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CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 41, p. 281-297, Mai./Ago. 2004 281 POLARIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM UMA METRÓPOLE PERIFÉRICA INTRODUÇÃO Este trabalho se propõe a analisar a polari- zação e a segregação socioespacial na região metro- politana de Salvador, agravadas a partir da década de 1990 pelo ajuste e reestruturação produtiva da economia brasileira, ressaltando como uma histó- rica e enorme pobreza e a atuação do Estado con- tribuíram decisivamente para a sua configuração. O estudo das metrópoles, que concentram o aparato produtivo, a riqueza, o poder e a popu- lação na grande maioria dos países, adquiriu uma indiscutível relevância na agenda atual da pesqui- sa urbana, na medida em que o processo de reestruturação produtiva associado à globalização tem contribuído para revitalizar o seu papel e o seu crescimento; tem constituído uma nova geo- grafia e uma arquitetura produtiva que tece nós e qualifica e desqualifica espaços em função de flu- xos mundializados e impactuado sobre a morfologia territorial e social e sobre o funcionamento dessas grandes cidades, sobre a qualidade de vida urba- Inaiá Maria Moreira de Carvalho Angela Gordilho Souza Gilberto Corso Pereira na, as desigualdades e as mobilizações políticas e sociais. Por isso mesmo, estudos internacionais têm ressaltado os vínculos entre o global e o local (o espaço glocal), valorizados por novas propostas e modelos de gestão urbana, assim como a formação de um sistema mundial de cidades onde algumas mega aglomerações adquiriram uma renovada im- portância, como “global cities”. Oferecendo condi- ções excepcionais para as atividades de comando de negócios, essas “global cities” funcionariam como uma rede de nós articulados através dos quais circulariam os mais importantes fluxos de infor- mação, capital e recursos. Tornando-se cada vez mais estratégicas para o capital global, elas concentrariam o poder econômico, as sedes das grandes corporações, o controle dos meios de comunicação, os serviços produtivos modernos e a difusão das mensagens dominantes. Isto se daria simultaneamente a uma polarização crescente entre esses espaços e o resto do mundo e ao aumento das diferenciações internas em cada uma das áreas envolvidas.

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POLARIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIALEM UMA METRÓPOLE PERIFÉRICA

INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a analisar a polari-zação e a segregação socioespacial na região metro-politana de Salvador, agravadas a partir da décadade 1990 pelo ajuste e reestruturação produtiva daeconomia brasileira, ressaltando como uma histó-rica e enorme pobreza e a atuação do Estado con-tribuíram decisivamente para a sua configuração.

O estudo das metrópoles, que concentramo aparato produtivo, a riqueza, o poder e a popu-lação na grande maioria dos países, adquiriu umaindiscutível relevância na agenda atual da pesqui-sa urbana, na medida em que o processo dereestruturação produtiva associado à globalizaçãotem contribuído para revitalizar o seu papel e oseu crescimento; tem constituído uma nova geo-grafia e uma arquitetura produtiva que tece nós equalifica e desqualifica espaços em função de flu-xos mundializados e impactuado sobre a morfologiaterritorial e social e sobre o funcionamento dessasgrandes cidades, sobre a qualidade de vida urba-

Inaiá Maria Moreira de CarvalhoAngela Gordilho SouzaGilberto Corso Pereira

na, as desigualdades e as mobilizações políticas esociais.

Por isso mesmo, estudos internacionais têmressaltado os vínculos entre o global e o local (oespaço glocal), valorizados por novas propostas emodelos de gestão urbana, assim como a formaçãode um sistema mundial de cidades onde algumasmega aglomerações adquiriram uma renovada im-portância, como “global cities”. Oferecendo condi-ções excepcionais para as atividades de comandode negócios, essas “global cities” funcionariamcomo uma rede de nós articulados através dos quaiscirculariam os mais importantes fluxos de infor-mação, capital e recursos. Tornando-se cada vez maisestratégicas para o capital global, elas concentrariam opoder econômico, as sedes das grandes corporações,o controle dos meios de comunicação, os serviçosprodutivos modernos e a difusão das mensagensdominantes. Isto se daria simultaneamente a umapolarização crescente entre esses espaços e o resto domundo e ao aumento das diferenciações internasem cada uma das áreas envolvidas.

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Autores como Sassen (1991), Reich (1991)e Borja e Castels (1997), por exemplo, analisam astransformações em curso nessas cidades, com odeclínio da atividade industrial, a expansão dasatividades financeiras e dos serviços e a mudançado seu papel, tendo como hipótese básica a exis-tência de vínculos estruturais e necessários entrea globalização e a intensificação da dualização so-cial das metrópoles. Com a segmentação do mer-cado de trabalho, as transformações assinaladasproduziriam uma nova estrutura social, marcadapela polarização entre categorias superiores e infe-riores da hierarquia social e pela concentração derenda, assim como pela redução das camadas mé-dias. Refletindo-se no plano espacial, estes pro-cessos gerariam, também, a dualização das estru-turas urbanas.

Contudo, investigações efetuadas em me-trópoles como Paris, Londres, Buenos Aires ouSantiago do Chile, entre outras, não confirmam asubstituição da estrutura de classes da sociedadeindustrial por uma polarização entre os mais ricose os mais pobres nem a dualização do espaço ur-bano. A trajetória recente das metrópoles brasilei-ras, analisada por uma ampla rede de pesquisado-res,1 também não apóia essa suposição. Como as-sinala Ribeiro (L.C., 2000), as pesquisas evidenci-am uma certa estabilidade das estruturas social eurbana, paralelamente a fenômenos similares, comouma redução do proletariado industrial, o cresci-mento do setor terciário e do emprego em serviços(em atividades de alta e baixa qualificação), umempobrecimento de zonas centrais, mudanças defunção em algumas áreas da cidade e uma auto-segregação das elites, que tendem a se isolar emalguns espaços exclusivos.

Abordando a questão da segregaçãosocioespacial e assinalando a sua relatividade,

Preteicelle (2003, p. 32), também ressalta comoestudos existentes demonstram uma grande inér-cia histórica na estrutura hierárquica de grandescidades, que não pode ser interpretada como umefeito direto das transformações mais recentes, umavez que:”Ela é, inevitavelmente, uma herança his-

tórica dos efeitos dos movimentos da economia e

da sociedade, no longo prazo, centralizada tanto

nas estruturas materiais do espaço construído como

nas formas sociais de valorização simbólica e de

apropriação”.

