indigenas e constituinte 88

Upload: leonardo-garcia-carneiro

Post on 03-Jun-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    1/26

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    O DIREITO DOS NDIOS NO BRASIL A TRAJETRIA DOS

    GRUPOS INDGENAS NAS CONSTITUIES DO PAS

    DANIELLE BASTOS LOPES1UERJ

    ______________________________________________________________________

    RESUMO:Nosso artigo apresenta a representao das culturas indgenas na histria das

    constituies do pas. Neste caso, interessante observar que desde a primeira Carta Magna, aConstituio do Imprio do Brasil,outorgada por Dom Pedro I em maro de 1824, at aatual Carta de 1988, os ndios foram considerados para o Estado como uma categoriatransitria, perodo no qual era obrigatria a integrao dos silvcolas comunhonacional. Somente com a Constituio de 1988, promulgada aps um perodo de fechamento

    poltico, que os direitos indgenas foram inscritos pela primeira vez numa constituiofederal. Neste caminho, debruamo-nos em perguntas sobre: Como foi o processo deconstruo da nova Constituio? Houve, de fato, alguma influncia do movimento indgenaem seu texto final? Em sntese, a consequncia da trajetria dos direitos indgenas ao longo dahistria o nosso objetivo central. Para tanto, estivemos nos arquivos do Congresso Nacional edemais arquivos nacionais. As fontes encontradas dentro do Congresso muitas vezes estiverammisturadas a outros segmentos; sendo assim, foi preciso selecionar as partes destinadas aos

    povos indgenas dentro das atas e relatrios, e buscar, nos relatos orais de um dosparticipantes, lvaro Tukano, liderana do movimento indgena, e do jornalista Jos RibamarBessa Freire, as memrias do perodo.

    PALAVRAS-CHAVE:Direitos indgenas; Movimento Indgena; Constituio Brasileira.

    ABSTRACT:Our article presents the representation of indigenous cultures in the history ofthe constitutions of the country. Its worthhighlighting that sinceBrazilsfirst Magna Carta --"Constituio do Imprio do Brasil", granted by Dom Pedro I on March 1824 -- until the 1988Constitution, currently in effect, indigenous people were considered by the state as a transitorycategory, during which integration to the national community was mandatory. The 1988

    Constitution, enacted after a period of political closure, was the first to dispose aboutindigenous rights. Therefore, we work with the following questions: How was the process ofestablishing the new constitution? Did the Indigenous Movement have actual influence over the

    final text? I.e., our main goal is to investigate the results of the trajectory of indigenous rightsthroughout history. In order to do so, we visited the National Congress archives and othersarchives. The researched files often embodied other subjects, so it was necessary to screen

    proceedings and reports to find the sections about indigenous peoples. In interviews withlvaro Tukano (indigenous leader) and the journalist Jos Ribamar Bessa Freire we soughtmemories of the period.

    1Doutoranda no Programa de Ps Graduao em Educao da UERJ (PROPED - UERJ) -Universidadedo Estado do Rio de Janeiro; Mestre em Histria Social pelo PPGMS -UERJ. Pesquisadora do grupo

    Currculo, Cultura e Diferena coordenado pela professora Dr. Elizabeth Fernandes Macedo. E-mail:[email protected] .

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    2/26

    84

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    KEYWORDS:Indigenous Rights; Indigenous Movement; Brazilian Constitution.

    ______________________________________________________________________

    No me queriam deixar entrar no Congresso. Pediramdocumento. Minha orelha furada - esse o documento(RAONI MENTUKTIRE apudLACERDA, 2008, p. 206)2.

    Introduo

    Quando vasculhamos dentro dos estudos histricos, ainda nas

    primeiras dcadas do sculo passado, podemos observar que a questo

    indgena esteve quase sempre centrada no perodo colonial, poucas

    eram as reas em exceo Antropologia que analisavam o ndio em

    seu aspecto contemporneo. A partir dos anos 70, com o alargamento

    do interesse sobre a chamada Histria dos Vencidos - a histria dos

    povos colonizados, como a dos povos africanos, comunidades

    quilombolas e, por sua vez, das sociedades amerndias -, foramganhando novas pesquisas e mais espao no meio acadmico. Seguindo

    esta abertura, apresentamos um estudo sobre as questes indgenas em

    seu aspecto contemporneo, analisando a influncia da participao

    indgena no processo de construo da atual Constituio, ocorrido nos

    anos 80 em contexto de (re)abertura democrtica, aps

    aproximadamente duas dcadas de fechamento poltico em um governo

    ditatorial.

    Ao analisar brevemente a legislao indigenista inscrita nasconstituies anteriores, percebemos que durante 500 anos o Estado

    colonial portugus, e depois o imperial e republicano, considerou as

    etnias indgenas como categorias transitrias ou em extino (PACHECO

    DE OLIVEIRA, 2006, p. 25). Com a promulgao da Constituio de 1988

    esse quadro muda expressivamente, e a partir de sua promulgao os

    ndios passam a ter direitos sobre a terra, a lngua, a educao e a

    2Fala de Raoni Mentukire na Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    3/26

    85

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    cultura. Neste caminho, debruamo-nos sobre as perguntas: Como foi o

    processo de construo da nova Carta? Houve, de fato, alguma

    influncia indgena em seu texto final? Se houve, quais foram as

    influncias dos ndios neste processo? Em sntese, a consequncia daparticipao indgena no processo Constituinte o nosso objetivo

    central.

    Para buscar respostas para essas questes, estivemos nos

    arquivos do Congresso Nacional e na sede da FUNAI (Fundao Nacional

    do ndio) em Braslia. As fontes encontradas dentro do Congresso

    localizam-se misturadas a outros segmentos, como a questo do negro

    e do deficiente fsico e mental, uma vez que os trs grupos foram

    votados em uma mesma Comisso Temtica. Sendo assim, foi precisoselecionar as partes mais importantes destinadas aos povos indgenas

    dentro das atas, relatrios e regimentos internos; e buscar, nos relatos

    orais de um dos participantes, lvaro Tukano, liderana do movimento

    Unio das Naes Indgenas, e no relato do jornalista Jos Ribamar

    Bessa Freire, as memrias do perodo.

    O primeiro entrevistado pertencente etnia Tukano, viveu at os

    vinte anos numa aldeia chamada So Francisco, no Alto Rio Negro, no

    municpio de So Gabriel da Cachoeira. Saiu de sua aldeia para podercontinuar os estudos na capital. Juntamente com outros ndios

    estudantes da UNB (Universidade Nacional de Braslia), formou a

    primeira entidade indgena organizada pelos prprios ndios, a Unio

    das Naes Indgenas (UNI), e foi tambm responsvel pela participao

    indgena na Constituinte. Nestes termos, a Unio das Naes Indgenas

    considerada a pioneira no que intitulamos nesta pesquisa como:

    movimento social indgena.

    O segundo entrevistado Jos Ribamar Bessa Freire, jornalistaresponsvel pela criao do jornal Porantim (o primeiro a realizar

    matrias exclusivamente relativas aos ndios no pas) e presidente do

    Partido dos Trabalhadores no Amazonas (PT - Amazonas). O peridico

    cobriu no s o processo de criao do movimento indgena, como

    todos os acontecimentos ocorridos no perodo Constituinte.

    A partir das entrevistas, foi possvel relacionar o relato das fontes

    orais com o material encontrado no Congresso e demais obras

    bibliogrficas. Todavia, outras fontes, como a entrevista dos

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    4/26

    86

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    congressistas, setores de grupos opositores participao dos ndios na

    Constituinte, ou mesmo a entrevista de um maior nmero de

    representantes indgenas, no puderam ser esgotadas neste trabalho.

