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Artigos

A Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo ParadigmaA Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo ParadigmaA Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo ParadigmaA Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo ParadigmaA Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo ParadigmaJosé Blanes Sala ...................................................................................................................................................... 5

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A Incômoda Solução Chamada Ação AfirmativaA Incômoda Solução Chamada Ação AfirmativaA Incômoda Solução Chamada Ação AfirmativaA Incômoda Solução Chamada Ação AfirmativaA Incômoda Solução Chamada Ação AfirmativaSandro César Sell ................................................................................................................................................... 53

Atos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-MahleAtos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-MahleAtos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-MahleAtos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-MahleAtos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-Mahlee Dana-Echline Dana-Echline Dana-Echline Dana-Echline Dana-EchlinAntonio Celso Baeta Minhoto ................................................................................................................................ 65

Papel do Ensino Jurídico no Futuro da AdvocaciaPapel do Ensino Jurídico no Futuro da AdvocaciaPapel do Ensino Jurídico no Futuro da AdvocaciaPapel do Ensino Jurídico no Futuro da AdvocaciaPapel do Ensino Jurídico no Futuro da AdvocaciaLuiz Flávio Borges D’Urso ...................................................................................................................................... 82

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D ireito

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A r t i g o

D ireito E x p e d i e n t eRevista IMES Direito – Uma publicação do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul

Ano Ano Ano Ano Ano IIIIIIIIIIIIIII – n. 6 – n. 6 – n. 6 – n. 6 – n. 6

janeiro/junho 2003janeiro/junho 2003janeiro/junho 2003janeiro/junho 2003janeiro/junho 2003

Fechamento desta edição:

Maio/2004

Diretor da MantenedoraDiretor da MantenedoraDiretor da MantenedoraDiretor da MantenedoraDiretor da Mantenedora

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O IMES, em suas revistas, respeita a liberdadeintelectual dos autores, publica integral-mente os originais que lhe são entregues, semcom isso concordar necessariamente com asopiniões expressas.

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A PROTEÇÃO AMBIENTAL, A PROPRIEDADEPRIVADA E UM NOVO PARADIGMA

José Blanes SalaMestre e Doutor em Direito Internacional pela USP.

Professor de Direito Internacional no Imes e na Universidade São Judas Tadeu.

1 UM NOVO PATAMAR

DE COMPLEXIDADE

“A pesquisa científica sobre as inter-rela-

ções entre sociedade e meio ambiente encontra-se

em rápida evolução em todo o mundo” – é assim

que Freire Vieira1 inaugura o seu estudo sobre

as ciências sociais no Brasil e a problemática

ambiental durante a década de 1980. “A in-

terdependência dos diversos fatores envolvidos

cria um novo patamar de complexidade, que

coloca em cheque as esferas de competência

tradicionalmente associadas a disciplinas

científicas isoladas”, diz ele. Efetivamente, esse

novo patamar de complexidade vai exigir da

ciência jurídica um esforço inusitado paraadequar-se à nova realidade ambiental, do qual

são testemunhas diversos autores que escrevemno final da década de 1990 propondo um novoparadigma para o mundo do Direito. Ao longodeste trabalho os iremos citando, junto com assuas abordagens novidosas e, às vezes, nãoisentas de polêmica.

Freire Vieira, em seu trabalho, apresenta-nosum apanhado das contribuições associadas ao

campo da sociologia, alertando para o desafio

1 FREIRE VIEIRA, Paulo et al. A problemática ambiental e as ciências sociais no Brasil. Dilemas sócio-ambientais edesenvolvimento sustentável, p. 103 e ss.

R E S U M O

O Direito Ambiental supõe uma reformulaçãoglobal e radical do sistema jurídico moderno e,conseqüentemente, também dos seus conceitoscentrais, sobretudo no que tange ao conceito depropriedade privada. Neste artigo, expõe-se deforma rápida e sintética a opinião de diversosautores que escreveram no final da década de 1990propondo um novo paradigma para o mundo doDireito. Alertam todos eles para a necessidade deuma redefinição da idéia de liberdade que contenhaum duplo limite: o social e o ambiental.

A B S T R A C T

The enviromental law assumes a global and radicalreformulization of a modern legal system and,consequently, also of its central concepts, over all,the way it refers to the concept of private property.In this article, the opinion of differents authors, whowrote about this theme at the end of the 90´s, isexposed of an agile and synthetic way, consideringa new paradigm for the world of the law. Theyalert for the necessity of a redefinition of the freedomidea that contains a double limit: the social and theenveroimental one.

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de que este tipo de pesquisa “... parece consistirna adoção de uma diretriz preventiva, capaz debalizar a concepção e a implementação deestratégias que compatibilizem os objetivos si-multaneamente socioeconômicos, culturais,político-institucionais e ambientais da dinâmicade evolução das sociedades modernas”. A res-posta para as mudanças na concepção jurídicanão tardaria em concretizar-se com a preconi-zação de um novo modelo teórico do Direito,mais acorde com a realidade ambiental e quefosse capaz de estruturar-se de forma mais or-gânica, adaptando-se ao caleidoscópio socioe-conômico, cultural e político. Trata-se de ummodelo, até certo ponto, de produções inespe-radas e de recentíssima gestação. Precisamentepor esse fato, ainda disforme e primigênio, querdizer, hesitante e um tanto contraditório.

Não é, pois, uma nova temática do Direito,como vinha sendo considerado de início, dada asua focalização exclusivamente técnica. Tambémnão se prende apenas ao fator econômico desen-volvimento, como se pretendeu mais recente-mente... Vai exigir a demolição de uma série deconceitos jurídicos anteriores que, na verdade,se apóiam em estruturas filosóficas e de visão demundo. Assim o querem demonstrar algunsautores recentes que passaremos a analisar aseguir, acompanhando os principais tópicos desuas afirmações.

2 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE

“... em que medida é possível a conciliação entre o

desenvolvimento econômico e a proteção ao meio

ambiente, e mais: até que ponto prevalece o interesse

da proteção ambiental ou o interesse do

desenvolvimento econômico? A pergunta é

relevante, na medida em que as imensas legiões de

miseráveis do terceiro mundo dificilmente percebem

que as suas condições de vida são o produto e

conseqüência de uma determinada forma de

desenvolvimento econômico, que produz como

resultado previsível a pauperização e marginalização

da imensa maioria da população no mundo.”2

É assim que Bessa Antunes, um dos nossos

juristas mais conhecidos nesta área, introduz a

nova visão do desenvolvimento sustentável, con-

cepção que tem em vista a tentativa de conciliar

a preservação dos recursos ambientais e o de-

senvolvimento econômico. Pretende-se que,

sem o esgotamento desnecessário dos recursos

ambientais, haja a possibilidade de garantir uma

condição de vida mais digna e humana para mi-

lhões e milhões de pessoas, cujas atuais condi-

ções de vida são absolutamente inaceitáveis. Na

verdade, como ele próprio afirma, esta nova vi-

são procura colocar o Direito Ambiental no con-

texto do Direito Econômico. E a efetivação do

princípio de proteção ao meio ambiente como

princípio econômico implica, obrigatoriamen-

te, a mudança de todo o padrão de acumulação

de capital, a mudança do padrão e do conceito

de desenvolvimento econômico. O fator eco-

nômico deve ser encarado como desenvolvi-

mento e não como crescimento. O desenvol-

vimento se distingue do crescimento na medi-

da em que pressupõe uma harmonia entre os

diferentes elementos constitutivos. Já o cresci-

mento tem o significado da preponderância e

prioridade da acumulação de capital sobre os

demais componentes envolvidos no processo.

O reconhecimento da natureza econômica

das normas de Direito Ambiental vai trazer consi-

go uma inegável e rápida repercussão na con-

2 BESSA ANTUNES, Paulo. Direito ambiental, p. 15 e ss.

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ceituação do Direito de Propriedade. Os bens

ambientais – estejam submetidos ao domínio

público ou privado – são considerados de inte-

resse comum. Então a função social da proprie-

dade passa a ter como um de seus condicio-

nantes o respeito aos valores ambientais. Quer

dizer que a propriedade não utilizada de ma-

neira ambientalmente sadia não cumpre a sua

função social.

Neste sentido, cumpre citar a lição de Gomes

Canotilho, ao comentar a jurisprudência am-

biental portuguesa, e relacionar a proteção ao

meio ambiente e ao direito de propriedade:

“Neste final de milênio parece indiscutível que

as exigências de proteção ao ambiente natural

ou construído (proteção da natureza, prote-

ção ao patrimônio cultural), vêm colocar (ou

recolocar) dois problemas de particular im-

portância: (1) o das relações recíprocas entre a

garantia institucional da propriedade e do di-

reito fundamental da propriedade, por um la-

do, e o da proteção do ambiente, por outro;

(2) o da conformação jurídica destas relações

pelo legislador e pelos tribunais.

A primeira idéia a realçar é a do reforço da vin-

culação social da propriedade por motivos eco-

lógicos. Esta tendência desenha-se com nitidez a

partir dos finais dos anos sessenta. A intensificação

dos vínculos incidentes sobre a propriedade

obriga, porém, a novos esforços dogmáticos no

sentido de saber em que casos deve o proprietário

suportar ‘medidas autorizativas de compressão

ecológica’ sem qualquer direito a ‘compensações

patrimoniais’. É neste contexto que se situa a

recente fórmula da juspublicística alemã:

‘determinação do conteúdo da propriedade com

o correspondente dever de indenização’”.3

3 DA PROPRIEDADE PRIVADA

AO USUFRUTO ECOLÓGICO

Na verdade, hoje, com relação ao conceito

de propriedade e outros conceitos básicos do

Direito, como a liberdade ou a igualdade, o já

reconhecido Direito Ambiental coloca-se de

duas forma básicas: a primeira considera que

os problemas suscitados ao sistema jurídico

pelas demandas emergentes da crise ecológica

são de índole estritamente técnica. E estas de-

mandas são resolúveis mediante a extensão –

com alguns retoques – dos conceitos e instru-

mentos do sistema jurídico ao novo objeto: o

meio ambiente. Por este ponto de vista, ele ape-

nas conteria a novidade de um objeto de regu-

lamentação inédito. Na segunda forma, que

Garrido Peña desenvolve em interessante tra-

balho, o Direito Ambiental supõe uma refor-

mulação global e radical do sistema jurídico mo-

derno e, conseqüentemente, também dos seus

conceitos centrais. A novidade consistiria não

apenas no objeto, como também no sujeito e

nos instrumentos de intervenção jurídica.

O citado autor deixa claro, de início, que

para ele os principais valores que o sistema

jurídico oferece atualmente são a liberdade e a

propriedade.

“De esta caracterización inicial de la teoria

jurídica del valor moderno se desprenden dos

construcciones/representaciones de la libertad

que tienen una grave incidencia en la oposición

entre la ontología jurídica y el paradigma eco-

lógico: por un lado está la representación ili-

mitada e incondicionada de la libertad (infini-

ta y absoluta), y en segundo lugar, la represen-

tación subjetivista de la misma (la libertad

3 GOMES CANOTILHO, J. J. Proteção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental, p. 96.

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como obra del sujeto). Estas dos representa-

ciones e la libertad son congruentes con la absolu-

tización de la propiedad como la forma jurídi-

ca que hace posible la producción infinita del

sujeto ilimitadamente libre. Esta libertad ili-

mitada y subjetiva legitima la desigualdad ra-

dical que supone la propiedad privada. Los

efectos ambientales y sociales de sistemas legi-

timados sobre concepciones individualistas e

incondicionados de la libertad son ya del todo

conocidos.”4

Para Garrido Peña, então,

“la misma fuerza que realiza la explotación so-

cial es la que ejecuta el programa de expolio y

depredación del medio natural. Fuera del su-

jeto propietario solo hay materia inerte, lista

para ser dominada y mercantilizada.”

Portanto, citando Ferrajoli, lembra que

“cuando una libertad individual transgride el

consenso constituyente sobre esta regla de oro

de la igualdad de libertades usurpando la li-

bertad del otro, entonces no estamos ante un

ejercicio de libertad sino de poder.5 A este lí-

mite le llamaremos el límite social de la libertad

individual”.

Assim, esclarece que, do mesmo modo que

o sujeito individual não deve ser ilimitadamente

livre ou proprietário, o sujeito generacional

também não pode dispor de liberdades que

anulem as liberdades e a vida das gerações vin-

douras. “Por tanto, en unos casos el límite al

ejercicio de la libertad es social y en otros es

ambiental.” Daí a necessidade de uma redefi-

nição da liberdade, que contenha um duplo

limite: o social e o ambiental. Esta redefinição

nos acompanha até uma ética e uma ontologia

da finitude na qual a individualidade se repre-

senta como autonomia.

Para Garrido Peña,

“la propiedad privada es una institución que está

intimamente vinculada con el concepto del sujeto

moderno y la representación de la libertad como

ilimitada, característica también de la mo-

dernidad. Aquello que se tiene en propiedad se

puede gozar y usar sin límites, sin más límites que

la voluntad del propietario. Las libertades de los

otros y los recursos naturales se ven amenazados

por una institución que hace de cada propietario

un soberano y un déspota. Es necesario pues

limitar esta institución hasta la línea en que ponga

en peligro las libertades de los otros o las con-

diciones ecológicas de reproducción de la vida”.

Este autor considera que os recursos natu-

rais não devem, em uma perspectiva ecológica,

ser considerados coisas, mas entidades vivas com

as quais se interage. É preciso ir além dos direitos

reais a fim de procurar formas que reflitam essa

limitação e provisionalidade da relação susten-

tável de possessão dos recursos naturais.

Por isso, propõe,

“existen en nuestra tradición jurídica figuras e

institutos mas cercanos al modelo de libertad

(finita y ecológica) que el que representa la pro-

4 GARRIDO PEÑA, Francisco. De como la ecología política redefine conceptos centrales de la ontología jurídica tradicional:libertad y propiedad. O novo em direito ambiental, p. 213 e ss.

5 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal, p. 908.

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piedad privada. Una mezcla entre dos figuras

venerables: el usufructo y el fideicomiso. De

estas figuras surge un modelo de propiedad dis-

minuido y limitado. Se trataria de una especie

de usufructo fideicomisario”.

A proposta deste autor consistiria em umusufruto ecológico, realizando-se sobre umadupla limitação ambiental: a limitação física (afinitude dos recursos naturais) e a limitação ge-neracional. Do sucesso da limitação ética, po-lítica e jurídica (generacional) depende quepossa evitar-se o limite físico. Nesse sentido, ousufruto ecológico deve entender-se mais comouma função garantista dos direitos generacio-nais e da vida (biodireito) do sujeito difuso bios-fera (o qual supõe os direitos individuais detodos os membros em potência da espécie) doque como um instituto novo ou reformado dosjá existentes. Uma função intermediária entreos direitos reais modernos e os direitos difusos

e biocêntricos do futuro.

4 OS DIREITOS HUMANOS

DE TERCEIRA GERAÇÃO

As considerações sobre a propriedade nos

levam como que pela mão aos direitos difusos.A defesa dos interesses difusos, não estandobaseada em critérios de dominialidade, entre

sujeito ativo e objeto jurídico tutelado, dispensauma relação prévia de direito material.

