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Incondicional 'CAPÍTULO 01' Novela criada e escrita por JOÃO CARVALHO NETO Com direção de LUCAS LUCIANO WESLLEY VITORITTI VITOR ABOU (C) MEGAPRO - 2021 Todos os direitos reservados ao autor e ao Megapro 1T

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Incondicional

'CAPÍTULO 01'

Novela criada e escrita por JOÃO CARVALHO NETO

Com direção de LUCAS LUCIANO

WESLLEY VITORITTI VITOR ABOU

(C) MEGAPRO - 2021 Todos os direitos reservados ao autor e ao Megapro

1T

1 EXT. BALADA - NOITE.

O clima é enérgico. As luzes invadem o ambiente por todos os cantos--

Muitos jovens se divertem. Bebem, dançam. Em um canto, alguns deles usam drogas ilícitas. Reviram os olhos. Estão em êxtase.

No meio do salão, FELIPE, 20, magro, um pouco duro na dança, cabelos enrolados como de um anjo, se diverte ao seu modo, enquanto é estimulado por algumas meninas que dançam bem próximas às suas partes íntimas.

MARINA, 20, olhos esverdeados, de beleza fascinante, se aproxima de Felipe e morde sua orelha de forma sensual. Ele busca resistir. Ela o puxa para si e lhe dá um beijo sensual, desinibido.

Os outros jovens que ali circundam APLAUDEM o belíssimo beijo do casal.

MARINAQue tal irmos pra minha casa? A gente vê um filminho, toma um vinho. Ah, e claro, a gente pode repetir esse beijo algumas vezes até que--

FELIPE(Sorri)

Eu adoraria, mas... não dá! É que eu prometi que iria pra casa. Amanhã é aniversário da minha mãe, e--

MARINAFelipe, é sério... Você precisa desmamar logo da sua mãe. Tá ficando chato, sabia?

FELIPEEu sinto muito, Marina. Mas é isso.

A conversa é interrompida por GAEL, 21, alto, corpo atlético, sem camisa, daqueles que não costumam ter responsabilidade. Gael chega com um copo de energético, já com os olhos avermelhados de embriaguez.

GAELEi, bora tomar mais uma?

2.

FELIPENão posso. Valeu. Por falar nisso, Gael, eu já vou indo, beleza? Amanhã é aniversário da minha mãe. Não quero passar o dia da coroa com cara de chapado.

GAELTem razão. Tem total razão. Cara, às vezes eu gostaria de realmente aprender um pouco contigo. Tu é muito responsável. A última vez que eu fiz uma coisa direito foi quando eu fiz o meu filho. Foi de surpresa, mas não é que o molequinho tá esperto?!

(muda de assunto)Espera só um minutinho que eu pego a chave do carro e vou contigo!

FELIPENão. Não precisa, Gael, eu não quero--

GAELNão, que isso. Amigo é pra essas coisas. Segura aí!

Gael se afasta de Felipe. Marina olha para Felipe com desprezo, irritada. Ele não se importa.

2 I/E. CARRO DE GAEL - NOITE.

Gael está dirigindo, enquanto bebe. Vira uma garrafa de cerveja na boca. Também está CANTAROLANDO uma música qualquer. Felipe está ao lado, no banco de passageiros, preocupado, aflito, olhando para Gael.

GAELQue foi? Não vai me falar que tá com medo do amigo aqui? Me fala o dia, vai? O dia que eu te deixei na mão?

FELIPENão é isso, Gael. Olha seu estado, cara. Me dá esse carro aqui, eu levo pra você--

GAELNÃO! Tá doido? Eu te trouxe, eu te levo! Relaxa, vai. Se você quiser, pode até dormir um pouquinho. Eu prometo que não vou te deixar na rua.

3.

FELIPEAssim eu espero!

Gael liga o RÁDIO. Ouvimos tocar DÊ UM ROLÊ - PITTY. Gael __________________ começa a cantar junto.

GAEL(Canta)

Não se assuste, pessoaa! SE EU LHE DISSER QUE A VIDA É BOAA!

Felipe se mostra incomodado com o som alto e o desequilíbrio de Gael no volante.

GAEL (CONT' D)Ah, para de frescura, vai! Canta comigo, pô!

FELIPENão, não. Eu tô bem assim.

Um carro passa ao lado do carro de Gael e BUZINA.

Gael abre a janela. O carro PARA.

GAELEi, qual foi, irmão?

O homem que está no carro abre a janela de seu veículo. HOMEM#1 e HOMEM#2 encaram Gael e Felipe.

HOMEM#1Topa um racha?

GAELAgora?

HOMEM#1É, ué. A estrada tá vazia. E só tem nós dois. O que perder vai ter que descolar 100 reais pro outro.

GAELÊ, mas esse valor tá baixinho... 300?!

HOMEM#1Pode ser!

FELIPESe você for fazer, me deixa descer!

4.

HOMEM#2Ih, qual foi, frutinha? Não vai acontecer nada, não. Relaxa!

GAELEu te garanto que eu vou tomar cuidado, Felipe!

Do LADO DE FORA DO CARRO, vemos que ambos os veículos estão se preparando para iniciar

Os carros SEGUEM rapidamente. Alguns outros carros aparecem na pista. Eles cortam. São rápidos demais. Escutamos os BARULHOS dos pneus pelas curvas.

Dentro do CARRO, Gael está completamente alucinado. Corre cada vez mais. Vemos seu pé com bastante força no acelerador. Felipe, por sua vez, segura forte em todo lugar que consegue. Está nervoso, aflito.

FELIPEPARA COM ISSO! CÊ NÃO TÁ VENDO QUE A PISTA TÁ COMEÇANDO A FICAR CHEIA?

GAELFICA TRANQUILO! SENTE A VIBE, MANO! A ADRENALINA. É ISSO QUE IMPORTA!

Gael começa a GARGALHAR. Felipe permanece tenso. O carro deles conseguem ultrapassar o carro dos outros. Gael comemora.

Gael olha para trás pela janela do carro.

GAEL (CONT'D) VAI TOMAR NO CU, SEU BANDO DE IDIOTAS!

FELIPEGAEL, OLHA PRA FRENTE!!!!

Gael olha para frente e vê uma imensa carreta com gado. Perde completamente o controle do volante e dos freios. Vemos que tenta pisar nos FREIOS várias vezes, sem resultado e...

... o carro vai de encontro à carreta e logo após capota repetidas vezes pela pista.

FADE TO:

5.

3 EXT. RUA - MOMENTOS DEPOIS.

A rua está completamente congestionada. Vários carros estão parados com seus motoristas do lado de fora.

Ambulâncias, corpo de bombeiros e policiais estão em volta do local, que está com o carro de Gael completamente destroçado. Vemos correria, rapidez, preocupação. Vários membros oficiais de salvamento fazendo telefonemas pelos cantos.

Em meio ao amontoado de pessoas, ANA, 44, cabelos castanhos, roupas casuais, empalidecida, com muitas marcas na pele, demonstrando também certa descontrole emocional, com uma bolsa, segue junto de FERNANDO, 36, alto, parrudo, firme, com um terno, o que mostra sua excessiva formalidade. Parece não se preocupar com o que está acontecendo.

Ana se aproxima rapidamente de um paramédico (PARAMÉDICO#1), nervosa e aflita.

ANAEu sou Ana. Ana, mãe do Felipe. Doutor, por favor. Onde é que tá o meu filho? Já levaram ele pro Hospital? Eu quero ver meu filho!

FERNANDOCalma, Ana. Deixa o doutor falar!

ANADoutor, pelo amor de Deus! O Felipe... O meu filho é tudo o que eu tenho, onde é que tá o meu--

Sem que o médico tenha chance de respondê-la, Ana olha para frente de onde está e vê o carro do IML. Ao lado dele, em um saco acinzentado, o corpo de Felipe está sendo colocado e fechado. Sim, ele está morto.

As lágrimas nos olhos de Ana surgem repentinamente em meio ao desespero. Joga sua bolsa ao chão e corre muito rápido antes que fechem por completo a sacola.

ANA (CONT'D) LARGAAAA O MEU FILHO! VOCÊ NÃO VAI LEVAR MEU FILHO EMBORA! NÃO VAI!

O corpo de Felipe está completamente marcado por machucados externos. Ana segura sua cabeça, a única parte do corpo fora do saco.

6.

ANA (CONT'D) FILHO, VOCÊ NÃO PODE ME DEIXAR! VOCÊ NÃO PODE DEIXAR A MAMÃE! MEU FILHO, PELO AMOR DE DEUS! AMANHÃ É MEU ANIVERSÁRIO! A GENTE TEM QUE PASSAR ELE JUNTOS, COMO SEMPRE FOI! POR FAVOR! MEU FILHO, NÃO! OLHA PRA MAMÃE! ABRE OS SEUS OLHOS! DIZ PRA TODO MUNDO QUE É MENTIRA! DIZ! DIZ QUE VOCÊ NÃO VAI ME DEIXAR! QUE É TUDO MENTIRA, QUE É BRINCADEIRA SUA! POR FAVOR, MEU FILHO! FALA COMIGO!

Fernando compreende o que acaba de acontecer. Está visivelmente chocado, mas não esboça reação. Observa Ana, abraçado ao corpo de Felipe, chorando e soluçando muito.