    No entanto, neste esforo, este artigo dividiu-se nas seguintes partes:(1) no primeiro momento realizamos uma breve trajetria histrica da

    representao dos povos indgenas nas constituies do pas; (2) no

    segundo, estudamos as bases sobre como se deram as polticas

    indigenistas e sua relao com os militares; (3) num terceiro momento

    analisamos a criao do movimento indgena no Brasil e sua relao com

    setores considerados mais progressistas da Igreja Catlica; e, (4) por

    fim, na ltima parte, debruamo-nos sobre a anlise da participao

    indgena e seus aliados na elaborao do texto constitucional final de1988.

    trajetria histrica do termo ndio nas constituies do Brasil

    Neste sentido, logo num primeiro momento, quando estudamos a

    trajetria das constituies brasileiras, nos deparamos com as ausncias

    e limitados espaos para a representao dos grupos indgenas. Aindaque nos escritos de Caminha os ndios tenham sido narrados em uma

    descritividade quase mstica, desde ento as Cartas brasileiras ao longo

    dos sculos cederam poucas linhas para tratar destes habitantes mais

    antigos.

    No perodo colonial, por exemplo, ao analisarmos brevemente sua

    legislao, notria a diferenciao feita pela Coroa Portuguesa entre

    duas categorias: os ndios amigos ou ditos aliados e os inimigos ou

    bravos (BEOZZO, 1983). Os primeiros eram os ndios que atendiam aosinteresses da Coroa e trabalhavam como escravos para as colnias, e os

    segundos eram os resistentes catequese e civilizao3. Em relao

    aos ndios amigos, havia umapoltica intitulada como descimento. O

    descimento era o processo de persuaso dos ndios, sem a utilizao de

    violncia, a se deslocarem de suas terras originais para as aldeias

    3A ideia de civilizao consistia na apropriao do modo de vida e conduta referente aos colonos. Asculturas indgenas deveriam afastar-se do estado selvagem, silvcola. Era a funo da Igreja e,

    sobretudo, do modelo missionrio exercer a funo de doutrinao e afastamento dessas comunidades docarter selvagem na sociedade colonial (BEOZZO, 1983, p. 123).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    5/26

    87

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    localizadas na cercania das colnias portuguesas, isto , os aldeamentos

    propriamente ditos. A poltica se justificava pelo processo de civilizao

    dos indgenas, bem como pela necessidade de disponibilizar o acesso

    mo de obra. Os descimentos foram incentivados e constantes desde oRegimento de Tom de Sousa, de 1547, at o Diretrio Pombalino de

    1757. A liberdade foi garantida em todo perodo colonial aos ndios

    aldeados e amigos, mas a no escravido concedida era dada desde

    que os ndios gentios trabalhassem em um sistema de trabalho

    compulsrio, sem revelia ou contestao aos colonos.

    A escravido de ndios, para ser considerada lcita era somente

    permitida como consequncia da Guerra Justa. A Guerra Justa

    repercutia em momentos de ampla violncia, onde era discutido o quedeveria ser justo ou no justo para captura de um selvagem.O que se

    sabia era que o justo era capturar os ndios no amigos. Em oposio e

    retaliao aos abusos cometidos na colnia brasileira, foram decretadas

    as grandes Leis de liberdade (em 1609, 1680 e 1755), onde a Coroa no

    fazia distino entre amigos e inimigos, atingia a todos

    indiscriminadamente (BEOZZO, 1983).

    No entanto, cabem duas observaes sobre o contexto histrico

    destas leis: a primeira a necessidade de mo de obra barata para obom andamento das propriedades coloniais; a segunda o monoplio,

    pela Coroa, do trfico negreiro, em curso, que se confrontava com a

    escravido indgena - em outras palavras, era a substituio da

    escravido indgena pela escravido negra.

    Entrando no sculo XIX, o vemos marcado por uma

    heterogeneidade em vrios aspectos: o nico que vivencia trs

    regimes polticos (Colnia, Imprio e Repblica) e o primeiro a ganhar

    uma Carta Magna Brasileira. A primeira, a Constituio do Imprio doBrasil, foi outorgada por Dom Pedro I em 24 de maro de 1824; e, assim

    como as seguintes, no teve participao popular para sua

    promulgao, foi omissa em relao aos povos indgenas e somente no

    Ato Adicional de 1834 dispunha que: entre as competncias legislativas

    das provncias, obtm a tarefa de catequese e civilizao dos indgenas

    (CF., 1824, art. 11, p. 5).

    De acordo com Rosane Lacerda (2008, p. 13), havia duas

    correntes de opinio em relao temtica indgena no sculo XIX, j

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    6/26

    88

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    que a mesma se encontrava ausente do texto constitucional do Imprio.

    Tnhamos, de um lado, Francisco Adolfo Varnhagem (1806-1878), o

    Visconde de Porto Seguro, que defendia a necessidade da sujeio dos

    ndios fora brasileira em benefcio da consolidao das fronteiras doImprio. E, do outro, Jos Bonifcio de Andrada e Silva (1763-1838),

    autor do documento Apontamentos para a Civilizao dos ndios Bravos

    do Brasil, que defendia a obrigao moral do Imprio em prover-lhes

    condies para seu ingresso no projeto de unidade nacional. O artigo foi

    proposto como contribuio Carta de 1824, mas nunca acrescentado.

    curioso observar que ainda com algumas discordncias em relao

    poltica mais agressiva de Varnhagem e outra mais protecionista de

    Bonifcio, ambos comungavam da mesma ideia de certa inferioridadesilvcola.

    Anos mais tarde, a Constituio Republicana de 1891 e seu

    apostolado positivista tambm no relatou qualquer citao sobre a

    existncia dos povos indgenas em suas pginas. Os anseios por um

    Brasil progressista e pela repblica que se buscava construir eram

    latentes na depreciao do ndio. Um forte exemplo desse iderio foi

    expresso ainda nos primeiros anos de Repblica, em 1900, na

    comemorao do Quarto Centenrio do Descobrimento do Brasil(BESSA FREIRE, 2009). Realizado no Rio de Janeiro, ento capital do pas,

    o discurso republicano proferido por Andr Gustavo Paulo Frontin4

    (1860-1933) na abertura de cerimnia da Sesso Magna representou

    claramente essa ideia de rejeio. Em seu discurso original, Frontin

    proferia:

    O Brasil no o ndio; este, onde a civilizao aindano se extendeu perdura com os seus costumes

    primitivos, sem adeantamento nem progresso.Descoberto em 1500 pela frota portugueza ao mandode Pedro Alvares Cabral, o Brasil a resultante directada civilizao occidental, trazida pela immigrao, quelenta, mas continuadamente, foi povoando o solo. (...)Os selvcolas, esparsos, ainda abundam nas nossasmagestosas florestas e em nada differem dos seusantecedentes de 400 anos atrs; no so nem podemser considerados parte integrante de nossanacionalidade; a esta cabe assimil-los e, no

    4

    Paulo Frontin (1860-1933) se tornou, em 1919, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, exercendo grandeinfluncia sobre a vida poltica da cidade.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    7/26

    89

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    conseguindo, elimin-los (FRONTIN apud BESSAFREIRE, 2009, p. 187)5.

    Assim, com as palavras cabe assimil-los e, no conseguindo,

    elimin-los, a narrao depreciativa tornava-se o smbolo da recm-

    criada repblica. A concepo de assimilao, que o republicano

    proferia na carta, trazia consigo a noo de incorporao do ndio

    sociedade nacional, rejeitando seus modelos sociais, crenas e

    influenciando as polticas legislativas posteriores. Somente a partir da

    Constituio de 1934 surgem as primeiras linhas dedicadas

    existncia dos ndios em documento oficial. Redigido com escassas

    palavras, o artigo afirmava que os ndios estavam submetidos

    condio passageira de silvcolas, propondo sua incorporao sociedade nacional. Art 5 - Compete privativamente Unio (...) XIX -

    legislar sobre: (...) m) incorporao dos silvcolas comunho nacional.

