado espanhóis e os passando aos portugueses de

modo muito prejudicial aos interesses de Sua Majestade Católica. Um outro

demarcador, Félix de Azara, concordaria com a imagem de indecência que

Oyarvide tinha daquelas gentes. Todavia, ao contrário deste último, Azara era

muito favorável à idéia de “legalização” destes escusos negócios, chegando a

propor a realização de feiras de produtos espanhóis (especialmente as mulas,

mas também de derivados do gado) junto às fronteiras portuguesas. Azara

54 Refere-se ao atual canal de São Gonçalo, que liga a Lagoa Mirim à Lagoa dos Patos. 55 Depoimento de Nicolau Cosme dos Reis. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 337v. Arquivo

Nacional. 56 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. 57 Devassa de 1787. Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v.

Arquivo Nacional.

113

percebia o potencial deste negócio, e achava que poderia render bons tributos às

Coroas.58

Saindo das proximidades do rio Cebollatí, Oyarvide tomou o caminho de

Santa Tecla, na direção noroeste. Ali também encontro os “changadores”, assim

como índios minuano, que faziam “correrías”59 para obtenção de gados,

“...para conducirlos hacia la parte de Portugal...”.60 Neste sentido, Oyarvide

distingue toda uma área que seria de ação de lusos e castelhanos, e que envolvia

a especial ação de contrabandistas, de gente que fazia do trato ilícito seu

principal meio de vida. Certamente o demarcador não fora o único a reparar

nestes sujeitos. Em 1785 o vice-reino do Prata procedia contra “varios reos

changadores”, por crimes contra a propriedade. Este homens haviam roubado

couros, com o agravante de que “los introducían en Brasil”.61

Oyarvide não ficou apenas nos territórios espanhóis que ajudara a

demarcar. Andou também nas proximidades da Lagoa Mirim, onde, frente a

estância do coronel Rafael Pinto Bandeira, fez uma interessante observação. Os

cavalos do coronel possuíam “...la marca de los vecinos españoles de

Corrientes, Santa Fe y Montevideo.”62 Isso poderia muito bem ser uma calunia

de um militar espanhol contra um oficial português. Mas, considerando as

referências que temos dos negócios de Rafael Pinto Bandeira, podemos afirmar

que Oyarvide não estava inventando, nem mesmo exagerando. Afora os

relacionamentos com os minuano e os já mencionados negócios com o espanhol

Pepe, Rafael Pinto Bandeira mantinha uma rotina de tratos com os súditos

espanhóis.

Seguindo os rastros de uns contrabandistas, o furriel de Dragões Antonio

Pinto da Fontoura andou próximo a uma das propriedades de Rafael Pinto

Bandeira, quando se topou com um espanhol que dali saia. Ao vê-lo, o dito

furriel lhe interrogou sobre o que fazia por ali. Ao que o espanhol “...lhe

respondera que viera buscar alguns víveres para o acampamento espanhol

58 AZARA, Félix de. Memória Rural do Rio da Prata. IN: FREITAS, Décio. O Capitalismo Pastoril.

Porto Alegre: EST - SLB, 1980 59 Expedições de caça ao gado xucro. 60 OYARVIDE. op cit. t. VIII. pg. 191. 61 Legajo. 28. Expte. 21. AGN. 62 OYARVIDE. op cit. t. VII. pg. 186.

114

que então se achava no Arroio das Pedras...”.63 Este mesmo espanhol teria dito

ao furriel:

“...que naquela mesma ocasião saia outro espanhol por nome D. Pedro, o qual levava alguns escravos pertencentes ao dito coronel Rafael Pinto Bandeira, mas que não sabia se o dito espanhol D. Pedro os havia comprado ao dito coronel Bandeira ou se os levava por conta do mesmo coronel...” 64

Este relato nos evidencia as articulações que Rafael Pinto Bandeira

mantinha junto a grupos da banda oriental, possivelmente os “changadores”. É

provável inclusive que o referido “D. Pedro” se tratasse de Pedro Ansnategui,

também conhecido como “Don Pedrito”, citado como um dos maiores

“changadores” da Banda Oriental, em 1790.65

Da devassa de 1787 mais dois testemunhos confirmam estas relações de

Rafael. Antonio José de Feijó declarou que ele mesmo tinha visto, por várias

vezes, o ingresso de animais da campanha espanhola na Estância do Pavão, de

propriedade de Rafael Pinto Bandeira.66 A mesma testemunha dizia que um

soldado desertor, de nome Francisco Pinto, freqüentava a casa do coronel Rafael

Pinto Bandeira, indo e vindo dos domínios espanhóis. Na mesma devassa José

Antunes da Porciúncula confirma este fato, dizendo ainda que o dito desertor

levava cartas de espanhóis para os portugueses, ainda que não soubesse para

quem eram dirigidas.67

Rafael não obtinha o que queria apenas por meios pacíficos, ainda que

ilícitos. Enquanto duraram os conflitos, especialmente entre 1773 e 1776,

quando Rafael era comandante das tropas portuguesas na guerra aos espanhóis,

foram feitas sobre sua ordem muitas “arreadas” e saques às povoações

espanholas. Tais fatos foram narrados por vários participantes destas ações

violentas, que obtinham centenas, quando não milhares de cabeças de gado

63 Depoimento de Antonio Pinto da Fontoura. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 338v. Arquivo

Nacional. 64 Idem. 65 Informe de Don Manuel Cipriano Melo sobre la otra banda, límites, fuertes y guardias. Buenos Aires,

16 de julio de 1790. IN: CALVO, Carlos. APUD: CONI. op cit. pg. 175. 66 Depoimento de Antonio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 334v. Arquivo Nacional. 67 Depoimento de José Antunes da Porciúncula. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 331v. Arquivo

Nacional

115

vacum, muar e cavalar.68 Destas ações, uma comandada por Bernardo Antunes

Maciel, cabo de cavalaria ligeira, teve especial destaque. Segundo Oyarvide,

Bernardo era conhecido pelos espanhóis com Bernardillo, e fora líder de um

grupo de peões, sendo depois contratado pelos portugueses como vaqueano,

chegando a cavalaria ligeira, onde fora até o posto de Tenente.69

Os “Infiéis” Minuano Há relatos de negócios entre portugueses e minuano desde o início do

século XVIII. Este grupo indígena ocupava terras entre o Chui e o rio Uruguai.

Com o avançar dos ibéricos, acabaram se concentrando junto à desembocadura

do rio Ibicui, um afluente do Rio Uruguai.70 Os portugueses da Laguna, em

especial o grupo familiar de Brito Peixoto já mantinham fortes relacionamentos

com os minuano, durante os anos 1720.71 Estes relacionamentos provavelmente

se mantiveram dentro da família, principalmente na ramificação Pinto

Bandeira. Entre a década de 1760 e a de 1780, a família Pinto Bandeira teve

acesso privilegiado no contato com estes indígenas, que eram ativos agentes na

negociação de gados e artefatos derivados da animália. Mais do que qualquer

outro ramo derivado da família Brito Peixoto, os Pinto Bandeira souberam

muito bem como reproduzir e capitalizar os laços criados com este grupo

autóctone.

Estes relacionamentos foram substantivos para o acesso dos portugueses

a esfera de economia praticada pelos minuano. Esta esfera estava basicamente

ancorada na preia do gado. Desde que começaram a se formar grandes manadas

de gado selvagem em seus territórios, os minuano passaram a realizar

procedimentos de caça e coleta destes mamíferos, desenvolvendo técnicas

68 Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael Pinto Bandeira. IN:

Revista do Museu e Archivo Público do Rio Grande do Sul. Nº 23. MAPRGS/Livraria do Globo, 1930. pg. 77, 83.

69 OYARVIDE. op cit. t. VII. pg. 341. 70 Mapa do Terreno ocupado pelos Portugueses. IN: MINISTERIO DE EDUCACIÓN, CULTURA Y

DEPORTE – ESPAÑA. Las Relaciones Luso Españolas en Brasil durante los siglos XVI al XVIII. 2001.

71 FORTES, João Borges. Rio Grande de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941.

116

bastante refinadas. O uso do cavalo, animal exótico na América, foi rapidamente

adotado pelos minuano.72

Boa parte das presas dos minuano, não era, contudo, fruto de caça a

animais selvagens. Com o aumento das povoações espanholas no rio da Prata e

com o estabelecimento de grandes criações de animais, os minuano passaram a

valer-se destas reservas, segundo nos falam as continuas queixas dos

estancieiros espanhóis durante todo o século XVIII.73 Também o demarcador

Oyarvide reparou nestas atividades. Segundo ele, a dizimação dos gados na

Banda Oriental se dava “...por las correrías que hacen en ellos los dicho

Minuano y changadores incesantemente para conducirlos hacia la parte de

Portugal...”74 Neste sentido, o demarcador aponta não apenas a atividade, mas

igualmente o envolvimento de grupos de mestiços, espanhóis e indígenas,

articulados em uma atividade produtiva bastante organizada, já que tinha, no

mínimo, um comprador certo. Acreditamos que Emilio Coni seja quem melhor

percebeu a pluralidade de etnias e categorias sociais atuando na preia do gado e

no contrabando neste espaço.75 Mesmo fazendo um juízo de valor exacerbado

destes sujeitos, Coni aponta com pertinência os relacionamentos étnicos que

marcavam o seu cotidiano.

Ainda que houvesse esta grande disseminação de relacionamentos

étnicos, não há dúvida que o grupo indígena minuano garantiu uma certa

identidade, pelo menos até o final do século XVIII, quando o astrônomo de Sua

Majestade, José de Saldanha, topou com eles numa das expedições de

demarcação dos limites.

Foi numa quarta-feira, 14 de março de 1787. Neste dia os minuano

visitaram o acampamento dos demarcadores, que estava próximo a suas terras.

Saldanha dedicou várias páginas de seu diário para falar dos visitantes,

demonstrando grande erudição ao fazê-lo. Partia de pressupostos de Lineu76

72 SALDANHA. op cit. 73 Real Cédula al governador de Buenos Aires. Aranujuez, 18 de mayo de 1772. Copia em Campaña del

Brasil, t. I, pg. 477. APUD: CONI, Emilio. El Gaucho. Argentina, Brasil, Uruguai. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1942. pg. 97.

74 OYARVIDE. t. VIII. pg. 191. APUD: CONI. op cit. pg. 169. 75 CONI. Op cit. 76 Lineu publicou em 1758 a obra de que Saldanha se utiliza. Consultado no Site:

http://www.utad.pt/~origins/Menusgerais/Biografias/lineu.html. em 20-11-2002.

117

para tentar entender os indígenas e descrevê-los da melhor maneira possível. De

toda a narrativa, extraímos algumas informações que podem contribuir para

entender a participação minuano nos negócios de gado que estamos

observando.

Segundo Saldanha, havia entre os minuano grande consumo de tabaco

em rolo e aguardente. Tais produtos eram obtidos junto aos colonos

portugueses, que faziam numerosos negócios nas imediações. Em troca, os

Minuano ofereciam animais e produtos artesanais. Ainda que os minuano

preferissem ser regalados com o que precisavam...

“...em necessidade fazem as suas viagens, a algumas das Povoações meridionais de Missões, ou à Guarda de São Martinho, ou finalmente às Estâncias Portuguesas, e Fronteira do Rio Pardo conduzindo alguns cavalos dos apanhados no campo pares de Bolas e Caiapis novos para trocarem por erva mate, panos de algodão facas flamengas, tabaco de fumo, aguardente ou alguns freios.”77

O astrônomo ressalta a vinculação dos minuano aos portugueses. De fato

podemos perceber que as relações travadas por estes indígenas privilegiavam os

conquistadores lusos. Isso significou, em vários momentos, um rompimento

declarado com os espanhóis, dando margem para inúmeros conflitos bélicos. O

próprio Saldanha observou:

“Vivem os minuano em um estado propriamente Livre, entre os Espanhóis e Portugueses [...] Contudo ou pelas dádivas que com mais franqueza encontram nos Portugueses, ou por outra qualquer causa pende mais a sua inclinação para esta Nação.”

Saldanha percebia com perspicácia quais eram os motivos desta

“inclinação” dos minuano. A prática do dom e contra-dom78 era familiar ao

cotidiano tanto dos portugueses quanto dos minuano. Havia, além disso, um

profundo interesse entre os “maiorais” de ambas as sociedades de guardar

vínculos mais efetivos entre dois grupos. Exemplo disso foi o casamento de

Rafael Pinto Bandeira com a filha do cacique Miguel Carai, Bárbara Vitória, em

77 SALDANHA. op cit. pg. 235. 78 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádica. Forma e razão da troca nas sociedades arcáicas. São

Paulo: EPU/EdUSP, .

118

1761.79 Estes relacionamentos se mantiveram e ganharam força durante os

conflitos entre lusos e espanhóis na década de 1770.80

A guerra serviu não apenas para fortalecer aqueles laços existentes, mas

para fazer girar, com força, aquela economia baseada na preia do gado e na sua

saída pelo lado português. Esta atividade predatória, que muitas vezes tinha por

alvo estâncias espanholas, era estimulada pelas autoridades lusas. Em carta a

Rafael Pinto Bandeira (que sempre agia na mediação com os minuano) o

general luso João Henrique de Böhm afirmava a aceitação dos minuano sob a

obediência do rei, esperando que fizessem todo tipo de hostilidade e ruína aos

inimigos espanhóis. Böhm ainda avisava que “...se lhes comprará tudo o que

trouxerem pelo seu justo preço, afim de os ter contentes e satisfeitos por todo o

modo.”81 Tal política lusa teve sucesso. Em maio de 1785 um cacique espanhol

escrevia para Rafael Pinto Bandeira informando de sua intenção de passar suas

famílias e animais para os domínios portugueses.82

Dizia o cacique “Dom Bartolomeu” que os espanhóis os tinham

convidado para se chegar a Montevideo, e que lhes dariam tudo que desejassem.

Todavia, havia escrito aos lusos pois não queriam saber dos espanhóis, e

queriam ser súditos do Rei português. Ao saber disso, o Vice-rei interrogou a

Rafael Pinto Bandeira que checasse quantos e quais eram os gados que trariam

os minuano, e quantas pessoas viriam como súditos. Rafael consultou a seu

sogro, o também cacique Dom Miguel, que lhe informou sobre o ocorrido:

“...respondeu sumário o cacique Dom Miguel, dizendo que o cacique Dom Bartolo, que solicitou a passagem, tinha sido destroçado presentemente pelos espanhóis e vendo-se sem gente, fora incorporar-se a outros caciques em Japejú: que ele Dom Miguel ia também ter com aqueles caciques...”83

Tanto os minuano como portugueses perceberam formas convenientes de

ação que decorreriam da manutenção destas relações.

79 SILVA. Op cit. 80 RMAPRGS. pg. 115, 124, 175. 81 RMAPRGS. pg. 177 82 RMAPRGS. pg. 497. 83 RMAPRGS. pg. 499. nota nº 54. Japejú era uma localidade que ficava próxima a desembocadura do

Rio Ibicui.

119

Outras notícias da Banda Oriental...

Um documento anônimo sobre o estado da Banda Oriental nos últimos

anos do século XVIII pode nos servir de último guia sobre os “fornecedores”.84

Trata-se de uma notícia dada ao Vice-rei de Buenos Aires. Pretende-se uma

descrição circunstanciada da produção da Banda Oriental e de seus homens.

Inicia dividindo estes últimos em quatro tipos: os estancieiros, que eram

divididos entre ricos e pobres; os peões (também conhecidos como “gauchos”

ou “changadores”); os índios missioneiros e os portugueses. Todos estes

viveriam do gado, ainda que cada qual tratasse com este fruto de modo

diferente. Ao analisar este documento, observamos apenas os modos “ilícitos”

de trato do gado.

Segundo o incógnito autor, os peões poderiam se dividir entre os

jornaleiros, que trabalhavam nos rodeios das estâncias, ou os “...changadores,

que viven del contrabando y de robar ganado y hacen faenas...”.85 Sua ação

estaria basicamente ancorada no negócio dos couros como principal produto da

terra. A venda clandestina deste couro aos portugueses seria na mesma

dimensão da que se fazia licitamente no porto de Montevideo, isso pela cobiça

dos “changadores” que queriam dar rápida saída a baixos custos. Neste sentido,

percebe-se ai uma primeira opção econômica, relativa ao corte de custos no

negócio. Realizando a operação clandestina, os negociantes de couro estariam se

livrando dos impostos coloniais espanhóis. Este encargo seria repassado aos

portugueses, ou melhor, poderia ser novamente burlado pelos portugueses

através de outras estratégias.

Na seqüência do texto é apresentada uma explicação sobre os próprios

“changadores”. O recrutamento de homens para este trabalho seria amplo,

reunindo, entre outros, desertores, marinheiros abandonados e naturais da

terra. Além disso, fica explicita uma distinção que o autor faz entre os donos do

negócio de couros e seus peões: “...unos emprenden las faenas, y los otros las

ejecutan en calidad de ayudantes. Los changadores faenan para hacer

comercio de los cueros con los Españoles o con los Portugueses y el peón

84 Dos noticias sobre el estado de los campos de la Banda Oriental al finalizar el siglo XVIII. IN: Revista

Histórica. Tomo XVIII – nº 52-54. Año XLVII. Montevideo. 85 Idem. pg. 346.

120

trabaja por su jornal.” 86 Desta forma obtemos outro quadro. Ainda que o autor

sugira ao longo do texto que esta atividade é bastante informal e ocasional,

percebe-se a sua complexidade. Há a presença de um negociante que agrega a

vários homens como força de trabalho e que se vale da possibilidade de

comerciar clandestinamente seu produto como forma de obter maiores ganhos.

De fato, não pudemos, através dos documentos que consultamos, verificar a

posição social destes “senhores” do negócio clandestino do couro. Mas é possível

que tais sujeitos estivessem associados à elite de Montevideo e mesmo de

Buenos Aires, dada sua capacidade de recrutar grande número de homens e de

arcar com as perdas relativas a um negócio clandestino. No mínimo,

necessitavam de cacife para evitar apreensões de suas mercadorias.

Ao falar destes “changadores” e dos indígenas da banda oriental, o autor

deste documento não faz nenhuma menção aos minuano. Trata (e nisso é um

dos poucos) da atuação dos indígenas missioneiros guarani no trato com o

couro, ainda que nunca os relacione com a atividade de contrabando. Segundo

ele, os guaranis coureavam para sua comunidade e vendiam o produto nas

aduanas oficiais do Império espanhol. Não sabemos até que ponto isso é

concreto, pois só temos este registro sobre o tema. Todavia, a ausência de

qualquer referência aos minuano é bastante suspeita, pela recorrência comum

da presença daqueles indígenas em outros testemunhos. A participação guarani

nestes negócios esta ainda para ser estudada, pois os documentos que obtemos

não nos dão nenhuma indicação mais concreta.

O documento ratifica a presença maciça de lusos atuando no

contrabando, ao lado dos “changadores”: “...llevando cueros y trayendo

generos, este contrabando es la peor cuchilla de nuestros ganados [...] los

hacendados, los perros y la falta de pastoreo no hacen tanto estrago como el

que nos causan los changadores en el comercio con los portugueses...”87 O

próprio documento procura explicar os motivos que faziam crescer estas

negociações. Por um lado, os produtores de couro não pagavam impostos por

sua produção, repassando para os portugueses que pagariam (hipoteticamente)

menos imposto que os negociantes espanhóis. As “alcabalas” correspondiam a

86 Idem. pg. 362. 87 Idem. pg. 365.

121

25% do valor das mercadorias, enquanto nos domínios portugueses valia o

“quinto” real, ou seja, 20% daquele valor. O autor de tal narrativa se queixava,

em última instância, das perdas de arrecadação de que a Coroa espanhola era

vítima, além da dizimação dos gados “depositados” naquelas vastas campanhas.

CAPÍTULO 4

A PRODUÇÃO SOCIAL DA MERCADORIA

Topar-se com uma tropa de animais ou com uma embarcação carregada

de couros pode ser algo absolutamente inócuo. Poderia fazer-se a pergunta: o

que leva este tropeiro ou este barqueiro? Alguém responderia que leva,

simplesmente, couros ou gados. Mas quando a passagem de couros e gado é

proibida, alguém poderia dizer que se trata de contrabando. É, certamente, uma

questão de olhar. Mas um olhar socialmente determinado e filtrado pelas

relações sociais de cada período. Levar gado de Viamão para Curitiba é

simplesmente tropear. Levar o mesmo gado, por exemplo, de Montevideo para

Rio Grande é algo que, em determinado tempo, poderia ser descrito como

contrabando. Certos homens dominavam uma técnica muito refinada de

transformar contrabando em gado e couro. Outros, menos afortunados, ainda

que levassem as mesmas mercadorias, não passavam de meros contrabandistas.

O bando: a “pedra filosofal” do comércio ilícito. Em um relatório de 1784, o Vice-rei Luis de Vasconcelos e Souza dedicava

algumas páginas para falar sobre Rafael Pinto Bandeira e seus negócios na

fronteira do Rio Grande: “Contra este oficial tenho tido algumas queixas

principalmente de dar auxilio aos contrabandistas que são da sua

parcialidade e de quem tira maior interesse, fazendo frente aos mais...”1 Mas

frente ao problema, Vasconcelos admitia não saber como agir, pela necessidade

que atribuía a Rafael e os seus na defesa daquela fronteira.

1 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos, em outubro de 1784,

sobre o Rio Grande do Sul. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ano IX. 1929. pg. 28.

123

A “parcialidade” de que falava o Vice-rei era algo maior do que certas

afinidades e alianças circunstanciais. Não se tratava apenas de fazer vista grossa

aos infratores que eram mais chegados. Havia uma “parcela” da população

daquela fronteira comprometida com negócios ilícitos, especialmente de gado e

couros, mas que passava por outras atividades ilegais, como assassinatos,

extorsões e roubos. O comprometimento de cada membro desta parcela variava

de acordo com seu lugar no grupo. Alguns eram apenas espiões ou mensageiros.

Outros eram condutores de gado. Outros, ainda, cuidavam de ocultar as provas

e, eventualmente, silenciar as testemunhas. Este grupo, essencialmente

vinculado ao comando de Rafael Pinto Bandeira, era formado por sujeitos de

todos os estratos sociais, num corte vertical daquela sociedade.

No momento em que o Vice-rei Vasconcelos dizia aquelas palavras, o

grupo de Rafael já estava bastante consolidado. A guerra de reconquista dos

territórios tomados pelos espanhóis fora fundamental para sua ascensão.

Rafael Pinto Bandeira poderia ser encarado como o líder de um poderoso

“bando”. Bando aqui significa uma organização de pessoas de diferentes estratos

sociais, associados através de diversos vínculos, especialmente parentais e de

reciprocidade. Neste sentido era, como dissemos, uma organização vertical

dentro da sociedade, englobando desde escravos até os chefes das melhores

famílias da terra. Tal formação foi observada em muitos trabalhos, como no

caso do Rio de Janeiro, por João Fragoso e ainda por Zacharias Moutoukias, no

caso de Buenos Aires.2

Ao contrário do que percebemos nos trabalhos referidos, não

encontramos a ocorrência de mais de um bando organizado e estabelecido

naquela fronteira. Não há dúvida de que percebemos várias tentativas de

oposição ao grupo de Rafael. Estas foram combatidas na devida ocasião, com

demonstração de vigor e força pelo grupo hegemônico. Do mesmo modo, o

referido grupo se formou ao longo do período da ocupação espanhola do Rio

2 MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires en

el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992). e FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2001.

124

Grande, em muito baseado na herança deixada pelo pai de Rafael, Francisco

Pinto Bandeira, que foi especialmente aperfeiçoada pelos filhos e seus aliados.

Partimos de todas as denúncias de contrabando e outros crimes

associados a este para, a partir daí, buscar as relações entre os envolvidos,

invadindo os bastidores da vida social que os compunha. Não possuíamos, a

priori, nenhum acusado. Estes foram aparecendo lentamente conforme a

pesquisa ia se desenvolvendo. O resultado revelou ligações parentais na cúpula

dos negócios de contrabando, relações de reciprocidade com os peões, soldados

e outros homens que agiam nas ações ilícitas e, finalmente, atitudes de violência

física e simbólica junto aos inimigos e eventuais concorrentes.