Nos afastamos lentamente vendo a imagem dilacerante de Ana, que deita-se em cima do filho e chora descontroladamente.

4 INT. APTO DE ANA - SUÍTE DE ANA - DIA.

O quarto é elegante e sofisticado. É todo pintado em cores neutras e possui um amplo espaço.

Ana acorda. Passa as mãos pelo rosto, ainda despertando realmente.

Levanta-se.

Põe os chinelos.

Ana vai até próximo a sua cômoda, onde pega o porta-retratos com uma foto dela, Fernando e Felipe em um PARQUE. Sorri. Deixa o retrato no mesmo lugar. Segue em direção ao...

BANHEIRO:

Ana se olha no espelho. Pausa rápida. Liga a torneira e lava o rosto. Continua a se olhar no espelho, em silêncio.

5 INT. APTO DE ANA - COZINHA - DIA.

O café já está posto. A mesa é farta, com frutas, sucos e café tradicional.

Fernando toma café e come uma banana, enquanto também mexe no celular.

Ana entra. Está bem vestida e senta-se à mesa sem falar nada. Fernando deixa o celular e olha para ela, estranhando-a.

7.

FERNANDOVocê em casa a essa hora? Você não tinha me falado que tinha uma cirurgia pela manhã, que era quase caso de vida ou morte.

ANA(Enquanto passa manteiga no pão)

É. Até era, mas eu decidi marcar pra mais tarde. Hoje faz um ano da morte do Felipe, eu quero dar uma passadinha no cemitério antes e--

FERNANDOPeraí... Deixa eu ver se eu entendi direito: você desmarcou uma cirurgia pra ir no cemitério deixar flores pro nosso filho?

ANASim, e qual o problema?

FERNANDOO problema é você não enxergar problema nisso!

ANAAh, me poupe, Fernando. Discussão banal a essa hora da manhã--

FERNANDODiscussão banal, Ana? Ana, para pra pensar! Você tá deixando o seu trabalho de lado pra viver eternamente um luto de um filho que já morreu há um ano--

ANAUm filho que já morreu há um ano pra você, né? Não, porque pra você realmente, Fernando. Realmente é como se nada tivesse acontecido. É como se o Felipe tivesse ido estudar no exterior e pudesse voltar. Entrar por aquela porta a qualquer momento e sentar aqui, do nosso lado. Sinceramente, eu acho que quem não tá conseguindo enxergar a realidade é você!

8.

FERNANDOA vida continua, Ana! A vida continua é a gente precisa continuar junto com ela! Nós temos uma casa, uma filha pra sustentar. Uma vida! Vida, sabe o que é?

ANANão. Eu não sei o que é. Porque eu até sabia. Sabia. Mas eu desaprendi. Eu já não sei mais o que é vida desde o dia em que eu tive que entregar o meu filho pra sete palmos de terra. Desde esse dia, eu sobrevivo!

FERNANDOVocê não percebe? VOCÊ NÃO PERCEBE QUE TODOS OS DIAS O QUE VOCÊ FAZ É TENTAR SUBSTITUIR DE ALGUMA MANEIRA A PRESENÇA DO FELIPE? VOCÊ VIVE O FELIPE. VIVE COMO SE FOSSE ELE! VOCÊ NÃO É DEUS, ANA! VOCÊ NÃO TEM O PODER DE MUDAR AS COISAS! A SUA CONVIVÊNCIA COM QUALQUER PESSOA TÁ SE TORNANDO INSUSTENTÁVEL. PORQUE VOCÊ FALA DO FELIPE, VIVE PELO FELIPE, AMA PELO FELIPE, BRIGA PELO FELIPE. SÓ QUE VOCÊ NÃO CONSEGUE ENTENDER QUE O FELIPE NÃO EXISTE MAIS--

ANACALA A SUA BOCA! CALA A SUA BOCA IMUNDA QUANDO FOR PRA FALAR ISSO DE NOVO! PRA FALAR QUE O MEU FILHO NÃO EXISTE MAIS. SABE O QUE NÃO EXISTE MAIS, FERNANDO? NÃO EXISTE MAIS É O RESPEITO! NÃO EXISTE MAIS É O AMOR! É, O AMOR! PORQUE SE ELE EXISTISSE VOCÊ ESTARIA COMIGO. ESTARIA COMIGO 24H POR DIA QUANDO EU TIVE QUE ENTERRAR O MEU FILHO. E O QUE VOCÊ FEZ? AHN? SE ENFURNOU DENTRO DAQUELE ESCRITÓRIO. VIVEU UM LUTINHO DE DOIS, TRÊS MESES, E DEPOIS SEGUIU A TUA VIDA. SEGUIU A TUA VIDA COMO SE A GENTE COLOCADO O FELIPE NO MUNDO!

FERNANDOEu sei! Eu entendo! Eu entendo o que você sofreu porque eu sou pai, eu sofri também--

9.

ANANÃO! NÃO ENTENDE! NÃO ENTENDO PORQUE EU SOU MÃE! EU SOU MÃE E EU PERDI UM FILHO, FERNANDO! UM FILHO! E UMA MÃE NUNCA SUPERA A PERDA DE UM FILHO! NUNCA!

FERNANDOE eu sou um pai! Um pai que sofreu dia e noite pela morte do filho, Ana! Dia e noite! Que se entupiu de trabalho por culpa. Por não ter dado mais atenção ao meu filho e, assim como você, ser obrigado a enterrar ele! Mas ao contrário de você, eu quero continuar vivendo! Eu quero e eu vou continuar vivendo! Eu enterrei o meu filho, sim, mas eu não vou me enterrar junto com ele! Aliás, nem junto com ele, nem junto com você!

Fernando se levanta e retira-se da mesa. Ana fica completamente abalada. Seus lábios tremem de nervoso.

6 INT. CARRO DE FERNANDO - DIA.

Fernando dirige nervoso, trêmulo. Olha fixamente para frente. o CELULAR, que está em cima da poltrona do carona, TOCA.

Fernando atende.

FERNANDOAlô?!

(pausa)Desculpa! Mas eu tô no trânsito, cheio de coisa na cabeça. Tem como a gente conversar depois? Depois eu prometo que a gente conversa e eu te conto tudo que tá acontecendo. À noite! Pode ser?

(pausa rápida)Então ótimo. A gente se vê mais tarde. Tchau.

SINAL VERMELHO. Fernando para o carro. Dá um soco no volante com raiva.

7 EXT. CEMITÉRIO - DIA.

Vemos Ana se aproximando de longe de uma das lápides, com um buquê de rosas nas mãos. Deixa as rosas em um túmulo. Nele

10.

está escrito: "FELIPE DIAZ GONÇALVES - 20/01/1996 + 20/03/2016"

ANAMesmo que o tempo passe rápido, meu filho. De uma coisa você pode ter certeza: eu nunca vou me esquecer de _____ você! Das nossas conversas, da nossa ligação. Você foi a coisa mais importante que eu já tive na vida! E eu acho que eu nunca vou conseguir superar ter te perdido assim, sem poder me despedir. Sem poder te colocar pra dormir pela última vez. E sem fazer também aquele capuccino que você tanto amava. Mas sabe de uma coisa? Embora o seu pai queira te transformar em memória, eu quero que você seja presença.

(pausa longa)Que você seja presente! Sempre, sempre!

Ana sorri.

Nas flores no túmulo.

8 INT. F GONÇALVES ADVOCACIA - ESCRITÓRIO DE FERNANDO - DIA.

Espaço amplo e com muitos certificados na parede.

Fernando entra estressado. Vai diretamente até sua cadeira. MAURO, 40, alto, de posição um pouco submissa, vai logo atrás de Fernando.

MAURONós temos alguns papéis, umas petições urgentes também que você precisa assinar, Fernando. Aquele caso também que você tinha nos reportado, ótima notícia: a tutela de urgência foi deferida! O bebê já está sob tutela do pai!

FERNANDOMe desculpe, Mauro, mas depois. Pode ser?

MAUROMe desculpe intrometer, Fernando, mas: tá acontecendo alguma coisa? Nós somos

(MORE)

11.

MAURO (CONT'D) amigos, com a gente não há cerimônia.

FERNANDOTá, Mauro. O pior é que tá. Eu simplesmente não consigo mais ter paz dentro da minha próxima casa. E a situação tá cada mais insustentável.

MAUROPor quê? Não me diga que a Clarissa está--

FERNANDONão, não. A Clarissa dos males é o menor. O problema é a Ana. O problema é a Ana achar que a vida acabou! Que agora a gente tem que jogar tudo pro ar e viver eternamente o luto pela morte do Felipe. Eu, sinceramente, já não sei mais o que fazer.

MAUROEla ainda tá na mesma?

FERNANDOTá. E sabe o pior, Mauro? É que ela tá completamente lúcida. É, você percebe. Ela não tá descontrolada. Ela realmente acredita no que tá dizendo. Acredita que a gente tem que viver esse luto eternamente.

(pausa)Eu entendo o lado dela como mãe. Entendo perfeitamente. Ela sempre trabalho. Deu duro a vida toda, mas sempre teve lá, presente na vida do Felipe, da Clarissa...

Mauro encara Fernando, escutando o que ele diz.

9 INT. CLÍNICA SANTA SARA - LAB DE INSEMINAÇÕES - DIA.

Ambiente completamente fechado. Vários médicos e enfermeiros em volta de uma mulher, que está posicionada no centro de uma maca, fazendo inseminação artificial.