Tanto a nova relevância e mudanças de fun-ções e estruturas metropolitanas são indiscutíveiscomo o impacto socialmente adverso das grandestransformações da atualidade nos países e metró-poles da América Latina (ver Ribeiro, L. C., 2000 e2004; Mattos, 2004; Ribeiro, A.C., 2000 e 2004).Mas, não se pode considerar a existência de umatrajetória única e de tendências universais para asmetrópoles de caráter global e, muito menos, nacio-nal ou regional, uma vez que: a) globalização consti-tui um processo inacabado e contraditório, com efei-tos bastante seletivos sobre os diferentes territórios, edinâmicas que envolvem tanto a homogeneizaçãoquanto a diferenciação e a singularização, b) coman-dado por forças transnacionais, esse processo nãoelimina a influência das instituições, atores e deci-sões políticas nacionais e locais e, muito menos,da conformação histórica sobre a qual incidem asmencionadas transformações. Constatado em ou-tras regiões metropolitanas brasileiras, isto seráanalisado no que diz respeito à Região Metropoli-tana de Salvador.

POLARIZAÇÃO E SEGREGAÇÃOSOCIOESPACIAL NA REGIÃO METROPOLITA-NA DE SALVADOR

Salvador é uma referência urbana impor-tante no Brasil, não só pela sua dimensãopopulacional, atualmente em torno de 2,6 milhõesde habitantes, o que lhe confere o terceiro lugarentre os municípios-capitais, mas, sobretudo, pe-los seus 450 anos de história. Fundada no início

1 Trata-se da rede Metrópoles, Desigualdades Socioespaciaise Governança Urbana, iniciada com o estudo do Rio deJaneiro, São Paulo e Belo Horizonte, mas que integraatualmente estudos sobre as principais regiões metro-politanas brasileiras, envolvendo 22 instituições, sob acoordenação geral do prof. Luiz César Queiroz Ribeiro. Onúcleo de Salvador foi constituído pelos autores do pre-sente texto em 2003, com apoio do PRONEX/CNPq/FAPESB.

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do período colonial, com funções político-admi-nistrativas e mercantis, ela sediou o governo geraldo Brasil até 1763. Mas com a transferência da ca-pital do país para o Rio de Janeiro, o declínio dabase agro-exportadora local e, posteriormente, aconstituição de um mercado unificado nacional-mente e a concentração industrial no Centro-Sul,a cidade foi afetada negativamente, experimentan-do um longo período de estagnação econômica epopulacional.

Essa estagnação só começou a ser superadana década de 1950, com a descoberta e exploraçãode petróleo no Recôncavo baiano, (por algumasdécadas responsável pela maior parte da produ-ção nacional) quando se desencadeou um signifi-cativo processo de crescimento econômico,populacional e urbano em Salvador e nas franjasda cidade. Em fins da década de sessenta essa árearecebeu alguns investimentos industriais incenti-vados pela SUDENE e, dos anos 70 para 80, osesforços desenvolvimentistas do governo federalpara complementar a matriz industrial brasileira,com a produção de insumos básicos e bens interme-diários, levaram à implantação do Pólo Petroquímicode Camaçari e do Complexo do Cobre.

Esses e outros investimentos tiveram umimpacto extraordinário sobre a velha capital baiana,convertendo a indústria no foco dinâmico da eco-nomia regional e ampliando as articulações entreSalvador e os municípios vizinhos, que sediam asnovas empresas, conformando a Região Metropo-litana de Salvador. Composta por 10 municípios,bem distintos em termos de área, população e con-dições sócio-econômicas, mas com uma integraçãoe complementariedade que se superpõe à sua dife-renciação, ela se tornou responsável por mais de80% da indústria de transformação e por mais demetade da produção e da riqueza estadual.

Salvador, onde o Censo de 2000 encontrou80,9% da população da região, constitui a princi-pal praça comercial e financeira baiana, concen-trando 79,5% dos depósitos bancários estaduais,sedes de empresas, a burocracia estatal, atividadesportuárias e serviços especializados. Além disso,sua beleza natural e patrimônio histórico cultural

tem levado a um intenso crescimento do turismo.Camaçari, que tem a segunda concentraçãodemográfica, tornou-se um centro industrial im-portante com a implantação do Pólo Petroquímicoe de várias empresas, como a Ford e a Monsanto,instaladas mais recentemente. Além disso, na suaorla marítima encontram-se loteamentos e empre-endimentos de lazer e turismo para as classes altase médias. Candeias, dinamizada a partir da explo-ração do petróleo, sedia algumas indústrias, assimcomo Simões Filho, onde uma numerosa popula-ção de baixa renda vem buscando menores custosde moradia. Madre de Deus, com uma área de ape-nas 11 km, sedia um terminal marítimo daPetrobrás, além de ser uma área de veraneio, pescae mariscagem. Com uma população e uma densi-dade demográfica reduzidas, Vera Cruz e Itaparicavivem da pesca, mariscagem e turismo. Em SãoFrancisco do Conde, outro pequeno município,está localizada a Refinaria Landulfo Alves, a únicado Nordeste. Dias D’Ávila, antiga estânciahidromineral, perdeu essa função em conseqüên-cia dos efeitos ambientais adversos do Pólo, trans-formando-se em uma cidade dormitório. Finalmen-te, Lauro de Freitas tem registrado um intenso cres-cimento populacional e econômico nas últimasdécadas, ao concentrar o aeroporto internacionalde Salvador, algumas atividades de transformação,um comércio e serviços dinâmicos e condomíniosde alta renda (onde reside parte dos empregadosde melhor remuneração do pólo industrial deCamaçari), conurbando-se com Salvador.

Apesar dos seus reduzidos vínculos comos demais setores da economia baiana, os investi-mentos industriais estimularam direta ou indire-tamente o surgimento de novas atividades e a ex-pansão e modernização de outras. Com isto a es-trutura social da região também mudou, com umaampliação e diversificação das classes médias e aemergência de um operariado industrial moder-no, por exemplo. Contudo, o perfil dessa indús-tria automatizada, voltada para a produção deinsumos básicos destinados à indústria do Sudestedo país, e a exigüidade do mercado consumidorregional (pouco atrativo para investimentos com

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maior capacidade de absorção de mão-de-obra,como a indústria de bens de consumo final) man-tiveram a parcela de trabalhadores ocupados nes-se setor bem mais reduzida do que em outras me-trópoles brasileiras. Além disso, as transformaçõesassinaladas incidiram sobre um mercado de traba-lho marcado por uma super oferta de mão-de-obrade baixa qualificação, reforçada pela atração de flu-xos migratórios para Salvador e sua área metropo-litana, pela vinculação de uma grande parcela daforça de trabalho a ocupações precárias e de baixaremuneração e por uma oferta restrita de postos detrabalho de qualidade, socialmente protegidos, comsalários mais elevados e possibilidades de ascen-são profissional (Carvalho e Souza, 1980; Borges eFilgueiras, 1995; Carvalho, Almeida e Azevedo, 2001).

