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INDICAÇÕES PARA UMA AGENDA DE DESENVOLVIMENTO RURAL BRASILEIRA NO INÍCIO DO SÉCULO XXI CONSIDERANDO OS IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO Oscar José Rover 1 Resumo: A história da construção do desenvolvimento rural, como de todo o desenvolvimento, é a síntese de processos em que diferentes sujeitos sociais se põem em luta para fazer valer suas necessidades e interesses. O momento atual da história ocidental aponta para a presença de dois modelos polares de desenvolvimento, que se tencionam, produzindo como resultado histórico, novas sínteses que não representam especificamente nenhum dos dois pólos, mas diferentes espectros entre eles. Como dimensões polares são apresentadas, de um lado, uma visão que coloca os atores sociais subordinados à lógica econômica e, de outro, a visão que propõe subordinar o projeto econômico às distintas lógicas dos sujeitos sociais. Para chegar nesta questão, se observa como marcante o processo histórico recente de globalização econômica e financeirização da economia, por um lado, e as novas agendas ambientais, territoriais e institucionais que têm envolvido o mundo rural, por outro. Como base histórica dos arranjos recentes que se procura demonstrar, se descreve sucintamente o processo de globalização que ocorre, marcadamente no século XX, e a inserção brasileira e de seu espaço rural neste processo, especialmente após a significativa modernização de sua agricultura. Como a agricultura não pode ser pensada separadamente do restante da economia e sociedade, indica-se elementos que se considera mais marcantes nesta interação, para o caso brasileiro. Palavras chave: desenvolvimento rural, globalização, financeirização. 1 Agrônomo, mestre em sociologia política, professor da Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó), doutorando do PGDR / UFRGS. ( [email protected] ).

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INDICAÇÕES PARA UMA AGENDA DE DESENVOLVIMENTO RURAL BRASILEIRA NO INÍCIO DO SÉCULO XXI CONSIDERANDO OS

IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO

Oscar José Rover1

Resumo:

A história da construção do desenvolvimento rural, como de todo o desenvolvimento, é a

síntese de processos em que diferentes sujeitos sociais se põem em luta para fazer valer suas

necessidades e interesses. O momento atual da história ocidental aponta para a presença de

dois modelos polares de desenvolvimento, que se tencionam, produzindo como resultado

histórico, novas sínteses que não representam especificamente nenhum dos dois pólos, mas

diferentes espectros entre eles.

Como dimensões polares são apresentadas, de um lado, uma visão que coloca os atores

sociais subordinados à lógica econômica e, de outro, a visão que propõe subordinar o projeto

econômico às distintas lógicas dos sujeitos sociais. Para chegar nesta questão, se observa

como marcante o processo histórico recente de globalização econômica e financeirização da

economia, por um lado, e as novas agendas ambientais, territoriais e institucionais que têm

envolvido o mundo rural, por outro.

Como base histórica dos arranjos recentes que se procura demonstrar, se descreve

sucintamente o processo de globalização que ocorre, marcadamente no século XX, e a

inserção brasileira e de seu espaço rural neste processo, especialmente após a significativa

modernização de sua agricultura. Como a agricultura não pode ser pensada separadamente do

restante da economia e sociedade, indica-se elementos que se considera mais marcantes nesta

interação, para o caso brasileiro.

Palavras chave: desenvolvimento rural, globalização, financeirização.

1 Agrônomo, mestre em sociologia política, professor da Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó), doutorando do PGDR / UFRGS. ( [email protected] ).

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INDICAÇÕES PARA UMA AGENDA DE DESENVOLVIMENTO RURAL BRASILEIRA NO INÍCIO DO SÉCULO XXI CONSIDERANDO OS IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO

A GLOBALIZAÇÃO E A INSERÇÃO BRASILEIRA

Durante as duas grandes guerras mundiais e especialmente após a segunda, há um

deslocamento da hegemonia mundial2 da Inglaterra para os Estados Unidos (EUA). Até a

primeira grande guerra funciona de maneira bastante estável o padrão-ouro como sistema

monetário internacional. Fiori (1999: 16) afirma que

“Entre 1830 e 1914 a riqueza mundial cresceu, mas de forma extremamente

desigual, ao mesmo tempo em que se expandia o poder político do núcleo

europeu do sistema interestatal no qual foram incorporados os Estados Unidos

e o Japão. E, no essencial, entre 1870 e 1914, cerca de 80% do comércio

europeu seguiu dando-se entre os próprios países mais ricos (...)”.

Apesar de grande parte do comércio ainda se dar entre os países mais ricos, houve uma

generalização das relações mercantis no período marcado pelo padrão ouro. Fiori (1999: 58)

cita Polanyi para afirmar que esta generalização “levou à politização das relações sociais e

econômicas, pressionando o alargamento democrático dos sistemas políticos e o aumento do

intervencionismo estatal (...)”, num crescente descrédito da eficácia dos mercados auto-

regulados.

Há um deslocamento para uma hegemonia dos EUA, o que representou um conjunto de

reconfigurações nos arranjos econômicos e políticos globais, ainda com forte capacidade dos

Estados-nação intervirem na dinâmica econômica internacional. Especialmente a partir da

segunda guerra mundial o cenário global contava, além da hegemonia dos EUA, com a

existência de uma guerra fria que se processava entre EUA e a União Soviética (URSS), o que

2 Para Arrighi, 1996 hegemonia mundial "refere-se especificamente à capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas (p. 27). Um Estado pode "se tornar mundialmente hegemônico por ser capaz de afirmar, com credibilidade, que a expansão de seu poder em relação a um ou até a todos os outros Estados é do interesse geral dos cidadãos de todos eles" (p. 30).

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também marcou fortemente o período até pelo menos a década de 1980, definindo a

orientação dos fluxos de produtos e capitais.

A estruturação de um sistema global de "livre iniciativa" gerido pelos Estados foi um

elemento marcante da hegemonia global dos EUA.

“A emergência deste sistema de livre iniciativa - livre, bem entendido, das

restrições impostas pelo exclusivismo territorial dos Estados aos processos de

acumulação de capital em escala mundial - foi o resultado mais característico

da hegemonia norte-americana. Ela marcou um novo momento decisivo no

processo de expansão e superação do sistema de Vestfália, e é bem possível

que tenha dado início à decadência do moderno sistema interestatal como locus

primário do poder mundial" (Arrighi, 1996: 74).

É neste contexto que se forjam os grandes conglomerados multinacionais, compondo uma

estratégia global de desenvolvimento do capitalismo internacional, sob a hegemonia norte

americana. Vale dizer que o período entre 1945-70 marcou uma forte crença internacional na

possibilidade do desenvolvimento, entendido enquanto desenvolvimento econômico.