O processo de formação do bando incluiu o recrutamento de homens

importantes do governo e do Império Português, especialmente através de

casamentos. A cooptação de estratos sociais mais baixos, pequenos lavradores,

peões de condução de animais e marinheiros, entre outros, era feita a partir de

relações de reciprocidade estabelecidas especialmente em trabalhos sazonais,

como os combates militares contra os espanhóis.

A Formação do Bando Vamos acompanhar o modo como o bando se fez ao longo de três

décadas, período em que alianças mantidas a partir do núcleo familiar Pinto

Bandeira se tornam mais sólidas e estáveis. Este período coincide com a

proibição do ingresso de muares dos domínios espanhóis nos territórios lusos

da América. Tal circunstância não deixaria de ter importância para o grupo, que

se forjava naquele momento.

O passado como herança. Antes de verificar as estruturas mais gerais do bando, vamos observar a

figura daquele que assumiu, notoriamente, a posição de comando do grupo.

Tentaremos perceber de que maneira Rafael Pinto Bandeira pôde ascender a

este posto e se manter nela durante três décadas. Necessariamente teremos que

levar em conta sua posição dentro da família Pinto Bandeira e o lugar desta

família na fronteira.

125

Em meados de 1789, Rafael Pinto Bandeira escrevia à Rainha solicitando

uma mercê.3 Segundo ele, poderia ser a arrematação dos dízimos, a cobrança do

quinto dos couros ou os quintos da passagem de bestas e potros no Registro de

Santo Antônio da Serra. Justificava que sua família tinha dado do que tinha de

melhor para o serviço de Sua Majestade, com gastos e descuidos de sua fazenda

e risco de vida na conquista e luta contra os indígenas bravios e os castelhanos.

Neste documento, Rafael lembrava os feitos de seus antepassados, da família

Brita Peixoto e de seu pai, Francisco Pinto Bandeira, na conquista dos

territórios meridionais da América, desde a fundação da Laguna.4 Reivindicava,

assim, uma ancestralidade e uma identidade com os conquistadores, revelando

um conhecimento do passado surpreendente, ao relatar minuciosamente as

ações empreendidas por seus ancestrais, como uma flechada no braço de seu pai

quando em combate com os índios das missões. Esta prática se assemelha muito

ao que era feito pela elite do Rio de Janeiro do século XVII, que recordava

sempre sua origem conquistadora como razão para obtenção de mercês régias.

Este passado glorioso, sempre relembrado, dava suporte para a família

reivindicar-se como pertencente às “melhores famílias da terra”.5

Francisco Pinto Bandeira havia se destacado em vários combates ao

longo da conquista do Rio Grande de São Pedro. Teve especial atuação em

combates de submissão dos indígenas missioneiros rebelados durante a década

de 1750.6 Além disso, negociava com gado, como nos indicam alguns

3 AHU-RS. Cx. 3. Doc 326 4 Rafael Pinto Bandeira descendia de uma fração da elite de Santos que migrou com toda a estrutura

social para fundar a vila da Laguna, e depois Viamão. A migração de elites, nestas condições, era uma regularidade na colônia, sendo percebida para várias regiões. No caso citado, ver HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita). Para o Rio de Janeiro, ver FRAGOSO, João Luís Ribeiro. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi. v. 1, (2000). p. 123-152. Para Pernambuco, as observações de um coevo são também indicativas: SALVADOR, Frei Vicente do. Historia do Brazil. IN: Anais da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Leuzinger e Filhos, 1889. pg 1-261. passim.(escrito no século XVII).

5 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2001..

6 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS, 1977. pg. 325. também em AHU-RS. Cx. 3 Doc 326.

126

documentos da época.7 Em uma carta de 1774 do Marquês de Pombal para o

Vice-rei do Brasil, o Marquês do Lavradio, era dito que a atuação de Francisco

Pinto Bandeira era fabulosa8. Não apenas pela sua bravura frentes aos indígenas

rebelados, mas também “...contra os castelhanos, surpreendeu duas vezes os

ditos inimigos [...] lhes apanhou seis peças de artilharia [...] matou muita

gente...”. O documento ainda apontava que toda aquela valentia tinha um

herdeiro, “...seu filho e digno sucessor Rafael Pinto Bandeira, que em três de

janeiro próximo precedente destruiu o corpo castelhano comandado pelo

Capitão Dom Antônio Gomes...”.

Além das honras militares, Rafael e seus irmãos herdaram também um

patrimônio bastante significativo. O inventário de Francisco Pinto Bandeira

somava um monte-mor superior a onze contos. Destacava-se uma ativa

produção de muares e de asininos, criações que envolviam custos de produção

mais elevados que eqüinos e bovinos.9 Possuía ainda trinta e sete escravos,

espalhados pelas cinco propriedades fundiárias arroladas.10

Rafael recebeu como herança do pai e dos avós não apenas um cabedal

bastante grande, mas uma rede de relacionamentos muito organizada, onde a

família Pinto Bandeira desempenhava um papel chave. Quando do ingresso de

Rafael ao serviço Real, seu pai era o legítimo herdeiro de todos aqueles recursos:

alianças, amigos, laços de parentesco e tradição.

Se por um lado Rafael teve como legado uma complexa rede de

relacionamentos, por outro também recebeu do pai as práticas necessárias para

reproduzi-la. A prática de manutenção e construção de redes utilizada por

Rafael, baseada em prestações e contraprestações, era muito próxima da

utilizada por seu avô, Francisco de Brito Peixoto, quando enviava “mimos” para

os minuano em troca de seu apoio e amizade.11 As boas relações com os

indígenas continuaram firmes, a ponto de Rafael desposar a filha do cacique

7 Anais do Arquivo. op cit. pg. 127. 8 RMAPRGS. pg. 389. 9 HAMEISTER. op cit. 10 Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.

maço 4. APERGS. 11 FORTES, João Borges. Rio Grande de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941.

Pg 14.

127

Miguel Caraí, um dos maiores líderes minuano.12 Verificamos estas relações e o

modo como os Pinto Bandeira conseguiram agregar ao seu núcleo familiar o

comando de toda uma gama de homens e expectativas.

As formas de Cooptação

Após dar voz de prisão para Rafael Pinto Bandeira13, em 1779, o

governador do Rio Grande, José Marcelino de Figueiredo, escrevia ao Vice-rei se

justificando. Dizia, entre outras coisas, que Rafael e seus parentes mantinham

um “séqüito” no Rio Grande. Isso se dava por vários motivos. Em primeiro

lugar, os aplausos que Rafael recebia por suas campanhas militares. Em

segundo, as constantes promoções e concessões de patentes que Pinto Bandeira

fazia. O último ponto dizia respeito à concessão de terras. Segundo Marcelino,

Rafael distribuíra muitas terras nas áreas conquistadas aos espanhóis na última

guerra, reservando muitas para si, sendo que uma “...tamanha com uma

província de oito léguas de largura e dez léguas de comprimento...”14.

Marcelino tinha razão. Contudo, não eram apenas estas as formas de que Rafael

se valia para montar seu séqüito.

Identificamos, grosso modo, três formas de cooptação de sujeitos para

dentro do bando: as alianças matrimoniais, a coerção extra-econômica

(violência física) e os laços de reciprocidade. Esta última forma foi dividida, para

efeito de análise, em três segmentos, a saber: as contrapartidas de guerra, as

concessões de terras e a “proteção” que os Pinto Bandeira garantiam a

determinados indivíduos. É importante ressaltar que nossa investigação partiu

das referências aos acontecimentos ilegais para, daí, identificar seus agentes.

Neste sentido, estas formas de cooptação estão estreitamente vinculadas ao

trato ilícito, ainda que não possam, em hipótese alguma, ser desvinculadas do

tecido social. Acreditamos que identificando estas formas utilizadas no jogo do

contrabando, estaremos nos aproximando das formas que eram utilizadas por

aqueles homens em todas as dimensões da vida.

12 PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,

1943. pg. 43. 13 Sobre a prisão de Pinto Bandeira, ler SILVA. Op cit. 14 RMAPRGS. pg. 408-409.

128

“...Os aplausos...”15 Os “aplausos” a que Marcelino se referia não eram, em si, uma forma de

cooptação. Mas certamente contribuíam para construir e aumentar o prestígio

do coronel da Cavalaria Ligeira. Antes de tomar com atento as estratégias de

cooptação, vejamos como se construiu a imagem de Rafael perante aquela

sociedade.

No inicio da contra-ofensiva lusa no rio da Prata, por volta de 1774,

Rafael começou suas atividades como comandante com êxito. Mais do que

derrotar espanhóis nas proximidades de Rio Pardo, Rafael estava ganhando o

respeito e a admiração das autoridades lusas. Estas já tinham ciência das

atividades ilegais e crimes cometidos pelos Pinto Bandeira. Alguns procuravam

encarar as acusações a Rafael como atitude de invejosos.16 De toda a maneira,

ainda que lhe fosse imputadas culpas, eram um mal menor do que seus feitos.

Uma carta endereçada ao Vice-rei, Marquês do Lavradio, de janeiro de 1774,

dizia

“...ser o dito oficial [Rafael] o primeiro que da parte meridional do Brasil se atrevera acometer os castelhanos com forças tão desiguais e proporcionadas: atacando, vencendo e destruindo com cento e tantos paisanos quase seiscentos homens de tropas [...] um oficial que lhe fez [a Sua Majestade] tão grande e tão público serviço por defeitos que sendo sempre difíceis de provar são muitas vezes inferiores ao mesmo serviço...” 17

Um comentário interessante sobre Rafael foi feito pelo General português

João Henriques de Böhn. Só tivemos acesso a este documento por uma citação

da época. Em outro documento que comentava as ações de Rafael e o enaltecia,

foram recolhidas as impressões de Böhn:

“C´est un homme a la fleur de son age, eduqué un peu en noble tartare, robuste, et plein de santé ; l´air ouvert, mais posé, il ne se jette a la tete de personne ; il parle peu, mais il repond avec sprit, et franchise ; il n´aura peut etre la fureur d´un granadier pure, ou d´un sanglier blessé; mais je crois que c´est un homme dont la tete conduit la bras...”18

15 RMAPRGS. pg. 408. 16 AHU– Brasil Limites. Cx. 3, Docs. 186, 187 e 189. 17 AHU– Brasil Limites. Cx. 3, Docs. 186. 18 AHU– Brasil Limites. Cx. 3, Docs. 189. O original está em francês. Segue a versão abaixo: “É um

homem na flor da idade, educado um pouco como um nobre tártaro, robusto, e cheio de saúde;

129

Comparar Rafael a um “javali ferido”, ou pontuar seu caráter robusto, de

um homem que, sem falar muito, respondia com franqueza, eram formas de

construir uma imagem entre as autoridades ligadas à Coroa. Marcelino de

Figueiredo dizia ao Vice-rei que os aplausos a Rafael começaram em Porto

Alegre, e que o próprio Vice-rei “...lhos há de fazer continuar...” 19. Marcelino

percebia o quanto a figura de Rafael ganhava projeção no Império Português.

Toda essa imagem acabou sendo importante para dois grandes prêmios que

Rafael recebera em 1777. O primeiro fora a patente de Coronel da Cavalaria

Ligeira, e o segundo, mais importante, fora a concessão do Hábito da Ordem de

Cristo. Ao receber a carta de Lisboa, Rafael solicitou que tais benesses fossem

registradas oficialmente nos Livros da Provedoria da Fazenda.20 Se as vitórias na

fronteira repercutiam tão bem lá fora, nada melhor que fazer com que as

vitórias em Lisboa repercutissem também na fronteira. Era mais uma forma de

dar caldo à construção de sua imagem.

Da mesma forma, em 1784, o Vice-rei Luís de Vasconcelos pontuava

observações sobre Pinto Bandeira a Martinho de Melo e Castro, secretário de

Ultramar luso. Dizia que Rafael tinha envolvimento em vários negócios:

usurpava terras, aterrorizava as populações, contrabandeava mercadorias.

Ainda assim, Vasconcelos não se propunha a romper com Rafael, pois este

último “... no tempo da guerra é muito necessário naquele continente pelo

préstimo que tem de espantar os espanhóis e conhecer pela experiência

aquelas vastas campanhas que tem pisado...”.21 Vasconcelos sentiu o drama da

força que detinha Rafael e a sua imagem junto à Corte em Lisboa

“...aonde o rumor vago, e popular das suas façanhas talvez fariam maior impressão do que as minhas informações [...] as quais sendo participadas por quem tem obrigação de as pôr na Real Presença de S. Majestade com a precisa imparcialidade e com a maior pureza, deviam

impetuoso, mas calmo, ele não se deixa levar pelas idéias de ninguém; ele fala pouco, mas responde com espírito, e franqueza, ele talvez não tenha o furor de um granadeiro, ou de um javali ferido; mas creio que é um homem ao qual a cabeça conduz o braço.”

19 RMAPRGS. pg. 408. 20 F1244. 144v. AHRS. 21 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos. pg. 28.

130

ser mais bem acreditadas, de que as ficções daquele oficial, que só sabe impor com o vasto simples conhecimento de um ...” 22

Ainda que Vasconcelos tivesse tentado investigar Rafael e seus desvios

inúmeras vezes, os aplausos de suas façanhas militares ainda ecoavam com

força em Lisboa.

O melhor ainda estava por vir. Em 1789 Rafael dirigia-se para a corte, em

fins de setembro recebia o posto de Brigadeiro de sua legião.23 Voltava depois ao

Rio Grande de São Pedro não apenas na condição de general, mas também

assumia, naquele instante, o posto interino de governador.24

Negociando medos e expectativas: a acumulação “troglodita” (mas nem tanto). Numa notória paráfrase da “acumulação primitiva”, definida por Marx,

falaremos da acumulação “troglodita”. Ressaltamos que se trata apenas de uma

paráfrase. A acumulação primitiva tinha este nome pelo fato de ser

historicamente prévia à acumulação capitalista.25 A acumulação “troglodita” não

antecede historicamente nenhuma outra forma de acumulação. Serve antes para

reproduzir e conservar a ordem social dentro de uma sociedade de antigo

regime, profundamente hierarquizada. Chamamos de “troglodita”, como um

trocadilho evolucionista, para ressaltar o caráter destas relações, e para

diferenciar com ênfase de qualquer semelhança com a “acumulação primitiva”,

definida por Marx. Ainda assim, uma frase de “O Capital” ilustraria com primor

o que vamos discutir: “É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira

história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em

suma, pela violência.”26

Pudemos observar, diante da documentação consultada, uma série de

referências a atos de violência praticados por membros da família Pinto

22 Relatório passado por Luis de Vasconcelos e Souza ao Conde de Rezende em agosto de 1789. APUD:

SILVA. Op cit. 23 AHU–RS. Cx. 3. Doc. 239. 24 AHU–RS. Cx. 3. Doc. 246. 25 MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1978. cap. XXIV. A Chamada Acumulação

Primitiva. pg. 828. 26 Idem. pg. 829.

131

Bandeira ou por outros, a mando daqueles. Trata-se, sem dúvida, de uma

acumulação, pois agrega de modo cumulativo ao nome “Pinto Bandeira” temor e

respeito público, além de alguns bens, quando a violência envolvia furtos e

saques. Esta acumulação se manifesta através de vários atos de violência física e

simbólica. Comecemos com algumas crônicas mais gerais, para depois passar a

casos mais detalhados

Em maio de 1779, o governador do Rio Grande, Marcelino de Figueiredo,

escrevia ao Vice-rei contando o que se passava na capitania:

“O dito coronel preso [Rafael Pinto Bandeira] enredou e atemorizou de tal sorte este povo, que se não resistiram a passar-lhe diferentes atestações e papéis dos seus bons serviços, desinteresse e limpeza de mãos...” 27

Talvez Marcelino tenha sido dos primeiros a reparar neste pavor público.

Os relatos de guerra, ainda que sempre lembrassem que o comando das

operações era de Rafael, não são claros sobre sua bravura pessoal. Muitas vezes

a documentação denota um certo receio de Rafael frente à possibilidade de um

ataque. O ataque de Santa Tecla, bastante documentado, pode ser exemplo

disso. Rafael desconsiderou a opinião da maioria dos oficiais, que propunham o

ataque “...para crédito das armas portuguesas...” 28 por dispostos que estavam

a “...derramar até a última gota de sangue pela defesa do país e honra da

pátria...”29. Rafael optaria por desistir, inclusive do cerco que se montara, se os

espanhóis não houvessem se rendido antes.30 Não há dúvida de que havia o

reconhecimento geral de sua capacidade como comandante. Um documento de

1774, sem referência de autor, fala dos êxitos bélicos de Rafael, informando que

“...escolheu o dito capitão 300 homens daqueles de sua facção escolhidos a

ponta do laço capazes de montar o diabo se o apanhassem entre as

pernas...”.31

O próprio Vice-rei Vasconcelos e Sousa sabia do temor que Rafael

causava nas populações. Dizia ele, em 1784, ao Secretário de Estado e Ultramar 27 RMAPRGS. pg. 407-408. Grifo nosso. 28 Declaração do Capitão Carlos José da Costa. RMAPGRS. pg. 368. 29 Declaração do capitão João Batista de Carvalho. RMAPGRS. pg. 368. 30 RMAPRGS. pg. 374. 31 AHU–Brasil Limites. Cx. 3. Doc. 187. Grifo Nosso.

132

que havia grandes usurpações de terras no Rio Grande de São Pedro, sendo que

um dos envolvidos era “...o coronel Rafael Pinto Bandeira, que fazendo-se

absoluto e temido de todos em razão do autorizado posto que ocupa...”.32

No ano de 1787 houve denúncias de que Rafael estaria retirando, a base

de violência, madeiras dos matos de outros estancieiros para a construção de

umas canoas. Sobre este ponto, o governador do Rio Grande na ocasião,

Joaquim José Ribeiro da Costa, dizia ao Vice-rei que nada sabia sobre o uso de

violência para obtenção das madeiras. Apenas sabia que “...os procuradores do

dito coronel pedem aos donos dos matos que permitam retirar as madeiras, e

estes, por amizade, ou respeito, concedem a dita licença pedida.”33

De vinte e uma testemunhas de uma devassa tirada em 1787, cinco

ressaltaram o temor público que havia em relação a Rafael e sua família. Um

caso específico motivou muitas destas manifestações. Antonio de Souza de

Oliveira havia morrido e em seu testamento não declarara que tinha um filho,

por nome Jacinto Nunes de Oliveira, cuja mãe era uma mulher livre. Jacinto

tentou reverter o testamento e reivindicar parte da herança que havia sido toda

prometida a Mauricia Antonia, sobrinha do defunto. Mauricia era irmã de

Rafael Pinto Bandeira e esposa de Bernardo José Pereira. Jacinto, sem

encontrar quem o defendesse na petição, acabou sem nada, e se foi para o Rio

de Janeiro. Por este incidente mencionado nesta devassa pudemos ter alguma

aproximação dos problemas que Jacinto teve. Segundo o lavrador Antonio da

Silva Barros, Jacinto não obtivera sucesso porque teve que “...opor-se contra

um cunhado do coronel Rafael Pinto Bandeira, de quem tinham grandíssimo

temor...”34

Outra testemunha, o soldado auxiliar e lavrador Elisbão Machado de

Araújo, dissera que o problema de Jacinto fora que “...não achara quem lhe

quisesse defender a causa por todos se temerem de patrocinarem uma

causa contra o capitão Bernardo José Pereira cunhado do coronel Rafael Pinto

32 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos. Op cit. pg. 28. 33 Cód. 104. Vol. 9. pg. 310. Arquivo Nacional. Grifo nosso. 34 Depoimento de Antonio da Silva Barros. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 342v. Arquivo

Nacional Grifo nosso.

133

Bandeira.”35 Já Inácio Xavier Mariano dissera que o próprio Jacinto “...se

temia por serem poderosas as pessoas com quem devia entender...”36

Também as testemunhas José de Vargas e José Garcia apontaram a causa do

fracasso de Jacinto no poder e força de coerção social que a família Pinto

Bandeira possuía.

Após receber uma denúncia de um esfaqueamento, feito ao alfaiate José

Antonio, Rafael, como comandante militar, se pusera a investigar. Logo surgiu

um culpado, que deixara, segundo se supunha, um objeto seu na cena do crime:

a bainha da espada. Tal pertence foi encontrado por um aprendiz do dito

alfaiate. O suspeito, Alexandre José da Guerra, fora preso e logo depois solto,

sendo o aprendiz acusado de mentiroso. Por esta causa, o comandante Rafael

Pinto Bandeira “...mesmo lhe deu dumas dúzias de palmatórias e o mandou

embora, dizendo que se tornasse a mentir o castigaria dobradamente...”.37 Este

caso, que nos foi narrado pelo Capitão de Ordenanças e Juiz dos Órfãos Manuel

José de Alencastre, nos indica dois aspectos dos meios de coerção empregados

por Rafael. O primeiro é a possibilidade de mandar prender e soltar os suspeitos

e acusados. Depois, Rafael, com suas próprias mãos, aplicara o corretivo no

rapaz, tido por mentiroso. Ainda que tudo isso fosse uma grande calúnia feita

pelo Capitão Alencastre, com o intuito de prejudicar a Rafael, não deveriam ser

acusações descabidas.

Outras denúncias feitas por Alencastre foram ratificadas por muitas

testemunhas da devassa feita em 1787, e dizem respeito a outros membros da

família, um irmão de Rafael, Evaristo Pinto Bandeira, e um cunhado, Custódio

Ferreira de Oliveira Guimarães.

Uma testemunha da devassa de 1787 dissera que uma partida militar,

comandada pelo alferes de Dragões Bernardo José Alves, fora fazer apreensão

de animais contrabandeados na estância de Evaristo Pinto Bandeira, mas não

conseguira completar a operação

35 Depoimento de Elisbão da Silva Araújo. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 341v. Arquivo

Nacional. Grifo nosso. 36 Depoimento de Inácio Xavier Mariano. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 339. Arquivo

Nacional. Grifo nosso. 37 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.

134

“...por lho impedir o dito capitão Evaristo Pinto Bandeira, e que fora voz constante ter vindo com armas ofensivas, desatendendo ao dito alferes de Dragões com palavras pouco decentes, o que mesmo alferes sofreu em atenção a ser aquele capitão irmão do coronel Rafael Pinto Bandeira, comandante que era deste continente naquele tempo...” 38

Outra testemunha, Inácio Xavier Mariano, também reparara no mesmo

ato, comentando que ouvira de um tal Antonio Joaquim, conhecido seu “...que

vindo o dito capitão Evaristo em seguimento da partida a alcançara no curral

do dito Antonio Joaquim, de onde violentamente tirara os cavalos e os levara

para a sua estância...” 39

Estes não foram os únicos incidentes provocados por Evaristo. Havia

uma embarcação, pertencente a um tal Ventura Pimentel, que ficava junto ao

Passo do Rio dos Sinos, e que servia para a passagem deste rio. Evaristo tentou

utilizar-se da embarcação para chegar até Porto Alegre, em uma data que as

testemunhas não informaram. O condutor da barca tentou impedir Evaristo,

que desgostoso, “...tirando a espada deu com ela muitas pranchadas no dito

passageiro obrigando-o a vir remando na canoa até Porto Alegre...”40.

Também a testemunha Manuel José Garcia confirmou estes fatos, que foram

relatados pela mãe do espancado a Manuel José de Alencastre. Pelo que se

apresenta, a mãe teve muito mais coragem para enfrentar os Pinto Bandeira que

o pai. Ela teria dito a Alencastre que “...se ali estivesse seu marido Ventura

Pimentel também o faria ir remando...” 41 Na devassa, o pai, Ventura Pimentel,

negara até o fim que todas aquelas coisas tivessem acontecido. É provável que

ele remasse mesmo. A esposa de Ventura conhecia o marido e também a força

dos Pinto Bandeira.