    E foi a primeira a estabelecer que: ser respeitada a posse de terras de

    silvcolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-

    lhes, no entanto, vedado alien-las(CF., 1934, art. 5).

    Assim, s vsperas da 2 guerra mundial se instaurava no Brasil o

    regime ditatorial do Estado Novo, liderado por Getlio Vargas, que,

    aps fechar o Congresso Nacional para elaborao de novas legislaes,revogou a Carta de 1934, cedendo lugar Constituio de 1937. Deste

    modo, em relao questo indgena, o documento no previu, como

    os anteriores, a incorporao dos ndios sociedade nacional, mas

    tambm no mencionou nada em relao s suas diversidades tnicas.

    Em toda a extenso de seu longo texto, a Carta continha somente um

    nico dispositivo6 que previa o tratamento dispensado s terras

    indgenas: Art. 15 - Ser respeitada aos silvcolas a posse das terras

    em que se achem localizados em carter permanente, sendo-lhes,porm, vedada a alienao das mesmas(CF., 1937, art. 15).

    No entanto, j no perodo do ps-golpe do Estado Novo (Era

    Vargas), foi elaborada a Constituio de 1946, considerada a mais

    avanada at aquele momento, votada em Assembleia Nacional

    Constituinte e promulgada no ms de setembro, sendo considerada

    notadamente um avano da democracia. A bancada Constituinte foi

    5

    Carta da Sesso Magna do Centenrio no dia 4 de Maio de 1900.6O artigo repete praticamente na ntegra o texto anterior redigido na Constituio de 1934.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    8/26

    90

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    elaborada por Eurico Gaspar Dutra, ento presidente e, neste sentido, o

    documento trazia de volta liberdades expressas na Constituio de

    1934, que haviam sido retiradas do texto constitucional de 1937 devido

    ao golpe do Estado Novo. Dentre os dispositivos bsicos queretornavam ao texto depois de um perodo ditatorial estavam: a

    igualdade de todos perante a lei; a inviolabilidade do sigilo de

    correspondncia; a liberdade deconscincia,de crena e de exerccio de

    cultos religiosos; a separao dos trs poderes (legislativo, executivo e

    judicirio); entre outros termos. Entretanto, mesmo com toda a

    campanha otimista que cercava a nova legislao, o texto de integrao

    do ndio comunho nacional da Carta de 1934 foi novamente repetido

    Art. 5. Compete Unio: (...) XV - legislar sobre ((...) r) incorporaodos silvcolas comunho nacional (CF., 1946, art. 5).

    Poucos anos depois, a mesma perspectiva de integrao foi

    predominantemente dispensada no tratamento dado aos ndios pela

    Organizao Internacional do Trabalho (OIT) a partir do documento

    proposto na Conveno n 107, instaurada em 05 de junho de 1957. O

    texto foi o primeiro instrumento internacional relativo aos povos

    indgenas em contexto mundial. Concernente proteo e integrao

    das populaes indgenas e outras populaes tribais e semitribais depases independentes (OIT, 1957, p. 01).

    Neste sentido, a OIT foi fundada em 1919 com o objetivo de

    promover a justia social, sendo criada pela Conferncia de Paz aps a

    Primeira Guerra Mundial. O Brasil ratificou o instrumento de emenda da

    Conveno (EVANGELISTA, 2004). Dessa forma, a ateno internacional

    que se deu em relao proteo dos povos indgenas passou a

    configurar uma preocupao na legislao indigenista no s do Brasil,

    mas de vrios pases da America Latina. Neste contexto, as discussessucedidas a partir da Conveno 107 e sua difuso internacional

    influenciaram diretamente as constituies brasileiras que foram criadas

    aps o documento.

    Logo, duas dcadas mais tarde, ocorre um novo governo

    ditatorial, o Golpe Militar de 1964, que outorgou em 24 de janeiro a

    Constituio de 1967. O poder foi centralizado nas mos dos Generais

    do Estado, o que permitia controle irrestrito sobre os produtos

    veiculados pela imprensa e na vida cotidiana do cidado. Qualquer

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Igualdadehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Leihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Sigilohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Consci%C3%AAnciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Consci%C3%AAnciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Sigilohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Leihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Igualdade
  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    9/26

    91

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    posicionamento contrrio poltica militarista era censurado,

    violentamente repreendido e tornado ilegal. Todavia, foi justamente nos

    anos mais sombrios de um Estado centralizadorque a questo indgena

    recebeu maior ateno. Repetindo o descrito nas constituiesanteriores de integrao7 do ndio comunho nacional, a carta de

    1967 apresentou como diferencial, a proteo s terras ocupadas pelos

    silvcolas, que passou a contar com uma garantia importante: a de

    serem includas entre os bens da Unio Federal (art. 4, inc. IV8); e o

    mesmo texto inovou ao reconhecer aos ndios o direito ao usufruto

    exclusivo dos recursos naturais. Art. 186 - assegurada aos silvcolas

    a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito

    ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidadesnelas existentes(CF., 1967, art. 186).

    No entanto, como advertido por Egon Dionsio Heck (1996), cabe

    ressaltar que o interesse militar na promoo de polticas indigenistas

    consistia igualmente no interesse por uma explorao territorial,

    sobretudo nas reas de fronteiras internacionais. Um significativo

    nmero dessas comunidades ocupava territrios interessantes para os

    planos desenvolvimentistas do governo, portanto, neutralizar, pacificar

    e controlar as terras ocupadas por essas populaes transformaram- seem tarefas de urgncia para os planos de base militar.

    Assim, imbudos do af rumo ao progresso, a Emenda

    Constitucional de 1969 seguiu os preceitos da poltica integracionista9e

    dos interesses nos territrios ocupados por grupos indgenas. Com a

    Carta de 1969, as terras habitadas pelos ndios passaram a ser

    inalienveis (art. 198) e acrescentou tambm a nulidade e a extino

    dos efeitos jurdicos de qualquer natureza aos que quisessem ocupar

    os territrios j habitados por populaes indgenas.

    Art. 198. As terras habitadas pelos silvcolas soinalienveis nos trmos que a lei federal determinar, ales cabendo a sua posse permanente e ficandoreconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das

    7Art. 8. Compete Unio: (...) XVII - legislar sobre (...) o) incorporao dos silvcolas comunhonacional(CF., 1967, art. 8 - grifos nossos).8Art. 4 - Incluem-se entre os bens da Unio: (...) IV - as terras ocupadas pelos silvcolas (CF., 1967,

    art. 4grifos nossos).9

    Art. 8. Compete Unio: (...) XVII - legislar sobre (...) o) nacionalidade, cidadania e naturalizao;incorporao dos silvcolas comunho nacional (CF., 1969, art. 8).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    10/26

    92

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    riquezas naturais e de tdas as utilidades nelasexistentes. 1 Ficam declaradas a nulidade e a extino dosefeitos jurdicos de qualquer natureza que tenham por

    objeto o domnio, a posse ou a ocupao de terrashabitadas pelos silvcolas. 2 A nulidade e extino de que trata o pargrafoanterior no do aos ocupantes direito a qualquer aoou indenizao contra a Unio e a Fundao Nacionaldo ndio (CF., 1969, art. 198).

    Neste sentido, a Emenda daqueles finais dos anos 60 foi a ltima

    at a chegada da Carta de 1988. No entanto, dois documentos

    exteriores s constituies foram de fundamental importncia para

    nosso entendimento sobre a legislao indigenista. O primeiro deles foio Cdigo Civil de 1916, que concebia ao ndio a qualificao de

    incapaz, nesta posio inseriam-se tambm os jovens entre 16 e 21

    anos e os prdigos.