Como explica com pertinência CardosoBorges,

“o direito ao meio ambiente traz dificuldades

para a teoria jurídica porque não é um direito

individual, como os tradicionais, nem um di-

reito social, correspondente à segunda geração

do direito. Essa evolução para a terceira gera-

ção dos direitos traz problemas para a estru-

tura da teoria jurídica. É um direito difuso,

difícil de limitar. Ao contrário dos direitos li-

berais, que são uma garantia do indivíduo

diante do poder do Estado, e ao contrário tam-

bém dos direitos sociais, que consistem basica-

mente em prestações que o Estado deve ao in-

divíduo, o direito difuso ao meio ambiente

consiste num direito-dever, na medida em que

a pessoa, ao mesmo tempo em que é titular do

direito ao meio ambiente ecologicamente equi-

librado, também tem a obrigação de defendê-lo

e preservá-lo (...) é um direito ‘erga omnes’ em

duas direções. Primeiro porque todos têm di-

reito ao meio ambiente ecologicamente equili-

brado, não existe um ‘status’ que atribua a ti-

tulariedade desse direito. Segundo porque as

obrigações que se referem àquela expectativa

são de todos; e aqui falamos todos no sentido

de que não é apenas ao Estado que cabe velar

pelo meio ambiente, mas todas as pessoas fí-

sicas e jurídicas, públicas e privadas, têm o de-

ver de preservar um meio ambiente adequado

para a sadia qualidade de vida das presentes e

futuras gerações”.6

5 A CRÍTICA AO ANTROPOCENTRISMO

E UM NOVO PARADIGMA

PARA A TEORIA JURÍDICA

A citada autora também afirma com Garrido

Peña que não basta que se crie um novo ramo

do Direito, autônomo, com princípios e instru-

mentos próprios, como é o Direito Ambiental,

porque a disciplina vai continuar imersa em um

6 CARDOSO BRASILEIRO BORGES, Roxana. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX. O novo emdireito ambiental, p. 20 e ss.

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sistema jurídico inadequado para o novo mi-

lênio, pois sua estrutura e muitos dos seus insti-

tutos ainda lembram o século XIX. As circuns-

tâncias atuais requerem um Direito muito di-

ferente do Direito daquela época, principalmen-

te no que tange à economia, ou aos interesses

individuais, grande objeto de proteção no

passado. Como diz Benjamin: “se a dimensão

ambiental não for suficientemente incorporada

no sistema jurídico como um todo, o Direito

Ambiental e as normas ambientais dificilmente

serão aplicados”.7 Neste sentido é de se destacar

o esforço realizado com a recentíssima edição

do novo Código Civil brasileiro, o qual estabe-

lece que “o direito de propriedade deve ser exer-

cido em consonância com as suas finalidades

econômicas e sociais e de modo que sejam pre-

servados, de conformidade com o estabelecido

em lei especial, a flora, a fauna, as belezas na-

turais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio his-

tórico e artístico, bem como evitada a poluição

do ar e das águas”,8 bem como a criação do Es-

tatuto da Cidade em busca de regras municipais

de gerenciamento do território, tendo em vista

o desenvolvimento regular da urbe em atenção

ao meio ambiente artificial.9 No entanto, trata-se

de esforços isolados, inseridos de forma ainda

deficiente dentro do sistema jurídico.

O fato é que se tem um Direito que é am-

biental e todo um sistema jurídico não ambien-

tal. Então, a recepção dessa dimensão ambiental

pelo sistema jurídico pode representar o novo

paradigma para a teoria jurídica.

Assim o aponta Cardoso Borges:

“sem dúvida, a ciência moderna, principalmen-

te as naturais, sofre esta mudança paradigmá-

tica do pensamento positivista, cartesiano, me-

canicista, para um pensamento holista, orgâ-

nico. Também as ciências humanas, e aí o direi-

to, questionam a onipresença da ética antro-

pocêntrica, que tem o homem como centro de

todas as coisas, mas convergindo para uma

complexidade mais ampla, fruto da colabora-

ção de várias vertentes”.

E assim também o reconhece Bessa Antunes,alertando, contudo, para o perigo de eventuaisexageros:

“A questão que se coloca é a de não confundir a

superação do antropocentrismo com uma mo-

dalidade de irracionalismo, muito em voga

atualmente, que, colocando em pé de igualda-

de o Homem e os demais seres vivos, de fato,

rebaixa o valor da vida humana e transforma-a

em algo sem valor em si próprio, em perigoso

movimento de relativização de valores. O que

o Direito Ambiental busca é o reconhecimento

do Ser Humano como parte integrante da Na-

tureza. Reconhece também, como é evidente,

que a ação do Homem é, fundamentalmente,

modificadora da Natureza, culturizando-a. En-

tretanto, o Direito Ambiental afirma a negação

das concepções passadas, pelas quais, ao Ser

Humano, competia subjugar a Natureza. Não.

O Direito Ambiental estabelece a normati-

vidade da harmonização entre todos os com-

ponentes do mundo natural culturizado, no

qual, a todas luzes, o Ser Humano desempenha

o papel essencial”.

7 BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da AméricaLatina, p. 104.

8 Artigo 1.228, § 1º da Lei n. 10.406/02.9 Lei n. 10.257/01.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meioambiente nos países menos desenvolvidos: o caso daAmérica Latina. Revista de Direito Ambiental. São Paulo:RT, 1995 – volume 0 – outubro a dezembro.

BESSA ANTUNES, Paulo. Direito ambiental. Rio deJaneiro: Lumen Juris, 1999.

CARDOSO BRASILEIRO BORGES, Roxana. Direitoambiental e teoria jurídica no final do século XX. Onovo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey,1998.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismopenal. Barcelona: Trotta, 1995.

FREIRE VIEIRA, Paulo et al. A problemática ambiental e asciências sociais no Brasil. Dilemas sócio-ambientais edesenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp, 1993.

GARRIDO PEÑA, Francisco. De como la ecología políticaredefine conceptos centrales de la ontología jurídica tra-dicional: libertad y propiedad. O novo em direito am-biental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

GOMES CANOTILHO, J. J. Proteção do ambiente edireito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental.Coimbra: Coimbra Ed., 1995.

PEÑA FREIRE, Antonio. La garantía en el Estado consti-tucional de Derecho. Barcelona: Trotta, 1997.

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ATOS DE CONCENTRAÇÃONO SEGMENTO DE AUTOPEÇAS:

CASOS COFAP-MAGNETTI-MARELI-MAHLEE DANA-ECHLIN

Antonio Celso Baeta MinhotoMestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Professor do IMES de Teoria Geral do Direito Público.Advogado atuante em São Paulo.

Análise de dois casos de concentração mercadoló-gica, em que os supostos ganhos econômicos ad-vindos do ato de concentração foram relativizadospelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica –Cade, atraindo indagações sobre a condução da questão.

The two mercadological concentration casesanalise, on which the supposed economical gainsbrought by de concentration act were minimizedby the Cade, atracting real interrogations about thequality of the conduction’s case.

1 INTRODUÇÃO

O campo de estudo delineado pelo temacontempla ao menos alguns aspectos do cha-mado Direito da concorrência. Contudo, cum-pre notar, já de plano, que tivemos por preocu-pação primeira ou mesmo primordial a análisedo tema da forma mais didática e clara possível,por vezes correndo o risco de perder algumaprofundidade, em homenagem a um entendi-mento mais claro e simples de alguns elementos.

Por outro lado, o trabalho presente preten-de ser, muito embora de forma bastante dirigidae sem traço de pretensão exagerada, uma con-tribuição efetiva, prática, para todos aqueles queintencionam estudar o assunto em tela, nota-damente na esfera acadêmica, mais especifica-

mente em relação aos chamados atos concen-

tracionais e à defesa da concorrência.

Antes de adentramos ao estudo específico do

ato de concentração referido, alguns pontos do Di-

reito concorrencial, e de economia mesmo, devem ser

trazidos a lume aqui, sob pena de que eventual análise

singular do ato de concentração em si mostre-se por

demais divorciada de seu real contexto.

São itens fundamentais à presente exposição.

2 MERCADO E MERCADORELEVANTE: NOÇÕES ECARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS

A palavra mercado traz consigo, basicamen-

te, duas idéias: a primeira, relacionada a uma

R E S U M O A B S T R A C T

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D ireito A r t i g o

concepção física, material, do que seria mercado,

diz-nos que “mercado é lugar público, ao ar livre

ou em recinto fechado, onde se vendem e se com-

pram mercadorias” ou, ainda no mesmo sentido

mas de forma mais simples, “lugar onde se co-

merciam gêneros alimentícios e outras merca-

dorias”.1 A segunda concepção, e a que mais in-

teressa a esse trabalho, é de cunho subjetivo e dá

conta de que mercado seria “o conjunto de pessoas

e/ou empresas que, oferecendo ou procurando

bens e/ou serviços e/ou capitais, determinam o

surgimento e as condições dessa relação;”2 ou, de

uma forma mais singela, ensina-nos Maria Helena

Diniz ser o mercado “a esfera das relações

econômicas de compra e venda, das quais resulta

o preço, havendo ajuste”,3 e por fim, “conjunto

de operações sobre determinada mercadoria, ou

certos valores vendáveis”.4

O mercado, pois, mostra-se como o palco

em que se inter-relacionam os vários atores que

o compõem, segundo normas – fundamental-

mente de conduta – criadas por estes próprios

atores e também pelo Estado, que nessa relação,

em regra, pode sempre intervir.

Se a conceituação de mercado exibe-se de

forma bastante tranqüila, o mesmo já não se

pode dizer do próximo instituto a ser estudado,

sucedâneo jurídico do primeiro e rigorosamente

fundamental no estudo da concorrência, ou

seja, o mercado relevante.

Para efeitos de avaliação do exercício do po-

der econômico, é fundamental constatar se esseexercício de poder efetivamente é capaz de limi-tar, dificultar ou inviabilizar a concorrência. Talexercício, por sua vez, deve demonstrar relevân-cia, termo que, já de plano, mostra dificuldadesde aceitação entre alguns doutrinadores queapodam tal idéia como uma tradução imperfeitaou mesmo idiossincrática da palavra inglesarelevant, donde se originou o termo em português,sendo que, no idioma natal, o termo guarda maisproximidade com a idéia de pertinência e propósitodo que com nossa concepção de importância.

Tal distinção adquire especial relevo quandose verifica que, de fato, a idéia de mercado rele-vante traz consigo a noção de uma manifestação“na qual os produtos dele integrante (do mer-cado) são, em conjunto, objeto da concentraçãode ofertas e procuras que caracterizam a próprianoção econômica de mercado”.5

Se delimitar a parte axiológica ou semânticado que seria mercado relevante já se mostradifícil, mais tormentosa ainda é a tentativa detentar caracterizar de forma intrínseca o queseria mercado relevante. A concepção mais “po-pular”6 ou mais veiculada é igualmente contes-tada por vários doutrinadores, notadamente eco-nomistas, que nela vêem um tentativa de sim-plificação da temática que não consegue nemesgotar o tema nem aproximar-se de uma con-cepção mais científica.

1 Grande dicionário larousse cultural e Novo dicionário Aurélio, respectivamente.2 Novo dicionário Aurélio.3 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 3, p. 254.4 Enciclopédia saraiva do direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 52, p. 268.5 BRUNA, Sérgio Varella.O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Edusp, 1996, p. 71.6 Esta concepção é advinda do Direito americano e foi criada, ou melhor, sedimentada por iterativa jurisprudência,

estando ali disposto que “mercado relevante é composto de produtos que razoavelmente possam ser substituídos umpelo outro quando empregados nos fins para os quais são produzidos, sempre levando em conta o preço, a finalidadee a qualidade destes produtos” (citado por BARBIERI FILHO, Celso. Disciplina jurídica da concorrência: abuso dopoder econômico. São Paulo: Resenha Tributária, 1984, p. 113.)

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Ocorre que a concepção citada, oriunda dajurisprudência americana e, reconheça-se, am-plamente aceita por boa parte da doutrina (es-pecialmente os juristas), foi classificada poralguns economistas, de forma mais técnica, co-mo elasticidade cruzada da procura, que, porsua vez, nada mais é que o estabelecimento deum certo equilíbrio mercadológico em face de umdado produto, gerado pelo equilíbrio obtido navariação de procura.7

A adoção, sem maiores considerações, daconcepção expressa de elasticidade cruzada daprocura como fator determinante e baliza paradelimitação, avaliação e demais consideraçõestécnicas sobre o mercado relevante de um casoconcreto, levou, como já dito, alguns doutri-nadores a se insurgirem contra tal situação,chegando Hovencamp a afirmar que

“os juízes, muitas vezes, utilizam-se equivoca-

damente do conceito de elasticidade cruzada

da procura, porque não compreendem exata-

mente suas limitações”.8

O professor americano tem suas razões paraafirmar o mencionado, já que diz – e tem boaparcela de razão nisso – que o entendimentojurisprudencial não leva em conta itens funda-mentais, economicamente falando, para definiro mercado relevante do caso concreto, tais co-

mo o grau de semelhança dos produtos, lucros

monopolísticos e movimentações já ocorridas no

passado, envolvendo os produtos comparados.9

O primeiro item referido, por exemplo, traz

a essencialidade em traçar diferenciações

estruturais entre produtos que efetivamente

não comportam substituição entre si. Assim,

muito embora esponjas sintéticas e máquinas

de lavar louça sejam ambas utilizadas para a

lavagem de pratos, pouco ou nenhum grau de

substituição se verifica entre ambos os pro-

dutos, pelo que se pode concluir, ao menos com

razoável segurança, que eles não integram o

mesmo mercado relevante.10

Por outro lado, e muito embora não se possa

negar a fundamentalidade da análise econômica

no Direito concorrencial, é preciso notar que

tal postura não pode nem deve engessar a efetiva

prestação jurisdicional ou, ao menos, a efetiva

resposta às demandas relativas ao exercício do

poder econômico postas nas mãos do julgador,

seja ele juiz togado ou funcionário público à

frente de um procedimento administrativo.

Não se pode negar, igualmente, a relativa

dificuldade em se conceituar e mais ainda em

se definir mercado relevante em matéria de

Direito concorrencial, ainda que tal dificuldade,

como vimos com a declaração de Hovencamp,

não seja exclusiva do caso brasileiro.11

7 A expressão elasticidade cruzada da procura é mencionada por BRUNA, op. cit, p. 69.8 Cf. HOVENCAMP, Herbert. Federal antitrust policy: the law of competition and its practice, 1994, p. 99, apud Bruna,

op. cit., p. 76.9 HOVENCAMP, apud Bruna, op. cit., p. 77-78.10 O exemplo utilizado é de BRUNA, op. cit., p. 78.11 A dificuldade apontada é real. Um dos maiores doutrinadores da área do Direito comercial, BULGARELLI, Waldirio, em

sua obra Concentração de empresas e direito antitruste. São Paulo: Atlas, 1997, p. 126, diz, a respeito do mercado relevante,que “a noção de mercado relevante é ainda buscada pela doutrina nacional com afã (...) já no que concerne a mercadorelevante, pensa-se em ‘relevant market’, em mercado afetado, sendo de levar em conta a decisão da Suprema Cortedaquele país (EUA), referindo-se a ‘areas of effective competition’, portanto alcançando relações com bens, tempo, espaçoe, ainda, produtos, demanda, preço”. Nada obstante o notório brilhantismo do autor em apreço, o fato é que seuscomentários pouco ou nada respondem efetivamente quanto às características formais e intrínsecas de mercado relevante.

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D ireito A r t i g o

Feita a ressalva, o fato é que, para um tra-

balho direcionado e de fundo jurídico como o

presente, importa saber que mercado relevante

delimita um dado espaço geográfico e envolve

uma determinada gama de produtos, serviços e

agentes econômicos, sendo que todos esses ele-

mentos, relacionando-se entre si, irão deter-

minar uma função de equilíbrio tal que esta ser-

virá como norte para uma avaliação da existên-

cia ou não da chamada concorrência perfeita

(demanda inelástica) ou, por outro lado, de qual-

quer tipo de desequilíbrio decorrente do

exercício do poder econômico por um dos agen-

tes componentes desse mercado, capaz de afetar

esse mesmo mercado de forma significativa.

Para o caso brasileiro, vemos que a chamada

norma antitruste em vigência, Lei n. 8.884/94,

estipula em seu artigo 54, § 3º, a percentagem

de 30% do mercado relevante como norte para

avaliação do impacto do caso a ser examinado.

Ao mesmo tempo, e no mesmo trecho da norma

citada, há a fixação de outro critério para a

subsunção de quaisquer atos potencialmente li-

mitadores e/ou prejudiciais à concorrência,

desta feita o faturamento bruto anual, que será

tomado em face de qualquer dos partícipes

do ato sob exame, pelo limite mínimo de

R$ 100.000.000,00 (cem milhões) de Ufir.