Além destas atitudes, também era imputado a Evaristo o cativeiro que

impusera a um escravo alheio, que havia sido emprestado para ensinar um

escravo seu a tocar caixa de guerra. Depois de um tempo na casa de Evaristo o

escravo fugiu para a propriedade de seu senhor, Tomé Cardoso, que teve a casa 38 Depoimento de Manuel Carvalho de Souza. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo

Nacional 39 Depoimento de Inácio Xavier Mariano. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 350. Arquivo

Nacional 40 Depoimento de Manuel Antonio de Vargas. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 347. Arquivo

Nacional 41 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. Grifo nosso.

135

invadida por Evaristo, com o objetivo de tomar o escravo novamente de

empréstimo, ainda que contra a vontade de Tomé e do cativo.42 Todos estes

desmandos eram obrados, segundo se dizia, por ser Evaristo irmão de Rafael,

especialmente nos momentos em que este último era governador interino. Tudo

era feito, em suma, com respaldo do bando.

Custódio Ferreira, cunhado de Rafael, também fez inúmeras

barbaridades. Vários testemunhos da devassa de 1787 apontavam suas atitudes

agressivas com relação a várias pessoas, o que provocou a fuga de muitos do

chamado distrito do Caí, comandado por Custódio. Mas isso não era o pior.

Segundo várias testemunhas, Custódio obrigava os tropeiros que passavam a

comprar seus animais. Além disso, obrigou mais de um homem a casar a força

com filhas bastardas. Custódio ofendia ou até mesmo mandava prender peões

da estância que lhe pediam pagamento. Isso diziam as testemunhas. Mas o fato

de serem queixas comuns à maioria dos relatos nos deixa mais convencidos de

suas possibilidades.

Através destes meios a família Pinto Bandeira obtinha um crédito público

baseado no medo coletivo. Como vimos, até mesmo um cunhado de Rafael,

como Bernardo José, do qual não temos nenhuma denúncia de atitude violenta,

era temido apenas por ser membro da família. A reprodução deste medo era

importante para a manutenção dos negócios ilícitos da família. Veremos que,

evidentemente, o medo não era a única força que atuava neste jogo. Mais

importante que a violência eram as relações de reciprocidade que os Pinto

Bandeira estabeleciam. Estas relações significavam um alivio da tensão

produzida pela família e serviam para atrair para junto do bando novos aliados e

agregados que garantiam a base social deste mando.

“...sua numerosa parentela...”43

A estratégia matrimonial iniciada e praticada por Francisco Pinto

Bandeira foi terra fértil para a formação do bando. Após sua morte, contudo, a

estratégia de casamentos mantida pela família Pinto Bandeira não apenas

42 Depoimento de José Cardoso da Silva. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 348v. Arquivo

Nacional. 43 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos. Op cit. pg. 28.

136

garantiu a inclusão de novos membros ao grupo familiar, como foi planejada de

modo a preservar o comando da família ao núcleo original. Tais alianças, ainda

que estabelecidas tendo em vista conjunturas maiores, acabaram se revelando

cruciais para as atividades contrabandistas desenvolvidas pela família. Para este

estudo atentamos para a geração de Rafael, observando os enlaces de seus

irmãos e irmãs, assim como os seus próprios.

Francisco Pinto Bandeira testemunhou os quatro primeiros casamentos

de seus filhos, no caso, Rafael, Mauricia, Desidéria e Matilde. As duas primeira

filhas se casaram em 1763. A primeira a casar foi Mauricia, que foi desposada

por Bernardo José Pereira, cinco dias após as tropas castelhanas tomarem a vila

de Rio Grande, numa terça-feira, 17 de maio44. Passados os rigores do inverno,

Desidéria Pinto Bandeira casava-se com Custódio Ferreira de Oliveira

Guimarães, em 11 de agosto45. O fato destes casamentos ocorrerem logo após a

tomada de Rio Grande pelos espanhóis pode não ser simples coincidência. É

provável que os acertos para os enlaces estivessem definidos a mais tempo, mas

a consumação das uniões deve ter sido feita com alguma pressa, frente a

insegurança que andavam aquelas terras. Francisco Pinto Bandeira foi um dos

primeiros a oferecer resistência à invasão, e talvez estivesse, através desta

política de casamentos a curto prazo, garantindo novas e substanciais adesões

ao núcleo familiar.

Não havia mais de dez anos que Bernardo José estava no Rio Grande.

Antes, andava de caixeiro de João Francisco Guimarães, com negócio de

fazenda, tendo vindo da cidade do Porto para a América bastante jovem, com

cerca de 13 anos de idade. As testemunhas de seu Auto de Justificação de

Matrimônio indicam muito bem as suas atividades de negociante de fazendas, e

passam, especialmente, a imagem de um forasteiro que se integrava àquelas

famílias estabelecidas.46

44 Autos de Justificação do Matrimônio de Bernardo José Pereira e Maurícia Antônia. 1763 (cod. 151)

ACMPA. 45 Autos de Justificação do Matrimônio de Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães e Desidéria Maria

Bandeira. 1763 (cod. 156) ACMPA. 46 Autos de Justificação do Matrimônio de Bernardo José Pereira e Maurícia Antônia. 1763 (cod. 151)

ACMPA.

137

Custódio Ferreira fizera percurso semelhante. Viera da vila de Guimarães

com cerca de 13 anos de idade. Os depoentes do Auto de Justificação de

Matrimônio afirmam a sua atuação no negócio de fazendas, sendo que alguns

destes informantes viviam da mesma atividade. Além disso, Custódio lutara nas

Missões, provavelmente nas guerras Guaraníticas47. Talvez nestes conflitos

tenha conhecido seu sogro, Francisco Pinto Bandeira, que liderava tropas

naquela ocasião. Do retorno do exército, Custódio ficara no Rio Grande, nos

campos de Viamão, onde se estabelecera.

Tanto Custódio como Bernardo mantiveram-se muito próximos do

núcleo familiar mesmo após a morte do sogro. Neste sentido, as relações sogro-

genro foram transpostas imediatamente para uma relação entre cunhados,

através da presença marcante de Rafael Pinto Bandeira dentro da família, não

apenas como o primogênito, mas também como um dos inventariantes

escolhidos pelo pai. O inventário de Francisco foi feito pela esposa, Clara Maria,

pelo filho Rafael, que ao que parece tinha já pleno conhecimento dos negócios

da família, e pelo genro Bernardo José. Este último gozava de grande confiança

de Francisco, como este bem expressou em seu testamento: “...pela grande

fidelidade e conceito que sempre dele fiz...”.48

A presença de Custódio e Bernardo dentro da família foi essencial para a

solidificação do bando liderado por Rafael. Por um lado, eram dois sujeitos de

fora que poderiam acrescentar à família com seus cabedais de negociantes, sem

retirar o controle familiar dos varões descendentes. Da mesma forma, sua

junção à família lhes investiu de um poder que não obteriam de outra forma.

Custódio Ferreira, por exemplo, tornou-se Comandante do Distrito do Caí, uma

espécie de região administrativa do Rio Grande de São Pedro, além de ter-se

tornado oficial do exército luso.49

O outro casamento realizado enquanto Francisco Pinto Bandeira ainda

47 Guerras de expulsão dos Jesuítas das Missões. NEUMANN, Eduardo. A fronteira tripartida: índios,

espanhóis e lusitanos na formação do Continente do Rio Grande. XXI Simpósio Nacional da ANPUH. Niterói. 2001.

48 Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35. maço 4. APERGS.

49 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.

138

era vivo foi o de Matilde Clara.50 Pouco sabemos de seu cônjuge, José Luís

Ribeiro Viana. Segundo Aurélio Porto, seria um grande proprietário de terras

em Rio Pardo e Cachoeira.51 Todavia, isso não basta para apontarmos a origem

do sujeito, já que também Bernardo José e Custódio acabaram se tornando

grande proprietários fundiários.

Contava Rafael Pinto Bandeira vinte anos quando se casou em 1761. A

esposa, Bárbara Vitória, era filha do cacique minuano Miguel Caraí. O enlace era

o ponto culminante de uma série de contatos que se iniciaram com Domingos de

Brito Peixoto, ancestral de Rafael, e que continuaram de modo efetivo até

Francisco Pinto Bandeira, seu pai.52

O pai de Bárbara Vitória, Miguel Caraí, era filho de uma índia minuana

com um descendente de espanhol, conhecido como Dom Miguel Ayala. Ao que

consta, fora peão de estância de Francisco Pinto Bandeira, pai de Rafael, ainda

que mantivesse, durante este tempo contato com os seus.53 Segundo José de

Saldanha, astrônomo do rei Português, que conheceu Dom Miguel, tratava-se de

um tipo “...baixo, gordo, e moço e de semblante alegre, e mais racionável...”54.

Trazia consigo uma pequena espada, que Saldanha identificara com aquelas

portadas por membros do exército português, do corpo de auxiliares.

A relação sogro-genro estabelecida entre Rafael e Dom Miguel perdurou

por longos anos. De certo modo, já havia uma forte relação entre o dito Miguel e

Francisco Pinto Bandeira, pelo fato do minuano ter servido de peão muitos anos

nas estâncias do pai de Rafael. Mesmo com a morte de Bárbara Vitória a relação

sogro-genro permaneceu intensa. Em 1784 Dom Miguel e Rafael se

comunicaram como mediadores de uma negociação sobre a passagem de uma

tribo de minuanos para os domínios lusos. 55 Esta relação garantiu a Rafael a

manutenção do acesso aos animais negociados pelos índios minuano. 50 Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.

maço 4. APERGS. 51 PORTO, Aurélio. Os Pinto Bandeira. IN: RMAPRGS. p. 528. 52 SILVA. Op cit. 53 SILVA. Op cit.. pg. 43 54 SALDANHA, José de. Diário Resumido, e Histórico ou Relação Geográfica das Marchas e

Observações Astronômicas, com Algumas Notas sobre a História Natural, do País. IN: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vol. LI. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde – Serviço Gráfico, 1938. Pg 235-236.

55 RMAPRGS pg. 499. (Notas).

139

Da união de Rafael com Bárbara Vitoria, nasceu Bibiana Bandeira. Esta

se casou na década de 1780 com o Alferes de auxiliares Antonio José Rodrigues

Nicola. Segundo algumas denúncias, Bibiana teria recebido como dote umas

centenas de cabeças de gado, que haviam sido desencaminhadas da Fazenda

Real pelo seu pai.56 Tais denúncias não passaram da devassa. Ainda assim, a

investigação nos indica que Bibiana recebera tal dote, mesmo que a origem nos

seja ignorada.

O segundo casamento de Rafael fora novamente com uma indígena, desta

vez guarani, em outubro de 1773. Maria Madalena era nascida e batizada na

missão de São Lourenço, filha de Candido Pereira e Benedita Madalena.57 Pouco

sabemos do peso que tal relacionamento pode ter tido, salvo uma aproximação

com os indígenas guarani egressos das missões. Todavia, Maria logo faleceu sem

deixar descendência.

Da terceira esposa de Rafael, Josefa Eulália de Azevedo, só sabemos que

era natural da Colônia do Sacramento.58

Percebe-se, através da prática de Rafael, uma preocupação em

estabelecer vínculos locais, ao desposar mulheres de tribos indígenas ou de

famílias já estabelecidas na região. Essa parece ser uma prática comum dos

varões.

O quinto filho de Francisco Pinto Bandeira, Evaristo, casou-se com

Cristina Menezes, filha de Luís Vicente Pacheco de Miranda e Gertrudes

Barbosa de Menezes. Gertrudes era filha de um dos primeiros povoadores dos

campos de Viamão, Jerônimo de Ornelas, o que significava a inserção de Luís

Vicente, português de origem, na comunidade local.59 Mas não se tratava apenas

de uma moça de família. Seu pai mantinha forte negociação de gado,

especialmente muar e é bastante provável que fosse responsável pelo despacho

de muitos dos animais contrabandeados para a rota das Minas60. A atuação do

56 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. 57 PORTO, Aurélio. Os Pinto Bandeira. RMAPRGS. pg. 524. 58 ibidem. 59 KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento. Estudos Ibero-americanos. v. XXV, (1999). 60 Autos Matrimoniais de Luís Vicente Pacheco e Gertrudes Barbosa de Menezes. – 1755. cod. 20

AHCMPA Sobre a atuação da família Pacheco no comércio de gados ver WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de Tropas. Curitiba: CD Editora, 1995.

140

genro Evaristo Pinto Bandeira no contrabando privilegiava a negociação de

animais, com ênfase nos muares.

Dos enlaces do sexto filho de Francisco Pinto Bandeira, Felisberto, pouco

sabemos. Foram dois. O primeiro com Ana Clara do Espírito Santo, filha de José

Rodrigues Carvalho, vindos da Colônia do Sacramento61. Do segundo, só

sabemos que foi com Ana Maria da Silva.

Vasco, sétimo filho, morreu solteiro.62

A última filha retoma o padrão de matrimônio das irmãs. Casou-se em

1784 com Carlos José da Costa e Silva, capitão de Dragões63. Este sujeito já

mantinha negócios de contrabando juntamente com Rafael desde a década de

1770, quando era comandante da Fronteira do Rio Pardo.64 Ainda que fosse de

fora da comunidade, Carlos José já andava pelo Rio Grande desde a expedição

de Bobadela, na década de 1750.65

As contrapartidas de guerra. Eram muitas as vezes em que o Império Luso não conseguia bancar a

manutenção de suas colônias e sua defesa contra os inimigos. Um dos

problemas mais cotidianos, pelo menos na fronteira, eram os atrasos no

pagamento dos soldos. Isso fica patente em muitos documentos, desde a

fundação do presídio Jesus-Maria-José até o início do século XIX.66 Os contra-

ataques portugueses à invasão espanhola que tiveram maior ênfase a partir de

1773, acabaram sendo boas válvulas de escape para esta situação, já que

garantiam a soldados e oficiais o acesso a bens tomados dos inimigos, o butim.

Observamos isso, por ser este mais um espaço ocupado por Rafael na criação e

fortalecimento de suas relações, enfim, na construção de seu bando. Não apenas

era ele quem geria a distribuição do espólio durante a guerra, como fora ele

61 Livro de casamentos de Triunfo. nº 1 AHCMPA. 62 PORTO, Aurélio. Os Pinto Bandeira. RMAPRGS. pg. 524. 63 SILVA. Op cit.. 64 Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316. 65 Demarcação do Sul do Brasil. IN: Revista do Arquivo Público Mineiro. vol. XXIV. Belo Horizonte:

Imprensa Oficial, 1933. p. 112-113 66 Devassa sobre a entrega da Villa do Rio Grande às tropas castelhanas. – 1764. Rio Grande: Biblioteca

Riograndense,1937 e AHU-RS. cx. 3 doc. 253

141

quem muitas vezes cobrou o pagamento dos soldos atrasados, junto ao Vice-rei

e à Rainha.

Em janeiro de 1779 o governador do Rio Grande, José Marcelino, tornava

a queixar-se dos dizeres do Coronel Rafael. Segundo o governador, Pinto

Bandeira dissera publicamente que havia “...de fazer arreadas ainda que o leve

o diabo...”.67 Era um momento de disputa entre ambos. O governador não

conseguia força política para governar, frente aos desmandos de Rafael.

Todavia, ainda que Marcelino estivesse inventando aquilo, esta seria uma frase

absolutamente racional do ponto de vista de Rafael Pinto Bandeira. Ele

precisava fazer arreadas.

Arrear gado significava ultrapassar os limites definidos e invadir os

territórios inimigos em busca de gado que poderia ser apresado, quando solto

no campo, ou roubado, quando já arrebanhado em alguma estância de um

súdito espanhol. Nestas arreadas iam muitos homens de vários segmentos

sociais, de membros da elite a escravos. E todos estes homens recebiam como

pagamento parcelas dos animais apresados. Estas operações eram sempre

bastante “lucrativas”, pois significavam um investimento muito pequeno frente

ao ganho significativo. Rafael não fazia arreadas apenas porque ganharia gado

com isso. Era uma atividade muito interessante para o corpo de homens que ele

liderava e que viam nestas ações uma possibilidade de ganho inesperado, que

não obteriam com meios mais convencionais. Arrear gado era uma das maneiras

que Rafael possuía, enquanto líder, de dar a contrapartida a todos aqueles que

lhe seguiam nas batalhas e nos negócios ilícitos.

Felix dos Santos, por exemplo, enviou dois peões por sua conta para duas

destas arreadas, em 1777. Na primeira obteve cinqüenta terneiros, e na segunda,

oito cavalos. Outros peões, como Perico Serra, Antonio Tramandi, Francisco

Santiaguinho também participarão desta corrida de gado e receberam uma

parte.68

Muitos destes partícipes de arreadas estavam incorporados ao bando de

Rafael. É o caso, certamente, de Manuel Pinto. Em 1773, Manuel serviu de peão,

segundo testemunha de uma devassa, de uma tropa conduzida pelo castelhano 67 RMAPRGS. pg. 198. 68 RMAPRGS. pg. 381.

142

João Mariano que foi levada para a estância de Rafael Pinto Bandeira.69 Já em

1779 ele fora citado como desertor e preso por “...ir com outros ladrões a fazer

arreadas e distúrbios em Montevideo...”70 Dois anos antes, os tenentes Vasco

Pinto Bandeira e Jerônimo Xavier de Azambuja tiveram a sua promoção militar

questionada por terem falado com Manuel Pinto sem o prender. Tanto Vasco

como Jerônimo faziam parte do bando de Rafael. É até provável que este

Manuel Pinto fosse irmão de um Francisco Pinto, citado algumas vezes como

mensageiro de Rafael Pinto Bandeira. Uma testemunha apontou a presença de

um irmão de Francisco na mesma atividade e que este irmão seria desertor.71

Uma personagem comum nas arreadas era Romão Vareiro. Romão

liderou dois grupos, um notoriamente de indígenas, que promoveram corridas

de gado em 1777. Na devassa de 1773 ele já aparecia como condutor de tropas de

contrabando para Rafael Pinto Bandeira.72 Muitos anos depois, em 1787, ele é

novamente citado em uma devassa por provável condutor de outras tropas de

contrabando, também a mando de Rafael.73

Um dos principais líderes de corridas de gado, Bernardo Antunes Maciel,

também pertencia ao bando de Rafael. Segundo a maior parte das testemunhas

do Conselho de Guerra de 1780, Bernardo comandou rendosas investidas aos

campos espanhóis, especialmente à cidade de Maldonado.74 Este mesmo

Bernardo foi comentado por um demarcador espanhol, Andrés de Oyarvide,

quando este andou pelo Rio Grande. Segundo Oyarvide, antes de ser oficial da

Cavalaria Ligeira, Bernardo fora “...capataz de una tropa de changadores...”75

Já em 1787 fora acusado de algo mais refinado: alugar uma embarcação para

contrabandear couros na Lagoa Mirim, isso, juntamente com outros membros

do bando de Rafael, como Bernardo José Pereira.76

69 Depoimento de João Batista de Carvalho. Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 326. 70 RMAPRGS. pg. 417. 71 Depoimento de Fortunato Barbosa da Costa. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 329v. Arquivo

Nacional. 72 Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316. 73 Depoimento de Antonio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 334v. Arquivo Nacional. 74 RMAPRGS. pg. 38 em diante. 75 OYARVIDE. Op cit. pg. 341. 76 Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo

Nacional.

143

Mas as arreadas não eram a única forma de obter vantagens. Durante a

guerra vários foram os momentos em que o conflito significou ganhos

inesperados para aqueles guerreiros. Muitos destes acabaram servindo no

contrabando ao lado de Rafael Pinto Bandeira.

Tanto em tempo de guerra como nas arreadas, a busca de ganhos fáceis

estava presente. O fato de que Rafael comandava e organizava esta busca faz-

nos perceber estas atividades como parte de uma cadeia de prestações e

contraprestações. Cada um daqueles peões sabia que possivelmente ganharia

algo acompanhando Rafael em suas investidas militares ou predatórias. Rafael

devia a estes homens o fato de o acompanharem sempre que fosse preciso. Da

mesma forma, aqueles homens lhe deviam as oportunidades de acesso a ganhos

inesperados. Talvez tenha sido essa dívida que tenha motivado Rafael, numa

noite no acampamento militar, a convocar todo o corpo militar para dizer que

nos ataques “...cuidassem todos em se empregar com valor, porque permitia o

governador do continente José Marcelino que se não pagasse o quinto, e que

tudo se havia repartir pelas partes interessadas...”.77 Quem nos conta este

instantâneo do front é o mesmo Bernardo Antunes, que participara de várias

arreadas. Devia estar mesmo muito interessado, para lembrar com detalhes

como tudo se passou naquela noite.

O general dos exércitos portugueses no sul, João Henriques de Böhn,

dizia ao governador do Rio Grande em 1776 que “...as tropas ligeiras não

podem esperar que todas as suas expedições sejam só lucrativas e que não haja

perigo nenhum na sua profissão...”.78 Referia-se às tropas de cavalaria ligeira,

que eram comandadas por Rafael. Percebia bem os interesses daqueles homens.

Da mesma forma que os despojos de guerra e arreadas, as promoções

militares estabeleciam contrapartidas aos seus comandados. O próprio Rafael

redigia listas de indicados para promoção, e as repassava ao governador para

avaliação.

Em novembro de 1774 o governador Marcelino escrevia a Rafael dando

várias notícias, entre elas uma, de especial interesse do destinatário: "Ao

soldado Joaquim Rodrigues de Aguiar mandei assentar praça de cabo como V. 77 RMAPRGS. pg. 63. 78 RMAPRGS. pg. 373.

144

M. pede."79 Joaquim Rodrigues aparece na documentação, em vários momentos,

nas mais inusitadas situações. No depoimento do almoxarife da Fazenda Real,

Antonio da Silveira e Ávila, em uma devassa de 1779, havia acusado Joaquim de

ameaçá-lo de morte, para defender uma carga de animais desencaminhados que

pertenciam ao coronel Rafael Pinto Bandeira. Em 1783 ele foi acusado de ter

confiscado uma embarcação a mando do mesmo coronel. Em 1787 é acusado

por muitos, em uma devassa, de ter assassinado sua mulher, sendo o crime

encoberto por Rafael, que ajudara o delinqüente a fugir. A relação entre o

“comandado” e o “comandante”, neste caso, estava recheada de relações de

reciprocidade. A promoção de Joaquim, em 1774, fora parte desta cadeia de

prestações e contra-prestações.

Em 1777 Rafael enviava mais uma listagem para Marcelino. Este porém,

teve dúvidas e preferiu consultar o vice-rei antes de negá-las ou confirmá-las.

Nesta listagem está o mesmo Joaquim Rodrigues, que se passava ao posto de

Sargento. Dos dezenove indicados, Marcelino encontrou problemas em nove, a

maior parte por ter desertado em algum momento de sua carreira. Na mesma

listagem de pedidos de promoções identificamos oito sujeitos que agiram no

contrabando, em arreadas, ou em atividades próprias do bando de Rafael. Entre

estes destacam-se o irmão de Rafael, Vasco Pinto Bandeira, o já citado Joaquim

Rodrigues, os arreadores Antonio Lopes Duro e Bernardo Soares,80 Jerônimo

Xavier de Azambuja, comandante muito próximo de Rafael, com quem este

fizera vários negócios, além de arreadas. Há, neste sentido, uma proximidade

grande entre os sujeitos indicados para a promoção por Rafael e aqueles

membros do bando. É importante ressaltar que, quanto ao restante dos

indicados para promoção, não encontramos nada de efetivo, não podendo

inferir se também mantinham negócios com Rafael ou pertenciam ao bando.

O problema do pagamento dos soldos sempre foi uma das maiores

preocupações dos quartéis. Mesmo sendo um problema que se arrastasse desde

a década de 1730, as maiores reivindicações para o pagamento dos soldos foram

provavelmente feitas por Rafael Pinto Bandeira. Isso só fica evidente quando

79 RMAPRGS. Pg. 179. 80 RMAPRGS. pg. 38 em diante.

145

assume o governo interino, onde manifesta com freqüência ao vice-rei e até

mesmo à Rainha as péssimas condições de vida destes soldados.81

A função de pagamento dos soldos seria, por tradição e pela lei,

incumbência da Provedoria da Fazenda, do Provedor e do Almoxarife,

especialmente.82 Contudo, na fronteira, há pouquíssima referencia na

documentação consultada que remeta a preocupação destes oficiais da Fazenda

com os soldados. Considerando o alto grau de militarização da região,

especialmente num contexto de guerra e disputa territorial com a Coroa

Espanhola, as relações entre soldados e oficiais davam-se de forma mais direta,

sem a mediação de oficiais não militares da administração. Neste sentido,

haveria espaço para outras formas de ganho, como a apreensão de bens das

tropas inimigas. Este último elemento, frente aos constantes atrasos no

pagamento do soldo, quando não à inadimplência do Estado, eram um

instrumento de manutenção da ordem dentro das tropas, na medida em que o

próprio oficial é que controlava a distribuição das benesses advindas do serviço

Real, da qual o soldo era apenas uma de suas formas.