No tecido urbano houve mudanças radicais.A expansão e modernização econômica assinala-das incidiram sobre uma região urbana pobre eincipiente, polarizada por uma cidade praticamenteestagnada ao longo de várias décadas, exigindo suatransformação. Isto se deu de forma bastante rápi-da e abrupta, entre as décadas de 1960 e 1970,com a realização de grandes obras que acompa-nharam e anteciparam os vetores da expansão ur-bana e de uma intensa ocupação informal de famí-lias de baixa renda na periferia. Comprometida comuma modernização excludente e com os interessesdo capital imobiliário, a Prefeitura de Salvador, quedetinha a maioria das terras do município, trans-feriu sua propriedade para (algumas poucas) mãosprivadas através da Lei da Reforma Urbana, em1968. Promoveu uma ampliação substancial dosistema viário com a abertura das avenidas de vale,extirpando do tecido urbano mais valorizado umconjunto significativo de assentamentos de popu-lação pobre, que ocupavam tradicionalmente osfundos até então inacessíveis dos numerosos va-les de Salvador. Além disso, erradicou invasõespopulares localizadas na orla marítima, área reser-vada ao turismo, outro componente da estratégiade crescimento e modernização da cidade (cf.Brandão, 1981; Gordilho-Souza, 2000).

Nos anos 1980, consolidou-se um novo cen-tro urbano, impulsionado por grandes empreen-

dimentos públicos e privados realizados na déca-da anterior, destacando-se a construção da Av. Parale-la, do Centro Administrativo da Bahia, da nova Esta-ção Rodoviária e do Shopping Iguatemi. Essa novacentralidade não apenas direcionou a expansão dacidade no sentido da orla norte, como afetou a dinâ-mica do centro tradicional na área antiga da cidade,contribuindo para o seu gradativo esvaziamento.

Essas intervenções, associadas à realizaçãode investimentos complementares, pesados e se-letivos centrados na infra-estrutura e no projetoindustrial, interferiram decisivamente na confor-mação de um novo padrão de produção do espaçourbano, com a configuração de três vetores bemdiferenciados de expansão da cidade: a orla marí-tima norte, o “miolo” e o subúrbio ferroviário nolitoral da Baía de Todos os Santos. O primeiro cons-titui a “área nobre” da cidade, local de moradia,serviços e lazer, onde se concentram a riqueza, osinvestimentos públicos, os equipamentos urbanose os interesses da produção imobiliária. O segun-do, localizado no centro geográfico do município,começou a ser ocupado pela implantação de con-juntos residenciais para a “classe média baixa” nafase áurea da produção imobiliária através do Sis-tema Financeiro de Habitação, tendo a sua expan-são continuada por loteamentos populares e su-cessivas invasões coletivas, com uma disponibili-dade de equipamentos e serviços bastante restrita.Finalmente, o subúrbio ferroviário teve sua ocu-pação impulsionada inicialmente pela implanta-ção da linha férrea, em 1860, constituindo, a par-tir da década de 1940, a localização de muitosloteamentos populares, que foram ocupados nasdécadas seguintes sem o devido controle urbanís-tico, com suas áreas livres também invadidas.Transformou-se em uma das áreas mais carentes eproblemáticas da cidade, concentrando uma po-pulação extremamente pobre e sendo marcada pelaprecariedade habitacional, pelas deficiências deinfra-estrutura e serviços básicos e, mais recente-mente, por altos índices de violência (Franco, San-tos e Gabrielli, 1998; Gordilho-Souza, 2000).

Em relação aos demais municípios da RMS,não existem dados suficientemente sistematizados

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sobre a ocupação habitacional na atualidade quepermitam uma análise comparativa desses proces-sos de ocupação. Entretanto, as evidências do am-biente construído nas suas sedes demonstram cla-ramente a predominância de áreas informais, comalto grau de deficiências urbanísticas, seguindo omesmo padrão de precariedade física e deperiferização no entorno dos núcleos centrais, se-melhante ao que ocorre em Salvador, ainda queabrangendo uma menor população.

Daí resultou uma metrópole bastante desi-gual, com ilhas de afluência em uma mar de po-breza. Analisando a estrutura social da RMS coma metodologia que vem sendo utilizada pela redeMetrópoles, Desigualdades Socioespaciais eGovernança Urbana2, encontra-se uma pequenaelite de alta renda, composta por grupos de gran-des empresários, dirigentes do setor público e pri-vado e profissionais autônomos ou empregadosde nível superior; uma pequena burguesia e seto-res médios um pouco mais reduzidos que em ou-tras metrópoles nacionais; um proletariado terciáriomais expressivo e um proletariado secundário ondea participação da indústria de transformação (mo-derna ou tradicional) é especialmente restrita. Masa marca básica da Região Metropolitana de Salva-dor é a dimensão e o peso do sub-proletariado. Seo percentual de trabalhadores de sobrevivência em1991 era de 11,7% em Belo Horizonte, 12,1% noRio de Janeiro, 8,6% em São Paulo, 9,0% em PortoAlegre, 9,0% em Porto Alegre, 9,0% Curitiba e14,2% em Recife (cf. Mendonça, 2004, p. 124) naRMS esse número se elevava a 14,5%.

A estrutura social da RMS vai se refletirnuma apropriação diferenciada do espaço metro-politano pelas diferentes categorias. A hierarquia

social foi construída a partir da agregação das di-versas ocupações levantadas nos microdados docenso de 1991 do IBGE em 25 categoriasocupacionais, que por sua vez se agregam em setegrupos, conforme expresso na Tabela 1. Já a cons-trução da tipologia socioespacial levou em consi-deração o arranjo espacial das categorias no espa-ço. Note-se que não é uma mera transposição daclassificação hierárquica operada sobre a base dedados de categorias ocupacionais do censo, masantes uma caracterização da distribuição geográfi-ca da estrutura social da RMS.3 Isto leva àaconstatação de que o espaço metropolitano comportaa coexistência de diversas combinações de categorias,com predominâncias e misturas diferenciadas.