Portanto, os critérios da lei são bastante cla-

ros e diretos: faturamento e parcelas ou fatia

do mercado relevante. Nesse último, será espe-

cialmente importante notar o âmbito geográfico

da percentagem declinada (30%) em face do

mercado destacado, ou seja, forçosamente se

deverá determinar de que mercado relevante se

estará falando, interno ou externo (nacional ou

internacional), o que representa sensível desta-

que na avaliação de qualquer ato de concen-

tração, uma vez que uma dada empresa pode

possuir 50% do mercado nacional em seu setor

econômico mas, internacionalmente, esta

participação pode representar 2 ou 3%.

Encerrando este tópico, podemos afirmar,

então, que havendo substitubilidade entre pro-

dutos razoavelmente similares – que, portanto e

obviamente, comportem substituição entre si – e,

por outro lado, delimitando-se geograficamente o

âmbito em que se dará o ato a ser analisado, ter-se-á

um mercado relevante pela frente.

3 CONCENTRAÇÃO HORIZONTAL

E CONCENTRAÇÃO VERTICAL

Pois bem, uma vez superada a análise e con-

ceituação de mercado relevante, importa nesse

momento adentrarmos ao exame do ato con-

centracional em si, sua natureza, características

e aspectos mais relevantes para nosso estudo.

Primeiramente, cumpre introduzir a seguin-

te pergunta: a concentração é uma figura/ins-

tituto jurídico ou econômico?

Como uma tendência quase natural quando

se trata de comentar elementos constituintes do

direito Concorrencial, a seara econômica toma

um espaço não só maior, mas também mais

preponderante em qualquer análise. Aqui não é

diferente. Aliás, os próprios juristas e doutri-

nadores da área jurídica reconhecem, mesmo fora

do Direito antitruste, que a análise em geral dequalquer instituto ou objeto, ainda que em umaabordagem jurídica, deve ser precedida pelo estudode sua natureza prática, ou não jurídica, chegandoum ilustre doutrinador italiano a afirmar que

“non si avventurino, mai ad alcuna tratazzione

giuridica se non conoscono a fondo la struttura

técnica e la funzione econômica dell´istituto che

è l´oggetto dei loro studi (...) é una slealtà

scientifica, è un difetto di probità parlare de

um istituto per fissarne la disciplina giuridica

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senza conoscerlo a fondo nella sua realtà (...)

lo studio pratico della sua natura deve precce-

dere quello del diritto”.12

Destarte, a concentração, de uma forma lata

ou genérica e para o aspecto aqui buscado, é

toda forma de ampliação de poder econômico

conseguido ou atingido pela empresa, através

do incremento de seu faturamento direto, ou

seja, a empresa aumenta seu faturamento pela

ampliação de sua parcela no mercado (aquisi-

ção, compra, associação etc, de outras empresas

de seu ramo de atuação) ou incorpora cadeias

produtivas constituintes da feitura de seus pro-

dutos (insumos) à sua própria linha de produção

original.

Nessa definição já temos os elementos da

diferenciação entre concentração vertical e con-

centração horizontal, o que nos torna aptos a

tentar estudar cada uma separadamente.

3.1 Concentração Horizontal

Nesta modalidade, verifica-se a concentra-ção pela junção, seja em que modalidade for,de uma empresa em face de outra ou outras,todas componentes de um mesmo nicho ou se-tor econômico. Assim, por exemplo, se um dadoprodutor de peças para lataria de automóveisque detenha 20% de participação em seumercado econômico unir-se (adquirir, associar-se,fundir-se etc.) a um seu concorrente que de-tenha 15% do mesmo mercado de produtos,teremos manifesto o fenômeno da concentra-

ção horizontal, em que ocorrerá um incremento

no faturamento de ambas as empresas – que

passarão a ser uma só – bem como um inevitável

aumento de participação no mercado daquele

produto específico, no caso peças para latarias

de automóveis, levando a nova empresa a deter

35% de tal mercado.

Muito embora a concentração horizontal não

apresente maiores dificuldades quando se busca

simplesmente entendê-la, é preciso cuidado para

não simplificá-la de forma rasteira ou superficial.

No exemplo dado, em que a somatória das

participações singulares das empresas que se

uniram tornou-as possuidoras de uma partici-

pação maior de mercado, da ordem de 35%, po-

deríamos ser levados a crer que o abuso do

poder econômico, que a limitação ou prejuízo

à concorrência13 estariam patentes, mas não é

bem assim.

Todas as normas jurídicas devem ser

interpretadas. Isso é ponto pacífico e dispensa

maiores digressões, já que tal assertiva é espécie

de princípio do Direito. A lei não existe em si,

mas na concretude de sua aplicação ao caso

materialmente posto à sua frente, reclamando

sua aplicação prática. A partir dos fatos se terá

como, em que medida, de que forma, com que

intensidade e modo se dará a aplicação das

previsões contidas na norma positivada.14

Pois bem, para a questão retro-referida,

desse modo, o que se verifica como eixo funda-

mental na avaliação do ato concentracional é,

em um primeiro ponto, para qual base geográ-

fica mercadológica se está aplicando a análise

do caso. Se, ao adotarmos o exemplo declinado,

12 VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milão: Giufrè, 1931, v. 1, p. 63.13 Cf. prevê o artigo 20, I, Lei n. 8.884/94.14 Cf. Superior Tribunal de Justiça: “A interpretação das leis é obra de raciocínio mas também de sabedoria e bom senso,

não podendo o julgador ater-se exclusivamente aos vocábulos mas, sim, aplicar os princípios que informam asnormas positivas” (STJ – REsp. n. 3.836, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 18.12.90).

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D ireito A r t i g o

aplicarmos a concentração operada para um

mercado geográfico extremamente restrito – a

cidade de São Paulo ou Rio de Janeiro, por

exemplo –, 35% de participação pode se mostrar

uma concentração excessiva, pode configurar

um abuso de poder econômico e dificultação

da concorrência (como vimos), especialmente

se os outros 65% estiverem pulverizados em

várias participações menores de outras

empresas. Resultado diametralmente oposto

será obtido se, para efeitos de análise do ato con-

centracional do exemplo, adotarmos o mercado

nacional como base geográfica mercadológica,

em que os 35% de concentração de um merca-

do local irão tornar-se ou poderão tornar-se algo

como 1,2 ou 5%, ficando, assim, em um pata-

mar e em uma caracterização que passarão

longe de uma concentração de mercado

excessiva e de um exercício abusivo do poder

econômico.

3.2 Concentração Vertical

Nessa modalidade de concentração, a em-presa aumenta seu tamanho e faturamento pelaaquisição (adquire, associa-se, funde-se etc.) deuma outra empresa, ou empresas que não sãode seu ramo de atuação de uma forma direta,mas empresas que produzem insumos e itenscomponentes de seu produto final. Adotando-seo exemplo citado da empresa de peças paralataria, poderíamos adaptar à concentraçãovertical da seguinte forma: imagine-se quereferida empresa somente operasse a parte demanuseio da chapa de aço, dobrando-a, furan-do-a, pintando, enfim, moldando-a e modi-ficando-a a fim de obter a peça final, valendo-se,portanto, da aquisição da chapa de aço já pron-

ta. Se esta mesma empresa adquirisse sua

fornecedora de chapas de aço, ou seja, a empresa

metalúrgica que lhe fornece as chapas de aço para

seu beneficiamento, estaria praticando um ato de

concentração vertical, vez que estaria agregando

um item de insumo de sua cadeia produtiva para

sua própria exploração e produção.

Aqui no caso da concentração vertical, além

das ressalvas geográficas já feitas com relação à

concentração horizontal – muito embora se

reconheça que na concentração horizontal a

definição geográfica do mercado relevante a ser

analisado seja mais importante do que na con-

centração vertical –, ainda se deve fazer as res-

salvas contidas no § 1º do artigo 54 da lei an-

titruste em vigência no país, ressalvas essas que

visam preservar atos concentracionais que,

muito embora possam ser vistos em um pri-

meiro momento como abusivos ou lesivos à con-

corrência, trazem consigo uma carga tal de

benefícios que a concentração toma uma espaço

menor e a melhora do mercado para aquele

produto, ou produtos, passa a ser mais vantajosa

e até desejável.

O raciocínio passa a ser o de se admitir a

concentração operada em prol de uma melhora

substancial do mercado em uma acepção ampla

(aumento da produtividade; melhora da

qualidade dos produtos/serviços que propiciem

eficiência e desenvolvimento tecnológico),

sendo que a avaliação destes benefícios está

sujeita ao mesmo órgão previsto na lei em foco,

inclusive com imposição de condições prévias

(compromisso de desempenho).15

4 CASO COFAP NO CADE

Como se vê, os conceitos declinados são

itens básicos e indispensáveis no trato do tema

15 Cf., respectivamente, artigo 54, § 1º, alíneas a, b e c, artigo 58, ambos da Lei n. 8.884/94.

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A r t i g o

ou temas aqui expostos. Isto porque, sem a

compreensão do que seja mercado, impossível

seria esmiuçar o significado de abuso de poder

econômico, principalmente, sabendo-se que a

análise da repressão aos abusos do poder

econômico não comporta referência apenas a

um só mercado, senão a vários, que se rela-

cionam mutuamente, em maior ou menor grau.

Assim, ao mesmo tempo em que se pode

falar de um mercado de alimentos, pode-se

referir a um mercado de carnes, mas também

ao de carne bovina, ao de carne suína, ao de

aves, de frangos ou mesmo perus.16

Dessa forma, para que possamos apurar

qual o nível de concorrência e o volume de

poder econômico pelos agentes desfrutados,

interessante é saber se esse exercício de poder

é capaz de impor barreiras, limites ou entraves

ao concorrente.

Por sinal, esse é o propósito do presente

estudo, que leva em consideração a aquisição

do controle de 70,08% do capital votante e

28,38% do capital total da empresa Cofap –

Companhia de Peças Fabricadora de Peças, pela

Magnetti Marelli S.p.A. e sua real conseqüên-

cia para o mercado de autopeças, tendo em vista

que, em razão da constituição de Magnetti

Marelli Participações S/C Ltda., por Magnetti

Marelli S.p.A e Mahle GMH, garantiu-se à

sociedade constituída o controle (31%) sobre

todas as atividades de anéis da Cofap, segmentos

de produção e comercialização de amortece-

dores, centro de pesquisa e atividades comerciais

relativas ao mercado de reposição.

Levado o caso à apreciação do Cade (ato de

concentração n. 080.12.007154/97-38), justifi-

caram as requerentes se tratar de operação

absolutamente normal, exigência até do novo

modelo de mercado mundial, decorrente da glo-

balização e da abertura comercial, que impelem

à formação de estratégias de fusões, aquisições

e joint ventures, como forma de incrementar a

competitividade e a sobrevivência da indústria

automobilística nacional.

Mais à frente, no item posterior, analisare-

mos a situação da indústria de autopeças frente

a outra fusão, desta feita, entre as empresa Dana

e Echlin.

4.1 Desconcentração Vertical

No caso em destaque, um dos pontos con-

troversos era o da possível concentração vertical

na área de usinagem e fundição, uma vez que a

Cofap possuía uma unidade fabril nesse campo.

Contudo, informa o relatório do caso que

“as consulentes informaram que, em 01/07/98

foi firmado ‘Protocolo de Intenções para Rea-

lização de Negócio entre a Cofap e a Indústria

de Fundição Tupy, que tem como objetivo a

venda da unidade de fundição da primeira para

a última no prazo de trinta dias”.

Prosseguindo, diz a relatora do caso:

“A se confirmar a venda, remédios antitruste,

tais como a alienação deste negócio, não seriam

mais necessários”.

Como não bastasse, os requerentes, anco-

rados em estudos técnicos do setor em desta-

que, lembram que

16 BRUNA, op. cit., p. 45.

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“(...) a fundição constitui-se em um mercado

maduro, de baixa rentabilidade, inibindo in-

vestimentos, sendo estes de alto valor. Por con-

seqüência, temos na Cofap a operação deste

segmento com tecnologia amplamente defasa-

da e altos custos de produção (em especial de

insumos e de mão de obra), o que impede a

mesma de concorrer com outros grandes

produtores mundiais”.

Portanto, é interessante observar que a es-

tratégia da Cofap em apresentar a venda de sua

unidade de usinagem – que talvez já lhe fosse

desinteressante de todo modo – serviu como uma

valiosa demonstração de boa vontade, como uma

exibição de que ela, Cofap, é uma empresa que

concorre de forma leal. Se esta imagem é ou seria

real, já é um outro ponto, mas o fato é que seus

objetivos foram alcançados.

4.2 Participação em GrupoConcorrente

Outro ponto de relevância repousa no fato

de que a Cofap, após a união com a Magnetti

Marelli, seria então controlada por uma

subsidiária do Grupo Fiat, o que poderia causar

problemas de fornecimentos de seus produtos

às montadoras concorrentes da Fiat no Brasil

e, como informa o relatório,

“ficariam (as montadoras), pois, na dependên-

cia de fornecimento de sua concorrente para a

obtenção dos produtos necessários ao seu pro-

cesso produtivo. Além dos produtos em análise,

preocupa, por exemplo, o caso dos amor-

tecedores, que, embora não façam parte do

mercado relevante, constituem o principal

produto da Cofap, que detém cerca de 70% da

participação total nos segmentos original e de

reposição. Assim, se as empresas envolvidas na

operação praticarem preços diferenciados ou

mesmo restringirem o volume de peças vendidas

ou não cumprirem prazos de entrega, estarão

causando sérios prejuízos aos seus concorrentes”.

Nada obstante o relatado, as montadoras

não se opuseram ao negócio pretendido pelas

partes. De acordo com a GM, a empresa não

produz amortecedores e tem como única for-

necedora a Cofap. Porém, afirma que o

“fornecimento de amortecedores, tanto no

âmbito nacional como internacional, poderia

ser realizado pelas empresas MONROE,

ARVIN, SACHS e DELPHI, que têm condições

de oferecer custo e qualidade e possuem

disponibilidade de oferta para atender as nossas

necessidades”.

Quanto aos efeitos da operação, acreditam

que a

“associação tende a aumentar a competitividade

entre as empresas, com melhorias dos níveis de

tecnologia e qualidade do produto”.

A Volkswagen informou que não tem pro-

dução cativa dessas peças e possui como forne-

cedores, além da Cofap (39% dos amortece-

dores), a MONROE (48%) e a SACHS (13%).

Esclareceu, ainda, que

“se um dos fornecedores aumentar os preços

ou interromper a produção existe viabilidade

de aquisição de amortecedores nas outras duas

fontes locais. Caso este problema ocorra com

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as três fontes, existem empresas no exterior que,

após um período de desenvolvimento da peça

e dependendo de negociações comerciais,

estariam aptas a fornecerem”.

Justamente pela declaração das própriasmontadoras, a relatora do ato de concentração

em questão disse, ao final, que

“a parcela da operação relativa ao segmento de

amortecedores não é razão de maiores preo-

cupações para as principais concorrentes da Fiat”.

Aqui tomam assento algumas influências

mais palpáveis do que hoje se usa denominar

globalização econômica. As compradoras

principais da Cofap – montadoras de veículos

– declaram taxativamente sua independência

em relação à eventual tentativa de manipu-

lação de preços ou fornecimento pela empresa

em tela, alegando facilidade em acessar os

mesmos produtos fornecidos pela Cofap em

qualquer outro ponto do globo. A frase

emitida pelos representante da Volkswagen é

paradigmática:

“se um dos fornecedores aumentar os preços ou

interromper a produção (...) existem empresas no

exterior que, após um período de desenvolvimento

da peça e dependendo de negociações comerciais,

estariam aptas a fornecerem”.