“Pois assim se mata?”: notas sobre a “proteção” negociada.

Nunca ficará bem explicado o motivo pelo qual, numa certa noite, em sua

casa, o sargento Joaquim Rodrigues de Aguiar matou a mulher e outro homem,

companheiro de armas da cavalaria ligeira. Sabemos, contudo, que após fazê-lo

Joaquim correu para a casa do Coronel Rafael Pinto Bandeira a contar-lhe o

ocorrido. Na casa do coronel estavam hospedados os demarcadores de Sua

Majestade, o Doutor José de Saldanha e o Engenheiro Eloi Portela, que se

limitaram a ouvir o que o criminoso narrava ao seu superior. Após relatar o

ocorrido, Aguiar entregou as chaves de sua casa ao coronel, e recebeu deste uma

mula para a fuga. 83

Havia muitos anos que Joaquim e Rafael Pinto Bandeira eram

conhecidos. Na década de 1770 este já servia de peão para Rafael, tendo, em

81 AHU-Brasil Limites. cx. 3 doc. 256. 82 HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -

século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. pg. 208 e 214. 83 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.

146

certa ocasião ido buscar alguns animais que Rafael desencaminhara da Fazenda

Real, em um certo esconderijo que ambos conheciam. Ao chegar ao local,

Joaquim se topara com o Almoxarife da Fazenda Real, que sabedor do

descaminho, havia ido buscar os animais. Joaquim todavia dera ordens aos seus

subordinados que arrebanhassem o gado de qualquer maneira, enquanto se

acertaria com o Almoxarife. Este último nos deixou algum testemunho do

ocorrido:

“...indo ambos conversando, e ao mesmo tempo divisando pelos faxinais os cavalos que neles andavam; parando-se o dito soldado tirou de uma pistola, e depois de lhe endireitar a escorva, indo a meter no coldre, disse a ele testemunha: - Ora se você tivesse vontade de morrer, eu não tinha dúvida de o matar. Ao que ele testemunha respondeu: - Pois assim se mata? [...] temendo ele testemunha alguma coisa se apartou...” 84

Já tratamos de Joaquim Rodrigues de Aguiar antes, quando falamos das

promoções militares propostas por Rafael. Joaquim fora recomendado com

algum destaque para o posto de Cabo em 1774. Em 1783 ele fora novamente

acusado de ter apreendido, a mando de Rafael, uma embarcação de outro

contrabandista.85 O assassinato da mulher era mais um episódio da longa

relação existente entre Joaquim e Rafael. Pelo que sugerem os documentos, é

provável que Joaquim fosse um tipo de “matador” a mando de Rafael. Ele não

receou em ameaçar o almoxarife da Fazenda Real e não titubeou em matar a

mulher. A esposa deveria ser um problema pessoal seu, mas não devia ser seu

primeiro crime. Diante de um servidor tão antigo, com o qual mantinha dívidas

de serviço, Rafael não quis saber de mais nada e o ajudou a fugir. Diante da cena

da fuga estavam dois demarcadores a serviço de Sua Majestade, que se

hospedavam aquela noite na propriedade de Rafael. Mesmo diante destes

olhares Rafael não esmoreceu. Rafael retribuíra a defesa que Joaquim lhe dera

muitos anos antes, em 1780, quando convocado pelo Conselho de Guerra para

testemunhar sobre possíveis descaminhos efetuados por Rafael, dissera que

84 RMAPRGS. 313-314; 85 Cód. 104. Vol. 09 pg. 310. Arquivo Nacional.

147

"...não sabe nem pelo ouvir dizer que dito comandante Rafael Pinto Bandeira fosse culpado ou consentidor em descaminho algum, porque antes o dito coronel Rafael Pinto Bandeira pôs uma guarda para que os não houvessem."86

Joaquim não fora o único a receber ajuda de Rafael para a fuga. O mesmo

ocorreu a Alexandre José da Guerra.

É possível que Alexandre tivesse mesmo ido comer em uma taverna na

noite do crime, como dissera às autoridades. A acusação, todavia, de ter

esfaqueado o alfaiate José Antonio na porta da casa deste não ficou esquecida. A

denúncia se pautava no fato do aprendiz do dito alfaiate ter encontrado a bainha

da espada de Alexandre junto à cena do crime. Após alguns dias na cadeia, o

dito “delinqüente” fora solto, com a justificativa de ter o aprendiz mentido para

incriminá-lo. Após uma sessão de ameaças e algumas surras, o aprendiz

também fora liberado. O fato é que Alexandre fora solto pelo Coronel Rafael

Pinto Bandeira. Este caso já nos é conhecido. O aprendiz que denunciara a

prova da bainha da espada recebera uma surra das mãos do próprio Rafael, para

que nunca mais mentisse. O coronel armou todo o circo, do qual fazia parte o

castigo do detrator de Alexandre. O acusado negou o crime e com amparo em

Rafael, ninguém mais falou no assunto. O aprendiz, por exemplo, tinha bons

motivos para esquecer a história.

Outro beneficiado pela proteção de Rafael foi o soldado de alcunha “o

Cadete”. Ninguém sabia dizer seu verdadeiro nome. O primeiro a denunciar,

Manuel José de Alencastre, dissera que era voz corrente ser o “Cadete” filho de

Rafael Pinto Bandeira com uma índia. Em certa noite, estando destacado na

“Guarda do Beca”, juntamente com o soldado Raimundo Pereira, o “Cadete”

dera umas cutiladas no dito soldado. O motivo da agressão é ignorado. Nos

interessa ressaltar aqui a maneira como lhe ficou isenta a acusação. Segundo a

maior parte das testemunhas que sabiam do caso (6 de 21 depoimentos) o

“Cadete” se ocultara algum tempo e depois aparecera de retorno a Vila do Rio

Grande, onde continuou a servir no mesmo posto de soldado, como se nada

tivesse ocorrido. Uma das testemunhas deu uma informação extra: o acusado

86 RMAPRGS. pg. 111.

148

estaria residindo na casa do coronel Pinto Bandeira.87 Por todos os motivos que

expusemos até aqui, considerando que tal fato fosse verdadeiro, dificilmente

alguém retiraria o acusado da casa do coronel para levá-lo preso. Fora mais um

de seus homens a ser protegido. Esta certeza de segurança no trabalho para

Rafael Pinto Bandeira era mais um fator que contribuía para construir alianças,

e fortalecer o nome Pinto Bandeira. Ao garantir a impunidade de seus

comandados, Pinto Bandeira lhes dava mais uma contrapartida. Pagava mais

uma vez a dívida eterna (e recíproca) que mantinha com aqueles homens.88

O caso de João José de Souza também é interessante. Este, pelo que

disseram as testemunhas da devassa de 1787, esfaqueara um colega de armas da

cavalaria. Ao que tudo indica, a contenda fora por causa de uma índia. O crime

ocorrera na rua do Rosário, na vila do Rio Grande, e a vítima acabou morrendo

no hospital.89 Segundo o autor da primeira denúncia, Manuel José de

Alencastre, o criminoso tivera auxilio de Rafael Pinto Bandeira para a fuga.

Rafael teria lhe dado uma canoa para atravessar a barra do Rio Grande até a

Parte do Norte90 As testemunhas complementaram dizendo que o assassino

desertara e estava oculto no distrito de Santo Antônio da Serra ou

proximidades. Sobre isso podemos propor algumas hipóteses, que sendo de

difícil comprovação, podem ainda assim contribuir. O distrito de Santo Antônio

era caminho dos transportes de gado.91 O caminho da serra era o que ligava

Viamão a Curitiba. É possível mesmo que Rafael afastasse o criminoso da vila

enviando-o para outro ponto da rota de seus negócios. Do ponto de vista do

sujeito seria uma forma viável de manter-se livre. Continuaria a trabalhar para

Rafael, que de um modo ou de outro lhe garantia algumas contrapartidas. Ao

ganhar uma dívida com o sujeito, Rafael podia aguardar dele a contrapartida,

que seria dada através do trabalho nos negócios ilícitos. Um dos pontos mais

87 Depoimento de Tomé Pedro da Costa Real. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 332v. Arquivo

Nacional. 88 MAUSS. Op cit. 89 Depoimento de Tomé Pedro da Costa Real. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 332v. Arquivo

Nacional e outras testemunhas. 90 A localidade de São José do Norte fica no outro extremo da barra do Rio Grande, defronte a vila de Rio

Grande. Seria uma forma de acesso a Viamão. 91 NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão. Porto Alegre: EST/Sulina, 1975.

149

delicados para a passagem do gado contrabandeado era justamente na

proximidade do Registro de Santo Antônio.

Além de João José, outros sujeitos também poderiam estar inseridos

nesta política de Rafael. Francisco Pinto, que desertara do exército e se ocultara

nos domínios espanhóis de onde vinha constantemente visitar a estância de

Rafael. Provavelmente fazia o contato entre os fornecedores e seu patrão. É

possível mesmo que Rafael negociasse saídas para estes sujeitos, que tinham

suas opções limitadas por crimes que lhes eram imputados. Além de ocultá-los,

os enviava para locais convenientes, dentro da rota de negócios ilícitos,

especialmente de gado, pelo que parece. Era uma solução razoável.

“...é o próprio que se apossa do terreno...” Não há dúvidas de que o Vice-rei Luis de Vasconcelos era um bom

observador. Foi ele quem nos forneceu preciosas pistas para a compreensão de

outra área de forte atuação da família Pinto Bandeira, e que era, ao mesmo

tempo, uma das bases de reprodução do séqüito: a distribuição de terras. Em

uma sociedade na qual o acesso à propriedade da terra é parte da lógica de

prestações e contra-prestações do Rei com alguns vassalos92, facilitar o acesso à

propriedade fundiária era igualmente uma forma de criar dívidas, ou pagá-las. E

Rafael, mesmo quando desautorizado, não se furtou a fazê-lo. Podemos mesmo

periodizar estas concessões, em dois momentos distintos: o pós-guerra (1777-

1780); e o segundo governo interino de Rafael (1790-1795). Certamente o nosso

não é primeiro trabalho a observar isso, já que contamos com excelentes

contribuições.93

92 HESPANHA, Antonio Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do

Poder. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. e FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

93 SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999. (Dissertação de Mestrado Inédita). PORTO, Aurélio. Fronteira do Rio Pardo: penetração e fixação de povoadores. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. IX, (1929). PAUWELS, Geraldo José. Contribuição para o estudo dos conceitos de "limite" e "fronteira". Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. (s.d.)..

150

Antes de continuar, uma ressalva deve ser feita. A ação de Rafael, ao

conceder as terras, era absolutamente desigual, privilegiando alguns sujeitos em

detrimento de muitos outros. Ainda que alguns destes homens tivessem origens

mais humildes, eram aliados e faziam parte do bando, deste recorte vertical na

sociedade que Rafael liderava.

A distribuição de terras feita logo após o término do conflito com os

espanhóis, entre 1777 e 1780, teve muito da participação de Rafael. Segundo

Aurélio Porto, Rafael teria passado terras, mesmo sem autorização, para vários

aliados ou pares, entre os quais Manuel José de Alencastre, Luis Vicente

Pacheco de Miranda (sogro de seu irmão Evaristo e negociante de mulas), para

seu cunhado Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães e para Jerônimo Xavier

de Azambuja. Rafael teria feito isso como conquistador de territórios antes

ocupados por espanhóis. Dividida a terra entre estes sujeitos, a propriedade

efetiva só foi dada pelo governador Marcelino. Note-se que neste momento há

um total privilégio de indivíduos da elite, associados de algum modo ao bando e

à família. Ainda assim, existe a possibilidade de um peão de contrabando

chamado Inácio Morato ter recebido um campo em 1782.94 Também por este

tempo deve ter sido agraciado Miguel Aires, também peão de contrabando, com

um campo próximo ao rio Pequiri.95

No segundo governo interino de Rafael, a partir de 1790, há a

distribuição de uma série de pequenas propriedades nos arredores de Porto

Alegre, sendo que dos suplicantes, boa parte era constituída de militares de

baixa patente e lavradores.96 Pudemos identificar , para este período, mais uma

concessão de terras para Inácio Morato, uns campos “do outro lado do

94 RMAPRGS. Nota 07 pg. 484. 95 RMAPRGS Nota 83 pg. 514 e também PORTO, Aurélio. Fronteira do Rio Pardo: penetração e fixação

de povoadores. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. IX, (1929). 96 SILVA. Op cit.

151

Guaíba”.97 Identificamos cerca de vinte concessões de pequeno porte feitas por

Rafael neste período.98 Tudo leva a crer que se tratasse de uma política de

reciprocidade, enfim, da divisão do espólio político, uma vez estando Rafael no

governo. Depois de trabalhar anos para Pinto Bandeira, Morato estaria

recebendo a parte que lhe tocava. Também parece ser este o caso de Inácio de

Magalhães que, ao que tudo indica, teria recebido uns campos na freguesia de

Santo Amaro em 1791.99 Magalhães fora acusado, em 1773, de acompanhar

Rafael em atividades ilícitas.100

FIGURA 4

97 F1247. 21, 21v, 22. AHRS. 98 F1245, F1246, F1247 e F1248. AHRS. 99 F1246. 147v. 100 Depoimento de João Batista de Carvalho. Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 326.

152

As características do Bando O bando significava para muitos uma alternativa para a ascensão social.

Vincular-se ao bando poderia significar acesso às várias formas de

contrapartidas oferecidas. Isso não significa, de forma alguma, que tal estrutura

contribuísse para a igualdade. Pelo contrário. O bando reproduzia, a sua própria

maneira, a desigualdade congênita daquela sociedade, possibilitando o acesso

de uns ao que a maioria não possuía. Todavia, tal organização não se pautava

apenas na existência de um chefe e seus subordinados. Havia uma organização

mais complexa.

O quadro (figura 4) aponta Rafael como proeminência máxima dentro do

grupo. Não há como negá-lo. Todavia, o bando seguia também a partir de outros

líderes “menores”, como Custódio Ferreira (que era comandante militar do

distrito do Caí) ou Felisberto Pinto Bandeira, comandante militar em Triunfo.

De certa forma a posição destes homens dentro do bando era também refletida

em suas colocações em postos-chave do governo. Rafael chegou mesmo ao posto

de governador, ainda que interino, por duas vezes. Afora isso, mantinha a

patente de coronel, a maior dentro do bando. Seus cunhados mais próximos,

Custódio, Bernardo José e Carlos José da Costa eram todos capitães, uns de

ordenança, auxiliares e de dragões, a exemplo de Pinto Carneiro e Cipriano

Cardoso, sócios em arreadas e contrabandos e “amigos” de Rafael, segundo

dizia o governador Marcelino.101 Segundo nos consta, Rafael teria sido o único

destes a tornar-se Brigadeiro, que equivale ao posto de general.

Outro traço salientado no gráfico é a variedade de relações mantidas por

Rafael. Não nos referimos apenas à qualidade das pessoas. Falamos das muitas

formas de que Rafael se valia para manter seus relacionamentos. A sua

estratégia de ação pressupunha a necessidade tanto de relações diádicas,

homem a homem, e relações escalonadas, com a existência de vários níveis de

intermediação. Rafael poderia tratar diretamente tanto com um capitão como

com um soldado ou peão, dependendo tanto da situação como da posição dos

sujeitos dentro do bando e dos negócios ilícitos.

101 RMAPRGS, pg. 335.

153

Que tal membro da elite se relacione com seus pares não parece nada

surpreendente. Mas poder-se-ia argumentar que o fato de Rafael lidar

diretamente com sujeitos subalternos sugere uma igualdade que

verdadeiramente não havia. Tal relação, mais do que concreta, era básica para

manter a posição de líder frente ao distanciamento que uma relação

intermediada e escalonada provocaria.

Um caso exemplar pode ser um instantâneo do front, pouco antes do

ataque a Santa Tecla em 1776. Rafael reuniu todo o corpo militar presente ao

acampamento, e leu as ordens que haviam chegado de Porto Alegre. Eram

ordens que interessavam a todos os combatentes, pois diziam respeito à isenção

do quinto sobre os despojos de guerra. Isso poderia significar maiores ganhos

para todos na repartição do butim. Rafael leu as ordens para todos e pediu a

todos que se empenhassem na luta, já que assim poderiam ganhar mais. Não

seria nada espantoso se Rafael utilizasse seus capitães para divulgar a notícia e

pedir empenho. Estaria se valendo da hierarquia militar, que, ao que parece,

funcionava bem. Diante desta alternativa, e de outras tantas possíveis, ele optou

por reunir todos os soldados e falar-lhes pessoalmente.102 Esta relação, além de

ser usada junto aos aparentados e sócios, era a desenvolvida junto a alguns dos

mais destacados peões de contrabando de Rafael. Com estes homens Rafael

mantinha, como já vimos, dívidas de reciprocidade cultivadas ao longo de anos.

Era este tipo de relação que permitia a Rafael contar com uma ampla base

social, que não apenas lhe dava sustentação política, como também o

acompanhava em vários negócios, seja na guerra, nas arreadas ou no

contrabando.

Não era apenas com este tipo de relação que Rafael construía sua base.

Também se amparava de intermediadores, de relações escalonadas. Junto aos

indígenas minuano, que como já vimos eram pródigos fornecedores de gado,

Rafael se valia da ação de seu sogro, Dom Miguel Carai, que era um dos caciques

daquele grupo. Em negociações com este grupo durante a década de 1780, sobre

seu ingresso ao conjunto de súditos portugueses, Dom Miguel fora o principal

102 RMAPRGS. pg. 63.

154

negociador.103

No front durante os conflitos com os espanhóis, Rafael lançara mão de

ambas as formas. Já vimos como comunicou sobre a isenção de impostos,

noticia que certamente agradaria a todos. Todavia, ao planejar a forma do

ataque que faria (e se faria) ao Forte de Santa Tecla, chamou para conferência

apenas os capitães, que ali representavam o comando de todos os regimentos

presentes no acampamento.104 Cada um dos capitães sabia com que homens

podia contar. Através destes intermediários, Rafael administrou o comando de

todo o corpo militar.

Havia uma grande teia permeando a vida de todos aqueles homens e

mulheres. Ao privilegiar apenas alguns tipos de relacionamento, estamos

deixando de lado um outro tanto de seus relacionamentos. Mas ainda assim

podemos obter algumas respostas para os problemas relacionados com o

comércio ilegal na fronteira.

Esta grande cadeia de relacionamentos se reproduzia de maneira a

conservar uma dada hierarquia, de forma a manter a ordem social. Deste modo,

homens como Bernardo José Pereira, Custódio Ferreira, Cipriano Cardoso e

Pinto Carneiro mantinham, à sua maneira, seu pequeno séqüito. O gráfico que

apresentamos não contempla esta multiplicidade de relacionamentos. Alguns

casos, contudo, são muito importantes.

Segundo um informante do Marquês do Lavradio, que escrevera em

1772,105 as maiores desordens no Rio Grande eram fruto da ação de Rafael Pinto

Bandeira, Antonio Pinto Carneiro, Antonio José de Moura e José Custódio de Sá

e Faria. Os principais problemas seriam os contrabandos e as arreadas de gado

levadas a cabo especialmente por Rafael Pinto Bandeira e Pinto Carneiro, que

eram sócios. O mesmo informante conta que foi procurado várias vezes por

Rafael que insistia em fazer arreadas e que ele e Pinto Carneiro eram os únicos

ricos o bastante para bancar homens e cavalos suficientes para tais negócios.106

103 Cód. 104. Vol. 7. pg. 743. Arquivo Nacional. 104 RMAPRGS. pg. 368-369. 105 Cartas de Francisco José da Rocha. Microfilme 024-97 – Flash 2 – Série 2 – RD 16.1 a RD 16.89.

Arquivo Nacional. 106 Cartas de Francisco José da Rocha. Microfilme 024-97 – Flash 2 – Série 2 – RD 16.77 e RD 16. 78.

Arquivo Nacional.

155

É neste ponto que se apresenta um aspecto interessante. Pinto Carneiro era

administrador dos índios guarani aldeados, e se vale do trabalho destes índios

como peões e capatazes, não apenas em suas terras, mas também em arreadas

ao lado de Rafael. Até onde sabemos, Pinto Carneiro era quem estava mais

próximo dos guarani aldeados enquanto seu “administrador”.

Deste modo, Rafael necessitava da intermediação de Pinto Carneiro para

contar com a força daqueles índios, muito necessários e habilidosos no negócio

de arreadas. Pelo que percebemos, através de suas práticas conjugais, Rafael até

tentou criar vínculos com os guarani, casando com uma índia em 1773. Todavia,

não sabemos se esta aproximação prosperou, pois os documentos silenciam

sobre uma possível estabilidade de tais relacionamentos.

Pinto Carneiro não fora o único sócio. A própria sociedade acabou com a

morte deste, em 1777.107 Pudemos identificar outros sujeitos que andavam

vinculados a Rafael, ainda que não houvesse aproximações parentais ou de

subordinação. Através destes sócios vamos perceber a existência de laços mais

distantes, especialmente com negociantes de outras praças.

Presente em várias arreadas (sendo líder em algumas) e contrabandos,

Jerônimo Xavier de Azambuja era também das melhores famílias da terra.

Filho de um dos primeiros conquistadores, Francisco Xavier de Azambuja,

Jerônimo descendia do primeiro povoador de Porto Alegre, Jerônimo Dorneles

de Menezes. É provável que Rafael e Jerônimo Xavier tenham se conhecido

desde a infância, pois as propriedades de Francisco Xavier de Azambuja e

Francisco Pinto Bandeira eram próximas em Porto Alegre, e juntas à estância de

Jerônimo Dorneles de Menezes.108 Fora capitão e tenente da legião comandada

por Rafael, sendo quase sempre seu braço direito, lugar às vezes ocupado pelo

capitão Cipriano Cardoso. Quando Rafael fora preso em 1779, ambos foram com

ele para o Rio de Janeiro e depuseram em total concordância. Pouco antes de

irem, o governador Marcelino de Figueiredo falava sobre ambos, e sobre um

terceiro:

107 Inventário de Antonio Pinto Carneiro. 1º Cartório de Órfãos e Ausente de Porto Alegre. nº 660.

APERGS. 108 BORGES FORTES. Op cit. pg. 41.

156

“...Consta-me que o Capitão Cipriano Cardoso, e o Capitão Jerônimo Xavier de Azambuja e Antonio Luis e Queirós, sócios e amigos do Coronel preso, espalharam no Rio Pardo várias notícias, que intimidaram os pequenos; dizendo, tinham certeza por cartas do dito Coronel, que os que juraram, ou jurassem contra ele, haviam [de] ir para Angola...” 109

De Cipriano Cardoso pouco sabemos além de vários relatos de

descaminhos de gado e arreadas realizadas ao lado de Rafael.110 Mas Jerônimo e

o outro, Antonio Luís Correia de Queirós, contribuíram para expandir a

dimensão destes negócios. Em agosto de 1784 o Vice-rei, Luís de Vasconcelos,

escrevia a Rafael Pinto Bandeira para encaminhar uma queixa que um

comerciante espanhol lhe fizera oficialmente. Dizia o espanhol, de nome Joam

Pedro de Aguirre, que Jerônimo Xavier de Azambuja lhe havia dado um calote.