Tais conglomerados constituem indústrias e grandes esquemas de distribuição de mercadorias

em todo o planeta, promovem amplos processos de integração vertical em diferentes cadeias

produtivas em que atuam e constroem mecanismos de suprimento de mercadorias intra e inter

- firmas, o que juntamente com outras estratégicas de ação têm solapado o poder dos Estado

Nação. Para Arrighi (1996) "o aumento explosivo do número de empresas multinacionais e

das transações dentro delas e entre elas tornou-se o fator mais crucial do definhamento do

moderno sistema de nações territoriais como sede primária do poder mundial" (p. 81). Para

Dupas

"Através de suas políticas de preços de transferência (intimamente ligadas com

a estratégia de intra-firm sourcing) as transnacionais conseguem contornar

parte importante das restrições impostas a elas pelos Estados-nação, ou seja: as

remessas de lucro e os impostos sobre os lucros" (1999: 113).

O autor aponta a importância de considerar este mecanismo de "preços de transferência", pois

o comércio intra-firm representa cerca de um terço das exportações mundiais.

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Diferentes Estados-nação ao longo do planeta, quando não estão coadunados com as

estratégias destes conglomerados, vêem sua capacidade e poder de intervenção enfraquecidos.

Significa o triunfo de uma nova ordem econômica mundial. Nas palavras de Arrighi (1996)

"Historicamente, o capitalismo como sistema mundial de acumulação e

governo, desenvolveu-se simultaneamente nos dois espaços. No espaço-de-

lugares - como diz Braudel num texto citado na introdução -, ele triunfou ao se

identificar com determinados Estados. No espaço-de-fluxos, em contraste,

triunfou por não se identificar com nenhum Estado em particular, mas por

construir organizações empresariais não territoriais que abrangiam o mundo

inteiro" (p. 84).

Para Belluzzo (1997:172) foi o acirramento da concorrência inter-capitalista e o agravamento

do conflito distributivo o que minou as convenções que sustentaram o longo período de

crescimento das duas décadas do pós-guerra. “O choque monetário provocado pela subida das

taxas de juros americanas em outubro de 1979” é apontado como o cume da desorganização

do arranjo virtuoso que possibilitou duas décadas de crescimento (idem: 171). Neste mesmo

contexto, a vitória política das forças conservadoras na Inglaterra, Estados Unidos e

Alemanha no final dos anos 80 e a dissolução do mundo socialista e da guerra fria no início

dos 90 são apontados por Fiori (1999: 72) como responsáveis pelo renascimento do

liberalismo e pelo desenho de uma nova ordem internacional.

Consolida-se a economia capitalista como uma economia monetária de produção que pode ser

vista como um sistema de balanços inter-relacionados de acumulação de ativos e de dívidas.

O crédito e o endividamento são os elementos constitutivos do metabolismo da economia

monetária de produção (Belluzzo, 1997: 158). Miranda e Tavares (1999) indicam o avanço de

uma dinâmica de financiamento externo ligado ao movimento autônomo de capitais no

financiamento global no período entre 1964 e 1980, o que se pode afirmar que exacerba a

marca de uma economia cada vez mais monetarizada.

Fiori enfatiza a importância da influência recíproca exercida pela riqueza material e pelo

Estado na definição do desenvolvimento de uma nação. Ele afirma ainda que é a competição

interestatal que alimenta o capital financeiro, questionando o risco de se eliminar o habitat

deste capital em se eliminando o poder dos Estados (1999: 63). Diz que, se nos anos 1970

alguns países da periferia do capitalismo, como Brasil e Coréia, avançaram em seus projetos

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desenvolvimentistas à revelia da crise internacional, o mesmo não se configurou nos anos

1980, chegando aos anos 1990 com todos os milagres desenvolvimentistas em crise, exceção

feita è China (idem: 76). O autor resgata de Polanyi e Eichengreen a percepção de que nestas

situações “ou se limita a mobilidade dos capitais ou a democracia” (idem: 81).

Neste quadro histórico rapidamente apresentado, olhando-se para cenário internacional do

século XX, mesmo com as restrições levantadas, “o Brasil foi o país que dos anos 30 ao

começo dos anos 80 teve as taxas de crescimento mais impressionantes”3, promovendo uma

transformação qualitativa de sua economia.

Referindo-se ao caso brasileiro, Fiori (1999: 35) faz referência a uma corrente crítica de

pensamento do final dos anos 1970 que afirma que o capitalismo nacional consolidou-se sem

contar com um departamento produtor de bens de produção, além de estar bloqueado por

obstáculos financeiros e tecnológicos até a década de 1950, quando teria sido desbloqueado

pela ação conjunta do Estado e da grande empresa oligopolista internacional. Belluzzo (2003:

41) fala que “havia uma interação virtuosa entre políticas de Estado e a situação externa

[referindo-se ao período de maior crescimento brasileiro], nós sempre soubemos aproveitar as

oportunidades e fomos levando o processo de industrialização”.

A partir da década de 1950 há uma entrada dos conglomerados transnacionais no espaço

nacional, motivados especialmente pela mão-de-obra barata que poderia estar prontamente

disponível, pela infra-estrutura que estava em construção, pelo mercado consumidor potencial

aqui existente e, certamente, por mecanismos de apoio gerados pelo Estado brasileiro.

A INSERÇÃO DA AGRICULTURA BRASILEIRA NA DINÂMICA DA GLOBALIZAÇÃO

Quanto ao espaço rural e à agropecuária nacional, promove-se amplo processo de

internalização da produção dos meios e insumos para a agropecuária, nos moldes do padrão

de modernização da agricultura já hegemônico nos países do hemisfério norte. Nas palavras

de José Graziano da Silva,

3 Afirmação de Luiz Gonzaga Belluzzo para a revista Carta Capital de 24 de dezembro de 2003, em concordância com fala de Delfim Neto, que afirma que “o Brasil teve nos primeiros 80 anos do século passado um crescimento equivalente ou talvez o maior do mundo ocidental”.

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"Foi um longo processo que ganhou impulso a partir de 1850, acelerou-se após

a grande crise de 1929 com a orientação clara da economia no sentido da

industrialização e se consolidou nos anos 50 com a internalização do setor

industrial produtor de bens de capital e insumos básicos (D1)" (Silva, 1996:05)

O debate quanto aos caminhos para o desenvolvimento do espaço rural brasileiro, na década

de 1950, se travava entre duas visões: de um lado, uma visão de esquerda, para a qual a

agricultura nacional vivia numa condição atrasada e sem condições de auxiliar no

desenvolvimento econômico do país. Nesta visão a reforma agrária era "pré-condição para a

expansão da agricultura capitalista moderna (Romeiro, 1998: 103; Gonçalves Neto, 1997). De

outro lado, havia uma visão funcionalista que dizia que a agricultura cumpria seu papel,

precisando apenas se modernizar mais (Gonçalves Neto, 1997; Paiva, 1971). Esta visão

indicava que as mudanças necessárias para a agricultura deveriam brotar de fora do espaço

agrário brasileiro, indicando que as mesmas deveriam se promover através de uma aliança

com as oligarquias rurais, desenvolvendo tecnologicamente o espaço rural, gerando

excedentes de produção e populacionais que deveriam ser absorvidos por um processo amplo

de industrialização e urbanização.