A título ilustrativo, vejamos alguns dados

técnicos sobre a empresa em análise:

Principais Clientes da Cofap no BrasilPrincipais Clientes da Cofap no BrasilPrincipais Clientes da Cofap no BrasilPrincipais Clientes da Cofap no BrasilPrincipais Clientes da Cofap no Brasil

EMPRESAS/GRUPO % SOBRE O FATURAMENTO

Fiat Automóveis S/A 17,01

General Motors do Brasil 11,44

Volkswagen 9,13

Grupo Roles 6,90

Grupo Sama 5,24

Grupo Real 4,03

D. Paschoal S/A 3,98

Mercedes Benz do Brasil 2,75

Grupo Natacci 2,65

Grupo Guatil 2,49

Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle)

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4.3 Do Ganho em Produtividadee Tecnologia

Como sabemos, o artigo 54 da Lei n. 8.884/94

é uma espécie de receptáculo da idéia de

tolerância da perda de concorrência por qual-

quer meio, se verificado o ganho, para o mer-

cado, de aspectos relevantes como produtividade

ou o desenvolvimento tecnológico porventura

gerado pela aprovação do ato. Para o caso em

foco, apurou-se que tais vantagens eram as

seguintes:

Principais Clientes da Cofap No MundoPrincipais Clientes da Cofap No MundoPrincipais Clientes da Cofap No MundoPrincipais Clientes da Cofap No MundoPrincipais Clientes da Cofap No Mundo

EMPRESAS/GRUPO % SOBRE O FATURAMENTO

Chrysler (EUA) 18

Fiat (BR) 14

General Motors (BR + AR) 7

Grupo Roles (BR) 6

Volkswagen (BR, AR, MX) 5,8

Delphi (GM/BR) 5,5

Grupo Sama (BR) 4,6

D. Paschoal (BR) 4

SM (VW/BR) 2,2

Ford (BR/AR) 1,7

Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle)

1) Aporte de novas tecnologias

2) Aumento das exportações, através da inserção nos canais de comercialização do grupo

Marelli, permitindo que a Cofap/Marelli seja um fornecedor globalfornecedor globalfornecedor globalfornecedor globalfornecedor global

3) Aumento da qualidade em razão das novas tecnologias

4) Economias resultantes da maior racionalização dos investimentos e do melhor

aproveitamento dos recursos despendidos com P&D

5) Maior competitividade a partir da maior especialização e conseqüente possibilidade de a

Cofap/Marelli ser um co-designer em escala mundial

6) Maior nível de P&D na área de amortecedores e o incremento das exportações desse

produto, e

7) Maiores níveis de investimentos, produção, exportação e tecnologia de sistemas de

escapamentos e amortecedores

Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle)

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Portanto, trata-se aqui da aplicação, ao mo-

do brasileiro é certo, da regra da razão do Direito

concorrencial americano, admitindo e tolerando

atos concentracionais que, em um primeiro mo-

mento e em uma acepção puramente técnica –

jurídico-econômica –, se mostram como con-

denáveis e insuscetíveis de aprovação. Mas, da

análise de seus efeitos, se pode buscar benefí-

cios que compensem a perda de concorrência

mercadológica.

4.4 Mercado Nacional e MercadoInternacional

Como vimos, o próprio mercado consumi-

dor mais substancial dos produtos Cofap – mon-

tadoras de veículos – não se opôs ao ato de con-

centração em exame, alegando facilidade de

acesso às peças automotivas em apreço, mor-

mente no exterior.

Nesse sentido, o voto da relatora do Cade

apoiou-se francamente na internacionalização

dos mercados e especialmente na força do ca-

pital globalizado, invocando, estudo do BNDES

para concluir que a fusão – ou, em melhor con-

ceituação, a aquisição da Cofap pela Magnetti –

seria também recomendável pela chamada força

advinda da globalização econômica que estaria

forçando as empresas, especialmente aquelas

situadas nos chamados países em desenvolvi-

mento, a se unirem com parceiros comerciais mais

fortes, com atuação mais abrangente em escala

mundial e com recursos ou ao menos acesso a

recursos financeiros mais representativos.

De fato, como destaca o referido estudo do

BNDES:

“Apesar das expectativas de crescimento da in-

dústria automobilística, inclusive com a en-

trada de novas montadoras – os países em de-

senvolvimento são vistos como a área de maior

crescimento – muitas empresas estão amea-

çadas. As vultuosas exigências de capitalização

e de investimentos para a ocupação de espaços

nesta nova cadeia, o volume crescente de

importação e a concorrência com novos fabri-

cantes internacionais, trazidos pelas próprias

montadoras, são alguns dos aspectos que mais

afetam as empresas existentes no país. O re-

sultado desse contexto é a fragilização das

posições de mercado de tradicionais firmas de

capital nacional atuantes no setor.”

E a relatora arremata, declarando sobre o

ponto em destaque que

“a abertura da economia a partir dos anos no-

venta, se trouxe inegáveis benefícios à dinâmica

da concorrência no setor automotivo, também

exige que as empresas de autopeças se adaptem

às novas condições de mercado e às pressões

competitivas advindas de concorrentes inter-

nacionais. São condições essenciais à sobrevi-

vência destas empresas a necessidade de reduzir

custos, se integrando no esquema de global

source e folow source para a produção de carros

mundiais e produzir produtos de padrão de

qualidade internacional, o que exige aportes

tecnológicos e financeiros significativos”.

Todo o relatado nesse item adquire contor-

nos mais interessantes ainda quando se vislum-

bra que o Cade, através de sua relatora designada

para o caso, adotou o mercado nacional como

a área geográfica de atuação das requerentes,

dizendo:

“Quanto à dimensão geográfica, embora fosse

possível cogitar uma definição mais ampla que

as fronteiras nacionais, em razão dos fatores já

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D ireito A r t i g o

expostos sobre a tendência à concorrência global

e as facilidades às importações de autopeças, e

aprofundados no AC 84/96, defino, conserva-

doramente, o mercado geográfico como o

nacional”.

E em outro ponto:

“Não obstante as possibilidades de importações

sejam amplas, em particular devido às baixas

alíquotas efetivas de importação decorrentes

da política governamental para o setor, os

fluxos internacionais de comércio, como de-

monstram os dados de market-share presentes

no parecer da Seae, não são muito significati-

vos. Os dados sugerem que as montadoras

apenas instrumentalizam as facilidades à im-

portação atualmente vigentes na negociação

de preços e qualidade dos produtos obtidos de

seus fornecedores, em geral localizados próxi-

mos a elas.”

Esse aspecto parece, a toda evidência, terpesado na interpretação da fusão em questão,uma vez que o mercado relevante adotado, emtermos geográficos, foi nacional, mas a inserçãodesse mercado específico no mercado maisgenérico foi tratada como mundial, o que seapresenta quase que como um paradoxo,exibindo, por outro lado, as modificações senti-das nas relações econômicas mundiais e naforça adquirida pelo capital internacionalizado

Assim, foi reconhecido o impacto da cha-mada globalização, foi reconhecida a necessi-dade até de ocorrer a concentração pretendida,porém, e paradoxalmente, foi afastada a adoçãode mercado geográfico internacional, talvezporque o escopo seja justamente proteger omercado interno ou, em outra construção, for-talecer as empresas aqui atuantes e não muni-ciá-las para atuação mundial. Adota-se o mer-

cado mundial como parâmetro de defesa do

mercado nacional e não como arena de atuação

das empresas unidas pelo ato analisado.

4.5 C o n c l u s ã o

Algumas conclusões vem à tona no caso em

destaque:

1) Em vista das tendências recentes do se-

tor automobilístico (fornecimento global

e produção enxuta), somadas à necessi-

dade de conhecimentos tecnológicos

específicos e de uma série de custos irre-

cuperáveis (no caso de blocos e cabeço-

tes de ferro), tal opção seria a mais ine-

ficiente do ponto de vista privado, e, em

última análise, do ponto de vista dos con-

sumidores finais.

2) No segmento de escapamentos, não

gerou a operação concentração signi-

ficativa, não apenas em razão de deter a

Marelli ínfimos 3% do mercado, mas

também porque os custos de entrada são

relativamente baixos, gozando as mon-

tadoras de amplo acesso ao mercado in-

ternacional, o que limitaria o sucesso de

qualquer estratégia anticoncorrencial.

3) No segmento de amortecedores, tam-

bém não vislumbrou o Cade barreiras

significativas à entrada. Isto porque, as

necessidades de reduzir custos, integrar-se

no esquema de global source e follow sourcepara a produção de carros mundiais e

produzir produtos de padrão de quali-

dade internacional, o que exige aportes

tecnológicos e financeiros vultosos, são

condições essenciais à sobrevivência

destas empresas;

4) Por fim, vislumbram-se eficiências ca-

pazes de compensar os danos à concor-

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rência causados pela operação nesse caso

específico. A uma, porque o negócio de

blocos e cabeçotes de ferro não integra

o core bussines da Marelli ou da Mahle;

a duas, porque a venda dos negócios de

fundição da Cofap para a fundição Tupy

representa fator positivo, pró-competi-

tivo, por diminuir os efeitos de concen-

tração na operação original.

Pelas motivações retrotranscritas, aprovou

o Cade a operação, o ato de concentração em

questão, sem restrições.

5 QUESTÃO DANA-ECHLIN:

BREVES COMENTÁRIOS

As empresas mencionadas também promo-veram um ato de concentração fundindo-se, atoesse aprovado pelo Cade sem restrições. Não éo escopo desse trabalho analisar a fundo esseoutro ato mas, a partir dos dados a seguir for-necidos, refletir sobre o mercado de autopeçascomo um todo e analisar, do mesmo modo, nãoapenas a concentração horizontal, a aquisiçãode concorrentes participantes de um mesmomercado relevante, mas a concentração no nú-mero de itens de peças existentes no mercadocomo um todo.

Portanto, faremos primeiramente um raio-x,um perfil das empresas em apreço, inclusivecom os atos concentracionais em que ambasestiveram envolvidas antes do ato em foco.Assim:

Dana Corporation: Empresa norte-ameri-cana, com sede em Toledo, Ohio, possui apro-ximadamente 50.000 empregados e apresentou,em 1997, um faturamento de U$ 8,3 bilhões no

mundo e R$ 576.800.000,00 no Brasil. É consi-

derada pela Seae como um dos maiores fabricantes

de peças para veículos do mundo. Estão sob o con-

trole do grupo, no Brasil, as seguintes empresas:

Dana-Albarus S.A. Indústria e Comércio (fabrica

colunas de direção, conjuntos e componentes de

juntas universais, anéis de pistão para motores,

sanfonas, mancais, coxins, dutos de ar e retentores

de borracha); Dana Indústrias Ltda (fabrica con-

juntos e componentes de eixos diferenciais tra-

seiros, juntas de motor e chassis rodantes); SM –

Sistemas Modulares Ltda (atua no fornecimento

de serviços de montagem dos sistemas de

suspensão); Albarus Sistemas Hidráulicos Ltda

(fabricante de bombas de engrenagem, válvulas,

cilindros e sistemas hidráulicos); ATH Albarus

Transmissões Homocinéticas Ltda (fabricante de

conjuntos e componentes de juntas homoci-

néticas); Nakata S.A. Indústria e Comércio (fa-

brica amortecedores e componentes de suspensão

e foi adquirida pelo grupo Dana em abril de 1998);

Albarus Comercial Exportadora (atua na

importação e exportação dos produtos do grupo).

Nos últimos 5 anos, a DANA participou das

seguintes operações: aquisição da divisão de

eixos diferenciais leves da Rockwell do Brasil

S.A.,17 aquisição de 60% de participação do

capital social da Simesc, em dezembro de 1994;

aquisição da empresa Indústrias Orlando

Stevaux Ltda; aquisição da Nakata S.A. Indústria

e Comércio.

Echlin Inc.: Empresa norte-americana,

com sede em Branford, Connecticut. No último

exercício apresentou um faturamento de US$ 3,6

bilhões e conta com 15.600 funcionários. Sua

única subsidiária no Brasil, a Echlin do Brasil

Indústria e Comércio Ltda, foi fundada em 1945

17 A Rockwell, por seu turno, adquiriu, em meados dos anos 80, o controle acionário da Fumagalli, indústria nacional deautopeças, sediada em Limeira, SP.

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D ireito A r t i g o

e possui 870 empregados. Em 1997, obteve um

faturamento de R$ 73,3 milhões. Nos últimos

5 anos, a Echlin participou das seguintes

operações: aquisição dos ativos de mercado da

Mecano em 1997 (aprovada pelo Cade);

aquisição dos ativos de mercado da Brosol, em

1998 (em análise no Cade).

Os produtos relevantes indicados pelas

requerentes são: bombas de água, bombas de

combustível, carburadores e injeção, kits para

reparo de carburadores, produtos elétricos,

tubos e mangueira para direção hidráulica e

freios do veículo. Vejamos sua participação

mercadológica:

Bombas de ÁguaBombas de ÁguaBombas de ÁguaBombas de ÁguaBombas de Água

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Echlin do Brasil 36,5

Columbia 20,0

Iochpe Maxion 9,2

Indisa 6,2

Schadek 1,4

TMR (*) 1,4

Vetori 0,8

VMG (*) 0,8

Montadoras 22,6

Outras 1,0

(*) Produto importado. Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

Bombas de CombustívelBombas de CombustívelBombas de CombustívelBombas de CombustívelBombas de Combustível

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Echlin do Brasil 95,3

Outros importadores independentes 4,7

Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

Carburadores e InjeçãoCarburadores e InjeçãoCarburadores e InjeçãoCarburadores e InjeçãoCarburadores e Injeção

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Echlin do Brasil 66,1

Magnetti Marelli 33,9

Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

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A r t i g o

Kits para Reparo de CarburadoresKits para Reparo de CarburadoresKits para Reparo de CarburadoresKits para Reparo de CarburadoresKits para Reparo de Carburadores

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Echlin do Brasil 28,5

Magnetti Marelli 27,0

Vogel 20,0

Seaverte 10,3

Outras 14,2

Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

Tubos para Direção HidráulicaTubos para Direção HidráulicaTubos para Direção HidráulicaTubos para Direção HidráulicaTubos para Direção Hidráulica

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Paranoá 30,5

Dayco 17,9

Echlin do Brasil 16,8

Getoflex 13,7

Aeroequip 9,5

Outras 11,6

Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

Mangueiras para FreiosMangueiras para FreiosMangueiras para FreiosMangueiras para FreiosMangueiras para Freios

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Getoflex 29,8

Saad 25,1

FH 19,9

Vinke 14,2

Echlin do Brasil 2,8

Outras 8,3

Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

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Nada obstante o poderio exibido, a Seae

emitiu parecer favorável ao ato, chamando a

atenção para os seguintes pontos:

“(i) as autopeças fabricadas pela Echlin e pela

Dana se complementam no produto final

(automóvel); (ii) o grupo Dana terá na Echlin

um importante fornecedor de peças de

reposição e o pleno conhecimento dos canais

de distribuição para o mercado de reposição,

o que resultará em economias de escopo; e (iii)

que ao incorporar a Echlin, o grupo Dana

avança no sentido de tornar-se um fornecedor

de nível I, ou de elite, no atendimento às monta-

Produtos elétricosProdutos elétricosProdutos elétricosProdutos elétricosProdutos elétricos

EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%)

Bosch 22,8

Echlin do Brasil 13,1

NGK 7,5

ZM 7,4

3RHO 7,4

Dani 5,7

Top 5,7

Marília 5,4

Siemens 5,0

HL 4,3

Bergson 2,8

IKRO 2,4

Olimpic 2,1

Facobrás 1,8

Outras 6,6

Fonte: Requerentes (Dana-Echlin)

doras, cuja tendência é exigir a entrega de

estruturas montadas e não somente com-

ponentes isolados” (fls. 165).

Diante disso, conclui que a operação não

gera qualquer tipo de concentração e é passível

de aprovação.

A SDE, por seu turno, segue a mesma linha

e alinhava os seguintes pontos:

“(i) a operação não provoca alteração na

estrutura do mercado de autopeças como um

todo uma vez que não eleva o poder de mercado

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da adquirente, nem resulta em concentração de

mercado; (ii) não existem barreiras relevantes à

entrada de novos concorrentes, exceto as

exigências impostas pelas montadoras aos

fornecedores de autopeças”.

Em vista disso, sugere a aprovação sem res-trições da operação.