Analisando a distribuição espacial das ca-tegorias ocupacionais, o espaço metropolitano foiclassificado em oito categorias socioespaciais, quese acham expressas no mapa 1 e configuram áreasdefinidas. Na categoria superior predomina o gru-po dirigente; na área médio-superior o predomí-nio é do grupo intelectual; na área média se mistu-ram a pequena burguesia e setores do grupo inte-lectual; na área média-popular coexistem setoresmédios e a pequena burguesia; as áreas popularessão aquelas onde predominam o proletariado se-cundário e terciário; a área popular-sub-proletária,conjuga o proletariado e os trabalhadores da so-brevivência; na área do sub-proletariado há umaconcentração dos trabalhadores de sobrevivência.Encontram-se, finalmente áreas onde há uma mai-or frequência de trabalhadores agrícolas, áreas es-tas pouco urbanizadas e com baixa densidadedemográfica.

2 Considerando a centralidade do trabalho na vida social,essa metodologia,desenvolvida por Edmond Preteicellee Luiz César Q. Ribeiro, partiu da “ocupação” tal comodefinida pelo IBGE, como variável básica para constru-ção de um sistema de categorias sócio-ocupacionaishierarquizadas. O primeiro recorte para a construçãodessas categorias foi a divisão clássica entre os detento-res e os despossuídos de capital. A partir daí foram feitossucessivos cortes entre o grande capital e o pequenocapital; entre o trabalho manual e não manual, formal einformal e entre setores econômicos (secundário eterciário, moderno e tradicional). Para um maiordetalhamento dessa metodologia ver Ribeiro e Lago, 2000.

3 Quanto ao recorte geográfico, usou-se como critério bá-sico uma agregação de setores censitários. Esta agrega-ção é necessária por questões estatísticas já que os dadosprocessados provem do questionário amostral do censode 91. Considerando que no censo de 2000 o IBGE cons-truiu uma agregação de setores chamada de AEDs – Áreade Expansão Domiciliar – que obedecem a um tamanhomínimo de população e domicílios, respeitam limitesadministrativos, agregam setores limítrofes, e é orienta-da por critérios de homogeneidade social a partir desteparcelamento espacial, estas áreas serviram de base paraa agregação usada neste mapa. Foi realizado um trabalhode compatibilização das AEDs de 2000 com a malha desetores censitários de 1991, respeitando limites admi-nistrativos (RAS), municipais, visto que é intenção dapesquisa, no seu desenvolvimento, acompanhar a evo-lução da RMS de 1980 a 2000.

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Tabela 1 - Distribuição da população ocupada, porgrupos socio-ecupacionais - RMS, 1991

Esta classificação do espaço consideroucomo as categorias ocupacionais encontravam-serepresentadas nas diversas áreas do espaço metro-politano. Assim, a representação dos grupos diri-gente e intelectual, claramente acima da sua médiana estrutura social em determinada área geográfi-ca, significou a classificação daquela área comosuperior, sendo o mesmo procedimento adotadopara os demais espaços. Note-se que uma área su-perior, por exemplo, não é território exclusivo da

sianoicapucO-oicóSsopurG N %

salocírgaseõçapucO 275.31 6,1etnegiriDopurG 1,1

soiráserpmesednarG 960.5 6,0ocilbúprotesodsetnegiriD 911.1 1,0odavirprotesodsetnegiriD 436.1 2,0

siarebilsianoissiforP a 383.1 2,0lautceletniopurG 2,5

somonôtuaroirepuslevínedsianoissiforP 644.3 4,0sodagerpmeroirepuslevínedsianoissiforP 211.34 9,4

aiseugrubaneuqeP 4,5sonabruserodagerpmesoneuqeP 912.91 2,2

airpórpatnocropsetnaicremoC b 553.92 4,3soidémseroteS 5,42

oãsivrepusedsedadivitamesodagerpmesiaunamoãnserodahlabarT 463.05 8,5sacitsítraesacincétsedadivitamesodagerpmesiaunamoãnserodahlabarT 045.42 8,2

oãçacudeeedúasmesodagerpmesiaunamoãnserodahlabarT 870.54 2,5oirótircseedsodagerpmesiaunamoãnserodahlabarT 496.48 7,9

soierroceaçitsuj,acilbúpaçnarugesmesodagerpmesiaunamoãnserodahlabarT 740.61 8,1oiráicretodairatelorP 4,12

oicrémocodsodagerpmE 665.55 4,6sodazilaicepsesoçivresmesodagerpmE 906.47 5,8

sodazilaicepseoãnsoçivresmesodagerpmE 056.65 5,6oirádnucesodairatelorP 6,12

anredomairtsúdniadsodagerpmE 797.03 5,3lanoicidartairtsúdniadsodagerpmE 177.72 2,3

serailixuasoçivresmesodagerpmE 289.94 7,5livicoãçurtsnocansodagerpmE 243.76 7,7

soãsetrA 491.31 5,1aicnêviverbosadserodahlabarT 5,41

socitsémodsodagerpmE 062.88 1,01setnalubmA 981.43 9,3

sorietacsiB 605.4 5,0odacificepseoãN 904.13 6,3

odaralcedoãN 398.72 1,3LATOT 008.009 0,001

.1991,ocifárgomeDosneC,acitsítatsEeaifargoeGedorielisarBotutitsnI-EGBI:ETNOFa edamicaodnebecrepsoriemirpsomoc,adneredlevínonátseroirepuslevínedsomonôtuasianoissiforpsoesiarebilsianoissiforpsoertneaçnerefidA

.otsieuqsonemmebsodnugessoesominímsoirálas02b axiabedoicrémoconeuqepodserodahlabartsortuoesetnalubmA.sominímsoirálasocniceuqroiamuolaugiadnermocsetnaicremocedes-atarT

.aicnêviverbosedserodahlabartedairogetacansodíulcnimarofadner

elite, que compartilha este espaço em muitos ca-sos com setores médios e/ou com os trabalhadoresde sobrevivência. Isto fica mais claro quando seexamina a distribuição segmentada por categoriassócio-ocupacionais apresentada mais adiante.