Para a esquerda nacional, aqui referenciada no pensamento de Caio Prado Júnior, haviam dois

caminhos para a luta pela reforma agrária: a extensão da legislação trabalhista ao campo,

oferecendo proteção legal ao trabalhador rural, e a criação de condições para seu acesso à

propriedade da terra para, sobre ela, exercer seu trabalho (Prado Júnior, 1987). O primeiro

caminho, para este autor e grande parte da esquerda brasileira, era visto como anterior ao

segundo, face à "suposta superioridade histórica do trabalho assalariado sobre o trabalho

camponês e familiar" (Martins, 2000: 97), visto a crença deste grupo no fim do campesinato.

Soava então a pergunta: para quê distribuir a terra e atrasar o que fatalmente deve acontecer,

que é esta massa de camponeses se transformar em operários? Este debate na esquerda

nacional e internacional não é novo, pautado numa visão Marxista do fim do campesinato. O

quanto esta visão colabora com o desenvolvimento rural brasileiro é questionável. Diversos

autores têm realizado esforços analíticos para verificar a pertinência histórica de tal visão.

Abramoway (1992), numa discussão com a obra de Chayanov afirma:

"O campesinato não é simplesmente uma forma ocasional, transitória, fadada

ao desaparecimento, mas, ao contrário, mais que um setor social, trata-se de um

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sistema econômico, sobre cuja existência é possível encontrar as leis da

reprodução e do desenvolvimento" (p. 59)

Seja por uma visão funcionalista de direita, ou por uma visão etapista e fatalista de esquerda,

uma reforma agrária estrutural não aconteceu no Brasil. Parece, sim, que as teses da aqui

chamada direita foram vitoriosas em sua maioria, sendo que se promoveu a modernização do

espaço rural do país sem mudanças estruturais em sua estrutura fundiária. Assim, se

implementou a citada internalização dos meios e insumos de produção, o que significou o

início da modernização da agricultura4, a qual não significou paralelamente, nos moldes de

tantos outros países, uma mudança no padrão de propriedade da terra (Silva, s/d; Gonçalves

Neto, 1997).

O espaço rural brasileiro passa então a cumprir dois papéis principais: atender à demanda por

alimentos, crescente em função da também crescente população urbana e, fornecer mão de

obra para os setores urbano - industriais em formação. Para Paiva (1971: 203),

"Após atingir o que foi denominado de grau adequado de modernização (...) a

agricultura perde seu papel dinâmico e passa a agir como setor induzido,

apenas reagindo ao aumento de produção e à melhoria tecnológica determinada

pelo setor não agrícola”5.

Forja-se a partir daí dois característicos segmentos do agro brasileiro: o produtor de alimentos

para o mercado interno6, atendendo a crescente população urbana em formação e, o produtor

de commodities para o mercado externo. Juntamente com a formação destes segmentos forma-

se também uma massa de excluídos que, ou migra para as cidades, buscando alguma

alternativa de emprego industrial, ou desloca-se para a fronteira agrícola em expansão, ou

ainda, apesar de em menor escala, organiza-se na luta pela terra. Este processo vai até a

década de 1980 quando começa a se fechar a fronteira agrícola, face aos limites para 4 Também chamada de "revolução verde" ou "modernização conservadora" (Silva, s/d). 5 Vale dizer que o pensamento deste autor situa-se na visão funcionalista quanto aos possíveis caminhos para o desenvolvimento rural brasileiro naquele momento histórico. 6 Este setor são os camponeses ou também chamados agricultores familiares que se formaram no processo histórico brasileiro seja como produtores de alimentos internamente às grandes fazendas de café, cana-de-açúcar, dentre outras, ou seja através dos processos de colonização, realizando a ocupação das áreas de fronteira ou do interior do território nacional. Apesar de apontar aqui camponeses e agricultores familiares como sinônimos, faz-se necessário ressalvar que nem todos os chamados agricultores familiares podem ser considerados camponeses. Nas palavras de Abramoway, citando o caso do Sul do Brasil em que parcela dos produtores "integram-se plenamente a estruturas nacionais de mercado, transformam não só sua base técnica, mas sobretudo o círculo social em que se reproduzem e metamorfoseiam-se numa nova categoria social: de camponeses tornam-se

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ocupação da floresta amazônica. Também nesta década inicia-se uma forte crise econômica

no setor industrial, reduzindo a capacidade do mesmo em absorver a massa de mão-de-obra

demandante de emprego. Com a redução de oportunidades de trabalho no setor urbano-

industrial e com o “fechamento” da fronteira agrícola, gera-se um tipo de exclusão em que as

pessoas não estão mais obrigadas a se deslocar de um setor para outro da estrutura econômica

para viabilizar sua reprodução social, mas há uma crise estrutural de empregos e poucos

setores da economia estavam abrindo vagas, especialmente para trabalhadores

desqualificados.

O Estado teve papel central no processo de "modernização conservadora" do espaço rural

brasileiro, especialmente através de: geração de pesquisas com ênfase nos produtos e não nos

processos produtivos, buscando a melhoria de variedades quanto a sua adaptação à irrigação,

à monocultura7 e à produção com uso de insumos químicos; difusão destas pesquisas geradas

através dos serviços de assistência técnica e extensão rural (ATER); estruturação de um

sistema de crédito dirigido para este enfoque modernizador; enfim, apoiando a estruturação

dos complexos agro-industriais (CAI's) no território nacional. É o padrão de acumulação

industrial, pautado no desenvolvimento dos CAI's, que orienta a ação do Estado brasileiro e o

processo de modernização da agricultura (Silva, 1996; Gonçalves Neto, 1997).

No contexto deste processo histórico de modernização da base produtiva nacional sem

transformações estruturais da propriedade da terra, muitos agricultores detentores de pequenas

unidades produtivas promoveram a modernização tecnológica de sua produção. Se até então a

maioria dos camponeses brasileiros produzia para o consumo familiar, comercializando

apenas o excedente, após este processo histórico ao menos parte substancial deles integra-se

ao mercado e tem como primeiro objetivo o atendimento deste mercado. Abramoway (1992),

novamente em referência ao pensamento de Chayanov, indica que

"A forma mais importante de penetração do capitalismo na agricultura reside

na integração vertical de uma infinidade de estabelecimentos pulverizados que

passam a funcionar sob o comando centralizado da agroindústria (p. 68). A

agricultores profissionais. Aquilo que era antes de tudo um modo de vida converte-se numa profissão, numa forma de trabalho" (1992:126-7). 7 Para Romeiro (1998:69) "as atuais práticas agrícolas consideradas como modernas não foram simplesmente, como é freqüentemente afirmado, a única resposta técnica possível ou a mais eficiente para aumentar a produtividade do trabalho e os rendimentos da terra, de modo a fazer face às necessidades impostas pelo crescimento demográfico e pelo processo de urbanização. Seu cerne tecnológico resulta em grande medida do esforço técnico-científico para tornar viável a monocultura e contornar os efeitos de seu impacto ecológico sobre os rendimentos".