No meio de todos, Ana está ao lado, observando tudo, mas com a cabeça longe e o olhar fixo em um único ponto.

HILDA, 34, magra, olhar profunda e olheiras, está ao lado de

12.

Ana, observando sua inércia e dificuldade em ajudar no processo.

FERNANDO (V.O)...Mas acontece que ela não pode levar pro mesmo barco furado que ela todo mundo! Eu vou fazer o quê? A morte, infelizmente, é natural da vida. E quem não consegue entender isso, vai só se afundar!

Hilda pega na mão de Ana, que desperta de uma espécie de transe.

HILDA(Fala baixo)

Vem comigo!

Hilda puxa Ana pelas mãos e sai com ela dali.

10 INT. CLÍNICA SANTA SARA - CANTINA - DIA.

Ana e Hilda estão tomando um café.

HILDAVocê precisa reagir, Ana. Não é a primeira que você vai pro laboratório assim aérea.

ANANão. Eu sei. Eu tô completamente errada e aceito o puxão de orelha. Acontece que tá sendo muito difícil pra mim, Hilda.

HILDAEu sei. Eu sei. Eu acompanhei a sua luta, mas se você quiser continuar tendo um trabalho e sendo a diretora clínica daqui, vai precisar reagir, minha amiga.

ANANão, mas eu não tô nem falando do Felipe. Eu falo do Fernando. Da maneira como ele me trata. Na verdade, como ele me tratou todo esse tempo. É sério, Hilda. Às vezes eu me culpo, sabia? É, eu me culpo. Eu fico me perguntando se não fui a culpada disso tudo. O Fernando vivia falando que eu

(MORE)

13.

ANA (CONT'D) era muito liberal. Amiga, compreensiva demais. E parece que quando o Felipe morreu, de alguma forma, sem que ele perceba, ele me matou também. E ele acha que fui... Que eu é que decidi parar de viver. Acontece, Hilda, que eu vivi o meu luto sozinha. A Clarissa passou esse tempo todo trancada dentro do quarto. E o Fernando não saía daquele escritório--

HILDAÓ, vamos parando. Você não tem culpa de nada. E se você não tá gostando da forma como o Fernando tem te tratado, fala com ele. É, fala com ele. Eu sei que é até covarde falar isso pra você, mas embora o Felipe tenha ido embora, o seu casamento ainda existe. Ainda tá acontecendo. E vai por mim: ninguém merece viver um casamento infeliz.

ANATá vendo? Parece que do dia pra noite a minha vida desapareceu. O meu casamento que todo mundo que tinha como referência ruiu. O meu filho tá morto. E a minha qualidade profissional, digamos assim, já não é mais a mesma.

HILDATalvez porque você sempre se cobrou demais. E agora não tá conseguindo viver no meio da imperfeição, mas olha... Vai por mim. A conversa é sempre o melhor remédio.

ANAMas eu tô com umas desconfianças, sabe? Não sei, não.

HILDAQue desconfianças?

ANAEu acho que o Fernando tá me traindo.

HILDASerá?

14.

ANAÉ. Ele sai todas as noites. Nunca diz pra onde vai. Algumas até. Mas a resposta é sempre a mesma: reunião de trabalho. Eu não sou nenhuma otária, né?

HILDAEntão observa. Observa bem e fica atenta. É melhor sofrer de uma vez, do que ficar a vida inteira alimentando falsas esperanças. Se a sua desconfiança não se confirmar, converse. Jogue limpo. Fala a verdade!

ANACê tem razão. Seria tão fácil, Hilda, se de alguma forma eu conseguisse substituir o espaço do Felipe no meu coração, sabe? É impossível, eu sei. Mas é como uma doença no sistema imunológico sabe? Basta um vírus oportunista chegar, e você cai. Desmorona. É assim que eu me sinto sem o Felipe. É como se eu não conseguisse aguentar nem uma gripe mais, que o meu mundo desmorona.

HILDAMas confia em mim: isso vai mudar! Vai mudar porque eu tô com você e porque você vai conseguir reconstruir a sua vida!

Ana sorri. Hilda dá as mãos para Ana e sorri também.

11 INT. APTO DE ANA - SALA - NOITE.

O ambiente é extremamente luxuoso e elegante. Luzes espalhadas até pelas paredes.

Ana ENTRA completamente exausta. CLARISSA, 18, magra, alta, meio "aérea", está sentada no sofá mexendo em seu celular.

ANAOi, filha!

Clarissa deixa o celular ao lado rapidamente. Olha para Ana.

CLARISSAOi, mãe!

15.

ANACê pede um lanche hoje? Eu tô muito cansada! Preciso capotar e dormir!

CLARISSATudo bem. Quer que peça um pra você também?

ANANão, não. Obrigada. Eu já comi na Clínica. Boa noite!

CLARISSABoa noite!

Ana sobe as escadas. Clarissa permanece mexendo em seu celular.

12 INT. APTO DE ANA - CORREDOR - NOITE.

Ana está tão cansada que vai se escorando pelas paredes do corredor. Até que ela passa pela PORTA DO QUARTO DE FELIPE.

A porta está pintada em um azul bebê, com o nome "FELIPE" em uma placa de madeira média, e alguns desejos colados sobre ela.

Ana sorri.

13 INT. APTO DE ANA - CORREDOR - DIA. (FLASHBACK)

Ana e Fernando estão mais jovens. Felipe, ainda criança, com uns 7 anos, e Clarissa está no colo de Ana. Todos estão à frente da porta do quarto de Felipe.

FELIPECaraca! Que bacana a porta! Valeu, mãe! Valeu, pai!

ANAQue bom que você gostou, meu filho! Agora, pra completar e pra mamãe e o papai verem realmente a sua felicidade, falta você abrir o quarto e ver o que tá te esperando lá dentro!

FERNANDOVamo, filho! Tá esperando o quê?

FELIPEPosso?

16.

ANAVaai!

Felipe abre a porta. Ana e Fernando se encaram, realizados.

14 INT. APTO DE ANA - QUARTO DE FELIPE - DIA. (FLASHBACK)

Ao abrir a porta, Felipe depara-se com um quarto cheio de brinquedos e todo azul. Uma cama belíssima dos "CARROS" da Disney.

Abre a boca maravilhado. Vai rapidamente em direção a um baú de pirata, situado ao lado de sua nova cama.

Ana e Fernando se aproximam um do outro, maravilhados.

FERNANDOE aí, filhão? Gostou da surpresa?

FELIPESe eu gostei? Eu adoreei!

ANAPois então tá dado. Esse é seu novo quartinho a partir de agora. É aqui que você vai brincar. Convidar seus amigos. Já pensou que bagunça?

FELIPEObaa! Não vejo a hora de contar pro Ruan. Ele que vai gostar de brincar aqui!

ANAPode deixar que eu vou ligar pra sua tia e pedir pro Ruan passar uns dias aqui. Tá legal?

FELIPETá!

Felipe se aproxima de Ana e Fernando, ficando a frente deles:

FELIPE (CONT'D)Pai, mãe! Vocês são os melhores pais do mundo!

ANAOwwnn! Você que é um filho maravilhoso! Abraço coletivo!

17.

Ana, Fernando, Clarissa e Felipe se abraçam.

VOLTA À CENA

15 INT. APTO DE ANA - CORREDOR - NOITE.

Continuação imediata da cena 12;

Descem lágrimas dos olhos de Ana, que as limpa rapidamente.

Ana põe a mão sobre a maçaneta do quarto de Felipe. Pausa. Até que--

ENTRA.

16 INT. APTO DE ANA - QUARTO DE FELIPE - NOITE.

Ao entrar, Ana observa tudo o que está o redor. O quarto está diferente do que apresentado na CENA 14. Possui um ar mais adolescente, mas com algumas essências, como o BAÚ, que permanece ao lado da cama. Também estão presentes no local, várias MEDALHAS e TÍTULOS, além de fotos de Felipe em piscinas.

Ana vai até a cama. Senta-se. Observa tudo ao redor. Não diz absolutamente nada. Apenas sente a emoção do momento.

Fernando aparece na porta. Ana limpa suas lágrimas e pressente a presença de alguém, até que olha para a porta e vê Fernando. Pausa longa.

ANAFoi ao cemitério? Deixou alguma flor no túmulo do seu filho?

FERNANDOEu sinto te dizer, Ana, mas as suas chantagens emocionais não me comovem mais.

ANANão precisa dizer. Eu sei disso.

FERNANDOEu vim te avisar que eu tô de saída!

ANAAgora?

FERNANDOÉ. Reunião de emergência. E eu não

(MORE)

18.

FERNANDO (CONT'D) volto pro jantar.

ANAÓtimo. Até porque hoje não tem jantar!

FERNANDOTudo bem. Boa noite!

ANABoa noite!

Fernando se retira dali. Ana pega seu celular no bolso e disca.

17 INT. APTO DE ANA - SALA - NOITE.

Ana desce as escadas rapidamente. Clarissa, que vê TV, estranha.

CLARISSAQue isso? Que correria toda é essa? Tá acontecendo alguma coisa? Primeiro o meu pai, agora você!

ANANão. Não tá acontecendo nada! Clarissa, eu tô indo resolver uma coisa urgente. Depois a gente conversa, tá? Tranca a porta e não abre pra ninguém. Quando eu voltar, eu te ligo.