    So incapazes relativamente a certos atos ou maneirade exerc-lo: (...) III - os silvcolas. Pargrafo nico.Os silvcolas ficaro sujeitos ao regime tutelar, o qualcessar medida que forem se adaptando civilizaodo Pas (BRASIL, 1993a, n. p. - grifos nossos).

    Deste modo, somente em 2002 o Cdigo foi revogado e um

    novo10 legislado. No atual, os ndios foram retirados da condio de

    incapazes. E, em seu artigo 3, no Pargrafo nico, afirma que: a

    capacidade dos ndios ser regulada por legislao especial (BRASIL,

    2002, art. 3. nico).

    Outra legislao de grande relevncia, vlida ainda atualmente, foi

    o Estatuto do ndio, aprovado em 19 de dezembro de 1973, sancionado

    pela Lei n 6.001. O documento passou a regular a situao jurdica dascomunidades indgenas; ao legislar sobre os direitos civis e polticos

    que atingem os ndios, o texto manteve a ideologia civilizatria e

    integracionista das constituies anteriores, adotando tambm o

    arcabouo jurdico tutelar. Quase 1/3 da lei (22 artigos) foi destinadas

    para regulamentao das atividades relativas s terras dos ndios, cujo

    art. 65 estabelece o prazo de cinco anos para a demarcao de todas as

    10

    LEI N 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Lei de Introduo ao Cdigo Civil Brasileiro. Braslia:Senado Federal.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    11/26

    93

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    terras indgenas, prazo este no cumprido at os dias atuais.

    Sobre o Estatuto, em uma anlise mais detalhada, cabe observar

    que no art.20 as terras indgenas so abertas a intervenes, por

    razes de desenvolvimento esegurana nacional, possibilitando atransfernciadas mesmas. Evidenciando que no h, de fato, nenhuma

    garantia das terras aos povos indgenas. No art.29 so criadas as

    colnias indgenas11, projetos de referncia do Estado. Com elas, se

    buscava equacionar o desafio da regularizao das terras nas faixas de

    fronteiras, concentrando os ndios em ocupaes em torno de produo

    no estilo dos colonos. A demarcao de terras indgenas em regio

    fronteiria, de acordo com o pensamento militar, era uma ameaa, pois

    abria espaos para fragmentao do territrio e poderia ocasionarpossibilidades para o surgimento de pases indgenas (HECK, 1996)

    com territrios prprios. Alm desse fato, no ttulo IV - dos bens e

    renda do patrimnio, se explicita o carter empresarial que ter o

    rgo indigenista da FUNAI12(Fundao Nacional do ndio) ao reaplicar a

    renda em atividades rentveis, como a explorao das riquezas do

    subsolo (art. 45), corte de madeira (art. 46). Confirmando ainda a

    perspectiva integracionista, dando ao Estado poderes exclusivos sobre a

    assistncia num regime de tutela.Nestes termos, eram claras as contradies polticas do perodo.

    Na contramo do Estatuto, que previa um prazo de cinco anos para

    demarcao de terras, surgiam os projetos de expanso e

    desenvolvimento, que pretendiam a ocupao extensa dos territrios

    amaznicos. Havia o discurso de proteo, mas somente mediado pelos

    moldes da tutela. Ou seja, o regime tutelar13, formalizado desde o

    Cdigo Civil de 1916, teve assim seu dinamismo estabelecido por uma

    contradio bsica e fundadora, conhecida como o paradoxo da tutela,encerrando-se na seguinte incerteza: at onde o tutor existe para

    proteger o ndio da sociedade que o cerca ou para defender os

    interesses da sociedade? Quando, neste sentido da prpria natureza

    11A proposta de colnia indgena foi incorporada ao Estatuto do ndio no seu art. 29, que diz: Colniaagrcola indgena a rea destinada explorao agropecuria, administrada pelo rgo de assistncia aondio, onde conviviam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional.12A Fundao Nacional do ndio (FUNAI) foi criada em 1967, em substituio ao Servio de Proteoaos ndios, fundado em 1910, sendo Marechal Cndido Mariano da Silva Rondon seu primeiro dirigente.13

    O carter tutelar aos ndios foi formalizado no Cdigo Civil de 1916 e no Decreto n 5.484, de 1928(PACHECO DE OLIVEIRA, 2006, p. 133).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    12/26

    94

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    da tutela sua ambigidade (PACHECO DE OLIVERA, 2006, p. 25).

    Assim, partindo destes demonstrativos, o que consideramos ao

    longo da trajetria das constituies que temos: algumas leis, poucos

    espaos e amplas lacunas na relao dos ndios versusrepresentatividade no Estado. Assim, ao mesmo tempo em que se

    configuram nos remanescentes mais antigos de nosso territrio, na

    historiografia legislativa os ndios representam ainda um dos mais

    novos e emergentes personagens.

    s Polticas Indigenistas e a caracterizao do termo ndio

    Neste contexto, o prprio termo ndio traz consigo certa

    complexibilidade. Para o senso comum, como ressalta Bessa Freire

    (2000), ndio o sujeito de cabelos lisos e negros, olhos cor de jambo,

    mas do rosto salientes, entre outras caractersticas (aspectos

    fenotpicos). No entanto, a concepo que utilizamos neste trabalho

    nada tem a ver com a proposta de um aspecto fsico, mas sim com a

    representatividade de grupos que mantm suas tradies.

    De acordo com o antroplogo Darcy Ribeiro (1977), j nos anos70 seria impossvel uma definio de ndio respaldada em critrios

    raciais (caractersticas fsicas) e/ou em critrios somente culturais. Isso

    porque um critrio puramente racial incluiria milhes de brasileiros que

    trazem traos fsicos indgenas decorrentes da mestiagem. E pautar-se

    por critrios culturais tambm no seria suficiente, j que existe um

    amplo arcabouo de traos culturais indgenas que fazem parte da vida

    cotidiana brasileira decorrente da mestiagem cultural14. Sendo assim,

    dizermos que determinada pessoa ou no indgena por portar ouno um aspecto fsico convencional um problema mais complexo do

    que se apresenta. Neste sentido, o mais importante que se entenda

    que quando falamos de grupos indgenas neste trabalho, estamos

    dissertando sobre pluralidades tnicas que residem no Brasil e foram

    descritas por cronistas e missionrios desde o sculo XVI, sem

    14Darcy relata que numa aldeia urubu-kaapor existia uma menina loura, de olhos claros, que era filha deuma ndia e de um homem branco. Nascida na tribo, sem nunca ter tido nenhum contato com outras

    etnias, a menina falava e entendia o mundo atravs do dialeto daquela tribo. Era considerada pela tribocomo sendo ndia e se relacionava com os demais como um deles (RIBEIRO, 1977, p. 286).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    13/26

    95

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    mencionar as inmeras contribuies dos estudos antropolgicos.

    Mesmo diante deste quadro, estes grupos indgenas representam a mais

    recente descoberta das constituies brasileiras e tm sua

    diversidade reconhecida h apenas 25 anos dentro de umaConstituio Nacional.

    Portanto, sobre as polticas indigenistas, como vimos, os projetos

    de expanso territorial conflituam com reas de ocupao indgena, o

    que tem ocorrido com mais frequncia entre militares e ndios. Para o

    avano civilizatrio das aspiraes positivistas e progressistas seria

    necessrio homogeneizar, unificar culturalmente o pas, integrando os

    ndios sociedade brasileira. A legislao era constituda a partir de um

    paradigma Evolucionista15, onde o indgena foi situado em uma faseevolutiva primria, inferior civilizao nacional. Para o pensamento

    daquele momento, a condio de ndio seria transitria e assim, a

    poltica indigenista teria por finalidade transformar o ndio num

    trabalhador nacional, onde seriam adotados mtodos e tcnicas

    educacionais que controlariam o processo de homogeneizao - era a

    chamada Poltica de Integrao ou integracionista (CARNEIRO DA

    CUNHA, 1992).