O resultado das análises é o mapa detipologia socioespacial que apresenta a distribui-ção espacial da estrutura social da Região Metro-politana de Salvador. A partir dele, fica muito cla-ra a ocupação da orla atlântica de Salvador e Lauro

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de Freitas pelos grupos dirigente e intelectual emuma mancha praticamente contínua, limitada aOeste pela Avenida Paralela, eixo viário importan-te que faz a ligação de Salvador com o vetor deexpansão do Litoral Norte e se configura como afronteira desta “cidade” com as áreas populares,ressalvando-se o enclave que se constitui no Nor-deste de Amaralina, bairro popular com alta den-sidade demográfica que rompe a continuidade damancha, o que também ocorre com o bairro da Bocado Rio, um pouco mais ao norte. Nestes espaçossuperiores encontram-se os equipamentos públi-cos e privados mais importantes, modernos cen-tros de comércio e de serviços e redes de infra-estrutura – energia, esgoto, água, telefonia, coletade lixo, sistema viário, e diversos trechos com bai-xa densidade demográfica.

Apresentando as categorias de modo seg-mentado estão os mapas seguintes, que mostramsomente áreas onde as diversas categorias sócio-ocupacionais estão super-representadas, ou seja,os percentuais encontrados ali estão acima da mé-dia da categoria respectiva. Neste caso, comparan-do a distribuição espacial do grupo dirigente e dogrupo intelectual com a distribuição do operaria-do secundário e terciário, fica patente como estaúltima é o reverso das categorias de elite.

Enquanto os grupos dirigente e intelectualse distribuem na Orla Atlântica de Salvador e deLauro de Freitas, em manchas quase contínuas,destacando-se as falhas representadas pelo Nor-deste de Amaralina, Boca do Rio e de parcela deItapuã, o proletariado se distribui na restante daRegião Metropolitana, ocupando a Salvador queas elites deixaram para trás e os demais municípi-os da RMS, com a exceção da Orla de Lauro deFreitas. Nota-se claramente manchas de ocupação doproletariado na orla de Salvador, correspondendo avazios de grupos ocupacionais de mais alta renda edeixando, ainda, as áreas do Centro Antigo e daVitória para os setores médios.

Já os setores médios ocupam o centro tra-dicional e as áreas mais antigas da cidade, áreassem dinamismo, com alta densidade demográficamas com infra-estrutura. As áreas populares são

as que abrigam a população que não tem possibili-dade de consumir o espaço da cidade modernanem da cidade tradicional e vai se alojar tipica-mente em parcelamentos clandestinos e habitaçõesprecariamente auto-construídas. Estas áreas popu-lares ocupam, em Salvador, parte da orla da Baíade Todos os Santos, do que hoje se chama de Mi-olo e do Subúrbio Ferroviário, dividindo o espaçocom as áreas do sub-proletariado em Salvador eno restante da RMS. Ao contrário da ocupação doproletariado, os trabalhadores da sobrevivênciacoexistem também ao longo da orla Atlântica eminterstícios das áreas superiores.

DADOS MAIS RECENTES E TENDÊNCIAS

Baseando-se em dados do Censo de 1991,as análises até aqui apresentadas expressam osresultados da evolução socioeconômica e urbanaaté o final da década de 1980, na qual, diversa-mente de outras regiões metropolitanas e do paíscomo um todo, a RMS apresentou um certo dina-mismo pelos efeitos diretos e indiretos dos in-vestimentos industriais. No presente, mais de umadécada depois, que transformações e tendênciaspodem ser observadas na RMS, notadamente noque se refere à estrutura social e urbana? Mesmosem dispor, ainda, da distribuição da populaçãopor categorias ocupacionais registrada pelo Censode 2000,4 pode-se chegar a algumas indicações.

Como se sabe, com as políticas implementadasnos anos noventa, recomendadas pelas agênciasmultilaterais, a sociedade brasileira vem sendo afe-tada por baixos níveis de crescimento econômico,por uma deterioração expressiva das condições detrabalho e renda da população e pela persistênciaou agravamento das desigualdades sociais e espa-ciais. Com a crise, o ajuste e a reestruturação produ-tiva, os anos mais recentes foram marcados por umaexpressiva destruição de empregos (notadamente no

4 Mudanças na classificação das ocupações realizadas peloIBGE para o Censo de 2000 exigiram dos pesquisadoresda Rede Metrópoles um cuidadoso trabalho decompatibilização com a classificação utilizada em 1991 eem 1980, que se encontra em fase de conclusão.

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setor industrial), pela terciarização da ocupação epela escassa geração de novos postos de trabalho;pela intensificação da seletividade patronal e dasdificuldades e desigualdades de acesso às escas-sas oportunidades disponíveis, pela precarizaçãodas relações de trabalho, queda de rendimentosdos que permaneceram ocupados e uma amplia-ção do tradicional excedente de mão-de-obra, comum extraordinário crescimento do desemprego.

Interferindo na estrutura social das regiõesmetropolitanas, como já foi assinalado, esses fe-nômenos têm levado a transformações comuns,como a redução dos segmentos modernos e tradi-cionais do proletariado industrial, um aumento doproletariado terciário, uma expansão do sub-pro-letariado e, contrariando a hipótese da dualização,um crescimento das categorias intermediárias, commudanças na sua composição interna. No que dizrespeito à organização do espaço, têm se constata-do mudanças de função de certas áreas e um em-pobrecimento de antigas zonas centrais, com a ex-

pansão e deslocamento do comércio e serviços maismodernos e especializados, assim como uma mai-or (auto) segregação das elites.

Tendências dessa ordem, porém, coexistemcom expressivas especificidades metropolitanas,em decorrência do caráter concentrador e dos efei-tos espacialmente seletivos das atuais transforma-ções, da trajetória de cada metrópole, das suasdesigualdades históricas e de escolhas e decisõespolíticas nacionais e locais. Como a evolução daRegião Metropolitana de Salvador deixa patente, atransformação do Brasil em uma sociedade urbanaindustrial moderna levou a uma crescente diferen-ciação interna e à conformação de especialidades ecomplementariedades entre as diversas regiões dopaís, com a constituição de uma economia nacio-nal integrada. Além disso, apesar das desigualda-des espaciais que resultaram desse processo, oprojeto desenvolvimentista incluía uma orientaçãopolítica e ações do Estado no sentido de promoveruma certa desconcentração das atividades produ-

Mapa 2 - Concentração do Grupo Dirigente

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tivas e do dinamismo econômico, através de polí-ticas de desenvolvimento regional, de inversões eda atuação de empresas estatais ou da expansãoda fronteira agrícola, entre outros fatores. Isto be-neficiou especialmente alguns espaços, gerandoalgumas “ilhas” de maior prosperidade em con-textos de estagnação, a exemplo da Região Metro-politana de Salvador, no estado da Bahia.5