CLARISSATá, então tá bem. Mas qualquer coisa, liga, tá bom?

ANAPode deixar. Beijo.

Ana sai rapidamente. Clarissa continua estranhando tudo.

18 INT. CARRO DE ANA - NOITE.

Ana está com o carro estacionado ao lado de um prédio. Olha para frente sem vacilar. Vemos que Fernando está saindo de seu carro e entrando neste prédio.

Ana pega seu celular. Disca:

19.

ANAAlô?! Hilda?

HILDA (V.O.)E aí? Conseguiu seguir ele?

ANAConsegui. E você não vai acreditar!

HILDA (V.O.)O quê?

ANAEle veio pro mesmo apartamento que a gente morava antes de mudar pro nosso apartamento de hoje. Ele veio com um papinho de que ia comprar o apartamento de novo e iria reformar pro Felipe, caso ele se casasse e tudo mais.

HILDA (V.O.)Então será que ele já comprou esse apartamento com uma--

ANATudo leva a crer que sim. Mas agora é o que menos importa, Hilda. Eu não vou ficar supondo as coisas com a faca e o queijo na mão.

Em Ana com o celular no orelha.

19 INT. PRÉDIO ANTIGO DE ANA - NOITE.

O prédio é um pouco rústico, no estilo de construções do século XX.

Ana entra e vai diretamente até a um BALCONISTA, 68, que limpa o balcão e organiza algumas chaves.

ANASeu Matias?

Agora sabemos seu nome: MATIAS. Ele vira-se para Ana.

MATIAS(surpreso)

Ana, minha querida! Quanto tempo!

20.

ANAPois é, seu Matias. Sabe como é que é o tempo, né? A vida da gente fica completamente corrida e a gente tem que dar os nossos pulos.

MATIASPois é. Te entendo. Mas a que devo a honra?

ANAEntão, seu Matias, o meu marido me ligou, disse que era pra eu vir pra cá. Queria fazer uma surpresa pra mim. É que amanhã é meu aniversário, né?

MATIASMeus parabéns desde já, Ana. O seu marido realmente está no apartamento. Tá com a sobrinha. Aliás, que menina educada. É dele ou sua?

ANA(Desconcertada)

Ah, é dele! Dele!

MATIASDê meus parabéns a ela! Vai ver ela também quer fazer um agrado pra tia.

ANAPois é. Ela realmente é um amor!

MATIASEntão, fica à vontade! Pode subir!

ANAObrigada, seu Matias!

Ana vai em direção ao...

ELEVADOR...

E entra nele.

Olha para o espelho. Respira fundo.

20 INT. APTO ANTIGO DE ANA - NOITE.

O apartamento é mais simples do que o atual de Ana.

21.

OUVIMOS fortes barulhos de gemidos e penetração sexual. São GEMIDOS masculinos e femininos.

Na porta, a maçaneta gira lentamente--

ALGUÉM ESTÁ ENTRANDO!

Não demora muito e...

ANA ENTRA!

Ana ouve os barulhos, que vão ficando cada vez mais intensos. Pausa.

Ainda um pouco incrédula, segue pelo...

..CORREDOR

Onde vê algumas roupas de homem e mulher espalhadas cada vez que se aproxima do quarto. Como se fosse uma trilha de roupas deixadas pelo caminho.

Ana para. Pega uma peça da mulher. Olha firme.

Os BARULHOS SE INTENSIFICAM...

Ana segue até bem próximo ao quarto. Para. Agora é impossível não ouvir o barulho. Ela respira fundo e entra no--

QUARTO

Marina está em cima de Fernando, cavalgando incessantemente nele, que geme e revira os olhos de tanto prazer. Os dois estão no ápice. Seus corpos produzes sons fortíssimos em contato um com o outro. São energéticos, pulsantes.

Ana está à porta. Observando tudo enquanto tenta assimilar o que vê. Os olhos estão arregalados e as lágrimas descem deles sem qualquer expressão vinda dela.

Em um espasmo de lucidez em meio ao transe, Fernando olha para a porta e vê Ana parada nela.

Marina percebe que Fernando diminuiu o ritmo. Estranha. Olha para trás e também vê Ana, dilacerada, com olhos pulsantes, e o semblante completamente arrasado.

Ana tenta dizer algo, mas não consegue. Saem apenas SONS. Está em estado de choque--

ABERTURA________

22.

21 INT. APTO ANTIGO DE ANA - NOITE.

Continuação imediata da cena 20;

Estão todos paralisados. Não dizem nada. Involuntariamente, desce uma lágrima dos olhos de Ana.

Ana começa a respirar ainda mais ofegante, quando parece pegar impulso e VOA em cima de Marina e Fernando, completamente transtornada:

ANADESGRAÇADOOOOOS! EU VOU MATAR VOCÊS! DESGRAÇADOOOOOS!

Ana, então, se cansa de desferir os socos e tapas. Marina e Fernando permanecem intactos, sem se mover, apenas se defendendo das agressões de Ana.

Ela, então, se afasta dos dois e desmorona. Apoia as mãos no joelho, como se fosse agachar. Busca recuperar os sentidos. Encara os dois.

ANA (CONT'D) Eu... Eu não sei o que falar. Eu não sei o que sentir. Na verdade, eu sei. Eu sei o que eu tô sentindo. E o que eu sinto é nojo! É repulsa! Como você ____ teve coragem, Fernando? Como você teve coragem de deitar na mesma cama que ex-namorada do seu filho morto!

FERNANDOPera aí. Calma, Ana. Nós podemos conversar com calma. Como civilidade--

ANAComo civilidade? E o que é civilidade pra você? Ahn?! Civilidade é transar com a própria nora?! É TRAIR DESSA FORMA A SUA PRÓPRIA ESPOSA, E PIOR: O SEU FILHO QUE ESTÁ MORTO E NÃO TÁ MAIS _____ AQUI PRA VER A PORCARIA DE PAI QUE VOCÊ É! O TRAIDOR QUE VOCÊ É!

FERNANDONÃO FOI BEM ASSIM! NÃO É ASSIM!

ANAEntão é como? COMO?

23.

FERNANDODesde que o Felipe morreu, você morreu pra nós também! Esqueceu de nós! VOCÊ SE ESQUECEU DE NÓS, ANA! DE NÓS! VIVEU ETERNAMENTE ESSE LUTO SEM FIM. NÃO LEMBROU POR UM MOMENTO SEQUER... POR UM MOMENTO SEQUER QUE VOCÊ TINHA UM MARIDO, UMA FAMÍLIA! EU SEI... SEI QUE PODE PARECER HORRÍVEL, MAS FOI ELA! FOI A MARINA QUE ME DEU O APOIO QUE VOCÊ ME NEGOU TODOS ESSES MESES!

ANAQUE APOIO? QUE APOIO, FERNANDO?! SERÁ QUE VOCÊ NÃO CONSEGUE SE COLOCAR NO LUGAR DOS OUTROS POR UM MINUTO SEQUER? QUE APOIO UMA MÃE DESTROÇADA VAI DAR PRA QUALQUER OUTRA PESSOA? QUE TIPO DE SER HUMANO É VOCÊ?! QUE TIPO DE GENTE SÃO VOCÊS! COM QUEM EU ME CASEI, FERNANDO?

FERNANDOEu não sei você, mas eu me casei com uma mulher. Uma mulher controlada, amiga, companheira. Que me ouvia, me aconselhava, me fazia um homem feliz de verdade. Uma mulher bem diferente da que eu tô vendo na minha frente!

ANAEntão você se casou com a pessoa errada. Ou então idealizou uma mulher perfeita, obediente, submissa e paciente em todos os momentos. Uma mulher que não sofre, que não sente dor, que não pode se dar o direito. O direito de ser imperfeita. MAS EU SOU, FERNANDO! EU SOU! E quando nós dois nos casamos, a gente prometeu que estaria junto na saúde e na doença! Mas você, mais uma vez, parece ter ouvido apenas o que lhe convém!

Marina se levanta, constrangida.

MARINACom licença!

ANAOnde é que você vai? Eu ainda não

(MORE)

24.

ANA (CONT'D) terminei!

FERNANDOJá que você chegou, disse o que quis e o que não quis, Ana. Eu vou repetir pra você. Só que agora bem pertinho...

Fernando se levanta e, nu mesmo, encara Ana:

FERNANDO (CONT'D) Ninguém vai aceitar uma pessoa que abandona tudo. Abandona uma vida. Pra viver uma luto eterno! Ninguém vai se afundar junto com você! O Felipe tá morto e enterrado! Acabou! O amor que eu sinto pelo meu filho vai continuar vivo, mas ele não está mais! E, por mais cruel que seja o que eu vou dizer, se você quer ser uma morta em vida, não mate todas as pessoas que estão ao seu redor junto com você!

No impulso, Ana COSPE no rosto de Fernando, que fica inerte. Tenta represar sua raiva.

ANAEu quero que você suma da minha frente e arrume as suas malas. Eu espero, Fernando, do fundo do meu coração, nunca mais poder olhar pra sua cara outra vez. Porque aí cumpro exatamente o que você tão teme: eu mando você fazer companhia com o diabo.