A operação em foco foi aprovada sem res-trições e nota-se que o Cade, calçado nos pare-ceres da Seae e da SDE, entendeu que a uniãodas requerentes traria ganhos ao mercado deuma forma geral, aplicando aí, não de formadeclarada, é certo, as previsões do artigo 54,§ 1º e seus incisos, da Lei n. 8.884/94. Vê-seque a concentração foi francamente tolerada,em prol de um ganho – efetivo ou não, real ounão – trazido pela mesma concentração.

6 COMENTÁRIO FINAL

Como já citamos no preâmbulo desse tópico,todas as operações citadas envolvendo as reque-

rentes foram aprovadas pelo Cade. Dana-Echlin,

juntas, terão, somente no Brasil, faturamento em

torno de R$ 650.000.000,00, 6.000 empregados,

porém, mais do que isso, as requerentes irão

causar sensível concentração no mercado de

autopeças, uma vez que juntas produzirão uma

gama vasta de componentes e com alta participa-

ção em cada mercado individual.

Esse é o ponto interessante aqui: a análise

ou pelo menos a admissão de que é possível

haver transferência de poder econômico dentro

do mesmo grupo de empresas, com francas

possibilidades de interferência em um dado

mercado, como é o presente caso (mercado de

autopeças). Ou seja, o ato de concentração em

questão, dado o aumento no poderio econômico,

no acesso à tecnologia e a recursos por vezes

até subsidiados, pode levar a uma perda de

concorrência no fabrico de um dado item em

que hoje as empresas envolvidas possuem

pequena participação, o que, pelos fatores exi-

bidos, possivelmente virá a desequilibrar esse

mercado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a con-ceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Edusp,1996.

BULGARELLI, Waldirio. Concentração de empresas e di-reito antitruste. São Paulo: Atlas, 1997.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo:Saraiva, 1998, v. 3.

ENCICLOPÉDIA saraiva do direito. São Paulo: Saraiva,1977, v. 52.

VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milão:Giufrè, 1931, v. 1.

Site do Cade: www.cade.org.br

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R E S U M O

A INCÔMODA SOLUÇÃOCHAMADA

AÇÃO AFIRMATIVA

Sandro César SellDoutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Mestre em Sociologia Política pela UFSC.Graduado em Direito e Ciências Sociais (UFSC). Advogado.

Professor de Introdução ao Direito e Sociologia Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí.

Este artigo tem por objetivo mostrar que asdificuldades de implementar medidas de açãoafirmativa no Brasil não são jurídicas, mas culturais.

A B S T R A C T

This article has the objective to show that brasilianjuridical order accept the affirmative acion, but notthe brasilian culture.

1 INTRODUÇÃO

É possível que nenhuma engenharia social

contemporânea tenha trazido tanta polêmica

quanto aquela que, mediante expedientes como

cotas previamente definidas ou políticas de acesso

preferencial, promete a inclusão eqüitativa de

negros, deficientes, índios e mulheres nos es-

paços socialmente valorizados. São as chamadas

medidas de ação afirmativa, que representam a

tentativa de alguns Estados de matriz liberal de

corrigir a falácia da meritocracia, segundo a qual,

em um Estado em que a Constituição valoriza,

sobretudo, a liberdade, as desigualdades devem

ser atribuídas a diferentes graus de esforço e

talento individual.1 A pobreza e a riqueza, em

tais Estados, são atribuídas a opções (esforçar-se

mais ou menos), fatos genéticos (possuir maior

ou menor grau de inteligência) ou a eventos

aleatórios (sorte ou azar).

No entanto, quando as análises estatísticas

começaram a mostrar que a pobreza tinha cor

(de tonalidade escura) ou que o poder tinha se-

xo (masculino), a idéia de que o sucesso era

uma questão de competência individual ficou

seriamente questionada. E se não ficasse, o ques-

tionamento deveria dirigir-se ao consenso con-

temporâneo de que as diferenças de cor, raça ou

sexo não são relevantes para sustentar distinções

de capacidades mentais entre os diferentes gru-

pos humanos. Consenso que desde a Declaração

da Unesco sobre as Raças, de 1948, estava fir-

1 Dizemos Estados liberais porque, nos Estados socialistas, a máxima da meritocracia era substituída pela regra: “Decada um conforme suas possibilidades; a cada um conforme suas necessidades”. Máxima igualmente falaciosa – aomenos em sua operacionalidade.

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D ireito A r t i g o

memente estabelecido – e que os anos e a ciência

só têm feito reforçar.2

Por ironia, foram os EUA, o país do “sonho

americano” (a ideologia de que todos podem

tudo se estiverem dispostos a lutar por seus

ideais), que, no início da década de 1960, popu-

larizaram as políticas de ação afirmativa, como

uma incômoda forma de superar o déficit entre

as promessas de acesso universal às riquezas

pelo esforço e a vida real permeada por critérios

pré-modernos de ascensão social (cor, sexo,

raça, estirpe). Era incompatível com a ideologia

do “querer é poder” a distância social que se-

parava os negros dos brancos, as mulheres dos

homens. Se deixada às suas próprias regras com-

petitivas (que incluem, além da competência,

também a fraude, o preconceito e a discrimi-

nação), a sociedade não conseguiria sequer pro-

porcionar uma aparência de justiça capaz de

convencer os discriminados a continuar acre-

ditando no sistema social. Foi necessária a in-

tervenção estatal corretiva.

E eis aí o paradoxo representado pela ação

afirmativa: para combater a falta de eficácia da

doutrina meritocrática, precisou-se romper com

ela, garantindo o acesso privilegiado de indiví-

duos que, por algum motivo repugnado pelo

Estado (comumente o preconceito e a discri-

minação)3 não conseguiriam, por si só, fazerem-se

presentes nas posições sociais cobiçadas. Dessa

conjuntura, emerge a idéia das discriminações

positivas. O que, de certa forma, seguia na con-

tramão das transformações ético-políticas da

modernidade ocidental, cuja direção era a de

superar a política de privilégios de qualquer or-

dem em benefício de políticas de igualdade de

todos na lei e perante a lei. No âmbito consti-

tucional, a doutrina do colour blind, segundo a

qual a Constituição é cega para discriminações

de cor, exemplificava a positivação da tendência

à igualação formal.

Neste afã, quebrando uma linearidade his-

tórica, as vítimas dos preconceitos ancestrais (de

cor, sexo, raça) passaram a não mais clamar pelo

simples fim de qualquer forma de discrimina-

ção. Mas reivindicavam, elas próprias, diferen-

ciações que as beneficiassem e que servissem

de confirmação oficial de que políticas estatais

baseadas na neutralidade quanto a cor, raça ou

sexo representavam uma omissão criminosa

diante dos reflexos das discriminações passadas

sobre o presente. As discriminações desumanas

haviam deixado seqüelas que caberiam aos

Estados combater, caso contrário, manter-se-ia

funcionando o perverso círculo da exclusão pelo

preconceito.

Muitos questionaram se “privilégios corre-

tivos” eram menos odiosos do que os vetustos

privilégios de honra e sangue. Temiam que as

ações afirmativas se tornassem o patrocínio do

ócio e da mediocridade a expensas do esforço e

do talento. Afora o labor pessoal e o adequado

uso dos dons naturais, a sociedade ocidental ha-

via assentado que só o direito de herança, a sor-

2 No que se refere ao termo “raça”, ele hoje sequer dispõe de funcionalidade biológica (basta lembrar que as diferençasentre indivíduos da mesma “raça” podem ser maiores do que as existentes entre indivíduos de “raças” diferentes), alémdo que, a história depõe contra seu emprego (racismo, nazismo etc.). Não obstante, neste artigo, utilizaremos estetermo em respeito tanto ao seu uso popular quanto por ser utilizado em nossa Constituição.

3 É bom ter clara a diferença entre preconceito e discriminação. Preconceito consiste em um erro de julgamento quedistorce a realidade dos fatos. É um fenômeno cognitivo. Já a discriminação – no seu sentido sociológico – é o ato de,a partir de preconceitos, restringir os direitos de outrem. Assim, acreditar que as mulheres são más motoristas é umpreconceito; negar-lhes emprego de chofer por isso é discriminação. Já em Direito, como veremos, o termo discriminaçãoassume outros significados.

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te, a caridade ou as políticas públicas isonômicas

eram legítimas beneficiadoras de indivíduos em

amargas condições sociais: fossem negros,

índios ou brancos, homens ou mulheres. Criar

políticas públicas ou exigências legais orientadas

sexual ou racialmente era injusto e uma

subversão das regras do jogo democrático.

Para o pensamento tradicional, o problema

das discriminações calcadas no preconceito era

matéria que estaria suficientemente equacio-

nada pela sua proibição oficial. Não seria uma

questão de políticas públicas específicas, mas

de sanção penal. Sanção que, no Brasil, tornou-se

simbolicamente das mais enfáticas e praticamen-

te das mais inócuas. Das mais enfáticas porque

o crime de racismo, por exemplo, é caso excep-

cional de crime não apenas constitucionalmente

definido (art. 5o, XLII), mas também reforçado

pela anacrônica característica da imprescritibi-

lidade penal – a possibilidade ad eternum de o

Estado perseguir o réu. Já na prática, a dificul-

dade de diferenciar a ocorrência do crime de

racismo em face de outros tipos penais,4 aliada

ao caráter fluido da discriminação racial à bra-

sileira (travestida, muitas vezes, em piadas, brin-

cadeiras e condutas de interpretação duvidosa –

o chamado “racismo cordial”), tornou rarefeita

a eficácia do tão simbólico crime.

Não obstante a ineficácia da mera punição

ao crime de racismo como forma de combater

as práticas discriminatórias, ela ainda é preferida

– por legisladores, intérpretes e população em

geral – às medidas de ações afirmativas. E os

dois principais pontos de apoio a essa preferên-

cia são a valorização social dos sistemas merito-

cráticos e a idéia de que o princípio constitu-

cional da igualdade repudia qualquer sistema

de cotas.

No que segue, analisaremos como o pen-

samento jurídico contemporâneo tem lidado

com a questão das flexibilizações do princípio

da igualdade que o torna receptivo às medidas

afirmativas. Antes, no entanto, vamos analisar

mais detidamente o que é o mérito, principal

cânone justificador da ascensão legítima em

nossa sociedade.

2 MERITOCRACIA E JUSTIÇA

Na pré-modernidade ocidental, a “pureza

e qualidade do sangue” eram considerados cri-

térios suficientes para legitimar a ascensão e per-

manência de alguém no topo das posições de

poder e prestígio social.5 Com a substituição do

conceito de honra – a marca dos diferentes –

pelo de dignidade – a marca universal da igual-

dade (Taylor, 1994), operada na época das revo-

luções burguesas, tornava-se preciso justificar,

em termos de talento pessoal, a posse de uma

posição socialmente elevada. Montesquieu

(1987:102) escrevera: “para que um homem

esteja acima da humanidade, pela honra de

linhagem a ele atribuída, é preciso que os outros

paguem caro demais”. A honra de uns implicava

4 Veja-se sobre isso o julgamento no STF do HC n. 82.424-2, considerado pelo Ministro Marco Aurélio como um dosmais importantes da história da Suprema Corte pátria, e cuja questão versava sobre se o paciente, autor e editor delivros considerados como expressando prática de crime racial contra o povo judeu, pelo TJRG, de fato cometera talcrime (ficando, assim, sujeito à imprescritibilidade do art. 5o, inc. XLII) ou se cometera não o crime de racismo, mas ode discriminação – com supedâneo constitucional no inciso XLI do artigo 5o (que, então, já estaria prescrito). Por 8votos a 3, o STF denegou o HC.

5 Não sem razão nos restringimos ao Ocidente, porque a China já fazia uso de critérios meritocráticos para o recrutamentode funcionários públicos e certas posições de “honra” desde 206 a.C. (Cf. BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia.Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 23).

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D ireito A r t i g o

o servilismo de muitos, e incentivava, também,

a indolência do honrado e o reprimir dos

talentos dos submetidos. A sociedade perdia

duplamente.

Nos Estados Unidos, o precoce desprestígio

do nobre rebuscado (que representava o colo-

nizador inglês)6 e a ascensão ovacionada dos selfmade men são a versão mais enfática dessa pas-

sagem da política da honra para a do mérito pes-

soal. Em nosso meio, recentemente, a decadên-

cia dos socialites de estirpe e o simultâneo culto

aos “emergentes” (que se fizeram, presumivel-

mente, à custa de trabalho, sorte, empreendi-

mentos ousados e um assumido desprezo pela

alta cultura) dão uma versão caricatural, mas

não menos contundente, dessa passagem.

É difícil negar que uma cultura que prefere

os mais realizadores, os mais talentosos e os mais

esforçados apresenta uma abertura à mobilidade

social maior do que aquelas em que as posições

são fixadas a partir do nascimento ou do casa-

mento. Privilegiar o talento e não a linhagem é

também um poderoso incentivo para que a so-

ciedade usufrua pessoas talentosas que, em busca

de recompensas individuais, podem vir a pro-

mover o bem coletivo. Em uma ética utilitarista,

em que as políticas públicas devem se organizar

segundo princípios que tragam o máximo de

benefícios ao maior número de pessoas, premiar

por méritos é não apenas uma aposta razoável,

como, talvez, a única justificável.

Nesse sentido, as políticas de ação afirma-

tiva seriam um prejuízo público, ao ajudarem a

ascensão de pessoas que, por si só, não ascen-

deriam, além de ser um “meio artificial” de ge-

renciar a sociedade. Mas o que é um prejuízo

público? Certamente isso só poderá ser respon-

dido se soubermos qual é o presumível ganho

social que se deixou de obter. Essa é a razão

pela qual Dworkin (2000:446) sustenta não

haver mérito em sentido abstrato, que o mérito

deve ser entendido como a posse de um meio

capaz de permitir à sociedade atingir algum de

seus fins. O talento atlético pode ser um mérito,

se for socialmente importante à obtenção de

vitórias em competições esportivas; a inteligên-

cia é ordinariamente um mérito, já que possi-

bilita, em tese, a resolução de problemas sociais.

E a cor negra poderia ser um mérito? Sim, desde

que pudesse ser vista como um meio capaz de

permitir o alcance de um fim socialmente

valorizado.

Há fortes indícios de ganhos sociais gerais

caso a sociedade privilegiasse as minorias socio-

lógicas, como os negros. No clássico artigo Theepidemic theory of ghuettos and neighborhoodeffects on dropping out and teenage childbea-ring (1991), Jonathan Crane, com grande apoioestatístico, sustenta que, quando em uma deter-minada população o número de modelos sociaiseconômicos (pessoas que sejam, pelo menos, declasse média) chega a uma proporção muito baixa(algo em torno de menos de 5% da populaçãototal), a violência, o consumo de drogas, o aban-dono escolar e a gravidez na adolescência crescemexplosivamente. Estudos qualitativos, como orealizado por Willis (1991) na Inglaterra, pare-

cem sugerir efeitos análogos quando os jovens

não encontram base concreta para acreditar que

6 Críticas que encontram ressonância tanto no sucesso que a doutrina do darwinismo social fez naquele país (no qual osmais bem-sucedidos nos negócios tornaram-se, por antonomásia, os “mais aptos”), como na crença, anterior, nafórmula de Benjamin Franklin de que é da frugalidade e da operosidade (duas características das quais os nobres eramdesprovidos) que se constrói uma sociedade de homens ricos e virtuosos. O impacto de idéias como a de Franklinforam magistralmente analisadas no clássico de WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. SãoPaulo: Pioneira, 1985.

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vale a pena lutar para ser alguém na vida. Assim,

privilegiar as minorias seria uma forma de se

obter benefícios gerais e públicos.