O esgotamento do projeto desenvolvimentista,a crise fiscal do Estado e as novas orientações do

ajuste (implicando, entre outros aspectos, profun-das redefinições quanto ao papel do Estado, aprivatização de empresas estatais e o completoabandono de políticas de desenvolvimento regio-nal) interromperam esse movimento. Com aprevalência da lógica de mercado e uma nova ênfa-se na integração dos “espaços competitivos” daeconomia brasileira aos circuitos da globalização,os efeitos seletivos das transformações atuais fo-ram ampliados, registrando-se um processo de

5 No Estado da Bahia predominam atividades de baixodinamismo e produtividade na zona rural e nos centrosurbanos, ao lado de um reduzido conjunto de atividadesmodernas e dinâmicas em algumas poucas cadeias daagro-indústria (como a fruticultura irrigada para expor-tação às margens do São Francisco, entre a Bahia ePernambuco), na indústria da transformação e nos ser-viços, concentrados na RMS, com uma elevada produti-vidade mas baixa capacidade de geração de postos detrabalho e de uma distribuição mais ampliada da renda.

Mapa 3 - Concentração do Grupo Intelectual

Isto contribui para a fragilidade da rede urbana estadual,que apresenta um número bastante reduzido de cidadesde médio porte, ao lado de uma grande quantidade decentros sem uma escala populacional e econômica mí-nima para sediar serviços urbanos de maior dimensão ecomplexidade, levando à sua concentração em Salvadore nos seus arredores.

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reconcentração econômica em favor do centro-sule, mais especificamente, de metrópoles como SãoPaulo, Belo Horizonte ou Curitiba (ver Carvalho,Almeida e Azevedo, 2001; Carvalho, 2003).

Do ponto de vista do mercado, são maisatrativas para inversões as áreas mais desenvolvi-das e que atendem melhor aos requisitos da cha-mada “acumulação flexível”, como uma maior emais eficiente dotação de infra-estrutura econômi-ca, uma força de trabalho mais qualificada e umamaior proximidade dos consumidores de alta ren-da e dos centros de produção de ciência etecnologia. Além disso, a concentração e centrali-zação das atividades mais dinâmicas da fase atualdo capitalismo em alguns nós da rede metropoli-tana, já ressaltada, tem sido estimulada pelas no-vas tecnologias de comunicação, que viabilizam agestão de negócios ou a contratação de serviçosavançados à distância, uma redução de custos com

o fechamento de escritórios locais de representa-ção e a dispensa de empregados, etc. É ilustrativoque um grande banco privado, antes sob o contro-le baiano, e o banco estadual privatizado, após asua incorporação e reestruturação, assim como omaior grupo econômico local, com raízes na cons-trução civil mas hoje diversificado (inclusive coma compra da petroquímica) e internacionalizado,tenham transferido suas sedes de Salvador paraSão Paulo.

Impactando decisivamente sobre as metró-poles das regiões menos desenvolvidas, onde osproblemas de ocupação e renda sempre foram maisacentuados, esses fenômenos ampliaram os efei-tos adversos do ajuste e da reestruturação produ-tiva nessas cidades, refletindo-se sobre a estruturasocial, o espaço e as condições de vida urbana.

Estudos como os de Carvalho, Almeida eAzevedo (2001) ou Borges (2003) deixam bastante

Mapa 4 - Concentração da Pequena Burguesia

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claro como a Região Metropolitana de Salvador foiuma das mais duramente afetadas pelos proble-mas em questão, com a interrupção da tendênciade estruturação do mercado de trabalho, uma re-dução expressiva de postos, um recuo doassalariamento (com a proteção e direitos que lhessão associados), um crescimento lento dos víncu-los formalizados e uma expansão do emprego pre-cário, do trabalho por conta própria e do desem-prego.

Com a crise e os novos padrões de organi-zação da produção e de competitividade, as em-presas têm buscado uma redução de custos enxu-gando os seus quadros e mantendo um estoquemínimo de empregados estáveis, com o corte deníveis hierárquicos, a eliminação de postos de re-muneração mais elevada e a externalização de boaparte das suas atividades, através da sub-contratação. Na RMS isto se deu principalmenteno setor industrial e nas empresas do Pólo

Petroquímico, que reduziram o número de empre-gados diretos para cerca de 7 mil, (inicialmenteeram 20 mil). Isto contribuiu para um crescimentoda ocupação no âmbito dos serviços auxiliares èàprodução, sem que houvesse, necessariamente, umaumento do número efetivo de postos de trabalhonessas atividades, com perda da qualidade dospostos em termos de remuneração, segurança, di-reitos e benefícios oferecidos aos trabalhadores. E,também, para uma queda acentuada das ocupa-ções industriais em uma área onde as mesmas jáeram tradicionalmente restritas, explicando por-que a participação desse setor na RMS alcançavaapenas 9,8% da população ocupada, contra 9,4%em Belém, 16,1% em Fortaleza, 10,7% em Recife,15,9% em Belo Horizonte, 10,8% no Rio de Janei-ro, 19,5% em São Paulo, 16,0% em Curitiba e20,2% em Porto Alegre, conforme a PNAD – Pes-quisa Nacional por Amostra de Domicílios – 2001(IBGE, 2003).

Mapa 5 - Concentração dos Setores Médios

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Assim, reduziram-se os postos em setoresque experimentaram uma intensa renovaçãotecnológica e organizacional ou foram objeto deprivatizações, como a indústria petroquímica eoutros ramos da indústria de transformação, osserviços creditícios e financeiros e os serviços deutilidade pública. Dificuldades de financiamentoda construção residencial e a restrição dos investi-mentos em obras públicas parecem ter contribuí-do para diminuir o peso da ocupação na constru-ção civil, tradicional absorvedora da mão-de-obramasculina de menor escolaridade e qualificação.Paralelamente, cresceu o peso do emprego no âm-bito dos serviços, particularmente em setores comoos serviços auxiliares à produção, serviçosespecializados e serviços na área do turismo, dasaúde e educação.