(pausa)E quanto à você, ex-nora, parabéns! Mas os parabéns, no caso, são pra mim mesma. Porque eu nunca me enganei com você. Eu sempre soube do seu caráter. A sua cara de anjinho nunca conseguiu esconder quem realmente você é!

MARINAUma pena que só a senhora ache isso de mim na sua família, sogrinha. O seu filho e, agora, o seu marido parecem discordar desse seu pensamento. Mas longe de mim contraria a senhora nesse momento. Eu sei que dói ser corna. Com licença!

25.

Marina se retira. Ana não diz nada a ela.

Fernando e Ana se encaram sem dizer absolutamente nada um para o outro. Os dois extremamente exaustos.

22 INT. CARRO DE ANA - NOITE.

Ana está sentada na poltrona do motorista. Começa a socar o volante incessantemente. Passa as mãos no cabelo. Pega seu celular e seu bolso e DISCA.

ANAHilda! Hilda, eu fiz o que te falei e eu descobri tudo. O pior não foi só a traição a mim. Foi a traição ao meu filho, Hilda. Ao Felipe.

HILDA (V.O.)Ao Felipe? Que história é essa, Ana?

ANAEu peguei o Fernando com a Marina. A ex-namorada do Felipe. Eles tavam transando, Hilda! O Fernando me disse coisas horríveis, e--

HILDA (V.O.)Ei, calma. Não de onde você tá. Me passa o endereço que eu tô indo praí te buscar no meu carro. Amanhã cê volta e pega ele, mas não sai daí.

ANAEu sou uma idiota, Hilda! Uma burra!

Em Ana, completamente culpada.

23 INT. APTO DE YOLANDA - SALA - NOITE.

O apartamento é bem arrumado, mas não é de grande valor aquisitivo. Alguns quadros de pinturas da natureza espalhados pela parede.

YOLANDA, 43, morena, de uma beleza única, está sentada no sofá, assistindo TV, na mais absoluta paz.

A CAMPAINHA TOCA.

Yolanda se assusta. Olha para o relógio, que marca "22h30".

Yolanda levanta-se e vai até a porta. ABRE-A.

26.

Neste momento, revela-se Fernando, com uma mala nas mãos, um olhar profundo e magoado. Nada diz. Yolanda se assusta ao ver a mala e Fernando.

24 INT. APTO DE ANA - SALA - NOITE.

Ana está sentada no sofá, ainda muito nervosa. Hilda está ao seu lado. Clarissa vem da cozinha com um copo d'água e entrega para Ana, que bebe rapidamente, logo devolvendo o copo vazio.

CLARISSAEu não tô acreditando que o meu pai fez isso com você, mãe. O pior: com a Marina.

HILDAVocê precisa se acalmar, Ana. Não pode ficar assim.

ANAA ex-namorada do meu filho, Hilda. Do meu filho! O Fernando todos esses meses pregava que eu precisava superar. Precisava esquecer o Felipe, enquanto ele mesmo estava se deitando há muito tempo com a namorada do próprio filho. Eu não caí nessa história de apoio no momento do luto. Eu te disse, Hilda. Eu disse a você que aquele apartamento estava sendo reformado, segundo o Fernando, pro casamento do Felipe. Eu entrei no apartamento. Ele tá exatamente da mesma forma que a gente deixou. Não tinha obra nenhuma. Era um pretexto pra arrumar um lugar pra ele se encontrar com essa garota!

HILDAÉ impressionante como homens são todos iguais--

ANAÉ, mas comigo ele comprou uma briga feia! Eu vou tomar todas as providências legais. Eu não vou abrir mão de um centavo, Hilda. De um centavo do que é meu por direito. Esse homem não teve compaixão por mim todo esse tempo. Eu também não vou ter

(MORE)

27.

ANA (CONT'D) compaixão por ele.

HILDAEu acho melhor você ir dormir. E se você quiser, fica em casa amanhã. Eu falo com o doutor Milton, eu tenho certeza que ele remarca essa reunião pra outro dia.

ANANão. Isso tudo me deu mais gás. Por incrível que pareça, me deu. Amanhã eu vou estar lá nessa reunião com a maior disposição que você já viu.

HILDAÉ assim que se fala, minha amiga.

Em Ana decidida.

25 INT. APTO DE YOLANDA - SALA - NOITE.

Fernando está sentado no sofá, desolado. Yolanda está ao seu lado.

YOLANDAFernando, como você pode ter feito isso?

FERNANDOAi, por favor, Yolanda. Eu só te peço isso. Eu já paguei por todos os pecados que eu tinha que pagar hoje. Eu só te peço pra não me julgar mais do que eu já tô sendo.

YOLANDASabe de uma coisa, meu irmão. Eu vou te dar uma dica que pode parecer simples, talvez até impossível, mas você precisa olhar pra dentro de si um dia novamente. Enxergar o Fernando que saiu do interior do estado e que prometeu pro pai que voltaria e daria a ele uma vida digna. Esse Fernando era nobre. Respeitava a família, era gentil. Você falou, falou, falou. Disse que a Ana vive um luto eterno, mas ao que me parece o Dom Casmurro dessa história aqui é você. No final

(MORE)

28.

YOLANDA (CONT'D) de tudo, será que foi a Ana que viveu um luto eterno ou foi você que foi incapaz de sentir a morte de um filho e agora se culpa por isso? Todas essas perguntas talvez você só encontre se reativar aí dentro de você o Fernando que eu conheci. Mas que nem todo mundo teve o privilégio de conhecer.

Fernando fica completamente tocado com as palavras de Yolanda. Levanta-se e lhe dá um abraço como de quem quer um colo.

26 INT. APTO DE ANA - QUARTO DE FELIPE - NOITE.

Há um silêncio ambiente típico. Tudo está em seu devido lugar e as luzes são apagadas até que--

Ana ENTRA. Ela acende as luzes e se aproxima da cama de Felipe.

Sonoplastia: Reckless love - Cory Asbury.

Ao deitar-se à cama, Ana se abraça ao travesseiro que ali está. Cheira-o e fecha os olhos.

FELIPE (V.O.)Mãe! MÃE!

Ana adormece.

27 EXT. JARDIM - NOITE. (SONHO)

Ana acorda debaixo de uma belíssima árvore grande. Olha para tudo ao seu redor. Parece o paraíso. Tudo é muito bonito. Há uma cachoeira de águas cristalinas a sua direita.

FELIPE (O.S.)Mãe?!

Ao olhar para frente, Ana avista Felipe, que está intacto, com a mesma roupa que vestia no dia do acidente. Ela fica anestesiada.

ANAMeu filho! Meu filho, você tá vivo!

FELIPEEu senti tanto a sua falta!

29.

ANAEu também! Muita!

FELIPEMas agora a gente pode se ver!

Felipe deita-se ao lado de Ana. Ela também deita-se novamente. Eles dão as mãos. Olham para as belas estrelas no céu.

FELIPE (CONT'D) Tá vendo as estrelas?

ANALindas!

FELIPEElas são a mais singela forma que Deus utiliza pra dizer que nós não estamos sozinhos no universo. Ninguém está.

ANAEu, infelizmente, estou! Desde que você partiu, eu--

FELIPEOlha onde você está, mãe. Do meu lado. Podendo conversar comigo! Me ver de novo! A vida é um mistério. E nem que a gente viva cem anos, a gente consegue descobrir todos.

ANAEu queria descobrir apenas um: o motivo de Deus ter te levado de mim, sem que eu pudesse me despedir.

FELIPENão existe despedida! Nós não vamos precisar nos despedir. Porque eu vivo dentro de você, do seu coração. Mãe, não existe abismo algum entre o céu e a Terra, que afasta o nosso amor. Que afaste o amor de uma mãe por um filho. Acontece que você precisa viver. Não só por você, mas por nós. A sua vida é a minha vida. O nosso amor se confunde. Mas você precisa viver.

ANAEu posso te dar um abraço?

30.

FELIPEPode! Um abraço de até breve. Um abraço que a gente não pode dar antes de eu partir.

Os olhos de Ana se enchem de lágrimas. Felipe sorri. Ana o abraça intensamente.

SONOPLASTIA CESSA.

28 INT. APTO DE ANA - QUARTO DE FELIPE - DIA.

Ana acorda na mesma posição em que se deitou. Olha para os lados e percebe que dormiu no quarto de Felipe.

Levanta-se. Abre a janela. Imediatamente, um VENTO invada o local. Ana sorri.

29 INT. APTO DE ANA - COZINHA - DIA.

A mesa do café da manhã está posta. Clarissa está tomando seu café. Ana aparece ali, apressada.

ANAOi, filha!

CLARISSAOi, mãe! Preparei um café da manhã pra senhora. Eu imaginei que--

ANAÔ, Clarissa. Eu agradeço muito, mas eu realmente tô muito atrasada. Inclusive, fui!

Ana pega uma maçã e se retira rapidamente antes que Clarissa complete.

CLARISSAÉ. Oficialmente os papéis estão trocados nesta casa.

Clarissa continua o seu café.

30 INT. CLÍNICA SANTA SARA - SALA DE REUNIÕES - DIA.

A sala possui uma imensa mesa retangular, onde vários homens vestidos formalmente estão sentados. Atrás da mesa, um imenso telão.

Dentre estes, destaca-se MILTON, 63, um pouco gordo, daqueles

31.

que vivem do trabalho e para o trabalho, que está olhando para o relógio, ansioso.