Mas, o segundo argumento, que diz que os

negros ascenderiam “por meios artificiais”, tal-

vez neutralizasse seu efeito de “modelo social”,

pois os negros, por exemplo, socialmente bem-

sucedidos, após a implantação de medidas de

ação afirmativa, seriam vistos como indivíduosajudados. Tal crítica padece, no entanto, do erro

de supor que o sucesso predominante dos bran-

cos é algo naturalmente conquistado. Se a ação

afirmativa restringe artificialmente a concor-

rência que os negros terão de enfrentar para

serem bem-sucedidos, a discriminação racial

historicamente também vem ajudando a reduzir

a concorrência ante as posições que os brancos

procuram alcançar. E, a não ser que se encare

a discriminação racial contra os negros como

algo natural (o que tem sido comum), por trás

da predominância dos brancos na sociedade há

uma política artificial que os favorece. A dife-

rença da ação afirmativa para essas políticas

igualmente artificiais (socialmente desenhadas)

está no fato de que aquela é explícita e tem,

pelo menos, uma razoável presunção de justiça,

enquanto essas são sub-reptícias e perpetuado-

ras de desigualdade.

Portanto, a não ser que se elabore um con-

ceito de mérito abstrato (que seria tão fluido a

ponto de não ter muita utilidade), e não de

mérito para determinado fim (que bem pode

ser o de combate à discriminação racial), a pro-

moção privilegiadora de determinadas pessoas

a partir de critérios como raça ou gênero pode

ser veículo de justiça, desde que esteja a serviço

do combate ao preconceito.

Ademais, mesmo se abandonarmos o concei-

to utilitarista de justiça e buscarmos o conceito

de justiça como igualdade, não há estranheza

no que é valorizado pela ação afirmativa, já que

ela simplesmente corrige – com eficácia

discutível, é verdade – as desigualdades pré-or-

denadas, ao ponderar, no critério de avaliação,

a maior dificuldade presumida que aquele in-

divíduo negro teve, por exemplo, de enfrentar

para chegar até o momento da inscrição no con-

curso. Conforme se extrai da leitura de Singer

(1984), uma nota média de um negro no vesti-

bular pode bem representar um potencial de

superação maior do que a nota máxima daque-

les cuja vida escolar não foi marcada por pre-

conceito, discriminação e exclusão social.

3 AS DISCRIMINAÇÕES E O DIREITO

Todos são iguais perante a lei, diz o princí-

pio da igualdade, consignado na grande maioria

das Constituições contemporâneas. Segundo al-

guns, estaria aí evidenciado o óbice principio-

lógico às políticas de ação afirmativa. Para outros,

o aludido princípio vedaria apenas e tão-so-

mente as discriminações atentatórias ao con-

ceito de igual dignidade humana, permitindo

que se discriminasse sempre, e apenas, quando

a resultante de tal processo fosse uma redução

das desigualdades sociais. Assim, a prisão es-

pecial (CPP, art. 295) seria uma discriminação

atentatória ao princípio isonômico – e como tal,

não recepcionada por nossa Constituição atual –,

já a prioridade na tramitação de processos em

que figure como parte ou interveniente alguém

idoso (Estatuto do Idoso, art. 71) estaria correta,

uma vez que tem por escopo permitir uma mais

imediata prestação jurisdicional àqueles que, na

média, dispõem de menos tempo para aguardá-la

ou usufruir seus resultados.

O fato é que discriminar, ou seja, dar trata-

mento jurídico diferenciado a casos aparente-

mente iguais, é uma das tarefas mais corriqueiras

no Direito, pois, como lembra Alexy (1997:384),

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tratar a todos, e sob todos os aspectos, de forma

igualitária levaria à criação de normas injustas,

disparatadas e disfuncionais, uma vez que as

pessoas diferem em suas posições jurídicas (um

eleitor é diferente de um candidato), situações

de fato (homens são diferentes de mulheres) e

em suas ações (um criminoso é diferente de um

inocente). Diante disso, o problema das discri-

minações estabelecidas pela lei resume-se, na

lição de Bandeira de Mello (1997:13), em saber

quais os limites que adversam este exercício

normal, inerente à função legal de discriminar.

A busca de limites aceitáveis para as opera-

ções de discriminação jurídica tem levado à

construção de teorias sobre os critérios que dife-

renciam uma discriminação legítima de uma

discriminação legalmente vedada. Vejamos o

que dizem sobre isso alguns autores de inegável

influência no pensamento jurídico atual.

Para o jurista alemão Robert Alexy (1997),

o que a máxima da igualdade proíbe são os tra-

tamentos arbitrariamente desiguais. Valendo-se

dos critérios freqüentemente utilizados pelo Tri-

bunal Constitucional Alemão, diz que a arbitra-

riedade ocorre quando não há uma razão sufi-

ciente para justificar a desigualação operada.

Assim, toda distinção que não é razoável, ati-

nente à natureza das coisas ou concretamente

compreensível estaria vedada. Pode-se operar

discriminações, não se pode é operá-las a partir

de critérios bizarros ou irrazoáveis.

Essa é, para Alexy, a versão atenuada do

princípio da igualdade, porque permite a desi-

gualdade desde que haja razões suficientes para

promovê-la. Assim, poder-se-ia tratar negros e

brancos de forma diferenciada, desde que pre-

sente alguma razão suficiente para realizar tal

diferenciação. Mas Alexy vai além: sustenta um

dever do Estado em tratar desigualmente os ci-

dadãos quando há razão suficiente para isso.

Nesse sentido, os cidadãos têm um direito primafacie a serem tratados de forma juridicamentedesigual com vistas a seu benefício, desde que asrazões que apresentem para que se opere taldiferença a justifiquem. E tal justificativa deve sersuficientemente forte a ponto de permitir, para ocaso, a quebra da igualdade formal de todos.

Dessa forma, uma política de ação afirma-tiva (como a de cotas reservadas para negrosem universidades) seria não só aceitável comodevida, desde que as razões em favor dessa de-sigualdade pudessem desbancar o peso dos prin-cípios que exigem um igual tratamento de todos nalei e perante a lei. Em síntese, o Estado alexyanodeve tratar a todos de forma igualitária, repu-diando quaisquer diferenciações, a menos quesuficientes razões sejam apresentadas em favorde um tratamento desigualitário.

O norte-americano Ronald Dworkin, porsua vez, enfrentando a questão da ação afirma-tiva no seu país, cuja Constituição abrigou,durante a maior parte da história, concepçõesescravagistas e segregacionistas, pretende de-monstrar por que há inconstitucionalidade nadiscriminação racial baseada em preconceitos,mas não nas discriminações raciais quesustentam as medidas de ação afirmativa.

Pela 14a Emenda à Constituição dos EUA,está vedado que qualquer Estado negue a umapessoa sob sua jurisdição a igual proteção dasleis. Isso significa, para Dworkin (1999: 455),

que as leis e disposições políticas hão de de-monstrar igual interesse pelo destino de todos.

Tal emenda, embora não especifique o que deveser entendido por igualdade, exige que cadaórgão governamental possua uma concepçãoplausível desse princípio, capaz de garantir aigual proteção legal de todos diante de qualquerum ou de qualquer um diante de todos. É a idéia

do direito de igualdade como um trunfo indivi-

dual, oponível erga omnes.

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Sendo dever de cada órgão – legislativo, ad-

ministrativo ou judiciário – basear suas decisões

em uma certa concepção de igualdade, Dworkin

(2000:445) analisa as concepções ordinaria-

mente apresentadas:

1) Teoria das classificações suspeitasTeoria das classificações suspeitasTeoria das classificações suspeitasTeoria das classificações suspeitasTeoria das classificações suspeitas. É

aquela que nega qualquer direito especial

contra a discriminação, feita a partir de

qualquer critério, só vedando distinções

não-razoáveis. Como as classificações

raciais historicamente têm sido feitas

sem essa base de razoabilidade, elas são

tidas como suspeitas. Mas essa suspeita

é um impeditivo meramente relativo.

Bastaria mostrar que segregar os negros,

por exemplo, traria amplos benefícios

públicos para que tal segregação fosse

tida como razoável. Assim, em se pro-

vando que a separação dos freqüenta-

dores de casas noturnas por critérios ra-

ciais seria capaz de diminuir a violência

urbana, dir-se-ia haver razoabilidade

nesta distinção, autorizando-a. O critério

que inspira esta teoria é claramente

utilitarista: uma discriminação é razoável

em função do grau de benefícios públi-

cos por ela gerados.

2) Teoria das categorias banidasTeoria das categorias banidasTeoria das categorias banidasTeoria das categorias banidasTeoria das categorias banidas. Para essa

teoria, a Constituição negaria a utiliza-ção de certas categorias para fazer dis-

tinções, independentemente de seu re-sultado. Estaria banido das autorizações

constitucionais o emprego de termos co-mo cor e raça enquanto operadores de

diferenciação jurídica, independente-mente de seus objetivos ou resultados.

Aqui não haveria diferença entre medi-das de ação afirmativa e políticas segre-

gatórias baseadas em ideologias que pre-gam a inferioridade dos negros: ambas

as políticas estariam vedadas.

3) Teoria das fontes banidas.Teoria das fontes banidas.Teoria das fontes banidas.Teoria das fontes banidas.Teoria das fontes banidas. Para essa

teoria, não se analisaria nem o resultado

da política discriminatória, nem as

categorias que ela utiliza, mas sua relação

com direitos individuais e preconceitos.

Assim, mesmo políticas discriminatórias

que trouxessem um benefício máximo

à maioria das pessoas estariam vedadas

se fossem calcadas em preconceitos – já

que é um direito individual (oponível

contra toda a sociedade) não ter um ne-

gro, por exemplo, de se sacrificar para

promover o bem-estar coletivo, sob o

patrocínio de preconceitos. Mas se uma

política discriminatória não se baseasse

em preconceito, mas em seu combate,

não haveria sua vedação em tese. Com

efeito, tal política, em um regime demo-

crático, poderia ser traduzida como uma

restrição que os privilegiados fazem a si

próprios (diminuindo suas vagas nas

universidades, por exemplo) na busca de

resultados sociais mais justos (distribui-

ção mais eqüitativa de vagas entre os

diferentes grupos sociais).

Dworkin é partidário da teoria das fontes

banidas como a única que leva os direitos a

sério. Com efeito, a primeira teoria tem um ca-

ráter marcadamente utilitarista: se os benefí-

cios da segregação forem altos, seria dito haver

razoabilidade em manter políticas de separação

racial, e o direito dos prejudicados à igualdade

seria desconsiderado. A segunda teoria (das

categorias banidas) simplifica demais a questão,

impedindo que se separe uma medida desigua-

litária em sua execução, mas igualitária em seus

fins, de uma teoria marcadamente racista. Por

essa teoria, uma medida de ação afirmativa

equivaleria a uma medida de segregação racial

nos moldes históricos das sociedades de passado

escravocrata.

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Já a teoria das fontes banidas, ao sustentar

que o que não pode prevalecer são as preferên-cias baseadas em preconceitos, deixa qualquerdistinção por categoria no âmbito das possibi-lidades, permitindo separar adequadamenteuma medida que quer fazer valer o direito dasminorias das medidas que querem prejudicá-las.

A exemplo de Dworkin, o jusfilósofo italia-no Luigi Ferrajoli (2001) também classifica osdiversos modelos de que dispõe o juiz paradecidir acerca das distinções que podem serconduzidas em um regime que tenha noprincípio da igualdade sua pedra angular. Taismodelos são expostos a seguir.

1) Indiferença jurídica das diferençasIndiferença jurídica das diferençasIndiferença jurídica das diferençasIndiferença jurídica das diferençasIndiferença jurídica das diferenças.Nesse modelo não se atribui qualquerrelevância jurídica às diferenças. Deve olegislador/juiz proceder como se elas nãoexistissem (color blind). Mas, ao nãotutelar preferencialmente as categoriasmais vulneráveis da sociedade (negros,mulheres, idosos etc.), o Direito, queradmita ou não, está tutelando os maisfortes, já que tudo de que estes neces-sitam é a própria ausência de direito(abstenções de Estado) para fazer valersua superioridade política. São os quevivem em situação socialmente precáriaque dependem, prioritariamente, de queo Direito lhes empreste à tutela, comoforma de resistirem à opressão dos

grupos socialmente poderosos e fortes.

2) Diferenciação jurídica das diferençasDiferenciação jurídica das diferençasDiferenciação jurídica das diferençasDiferenciação jurídica das diferençasDiferenciação jurídica das diferenças.

Nesse modelo há uma hierarquizaçãodas diferentes identidades, atribuindo a

algumas status jurídico privilegiado, e aoutras, sujeições discriminatórias. É oregime adotado pelos Estados que valo-rizam o homem mais do que a mulher, obranco mais do que o negro etc. Estadosmarcadamente discriminatórios e funda-

mentados em concepções arcaicas sobre

a natureza das diferenças entre os fenó-tipos humanos. Corresponderia, tal dou-trina, à tutela jurídica dos preconceitos.

3) Homogeneização jurídica das diferen-Homogeneização jurídica das diferen-Homogeneização jurídica das diferen-Homogeneização jurídica das diferen-Homogeneização jurídica das diferen-çasçasçasçasças. Aqui as diferenças são desconside-radas para que cedam lugar a uma iden-tidade normativa, única que o Estadoadmite como relevante. Assim, não exis-tem o branco ou o negro, mas apenas ocidadão universal. O problema é que esse“modelo universal” é construído à ima-gem e semelhança do modo de vida dosdominantes: homens brancos. À vitimi-zação pelo preconceito ou discriminaçãoé dada pouca ou nenhuma relevância. Épossível notar que, neste caso, há uma“universalidade de fachada”. A despeitode não dar relevância às diferenças,reduzindo-as a denominadores comuns,o Direito patrocina determinado modode vida que serviu de standard à forma-ção do modelo que passou a ser consi-derado universal, deixando de levar a sé-rio os problemas enfrentados pelas cate-gorias sociais oprimidas.

4) Igual valorização jurídica das diferen-Igual valorização jurídica das diferen-Igual valorização jurídica das diferen-Igual valorização jurídica das diferen-Igual valorização jurídica das diferen-

çasçasçasçasças. Nesse último modelo, o Estadotutela as diferenças de forma igualitária,

permitindo seu livre desenvolvimento.Para isso, empresta-lhes a força equili-

brante dos direitos fundamentais. Diz oautor (2001:76):

“A igualdade diante dos direitos fundamentais

resulta assim configurada como o igual direito

de todos à afirmação e à tutela da própria iden-

tidade, em virtude do igual valor associado a

todas as diferenças que fazem de cada pessoa

um indivíduo diverso dos demais e de cada in-

divíduo uma pessoa como todas as outras.”

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Trata-se do direito à igual dignidade; do re-conhecimento de que as diferenças existem eque são bases legítimas para reivindicar a tutelado Estado para continuarem a existir.

É esse último modelo o defendido por Fer-rajoli, que, especificamente no referente à açãoafirmativa, acredita que ela pode ser usada comoum corretivo à tese da homogeneização. Comojá dito, o Direito, ao pretender tratar todas as di-ferenças a partir de um único critério (sujeitoabstrato universal), acaba beneficiando as iden-tidades que foram tomadas como modelo para aconstituição desse sujeito (ao qual se atribui abs-tração e universalidade). Portanto, seria aceitá-vel, com fundamento no princípio da igualdade,a existência de normas que selecionem positivae transitoriamente (enquanto necessário) certasidentidades que, por se afastarem do modelopadronizado pelo Direito, amargam a desigual-dade de tratamento no mundo dos fatos.

Embora não esteja tratando diretamente daspolíticas de ação afirmativa, a análise que CelsoAntônio Bandeira de Mello (1997) faz do princípioda igualdade pode-nos esclarecer como taispolíticas dialogam com o ordenamento jurídicopátrio. Para esse autor, uma diferenciação detratamento jurídico é intolerável não só quandoresulta de uma norma que individualiza prévia eabsolutamente seu destinatário (concedendo aalguém um privilégio pessoal e único ouperseguindo-o de forma pessoal e individualizada),como quando não há correlação lógica entre a basematerial de diferenciação (sexo, raça, idade etc.)e o regime jurídico diferenciador correspondente.Diz Bandeira de Mello (1997:17):

“(...) que as discriminações são recebidas como

compatíveis com a cláusula da igualdade ape-

nas e tão-somente quando existe um vínculo

de correlação lógica entre a peculiaridade di-

ferencial acolhida, por residente no objeto, e a

desigualdade de tratamento em função dela

conferida, desde que tal correlação não seja

incompatível com interesses prestigiados na

Constituição.”