A dinâmica da RMS também tem ensejadoo crescimento do número de trabalhadores porconta própria e de pequenos e médios empregado-res, com uma sua maior diferenciação. Em um con-

texto em que o desassalariamento, a flexibilizaçãoe precarização dos vínculos e o crescimento dodesemprego têm atingido até mesmo a trabalhado-res mais qualificados e antes melhor posicionados,uma parcela expressiva de força de trabalho tempermanecido ou se inserido na produção comoprestadores de serviços ou consultores, levando àconstituição de um segmento de autônomos e pe-quenos empregadores (cerca de 11%) com um novoperfil. Trata-se, predominantemente, de homensbrancos e maduros, com instrução de segundo outerceiro grau, que atuam principalmente na pres-tação de serviços auxiliares, serviços especializadose de alimentação. Sua presença também cresceuna indústria, mas declinou na construção civil,com a crise desse ramo. Em que pesem a sua inse-gurança, a ausência de proteção social e as exten-sas jornadas de trabalho, esse foi um dos rarosgrupos a preservar ou elevar o seu nível de renda.(Carvalho, Almeida e Azevedo, 2001)

Mas o peso dos trabalhadores por conta

Mapa 6 - Concentração do Proletariado

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própria (24,7% em 2001, percentual inferior ape-nas a Belém), dos empregados sem carteira assina-da, e dos empregados domésticos (10,1%) refle-tem, sobretudo a dimensão do excedente de mão-de-obra, bastante ampliado com as transformaçõesdos anos noventa. Explicitando os estreitos limi-tes de incorporação produtiva da economia regio-nal, muitas vezes encoberta pela ocupação precá-ria e mal remunerada, o desemprego também cres-ceu bastante, chegando a 25,23% da PEA e confe-rindo à RMS um triste campeonato entre as metró-poles brasileiras.

Esse conjunto de fenômenos vêm tendo umclaro impacto sobre a estrutura social da regiãometropolitana. Seu proletariado industrial, porexemplo, reduziu-se drasticamente (com asprivatizações e, sobretudo, as terceirizações) inter-rompendo o processo de formação de uma classeoperária moderna, reivindicativa e politizada, quevinha ocorrendo a partir do pólo petroquímico deCamaçari. Com a transformação das relações e con-

dições de trabalho vem ocorrendo uma expansãodo segmento classificado como uma pequena bur-guesia (como os pequenos empregadores) e do pro-letariado terciário. Os setores médios parecem termantido a sua participação na estrutura social, mascom mudanças na sua composição (a exemplo deum maior peso relativo dos ocupados nos servi-ços de educação e saúde e dos servidores públi-cos) e, principalmente, um grande empobrecimento.

Faltam maiores evidências sobre a trajetóriadas elites, ou seja, sobre o grupo dirigente e o gru-po intelectual, ainda que certas hipóteses possamser aventadas. Com a transferência de algumas gran-des empresas e atividades para outros centros (SãoPaulo, basicamente), o perfil dos “grandes empre-sários” locais certamente mudou. O peso relativodos dirigentes do setor privado provavelmente sereduziu em relação ao dos dirigentes do setor pú-blico. Alguns segmentos dos profissionais de ní-vel superior autônomos podem ter mantido ou atéelevado a sua participação e oportunidades, en-

Mapa 7 - Concentração dos Tabalhadores deSobrevivência

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quanto para outros isto se reduziu. Escritórios lo-cais de engenharia e arquitetura ou de advocacia,por exemplo, parecem estar nesse segundo caso.

Estudo de Pochmann et al (2004) sobre os“ricos” do Brasil, tomando por base as famíliassituadas no topo da distribuição de renda, apre-senta informações significativas a esse respeito. Res-saltando a enormidade e a perversidade da con-centração da renda no país, os autores constatamque, com a desigualdade, o percentual de famíliasricas em relação ao total de famílias ampliou-se em30% no Brasil e em 100% no estado de São Pauloentre 1980 e 2000. Na Bahia, porém, houve umaqueda relativa de 28,8%. Nesse último ano as fa-mílias em apreço somavam apenas 24.498 em todoo estado (em São Paulo eram 443.462), sendo que20.805 delas residiam em Salvador e tinham umrendimento médio mensal de R$11.100,00, evi-denciando como, apesar da concentração de ren-da, na RMS os ricos são menos numerosos e me-nos ricos que em outras grandes metrópoles brasi-leiras.

Mas as mudanças associadas ao ajuste e àreestruturação produtiva levaram sobretudo a umcrescimento do sub-proletariado, ampliando o con-tingente de trabalhadores de sobrevivência e dedesempregados e acentuando um dos traços maiscaracterísticos da região, que persiste como um marde pobreza com umas poucas ilhas de afluência.Conforme os dados do Censo 2000 (apud Mouraet al, 2004) a proporção de habitantes com umarenda domiciliar per capita abaixo de meio saláriomínimo chegava a 34,61% na RMS.6 Em 2001, 9,2%da sua população ocupada tinha um rendimentomédio mensal em todos os trabalhos de até meiosalário mínimo; 22,4% de mais de meio a um salá-rio; 28,1% de mais de um a dois salários (perfa-zendo 60% até esse valor), 12,0% de mais de doisa três salários, 10,0% de mais de três a cinco eapenas 12,0% de mais de cinco salários mínimos,

conforme informações da PNAD 2001 (IBGE, 2003).Quanto ao espaço urbano, pode-se dizer que

persistiram as grandes tendências anteriores, comalgumas transformações que começaram a despon-tar a partir de meados dos anos noventa. Em bus-ca de novas alternativas econômicas para o estadoe para a Região Metropolitana, tanto o governo es-tadual quanto os municípios têm apostado na con-cessão de incentivos fiscais para a atração de no-vas indústrias e no incremento do turismo. Comessa perspectiva é possível diferenciar doisdeterminantes preferenciais de intervenção, sen-do um ligado à dinamização e expansão do grandepólo industrial, com a instalação do complexoautomobilístico da Ford Nordeste, e o outrodirecionado para o centro histórico e o litoral nor-te, com a ampliação e diversificação de ações rela-cionadas ao turismo, através de projetos derequalificação urbana na área formal da cidade eda construção de grandes complexos hoteleiros.

As instalações do Complexo Ford foram im-plantadas em 2001, compreendendo, além damontadora, um conjunto de 33 empresassistemistas e um terminal portuário exclusivo,construído na Baía de Aratu, para o escoamentoda produção no país e para consumidores dasAméricas do Sul e do Norte. Nele também serãoconcentradas as atividades de importação de veí-culos. Com uma produção de cerca de 100 milveículos por ano e capacidade plena de 250 mil,esse complexo industrial atualmente oferece 7.500empregos diretos. Ainda que faltem elementos parauma melhor avaliação do seu impacto na RMS,inclusive em termos espaciais,7 estimativaspublicadas pela imprensa local têm consideradoque, com os seus efeitos indiretos, poderão sergerados cerca de 35 mil postos de trabalho até 2005.