Ana ENTRA. Todos param de falar. Ela senta-se em seu lugar, à ponta da mesa.

ANAEu gostaria de pedir mil perdões a vocês pelo atraso. Perdi alguma coisa?

MILTONNão, não. Nós estávamos esperando justamente você pra começar.

ANABom, agora não esperam mais. Podem começar.

MILTONÓtimo. Bom, eu vou introduzir a vocês rapidamente o que tá acontecendo. Eu solicitei a reunião com vocês, principalmente com o departamento de marketing e com a doutora Ana, que é a nossa diretora, porque nós recebemos um depoimento extremamente importante pra promoção da nossa clínica.

(pausa)Eu vou tentar ser um pouco mais claro. Há alguns anos nós atendemos uma mulher, Eliana. A Eliana tinha alguns problemas uterinos que impedia que ela engravidasse com mais facilidade. Até que ela conheceu a nossa clínica e conseguiu fazer a inseminação artificial. Na época da inseminação, Eliana tinha por volta dos quarenta e sete anos--

ANA(completa)

E as chances de uma mulher de quarenta e sete anos engravidar é por volta de 5%. A gravidez vingou?

MILTONVingou. Não só vingou como deu a ela duas filhas. Meninas lindas, saudáveis. Doutora Ana, tudo isso só foi possível graças ao nosso trabalho. O trabalho desta clínica. E aí, em

(MORE)

32.

MILTON (CONT'D) cima disso, nós fizemos um vídeo com ela, anos depois, pra saber da saúde das crianças e, talvez, isso possa até servir como forma de marketing da Santa Sara.

ANAE você tem o vídeo aí?

MILTONTenho e vou mostrar pra vocês agora! Olhem pro telão!

Milton pega um controle que está em cima da mesa e aponta para o telão:

31 EXT. JARDIM - DIA. (TELÃO)

Várias crianças estão brincando no imenso jardim. ELIANA, 50, alta, cabelos loiros, está sentada em uma cadeira, centralizada na tela.

ELIANAÉ difícil encontrar palavras pra começar a falar sobre o milagre que foi operado na minha vida graças à Deus e ao Santa Sara.

(pausa)Eu tinha quarenta e cinco anos quando minha filha, Sofia, morreu. Um dia ela saiu, não disse nada, apenas que voltava para o jantar. A verdade é que ela nunca mais voltou. Minha filha foi vítima de uma bala perdida no centro do Rio de Janeiro, onde morávamos. Meu marido era gerente de uma fábrica de insumos hospitalares, e nós fomos transferidos para o Rio, onde criamos a nossa filha. A morte dela quase significou a minha derrota. E eu precisava me ocupar. Precisava encontrar novamente o sentido da vida. Foi aí que eu e o meu marido decidimos que tínhamos que ter um filho. Um filho que tomasse o nosso tempo, nossa atenção. Que recebesse todo nosso amor e transformasse a nossa dor, de alguma forma, em saudade. Só saudade. Procuramos a Clínica Santa Sara por influência de uma amiga que já havia

(MORE)

33.

ELIANA (CONT'D) feito uma inseminação artificial com vocês. O tratamento foi muito cuidadoso e os médicos foram extremamente atenciosos. Não demorou muito e eu já pude sentir o coração do meu filho bater novamente dentro de mim. A surpresa veio depois: eram duas. Duas filhas.

INSERT: Colagem de fotos das gêmeas citadas por Eliana em várias fases da vida até seus três anos de idade, que estão atualmente. FIM DO INSERT.

Os olhos de Eliana estão cheios de lágrimas.

ELIANA (CONT'D) Deus foi tão misericordioso que me tirou uma filha, mas me deu duas. Hoje, três anos depois, o que eu posso te dizer é obrigado. Agradecer por terem me trazido a vida novamente.

As gêmeas (GÊMEA#1 e GÊMEA#2) chegam rapidamente até Eliana:

GÊMEA#1Mamãe!

GÊMEA#2Vem brincar com a gente!

ELIANASenta aqui no colo da mamãe!

As gêmeas sentam cada uma no colo da mãe.

ELIANA (CONT'D) Mais uma vez: muito obrigada!

Eliana dá um beijo na bochecha de cada uma das duas.

VOLTA À CENA:

32 INT. CLÍNICA SANTA SARA - SALA DE REUNIÕES - DIA.

Ana fica completamente chocada com o que acaba de ver. Seus olhos ficam marejados. Ela olha para Milton, que está animado com o que acabou de mostrar.

MILTONE aí? O que me dizem? Não é incrível?

34.

ANAAchei incrível, perfeito. Tocante. É exatamente o que a gente precisa passar pros nossos pacientes. Por mim, tá aprovado, doutor Milton.

MILTONÓtimo!

Milton e Ana se encaram. Ele sorri, satisfeito. Ela não esboça tanta reação.

33 INT. CLÍNICA SANTA SARA - CANTINA - DIA.

Hilda e Ana estão tomando café da manhã:

ANAEu fiquei impressionada com a maturidade, sabe? Com a firmeza que de alguma forma essas crianças trouxeram pra essa mulher. Eu me vi nela, Hilda. Acontece que eu me vi nela no que ela próprio disse que era antes de ter essas crianças.

HILDAEu lembrava da Eliana. Participei de todo processo e, Ana, eu te garanto: essa mulher tava praticamente morta quando entrou na Clínica. Ela vivia num estado de negação permanente. Eu tive a oportunidade de conversar com ela depois que os bebês nasceram. Parece que foi o remédio que ela precisava.

ANAEu fiquei tocada! Muito tocada!

HILDAE sabe de uma coisa? As meninas estão idênticas a irmã._________

ANASério?

HILDASeríssimo! A Sofia fazia faculdade na UFRJ de Medicina. Tava no primeiro semestre quando aconteceu a tragédia.

35.

Ana fica extremamente pensativa com o que foi dito por Hilda.

34 INT. APTO DE YOLANDA - COZINHA - DIA.

A cozinha é bem simples, com alguns detalhes padrões de apartamentos médios.

Fernando e Yolanda estão tomando café da manhã e rindo.

YOLANDAE aquele dia que você pegou a moto que o pai tinha acabado de comprar e saiu andando pela cidade e bateu de cara no portão lá de casa?!

FERNANDOEu juro pra você que naquele dia eu pensei que nunca mais ia ver o Sol de novo. Eu fiquei umas três semanas de castigo!

YOLANDAVocê era peste!

Fernando e Yolanda gargalham--

RUAN, 20, alto, corpo atlético, cabelos pretos, estilo bad-boy, aparece ali e leva um susto ao ver Fernando.

Yolanda e Fernando fecha o rosto imediatamente. Eles se encaram. Clima tenso.

RUANO QUE ESSE CANALHA TÁ FAZENDO AQUI NA NOSSA CASA?

Closes alternados.

INTERVALO_________

35 INT. APTO DE YOLANDA - COZINHA - DIA.

Continuação imediata da cena anterior;

Yolanda fica completamente sem-graça com as palavras ditas por Ruan. Fernando inerte. Ruan com "fogo nos olhos".

YOLANDAQue isso, Ruan? Olha como você fala com o seu tio--

36.

RUANMeu tio?? Meu tio pra quê? O que esse cara fez pela gente todo esse tempo? Ahn? Esqueceu que a gente existia. Na verdade, ele não sabe que existem outras pessoas no mundo que não ele e a merda do dinheiro que ele acha que tem!

FERNANDOEscuta aqui, seu moleque. Eu não vou ficar quieto olhando pra essa sua cara imunda e vendo você falar essas merdas sobre mim, sem saber tudo o que eu to vivendo--

RUAN--Então quer dizer que eu sou obrigado a entender tudo o que você tá vivendo, mas você não é obrigado a entender as pessoas, né? A famosa empatia seletiva. Só serve quando é boa pro teu rabo, mas quando é pro rabo dos outros!

FERNANDOCALA A BOCA, SEU MOLEQUE!

RUANLEVANTA E VEM CALAR, SEU VERME!!! VOCÊ PODE TER DESTRUÍDO A VIDA DA TUA FAMÍLIA, DOS TEUS FILHOS, MAS A MINHA VOCÊ NÃO VAI. PELO MENOS, NÃO VAI MAIS! E QUANDO VOCÊ OUSAR ATRAVESSAR PELO CAMINHO, TOMA MUITO CUIDADO! DO MESMO JEITO QUE VOCÊ PASSA PELO CAMINHO DOS OUTROS FEITO UM TRATOR, SEM PENA, EU TAMBÉM VOU PASSAR POR CIMA DE VOCÊ SEM A MÍNIMA CONSIDERAÇÃO! VERME! NAZISTA!

Ruan se retira dali. Fernando fica completamente tocado com as palavras de Ruan. Arruma sua gravata, nervoso. Yolanda está envergonhada.

YOLANDAMe desculpe, é que--

FERNANDO--é que você não soube educar seu filho como um homem de verdade,

(MORE)

37.

FERNANDO (CONT'D) Yolanda. Esse é o problema. Agora vai ter que aturar tudo o que esse idiotinha falar. Mas escuta uma coisa: depois que ele dominar a sua casa, a sua vida, não diga que eu não te avisei.

Fernando levanta-se e retira-se da cozinha. Yolanda fica sozinha.

36 INT. UNIVERSIDADE - CORREDOR - DIA.

Clarissa e Ruan andam com suas mochilas nas costas. Conversa já está em andamento.