A análise da quebra ou não do princípio

igualizador seguiria, para Bandeira de Mello, as

seguintes etapas:

1) Determinar o fator de desigualação (sexo,

raça, altura...);

2) Analisar os regimes jurídicos diferenciados

por força daqueles fatores (“às mulheres é

vedado...”, “aos descendentes de escravos

será concedido...”, “não serão admitidos

candidatos com altura inferior a...”);

3) Analisar se há correlação lógica entre as

etapas I e II, entre a diferença consideradae o regime jurídico diferenciador (“àsmulheres é vedado ingressarem na Aca-demia de Polícia”; “Aos descendentes deescravos serão concedidas bolsas de estudopara compensar a situação social em quefreqüentemente se encontram hoje...”;“Para ingresso na Marinha, o candidatodeve ter altura mínima de 1,63 m...”);

4) Analisar se tal correlação lógica é compa-

tível com as prescrições constitucionais

(a igualdade constitucional entre homens

e mulheres não proibiria a vedação de

ingresso destas em academias de polícia?

A categoria “descendentes de escravos”

não seria uma discriminação pela cor

vedada pela Constituição, ainda que esta-

tisticamente se possa provar que a herança

do período escravocrata lhes traz emba-

raços econômicos presentes? A exigência

da altura mínima para ingresso na Mari-

nha seria aceitável em um regime consti-

tucional que diz que é dever do Estado

integrar até deficientes em seus quadros

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D ireito A r t i g o

de pessoal, quanto mais pessoas levemen-

te abaixo da altura padrão?).

Em resumo, para se saber se uma norma

faz uma discriminação legítima ou arbitrária, é

preciso ver se ela não discrimina de forma abso-

luta seu destinatário e se há razoabilidade entre

a diferenciação feita e os objetivos pretendidos,

que devem, ainda, ser, pelo menos, não vedados

pela Constituição.

Dessa forma, há um amplo leque de possi-bilidades de criação de regimes jurídicos dife-renciados legítimos, permanecendo como invá-lidos aqueles que não sejam capazes de cumpriros requisitos supra descritos. Quanto às políti-cas de ação afirmativa (no seu modelo mais sim-ples, de cotas), não haveria vedação a priori, jáque não individualizam prévia e absolutamenteseus destinatários (ao contrário, estendem-se atoda uma classe de pessoas) e têm por escoporeduzir a desigualdade (o que corresponde a umprincípio basilar do Estado brasileiro).

Em conclusão a este tópico, parece claro

que os citados autores atestariam a justiça in-

terna, nos ordenamentos dos Estados democrá-

ticos de direito, da aplicação de medidas de ação

afirmativa, desde que tais políticas:

1) Não estivessem baseadas em preconceitos;

2) Operassem apenas em situações nas

quais a aplicação ortodoxa do princípio

da igualdade se mostrasse ineficaz veí-

culo de justiça;

3) Fossem realizadas como flexibilizações

razoáveis do princípio da igualdade;

4) Ponderassem valores fundamentais

concorrentes do ordenamento jurídico

em questão;

5) Garantissem a dignidade do ser diferente

mediante o combate à desigualdade de

oportunidades sociais.

4 APONTAMENTOS FINAIS

A despeito dos que defendem, no Brasil, a

doutrina do color blind, não há dúvida de que

quando a Constituição Brasileira, por exemplo,

veda distinções por cor, raça ou sexo, está

direcionada à proibição das distinções inferio-

rizantes e não daquelas cujo objetivo é a redução

das desigualdades. Para confirmar o sentido

dessa interpretação, basta proceder a um inven-

tário do porquê histórico de palavras como cor

e raça figurarem em nosso texto constitucional:

sem dúvida, para combater as distinções que

tomavam os diacríticos raça ou cor como fonte

de hierarquização social. E, como lembra

Coelho (1997:44):

“Refazer a pergunta sobre quais foram os pro-

blemas sociais que ensejaram determinada res-

posta normativa, é, portanto, um recurso her-

menêutico a mais, que não pode ser desprezado,

sobretudo quando se pretenda descobrir a ra-

zão subjacente a um enunciado normativo cujo

significado se nos apresente, de alguma forma,

problemático.”

Nossa Constituição não proíbe distinções

por origem, raça, cor, sexo ou idade, veda-as,

isto sim, quando baseadas em preconceitos (art. 3o,

IV). Veda-as quando constituem práticas aten-

tatórias aos direitos e liberdades fundamentais

ou quando constituem prática de racismo (art. 5o,

XLI e XLII). Veda-as, ainda, quando são usadas

para dificultar o acesso ou aviltar o salário dos

trabalhadores negros, mulheres e idosos (art. 7o,

XXX). Mas aceita-as quando são favoráveis aos

menos protegidos socialmente: proteção do

mercado de trabalho para a mulher (art. 6o, XX),

reserva de vagas aos portadores de deficiência

(art. 37, VIII) etc.

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A r t i g o

Tanto o sentido da proibição das citadas

distinções, verificado em nossa Constituição, li-

mita-se ao seu uso preconceituoso que poucos

– se é que os houve – ousaram alegar que a

reserva de vagas para portadores de deficiência

física representava uma contradição no Texto-

Mor. E por que não representa? Porque seu obje-

tivo é uma maior isonomia final na sociedade e

não o de perpetuar distinções odiosas. Da mesma

forma, o recente Estatuto do Idoso é pródigo

em reservar vagas para pessoas com mais de 60

anos (3% nos programas habitacionais; 5% das

vagas nos estacionamentos; 10% dos assentos

nos coletivos urbanos etc.). Também neste caso

ninguém alegou inconstitucionalidade. A ver-

dade é que a reserva de vagas aceita em nosso

país vai da participação obrigatória de mulheres

em candidaturas a cargos políticos à reserva de

espaços privilegiados aos presos de “primeira

classe”, abrangidos pela mais que discutível ru-

brica da prisão especial.

Diante, então, de um país tão receptivo a

sistemas de cotas, como justificar que tal expe-

diente seja visto com tanta desconfiança quan-

do os beneficiários são os negros? É claro que

há problemas de operacionalidade adicional nas

cotas raciais. Afinal, quem é negro no Brasil?

Em um país de miscigenação como o nosso, o

número varia entre 5 e 45% da população!,

conforme sejam, ou não, somados os que se

auto-intitulam, junto ao IBGE, como pardos ou

descrições afins (mulatos, caboclos etc.). Quan-

to de “negritude” é preciso possuir para exercer

legitimamente o direito às cotas? Haveria perícia

para isso? Negros ricos também fazem jus ao

privilégio a expensas dos interesses de brancos

pobres?

Talvez sejam essas questões relativas à

operacionalidade o que tem impedido que o de-

bate sobre as ações afirmativas no Brasil saia da

fase embrionária, ou que não passe de mera exe-

gese da doutrina norte-americana sobre o

assunto. Expediente, este último, comumente

utilizado para nos fazer sentir em sintonia com

o debate universal dos grandes temas, sem que

precisemos lidar com os óbices apresentados em

suas concretizações. É mais um caso em que a

tão sonhada fantasia de pureza no Direito pro-

cura nos inocentar diante de nossa dificuldade

em lidar com a miscigenação da realidade.

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D ireito A r t i g o

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A r t i g o

R E S U M O

A UNIVERSIDADE, O ESTUDODO DIREITO E A NOVA

REALIDADE

Carlos João Eduardo SengerCo-coordenador e Professor da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito doCurso de Direito do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul (SP).

Doutorando pela Universidade do Museo Social Argentino, Buenos Aires, Argentina.

Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Consultor Jurídico e Advogado.

O tema abordado tem como idéia cerne trazer aodebate acadêmico uma preocupação com o realsentido e projeção da instituição denominadauniversidade ou do ensino universitário, focado emum prisma de modernidade, e de um mundo glo-balizado, como notável centro produtor e difusorde conhecimentos e cultura, principalmente de po-sicionar seus eixos estruturais fundamentais dentrodessa nova realidade global que vivemos, com asnaturais expectativas e que detém inequívoca in-fluência na ordem mundial. São contingênciasdetectadas nos dias atuais com implicações e sériosreflexos na ordem social, se consolidando numaseqüência de lições, nos impulsos e aos estímulosdas universidades mais antigas, responsáveis pelafloração e base desta contingência moderna, quantoas idéias produto do avanço cultural, e da veiculaçãodos seus ideais na construção de uma consciênciade cultura da humanidade, do individual para oglobal, no rumo da sonhada integração, voltada paraa prosperidade social mais humana, a repercutirnos vários segmentos sociais e, por conseqüência,de forma mais intensa no próprio estudo doDireito, por suas profundas raízes sociais.

A B S T R A C T

The boarded theme has as idea sifts bring to theacademic debate a preoccupation of the real senseand projection of the denominated institutionUniversity or of the academic, focused teaching ina modernity prism, and of a globalized world, asnotable producing and diffuser center of knowledgeand culture, mainly to locate its basic structural axlesinside of this new global reality that we live withthe natural expectations and that detains unequivocalinfluences the world order. They are limitationsdetected in the current days with implications andserious reflexes in the order social, consolidatingitself in a lessons sequence, in the pulses and to thestimulus of the older, responsible universities forthe florescence and base of this modern contin-gency, how much the product ideas of the culturaladvance, and of the propagation of its ideals in theconstruction of a culture conscience of the humanityof the individual for the global, in the direction ofthe dreamt integration, come back toward the socialfor prosperity more human being, to rebound inthe several social segments and for consequence ofmore intense form in the own study of the right,for their profound social roots.

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1 INTRODUÇÃO

Inicia-se o presente artigo com uma reco-

mendação da Comissão Internacional de Edu-

cação da Unesco sobre a Educação para o século

XXI, presidida por Jacques Delors, no sentido

de que:

“La utopía orientadora que debe guiar nuestros

pasos consiste en lograr que el mundo converja

hacia un mayor entendimiento mutuo, hacia

un mayor sentido de la responsabilidad y hacia

una mayor solidaridad, sobre la base de la

aceptación de nuestras diferencias espirituales

y culturales. Al permitir a todos el acceso al

conocimiento, la educación tiene un papel muy

concreto que desempeñar en la realización de

esta tarea universal: ayudar a comprender el

mundo y a comprender a los demás, para com-

prenderse mejor a sí mismo”.

Recorrendo à elucidação da história sobre

a matéria focalizada, importante é o pensa-

mento da lavra do emérito professor Waldemar

Martins Ferreira ao afirmar em seu livro que:

“Nenhum jurista pode dispensar o contingente

do passado a fim de bem compreender as insti-

tuições jurídicas dos dias atuais”.1

A universidade pode ser entendida como um

centro de cultura superior orientado por uma

liberdade acadêmica e de conseqüente autono-

mia. O vocábulo tem origem na palavra latina

universitas, e segundo F. J. Caldas Aulete em

seu notável léxico, tem o significado de: “a to-

talidade das pessoas e das coisas, universalidade

(qualidade do que é universal, geral), reunião

de escolas da ordem mais elevada...”,2 com o

detalhamento dado por Aurélio Buarque de

Holanda Ferreira em seu novo dicionário: “uni-

versalidade. Instituição de ensino superior que

compreende um conjunto de faculdades ou es-

colas para a especialização profissional e cien-

tífica, e tem função precípua garantir a conser-

vação e o progresso nos diversos ramos do co-

nhecimento, pelo ensino e pela pesquisa”,3 e

extraído no léxico espanhol de Julio Casares em

seu Dicionário ideológico: “universidad. Instituto

publico donde se cursan ciertas facultades, y se

confieren los grados correspondientes. Instituto

publico de enseñanza donde se acian los estudios

mayores de ciencias y letras”,4 cumprindo assim

afirmar que o ensino, a ministração do saber e do

conhecimento, representam o principal objetivo

institucional da entidade denominada universi-

dade, abrangendo todos os ramos da instrução

superior no nível universitário, qualificando-se

como uma pessoa jurídica ficta integrada por umacomunhão de pessoas, a quem se outorgaraalhures também a denominação de corporação.

O propósito de enfocar-se o tema é justa-mente em razão da sua atualidade, e de opor-tunizar uma colocação mais avançada de parteda comunidade acadêmica interessada, paracarrear-se, ao campo amplo e fecundo das idéias,a instauração de reflexões e debates acerca dodesenvolvimento ideal das universidades naministração do ensino superior nos dias atuais,aspectos considerados áridos e polêmicos, plenosde preocupações ex vi deste aceno real de mo-

1 História do direito brasileiro, p. 11.2 Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, p. 1.389.3 Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.430.4 Diccionario ideológico de la lengua española, p. 1.072.

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dernidade globalizante que está a envolver todaa sociedade onde vivemos, a repercutir em todosos seus segmentos ativos, com indiscutível sortede influências, quer na área pública quer na áreaprivada, e muito mais na educação ideal a sertransmitida às novas gerações.

O sentido da empreitada é, de forma mo-desta, possibilitar uma visualização da impor-tância e magnitude que está a representar parao ensino superior em si, e o ensino do Direito,revolvendo um pouco da sua história, e atravésdas entidades é que se propõe realizá-lo, sobre-tudo nos grandes aglomerados educacionaiscompostos de universidades e de centros uni-versitários em nosso país. Busca-se fixar a suaevolução no decorrer dos tempos e das épocas,tendo em vista as suas metas, e principalmentecomo um centro produtor e difusor perene naconstrução de conhecimentos, na aplicaçãoconstante do saber, e com a responsabilidadede exercer uma verdadeira revolução na mani-pulação e desenvolvimento da alta tecnologia,tudo ao matiz do inelutável progresso social edos avanços no campo científico.

2 A UNIVERSIDADE EM SI

A universidade como uma instituição formal,ao que nos indicam os predicamentos da história,pode ser considerada como uma invenção doperíodo medieval, tendo como embrião os estudosgerais mais precisamente na baixa Idade Média(1150-1474), e que nos seus primórdios eraconsiderada uma comunidade integrada de pro-fessores e alunos para a busca do saber, bem comopara transmitir os resultados desta investigação econhecimento. Nasceu assim:

a) em seu momento inicial, como uma cor-poração de discípulos afeiçoados que se

organizaram para atrair professores e pes-soas mais dotadas de cultura às reuniões deestudos em comum, a fim de estabelecersuas cátedras (tribuna de conhecimentos)em suas respectivas cidades; e,

b) de uma reunião de professores, que seuniam para formar um foro acadêmico, napermutação e intercâmbio de idéias, e quese denominavam de reuniões acadêmicas.

Etmologicamente, a palavra cátedra vem dogrego kathedra, de onde deriva a expressão “ca-deira”, em um sentido de lugar, usada pelos bis-pos e autoridades clericais nas suas catedrais epelos professores nas universidades, e de ondenaturalmente falavam para a sua platéia.

Estas organizações tomaram a forma de as-sociações, que se tornaram comuns na baixaIdade Média (associações, corporações de ofí-cios), mais relacionadas com o sentido de “grê-mios”, isto é, de agremiações, e justamente nes-ta forma de associação e nesta mesma ordemde idéias é que nascem as universidades comopessoas fictas com a feição de uma corporação,composta de estudiosos (professores) mais ex-perientes, reunidos em uma cidade para trans-mitir seus conhecimentos, inclusive com es-tatutos de organização aprovados e com regrasestabelecidas, que eram de todo respeitadas pelacomunidade integrante: professores e alunos.

No dizer de Jacques Verger em seus estudosespecializados,

“A la época de creación de las universidades no

existia lo que hoy conocemos como enseñanza

primaria o ensenãnza secundaria, ni, por lo tanto,

la enseñanza superior. La enseñanza estaba aban-

donada a la iniciativa privada y local, com un

prestigio social y político limitado...”5

5 Gentes del saber en la Europa de finales de la Edad Media, p. 51.

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Assim, as universidades nasceram como

verdadeiros espaços de investigação e de estudos

que, em resumo, se caracterizaram:

a) pelo trabalho docente constante na bus-

ca do saber;

b) pela integração do conhecimento, e com

isso acabando por regulamentar o ofício

do intelectual; e

c) tendo a ciência como centro de toda in-

vestigação e pesquisa.