Jerônimo recebera de Martim de Aguirre (provável parente de Joam Pedro) a

quantia de “...dois mil novecentos e oitenta pesos, e seis reales e meio de prata

forte...” 111 com o objetivo de enviar este dinheiro para o Rio de Janeiro com

brevidade. Jerônimo só enviou uma parte, sem remeter o restante, que deveria

ser entregue a José Rodrigues Ferreira, um comerciante aliado ao já referido

Antonio Luis Correa de Queirós e a Teodoro Pereira Jacome, negociantes do Rio

Grande que mantinham tratos com o Rio de Janeiro.112 Deste modo,

percebemos que estes sócios, membros do bando, estavam relacionados com

negociantes de outras praças, Montevideo no caso de Aguirre, e o Rio de

Janeiro, no caso de Jacome e Correia de Queirós.

Estas são algumas das formas de relacionamento mantidas no interior do

bando, e que eram reproduzidas em todas as formas de ação do grupo, inclusive

no contrabando.

Boa parte destes homens não estava diretamente associada a uma única

atividade. Eram, simultaneamente, militares, criadores, administradores e

negociantes. A diversidade de funções se explica por uma certa insegurança

frente aos negócios de cunho econômico, o que faz com que fossem preferidos

vários investimentos, garantindo possibilidades maiores de manutenção de

109 RMAPRGS pg. 335. 110 RMAPRGS pg. 38 em diante. 111 Cód. 104. Vol. 06. pg. 570v. Arquivo Nacional. 112 RMAPRGS. pg. 171.

157

ganhos. Todavia, também é reflexo da variedade de interesses que tais homens

possuiam, de criar vínculos nos mais diversos setores sociais. Eram formas de

negociar bens imateriais como favores, apoios e alianças, dentro da lógica de

endividamento que já nos referimos. Era mais uma forma de garantir a

sobrevivência além da produção material.

Esta situação não se manifestava apenas entre a elite. Um sujeito como

Romão Vareiro, provavelmente indígena e, até onde sabemos, com parcos

recursos, participou de arreadas, conduziu gados contrabandeados e, pelo que

parece, possuía uma pequena propriedade às margens do rio Camaquã, onde

criava cavalos.113 As atividades de contrabando e corridas de gado eram sazonais

e provavelmente não garantiam a sua reprodução física durante todo o tempo.

Da mesma forma, só a criação de cavalos não devia ser suficiente. Era preciso

aumentar as opções de sobrevivência. Outro caso é o de Miguel Martins Serra,

que acumulava as funções de mensageiro, soldado, lavrador e condutor de gado

contrabandeado.114

Semelhante organização também se reproduzia em outros espaços

coloniais. Moutoukias percebe para Buenos Aires a existência de um grupo,

vinculado ao mando do governador, e depois Vice-rei, Pedro de Ceballos. Este

grupo não apenas teria o controle político local, mas também teria preeminência

no contrabando (barrando com a lei os rivais) e em outras esferas da produção.

Também estaria ancorado em redes de reciprocidade, que se reproduziam de

Buenos Aires à Madrid e por outros cantos do Império espanhol.115 Estas redes

se construíam não apenas através de alianças nos negócios, mas também por

ligações parentais forjadas.

Também Fabrício Prado identifica este tipo de organização na Colônia do

Sacramento, na primeira metade do século XVIII. Prado analisa o grupo

vinculado ao governador Antonio Pedro de Vasconcelos e igualmente associa o

113 Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo

Nacional. Listas de Tomadias de 1777 RMAPRGS. pg. 381 e RMAPRGS. nota 82. pg. 514 . 114 Devassa de 1773, Conselho de Guerra, Devassa do Marcelino e Pe. Pauwels... 115 MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires

en el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992).

158

poder político com as atividades ilegais desenvolvidas pelo bando.116

Organizações como esta também foram identificadas por Evaldo Cabral

de Mello para Pernambuco colonial. O autor procura entender a chamada

“Guerra dos Mascates” considerando a existências destes grupos, estudando

seus aliados, seus parentescos e sua base social.117

Para o Rio de Janeiro do século XVII, João Fragoso realizou um

interessante trabalho, esmiuçando o conflito de “bandos” nas lutas pelo mando

local e pelo controle da economia, especialmente pela disputa das mercês régias,

como forma de melhoria social e manutenção da “qualidade” dos membros dos

bandos. Fragoso aponta a existência de uma base social sólida, que não apenas

dava apoio político para os líderes dos bandos, mas também força militar nos

contínuos embates bélicos que se travavam pelo poder local.118

116 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto

Alegre: F. P. Prado, 2002. pg. 168-184. 117 MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue: uma parábola familiar no Pernambuco

Colonial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. 118 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Um Mercado dominado por “Bandos”: ensaio sobre a lógica

econômica da nobreza da terra do Rio de Janeiro seiscentista. IN: Escritos sobre História e Educação. Homenagem a Maria Yedda Leite Linhares. pg. 247.

159

Estratégias e artimanhas: os contrabandistas em ação.

Negócios certos e negócios malfadados Um ponto da proibição régia aos muares sempre ficara um tanto omisso.

O decreto de Sua Majestade proibia “mulas e machos”, e isso possibilitava

considerar como ilícitos as mulas “macho” ou mesmo os burros (Equus asinus),

já que eram os reprodutores.119 Em meados de 1767 o Capitão de Ordenanças

José da Silveira de Bitancurt enviou uma carta ao governador solicitando trazer

para sua propriedade na freguesia do Triunfo120 uma tropa de seiscentos

animais, que trouxera dos domínios espanhóis por “os não achar de venda no

dito País [Campos de Viamão]”121. Bitancurt trazia, especialmente, burros e

éguas para estabelecer cria de muares em suas fazendas. Disse que perdera

propriedades com a invasão espanhola, e que com tal produção de bestas

poderia se recuperar e tornar a contribuir com impostos para Sua Majestade.

Houve uma discussão entre os oficiais da Coroa sobre a interpretação do caso,

se os burros estariam contidos na lei ou não. O Provedor da Fazenda, Inácio

Osório Vieira, avaliou que os burros não estariam incluídos. Já o Vice-rei, Conde

da Cunha, disse que não se poderia decidir se os burros estavam ou não

incluídos até interpretação de Sua Majestade.

“...de nenhum modo consentirá ao suplicante que introduza de Castela bestas muares, nem burros, que se devem considerar incluídos na mesma lei enquanto Sua Majestade não determina outra coisa pois só o dito Senhor compete a interpretá-las...”122

O fato de Bitancurt ser Capitão de Ordenanças123, e uma das “pessoas

mais abonadas e estabelecidas”124 no Rio Grande contribuiu para uma

119 Uma nota importante: a mula é resultado do cruzamento induzido de uma égua (a fêmea do Equus

caballus) com um burro (um macho do Equus asinus). Em condições normais um burro não copula com uma égua, e por isso é necessária a ação do homem para provocar o acasalamento. Sobre tal tipo de reprodução existem estudos não apenas zootécnicos como também de história: HAMEISTER. Op cit. , CANEDO, Mariana. La ganadería de mulas el la campaña bonaerense. Una aproximación a las estrategias de producción y comercialización en la segunda mitad del siglo XVIII. IN: MANDRINI, Raúl e REGUERA, Andrea. Huellas en la tierra. Indios, agricultores y hacendados en la pampa bonaerense. Tandil: IEHS, 1993.

120 No Rio Grande de São Pedro, à margem do Rio Jacuí. 121 F1243. 73, 73v. AHRS. 122 F1243. 182v. AHRS. 123 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS, 1977. pg. 287.

160

interpretação favorável. Além disso, fora fiador do primeiro contrato do registro

de Viamão, em 1752, demonstrando não apenas seus recursos, mas seus

relacionamentos e articulações com indivíduos vinculados ao trato de gado.

A mesma sorte não teve Manuel Munhoz, tropeiro castelhano, que ao

passar em julho de 1768 pela fronteira do Rio Pardo, no Rio Grande de São

Pedro, teve detida sua tropa de “mil e tantos animais”125, em função do Real

decreto que proibia a entrada de mulas e “machos”. Para tentar escapar da

perda, ou minimiza-la, Munhoz argumentou de vários modos afirmando, de

primeira, desconhecer o dito decreto Real, argumento que não foi aceito.

Afirmou, por fim, que os burros que trazia não poderiam ser apreendidos, por

razão de não constarem no Real decreto, que previa a apreensão de “somente

mulas e machos e não burros”126, revelando um conhecimento das falhas da lei

bastante razoável para quem, até então, ignorava o decreto em questão. Pedia,

enfim, que se lhe devolvessem os trinta burros, por ser seu direito,

encaminhando um requerimento ao governador José Custódio de Sá e Faria.

Não sabemos se teve sucesso na sua petição, em relação aos burros. O restante

da tropa fora todo apreendido. Não conseguimos perceber nenhuma articulação

mais específica, alguém que pudesse interceder em favor de Munhoz. Talvez por

isso ele não tenha tido o sucesso que teve Bitancurt ou Eugenio Barragam, que

logo veremos. Munhoz pretendia vender seus animais, especialmente as

matrizes, para os fazendeiros do Rio Grande, e não contava com a detenção.

Eugenio Barragam, “de nação espanhol”, chegou aos domínios

portugueses aproximadamente cinco meses depois que Munhoz por lá andara.

Obtivera sucesso no transporte de seus animais, em número superior a

quinhentos, sendo destes, onze burros e quatrocentas éguas, animais

suficientes para incrementar uma significativa produção de mulas. Não apenas

teve a passagem autorizada, como também recebeu uma carta de sesmaria.127

Neste caso, Barragam estava associado a uma importante família da terra: os

124 Idem. pg. 318. 125 F1243. 153, 153v. AHRS. 126 F1243. 153, 153v. AHRS. 127 F1243. 163. AHRS.

161

Pinto Bandeira.128 Ele aparece em 1770 como devedor de 176$000 ao casal de

Francisco Pinto Bandeira, quando do inventário deste, relativo a “22 mulas das

que se hão de marcar para a marcação do ano de 72 que sendo justas a

8$000”.129 Neste sentido, percebemos que Barragam mantinha relações muito

próximas com tal família da elite local, a ponto de ter tido crédito para manter

uma dívida deste montante, valor superior à média do preço dos escravos no

mesmo inventário.

Munhoz não foi o único caso malfadado. Também em 1768 o governador

do Rio Grande, José Custódio de Sá e Faria, dava ordens para a criação de um

potreiro de Sua Majestade com o objetivo de criar mulas. Para tanto, mandava

recolher todos os burros confiscados naquele tempo.130

Fica claro que havendo a dúvida na interpretação, a permissão ou

confisco era promovida de acordo com a qualidade da pessoa ou de suas

relações na sociedade. As interpretações variavam muito em relação ao autor e

ao tempo. Essa inconsistência de pensamento e interpretação, certamente

desejada por muitos, propiciou mais espaço para a reprodução da desigualdade,

permitindo que uns conduzissem seus animais, em detrimento de outros, que

eram detidos. Mas estes eram apenas os primeiros anos de vigor daquelas leis

de contrabando. Estas leis variaram no tempo estudado, mas sempre

procuravam, de algum modo, controlar o comércio na fronteira.

Os três casos que apontamos são, de certo modo, paradigmáticos.

Ocorrem num período muito próximo e têm destinos bem diferentes. Mas estes

três casos são apenas uma porta de entrada para o problema. O contrabando se

intensificará após estes anos (1767 e 1768) e se valerá de novas estratégias e de

outras articulações sociais para poder reproduzir-se a despeito da legislação.

128 Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.

maço 4. APERGS. 129 Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35. maço

4. APERGS. 130 REGO MONTEIRO. Op cit. pg. 172.

162

A produção social da mercadoria Em 1772 o Vice-rei tinha nos campos de Viamão um enviado que lhe fazia

freqüentes relatos dos ocorridos naquela fronteira. Francisco José da Rocha,

como se chamava, noticiou várias “desordens” que presenciara naquele

momento. A maioria delas era específica ao bando de Rafael Pinto Bandeira.

Rocha não acusou Rafael explicitamente de contrabandista, mas apontou o

poderio de Pinto Bandeira na região, apontando sua capacidade de

arregimentar homens e patrocinar arreadas e outros negócios. O próprio Rafael

lhe teria dito que podia ajuntar duzentos e cinqüenta homens e cavalos para

bancar uma “coleta” de éguas nos domínios espanhóis.131 Rocha dizia ainda que

Rafael se valia de seus postos militares, como comandante da fronteira, para

privilegiar seus partidários e embaraçar outros arreadores, dos quais “...não

gostava...”.132

Rocha procurou entender o embargo como algo pessoal. Todavia, esta era

uma prática de Rafael para eliminar seus concorrentes. É mesmo provável que o

próprio Rocha tenha percebido isso, ainda que preferisse manchar a imagem de

Rafael com outros artifícios narrativos. Em outro relato, ele apontou uma

negociação que teve com Pinto Bandeira que durou dias. Rafael tentava de todas

as maneiras evitar que a Coroa bancasse uma destas arreadas, cujos frutos

seriam distribuídos entre muito vassalos que, posteriormente, pagariam em

potros o ganho que tiveram. Rafael propôs, inicialmente, que os animais

arreados fossem vendidos, pois haviam interessados (provavelmente ele). Com a

negativa de Rocha, Rafael voltou no dia seguinte, propondo que fossem

concedidas licenças para quem se interessasse por fazer arreadas. Rocha negou

novamente, pedindo tempo para tomar informações. Rafael ainda fez mais

algumas tentativas, propondo que era o único capaz de arrear, e mesmo, que

poderia fazer a corrida de gado ao lado de Pinto Carneiro, pois serem os únicos

ricos o bastante para isso. Toda a negociação deixa perceber a preocupação de

Rafael em ter a proeminência nas arreadas, a despeito dos demais súditos, que

131 Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.73. Arquivo Nacional. 132 Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.76. Arquivo Nacional.

163

Rocha até tentou defender.133 Aparte todos os problemas com Rafael, Rocha

aponta, sem mencionar nomes, a existência de um forte contrabando de gado na

região, dando especial ênfase à maneira como eram despachados para Curitiba.

Já em 1773 devia ser muito intenso o tráfico ilícito de mulas entre os

domínios espanhóis e os territórios portugueses. Isso porque o provedor da

Fazenda, Inácio Osório Vieira, resolveu tirar uma devassa sobre estes abusos.134

Dizia o Provedor:

“...passa a uma ingratíssima rebelião, não sendo bastantes as mais exatas providências e devassas que a este respeito tenho procedido, chegando a tanto excesso a contumácia deste delito [...] sendo bem ponderado, que para estes diabólicos excessos haviam, necessariamente, os transgressores de ter auxílio...”135

A assentada foi feita, estranhamente, em 1769. A inquirição, contudo, se

realizou no início do ano de 1773. Das quinze testemunhas, uma silenciou

completamente, o capataz de estância Mariano Ferreira, original do Paraguai.

Cinco afirmam, sem detalhar, que havia contrabando: Antonio Gomes de

Campos, José Ortiz da Silva, Matias José de Almeida e João de Souza Coelho,

além do capataz João Alves da Costa. Nove apontam Rafael Pinto Bandeira e

seus aliados como promotores de contrabandos. Destas nove não identificamos

nenhuma relação. Apesar dos relatos indicarem um mesmo culpado, de modo

geral, cada versão é singular, envolvendo outras figuras, além de referências

específicas a determinados lugares. Deste modo, não temos motivos para pensar

que se tratou de uma tentativa de incriminar Rafael Pinto Bandeira. Alguns

relatos são bastante detalhados como o do tenente João Batista de Carvalho.

Uma determinada tropa de gados de contrabando foi citada por quatro

testemunhas: a de Inácio Morato. Desta tropa, a primeira testemunha da

devassa, Felipe Borges da Silva, disse que levava cento e cinqüenta mulas e

alguns burros, entre outubro e novembro de 1772. Disse ainda que tal tropa

havia passado pelo passo de São Lourenço.

133 Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.72 – RD 16.76. Arquivo Nacional. 134 O original está provavelmente perdido. Uma cópia de 1779, utilizada para o Conselho de Guerra

contra Rafael Pinto Bandeira está publicada na RMAPRGS. pg. 316. 135 F1243. 213v.

164

FIGURA 5

165

Outra testemunha, Francisco José Martins, disse, na ocasião, que Morato

havia passado com duzentas mulas de contrabando pelo Passo do Camaquã. O

tenente João Batista de Carvalho ouvira dizer que a mesma tropa continha

quatrocentas mulas e sessenta burros. Quem contou isso a João Batista foram

dois soldados que teriam testemunhado o fato: João de Souza e Antonio de

Araújo. O próprio Antonio de Araújo, também testemunha, confirmou parte do

depoimento de João Batista, dizendo que eram duzentas mulas e sessenta

burros. Todavia, Antonio foi mais longe, detalhando mais o ocorrido. Ele

estaria, na ocasião, junto com outros soldados numa diligência de rastrear uns

cavalos roubados da Guarda de Fronteira onde servia. Quando chegaram às

cabeceiras do Rio Negro:

“...toparam com uma tropa de bestas muares que daqueles domínios de Espanha vinha para estes da qual era condutor Inácio Morato [...] estando nesta diligencia o chamara de parte o dito Inácio Morato e lhe dissera que não confiscasse a tropa [...] dizendo-lhe juntamente que ele os comporia afim de se lhe não fazer confisco e com efeito se ajustou a dar três doblas a cada soldado dizendo-lhe mais que este dinheiro no caso de se não fiarem dele lho mandaria dar pelo seu mesmo capitão Rafael Pinto Bandeira...” 136

A ligação de Morato com Rafael Pinto Bandeira é ressaltada por parte das

testemunhas. Não apenas o fato da tropa pertencer a Rafael, mas pelas garantias

que o tropeiro possuía ao conduzir gado para Rafael. Frente a uma possível

detenção, Inácio Morato não titubeou em invocar àquele que o contratava e que

cuidaria dos soldados. Esse ponto já havia sido apontado pelo emissário do

Vice-rei, Francisco José da Rocha, que dissera que Rafael se valia das Guardas

de Fronteira para tratar de seus negócios ilícitos.137

Outro aspecto que apreendemos do ocorrido é alguma noção da rota

terrestre utilizada pelos contrabandistas. Ao que tudo indica, eles utilizavam

caminhos comuns, sem grande necessidade de ocultar seus negócios. Quase

todas as testemunhas afirmaram que os contrabandos eram públicos e notórios.

Todavia, a questão dos caminhos utilizados tem outra evidência.

Em um mapa feito por espanhóis, de 1804 (figura 5), são representados

caminhos existentes entre a Banda Oriental e o Rio Grande de São Pedro.

136 RMAPRGS. pg. 332-333. 137 Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.73. Arquivo Nacional.

166

Cruzando as informações deste mapa com os testemunhos referidos acima,

obtivemos alguns resultados interessantes. Considerando o conjunto das

testemunhas que se remeteram a pontos geográficos identificáveis, a primeira

referência é às cabeceiras do Rio Negro que, naquele momento, estariam sob

domínio espanhol.

Contrastando com o mapa, percebemos que bem junto às ditas cabeceiras

passa um caminho que liga Cerro Largo à Santa Tecla. A referência posterior é

ao Passo do Camaquã. Este passo é apontado como rota de contrabando não

apenas da tropa de Inácio Morato, mas de pelo menos mais duas tropas

denunciadas na mesma devassa. O caminho apontado no mapa se aproxima do

Rio Camaquã, já em domínios lusos, em uma série de pontos, chegando quase a

seguir o seu curso. Por fim, as duas testemunhas apontam ainda algum Passo do

Rio Jacuí como parte da rota. Uma delas, Antonio de Araújo não sabe dizer qual

passo, mas Felipe Borges da Silva, também testemunha, disse que fora no

“...Passo de São Lourenço...”138, junto ao rio Jacuí. Se observarmos o mapa,

veremos que o mesmo caminho cruza o rio Jacuí.

Outro condutor de tropas referido foi Miguel Martins Serra. Pelo que

tudo indica, era outro tropeiro a serviço de Rafael Pinto Bandeira. Uma das

testemunhas, Felipe Borges da Silva, disse que havia ido junto com Miguel

Martins aos domínios espanhóis, com o objetivo de verificar o estado da Colônia

do Sacramento. Rafael Pinto Bandeira teria convencido Felipe de levar fazenda

seca para, nos domínios espanhóis, trocar por gado, “...o que com efeito

fizera...” a testemunha. Também Miguel Martins trouxera alguns burros e

burras e passou sem nenhum embaraço. Segundo Felipe, esta facilidade de

Miguel Martins se explicava devido ao fato de ser “...muito amigo...” do capitão

da Guarda de Fronteira do Tabatingahy, Carlos José da Costa e Silva. A

presença de Carlos José no contrabando também é apontada por outras

testemunhas, como veremos em breve.

Também o tenente João Batista de Carvalho apontou Miguel Martins

como contrabandista, afirmando, inclusive, que este se encontrara com Rafael

Pinto Bandeira no Passo do Camaquã, sugerindo a ligação entre ambos. Romão

138 RMAPRGS. pg. 320.

167

Vareiro foi outro condutor indicado. A testemunha Francisco José Martins

aponta Romão como um dos tropeiros que passou com contrabandos tendo a

cooperação do Capitão da Guarda Carlos José da Costa. Também a testemunha

João Batista de Carvalho aponta Romão como cúmplice de Rafael. Segundo

João, o dito tropeiro teria conduzido dos domínios espanhóis para os

portugueses cerca de duas mil reses em outubro de 1772, a mando de Rafael.

Romão ainda participou de arreadas, liderando alguns índios no ano de 1777.139

É provável que seja o mesmo “Romão vaqueano” citado, em 1787, por Manuel

José de Alencastre, que acusou sua participação no contrabando ao lado de

outros condutores. Todos agiam a mando de Rafael.140

Ao lado de Romão e Miguel Martins estavam outros peões como Miguel

Aires, Casemiro de Castilhos e Roque Rolão. Estes também aparecem em

documentos, muitas vezes relacionados a Rafael. Tudo leva a crer que eram

mesmo peões de contrabando. Eram homens que percebiam o comércio ilícito

como uma fonte de renda sazonal, possível para eles, na medida em que

estavam diretamente vinculados a um negociante maior que lhes garantia a

circulação e a segurança da passagem. Sazonal, pois não eram incursões

regulares e dependiam de contatos prévios entre os produtores e os

compradores. Como já argumentamos antes, estes peões também possuíam

atividades produtivas regulares, como a lavoura e a criação. Alguns destes

homens, como Miguel Martins e Inácio Morato possuíam terras, criavam

animais e participaram ativamente na guerra. Inácio Morato fora espião das

tropas lusas, como dissera em um requerimento de 1781.141 Casemiro de

Castilhos, quando fora ao combate contra os castelhanos em outra ocasião,

levara consigo um peão que era seu agregado. Não se tratava do estrato mais

baixo da sociedade. Ainda que estivessem a mando de Rafael Pinto Bandeira,

eram os chefes daquelas tropas, possivelmente comandando outros homens,

entre escravos e agregados de sua relação. É possível que o trato ilícito,

aparentemente arriscado, tenha contribuído para a melhoria do padrão de vida

139 RMAPRGS. Tomadias de 1777. Pg. 381-382. 140 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional 141 F1247. 21. AHRS.

168

destes homens. Inácio Morato, por exemplo, adquiriu terras na década de 1780,

e obteve mais algumas na década de 1790.142

Um outro personagem foi citado com regularidade na devassa de 1773: o

Capitão de Dragões Carlos José da Costa e Silva. Pelo menos quatro

testemunhas o apontaram como participante dos contrabandos. Sua ação se

limitaria ao controle da fronteira, como comandante oficial dela, que garantiria

a passagem de determinados indivíduos, confiscando outros ou cobrando

pesadas “multas”, que no vocabulário de hoje chamaríamos de propinas. Na

ocasião as mesmas testemunhas apontaram a ligação de Carlos José com Rafael.

Na década de 1780, ele se casou com a irmã mais nova de Pinto Bandeira,

juntando-se definitivamente ao bando.

Houve uma grande investigação sobre os negócios de Rafael, entre 1779 e

1780, na qual o contrabando foi apenas um dos pontos. A própria devassa de

1773 fora anexada a este processo. Denúncias mais explícitas de contrabando só

voltaram à ordem do dia em 1783, com uma carta enviada ao Vice-rei, Luís de

Vasconcelos, por súditos que optaram por não se identificar. Eram “Capítulos”

contra Rafael Pinto Bandeira, dando conta de vários negócios prejudiciais aos

interesses do Rei e seus súditos, obrados por Rafael.143

Se a devassa de 1773 tivera como tema específico o contrabando de

muares, estes “Capítulos” vão tomar apenas o contrabando fluvial como objeto.