    Seguindo este pensamento, em 20 de junho de 1910, ocorre acriao do Servio de Proteo aos ndios e Localizao de

    Trabalhadores Nacionais (SPLINT), posteriormente chamado Servio de

    Proteo aos ndios (SPI). Composto como parte integrante do Ministrio

    da Agricultura, Indstria e Comrcio (MAIC), o SPI fomentou

    significativas mudanas, a Igreja deixou de ter predominncia no

    trabalho de assistncia junto aos ndios e alm disso, com a criao do

    rgo federal, diminuiu o papel que os estados desempenhavam em

    relao s decises sobre o destino das terras indgenas. A entidadeprocurava afastar a Igreja Catlica da funo catequisadora , seguindo o

    preceito republicano de separao Igreja Estado.

    Era a expanso do chamado protecionismo indigenista, Marechal

    Cndido Mariano da Silva Rondon foi seu primeiro dirigente. O militar se

    15No contexto da tradio evolucionista, que marcou a fase inicial da antropologia, o foco recaa sobre asformas e os sistemas de poder em sociedades "primitivas", cujas caractersticas deveriam ser comparadase classificadas em relao ao sistema poltico das sociedades modernas, consideradas mais "evoludas".

    Propunha-se, ento, uma linha evolutiva das formas de organizao poltica, que comeava com a "hordaprimitiva" e chegava ao Estado moderno (RAMOS, 1991, p. 2).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    14/26

    96

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    notabilizara pelos trabalhos de instalao de redes telegrficas no

    interior do pas, durante os quais havia mantido contato pacfico com

    vrios povos indgenas. As tcnicas de pacificao adotadas por

    Rondon, evitando o confronto com ndios em seus territrios, e escritasposteriormente na obra Comisso Rondon, deram origem a muitas

    publicaes cientficas, tornando famosa a Tcnica de Pacificao.

    No entanto, curioso analisar que as tticas e tcnicas

    desenvolvidas por Rondon filiam-se a uma longa genealogia que teve

    origem nos contatos dos jesutas com as comunidades indgenas do

    sculo XVI. E neste sentido, ao se basear em noes militares, a

    estratgia rondoniana e de seus colaboradores objetivava proceder a

    um grande cerco de paz(SOUZA LIMA, 1995, p. 335) aos povos.De acordo com Antonio Carlos de Souza Lima (1995), essa forma

    de poder exercida a partir do SPI(LTN) intitulada "poder tutelar". Trata-

    se de um poder estatizado, exercido sobre populaes e territrios, que

    busca assegurar o monoplio dos procedimentos de controle. So seus

    produtos a formulao de um cdigo jurdico acerca das populaes

    indgenas e a implantao de uma malha administrativa instituidora de

    um governo para os ndios. O exerccio do "poder tutelar" possui

    caractersticas especficas e concebido como uma forma reelaboradacom continuidades lgicas e histricas da "guerra de conquista". Neste

    caso, enquanto modelo analtico, a "conquista" um empreendimento

    com distintas dimenses: fixao dos conquistadores nas terras

    conquistadas, redefinio das unidades sociais conquistadas, promoo

    de fisses e alianas no mbito das populaes conquistadas e objetivos

    econmicos.

    Deste modo, passado quase meio sculo, por volta de 1957 o SPI

    entrou em processo de decadncia administrativa. O rgo passou aenfrentar problemas com os governos estaduais e grande parte de seus

    funcionrios passaram a responder por acusaes de improbidade

    administrativa, inclusive com relao ao patrimnio indgena, o que

    acabou por repercutir, nacional e internacionalmente, uma imagem

    negativa da instituio. Numa tentativa de reorganizao das polticas

    indigenistas, criada em 1967 a Fundao Nacional do ndio (FUNAI),

    rgo no qual, entre 1969 e 1974, uma srie de novas polticas

    passaram a ser implementadas.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    15/26

    97

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    O ento Ministro do Interior, Rangel Reis, um de seus primeiros

    dirigentes, tomou como definio as categorias de: ndio aculturado e

    ndio semi-aculturado16. Os enquadramentos (aculturados, semi-

    aculturados e isolados) consistiam no Projeto de Emancipao, ou seja,na criao de um instrumento jurdico para discriminar quem era ndio

    de quem no o era. O que, de acordo com Eduardo Viveiros de Castro

    (2006), repercutia somente no propsito de retirar da responsabilidade

    tutelar do Estado os ndios que teriam se tornado nondios; isto , os

    indivduos indgenas que j no apresentassem mais os estigmas de

    indianidade estimados necessrios - isso porque essa discusso,

    quem ndio, possui uma dimenso meio delirante ou alucinatria,

    como toda discusso onde o ontolgico e o jurdico entram em processode acasalamento (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 10).

    Neste caso, interessante observar que foi somente a partir da

    Constituio de 1988 que se interrompeu jurdica e ideologicamente o

    projeto de desindianizao ou emancipao, legado de finais dos

    anos 60, ao reconhecer que o mesmo no se tinha completado. Nas

    palavras do autor (...) foi assim que as comunidades em processo de

    distanciamento da referncia indgena comearam a perceber que voltar

    a ser ndio isto , voltar a virar ndio, podia ser interessante(VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 9).

    Igreja e o surgimento do Movimento Social Indgena no Brasil

    Neste contexto, historicamente a postura da Igreja Catlica esteve

    relacionada aos interesses dos grupos dominantes, impondo

    resistncias s mudanas sociais. No momento da instalao do regime,em abril de 1964, setores da Igreja apoiaram o golpe. Havia o medo de

    uma possvel adeso ao comunismo. No entanto, as posies surgidas

    no II Conclio Vaticano, durante os anos 1960 - 1965, corroboradas nas

    Conferncias Gerais do Episcopado Latino Americano de Medeln (1968)

    e Puebla (1969), realizaram certas revises em sua postura

    16Esta terminologia passou a ser utilizada em outros diversos contedos pelo poder executivo, pormsempre em detrimento dos direitos indgenas, procurando afastar a maioria dos ndios do direito terra

    coletiva e proteo especial. Eram, portanto, sem voz ou sem participao nas decises de questes maisrelevantes a respeito de seus interesses (SUESS, 1980, p. 45).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    16/26

    98

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    conservadora.

    No incio da dcada de 70, a partir de outro tipo de engajamento

    poltico, ampliaram-se os trabalhos missionrios, foram criadas as

    Comisses Pastorais (operria, da juventude, da terra e do ndio) e asComunidades Eclesiais de Base. Deste modo, as CEBs se constituam em

    pequenos agrupamentos voluntrios de cristo leigos para atuao na

    comunidade local, onde um dos enfoques principais da ento surgida

    nova linha pastoral era aproximar setores da Igreja aos segmentos

    mais carentes da sociedade. Neste novo caminho de opo preferencial

    pelos pobres, foi criada a ento corrente da Teologia da Libertaoe,

    neste sentido, como dito por Roberto Cardoso de Oliveira, se antes o

    grande aliado do ndio era o Estado, enquanto portador da ideologiarondoniana, agora o maior aliado passava a ser a Igreja, particularmente

    o seu setor progressista(1988, p. 45).

    Com o maior fechamento poltico do regime militar em 1968,

    comeou a prevalecer na CNBB este setor, intitulado como setor

    progressista17 da Igreja Catlica. E, influenciado por esta perspectiva,

    em abril de 1972 foi fundado o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI),

    apresentando como proposta uma leitura diferenciada sobre o modo de

    vida dos povos indgenas - partia da concepo de Encarnaosintetizada na expresso misso calada, na qual era valorizada a

    insero no dia a dia das comunidades sem interferncia em seus

    costumes e crenas, pois partia da premissa de que a cultura de cada

    povo deveria ser respeitada (SUESS, 1980).