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integração com a agroindústria significa em última análise que o camponês não

é mais o "sujeito criador de sua própria existência", expressão tão cara a

Chayanov: esse sujeito agora não se situa mais internamente no

estabelecimento camponês, mas está no mercado" (p. 69)

A partir da modernização formam-se basicamente dois grupos do que se podia chamar de

camponeses até então. De um lado, os que entram no processo modernizador, se integrando

verticalmente às agroindústrias; construindo laços mais efetivos com o mercado; inovando

tecnicamente a partir de uma base de produção agroquímica, visando ampliar seus laços com

os mercado; enfim, se constituindo como agricultores familiares empresariais. De outro lado,

os camponeses que mantiveram "laços incompletos de relação com o mercado": mantendo

uma forte definição do padrão "produção - consumo familiar" como condicionante de decisão

na unidade de produção; tendo no mercado de trabalho forte peso na definição quanto à

permanência ou não de membros ou de toda a família na atividade. Para Sorj, citado por

Gonçalves Neto (1997), as grandes alterações produzidas nas relações de produção sem uma

mudança na estrutura agrária apontaram para três direções:

"a) depurar as relações de produção capitalistas nas grandes empresas

agrícolas; b) fortalecer um importante setor de produtores familiares

capitalizados; c) gerar uma massa de pequenos produtores pauperizados que

ficam crescentemente marginalizados, pela sua baixa produtividade" (p. 108).

Os grandes proprietários rurais impulsionaram-se pela dinâmica modernizadora, ampliando

sua capacidade produtiva e inserção no mercado internacional e nacional. Quanto ao seu

impulso modernizador Romeiro ressalta que

"Esta necessidade objetiva de mecanizar e quimificar as suas lavouras vinha

não somente no sentido dos interesses da indústria que acabara de se instalar,

bem como a favor de um sentimento que era perfeitamente justo de que era

preciso elevar o nível tecnológico da agricultura brasileira" (1998: 105).

Vale comentar que dos dois grupos que ampliaram sua relação com o mercado nacional e

internacional, tanto grandes proprietários de terra quanto agricultores familiares empresariais

estão inseridos na dinâmica histórica recente de ampliação do agronegócio brasileiro. O

agronegócio brasileiro cresceu especialmente através das exportações dos anos 90 e 2000,

tanto com produtos agroindustrializados que têm em agricultores familiares sua base

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produtiva, quanto em commodities produzidos por grandes propriedades rurais. Isto ocorreu

apesar dos países mais desenvolvidos não efetivarem políticas concretas para realizar o

princípio geral definido na rodada do Uruguai do GATT em 1986, qual seja, a garantia de

condições para o livre comércio internacional. Ao contrário, mantiveram e até ampliaram nas

décadas de 1980 e 90 os subsídios para seus produtos agropecuários.

AS CONSEQÜÊNCIAS DA MODERNIZAÇÃO

O processo de modernização da agricultura nacional, articulado com o cenário internacional

de estruturação e consolidação de grandes conglomerados econômicos trouxe diversas

conseqüências para o espaço rural brasileiro. De um lado, ampliou a base produtiva nacional,

tanto para o mercado interno, quanto para o mercado externo; gerou excedente populacional

para servir ao processo de industrialização do país; bem como garantiu as condições para a

ocupação das fronteiras agrícolas ainda não exploradas no território nacional. Segundo

Gonçalves Neto (1997: 112) "no nível da predominância econômica e das decisões, a

agricultura permanece em posição subordinada em relação ao setor não agrário, mas garante a

realização do capital. A acumulação, ainda que subordinada, ocorrerá". Para Silva (1996:33)

"Parte significativa da agricultura agora cresce não mais em função dos preços

das commodities no mercado externo, mas também em função das demandas

industriais que se estabeleceram sobre a agricultura. De um lado, há a procura

de matérias-primas pelas agroindústrias; de outro, a busca de mercado pelas

indústrias de máquinas e insumos, muitas vezes aprisionado pela ação direta do

Estado (como a concessão de crédito vinculado à compra de insumos

modernos). Há uma nova dinâmica porque há um novo padrão agrícola, cuja

estrutura produtiva e cujas articulações e integração com a economia global se

transformaram"

Por outro lado, este mesmo processo produziu uma grande massa de excluídos rurais, os quais

não se integraram ou se integraram de maneira marginal aos mercados agropecuários e

complexos agroindustriais; gerou um amplo processo de concentração urbana produzindo

grandes contingentes de população economicamente excluídas ou marginalmente incluídas,

gerando graves problemas ambientais e de saneamento, além da grande favelização das

maiores cidades no país; gerou também graves problemas de degradação ambiental nas áreas

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de fronteira agrícola e áreas em franca modernização, como por exemplo o caso da

contaminação das águas por dejetos de suínos na região Oeste de Santa Catarina (Testa et alii,

1996).

No contexto da modernização da agropecuária, articulado com a estruturação dos complexos

agroindustriais em nível nacional, seja aqueles de caráter nacional ou transnacional, observa-

se outras conseqüências. Vê-se um grande leque de sistemas agrários sendo constituídos ou

redefinidos a partir de fatores sociais, econômicos e técnicos orientados pelo processo de

modernização. Esta modernização, com base na monocultura, na permanência do latifúndio e

na geração dos CAI's, integrando maiores e menores propriedades agropecuárias, promove

diferentes relações e impactos às populações e aos ecossistemas envolvidos. Nas palavras de

Acselrad (2001: 81)

"O padrão concentrado de distribuição de atividades e população no espaço se

articulou com graves problemas ambientais associados a processos

aglomerativos provocados pela combinação da concentração fundiária com o

"fordismo", como os da poluição do ar e das águas, notadamente".

Das tecnologias orientadas pelos CAI's e das relações e impactos ambientais gerados em cada

ecossistema se estrutura a base técnica da agropecuária brasileira.

O contexto histórico anteriormente apresentado leva a um novo cenário na década de 1990

para o conjunto da realidade brasileira, em geral, e para o espaço rural, em particular.

O CENÁRIO RECENTE DA ECONOMIA E DA AGRICULTURA BRASILEIRA

Conforme apresentado anteriormente, os anos 1980 e 90 foram um período de profundas

crises para a maioria dos países da periferia do capitalismo, certamente incluído aqui o caso

brasileiro. “A crise externa e a cara dela, a crise fiscal, foram brutais e comandaram os anos

80” (Belluzzo, 2003: 43). Nos anos 90, no contexto do plano real, “substituiu-se a inflação

que era um problema grave, por dois problemas insolúveis: pelo endividamento externo e pelo

endividamento interno (Neto, 2003: 44).

Miranda e Tavares (1999: 341) apontam como características estruturais da década de 1990 a

forte atração da atividade industrial brasileira para produção de commodities, muito evidente

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já no final da década. Apontam ainda que, nestes anos de abertura comercial e liberalização

dos fluxos financeiros as empresas internacionais de bens de consumo aproveitam a relação

cambial favorável, exportam para o Brasil, ganhando parte significativa do mercado interno.

Em seguida, elas passam a adquirir as empresas nacionais, em especial nos setores de

alimentos, bebidas, autopeças e eletrônica (idem: 342).