E como o próprio documento dizia, e outros o confirmam, estes contrabando

estava ancorado no ingresso de couros dos domínios portugueses e na saída de

escravos e fumo dos mesmos territórios.

O documento não cita muitos nomes, mas dentre os poucos mencionados

está presente o de Joaquim Rodrigues, que costumava cometer violências a

mando de Rafael. Nos “Capítulos” ele é acusado de ter confiscado para Rafael

uma canoa de contrabando Esta canoa teria sido utilizada por Rafael para levar

o seu contrabando.

Segundo os anônimos autores dos “Capítulos”, Rafael teria mandado

construir grandes canoas para fazer seu contrabando. Não há maiores detalhes.

Mas esta informação é confirmada por outros documentos, especialmente pela 142 RMAPRGS. pg. 484. Nota 7. e também F1247, 21. AHRS. 143 Cód. 104. Vol. 06. Pg. 143. Arquivo Nacional.

169

devassa de 1787. Nesta última, rica em detalhes, é citada a propriedade de

Rafael sobre várias canoas, sendo algumas construídas defronte de uma de suas

propriedades. A acusação, neste momento, refere-se à possibilidade de Rafael

ter se utilizado de pregos e madeiras da Fazenda Real para a construção de tais

embarcações.144 Também o confirma Joaquim José Ribeiro da Costa,

governador interino do Rio Grande de São Pedro. Em carta ao Vice-rei,

confirmava a construção de mais duas embarcações de Rafael. Dizia que a

madeira vinha de matos de particulares, mas que não eram tiradas

violentamente, e sim com autorização dos proprietários, que o faziam “...por

amizade, ou respeito...”.145

Para obter canoas, Rafael não apenas as fabricava. Segundo o mesmo

documento, Pinto Bandeira utilizara seu posto para confiscar outras canoas de

contrabando e utilizá-las para si. Além disso, se servia de uma canoa do Juízo

dos Ausentes, com o mesmo fim. Importa aqui ressaltar novamente o papel da

“acumulação troglodita” no enriquecimento dos Pinto Bandeira. Além de

provocarem o temor público, se valiam de seu nome e prestígio para obter bens

em geral, sem necessidade de despender dinheiro. Deste modo, o contrabando

era movido a um custo baixo, em termos financeiros. O investimento maior

estava em certos atributos da família, como seu poder e controle social.

Certamente este também não era um fundo inesgotável, e necessitava de uma

administração cotidiana, que os Pinto Bandeira realizavam com primor, diga-se.

Afora tudo isso, Rafael mantinha em sua casa um ponto de comércio.

Para os autores dos “Capítulos”, isso era uma afronta ao comércio dos súditos,

já que Rafael usava da força para vender seus efeitos. Tal informação foi

também referendada pela devassa de 1787.146 Rafael parecia não tolerar

concorrência. Os “Capítulos” estão recheados de referência a confiscos de

contrabandos feitos por Rafael, especialmente por via fluvial. Também falam da

cobrança de propinas dos condutores das canoas com mercadorias ilegais.

Segundo o documento, Pinto Bandeira se valia de um espião que ficava

junto à Lagoa Mirim. Nada sabemos com certeza deste fato. Todavia, referências

144 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional. 145 Códice 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. 146 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.

170

ao controle das fronteiras por Rafael, inibindo outras tentativas de contrabando

são freqüentes. É bastante provável que os “Capítulos” tenham sido escritos

com a colaboração de algum negociante que tenha sofrido perdas pela ação de

Rafael. Algumas informações são detalhadas e o documento reflete uma certa

ira por parte dos autores, estando cheio de juízos de valor. A devassa de 1787

cita casos de violências cometidas por Rafael contra comerciantes da vila de Rio

Grande, especialmente do “Povo Novo” que, ao que parece, foram expulsos

desta localidade por obra de Pinto Bandeira.

Este controle contribuiu a manutenção do poderio do bando frente a

possíveis tentativas, até mesmo por parte destes negociantes do Rio Grande, de

apresentar-se como alternativa àquele mando. Por um lado, eram

demonstrações cotidianas do poder da família Pinto Bandeira. Por outro, o

ganho econômico advindo da preferência nos negócios e capacidade de negociar

da mesma família.

Como resposta ao que foi apontado nos “Capítulos”, o governador do Rio

Grande, Sebastião Xavier Veiga Cabral da Câmara, por ordem do Vice-rei, procedeu

a uma Investigação. As questões formuladas foram basicamente retiradas dos

“Capítulos” e reelaboradas em forma de pergunta, mas sem mencionar os

acusados. 147 Esta devassa, que seria uma espécie de teste às denúncias feitas a

Rafael Pinto Bandeira, acabou revelando muitos outros culpados. De fato, seu nome

não é mencionado em momento algum. Teríamos motivos para desconfiar da

maneira como foi feita a inquirição, pois o próprio governador teve receios de fazê-

la, conforme disse ao Vice-rei naquele ano de 1784. 148

Foram nove testemunhas ao todo. Destas, apenas cinco deram depoimentos

detalhados. Uma, inclusive, fora citada como contrabandista: Francisco de Oliveira

Dias, que dera um depoimento curto e evasivo, limitando-se a confirmar que havia

contrabando na fronteira. De um modo geral, esta devassa confirma os fluxos

indicados nos “Capítulos”. Para os domínios portugueses viriam couros. No contra-

fluxo, para os domínios espanhóis iriam escravos e fumos. Da mesma forma,

confirmou a rota fluvial que partia do Rio Cebollatí até o “Sangradouro” da Lagoa

Mirim.

147 Cód. 104. Vol. 06 pg. 132-142. Arquivo Nacional. 148 Cód. 104. Vol. 6. Pg. 560. Arquivo Nacional.

171

FIGURA 6

172

A grande novidade desta inquirição era a referência significativa a

atuação de negociantes de Rio Grande no comércio ilícito. Se os “Capítulos” nos

indicaram que a família Pinto Bandeira possuía uma proeminência nas

atividades contrabandistas naquela fronteira, esta devassa nos aponta falhas

cada vez maiores deste controle. De todos os comerciantes acusados, não

encontramos relação direta de nenhum com Rafael e seu bando. Tudo leva a

crer que fosse mesmo um período de crescimento de outros agentes no comércio

ilícito da fronteira do Rio Grande.

Algumas testemunhas confirmam pontos contidos nos “Capítulos”.

Francisco de Souza de Azevedo Pimentel disse que ouvira de várias pessoas que

alguns oficiais faziam cobranças de quantias para não confiscar contrabandos.

Estes oficiais o fariam na “...Guarda do Passo do Beca...”149 muito próxima da

Estância do Pavão, uma das propriedades de Rafael Pinto Bandeira.150

Mas o que Azevedo Pimentel mais destacou fora a participação dos

negociantes José da Rosa Fraga e José da Rosa Gomes no trato ilícito. Segundo

a testemunha, sabia disso através dos próprios comerciantes, que lhe haviam

contado. Destes dois acusados, pouco sabemos. José da Rosa Gomes era

proprietário de umas terras próximas ao arroio Piratini.151 Em 1796 era referido

como Capitão, provavelmente de Auxiliares. De resto, nada se pode inferir com

certeza sobre sua participação no negócio ilícito.

Outros negociantes possuíam uma carreira mais extensa no contrabando.

José Vieira da Cunha confessou, na devassa de 1787, que não apenas fizera

contrabando, como teria mesmo oferecido suborno a um oficial da Guarda.152

Vieira da Cunha também seguia os fluxos comerciais referidos, seguindo com

vários efeitos para os domínios espanhóis e retornando com couros. Cabe

ressaltar seu destaque nesta devassa, que pode ser um indicativo do crescimento

da atuação de outros elementos nas atividades ilícitas, afrontando, de certo

149 Depoimento de Francisco de Souza de Azevedo Pimentel. Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg.

140v. Arquivo Nacional. 150 07. 02. 1425 e 07. 02.1441. Mapas do Arquivo do Exército. 151 Auto de medição de terras. José da Rosa Gomes – 1796. 2º Cartório do Cível de Rio Grande.

APERGS. 152 Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo

Nacional.

173

modo, o poderio do bando de Rafael. Isso está longe de significar que o bando

estivesse enfraquecendo...

A partir 1780, Rafael começou a não apenas perseguir, como também

prender e, especialmente, “noticiar” de forma bastante enfática, as apreensões

de contrabando que fazia. Entre 1780 e 1784, Pinto Bandeira prendeu vários

contrabandistas. No final deste período enviou uma relação ao Vice-rei com os

nomes dos criminosos, sendo eles: Santiago Rodriguez, João Antonio, Antonio

Iglecia, Bernardo Balecho, Francisco Matos, Diogo Vaca, Gregório Francisco,

João Nunes, José de Sechas, Rafael Escudeiro, João Benites, Eugenio Salininas,

Manuel Gonçalves e João Francisco.153 Infelizmente não conseguimos rastrear

estes homens em outros documentos. O registro de suas vidas se limita à notícia

de suas atividades criminosas ou, o que é pior, a sua incapacidade de criar meios

de evitar a detenção. Pinto Bandeira sabia bem disso, talvez melhor do que

ninguém.

Em 1786 os espanhóis apreenderam um carregamento de couros em uma

embarcação portuguesa que navegava na Lagoa Mirim. Os sujeitos que estavam

com os couros argumentaram que haviam encontrado aquilo em outro barco,

que estava encalhado em algum ponto, e que só andavam na Lagoa Mirim a

procura de conchas pois pretendiam fazer cal com elas. Os espanhóis não

acreditaram.154

Uma parte do couro foi jogada na mesma lagoa, outra foi destruída e o

restante foi dividido entre os soldados que apreenderam o contrabando. Os

sujeitos que perderam o couro não eram os donos da embarcação. Ela pertencia

a Rafael Pinto Bandeira. O Comissário espanhol, Varela e Ulhoa, escreveu ao

Vice-rei do Brasil, Luis de Vasconcelos e Souza, acusando Rafael de manter um

contínuo contrabando. Para Vasconcelos isso não era nenhuma novidade. Mas é

neste contexto que Vasconcelos nos fornece algum indício para percebermos

quão forte estava o bando. Muito observador, o Vice-rei comentava que Rafael

se tinha...

“...empregado neste indigno modo de vida debaixo dos nomes supostos de pessoas, a quem confia o manejo de semelhantes negócios, em que também

153 F1245. 12v, 13. AHRS. 154 Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro. Op cit. pg. 41-47.

174

os interessa a fim de guardarem melhor o segredo muito recomendado a sobra da conveniência certa e infalível e de um tão grande protetor que os tolera, permite e desfruta sem a menor contradição.” 155

Vasconcelos identificava não apenas o poder de Rafael, seu potencial de

agregar pessoas para o trabalho e seu envolvimento no trato ilícito. Percebia que

este negócio também interessava àquelas pessoas que estavam ligadas a Rafael

como peões, marinheiros e agregados em geral. Rafael lhes garantia trabalho e

proteção. Uma avaliação como esta, partindo do Vice-rei do Estado do Brasil,

nos indica o quanto o bando estava organizado e firme, podendo atrever-se a

realizar negócios arriscados em uma área discutida pelas duas Coroas.156 Prova

disso é que, aparte o extravio dos couros, nada foi feito contra Rafael.

O problema é que o abuso estava chegando a um limite difícil de tolerar.

Por esta época também um cunhado de Rafael, Custório Ferreira, arrumou

problemas com alguém importante: o capitão de ordenanças Manuel José de

Alencastre. Após uma contenda muito séria entre ambos, Alencastre escreveu

uma longa carta ao Vice-rei, detalhando abusos que Rafael e seus aliados

cometiam naquela fronteira.157 Uma das primeiras acusações que faz é a um

irmão de Rafael, Evaristo Pinto Bandeira:

“...conduz, com o respeito que tem, por ser irmão do Coronel acima dito [Rafael] muitas tropas de contrabando, passando com elas por várias guardas as quais lhe não põem embargo por estarem a maior parte delas comandadas por oficiais seus parentes e outros do regimento [ilegível] do dito Coronel e em outras partes passando em passos esquecidos como veterano daquele país...”158

Na devassa de 1787, originada da denúncia de Alencastre, muitas

testemunhas referiram estes negócios de Evaristo. Das vinte e uma testemunhas

do processo, seis confirmaram que Evaristo fazia negócios com animais

contrabandeados. Antonio da Silva Barros confirmou que Evaristo passava com

os animais nos Registros ou por caminhos paralelos. Inácio Xavier Mariano

disse que sabia que em uma certa ocasião Evaristo conduzira animais de

contrabando passando pelo Registro de Santo Antônio da Patrulha. Já vimos,

155 Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro. Op cit. pg. 45. 156 A Lagoa Mirim neste momento era declarada área neutra. 157 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. 158 Cód. 104. Vol. 09. pg. 314. Arquivo Nacional.

175

inclusive, que em Santo Antônio estava, sob proteção de Rafael, um criminoso

foragido: Joaquim Rodrigues de Aguiar. O local devia ser conveniente.

Ao que parece, Evaristo é um sujeito que, através do respaldo do bando,

dominava a refinada técnica de transformar contrabando em mercadoria.

Conhecer picadas e caminhos ocultos era parte da trama. Mas sem as relações

que estavam dadas pelo bando, Evaristo não poderia manter seu negócio por

muito tempo.

Estas denúncias nos indicam mais um elemento interessante: a

continuidade da rota de passagem de contrabando. Vimos, através de

depoimentos e mapas do período, os caminhos aproximados por onde corriam

as tropas de gado contrabandeado, mas somente até o rio Jacuí. Se tomarmos

em conta estes depoimentos, veremos que os animais seguiam de Viamão, pelo

Registro de Santo Antônio, até os campos de Cima da Serra. Os Pinto Bandeira

possuíam terras naqueles campos, onde provavelmente invernavam os animais,

à espera de tropeiros que os levassem para Curitiba.159

Alencastre retoma um velho problema que rondava o nome de Rafael: o

uso de canoas. A questão, de fato, é como ele conseguia suas canoas. Segundo

nosso informante, Pinto Bandeira teria confiscado uma embarcação de um

mercador da localidade de São José do Norte, José Rodrigues, sob acusação de

contrabando. Depois de utilizá-la durante mais de dois anos no mesmo

contrabando, Rafael teria devolvido a canoa ao seu proprietário original, em

julho de 1784. Alencastre fornece com minúcia uma lista de todos os “patrões”

que comandaram a tal canoa durante aqueles dois anos. Além desta canoa,

Rafael teria feito construir outra, usando pregos e madeiras de Fazenda Real.

Não fosse o bastante, Alencastre ainda acusou Rafael de usar índios e escravos

como marinheiros sem nunca os pagar. Depois de usar a canoa, Rafael a teria

vendido a José Vieira da Cunha.

Estas acusações foram referidas por oito das vinte e uma testemunhas

ouvidas na devassa de 1787. A maior parte dos informantes confirmou que

Rafael construíra uma canoa em frente a sua casa. Tomé Pedro da Costa Ramos

disse que navegavam na canoa alguns índios e um patrão de nome Manuel

159 Inventário de Rafael Pinto Bandeira. 1º Cartório de Órfãos e ausentes de Porto Alegre. nº 211. maço

13. APERGS.

176

Cristóvão, um dos listados por Alencastre em sua denúncia. As mesmas

testemunhas confirmaram que Rafael vendera a canoa por 40 doblas ao

comerciante José Vieira da Cunha. O próprio comprador confirmou o ocorrido.

Nesta devassa ninguém acusou Rafael de fazer contrabando com esta

canoa. Apenas Antônio José Feijó dissera que tinha ouvido de “...pessoas da

plebe...” que a tal canoa navegava pela Lagoa Mirim, mas que tal informação

não tinha merecido crédito, por sua origem.160 José Vieira da Cunha também se

eximira de uma possível acusação, dizendo que havia alugado a canoa ao alferes

da Cavalaria Ligeira Bernardo Antunes e um sócio, e que ouvira dizer que estes

haviam feito contrabando com sua canoa.161 Esse Bernardo Antunes, pelo nome

e pelo posto que ocupava na cavalaria Ligeira, era provavelmente Bernardo

Antunes Maciel, que comandara a mando de Rafael algumas arreadas de gado

em Montevideo, em 1777,162 além de ser do mesmo corpo militar, ou seja, um

perfeito membro do bando. O demarcado espanhol Andrés de Oyarvide dissera,

em seu Diário, que Bernardo era um antigo aliado de Rafael.163 Isso indica que,

ainda que Rafael tenha vendido, a capacidade de negociar do bando requeria,

em determinados períodos, a utilização da canoa.

As testemunhas disseram mais. Quatro delas confirmaram que a canoa

de José Rodrigues (cujo nome completo era José Rodrigues da Fonseca) havia

sido confiscada por andar no contrabando. Duas testemunhas não deram

detalhes. Mas Manuel José Diógenes de Morais disse que a canoa, depois de

apreendida, fora dada a José Antunes da Porciúncula, que vendeu ao

proprietário original. Nicolau Cosme dos Reis disse que o proprietário original,

José Rodrigues, havia arrematado de volta a sua canoa.

Outras testemunhas comentaram que Rafael teria vendido uma canoa de

nome “Figueira” ao castelhano “Pepe”, que era notório contrabandista. Possuir

ou utilizar-se de uma canoa com possibilidades de navegar na Lagoa Mirim era

um passo importante para chegar aos fornecedores de couro. Se observarmos

160 Depoimento de Antônio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 333v. Arquivo Nacional. 161 Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo

Nacional. 162 RMAPRGS. pg. 38 em diante. 163 OYARVIDE. Op cit. Vol VII. pg 341.

177

todas as referências à posse de canoas na mão de Rafael, veremos que ele lidou

com muitas destas embarcações, especialmente a partir dos anos 1780.

Isso demonstra o potencial de transporte de couros que Rafael possuía,

além de sugerir o quanto seu bando vinha investindo, cada vez mais, no negócio

de couros. Provavelmente porque era um produto que vinha sendo cada vez

mais requisitado no mercado exterior.164

Um dos principais personagens da devassa de 1787 é Custódio Ferreira,

cunhado de Rafael. Aparte todo tipo de acusações, o contrabando de gado foi

um dos pontos mais salientados. Segundo algumas testemunhas, era ele próprio

encarregado de coibir o contrabando em seu distrito, chamado “do Caí ”.165 Das

vinte e uma testemunhas, seis acusaram diretamente Custódio Ferreira de fazer

contrabandos.

Inácio Xavier Mariano e José Garcia contaram o pouco que sabiam.

Disseram que o furriel de Dragões Antonio do Couto e Silva fizera uma

apreensão de mulas contrabandeadas na estância de Custódio. Da mesma

forma, o meirinho da Fazenda Real, Joaquim José da Conceição, em seu

depoimento, dissera que havia participado de um confisco na propriedade de

Custódio. E dera detalhes. Segundo ele, o estancieiro estivera ocultando vinte e

cinco mulas de contrabando que pertenciam a um tropeiro de nome Antonio

Ribeiro de Andrade. As mulas foram apreendidas e levadas para extinção em

Porto Alegre.

O mesmo meirinho relatou outro ocorrido, desta vez com o sucesso de

Custódio. O oficial da Fazenda Real estava no Passo do Montenegro aguardando

uma tropa de mulas de contrabando, que por informações que tinha, deveria

passar por ali. Tendo sido avisado que o comandante do distrito, Custodio

Ferreira lhe chamava para uma conversa sobre assunto relativos ao serviço de

Sua Majestade, ao que o meirinho se encaminhou diretamente. Custódio lhe

ordenara que fosse imediatamente para Porto Alegre, onde o Provedor da

Fazenda, Inácio Osório Vieira, lhe aguardava com urgência. Ao chegar a Porto

Alegre, e ver o desagrado de Osório Vieira, o meirinho achou “...ser falsa...” a

164 OSÓRIO. Op cit. 165 Depoimentos de Inácio Xavier Mariano e Antonio da Silva Barros. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol.

09. pg. 327 em diante. Arquivo Nacional.

178

ordem que recebera de Custódio. Logo depois soube que assim que se retirou do

Passo do Montenegro, a tropa esperada, de um tropeiro chamado Domingos

Gonçalves passou sem nenhum embaraço.

Estes dois casos narrados pelo meirinho e por outros contemporâneos

nos demonstram algumas das artimanhas de que Custódio se valia para fazer

passar sua mercadoria. Ainda que fracassasse em algumas de suas investidas,

deveria ter bons motivos para continuar investindo no negócio. Já vimos que

neste mesmo período a Fazenda Real tentou confiscar também gado de Evaristo

Pinto Bandeira, com total insucesso. Ainda que deixasse pistas, o bando tinha

cacife para bancar seus negócios. Talvez o provedor Osório Vieira estivesse

tentando uma reação ao contrabando que se mostrou pouco eficiente. Para este

período encontramos vários documentos produzidos pelo provedor. Neles,

Osório Vieira denuncia a falta de condições de perseguir os contrabandistas, a

ambição dos estancieiros que ajudavam os delinqüentes e algumas das

artimanhas dos negociantes. Aponta, inclusive, o fluxo de mulas para os

domínios lusos, e o contra-fluxo de fumo para os territórios espanhóis.166

Outras testemunhas acusaram Custódio de se valer de seu posto para

confiscar para si alguns animais e cobrar de outros tropeiros para não efetuar o

confisco. Alguns destes tropeiros que andavam com contrabandos acabaram

sendo pegos em outros lugares. Custódio não deveria estar interessado em

proteger estes tropeiros, até porque poderiam tornar-se concorrentes. Mas o

embolso de alguma quantia lhe interessava, pelo que se apresenta. Estes casos

são também indicativos do controle que este membro do bando de Rafael

possuía em seu distrito. Alguns contam, inclusive, que obrigava a alguns

tropeiros a comprar seus animais, ou, em algum caso mais específico, casar com

alguma de suas filhas bastardas. Isso aconteceu com o tropeiro Antonio de

Almeida, que acabou levando para São Paulo, junto das mulas, uma índia filha

de Custódio.167 Mas isso são coisas que contavam...

Outro membro do bando, Vasco Pinto Bandeira, irmão de Rafael,

também fora citado na devassa. Ele teria vendido um lote de couros “...da

campanha...” (em geral se referia a couros contrabandeados) a um negociante

166 Códice 104, Vol. 10. pg. 397 e Vol. 09. pg. 260. Arquivo Nacional. e também F1245. 170. AHRS. 167 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.

179

de Rio Grande chamado Nicolau Cosme dos Reis, por doze tostões cada um.

Quem informou isso fora o próprio Nicolau, que testemunhara na devassa, além

de outro depoente, Antônio José Feijó.168 A narrativa de Nicolau é mais

detalhada e interessante. Acordara com Vasco que este, após receber o

pagamento, procederia a “quintação”, ou seja, pagaria o quinto Régio. Nicolau

ficou surpreso, pois temia que os couros fossem confiscados, já que o próprio

Rafael Pinto Bandeira ordenara que os couros da campanha fossem confiscados

quando da sua quintação. Contudo, os couros de Nicolau não foram confiscados,

assim como ocorreu com outros, segundo dissera a testemunha.

Vasco chamou para si a responsabilidade de “legalizar” os couros, ou seja,

transformar contrabando em mercadoria. O fato de Vasco, e não Nicolau, ter ido

“quintar” os couros, nos indica o quanto esta “legalização” dos couros estava

determinada pelas redes de relacionamentos. O bando detinha um especial

conhecimento desta alquimia.

Rafael também praticava cotidianamente esta mágica. Um tropeiro de

nome João José comprou de Rafael uma grande tropa de animais de

contrabando e a passou, sem problemas, até as Minas, segundo dissera Antonio

da Silva Barros em seu depoimento da devassa. Mas nem sempre havia total

êxito do negócio. Inácio Xavier Mariano contou que um tal José Bernardes fora

ao continente do Rio Grande fazer uma tropa de animais. Rafael lhe teria

vendido algum gado de contrabando com promessas de que passaria sem

problemas pelo registro. A tropa, contudo, acabou apreendida pela Fazenda

Real.169

A devassa de 1787 foi a última grande investigação no século XVIII de

que tivemos notícia naquela fronteira. Até onde sabemos, ela não teve efeito.