    Por conseguinte, o Cimi produziu o jornal Porantim que fora

    criado anos mais tarde, em 1978. Sua ideia de criao ocorreu em

    dezembro de 1976, quando Jos Bessa (fundador e editor do peridico)

    retornava ao Brasil, depois de quase oito anos de exlio passados noUruguai, Peru e Chile. O peridico tornou-se o rgo de imprensa para

    informao, divulgao e denncia da instituio. Era um dos nicos que

    17De acordo com o padre Paulo Suess (1980), um dos membros da teologia da libertao, dentre seusrepresentantes, os que mais se destacaram foram os religiosos D. Pedro Casaldliga, D. Paulo EvaristoArns, D. Helder Cmara, D. Balduno, entre outros que juntamente com leigos protagonizaram importantefuno na organizao popular da luta contra ditadura. Em relao s consequncias destes

    posicionamentos, muitos militantes cristos, padres e bispos sofreram perseguies, expulso do pas(exlio), atentados, sequestros e at mesmo assassinatos. D. Pedro Casaldliga era o mais visado pelo

    regime, pois desde 1971 vinha publicando denncias sobre a marginalizao social da populaoamaznica.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    17/26

    99

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    na poca realizava frente contrria s informaes estigmatizadas da

    grande imprensa.

    Em entrevista18, Jos Ribamar Bessa Freire nos conta que seu

    incio foi embrionariamente artesanal, com impresses mimeografadas eatingiam somente a regio Amaznica; mas a partir de sua oitava

    edio, com o contato do Cimi em outros estados e a possibilidade de

    modernizao nas formas de impresso, iniciou sua divulgao sobre os

    acontecimentos sucedidos aos ndios em todo territrio nacional. Dessa

    forma, como nos narra seu editor, foi sendo gerada uma vasta rede de

    correspondentes espalhadas pelas aldeias do Brasil que

    abasteciam o jornal com notas redigidas at em papelde embrulho, nas quais freqentemente o lead vinha nofinal. O trabalho da redao era nesses casos decozinhar o material recebido dando lhe tratamentojornalstico(BESSA FREIRE, junho de 2011).

    Assim, a partir do iderio de busca pela autonomia indgena,

    concepo que trazia consigo a representao dos povos a partir de

    suas prprias lideranas, contrariando as normas do modelo tutelar,

    foram organizadas as Assembleias Indgenas do Cimi. Estas reuniam

    povos de diferentes estados brasileiros para encontros que discutiamdesde os problemas locais de cada aldeia at questes mais amplas e

    genricas, como o reconhecimento da diversidade, posse de terras,

    insatisfao com a poltica tutelar e etc.

    Baseado no levantamento realizado por Ortolan Matos (apud

    LACERDA, 2008), de 1974 a 1984 foram realizadas cinquenta e sete

    Assembleias Indgenas em todo o pas. De acordo com a autora, os

    ndios foram se articulando independentemente e da formando suas

    prprias bases de organizao para a formao de um movimentoindgena autnomo. lvaro Tukano19nos fala que: Nasceu o movimento

    indgena nessas assembleias, porque para sermos movimento a gente

    18JOS RIBAMAR BESSA FREIRE. Entrevista concedida a Danielle Bastos Lopes. Rio de Janeiro, 12de junho de 2011. Esta entrevista foi realizada para nossa dissertao de mestrado com o membro ediretor doJornalPorantim. O editorial criado nos anos 70 at hoje utilizado como fonte de pesquisa porantroplogos, estudantes e lideranas indgenas.19 LVARO FERNANDES SAMPAIO. Entrevista concedida a Danielle Bastos Lopes. Braslia (DF), 17de julho de 2010. lvaro Sampaio, mais conhecido como lvaro Tukano(nome de sua etnia), uma das

    lideranas mais antigas do movimento indgena e foi um dos fundadores e dirigentes da UNI (Unio dasNaes Indgenas), criada em 1980.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    18/26

    100

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    tem que ter parceiros (LVARO TUKANO, julho de 2010). Neste

    momento da entrevista, lvaro conta que eram os ndios que

    autonomamente iam se comunicando e formulando questes entre si

    nenhum padre se intrometia, eles arrumavam o espao e s, e nsdiscutamos o que tinha para discutir (LVARO TUKANO, julho de

    2010). Dessa forma, os passos do Cimi seguiam os preceitos do iderio

    de misso calada idealizado pela corrente da Teologia da Libertao.

    Neste sentido, o movimento indgena consolida-se com a criao

    da Unio das Naes Indgenas (UNI)20, em 1980, j no momento de

    redemocratizao do pas. Seu processo de construo ocorreu no

    Seminrio de Estudos Indgenas de Mato Grosso do Sul, realizado entre

    os dias 17 e 20 de abril de 1980, reunindo representantes de 15 etniasconcentradas em sua maior parte nas regies centro-oeste e sul. Neste,

    as 15 etnias ali presentes elegeram para primeira diretoria, Domingos

    Verssimo Marcos (Terena) e como vice-presidente Maral de Souza

    (Guarani).

    Assim, entre os anos de 1981 a 1982, a entidade participou de

    variados encontros com instituies de mbito nacional e internacional,

    entre elas, a conferncia realizada pela UNESCO na Costa Rica,

    conferncia da Organizao das Naes Unidas(ONU) realizada na Sua,o Congresso Indgena da Colmbia, entre outros. A presena dos lderes

    nestes encontros resultava progressivamente em maior visibilidade para

    o recm-criado movimento. Nas palavras de lvaro Tukano: (...) foi a

    partir da UNI que ns descobrimos ndios no Brasil, ndios fora do Brasil

    e fizemos uma grande articulao latino-americana e criamos o

    Conselho Mundial dos Povos Indgenas (LVARO TUKANO, julho de

    2010).

    O movimento indgena na Constituinte

    Em finais dos anos 80 Ailton Krenak e lvaro Tukano assumiram a

    20A nomenclatura da UNI tambm foi oficializada, o que designou num entendimento entre outras jovenslideranas indgenas estudantes de Braslia que tinham fundado a UNIND, tambm intitulada Unio das

    Naes Indgenas, no mesmo ano; mas aps um acordo oficial a sigla UNI se tornou a legtimarepresentante.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    19/26

    101

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    presidncia da UNI21, quando a entidade participou ativamente de todo

    o processo ocorrido na Assembleia Nacional Constituinte. Em suas

    palavras,

    A UNI foi importante porque eu e Krenak ns passamosa intermediar os conflitos entre os dirigentes indgenas,e os coronis, ndios com os colonos, fazendeiros. Enossa vida tem sido de correria. Eu deixei de estudarpara cuidar do Movimento Indgena, porque eu sentique essa era a minha vocao. Outros j noconseguem dirigir o movimento indgena sem salrio,nem as prprias ONGs conseguem fazer. Mas fazer omovimento indgena testar nossa capacidade deorganizao para articular nosso povo. E o movimento

    foi para buscar os lderes tradicionais, lutar contra aditadura e fazer a nova Constituio. E hoje ns jestamos velhinhos (LVARO TUKANO, julho de 2010).

    Assim, no perodo pr-constituinte, que teve como base a

    expressiva participao popular, em 05 de julho de 1988 o relator da

    subcomisso, Bernardo Cabral, faz finalmente a entrega do Projeto de

    Constituio B, do projeto sairia a ltima votao para a nova

    Constituio. O projeto seguia o que havia sido votado, no entanto, na

    redao dada, renumerada como art. 234, uma alterao no texto haviasido realizada, onde estava So terras tradicionalmente ocupadas pelos

    ndios, as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para

    suas atividades produtivas (art. 269) passou a ser so terras

    tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter

    permanente, as que utilizam para atividades produtivas(art. 234). Ou

    seja, substituaa expresso as terras utilizadas paraas que utilizam.