Enquanto o país se preocupava em construir a estabilidade macroeconômica, não se

preocupando em regular os fluxos de capitais internacionais no país e criar mecanismos de

favorecimento do capital nacional, muitos dos conglomerados nacionais passaram a ser de

propriedade estrangeira.

Especificamente na agricultura, pode-se afirmar que durante a década de 1980, avançando

parcialmente para a década de 1990, a política agrícola brasileira foi marcada por orientações

setoriais e regionais, sempre à mercê de políticas mais gerais de estabilização da economia.

Assim, se formataram planos nacionais de estabilização econômica onde inicialmente ativos

reais (como terra) se valorizaram e nos quais se realizaram investimentos. Posteriormente,

com o advento da inflação ou elevação dos juros, ou mesmo em condições estáveis da

economia, mas com a moeda nacional valorizada e sem ter a exportação como alternativa, os

ativos se desvalorizaram gerando um grande endividamento do setor. Isto ocorreu nos planos

de estabilização da década de 1980, nos primeiros anos do plano real e na safra 1994-95.

Nas décadas de 1980 e 90 o Estado brasileiro vai repassando para a regulação do próprio

mercado a questão agrícola, especialmente se comparado com as décadas anteriores onde sua

atuação foi determinante na definição do modelo de agricultura que se consolidou no país.

Quanto à agricultura familiar o caminho foi inverso, sendo que na década de 1990 ampliam-se

os mecanismos diferenciais de apoio à mesma, podendo-se citar particularmente o Pronaf

(Programa Nacional para o Fortalecimento da Agricultura Familiar).

Na década de 1990 confirma-se a grande concentração urbana da população, como resultado

do processo histórico das décadas precedentes. Segundo o senso populacional do IBGE em

2000, menos de 20 % da população nacional reside no espaço rural. Há uma elevada taxa de

desemprego urbano e rural, seja porque o crescimento industrial brasileiro não dá conta de

absorver a demanda por postos de trabalho, seja por uma redução da demanda por mão-de-

obra em função do desenvolvimento de novas tecnologias que a substituem ou, seja porque o

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modelo de desenvolvimento forjado para o país se estruturou pautado por uma lógica urbano-

industrial, não construindo novas alternativas de trabalho e renda no espaço rural e nos

pequenos municípios. Fruto deste processo observa-se uma grande massa de excluídos social

e economicamente na agricultura, no espaço rural e nos pequenos municípios, especialmente

naqueles com menos de 20.000 habitantes, onde uma série de itens relativos à qualidade de

vida na contemporaneidade não estão disponibilizados. Nesta questão se faz referência

especial às condições de moradia, saúde, educação, infra-estrutura em geral, dentre outros

serviços sociais disponíveis em centros maiores.

Por outro lado, é também neste período que se define com mais força o papel da agricultura

exportadora e dos CAI's na balança comercial brasileira e na composição do PIB nacional.

Além contar com sucessivos recordes de produção e produtividade, o agronegócio brasileiro é

o setor econômico que mais cresce no país, chegando a um crescimento de 17% já em 2003.

Para além da especificidade das exportações, a agropecuária como um todo teve um papel

fundamental na estabilidade econômica nacional, onde se manteve a inflação a baixos índices

às custas da chamada "âncora verde", ou seja, a manutenção dos produtos alimentares básicos

a baixos preços para o consumidor8. Para Abramoway (1992: 226), falando da política

agrícola contemporânea exercida mundo a fora,

"Mais do que proteger os agricultores, o sentido da intervenção estatal tem sido

o de permitir a estabilização da oferta e dos preços agrícolas. (...) a política

agrícola contemporânea compõe-se de um compromisso entre a manutenção de

um piso mínimo para a renda agrícola e, ao mesmo tempo, de controle sobre os

preços alimentares".

Importante acrescentar que um piso mínimo para a renda agrícola não tem sido algo que o

Estado brasileiro tenha conseguido garantir, sendo certamente este um dos fatores geradores

de êxodo rural e da baixa renda de muitas regiões rurais brasileiras.

Também na década de 1990 torna-se mais marcante uma outra tendência do desenvolvimento

rural nacional que é o fato de sua população economicamente ativa (PEA) rural ser menos

agrícola. Saliente-se que a redução da PEA agrícola é, em certa medida, compensada pela

elevação da PEA rural. Isto se deve a basicamente dois motivos: a busca de alternativas de

renda por parte da população rural, estruturando agroindústrias, sítios de lazer, dentre outros

8 Marcadamente no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, primeira fase do plano real.

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e; às pessoas que trabalham no espaço urbano e têm buscado o rural como espaço de

moradia9. Para Silva (1999:17) "a atual crise agrícola - que se traduz basicamente por uma

queda dos preços das principais commodities, como suco de laranja, café e grãos, e do valor

dos imóveis rurais - impôs limites à expansão das tradicionais atividades agropecuárias10".

Neste sentido, o autor indica a importância destas "novas atividades rurais", cujos principais

aspectos positivos são a expressividade dos empregos gerados, a cessão de casa de moradia

para "Chacreiros", o uso menos intensivo dos recursos naturais com a redução dos impactos

ambientais e, a emergência de atividades intensivas como olericultura, fruticultura,

floricultura, piscicultura, dentre outras.

Este conjunto de elementos que marca a década de 1990 ocorre num cenário global onde os

conglomerados multinacionais ampliam seu poder e, paralelo a isto, ocorre um

enfraquecimento do poder do Estado. Como alternativa a este enfraquecimento dos Estados

nacionais vêm ocorrendo a formação de blocos supra-nacionais de Estado, a exemplo do

MERCOSUL e da União Européia; a própria revisão dos papéis do Estado-nação, redefinindo

seu leque de atuação em função da capacidade que lhe é imposta pelas mudanças históricas11;

e a ampliação do poder local12, remetendo a esta esfera as decisões e encaminhamentos

pertinentes às suas demandas e propostas de desenvolvimento, neste caso, remetendo à

sociedade civil responsabilidades e papéis em que o Estado não possui eficiência. Nas

palavras de Martins (2000: 118)

"Os municípios e os estados é que se tornam o território do alternativo,

cabendo à União propor e gestir as causas e processos supra-locais, supra-

regionais e até mesmo suprapartidários, como é concretamente o caso da

reforma agrária. (...) o novo ordenamento propõe o fortalecimento da sociedade 9 Neste caso, considere-se as diversas formas de agricultura em tempo parcial (part time farmer). 10 Nos primeiros anos do plano real a relação cambial dólar – real de 1 para 1 tornou-se desfavorável à exportação brasileira, por mais que tenha havido efetivamente uma queda dos preços internacionais das commodities, o que representou um problema para o agronegócio brasileiro no período. Hoje, a relação cambial de aproximadamente 3 para 1 torna bastante favorável o ganha econômico com exportações de commodities brasileiras. Isto também teve impacto sobre o preço das terras, que têm seu valor sendo elevado nos últimos anos, à medida que crescem os resultados econômicos do agronegócio nacional, particularmente com as exportações. 11 Mudanças históricas que, podemos citar para o exemplo da reforma agrária que entra na década de 1990 na agenda do Estado brasileiro "como recurso institucional para atenuar os efeitos politicamente conservadores da propriedade da terra, que se manifestam nos problemas sociais, e para acelerar a modernização das elites fundiárias e das oligarquias. (...) a ação modernizadora do governo, por esta via, tem um aliado fundamental no posicionamento do MST, da Igreja e do PT quanto à reforma agrária. O pacto seria provavelmente inviável sem esta oposição" (Martins, 2000:120)

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e dos movimentos sociais que se manifestam por ela em face do Estado e o

recolhimento do Estado nacional a funções reduzidas e ordenadoras".