RUANAh, e falta o principal pra te contar!

CLARISSAO quê?

RUANSeu pai foi pedir colinho pra minha mãe depois de ter sido escorraçado pela sua!

CLARISSANão acredito!

RUANPois acredite! O verme tava sentado na mesa, tomando um cafézinho da manhã fresquinho, como nos velhos tempos. Ele deve tá se esquecendo das merdas que falou sobre a minha mãe e a nossa casa nos últimos tempos.

CLARISSAO meu pai vive apenas uma parte da realidade, Ruan. Geralmente só a que convém a ele.

Marina passa ao lado de Clarissa, que APLAUDE-A:

CLARISSA (CONT'D) Muito bem, patricinha! Alvo acertado com sucesso!

Marina para e encara Clarissa.

38.

37 INT. CLÍNICA SANTA SARA - CONSULTÓRIO DE ANA - DIA.

Ana está pensativa sentada em sua cadeira. Está com uma caneta nas mãos, batendo-a repetidamente na mesa. Ansiosa, encasquetada. Quebra a inércia ligando seu computador.

Vemos que ela pesquisa pelo nome de ELIANA MONTEIRO DA SILVA nos prontuários eletrônicos de atendimento. Neles, aparecem fotos de Eliana e também algumas atualizadas dos gêmeos, como de praxe na Clínica. Em seguida, abre a internet e pesquisa pelo nome SOFIA MONTEIRO DA SILVA UFRJ.

Na tela, aparecem vários nomes parecidos, até que em um aparece SOFIA MONTEIRO DA SILVA, natural de CURITIBA. Ana clica--

-- A foto de uma belíssima jovem invade o site. A jovem é extremamente parecida com os gêmeos que Ana acaba de ver.

Ana volta a ficar PENSATIVA. Pausa. Volta ao computador...

Na tela de prontuários eletrônicos, digita FERNANDO GONÇALVES. Prontamente aparece a foto de Fernando, seu ex-marido. Bem próxima a foto está a frase "DOADOR APTO".

38 INT. APTO DE ANA - QUARTO DE ANA - NOITE. (FLASHBACK)

Ana está deitada no peitoral peludo de Fernando após uma noite de sexo. Estão conectados, felizes.

FERNANDONossa! Há muito tempo nós dois não temos uma noite como essa, né?

ANAFernando, se eu te fizer uma pergunta você jura que vai ser claro?

FERNANDOÓbvio!

ANAEspero mesmo, Fernando. Há uns bons anos atrás eu te fiz a mesma pergunta e a realidade se pôs contra sua palavra.

FERNANDOVai relembrar isso novamente? Agora? Depois dessa noite--

39.

ANA--não, não. É que eu queria saber se você aceitaria ter um terceiro filho!

FERNANDOAceitaria. Por que não?

ANANão pra agora, sabe. Mas é que eu tenho medo de querer ter um filho mais tarde e não ter condições por questões de idade. Sei lá. Talvez um dia a gente queira realmente ter um terceiro filho e nossa vontade já não vai mais condizer com o nosso corpo. Entende?

FERNANDONão precisa ser nenhum mestre em biologia pra entender, meu amor.

ANAEntão... Eu tive pensando e acho que talvez seja interessante que eu congele meus óvulos e que você também faça o mesmo.

FERNANDOCongelar meus óvulos?

ANA(ri)

Não, idiota! O sémen. As questões jurídicas são mínimas. A maior parte das pessoas doam sémen para o banco de sémen de forma anônima. Acontece que na clínica nós temos uma modalidade, digamos que mais preservativa. Os meus óvulos e os seu sémen vão ficar separados. Quando os dois decidirem fazer a inseminação, a gente assina uma autorização e faz. Claro, os dois precisam assinar, mas esse não é o problema. Espero, né?

FERNANDO(Ri)

Será?? Será que eu vou deixar?

ANAVocê faz isso e eu te mato!

40.

Fernando e Ana riem e se beijam.

VOLTA À CENA:

39 INT. CLÍNICA SANTA SARA - CONSULTÓRIO DE ANA - DIA.

Voltamos à cena 37;

Ana fecha o formulário de cadastro de Fernando. Passa as mãos pelo cabelo, como se estivesse indecisa por algo.

Ana LEVANTA-SE e sai do consultório.

40 INT. UNIVERSIDADE - CORREDOR - DIA.

Continuação imediata da cena 36;

Marina e Clarissa continuam se encarando. Ruan ao lado, inerte.

MARINAMuito obrigada, enteadinha! Uma pena que a gente não possa ser amigas. Seria tudo tão mais fácil!

CLARISSAMais fácil pra quem? Pra você? Pro meu pai? Porque isso não é mais fácil nem pra mim, nem pra minha mãe! Eu fico impressionada que a gente lida por tempos com uma pessoa e não conhece ela de verdade.

RUANDeixa essa garota pra lá, Clarissa. Vamo pra aula!

MARINAGarota, eu só vou te falar uma coisa: busca gastar seu tempo com outra coisa que não seja cuidar da minha vida. Eu não sou tão ruim? Tão má? Tão perversa? Faz o seguinte, então: me erra! Assim você faz, como dizem os mais velhos, afastar o mal da sua vida!

Marina se retira. Ruan puxa Clarissa, que bufa de ódio.

41.

41 INT. CLÍNICA SANTA SARA - CONSULTÓRIO DE ANA - DIA.

Ana e Hilda entram RAPIDAMENTE, afobadas.

Ana senta-se em sua cadeira. Hilda à sua frente.

HILDAQue isso? Que afobação toda é essa?

ANA(atônita)

Olha... O que eu vou te contar pode parecer loucura. E antes que você fale isso, eu falo por você: é loucura. Acontece que é o que eu quero pra mim, Hilda. É... Eu sei também que foi uma decisão rápida, que eu tomei do nada, mas--

HILDA--que decisão, Ana? Desembucha logo. O que foi?

ANAEu não vou te falar nada. Eu vou te mostrar.

Ana LIGA o computador.

Vemos que ela abre um documento com três fotos montadas: as das gêmeas e de Sofia, filhas de Eliana.

HILDATá, mas o que tem a ver isso?

ANAHilda, elas são idênticas. As gêmeas são extremamente parecidas como a Sofia. Quando você me disse, eu acreditei, mas... eu não imaginava que elas se pareciam tanto, sabe? É quase um milagre, Hilda. É como se essas crianças fossem viver o resto de vida que a Sofia não pôde. Que a Eliana não pode dar a própria filha. Entende?

HILDANão, Ana. Não entendo. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A vida dessas meninas não têm ligação nenhuma com a vida da Sofia, que tá morta--

42.

ANANão, não. Você não entende, Hilda. Você não entende. A Sofia permanece viva todos os dias pra essa mãe. E permanece viva porque as duas crianças estão vivas. E são idênticas a Sofia. Mais uma vez: é como se a Eliana pudesse mudar a história. Pudesse dar um novo caminho, um novo destino, a sua vida e a vida dessas crianças por amor a Sofia.

HILDAIsso é uma loucura, Ana. É uma loucura, não tem cabimento. A semelhança das meninas é comum. É uma condição biológica. Elas são filhas do mesmo pai, da mesma mãe e--

ANA--Aí é que tá, Hilda. É aí que mora o que eu quero te contar. E se eu e o Fernando gerássemos um filho juntos? Um filho com os meus traços e com os traços dele. Que tivessem os olhos como os do Felipe, a boca como a do meu filho. É como se a vida entregasse a mim a chance de me reconectar comigo mesmo através desse filho que por amor ao Felipe vai nascer!

HILDA(Apavorada)

Ana, me diz que você tá delirando, que não é verdade. Você e o Fernando estão separados. Não dá pra gerar um filho agora, a essa altura do campeonato. E as chances de você engravidar--

ANA--são baixas. Eu sei. Muito baixas. E é por isso que eu e o Fernando congelamos o nosso óvulo e sémen. Antes do Felipe morrer, nós queríamos ter um terceiro filho. Ou pelo menos planejávamos que daqui um tempo poderíamos ter essa vontade, mas por razões biológicas não poderíamos mais gerar naturalmente. Então nós fizemos o congelamento. Com a condição de que para realizarmos a inseminação, os

(MORE)

43.

ANA (CONT'D) dois teriam que aceitar. Eu fiz tudo corretamente, Hilda. Deus tava preparando o meu coração pra esse momento. E eu não posso deixar ele passar.

HILDAAna, pensa no que você tá falando. Você quer inseminar dentro de você uma criança do Fernando! Do seu ex-marido! Sem o consentimento dele. Ana, se alguém descobre algum dia que você fez isso sem o consentimento do Fernando, a sua carreira ACABOU! A-CA-BOU!

ANANinguém vai descobrir. Ninguém. Eu sou a diretor desta clínica. E essa criança é minha. Pode ter sido feita com qualquer outro sémen. Por que alguém desconfiaria justamente do meu ex-marido que acabou de me trair justamente com a ex-namorado do meu filho? Hein? Não faz sentido, Hilda.

HILDANão sei, não, Ana. Eu ainda acho muito arriscado. Você vai fazer o quê? Manter essa criança dentro de uma redoma? Impedir que o Fernando saiba da existência dela? Elevai descobrir... Ele, ele, ele vai encontrar essa criança na vida e aí? O que você vai fazer?