    A alterao no agradou muito o movimento indgena, pois afirmavam

    que colocando a expresso no tempo presente, as que utilizam,poderia excluir grupos que no estivessem, no momento, utilizando as

    terras por motivo de invaso ou outros afins.

    No entanto, o dia da votao se aproximava, e no incio de agosto

    chegava a Braslia uma caravana de povos vindos do nordeste, formada

    por representantes dos povos Potiguara (PB), Fulni- (PE), Kapinaw (PE),

    21Neste contexto, a UNI se encerrou pouco tempo depois de votada a nova Constituio, as regionais da

    se desintegraram medida que seus lderes voltaram para uma atuao visando atender aos interessesespecficos de suas aldeias.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    20/26

    102

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    Xukuru (PE), Geripank (AL), Xukuru-Kariri (AL), Karapot (AL) e Xok

    (SE). A caravana nordestina juntou-se aos Kayap ali presentes desde o

    primeiro turno de votaes e mais uma centena de indgenas chegados

    do sul, centro-oeste e norte do pas, a exemplo dos Kaingang, Guarani,Xavante e Xerente22. Divididos em grupos, os representantes de cada

    etnia voltaram a percorrer os gabinetes dos parlamentares e a executar

    suas danas e rituais nos corredores do Congresso (LACERDA, 2008;

    BASTOS LOPES, 2011).

    Finalmente, em 30 de agosto, o captulo Dos ndios era

    submetido ao 2 turno das votaes no Plenrio. Na ocasio, a maior

    ateno era para a modificao realizada no texto do agora chamado

    artigo 234, que passou a empregar o verbo no tempo presente,utilizam em vez de utilizadas, em relao s terras permanentemente

    ocupadas. Por se tratar de um acordo entre os vrios constituintes, o

    relator acabou posicionando-se favorvel alterao para forma original

    do texto. Os demais dispositivos pertencentes ao captulo foram

    aprovados. E exterior ao captulo Dos ndios, outros artigos, como o

    art. 210, que garantiu s comunidades indgenas a utilizao de sua

    lngua materna e processos prprios de aprendizagem, tambm foram

    aprovados.Contudo, fato curioso neste processo, que infelizmente o ltimo

    ato no pde ser testemunhado pelas lideranas indgenas; embora

    muitas houvessem retornado a Braslia para acompanh-lo, somente

    Alton Krenak23, que possua autorizao especial para ingressar nas

    galerias do Plenrio, conseguiu assistir votao. A ausncia dos

    grupos indgenas foi lamentada inclusive pelos constituintes: Tadeu

    Frana (PDT-PR), Benedita da Silva (PT-RJ), Haroldo Lima (PCdoB BA),

    Slon Reis (PTB-SP), entre outros. E, portanto, em relao ao captuloDos ndios, o texto ps-votao foi assim definido:

    CAPTULO VIIIDos ndiosArt. 231. So reconhecidos aos ndios sua organizaosocial, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os

    22 Como ocorrera no primeiro turno de votao, a mobilizao indgena foi apoiada pelo Cimi, queprovidenciou transporte e conduo em Braslia.23

    Alton Krenak obteve autorizao especial, pois era o presidente da Unio das Naes Indgenas napoca (BASTOS LOPES, 2011).

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    21/26

    103

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    direitos originrios sobre as terras que tradicionalmenteocupam, competindo Unio demarc-las, proteger efazer respeitar todos os seus bens. 1. So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios

    as por eles habitadas em carter permanente, asutilizadas para suas atividades produtivas, asimprescindveis preservao dos recursos ambientaisnecessrios a seu bem-estar e as necessrias a suareproduo fsica e cultural, segundo seus usos,costumes e tradies. 2. As terras tradicionalmente ocupadas pelos ndiosdestinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes ousufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e doslagos nelas existentes. 3. O aproveitamento dos recursos hdricos, includos

    os potenciais energticos, a pesquisa e a lavra dasriquezas minerais em terras indgenas s podem serefetivados com autorizao do Congresso Nacional,ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhesassegurada participao nos resultados da lavra, naforma da lei. 4. As terras de que trata este artigo so inalienveise indisponveis, e os direitos sobre elas, imprescritveis. 5. vedada a remoo dos grupos indgenas desuas terras, salvo, ad referendum do CongressoNacional, em caso de catstrofe ou epidemia que ponhaem risco sua populao, ou no interesse da soberaniado Pas, aps deliberao do Congresso Nacional,garantido, em qualquer hiptese, o retorno imediatologo que cesse o risco. 6. So nulos e extintos, no produzindo efeitosjurdicos, os atos que tenham por objeto a ocupao, odomnio e a posse das terras a que se refere esteartigo, ou a explorao das riquezas naturais do solo,dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvadorelevante interesse pblico da Unio, segundo o quedispuser lei complementar, no gerando a nulidade e aextino direito a indenizao ou a aes contra aUnio, salvo, na forma da lei, quanto s benfeitoriasderivadas da ocupao de boa-f. 7. No se aplica s terras indgenas o disposto noart. 174, 3. e 4..Art. 232. Os ndios, suas comunidades e organizaesso partes legtimas para ingressar em juzo em defesade seus direitos e interesses, intervindo o MinistrioPblico em todos os atos do processo.

    E assim, como narra Rosane Lacerda (2008), os ndios festejaram

    subindo a rampa do Congresso Nacional, exaltando que pela primeira

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    22/26

    104

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    vez na histria do constitucionalismo a elaborao de uma Carta havia

    sido realizada a partir da participao dos povos indgenas.

    Consideraes finais

    Por fim, ao analisar seu histrico, consideramos que entre os

    ganhos da Constituio de 1988 esto: (1) o reconhecimento das

    organizaes indgenas, alm dos prprios ndios e suas comunidades,

    como parte legtima para ingressar em juzo em defesa dos seus

    direitos; (2) o reconhecimento da diversidade cultural existente no Brasil

    a partir do reconhecimento das lnguas indgenas e dos povos indgenascom sua cultura, costumes, crenas e tradies; (3) uma educao

    diferenciada para cada povo indgena, e principalmente com um

    processo prprio de aprendizagem; (4) o reconhecimento do direito

    terra; (5) a vinculao da explorao mineral a uma autorizao do

    Congresso Nacional; (6) a proteo e demarcao das terras indgenas

    como obrigaes do Estado e (7) a nulidade de atos que tenham como

    objeto o domnio e posse das terras indgenas.

    No entanto, alguns outros pontos positivos, como oreconhecimento do Brasil como uma nao pluritnica e o direito do

    ndio ao usufruto do subsolo, aprovados no incio das discusses, ainda

    nos textos iniciais da Subcomisso e da Comisso da Ordem Social

    Constituinte, foram perdidos ao longo do processo. A expresso

    pluritnica para falar sobre nao acabava por ser um tabu, j que a

    ideologia do Estado Nao compreendia a nacionalidade como um

    desejo de unidade coesa e uniforme. E, deste modo, ainda que tenha

    sido um grande avano para as comunidades o seu direito ao usufrutodo solo, o subsolo, como expresso por Bessa Freire (2009), ainda era

    uma questo delicada para deixar nas mos dos ndios, j que

    interesses de grandes corporaes nacionais e internacionais visavam a

    explorao de suas reservas.