ALGUNS INDICATIVOS PARA A AGENDA DOS ANOS 2000

Considerando o cenário apresentado até aqui e pautado na idéia que a história é construída

pelos atores sociais, acredita-se que estes atores necessitam de um entendimento qualificado

dos processos históricos e seus efeitos para construção do desenvolvimento desejado por uma

sociedade ou grupo social. Assim, acredita-se como central para soberania e autonomia de

uma sociedade ou grupo social a qualificação dos mediadores sociais e governantes quanto ao

entendimento do processo histórico de seu desenvolvimento e das possibilidades e

alternativas para construção de seu futuro. Algumas questões chave são apresentadas para

reflexão e indicativo de agenda, que deverá ser ao menos considerada pelos formuladores de

políticas do país e pelos dirigentes de organizações de agricultores, particularmente dos

agricultores familiares.

Em termos econômicos gerais vale considerar algumas iniciativas que vêm sendo apontadas

por diversos economistas e estudiosos do ramo como necessárias para estruturar um

crescimento sustentado. Dentre elas destaca-se aqui, segundo Barros (2003: 13): aprofundar

exportações para aumentar volume de reservas líquidas; ampliar o mercado de crédito interno

para as empresas e o consumo nacional; um ajuste entre taxa de cambio favorável às

exportações e taxas de juros e inflação baixas; indicando a necessidade de fazer um “jogo

duplo”, competindo por preço em setores como o de minérios e metais, e tendo na

diversificação geográfica, de mercado e nas inovações as vantagens competitivas dos outros

setores (idem: 21). Castro (2003: 4) destaca que há uma capacidade de crescimento da

indústria brasileira, a qual foi reestruturada na década de 1990 e seu potencial ainda não foi

suficientemente testado; afirma que o caminho do crescimento industrial passa pela agregação

de valor com diferenciação de produtos, e isto deve partir da capacitação das equipes de

trabalho para gerar a capacidade produtiva (idem: 20); aponta a necessidade de uma pequena

redução da relação dívida/ PIB e uma significativa redução da relação dívida externa/

exportações (idem: 5); além de reforçar a necessidade de monitorar o câmbio e impedir a

valorização forte da moeda nacional (idem: 6). Belluzzo (2003a: 18), por sua vez, aponta a

necessidade conseguir uma taxa de câmbio muito desvalorizada e o aumento das reservas 12 "(...) as denominações de uso local e imediato se politizam por intermédio de propostas, formas organizativas, meios de mobilização e luta, generalizando o localismo das reivindicações e forçando o Estado a uma

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líquidas para controlar o problema das taxas de juros elevadas; ressalta o problema da balança

de pagamentos do Brasil, menos pela balança comercial que pode ser regulada por uma

política cambial efetiva, mais pelo “passivo externo líquido” que é o déficit na conta de

serviços; enfatiza a necessidade uma maior participação do estoque de crédito privado no

financiamento da produção, demonstrando o quanto é baixo ainda no Brasil (idem: 23) e; tem

no controle do fluxo de capitais, especialmente os de curto prazo, a proposta estrutural para

permitir um crescimento que não ponha o país à mercê dos ânimos do mercado financeiro.

Afirma, “a China, assim como a Coréia e a Índia mantém o controle de capitais e o FMI aceita

isso” (Belluzzo, 2003: 46)

Com relação à geração de empregos, uma das questões mais estruturais a ser resolvida no país

hoje, estes mesmos estudiosos em debate no Cebrap apontam alguns indicativos onde o

investimento na infraestrutura e na área social, a construção civil, as exportações e o setor de

serviços, especialmente aqueles ligados à industria são apontados como os caminhos mais

promissores. Nestes indicativos, a agricultura e o espaço rural não são citados em nenhum

momento de forma direta, por mais que se saiba que muito das exportações do país vêm daí

ou mesmo que muita infraestrutura deva ser pensada para atender o crescimento do setor de

agronegócio em especial. Apenas Belluzzo (2003), em debate com Delfim Neto, aponta a

questão agrária como um elemento central a ser considerado para se construir um

desenvolvimento nacional semelhante ao que muitos países desenvolvidos conseguiram. Ele

afirma:

“Quando falo na revolução nacional é que todos estes países fizeram , no

momento apropriado, as suas respectivas reformas agrárias. A Coréia fez, no

Japão foi o MacArthur quem fez, a Itália. Nós não conseguimos fazer. O

problema é que se está misturando a estação. O problema de posse na verdade

é de democratização da propriedade. Como é que se pode sustentar um

capitalismo mais democrático sem aceitar as lutas para democratizar a

propriedade? (Belluzzo, 2003: 46).

Para além da questão econômica especificamente e procurando dar uma ênfase maior em

ligações que possam ser feitas com perspectivas de desenvolvimento rural, procurar-se-á

apresentar a seguir algumas outras questões que se considera estruturais.

negociação global baseada em princípios gerais que orientam as políticas públicas" (Acselrad, 2001: 89).

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Qual desenvolvimento?

Uma primeira questão colocada são as noções de desenvolvimento que estão em jogo.

Conforme os atores em ação social, explicita-se diferentes noções sobre qual seria este

desenvolvimento possível. Para Acselrad (2001: 93)

"Dois caminhos parecem hoje se delinear. O primeiro propõe um

desenvolvimento que promete a cidadania: supõe a subordinação dos sujeitos

sociais à lógica econômica e vê o desenvolvimento como um processo de

ajuste das racionalidades à dinâmica da modernização. Uma modernidade

técnico-material e institucional acredita-se, integrará os cidadãos. A inserção

competitiva é, nesse quadro, quase imperativa. Um segundo caminho se

propõe, ao contrário, a construir a cidadania para o desenvolvimento. Ao

mobilizar as consciências para um ataque frontal à exclusão social, pretende a

re-elaboração do conceito de modernidade, subordinando o projeto econômico

às distintas lógicas dos sujeitos sociais. É aqui maior o espectro de

possibilidades pelas quais a vontade política elabora as pressões para a inserção

competitiva13".

Na construção de diferentes caminhos para o desenvolvimento dos povos é crucial o

entendimento que se vive um momento histórico claramente diferente do passado onde não há

a "superação da modernidade enquanto tal, mas um movimento histórico em que a

modernidade vem a entender-se a si mesma" (Giddens, 1991: 54). As diferenças do momento

de modernidade que se vive

"tem um ou mais dos seguintes significados: descobrimos que nada pode ser

conhecido com alguma certeza, desde que todos os 'fundamentos' preexistentes

da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a 'história' é destituída de

teleologia e conseqüentemente nenhuma versão de 'progresso' pode ser

plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e política surgiu com

a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos

movimentos sociais em geral" (Giddens, 1991: 52).