Enquanto a devassa ocorria, Rafael estava no Rio de Janeiro, de onde partiria

depois para Lisboa, onde receberia, por seus préstimos de vassalo, o posto de

Brigadeiro das mãos da Rainha. Em seu retorno ao Rio Grande de São Pedro,

Rafael assumiu o posto interino de governador, que ocupou com freqüência até

sua morte, em 1795.170

168 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional. 169 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional. 170 SILVA. Op cit.

180

O fato de quase inexistirem problemas envolvendo os Pinto Bandeira

entre 1790 e 1795 pode ser indicativo de um fortalecimento ainda maior do

bando naquela fronteira. Como governador Rafael distribuiu muitas terras a

seus agregados que foram confirmadas nesta época. Isso sem falar em outras

franquias que dispunha enquanto governador. Além disso, é bastante provável

que tivesse no novo Vice-rei, o Conde de Resende, um forte aliado. Tanto o

Marquês do Lavradio como Luís de Vasconcelos e Souza foram críticos da

postura de Rafael. Ambos apontaram, em suas cartas à Corte, as falsidades e

faltas de serviço de Rafael. Não encontramos nenhuma desavença com Rafael

com o Conde de Resende. Pelo contrário, numa carta que Manuel Marques de

Souza (uma espécie de herdeiro político de Rafael) escreve ao Conde de

Resende, comunicando a morte do brigadeiro, lembrava o quanto ele era

“...conhecido, e protegido...” daquele Vice-rei.171

Referências ao contrabando voltam a aparecer em 1802, quando Antonio

Manuel de Jesus e Andrade solicitou permissão ao Príncipe Regente para

ingressar a “modesta” quantidade de vinte mil mulas. Argumentou a Dom João

que era uma forma que havia encontrado para recuperar um dinheiro que

alguns castelhanos lhe deviam. O Príncipe concordou.

Jesus e Andrade se valeu de um expediente inusitado, a solicitação de

uma mercê, em condições especiais. Contava, assim, que a benevolência régia

lhe agraciasse. O que de fato aconteceu. Mas isso não ficou assim. Tal ocorrido

despertou a indignação de mais de uma centena de súditos daquela fronteira,

que fizeram um abaixo-assinado pedindo o cancelamento da permissão. Quem

encabeçava o documento, dando fé das assinaturas, era ninguém menos que

Manuel Marques de Souza, já referido como um dos herdeiros políticos de

Rafael. Assinavam o documento cento e sessenta e três pessoas, que se

intitulavam como o povo “...que vive da criação de bestas muares...”.172 Entre

as pessoas que assinaram, encontramos vários sujeitos que identificamos como

membros do bando: Jerônimo Xavier de Azambuja, Vasco Pinto Bandeira,

Bernardo Antunes Maciel, entre outros, e alguns negociantes que mantiveram

negócios com a família, como José Vieira da Cunha.

171 AHU-RS. Cx. 03. doc. 291. 172 AHU–RS. Cx. 09. doc. 570.

181

Mais do que o fato de barrar o ingresso (Jesus e Andrade, ao que parece,

estaria ingressando no negócio) de um eventual concorrente, como mais uma

demonstração do poderio daqueles homens, tal documento aponta uma

profunda mudança no panorama produtivo daquela fronteira. Se durante as

últimas três décadas aqueles mesmos indivíduos se valeram do contrabando

para desenvolver seus negócios e criações, já na primeira década do novo século

tinham um superávit de animais. Afirmaram isso em uma carta anexa, como

justificativa para barrar o intento de Jesus e Andrade. Segundo o documento, a

produção de mulas naqueles anos fora tamanha que além de prover as

capitanias de São Paulo e Minas, ainda mantinha milhares de muares nos

pastos, aguardando a compra.173

É difícil para nós afirmar se o bando manteve uma continuidade sólida

depois da morte de Rafael. Mas tudo leva a crer que sim e que Manuel Marques

de Souza assumiu o lugar de líder, tornando-se, inclusive, brigadeiro. Os

conflitos com os espanhóis em 1801 devem ter provocado uma mudança

significativa naquela ordenação, mas fica difícil de apreender nos documentos

disponíveis. Ainda assim, aquela elite, que incluía membros do bando, soube

muito bem como defender seus privilégios e seus recursos diante de uma

eventual ameaça, que não era pequena, pois o número de animais que Jesus e

Andrade pretendia trazer equivalia a pouco menos da produção total declarada

por aqueles criadores. Significaria um baque em seus investimentos, além de

uma afronta à sua posição.

Estes casos frustrados, como o de Jesus e Andrade, e mesmo alguns de

Rafael e Custódio Ferreira, são indicativos de que nem tudo era permitido ou

possível, mesmo para o bando. Todavia, vimos que era realmente necessária,

mais do que a astúcia, uma articulação social poderosa, capaz de garantir a

sobrevivência do negócio durante muito tempo.

Ao longo de todo o período estudado percebemos modificações muito

significativas no comércio de contrabando e uma contínua tensão entre o bando

e o conjunto da sociedade, fossem algumas vítimas suas ou mesmo

comerciantes tentando expandir seus negócios. De fato, o mercado de

173 AHU–RS. Cx. 09. Doc. 570.

182

contrabando que estudamos passou, necessariamente, pela chancela de um

grupo bastante organizado e coeso. Esta organização, que envolve articulações

familiares e relações de reciprocidade, reproduziu o contrabando e se fez

reproduzir a partir dele, como mais uma forma de garantir recursos e meios de

sobrevivência.

CAPÍTULO 5 DIREITURAS DIVERSAS: O ESCOAMENTO DA “PRODUÇÃO” E O IMPÉRIO

A fim de melhor compreender a dinâmica do contrabando e suas

implicações sociais torna-se necessário atentarmos para articulações maiores e

mais distantes. Estas também eram indispensáveis para a reprodução daquele

comércio ilícito. Isso significa entender como aquela localidade estava inserida

no mundo e de que maneira. Privilegiamos dois aspectos: as ligações mercantis

estabelecidas para o despacho do contrabando e as articulações sociais

existentes entre os poderes locais e centrais, dentro da perspectiva do Império

Luso.

O escoamento da “produção”. Centramos nossa atenção nos dois principais produtos de contrabando a

fim de verificar seu destino: as mulas e os couros. Ambos possuíam uma

dinâmica própria na comercialização. As mulas eram vendidas a negociantes

que se especializavam em gado, chamados de “tropeiros”, que conduziam os

animais para Curitiba, e dali para Sorocaba, onde havia uma grande feira. Os

couros eram vendidos na vila do Rio Grande para certos negociantes que

embarcavam as mercadorias, provavelmente para o Rio de Janeiro, maior

parceiro de Rio Grande na época.1

O trote das bestas As fontes que dispomos para relacionar os sujeitos envolvidos no

contrabando com o comércio de gado para Curitiba e Sorocaba não são muitas.

1 OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura

Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: - PPGHIS/UFF, 1999. (tese de doutoramento Inédita).

184

Basicamente, são alguns depoimentos da devassa de 1787 que apontam esta

relação. Como o de Inácio Xavier Mariano:

“...vindo a este continente José Bernardes a fazer uma tropa de bestas, lhas vendera o coronel Rafael Pinto Bandeira, e porque eram de contrabando lhe foram confiscadas pela Fazenda Real, o que só lhe consta por ter ouvido a diversas pessoas.”2

Além de Inácio, mais duas testemunhas apontaram este caso, alertando

que Rafael vendia gado para diversas pessoas. Uma destas pessoas seria o

tropeiro João José, que depois de comprar uma grande quantidade de mulas,

“...as passou para as Minas Gerais...”.3 De João José nada sabemos. José

Bernardes pode ser um dos moradores da freguesia da Lapa identificados numa

lista nominativa de 1798 como interessado na condução de animais.4

A freguesia de Santo Antônio da Lapa, nos campos de Curitiba, possuía

mil trezentas e setenta e quatro pessoas em 1798, sendo que cerca de 10% destas

atuavam de algum modo no trato de animais, seja na condução de tropas,

invernada de animais ou sua negociação. Mas a importância deste negócio na

localidade aumenta se observarmos que dos duzentos e setenta “fogos”, 45%

possuíam pelo menos um morador envolvido com o negócio de animais, quase

sempre o chefe da família. Esta atividade sazonal de condução de tropas era

uma alternativa a outras atividades desenvolvidas pelas famílias, geralmente

associadas à lavoura. Assim como o possível José Bernardes havia muitos

outros, como João Ribeiro que vivia “...de conduzir tropas de Viamão.”, ou

Antonio Gonçalves da Silva, que vivia “...de ir ao continente de Viamão

comprar gado e vender nesta capitania...”. 5

Os conflitos do “bando” com alguns destes tropeiros também acabaram

revelando aspectos muito interessantes. Não sabemos por quais motivos,

Custódio Ferreira resolveu prender um sujeito, que segundo a testemunha era

filho do “Capitão fulano Carneiro”, de Curitiba. O sujeito fugiu, mas seus

cavalos foram apreendidos. Todavia, ao invés de apreender os cavalos para a

2 Depoimento de Inácio Xavier Mariano. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 339. Arquivo Nacional. 3 Depoimento de Antonio da Silva Barros. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 342v. Arquivo

Nacional. 4 Lista Geral dos Habitantes que existem na Freguesia de Santo Antonio da Lapa. 1798. AESP. 5 Idem.

185

Fazenda Real, Custódio tomou-os para si, e os mandou conduzir para uma de

suas propriedades...

“...o que não se efetuou porquanto encontrando-os em caminho o fugitivo dono deles e vendo-os marcados com a marca do dito capitão Custódio Ferreira, quando os supunha confiscados para a Real Fazenda, se resolveu a tirá-los do poder do condutor e assim o pôs em execução...”6

É possível que este tal filho do capitão fulano Carneiro fosse Luciano

Carneiro Lobo, filho de Francisco Carneiro Lobo, Capitão de Auxiliares do terço

de Paranaguá, que atuou na conquista de Guarapuava e fundação da freguesia

de Castro em 1779.7 Luciano teria idade para andar pelo Rio Grande em 1787,

quando da devassa e, mais importante, atuava com freqüência na condução de

tropas de gado, especialmente entre Curitiba e Sorocaba. Ele aparece em uma

lista de controle do “Registro de Sorocaba” como tendo passado três vezes: a

primeira em 1793, sob o nº 1223, pagando 56$590 réis em direitos ao registro. A

segunda e a terceira devem ter sido posteriores a janeiro de 1794, e deixaram

respectivamente 179$290 e 170$460 réis8 em direitos. Nada sabemos sobre os

animais que levava,9 mas é possível que tivesse ido a Viamão e proximidades

para buscá-los, quando teve seus desentendimentos com Custódio.

A única forma que tivemos de verificar as relações entre os “produtores” e

os tropeiros foi através da análise destes conflitos que vimos. Isso, de certo

modo, nos confirma a idéia de que os “produtores” não levavam suas

mercadorias para Curitiba. Esta movimentação era feita por outros sujeitos, que

vinham aos pastos da fronteira atrás de gado. Tomamos o cuidado de só

apresentar casos em que houvesse relações entre comerciantes de gado e

sujeitos que realmente estavam associados ao contrabando, ou seja, que além da

produção animal, obtinham seu gado de outras maneiras que eram proibidas e

exigiam uma elaboração mais refinada, baseada em relações sociais. Isso nos

6 Depoimento de Manuel Carvalho de Souza. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 350. Arquivo

Nacional. 7 NEGRÃO, Francisco. Genealogia Paranaense. Curitiba: Impressora Paranaense, 1926. Agradeço a

Cuca Machado pelo auxilio prestado, sobre famílias do Paraná no século XVIII. 8 Seguindo os preços cobrados no Registro, 56590 réis corresponderiam a mais de 45 mulas; 179290

corresponderiam a mais de 140 mulas; 170460 corresponderiam a mais de 135 mulas. Os preços cobrados por volta de 1790 eram: 1250 por mula, 1000 por cavalo, 480 por égua e 240 por rês (preços em réis). II – 35, 25, 62. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional.

9 II – 35, 25, 25-27. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional.

186

demonstra que no final do século XVIII é significativa a movimentação de

animais, que produzidos nos domínios espanhóis, eram enviados para São

Paulo.

Também se aponta a predominância dos moradores de Curitiba, Lapa e

outras regiões adjacentes na condução de animais de Viamão para Curitiba e

Sorocaba. Temos a referência de um documento de 1763 que aponta a

conveniência, para a condução de mulas, de “...peões curitibanos...”.10

Analisando a documentação produzida pela contabilidade dos Registros de

Curitiba e Sorocaba, existentes na Biblioteca Nacional, percebemos que muitos

destes tropeiros são destas localidades próximas a Curitiba, e se dedicavam a

movimentar os animais de Viamão (ou adjacências) até Curitiba ou mesmo

Sorocaba. Uma relação de dívidas de 1796 aponta algumas referencias sobre os

tropeiros devedores, por informações que os oficiais dos Registros dispunham.

Tal documento confirma a procedência destes negociantes ou condutores,

apontando Castro, Curitiba e Lapa como as principais localidades de origem.11

Tais dados nos apontam um alto grau de especialização no trato destes

animais entre as elites locais do sertão do Brasil. A elite da fronteira se reservava

o negócio da “produção” da mercadoria. Por sua vez, passava os animais para a

elite “curitibana” (na falta de expressão melhor, refere-se às localidades

supracitadas) que despachava os animais para a Sorocaba, onde havia uma

grande feira de bestas.12 Também Sorocaba tinha no negócio de animais base

importante de sua economia, sendo que boa parte da população se dedicava a

este negócio.13

Havia, no entanto, fortes ligações entre estas elites. Um exemplo bastante

significativo é o casamento de Evaristo, irmão de Rafael Pinto Bandeira, com

Cristina, filha de Luis Vicente Pacheco de Miranda, que até onde sabemos tinha

interesses no negócio de gados. Ao analisar os Autos Matrimoniais de Luis

10 Carta do Coronel José Félix para o Capitão Antônio Pinto Carneiro. APUD: REGO MONTEIRO,

Jônathas da Costa. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979. pg. 134.

11 II – 35, 25, 25-27 e também II – 35, 25, 92. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional. 12 ELLIS JUNIOR, Alfredo. O Ciclo do Muar. Revista de História. v. 1, 1 (1950). p. 73-80. 13 BACELLAR, Carlos de Almeida P. Viver e sobreviver em uma vila colonial. Sorocaba, século

XVIII e XIX. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2001.

187

Vicente, Hameister apontou a forte possibilidade dele ser tropeiro, juntamente

com seu irmão, José dos Santos Pacheco, que era casado em Curitiba.14

As suspeitas aumentam quando encontramos o filho mais velho de Luis

Vicente, Manuel Pacheco de Miranda, passando o Registro de Sorocaba em data

próxima a 1794.15 Outro filho de Luis Vicente, Francisco Pacheco de Miranda,

era provavelmente o pai de José dos Santos Pacheco e avô de Manuel dos Santos

Pacheco, que também andava pelo registro de Sorocaba no mesmo período que

seu tio-avô Manuel Pacheco de Miranda. E passaram provavelmente juntos.

Manuel Pacheco de Miranda passou com o bilhete nº 1290, e seu sobrinho-neto,

também Manuel, passou com duas tropas, sob os nºs 1291 e 1292,

respectivamente. Ao todo pagaram ao Registro 521$370 réis de direitos, o que

corresponderia a mais de quatrocentas e quinze mulas, pelos preços de cobrança

daquele Registro, possivelmente, levando mulas.

Manuel dos Santos Pacheco, também era neto de Francisco Teixeira

Coelho, fundador da Vila da Lapa e administrador do Registro de Curitiba

durante a última década do século XVIII. O filho de Manuel, David dos Santos

Pacheco, acabou tornando-se Barão dos Campos Gerais, um dos maiores

empresários do comércio de muares do século XIX.16

Deste modo percebemos que Evaristo acabou pautando seu casamento

pela possibilidade de ampliar negócios de venda de gado. Luis Vicente e seu

irmão já atuavam, provavelmente, desde a década de 1750 neste negócio. Além

disso, os cunhados de Evaristo também se dedicaram ao trato de animais. Deste

modo, a “produção” feita por Evaristo e outros membros da família tinha boas

possibilidades de saída, através de relações parentais atingiam os centros

redistribuidores.

O negócio dos couros. Outra mercadoria apreciada para contrabando eram os couros. Seguindo

os passos de alguns dos compradores dos couros “produzidos”, percebemos a

14 HAMEISTER. Op cit. pg. 218. 15 A listagem de tropeiros não informa a data que Manuel passou, mas os registros anteriores são de finais

de 1793. 16 WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de Tropas. Curitiba: CD

Editora, 1995.

188

movimentação da mercadoria, as articulações existentes entre os negociantes e

os conflitos resultantes destes negócios.

As referências que dispomos para seguir estas questões estão contidas

nos testemunhos da devassa de 1787. Elas surgem a partir de conflitos entre os

negociantes, que acabaram tendo maior repercussão. Em função disso, dois

negociantes testemunharam na devassa: Nicolau Cosme dos Reis e José Vieira

da Cunha.

O porto da Vila de Rio Grande tinha no couro, durante as últimas décadas

do século XVIII e primeiras do XIX, um dos três mais importantes produtos de

exportação, ao lado do charque e do trigo.17 Em 1787, foram remetidos daquele

porto cerca de sessenta e nove mil quinhentos e setenta couros.18 Entre 1790 e

1794 o couro representou 32% do total das exportações do porto de Rio Grande,

totalizando 692.605$000 réis.19

A área produtiva, de que o porto de Rio Grande dava conta, ultrapassava

os domínios portugueses. A produção de couros feita em territórios espanhóis,

nas cabeceiras do rio Cebollatí, era em boa parte movimentada para aquele

porto. Sobre este ponto, são vários os relatos, como os dos demarcadores

Andrés de Oyarvide e Félix de Azara, o do cronista Concolorcorvo, entre as

muitas fontes que apontamos. Todavia, os couros extraídos nos domínios

espanhóis e remetidos para Rio Grande, eram “socialmente produzidos”, através

da intervenção do bando neste mercado. A questão é que muitos negociantes

tinham problemas com esta forma de “produzir” os couros, ou tentaram fazê-lo

pessoalmente, sem os elaborados relacionamentos que davam base ao bando.

Em 1784, Rafael escrevia ao Vice-rei contando algumas de suas obras.

Entre elas, destacava o combate ao contrabando que estava fazendo, com a

prisão de alguns contrabandistas e o embaraço a certos negociantes que

estavam dando cobertura ao trato ilícito:

“...mandei recolher a esta vila uns tantos comerciantes que surraticiamente [sic] se foram unindo em um lugar que eles mesmos inventaram o título de Povo novo, que como distante das guardas se

17 OSÓRIO. Op cit. pg. 180. A autora faz uma análise quantitativa demonstrando a importância dos

couros na economia colonial e suas flutuações. 18 DL 47, 05. IHGB. 19 AHU-RS. Cx. 3. doc. 291.

189

aproveitavam tanto eles como os contrabandistas espanhóis de fazer o negócio clandestino.” 20

Já Manuel José de Alencastre tinha outra opinião. Disse, também ao

Vice-rei, que Rafael só desalojara (literalmente) os negociantes do Povo Novo

porque queria ser o único a negociar “...com os ditos espanhóis, para cujo fim

tinha uma loja de fazendas bem sortida em uma das suas estâncias do

Piratini.”21 Este fato foi tratado por várias testemunhas na devassa de 1787.

Cinco testemunhas confirmaram a expulsão, sendo que duas apontaram que

Rafael possuía uma loja de fazendas na Estância do Pavão. Uma das

testemunhas foi mais detalhada: “...o coronel Bandeira tinha na sua estância

do Pavão em um dos quartos da sua casa algumas fazendas que as vendia

indiferentemente a quem queria comprar...”.22

Ao que parece, o empenho de Rafael em deslocar aqueles negociantes era

mais uma forma de constranger seus concorrentes. Mas isso não apenas por um

cálculo de curto prazo, de forma a garantir o mercado de fazendas secas, mas

possivelmente porque Rafael sabia o quanto aqueles negociantes poderiam

crescer com a movimentação de mercadorias clandestinas.

E é possível que esta mesma motivação de Rafael tenha sido

demasiadamente prejudicial aos negócios de José Viera da Cunha. Em certa

ocasião, Rafael dera ordem para arrombar a porta de Viera da Cunha e fazer

uma apreensão de couros contrabandeados. Este ponto foi perguntado na

devassa de 1787 e nenhuma testemunha sabia ao certo o motivo ou como Viera

da Cunha conseguira passar com aqueles couros pelas guardas. O próprio

sujeito acabou esclarecendo a dúvida:

“...o coronel Rafael Pinto Bandeira fora a casa dele informante e lhe confiscara quatrocentos couros que ali tinha, e que para os passar na guarda do Beca tinha ele informante dado ao furriel de cavalaria ligeira fulano Figueiredo que naquele tempo comandava a dita guarda a quantia de vinte três mil réis em fazendas que o dito furriel tomou, e em alugueres de uma casa dele informante em que morava o dito furriel, de que ele informante se deu por pago.”23

20 Cód. 104. Vol. 06. pg. 122. Arquivo Nacional. 21 Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. 22 Depoimento de Antonio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 334v. Arquivo Nacional. 23 Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. Pg. 336v. Arquivo

Nacional.

190

Segundo Manuel José de Alencastre, Rafael apreendera os couros por

uma desavença com Vieira da Cunha. Rafael teria ficado sem mercadorias para

um comprador espanhol, e recorrera a loja de Viera da Cunha para suprir a

necessidade de seu “cliente”. Passado um ano sem Rafael pagar as mercadorias

de que tinha se servido, Vieira da Cunha simulou uma dívida, e pediu o

pagamento. Depois de várias negociações, envolvendo diversas mercadorias de

troca (inclusive um barco) os dois chegaram a um acordo. Por fim, Rafael devia

dar uma parte em dinheiro e Vieira da Cunha o fora cobrar. Seria este, segundo

Alencastre, o motivo do confisco dos couros. Vieira da Cunha confirmou as

informações de Alencastre em seu depoimento, sem associar, contudo, as

dívidas com a apreensão de couros.

Apesar dos conflitos com Rafael, Vieira da Cunha teve uma trajetória

muito interessante. Em 1784 era acusado de fazer contrabando de couros.24 Em

1787, fora chamado para esclarecer outras acusações que lhe eram imputadas,

chegando mesmo a confirmar algumas delas.25 Em 1789, por motivos que

ignoramos, Viera da Cunha fizera seu testamento, ainda que tenha morrido em

1810, mais de vinte anos passados. Quando de sua morte, seus herdeiros pedem

uma revisão do testamento, pois tal papel havia sido feito quando o defunto

“...se achava pobre, e atrasado em seus negócios...”26. Diziam isso pois, ao

morrer Viera da Cunha deixava mais 80:000$000 réis em bens e dívidas, sendo

uma das maiores fortunas do Rio Grande de São Pedro.27 Mas no momento em

que fazia seu testamento a situação era outra. Às voltas com o contrabando,

metido em conflitos com um dos homens mais poderosos daquelas terras, Viera

da Cunha não fazia idéia do futuro promissor que teria. Provavelmente buscava

aliar-se a outros comerciantes de seu porte para garantir a continuidade dos

negócios. Esta aliança poderia ser feita com José da Rosa Gomes, também

homem de negócio, e igualmente envolvido em contrabandos em canoas pela

Lagoa Mirim. Ao fazer seu testamento, Vieira da Cunha apontara a Rosa Gomes

como um de seus testamenteiros, logo após sua esposa e seu irmão.

24 Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg. 140. Arquivo Nacional. 25 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional. 26 Inventário de José Vieira da Cunha. 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Jaguarão. APERGS. 27 OSÓRIO. Op cit. pg. 242.