ANAPõe uma coisa na sua cabeça, Hilda: essa criança vai ser minha. Só minha! _____ Dentre milhares de doadores, eu escolhi um. Um que tivesse a ver com todas as características que eu quisesse pro meu filho. E ponto. Foi isso.

HILDAMas então se é isso por que você não recorrer a um doador anônimo como todos as outras mulheres fazem?

44.

ANAPorque nenhum outro pai seria capaz de me entregar de novo o meu filho, Hilda. Eu sei que parece loucura, mas.../O Fernando me deu o maior amor da minha vida. Ele me deu o meu melhor companheiro. Eu não quero que essa criança seja o Felipe pela metade. Eu quero que seja por inteiro. Eu quero que essa criança viva o que a vida impediu o meu filho de viver. Que seja um complemento, sabe? Sei lá. Vai ver dessa vez o universo se compadece da minha alma e me dá um pingo...um pinguinho pequeno de felicidade. De felicidade que por amor ao Felipe vai regressar na vida dessa criança!

HILDAE o que você quer que eu faça?

ANAEu quero que você separe as fichas de doação. As minhas e as do Fernando. Você precisa fazer com que todo mundo pense que eu escolhi um doador anônimo. Não pode parecer que o sémen ao qual eu tô recorrendo é do Fernando. E você troca. Pega um sémen e faz com que ele substituta o do Fernando, que vai está lá, na mesma geladeira que você utiliza pra fazer as inseminações.

HILDAEu peço a Deus que ele nos perdoe, Ana. Que ele nos perdoe do que a gente vai fazer. E que ela tenha compaixão porque se alguém descobre a nossa vida vai por água abaixo! Pra sempre!

ANAVocê pode ter certeza, minha amiga! Ninguém nunca vai descobrir nada! Nunca!

Ana dá as mãos para Hilda, que está receosa.

42 EXT. CURITIBA - DIA/NOITE.

Tomadas gerais do anoitecer Curitiba.

45.

43 INT. RESTAURANTE - NOITE.

O local é extremamente elegante. Possi uma MÚSICA AMBIENTE ao fundo e garçons passando por toda parte servindo as infinitas cadeiras no grandioso espaço físico.

Fernando está sentado em uma delas, com portes finos, em concordância com o próprio ambiente. Está ansioso. Olha o relógio constantemente, até que relaxa ao ver Marina, que vem da porta em sua direção, com um belíssimo vestido vermelho e um batom sedutor.

Marina SENTA-SE à frente de Fernando. Os dois se encaram. Ele observa sua beleza, quase babando.

FERNANDOVocê está magnífica!!

MARINAEu poderia dizer que são os seus olhos, mas eu prefiro não diminuir a minha autoestima.

(pausa)E quando é que a gente para de cerimônia e pede um vinho pra brindar esse momento?

FERNANDOSó se for agora...

(p. garçom)Garçom! Garçom, um vinho, por favor!

O garçom pega uma garrafa de vinho e duas traças e põe na mesa de Fernando e Marina.

Fernando serve o vinho nas duas taças. Marina ergue a taça.

MARINAAgora eu acho que esse momento merece um brinde!

FERNANDOTaí. Mais uma coisa que a gente concorda.

Fernando ergue a taça. Ele e Marina brindam. Sorriem.

44 INT. CLÍNICA SANTA SARA - LAB DE INSEMINAÇÕES - NOITE.

Está sendo realizada uma inseminação artificial no centro do laboratório. Milton COMANDA os outros enfermeiros e médicos

46.

que estão ao redor. Vemos a felicidade no rosto da possível mãe.

Hilda se aproxima da MÃE.

MÃE#Doutora, muito obrigada.

HILDAVai dar tudo certo, viu? É rápido!

MILTONDoutora Hilda, por favor, busque o sémen que está reservado na geladeira.

HILDASim, claro.

Hilda vai em direção à GELADEIRA. Abre-a.

Dentro dela, diversos potes com várias fichas médias estão enfileirados. Na parte de cima, vemos que existem alguns potes como estes citados. Hilda olha para eles.

MILTONAchou?

HILDASó um momentinho, doutor...

Hilda tira um papel de seu jaleco e vê que o número é 244. Desloca alguns potes para o lado. Repete o processo três vezes até que--

--Avista o 244. Hilda retorna todos os outros potes para suas posições. Ao fim, tira uma ETIQUETA de seu bolso escrito "RESERVADO".

Hilda COLA a etiqueta e põe em uma outra fileira à esquerda, onde estão os sémens reservados.

MILTONHilda, tem que ser rápido! Não pode ficar com a geladeira aberta!

Hilda pega um pote com o sémen e leva até Milton.

HILDAPronto!

47.

MILTONÓtimo! Muito obrigado!

Hilda fica desconcertada.

45 INT. APTO DE ANA - QUARTO DE ANA - NOITE.

Ana está aflita, andando de um lado para o outro. Até que...

SEU CELULAR TOCA!

Ana vê que ele está jogado em cima da cama. ATENDE.

ANAOi. Oi, Hilda. Pode falar!

HILDA (V.O.)Deu tudo certo! Foi difícil, mas eu consegui. O sémen do Fernando tava numa fileira, aquela que você disse das pessoas que possuem identificação na ficha cadastral. Mas eu colei a etiqueta de reservado. Agora é com você, Ana. Você precisa escolher esse sémen e iniciar o tratamento.

ANA(muito feliz)

Eu não sei como te agradecer, minha amiga. Você sabe como isso é importante pra mim. E saber que você se arriscou dessa maneira por mim, mostra que na vida eu não posso contar com ninguém mais do que eu posso contar com você!

HILDA (V.O.)No meio dessa loucura toda, eu só posso te desejar uma coisa: boa sorte!

ANAObrigada!

Ana está completamente feliz. Desliga o celular e se joga na cama.

FADE OUT. FADE IN:

48.

46 INT. CLÍNICA SANTA SARA - RECEPÇÃO - DIA.

Sonoplastia: SOMEONE TO SAY - VANCOUVER SLEEP CLINIC.

Ana entra no local de uma forma diferente. Olha todos os pacientes com mais brilho nos olhos. Sorri para todos.

Logo a sua espera está Hilda, um pouco apreensiva, mas acolhedora, com os braços abertos.

HILDANesses anos todos eu te esperei aqui na entrada pra receber uma amiga, uma chefe. Agora eu te espero de braços abertos pra receber uma paciente. Uma paciente que eu vou cuidar com muito carinhos nesses próximos trinta dias!

Ana abraça Hilda. O momento é singelo, único. As duas conectadas.

ANA FAZ O TRATAMENTO DE FERTILIDADE - MONTAGEM

A) No CONSULTÓRIO DE HILDA, Ana tira todas as suas medidas corporais. Pesa, vê sua altura, enquanto se diverte com Hilda. Vemos que Hilda anota que ela possui 1,65;

B) Na SALA DE TOMOGRAFIA, Ana está no tomógrafo. Faz o sinal da cruz. O maca entra lentamente no aparelho. Em meio ao medo, sorri para Hilda, que a vê pelo vidro;

C) No CONSULTÓRIO DE HILDA, Ana finge olhar todas fichas sob os olhares de Milton. Põe a mão em uma que está escrita: "Alto. Moreno. 35 anos. Atlético. Advogado". Hilda olha para Ana preocupada com Milton observando tudo;

D) Na SALA DE ULTRASSONOGRAFIA, Ana está fazendo o exame comum. Respira fundo. Ao fim, abraça Hilda;

E) No LABORATÓRIO DE INSEMINAÇÕES ARTIFICIAIS, Ana está deitada no meio da cama. Seus olhos enchem-se de lágrimas. O momento é único. Hilda dá as mãos para ela e balbucia: "Vai dar tudo certo. Confia em mim". Hilda limpa as lágrimas de Ana. Nos afastamos lentamente do belo momento.

FIM DA MONTAGEM.

47 INT. APTO DE ANA - CORREDOR - DIA.

LETREIRO: "UM MÊS DEPOIS..."

49.

Nos aproximamos lentamente de Hilda, que está à frente do banheiro, nervosa. Ela anda de um lado para o outro com a mão na boca, até que para em frente à porta:

HILDAE aí, Ana? Terminou??

Hilda bate na porta--

48 INT. APTO DE ANA - BANHEIRO - DIA.

Ana está sentada no vazo sanitário, enquanto olha fixamente para o exame de gravidez que está a sua frente.

ANACalma, mulher! Já vou fazer!

Ana permanece olhando o exame. Fecha os olhos. Pausa longa.

49 INT. APTO DE ANA - CORREDOR - CONTINOUS.

Hilda está virada para a parede tentando acalmar a sua ansiedade--

A maçaneta da porta VIRA lentamente. Percebemos que Ana abriu a porta do banheiro, mas ainda não a vemos.

Hilda vira-se. Olha para Ana, que não demonstra reação alguma.

Ana FECHA os olhos e fica em silêncio por alguns minutos--

Hilda ensaia dizer algo, até que...

... Descem lágrimas dos olhos de Ana. Hilda entende tudo. Seus olhos também se enchem de lágrimas. Ana corre para os braços de Hilda.

Nos afastamos vendo as duas se abraçando felizes, completas. Choram juntas, cúmplices.

FIM DO CAPÍTULO_______________