13 Esta visão parece se aproximar muito da de Castro (2003), onde indica que a capacidade da equipe de trabalho deve ser geradora da capacidade produtiva e não o contrário.

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A noção de que a história não possui fonte teleológica leva à percepção de que ela está por ser

construída e será a partir do entendimento e da mobilização / ação daqueles atores que se

pronunciarem frente à mesma. Neste contexto faz-se importante o entendimento quanto à

existência de uma reflexividade na produção do conhecimento e ação social, onde a

construção social depende dos agentes e suas ações, os quais estão sob a influência do

arcabouço teórico que lhes orienta e da prática que produzem, que traz como resultado novo

conhecimento e novas práticas.

Forja-se, neste cenário também, a necessidade de dar à prática popular, construída na

diversidade de sua cultura, um lugar qualificado para além de alguns atavismos teóricos que

predeterminam práticas sociais. Isto não é uma afirmação para desconsiderar a importância da

reflexão teórica, muito pelo contrário, afirma-se aqui novamente a noção de reflexividade do

conhecimento, sustentada na importância que as formulações teóricas se forjem em diálogo

com a diversidade de culturas e contextos sócio-históricos. O trabalho com esta diversidade

indica para uma opção pela noção de desenvolvimento pautada no segundo caminho apontado

por Acselrad (2001), dentre os dois que se delineiam, conforme foi apresentado

anteriormente.

Novas institucionalidades

A importância da estruturação de novas institucionalidades que dêem conta das novas

demandas geradas neste novo momento histórico é outro elemento importante. Não há como

construir novas políticas com velhas instituições. O fortalecimento da sociedade civil e dos

movimentos sociais em função do recolhimento da capacidade do Estado Nação frente às

dinâmicas do capitalismo financeiro, remete ao fortalecimento tanto da sociedade civil quanto

dos movimentos sociais, estruturando-se institucionalidades políticas que dêem conta dos

novos contextos sócio-históricos. Para Beck (1997)

"um mundo duplo está adquirindo vida (...) Por um lado, está se desenvolvendo

um vazio político das instituições; por outro, um renascimento não institucional

do político. O sujeito individual retorna às instituições da política (p. 28). O

que parecia ser 'uma retirada não política à vida privada', 'nova introjeção' ou

'cuidado das feridas emocionais' da antiga visão da política pode, quando visto

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do ângulo oposto, representar a luta por uma nova dimensão do político" (p.

32).

Pode-se afirmar com Beck um vazio político de velhas instituições, que não se adaptaram

adequadamente aos novos momentos históricos, mas pode-se também dizer que não há "um

renascimento não institucional do político", mas sim que há um constante renascer de novas

instituições políticas. Estas, nos novos cenários constantemente em alteração na "alta

modernidade" (Giddens, 1991), necessitam de elevada capacidade de leitura da realidade e de

produção de respostas à mesma, para assim se consolidarem enquanto instituições estáveis e,

mesmo assim, preparadas para as mudanças que as transformações sócio, econômicas e

políticas constantemente exigem.

Campesinato e reforma agrária

Também no caso do campesinato, apesar das previsões de seu fim, bem como da percepção de

que ele representava um entrave para o desenvolvimento econômico brasileiro, percebe-se

que há regiões do país em que ele claramente se adaptou às mudanças históricas que

ocorreram, se modernizando, de onde se formaram "agricultores profissionais". Mesmo onde

não houve uma incorporação tão forte do campesinato à modernização capitalista da

agricultura implementada no país, observa-se que há situações de continuidades e renovações

do mesmo. Assim, tanto se mantêm existindo um campesinato com poucos vínculos em

relação ao mercado, quanto aquele com vínculos parciais e outros com vínculos mais

totalizadores em relação ao mercado, neste caso "agricultores profissionais" (Abramoway,

1992).

Nas décadas de 1950-60 havia visões que vinculavam a ampliação do acesso à terra como

uma justificativa para o desenvolvimento econômico brasileiro, enquanto desde lá, outras

visões não consideravam esta tese realista14. Ainda hoje, há divergências quanto à relevância

da ampliação do acesso à terra para o desenvolvimento econômico brasileiro15. O

desenvolvimento econômico brasileiro está menos condicionado à ampliação do acesso à terra

14 É particularmente marcante o debate entre Caio Prado Júnior, enfatizando a importância da expansão dos direitos trabalhistas para o campo, e Alberto Passos Guimarães, defendendo a distribuição de terras para superar os traços feudais da agricultura brasileira. 15 Posição marcante a favor é a de José Eli da Veiga, defendendo-a como elemento para multiplicação da agricultura familiar no país, esta vista como economicamente superior à agricultura patronal. José Graziano da Silva, por sua vez, defende a reforma agrária como política social e não econômica.

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do que o desenvolvimento social16. Como estes dois vieses do mesmo desenvolvimento

(econômico e social) se entrecruzam, a geração de uma reforma agrária, considerando os

estoques de terra que possui o governo federal brasileiro, ou que potencialmente pode vir a

ter17, pode ser importante fator de desenvolvimento social que se articule com o

desenvolvimento econômico. Para Martins (2000) a questão agrária

"redefine-se como questão política engendrada pela questão social (...) (124).

Na questão agrária há o lado do direito de propriedade só parcialmente

atenuado ao longo da história republicana e há o lado dos problemas sociais

que gera em ritmo relativamente rápido. É este desencontro que faz com que a

questão agrária se manifeste como questão social e não como questão

econômica ou simplesmente política" (126).

Assumindo uma proposta de reforma agrária que se estabeleça no contexto histórico atual

brasileiro se estaria "reconhecendo o lugar da agricultura familiar na sociedade e na

economia” (Martins, 2000). Nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, considerando o mercado

consumidor existente e o arranjo de população rural e urbana, se faz importante pensar uma

reforma agrária que transcenda à dimensão da produção agropecuária e se estruture gerando

um leque mais amplo de alternativas de trabalho e renda para as populações assentadas. Para

Silva

"(...) a reforma agrária não precisa mais ser essencialmente agrícola, pelo

menos no eixo centro-sul do país. O espaço rural não mais pode ser pensado

como lugar produtor de mercadorias agrárias e ofertador de mão-de-obra. Além

de ele poder oferecer ar, água, turismo, lazer, bens de saúde, possibilitando a

gestão multi-propósito do espaço rural, oferece a possibilidade de, no espaço

local-regional, combinar postos de trabalho com pequenas e médias empresas"

(1999: 29).

16 Há dúvidas quanto ao impacto da reforma agrária no desenvolvimento econômico brasileiro face à importância assumida nos últimos anos pelo agronegócio de exportação praticado nas grandes propriedades, bem como o papel preponderante da indústria na economia e geração de empregos em nível nacional. 17 Apenas para se ter uma idéia do potencial estoque de terras que o Estado brasileiro poderia dispor para a reforma agrária, segundo Martins (2000) "o Ministério de Política Fundiária promoveu, nas últimas semanas de 1999, a anulação dos títulos de 3.065 propriedades, correspondentes a 93 620 587 hectares de terra, conforme o Livro Branco da Grilagem de Terras, duas vezes a área da França" (p. 124).