191

De José da Rosa Gomes pouco sabemos. Mas ele andava em sociedade

com um tal José da Rosa Fraga em pelo menos uma viagem de contrabando, por

volta de 1784.28

Não conseguimos verificar como ocorria o despacho dos couros

negociados por estes sujeitos para o Rio de Janeiro. Não sabemos se eles

mesmos vendiam ou se eram intermediários na transação. O único indício que

obtivemos é uma referência do inventário de Viera da Cunha a uma dívida sua

no valor de 12:035$418 réis a Tomás Gonçalves, da cidade do Rio de Janeiro.

Porém, não sabemos exatamente a que se referia esta dívida.29

Outro negociante interessado em couros, que teve dificuldades em função

da presença de Rafael Pinto Bandeira, fora José Rodrigues da Fonseca. Importa

assinalar que tivera uma embarcação sua, destinada ao contrabando,

apreendida por Rafael. Manuel José de Alencastre denunciou o uso que Rafael

fizera do barco após a apreensão. Segundo ele, o comandante o teria usado em

seu negócio pessoal de contrabando. Contudo, este é um ponto controverso, já

que nenhuma das testemunhas que trataram disso na devassa de 1787 sabia

destes ocorridos.30

Testemunha na devassa de 1787, Nicolau Cosme dos Reis também é um

caso oportuno. A primeira referência que temos dele é de uma negociação que

fizera com Vasco Pinto Bandeira, de quem comprara alguns couros da

“campanha”, os quais, como já vimos, foram “produzidos” por Vasco para

conveniência de Nicolau. Ao que parece, pelo tipo de negociação que fizera com

Vasco, Nicolau deveria agir como um grande “receptador” de couros, os quais

deveria despachar para o Rio de Janeiro. Não temos nenhuma evidência da

participação direta dele no comércio ilícito. Mas o fato de manter negócios com

um Pinto Bandeira já pode ser bastante indicativo de suas relações. Durante o

conflito com os castelhanos no início do século XIX, Nicolau “assiste” a um

navio luso de guerra chamado “Ércules [sic]”. A documentação dá a entender a

intimidade do sujeito com o trato marítimo, do que podemos concluir que se

tratasse mesmo de um negociante com um alcance maior, com vistas ao porto

28 Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg. 140. Arquivo Nacional 29 Inventário de José Vieira da Cunha. 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Jaguarão. APERGS. 30 Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.

192

do Rio de Janeiro. Desta “assistência”, Nicolau procurou tirar o maior proveito,

fazendo vários pedidos de promoções militares e honrarias diversas, como o

“hábito de Cristo”.31 Não sabemos se conseguiu estas honras, mas certamente

ele fora capitão de ordenanças, o que já não era desprezível.

Da origem de Nicolau nada sabemos. Mas é patente sua preocupação em

se inserir junto à elite local. O casamento de seu filho José, por exemplo, foi

muito bem planejado. A esposa, Maria Teodora Alencastre, era neta, por parte

de pai, de Manuel José de Alencastre, do qual já falamos inúmeras vezes. Por

parte de mãe, Maria era neta de Antonio Rodrigues Barbosa,32 um sujeito

próximo a Rafael Pinto Bandeira, que acobertou contrabando na década de

1770, quando ainda era soldado.33 Deste modo, Nicolau construía raízes mais

sólidas para seus negócios.

Até aqui estamos pontuando práticas comerciais já conhecidas, entre os

portos de Rio Grande e Rio de Janeiro,34 e que, como vimos, têm relação direta

com o comércio ilícito. Existia ainda outra rota. Sobre ela temos poucas fontes,

mas pode nos revelar a dimensão das relações criadas e mantidas pelo “bando”

em uma esfera comercial maior. Trata-se de ligação com o porto de Montevideo,

nos domínios espanhóis e aos comerciantes ali sediados.

Quem nos entrega o jogo é o próprio Vice-rei do Brasil, Luís de

Vasconcelos, em 1784, quando faz uma reclamação a Rafael Pinto Bandeira, a

pedido de um negociante de Montevideo chamado Juan Pedro de Aguirre. O tal

Aguirre reclamava um importe vultuoso em “prata forte”, que fora entregue a

Jerônimo Xavier de Azambuja para que fosse remetido ao Rio de Janeiro.

Jerônimo enviara apenas uma parte do dinheiro combinado. Não sabemos a

quem era dirigido o importe. Mas pode ser um bom indicativo das relações

existentes entre negociantes de grosso trato espanhóis35 e sujeitos ligados ao

bando liderado por Rafael Pinto Bandeira.

31 AHU-RS. Cx. 7. Docs. 493 e 498. 32 Revista Genealógica Latina, Numero 6. 33 Depoimento de Antonio de Araújo. Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316. 34 OSÓRIO. Op cit. 35 Juan Pedro de Aguirre é citado em TEJERINA, Marcela. La apertura comercial del Río de la Plata a

fines del Antiguo Régimen y su impacto en la plaza mercantil porteña: la presencia portuguesa. Seminario Mercantilismo y comercio en el mundo ibérico. Universidad Argentina de la Empresa, Buenos Aires. 2001. pg. 3. nota. 8.

193

Finalmente, há a referência do ingresso de escravos e fumos no contra-

fluxo dos couros. Essa acusação é feita nos “Capítulos contra Rafael Pinto

Bandeira”36 e em outros documentos, como um relatório feito por um oficial da

administração lusa, Manuel Antonio de Magalhães.

Este comércio existente entre a fronteira e outras partes da Colônia é um

indicativo da importância, não apenas da região, mas do contrabando numa

esfera maior. Neste sentido, a fronteira não tinha apenas importância

geopolítica dentro do Império português, mas também uma importância

econômica, como fornecedora de várias mercadorias, entre as quais animais e

seus derivados, fossem eles de contrabando ou não. Não apenas os moradores

da fronteira que percebiam nesta atividade ilícita uma fonte de renda. Pessoas

como os moradores da Lapa também dependiam deste comércio de animais,

ainda que ignorassem que eram “produzidos” de forma peculiar.

36 Cód. 104. Vol. 06. pg. 143.Arquivo Nacional.

194

GRÁFICO 8

195

Poder Local e Império.

O jogo da reciprocidade era moeda corrente nas mãos da família Pinto

Bandeira. Essa grande rede de relacionamentos que Rafael liderava tinha uma

grande extensão e um especial impacto social na fronteira. Seu comando, a

possibilidade de levantar recursos e seu reconhecimento e liderança locais não

poderiam ser desinteressantes para a Coroa. Na manutenção das possessões ao

sul da América Portuguesa, tinha na figura de Pinto Bandeira um importante

aliado, alguém capaz de mobilizar seus recursos para defesa dos interesses da

Coroa como já havia feito antes, durante a ocupação espanhola em Rio Grande.

Todavia, esta não foi uma posição homogênea. As atitudes mantidas por

autoridades lusas, tanto na fronteira, no Rio de Janeiro ou na Corte, foram

diversas, e mais de uma vez Rafael esteve em conflito com representantes da

Coroa.

Durante a década de 1770, Rafael andou muito ocupado em guerras,

contrabandos e arreadas, o que provocou reações diversas por parte das

autoridades lusas. Por seu lado, o governador Marcelino de Figueiredo, ao que

parece, nunca entrou em conflito com Rafael até os anos finais da década. Já o

Marquês do Lavradio, desde 1774 já tinha seus problemas com Rafael, no qual

não via as qualidades que fizeram a honra do pai, Francisco Pinto Bandeira. 37

Enquanto isso, na Corte, os pedidos de Rafael para receber o “Hábito de Cristo”

e uma patente de Coronel, foram rapidamente concedidos.38 Surgiram, contudo,

conflitos com o governador Marcelino de Figueiredo39 no final da década. Por

uma série de razões, entre as quais descaminho da Fazenda Real e contrabando,

Marcelino acabou colocando Rafael na cadeia.

Esta prisão sofreu críticas de várias autoridades da administração. Em

carta do Vice-rei Luis de Vasconcelos ao Secretário da Marinha e Ultramar,

percebe-se a forma cotidiana que a negociação entre súditos e o governo

tomava: “...no meu conceito aquele Governador tinha procedido com paixão, e

excesso de jurisdição, prendendo um Coronel por culpas, que por

37 AHU-RS. Cx. 3. Doc. 189. 38 F1244. 144v. AHRS. 39 Marcelino era português, e veio para o Brasil, com o auxílio de Pombal, para escapar da pena de morte

por ter assassinado um oficial inglês. Maiores informações em SILVA. Op cit.

196

verdadeiras que fossem, não pediam uma tão pronta

providencia...”40 Esta desautorização da atitude do governador nos indica um

pouco a maneira como a coroa fazia vistas grossas para certos tipos de

contravenção. Enquanto não houvessem excessos, estava salvaguardada a ação

do sujeito. Numa sociedade onde a desigualdade define o lugar dos homens, isso

variava muito conforme o culpado. Bernardo Balecho, um dos contrabandistas

detidos por Rafael, não teve direito a recurso algum, sendo diretamente preso.

Rafael foi remetido para o Rio de Janeiro, a ser julgado por um

“Conselho de Guerra”.41 Enquanto o processo se desenrolava, Marcelino de

Figueiredo ia dando sinais de desgaste cada vez mais evidentes. Em carta ao

Marquês do Lavradio, manifestava sua situação embaraçosa, de ter que admitir

aquilo que considerava abusos de poder por parte de pessoas não autorizadas:

“não é possível que sem um milagre continuo se conserve um Continente que alias podia ser talvez a melhor Capitania do Brasil em que o Governador não tem a autoridade que Sua Majestade lhe confere”.42

Em função destes problemas, Marcelino não andava bem: “...tenho

sofrido tanto até o ponto de estar velho antes do tempo, e cansado, e

amofinado; e verem-se agora autorizados os maiores ladrões...”. Chegou a

ponto de implorar ao Vice-rei: “...rogo a Vossa Excelência concorra para me

tirarem daqui...”.43 Em outra carta, queixava-se da:

“...falta de respiração e achaque no peito, além de estar cheio de impigens, e o maior embaraço é ter uma rótula na virilha esquerda que me não deixa andar sem trabalho e sem funda, e que por isto posso dizer que quebrei no negócio que cá vim fazer.”44

Este tipo de conflito, entre o governador e o “bando” não foi exclusivo da

fronteira. Também é visível no Rio de Janeiro o século XVII, quando o

governador Francisco Soutomaior entrou em sério conflito com grupos

poderosos da terra, como a família Sá. Mais para o final do século, o governador

40 RMAPRGS. pg. 11-12. Grifo nosso. 41 Tribunal Militar. Cf. HESPANHA. História de Portugal. Op cit. pg. 162. 42 RMAPRGS. pg. 199. Grifo nosso. 43 RMAPRGS. pg. 200. 44 Idem. Grifo nosso.

197

Castro e Caldas se queixava do mesmo problema.45 Neste sentido, não há como

afirmar que são problemas resultantes do contraste entre o projeto racional

Pombalino e os velhos costumes locais. Estes desentendimentos são fruto da

contínua negociação entre o poder central e as elites locais, que muitas vezes

assumia formas mais conflituosas.46

Uma figura interessante para contrastar com Marcelino seria Inácio

Osório Vieira, o provedor da Fazenda. Osório Vieira veio com sua família de

Portugal em meados do século, conseguindo logo um posto de escrivão em 1752.

Foi através de pequenos postos galgando posições, até tornar-se Provedor em

176547 sendo confirmado apenas em 1768.48

Ao longo de seus mais de vinte anos como Provedor da Fazenda Real,49

Osório Vieira não titubeou em promover investigações, fazer devassas e enviar

informações para o Vice-rei. Mais de uma vez ameaçou aos transgressores,

ainda que sempre de forma genérica, sem acusações específicas. De certo modo,

ele sempre estivera preocupado com o contrabando e não com os

contrabandistas, especificamente. Ao contrário de Marcelino de Figueiredo,

Osório Vieira não comprou briga com ninguém em particular. Fazia as vezes de

Provedor zeloso, perseguindo, em tese, aos contraventores, mas nunca a ponto

de colocar em risco sua situação de Provedor. Mas não estamos, com isso,

afirmando que fosse cúmplice, ou como se dizia, consentidor dos contrabandos.

Fazia isso para preservar sua posição e seu posto. Até onde sabemos, ele foi

muitas vezes refúgio de vítimas do “bando”, como Manuel José de Alencastre,

que uma vez perseguido por Custódio Ferreira, foi bater a porta do provedor,

sendo preso, contudo, antes disso, por ordem de Rafael Pinto Bandeira.

45 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite

senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pg. 59 e 60.

46 GREENE, Jack. Negotiated authorities. Essays in colonial political and constitutional history. Charlottesville & London: The University Press of Virginia, 1994. e PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Européias dos Séculos XVI e XVII. Penélope - Fazer e desfazer a história. v. 6 (1991). p. 119-144.

47 F1243. 23. AHRS. 48 F1243. 139v. AHRS. 49 Osório Vieira pediu afastamento em 1790, ainda que tenha sido consultado e mesmo referido como

Provedor nos anos seguintes.

198

Osório Vieira agia de maneira contida como uma garantia de

sobrevivência. Até onde sabemos, ele não possuía articulações sociais que lhe

garantissem outros meios, e tampouco temos registro de que tenha usado de sua

posição privilegiada em benefício próprio. Não temos registro de posses suas,

além de alguns escravos que lhe serviam.50 Defrontar-se com o “bando” era uma

opção, seguida, com efeito, por Marcelino, mas profundamente suavizada por

Osório Vieira. Este último obteve sucesso em sua estratégia, garantindo seu

posto em meio a duas décadas conturbadas, nas quais se revezaram quatro

governadores, entre os quais Marcelino de Figueiredo. Quando este último saia

de seu posto, Rafael Pinto Bandeira estava voltando, solto por ordem da

Rainha.51

Enquanto Rafael era julgado, um novo Vice-rei estava assumindo: Luís de

Vasconcelos e Souza. As relações entre a nova autoridade e Rafael iniciaram-se

boas, com um certo posicionamento favorável de Vasconcelos a Rafael durante o

Conselho de Guerra.52 Contudo, estas foram tomando um outro desdobramento

e, já em 1784, estava claro que não havia um entendimento muito bom entre os

dois.53 Além disso, Vasconcelos ordenou várias investigações sobre as atitudes

de Pinto Bandeira, ainda que sempre de forma dissimulada. Era uma forma de

que o Vice-rei se valia para reger sem aumentar os problemas com os poderes

locais.

Neste tempo, Rafael contava com um governo favorável na fronteira.

Sebastião Cabral da Câmara, que assumira em 1780, nunca se opôs de modo

algum ao “bando”, chegando inclusive a tentar embargar investigações em 1784,

quando o próprio Vice-rei lhe tomou satisfações. 54 Em carta ao Secretário de

Estado e Ultramar, Vasconcelos se queixava da complacência daquele

governador. Sebastião Cabral da Câmara ficou vinte anos neste posto,

revezando-se no poder com dois governadores interinos: Joaquim José Ribeiro

da Costa e o próprio Rafael Pinto Bandeira. Durante este tempo houve nova

troca de Vice-rei, e o novo regente, o Conde de Resende, assumia seu posto logo

50 Dito por Fábio Kühn, em comunicação pessoal. 51 F1244. 188v. AHRS. 52 RMAPRGS. pg. 11-12. 53 Carta de Rafael Pinto Bandeira a Luís de Vasconcelos. APUD: SILVA. Op cit. pg. 122. 54 Cód. 104. Vol. 6. Pg. 560. Arquivo Nacional.

199

após a volta de Rafael Pinto Bandeira da Corte, onde havia sido feito Brigadeiro

pela Rainha.

De fato, não temos evidências concretas de que Rafael tivesse boas

relações com Resende. Mas tampouco temos a mínima referência de que

houvesse algum atrito. Apenas uma carta, escrita por Manuel Marques de Souza

em 1795, sugere que Rafael fosse “...protegido...” daquele Vice-rei. 55 A mesma

coisa acontecia com o Secretário de Estado e Ultramar, Martinho de Melo e

Castro. É certo que Luís de Vasconcelos informava com vigor ao dito Secretário

dos “abusos” feitos por Rafael, sem que tenhamos a mínima ordem de controle

por parte deste oficial de Lisboa. Pelo contrário. Silva nos apresenta um

documento em que o Secretário de Estado e Ultramar dá ordem ao Vice-rei

(ainda Luis de Vasconcelos) para que abone o valor de dois cavalos ao agora

Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, e somente a ele, pois “...só o suplicante se faz

merecedor pelos seus relevantes serviços.”56

Um outro aspecto das relações entre as autoridades régias e o “bando”

foram as remessas e o cuidado que Rafael Pinto Bandeira manteve com os

“objetos da história natural”. Em algumas das cartas que ao Secretário de

Estado e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, e mesmo ao Vice-rei, Luis de

Vasconcelos, Rafael comenta que tem se dedicado a buscar coisas daquilo que

chama de história natural, como se fosse inquirido sobre isso, e estivesse

respondendo com satisfação: “A remessa das folhas para essa cidade

continuarei como tenho feito enquanto houverem os insetos e da mesma forma

o que puder adquirir para a estória natural do que é falto este continente.”57.

Em 1792, ele anunciou que estava velho e pedia para se aposentar de seu

cargo, além de informar que uma galera feita no Rio Grande de São Pedro

estaria em breve chegando à Lisboa, com “algumas coisas curiosas para a

história natural”.58

A partir da década de 1770 despertou em Portugal um grande interesse

pelo estudo das potencialidades existentes no Império Português, com o

55 AHU-RS Cx. 3. doc. 291. 56 Carta de Martinho de Melo e Castro a Luis de Vasconcelos. APUD: SILVA. Op cit. pg. 136. 57 Cód. 104. Vol. 06. pg. 122-127. 58 AHU-Brasil Limites. cx. 3 doc. 253.

200

incentivo a estudos sobre elementos científicos e mesmo coleta de objetos em

todos os recantos dos domínios portugueses. Neste sentido, foi criada a Real

Academia das Ciências de Lisboa, que “...funcionou como um grande centro de

troca de informações coletadas pelos vários oficiais régios encarregados

dessas expedições pelos sertões do Império.”59

Um dos agraciados, Luis de Vasconcelos, poderia mesmo se impressionar

com tal atitude. Ele não somente se interessava por tais assuntos, como

encarregou ao naturalista José Mariano da Conceição Veloso de fazer um

levantamento denso da flora existente no Rio de Janeiro, entre 1783 e 1790, que

acabou resultando na obra Flora fluminensis. Quando Vasconcelos voltou para

Portugal, trouxe consigo Conceição Veloso e todas as amostras que puderam

recolher.60 Não sabemos se Martinho de Melo e Castro tinha também estes

interesses, mas, de qualquer maneira, estes “objetos” iriam acabar na Academia

de Ciências, sendo igualmente convenientes.

Rafael enviava objetos cuja curiosidade aumentava na metrópole,

demonstrando não apenas ser um súdito atento aos novos interesses, mas

também generoso. Ao despedir-se do cargo, enviava um refinado presente,

digno dos seus agraciados.

59 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder político e administração na formação do complexo

atlântico português. IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2001. pg. 311.

60 Ciência em Portugal. Instituto Camões. Site www.instituto-camoes.pt/cvc/cultura.html. Consultado em 24-12-2002.

CONCLUSÃO

A investigação vem se aproximando do final. É chegada a hora de emitir

um parecer conclusivo.

Observamos que avaliar o contrabando foi uma tarefa difícil, tanto para

as autoridades lusas como para os súditos. Diante de um impasse entre manter

os territórios da fronteira e coibir o contrabando, as autoridades lusas muitas

vezes acabaram abrindo mão do segundo, até porque a Coroa portuguesa não

dispunha de recursos per si para garantir a defesa de seus territórios no

ultramar, muito menos para reprimir as atividades ilegais com o zelo devido.

Neste sentido, havia uma necessidade contínua de garantir as alianças com as

elites locais, mesmo que isso significasse uma certa permissividade.

O contrabando que estudamos perpassava toda uma sociedade, e

significava, ao mesmo tempo, alternativa de sobrevivência e meio de

diferenciação social. Seu caráter ilegal o tornava interessante apenas para uma

determinada elite que através de relações de poder, parentesco e reciprocidade,

articulava boa parte daquela população na forma de um “bando”, excluindo os

demais desta atividade. Era desta forma que o contrabando se reproduzia e

contribuía para reproduzir as estruturas sociais.

Promovido em um espaço onde a guerra acontecia paralelamente à

criação de laços socioeconômicos entre os mesmos agentes, o contrabando era

determinado por esta situação, que aparentemente contraditória, tinha sentido

para quem a vivia. Esta área, por nós chamada de fronteira, era caracterizada

pela existência de um controle relacional, que permitia o ingresso de

determinadas mercadorias a poucos homens “escolhidos”.

Observando de perto a alguns destes sujeitos, percebemos que havia

relações bastante sofisticadas por trás de seus negócios. Estas articulações

202

envolviam oficiais da Coroa, peões, escravos, militares, lavradores, estancieiros,

entre outros, que estavam unidos sob uma organização hierarquizada, que tinha

como líder Rafael Pinto Bandeira, membro da elite local, descendente dos

conquistadores e um dos mais poderosos e aparentados da terra.

Este “bando” estava ancorado numa base social muito forte. Havia entre

esta base (composta de peões, escravos e soldados) e a elite um continuum de

relações de reciprocidade, onde o acesso ao trabalho sazonal (que significava

ganhos inesperados), à terra, a promoções militares e à proteção eram moeda

corrente, tendo como contrapartida o apoio e a fidelidade destes sujeitos. Esta

reciprocidade era, então, excludente, privilegiando o acesso de poucos a

determinados bens, o que contribuía para reproduzir a desigualdade.

O couro e as bestas muares eram as principais mercadorias

contrabandeadas. Uma vez produzidas nos domínios espanhóis, elas eram

despachadas em direção aos territórios lusos. Neste percurso ocorria a

“produção social” destas mercadorias, que de contrabando passavam a ser

produtos legais e comercializáveis. Esta transformação ocorrida na mercadoria

era determinada pelos relacionamentos dos contrabandistas. O “bando”, através

de sua organização, possuía uma forma sofisticada e privilegiada de promovê-la.

Esta mesma organização garantia o escoamento da “produção” para

outros pontos do Império, e se dava também através do estabelecimento de

relações entre membros do bando e negociantes de outras localidades, o que

incluía casamentos e trocas de presentes. Percebemos, assim, que tal mercado

era dominado por relações muito mais complexas do que a compra e a venda.

Ao encerrar este trabalho, gostaríamos de apontar alguns objetos que

surgiram durante a pesquisa. O mercado de gado entre a fronteira e Curitiba (e

Sorocaba) é algo que pode render bons frutos e para o que há grande

documentação. Da mesma forma, não apenas o negócio de couros para o Rio de

Janeiro, mas seu contrafluxo, na forma de escravos e fumo, poderia ser mais

estudado, já que pode revelar aspectos novos daquela economia. Mas isso fica

para o futuro.

Lista de Ilustrações Figura Descrição pg.

1 Mapa: “fronteiras” do Rio Grande e do Rio Pardo 25

2 Mapa: “Fronteira” dos Contrabandistas 28

3 Mapa: Trajeto entre Santa Fé e Minas 99

4 Organograma representando o Bando de Rafael Pinto Bandeira 151

5 Mapa: Caminhos Terrestres 164

6 Mapa: Rota fluvial de contrabando de couros 171

7 Mapa: Negócios da “Fronteira” com outras áreas coloniais 194

Lista de Siglas

Sigla Descrição

AHU Arquivo Histórico Ultramarino.

AHU-RS Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate - Rio de Janeiro

AHU-RJ Arquivo Histórico Ultramarino - Projeto Resgate – Rio Grande do Sul.

IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

AN Arquivo Nacional.

BN Biblioteca Nacional.

ACMPA Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre.

RMAPRGS Revistas do Museu e Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

AESP Arquivo do Estado de São Paulo

AGN Archivo General de la Nación

APERGS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

AHRS Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul

AHEX Arquivo Histórico do Exército Brasileiro

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