    Portanto, para chegada deste momento, observa-se que mortes

    foram ocasionadas, violncias e torturas foram sofridas; ndios

    vestiram-se de terno e gravata tornando-se lideranas polticas

    indgenas, viajaram at os centros urbanos, aprenderam o portugus, o

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    23/26

    105

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    que at ento era inesperado para muitas comunidades, j que havia um

    distanciamento muito grande entre as aldeias e a escola tradicional;

    organizaram um movimento indgena; os parlamentares tiveram

    relevantes contribuies nos momentos de fala dos antroplogos eindigenistas que passaram pelo Congresso Nacional e a prpria Igreja

    (re) criou o seu processo de relacionamento com os ndios. Portanto, por

    ora, fechamos o estudo deste processo de representao dos povos

    indgenas nas constituies, entendendo que obviamente existe uma

    grande margem entre o que legislado e a realidade, mas o

    reconhecimento destes direitos na atual Constituio foi um passo

    importante e necessrio para o que hoje impulsiona o movimento

    indgena no Brasil.

    ______________________________________________________________________

    Referncias bibliogrficas

    ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: revised Edition. Londres: Verso,1991.

    BANTON, Michel. A idia de raa. Lisboa: Edies 70, 1977.

    BEOZZO, Jos Oscar. Leis e Regimentos das Misses: Poltica Indigenista no Brasil.So Paulo: Ed. Loyola, 1983.

    BASTOS LOPES, Danielle. O Movimento Indgena na Assemblia NacionalConstituinte (1984-1988). 2011. 184 f. Dissertao (Mestrado em Histria Social) -Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Rio de Janeiro, [2011].

    CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A crise do indigenismo. Campinas: Ed.

    Unicamp, 1988.

    CARNEIRO DA CUNHA, Manoela. Histria dos ndios no Brasil. So Paulo:Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992.

    CEDI: Centro Ecumnico de Documentao e Informao. Povos Indgenas no Brasil:1987/1988/1989/1990. So Paulo: CEDI, 1991. (Srie Aconteceu Especial, n. 18).

    CHAU, Marilena de Souza. O ceticismo sobre a Constituinte. In: SALINAS FORTES,Luiz Roberto; NASCIMENTO, Milton Meira do (Org.). A Constituinte em debate.So Paulo: Ed. Sofia, 1987. p. 157-165.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    24/26

    106

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    DEPARIS, Sidiclei Roque. Unio das Naes Indgenas (UNI): Contribuio aomovimento indgena no Brasil (1980-1988). 2007. 126 f. Dissertao (Mestrado emHistria) - Universidade Federal Grandes Doutorados UFGD, Grandes Doutorados,

    [2007].

    EVANGELISTA, Carlos Augusto Valle. Direitos Indgenas:o debate na Constituintede 1988.2004. 76 f. Dissertao (Mestrado em Histria) - Universidade Federal do Riode Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, [2004].

    FONTES, Virgnia. Sociedade Civil no Brasil Contemporneo: lutas sociais e lutaterica na dcada de 1980. In: LIMA, Jlio; NEVES, Lcia (Org.). Fundamentos daEducao Escolar do Brasil Contemporneo.Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006. p.161-178.

    BESSA FREIRE, Jos Ribamar. Cinco idias equivocadas sobre o ndio. Cenesch:Revista do Centro de Estudos do Comportamento Humano, Manaus, v. 1, p. 17-33,2000.

    ______. Uma Constituio Legal para os ndios? In: VERSIANI, Maria Helena;MACIEL, Ira; SANTOS, Nbia Melhem (Org.). Cidadania em Debate. Rio de Janeiro:Ed. Museu da Repblica, 2009. p. 224-229.

    GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell Publishers, 1983.

    GOHN, Maria da Glria. Movimentos sociais no incio do sculo XXI: antigos enovos atores sociais. Petrpolis: Vozes. 2003.

    HECK, Egon Dionsio. Os ndios e a caserna:poltica indigenista dos governosmilitares 1964-1985.Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

    JURUNA, Mario; HOHLFELDT, Antonio; HOFFMANN, Assis. O gravador deJuruna. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1982.

    LACERDA, Rosane. Os povos indgenas e a Constituinte (1987-1988). Braslia: Ed.do Cimi, 2008.

    LE GOFF, Jacques. Histria e Memria.Campinas: Ed. Unicamp, 1990.

    MISSO RONDOM. Braslia: Senado Federal/Conselho Editorial, 2003.

    OIT. Conveno 107. 1957. Disponvel em: http://www.oitbrasil.org.br/ . Acesso em:27 jun. 2014.

    PACHECO DE OLIVEIRA, Joo. Ensaios em Antropologia Histrica. Rio deJaneiro: Ed. UFRJ, 1999.

    ______. A presena indgena na formao do Brasil.Braslia: Secretaria de Educao

    http://www.oitbrasil.org.br/http://www.oitbrasil.org.br/
  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    25/26

    107

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-108, jan./jun. 2014.

    Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad)/LACED/Museu Nacional, 2006.

    RAMOS, Alcida Rita. Os Direitos do ndio no Brasil: na encruzilhada da cidadania.Braslia: DAN/UnB, 1991. (Srie Antropologia).

    RIBEIRO, Darcy. Os ndios e a civilizao:a integrao das populaes indgenas noBrasil moderno. So Paulo: Companhia das Letras, 1977.

    SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um Grande Cerco de Paz: Poder Tutelar,Indianidade e Formao do Estado no Brasil.Petrpolis: Ed. Vozes, 1995.

    SUESS, Paulo. Em Defesa dos Povos Indgenas: documentos e legislao. So Paulo:Edies Loyola, 1980. p 45.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. No Brasil, todo mundo ndio, exceto quem no .

    In: ISA. Povos Indgenas no Brasil: 2001-2005. So Paulo: Instituto Socioambiental,2006.

    ______________________________________________________________________

    Fontes

    1- Entrevistas

    LVARO FERNANDES SAMPAIO. Entrevista concedida a Danielle Bastos Lopes.Braslia (DF), 17 de julho de 2010.

    JOS RIBAMAR BESSA FREIRE. Entrevista concedida a Danielle Bastos Lopes. Riode Janeiro, 12 de junho de 2011.

    2- L eis, Legislaes e Regimentos

    BRASIL. Assemblia Nacional Constituinte. (Atas Das Comisses) VII Comissoda Ordem Social. Braslia: Senado Federal. Centro Grfico do Senado Federal, 1987a.

    ______. Assemblia Nacional Constituinte. Projeto de Constituio (A) da Comissode Sistematizao. v. 251. Braslia: Senado Federal. Centro Grfico do Senado Federal,1987b.

    ______. Assemblia Nacional Constituinte. Comisso da Ordem Social. VII-c Subcomisso dos Negros, Populaes Indgena, Pessoas Deficientes e Minorias.Anteprojeto e Relatrio. v. 196. Braslia: Senado Federal. Centro Grfico do SenadoFederal, 1987c.

    ______. Dirio da Assemblia Nacional Constituinte - Subcomisso do Negro,Populaes Indgenas, Pessoas Deficientes e Minorias, (Comisso da Ordem Social).

    Braslia: Senado Federal. Centro Grfico do Senado Federal, 1987d.

  • 8/12/2019 Indigenas e Constituinte 88

    26/26

    108

    DANIELLE BASTOS LOPES - O Direito dos ndios no Brasil

    ______. Cdigo Civil de 1916. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993a.

    ______. Cdigo Civil de 2002. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993b.

    ______. Regimento Interno. Assemblia Nacional Constituinte. Vol. 330, (Resoluon02/87). Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de Edies Tcnicas, 1993c.

    ______. Constituio de 1824. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993d.

    ______. Constituio de 1891. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993e.

    ______. Constituio de 1934. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993f.

    ______. Constituio de 1946. Braslia: Senado Federal/ Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993g.

    ______. Constituio de 1967. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993h.

    ______. Emenda Constitucional de 1969. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria deEdies Tcnicas, 1993i.

    ______. Constituio de 1988. Braslia: Senado Federal / Sub Secretaria de EdiesTcnicas, 1993j.

    ______________________________________________________________________