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A questão ambiental

A incorporação da questão ambiental no estabelecimento de linhas de ação e proposta de

políticas é outro elemento central. O peso desta questão é crescente na opinião pública

internacional e nacional. No cenário de um Estado enfraquecido a opinião pública e a

sociedade civil organizada são estratégicos para incorporação da questão ambiental nas

agendas "desenvolvimentistas". No entanto, apesar de seu caráter estratégico,

"a capacidade da sociedade civil de influenciar as políticas ambientais do

governo tem se revelado restrita. Em primeiro lugar porque, como vimos, a

própria capacidade institucional do Estado de fazer política ambiental tem sido

reduzida. Por outro lado, as representações de organizações não-

governamentais (ONG's) no Conselho Nacional de Meio Ambiente foram se

constituindo paralelamente ao próprio enfraquecimento político deste órgão"

Acselrad ( 2001: 90).

A incorporação de questões ambientais nas agendas, particularmente no que se refere à

produção agrícola, é um elemento necessário ao próprio desenvolvimento capitalista no

campo. Para Romeiro (1998), o paradigma produtivista vem sendo superado por um

paradigma qualitativista e diversificado. "As demandas de ordem ambiental compõem, junto

com pressões de outra natureza, um conjunto de fatores de mudança do paradigma

produtivista". Ainda para o autor

"Considerando, entretanto, as restrições comerciais e de gestão e os interesses

industriais estabelecidos, o atual ambiente seletivo tem levado à busca de

soluções que minimizem a degradação sem necessidade de mudança radical de

padrão tecnológico, embora tenham um impacto considerável sobre o perfil

produtivo do setor agroindustrial" (Romeiro, 1998: 121).

O desenvolvimento territorial local

No contexto das transformações que vem se processando na história do desenvolvimento rural

brasileiro, bem como nas transformações recentes que exigem dos atores sociais entendimento

que lhes permita melhor construir suas práticas, outra questão colocada é a inserção do

desenvolvimento rural em dinâmicas de desenvolvimento local. Isto especialmente em

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municípios com menos de 20.000 habitantes. Para Silva (1999: 32) mais de um quinto da

população brasileira residia em municípios com menos de 20 mil habitantes, segundo o senso

de 1991. Por outro lado, utilizando os critérios do IBGE, menos de 20% da população

brasileira residia no espaço rural segundo o senso 2000. Aplicando-se os critérios de

densidade populacional, conforme é feito pelos países da OCDE, “apenas 411 dos 5.507

municípios brasileiros existentes em 2000 seriam considerados urbanos” (Veiga, 2002)18. É

nestes municípios que se concentra a maioria da população rural brasileira e da PEA agrícola

com domicílio urbano. Para Silva

“A falta de infra-estrutura social básica nos locais onde as atividades giram em

torno da agropecuária transformou os povoados em apenas um passo

intermediário do êxodo em relação às metrópoles. Por isso é fundamental que

também nestas pequenas e médias cidades do interior se implemente uma

estratégia de criação de empregos não-agrícolas, dotando-as de infra-estrutura

adequada (luz, água, esgoto, saneamento básico, creches, escolas, hospitais,

etc) e estimulando a instalação nelas de agroindústrias, com objetivo de

aumentar o valor agregado da produção agropecuária local e evitar os

conhecidos "passeios de safra", que, além de prejudiciais ao país, drenam a

maior parte do excedente da renda agrícola das regiões interioranas" (1999:

32).

Nestes municípios se processa forte relação sócio-econômica da população rural com a

população urbana. Investir em infra estrutura sócio-econômica para estes eles,

desconcentrando o processo de desenvolvimento, seria reverter o viés urbano-industrial e

concentrador estabelecido no desenvolvimento econômico nacional, especialmente a partir da

segunda metade do século XX. Mas tal investimento que deve se processar de forma

integrada, articulando diversos fatores sociais, econômicos e ambientais, potencializando

novos arranjos produtivos e organizativos locais. Nestes espaços, do ponto de vista

econômico, pode-se aproveitar um potencial que ainda é presente em muitos municípios e

regiões essencialmente rurais, que é um nível de "solidariedade comunitária em torno de um 18 Em tipologias estruturadas para melhor orientar as políticas de promoção do desenvolvimento regional, a OCDE (1994) propõe definir-se as regiões em três tipos: essencialmente rurais, relativamente rurais e essencialmente urbanas. A definição de essencialmente rural contempla os critérios de mais de 50% da população residir no meio rural, sendo o meio rural, neste caso, definido como unidades locais com densidade demográfica inferior a 150 hab/km2. Para a OCDE locais essencialmente urbanos possuem mais de 150 hab/km2 e menos de 15% de sua população residindo no espaço rural.

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sistema de valores" Raud (1999: 42). A autora, estudando o caso dos distritos industriais das

regiões nordeste e centro da Itália, afirma que

"A hipótese levantada foi a de que o sucesso dos distritos dependeria da

raridade dos comportamentos oportunistas. As relações intra e interfirmas

teriam mais a aparência de trocas sociais baseadas na confiança, comportando

obrigações difusas e informais típicas das relações familiares ou de amizade,

do que a de trocas econômicas oportunistas, implicando obrigações específicas

e contratuais. Os estudos empíricos confirmam essa hipótese" (p. 53).

Um arranjo de desenvolvimento econômico como este dos distritos industriais italianos

aponta na direção do segundo caminho possível para o desenvolvimento, sinalizado

anteriormente por Acselrad (2001). Para ele

"Um tal desenvolvimento, para a construção do qual políticas ambientais

integradas ocorreriam, democratizando a base material da sociedade, apoiar-se-

ia nas possibilidades oferecidas pela variedade de biomas, ecossistemas e

demais configurações territoriais, ou seja, na diversidade de saberes dos

sujeitos sociais que se referenciam a esses territórios” (95).

Apesar de haver muitas experiências positivas espalhadas pelo mundo que mostram o

potencial de modelos como os distritos industriais, ou a construção de dinâmicas de

desenvolvimento a partir de arranjos territoriais locais, os processos de financeirização

ligados à lógica de globalização vêm ganhando força, conforme aqui demonstrado. O futuro

do desenvolvimento rural e geral da sociedade ocidental e global está por ser construído.

Fato é que os dois modelos polares apresentados, um que coloca os atores sociais

subordinados à lógica econômica e, outro, que propõe subordinar o projeto econômico às

distintas lógicas dos sujeitos sociais, vêm sendo construídos paralelamente nas dinâmicas de

ação social pelo mundo. Muita tensão e novos arranjos vêm sendo produzidos do

enfrentamento destas diferentes perspectivas de desenvolvimento. Novas sínteses destes

processos de luta se constituirão como realidade, o que representando novo resultado de

contradições sociais, políticas e econômicas, produzirá novas lutas e exigirá novas análises

para seu repensar futuro.

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