6 Essa proporção era superada apenas pelas constatadasem Recife e em Fortaleza, que representavam, respecti-vamente, 37,03% e 39,74%. Nas outras principais me-trópoles brasileiras ela correspondia a 20,05% em BeloHorizonte, 17,82% no Rio de Janeiro, 14,0% em SãoPaulo, 14,94% em Curitiba e 14,3% em Porto Alegre.

7 A RMS não possui áreas residenciais tipicamente operá-rias, tanto pela estreiteza do operariado industrial comodas circunstâncias que cercaram a sua expansão. O pólopetroquímico recrutou seus empregados em Salvador,oferecendo-lhes salários acima do mercado local e trans-porte até as fábricas. Além disso, havia uma preocupa-ção do governo federal em evitar “a criação de um novoABC”, conforme informação obtida por um dos autoresdeste trabalho na ocasião. Como a Ford não oferece trans-porte e seus salários são bem menores, pode haver umdeslocamento ou uma tendência à concentração dos seusoperários em Camaçari ou nas suas proximidades.

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O segundo determinante de expansão me-tropolitana, que se delineia com o turismo, revela-se através das diferentes ações empreendidas a par-tir dos anos noventa, que capturam e transformamo próprio espaço urbano em mercadoria, com aexploração de áreas públicas, a privatização de prai-as e dos serviços urbanos, a instalação de pedági-os nos principais acessos à cidade formal valoriza-da, destacando-se como principais intervenções:a) requalificação de certas áreas da cidade antiga,como o Pelourinho e adjacências, expulsando apopulação pobre e transformando-o em um gran-de shopping aberto, com bares, restaurantes, ativi-dades culturais, etc.; b) intervenções pontuais deembelezamento e melhoria em áreas públicas dacidade formal, como praças e jardins, ou parquesda orla. c) redimensionamento dos projetos e in-vestimento em habitação social, sobretudo nas áreasdegradadas inseridas na cidade formal e próximasàs áreas de atração turística, a exemplo de inter-venções do projeto Viver Melhor, Ribeira Azul eCores da Cidade, privilegiando-se a estética em de-trimento do conforto habitacional; d) instalação deempreendimentos hoteleiros de grande porte nolitoral norte, extrapolando os próprios limites daRMS, a exemplo do Resort Praia do Forte, Com-plexo Sauípe e outros investimentos privados,seguindo-se à privatização da Linha Verde, princi-pal acesso para essa região litorânea; e) a discus-são da requalificação da área do antigo Comércio,crescentemente esvaziado, com indicações de in-vestimentos turísticos de lazer e habitação para asclasses médias (Gordilho-Souza, 2002).

Esses investimentos públicos e privados,no seu conjunto, apontam para a intensificação dasegmentação socioespacial que se configurou nacidade industrial moderna, trazendo novos con-teúdos na reestruturação espacial em curso, que jáesboçam o redesenho da cidade-região e a diferen-ciação cada vez mais acentuada do uso e acesso aoespaço urbano entre os pobres e aqueles que po-dem consumir a cidade mercadoria.

Também não se pode esquecer que a pobre-za, as desigualdades e a superposição de carênciasvêm contribuindo para a degradação das condi-

ções de vida e dos padrões de sociabilidade e parao crescimento da violência nas regiões metropoli-tanas, notadamente nos bairros populares e nasperiferias, onde se concentra a população de me-nor escolaridade e renda, a vulnerabilidade sociale a presença de crianças e jovens. No caso dessesúltimos, a contradição entre aspirações de consu-mo e realização pessoal elevadas por uma socieda-de onde a própria identidade de “jovem” está as-sociada ao acesso a certos padrões de consumo(tênis e “roupas de marca”, por exemplo) e a im-possibilidade de concretizá-las tem levado, muitasvezes, a uma brutal frustração. Pressionados pelapobreza, pelo desemprego e, principalmente, poruma completa ausência de perspectivas, um nú-mero crescente deles tem se envolvido com pe-quenos delitos, gangues, seqüestros e tráfico dedrogas, contribuindo para o crescimento da vio-lência, da qual terminam se tornando vítimas prin-cipais, notadamente nos seus próprios bairros.Assim, na Região Metropolitana de Salvador comoem outros grandes centros, o risco de exposição àviolência, a detenções arbitrárias ou à própria mor-te transformou-se em um dos componentes atuaisdo processo de segregação.

Por outro lado, como se tornou comum aesses grandes centros, a difusão da conflitividadee da violência e de uma cultura de medo tem dis-seminado nas ilhas de afluência da RMS a presen-ça de espaços exclusivos e protegidos por altosmuros, uma sofisticada tecnologia de segurança eum amplo conjunto de restrições e proibições, querepresentam, na expressão de Caldeira (2000), ver-dadeiros “enclaves fortificados”. Nesses enclavesas camadas de alta e média renda buscam formasde moradia, circulação e consumo que lhes permi-tam conviver entre iguais, preservadas do contactocom a pobreza, com a “desordem” e a violênciaurbanas. Não é por acaso que nas áreas “nobres”(como o Itaigara ou a orla norte) ruas estão sendointerditadas e condomínios horizontais têm proli-ferado, ou que no lançamento do Alphaville deSalvador, localizado na Avenida Paralela, “frontei-ra” interna da cidade, seus lotes tenham sido tãorapidamente comercializados.

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Refugiando-se nessas pequenas ilhas, ascamadas altas e médias tendem a desconhecer “oresto” dos espaços, a abandonar a esfera públicatradicional das ruas e a se dissolidarizar do desti-no conjunto da cidade (ver Ribeiro, L. C., 2004).Daí resulta uma separação física e simbólica quedificulta a sociabilidade, intensifica a fragmenta-ção das identidades coletivas, estigmatiza certosespaços e inferioriza determinados segmentos so-ciais; muda o caráter do espaço público e esvazia aparticipação da esfera pública, que se torna aindamenos aberta e igualitária, contrapondo-se aoideário e aos valores de uma metrópole mais justae democrática.

(Recebido para publicação em agosto de 2004)(Aceito em agosto de 2004)

REFERÊNCIAS

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