Outra peculiaridade marcante desde o seu

nascedouro, é a idéia fixa de liberdade acadêmica

e de autonomia universitária, componentes que

em sua estrutura representavam a ampla refle-

xão na possibilidade de definir seus fins e obje-

tivos, na elaboração de seus próprios planeja-

mentos e programas; máxime, no sentido de ga-

rantir o livre exercício da investigação, da atua-

ção dos docentes, e do acesso indispensável às

fontes de informação.

É certo que a universidade medieval apare-

ceu principalmente na preparação de formasmais racionalizadas, intimamente relacionadascom o exercício da autoridade da igreja Católica,do governo e da sociedade, dando oportunidadeao surgimento: das escolas monásticas, ligadasàs abadias e aos monastérios; das escolas epis-copais, capitulares ou catedralícias que se de-senvolviam nas cidades havidas como sedes dasdioceses religiosas, e que mantinham uma de-pendência direta para com os bispos clericais.

Impõe-se considerar que, neste período de-cantado como obscuro da alta Idade Média, aigreja Católica era um núcleo social dos maisorganizados ao seu mister sacerdotal, daí

advindo a relevância de sua atuação. Por sua

vez, com os monarcas, surgiram as escolas pala-

tinas, também chamadas palacianas, sendo a

primeira criada no ano de 777 pelo imperador

Carlos Magno – voltada para a educação inte-

lectual – que convocou para suas atividades re-

nomados pensadores e estudiosos de sua época,

constando dos seus registros e dos anais histó-

ricos que esta escola foi transferida para Paris

por Carlos Calvo, e que é considerada por alguns

pesquisadores como um antecedente remoto e

expressivo para a criação da tradicional Uni-

versidade de Paris.

Nestas escolas, e nas primeiras universida-

des, em seus currículos e nas matérias aplicadas

aos seus programas e estudos, já correspondiam

a evolução do trivium – estudos de gramática

(latim), retórica (artes) e lógica ou dialética (o

estudo do pensamento com base no filósofo

grego Aristóteles), que era considerado o cami-

nho triplo da busca da sabedoria; e do quadri-vium – que correspondia a aritmética, geome-

tria, astronomia e música, havido como o ca-

minho quádruplo para o desvendar do conhe-

cimento, classificadas como todas as sete artes

liberais (uma criação da alta Idade Média (711-

1150), como nos lembra o culto professor ar-

gentino Abelardo Levaggi: “Desde fines del pe-

ríodo, las ciudades, en processo de repoblación,

organizaran sus propias escuelas...”6 se incor-

porando às mesmas os estudos: da teologia, da

medicina e do direito, ressaltando-se como dado

de singular expressão que a música ocupou um

lugar de destaque em razão justamente dos cân-

ticos nos ofícios e no culto cristão que integrava,

e segundo o entender muito apropriado dos

pensadores gregos, como um meio para a per-feição do espírito.

Dessa forma, observa-se claramente que as

primeiras universidades se formaram a partir

6 Manual de historia del derecho argentino, p. 336.

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da própria experiência, com um predomínio

bem claro do conhecimento empírico, com suagradativa e lenta instituição como organização.

Com o natural domínio da igreja Católica àépoca, a sua cúpula, por meio do papado, emmeados do século XIII, no propósito de conver-ter as universidades em modelos de instituiçõescristãs formalizadas, unificou-as sob a forma deestudos gerais, protegidas e controladas pelasautoridades eclesiásticas, com a direção da Igrejaincentivando o seu desenvolvimento em novasuniversidades, tendo, como objetivos bemdefinidos, o sentido deliberado de dar qualificaçãoao seu pessoal religioso e consolidar um podercultural de parte da Igreja, para tanto lhes for-necendo proteção e segurança, buscando tam-bém alcançar uma projeção voltada para umaspecto mais internacionalizado.

Nas carreiras profissionais havia componen-tes laicos, com disciplinas de Direito Civil, Di-reito Canônico e estudos de medicina, e comoisso o papado tinha como preocupação e inten-ção criar um clima de harmonização entre ascrenças contraditórias das diversas ordens reli-giosas, na firme disposição de fortalecer o poderdo papado, e também no propósito de incorpo-rar pessoas mais eruditas e afinadas para assu-mir um status clerical.

Dado expressivo deve ser registrado: nessemesmo tempo, as universidades também con-taram com o apoio igual da autoridade civil, pormeio dos imperadores, dos reis e das autoridadesmunicipais, que tiveram praticamente a mesmaidéia da adotada pela Igreja, precipuamente naformação de pessoas súditas para serem os cola-boradores do poder, inclusive criando outrasuniversidades, as quais tiveram maior prolife-ração nos séculos XIV e XV, estimuladas porfinanciamentos, o que contribuiu para aumen-

tar ainda mais os núcleos de estudos e a própria

população estudantil.

3 AS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES

As grandes universidades organizadas noperíodo medievo baixo e de maior expressi-vidade são: a de Paris, de Bologna, de Oxford ede Cracóvia na Polônia, apontadas como as maisantigas da Europa:

Universidade de Paris.Universidade de Paris.Universidade de Paris.Universidade de Paris.Universidade de Paris. Apareceu no séculoXII, formada a partir de professores e alunospertencentes à escola da famosa catedral deNotre Dame e de outras escolas de Paris. Porforça dos movimentos de enfrentamento entrealunos e autoridades civis, ficou marcada porum episódio bastante triste e com a morte demuitos alunos.

Esta universidade foi um centro de estudos,considerada a mais destacada da Idade Média,especialmente pelos estudos profundos de teo-logia e filosofia. Tinha um caráter acentua-damente eclesiástico (religioso), e um dado ex-pressivo é que Santo Tomas de Aquino per-tenceu a ela.

Universidade de Bologna. Universidade de Bologna. Universidade de Bologna. Universidade de Bologna. Universidade de Bologna. Surgiu tambémno século XII como escola episcopal especiali-zada em Direito Canônico, Municipal, e em Di-reito Civil. Formou-se a partir de uma associa-ção voluntária de estudantes que foram ouvirWerner Irnério, professor de Direito e mongereligioso, ministrar seus conhecimentos. Oregistro marcante dessa universidade é que foia primeira a ensinar o Direito, e servir de padrãoàs demais.

O prestígio de Bologna à época se deve aque era um ponto de confluência de rotas co-merciais e de peregrinos do norte até Roma.

A pesquisa aos anais nos informa que oimperador Felipe I tinha interesse na aplicação dasleis romanas para atender suas pretensões comoimperador, pois os estudantes de Bologna erampessoas adultas, que financiavam a universidadee a controlavam elegendo o seu reitor.

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Constituiu-se em um centro de interessede estudos do Direito, por ser a primeira a es-tudar o Direito Romano; e pela proteção queteve do imperador, Bologna se notabilizou, eteve o afluxo de pessoas estudantes que aliformaram uma comunidade, inclusive com pes-soas vindas de outros lugares, destacando-sepelos estudos de Direito Canônico, Direito Civil,assumindo a recuperação do Direito Romano,considerado o feito mais importante, atribuídoao monge e professor Werner Irnério e seusdiscípulos, que formaram o grupo denominadoglosadores.

A respeito, assinala o professor Levaggi:

“El hallazgo fortuito em Italia, a fines del siglo

XI, de un manuscrito del Digesto, la obra ig-

norada en los siglos anteriores, le permitió a

Irnerio y a sus discípulos acceder a la jurispru-

dencia clásica e inaugurar la ciencia jurídica

medieval...”7

Universidade de Oxford.Universidade de Oxford.Universidade de Oxford.Universidade de Oxford.Universidade de Oxford. Igualmente, sur-giu no século XII. A presença estudantil concorrianas escolas religiosas, conventos e monastérios.

Característica marcante dessa universidadeé que em 1209 registra um movimento estu-dantil com a morte de muitos alunos, e em con-seqüência, alunos e professores decidiram aban-donar a cidade, alguns se mudando para Paris eCambridge, e nesta cidade inglesa formaramuma nova universidade. Os que permaneceramem Oxford tiveram o reconhecimento eclesiás-tico para o ensino, com a proteção do bispado,acabando por se destacar no ensino da teologiae das ciências.

Oxford, como pequena cidade inglesa, ad-

quiriu prestígio por ser à ocasião a sede da ad-

ministração real e das cortes religiosas, o queanimou estudiosos e juristas a emigrarem paraesta cidade e ensinar o Direito. Em pouco tempo,a escola era conhecida como de leis, única na

Inglaterra a atrair estudantes da Europa.

4 OS MODELOS DE UNIVERSIDADES

E SEUS OBJETIVOS

A maioria dos sistemas de educação tiveramorigem a partir de grandes modelos universitá-rios classificados como históricos:

a) o sistema napoleônico da universidadeprofissional;

b) o sistema alemão da universidade cien-tífica/educativa;

c) o sistema britânico da universidadeeducativa; e

d) o sistema norte-americano da universi-dade/organização.

Em abordagem, sucinta cada um apresentasuas características:

Sistema Napoleônico.Sistema Napoleônico.Sistema Napoleônico.Sistema Napoleônico.Sistema Napoleônico. Ao já assinalado, éconsiderado o mais antigo. O Estado passou autilizar a universidade como ferramenta deprogresso e modernização da sociedade, comum sistema fortemente centralizado, e comreduzida autonomia, pois o objetivo do Estadofrancês na oportunidade, em face da carênciapós-revolucionária, era de formar profissionaispara o próprio Estado e para a sociedade.

Sistema Alemão. Sistema Alemão. Sistema Alemão. Sistema Alemão. Sistema Alemão. É um modelo científicoeducativo, tendo organizado a universidade co-mo uma instituição vocacionada para a inves-tigação e a formação científica dentro do idealhumanista, baseada no enciclopedismo e naliberdade do ensino e da expressão.

7 Idem, p. 68.

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Este sistema é dotado de autonomia fora

da intervenção do Estado, porém sua autono-

mia era garantida pelo Estado, com o dado in-

teressante de que os alunos deveriam trabalhar

em seminários, e o professor os aceitava como

preparados.

Sistema Britânico. Sistema Britânico. Sistema Britânico. Sistema Britânico. Sistema Britânico. Modelo educativo até o

final do século XVIII, na Grã-Bretanha existiam as

tradicionais universidades de Oxford e Cambridge.

Em Oxford surgem os colleges como aloja-

mentos para estudantes de menores recursos,

transformando-se em comunidades de profes-

sores e alunos, com ampla autonomia e com

recursos de rendas e doações. Impõe-se dizer

que, nos colleges do século XIX, a educação su-

perior pertencia a uma classe social considerada

privilegiada, mantendo as normas e estilo de

vida britânicos, e este modelo assume os

paradigmas da universidade educativa.

Oxford e Cambridge, pelos seus custos, pas-

sam a ser universidades de elite, em um sistema

tutorial: os pais confiam os filhos à universi-

dade, e cada professor assumia a formação mo-ral e científica de reduzido número de estu-dantes, tudo de acordo com as virtudes cívicase morais, e os princípios da igreja Anglicana.

Surgem outras universidades, mas o sistemainglês mantém a tradição como um sistema

universitário baseado na ampla autonomiainstitucional destinado ao desenvolvimento

intelectual e à realização pessoal de seus alunos,que deviam residir no campus universitário,

praticando também uma vida em convivência.Este sistema se modificou e democratizou-se

na segunda metade do século XX.

Sistema Norte-Americano.Sistema Norte-Americano.Sistema Norte-Americano.Sistema Norte-Americano.Sistema Norte-Americano. As primeiras

universidades seguiram o modelo britânico, pois

Harvard, a mais tradicional, foi criada em 1636

no mesmo modelo de Cambridge, com o mesmo

sistema tutorial.

No século XX, com a Segunda Guerra Mun-

dial, a universidade americana se transformou

em um centro de investigação mais ativo na

produção de novos conhecimentos, consti-

tuindo-se mais em uma empresa de serviços com

orientação prévia quanto à área de investigação,

modelo que corresponde a uma sociedade

concentrada para o desenvolvimento econômico

e, principalmente, de inovação tecnológica.

O detalhe importante, como organização,

é que trabalha com a lei de mercado em um

sistema de educação superior destinado às

massas, dando inteiro destaque às noções de

saber útil, concorrendo com um sentido

nitidamente pragmático.

5 O ENSINO DO DIREITO

Sem desconsiderar os estudos já realizados

no período romano, praticamente o embrião de

tudo, remontando a textos isolados, desde o

século XII, nas cidades de Bologna, Ravena, Mo-

dena e Piacenza, passou-se a estudar o Direito

Romano a partir dos velhos manuscritos justi-

nianeos descobertos.

À ocasião, o Direito Romano não estava vi-

gente na Europa, e seu estudo despertou inte-

resse de estudiosos, professores, juízes e gover-

nantes, quando Werner Irnério, conotado como

o “farol do direito”, veio de descobrir no museu

da cidade de Pisa um manuscrito do Digesto de

Justiniano, que classificou como uma grande

“revelação jurídica”, uma “lembrança de Deus”,

passando a estudá-lo com seus discípulos Acur-

sio e Azo. Irnério, como professor, separou o

ensino da jurisprudência clássica da retórica, e

passou a ensinar as leis romanas.

Irnério e seus discípulos realizaram as glo-

sas do texto descoberto partindo do seu teor,

do conhecimento da letra e das palavras, e se

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D ireito A r t i g o

apoiando na autoridade da lei, preparando uma

reedição em cinco volumes do Corpus Juris Ci-

vilis de Justiniano, composto do Código, do Di-

gesto, das Institutas e das Novelas, sendo res-

ponsável pela formação da Escola dos Glosado-

res, onde Acursio foi o incumbido e responsável

pela compilação denominada “magna glosa” ou

“glosa ordinária”. E assim o Corpus Juris Civilis

foi incorporado em seus estudos, o que corres-

pondeu ao embrião da crítica reproduzida pelos

Comentaristas surgidos no século XIII com

Cyno de Pistoia, Bartolo de Sassoferrato, e que

se utilizaram do mos italicus, método italiano

de ensino e aprendizado do Direito, criando a

opinio comunis doctorum por meio da compi-

lação das opiniões de parte de Baldo de Ubaldi,

cujas regras comuníssimas passaram a formar

o Direito comum, adotadas como argumento

de autoridade e fonte de criação do Direito dos

juristas, que se espargiu e evoluiu em toda Eu-

ropa, em uma mescla das regras comuns con-

solidadas com os usos e costumes de cada país,

e com isso criando o seu próprio direito.

Esclarece Levaggi:

“El critério de los juristas bajomedievales fue,

pues, el de maxima aplicación posible del De-

recho común y, correlativamente, el de la mí-

nima aplicación del Derecho próprio. De esta

manera, los Derechos de la mayoria de los

reinos europeos se incorporaron al sistema del

Derecho común”8

O método de ensinamento era oral e em la-

tim, na utilização dos textos romanos, pois o latim

correspondia a língua da bíblia, por ser a língua

das escrituras, da cultura erudita e também a

língua dos ensinamentos.

Como meios, utilizaram pequenos manuais

da obra de Aristóteles, especialmente dos trata-

dos de lógica, constando que o homem letrado

medieval tinha uma tendência natural de orde-

nar suas idéias sob a forma de silogismos e de

transformar as mesmas em figuras de silogismo

corretas ou não corretas, dentro dos argu-

mentos de seus próprios adversários.

O livro em si surgiu no século XIII com a

utilização do papel, e por ser caro, as universi-

dades estruturam-se em lhe destinar recintos

próprios, isto é: bibliotecas para consultas, e en-

cadernação para evitar furtos.

Quanto aos professores, as universidades da

Idade Média passaram a formar seu corpo para a

satisfação de suas necessidades e aumento do

número de alunos. O professor respondia com

cinco características básicas: respeito reverencial

às autoridades; grandes autores e pensadores em

que se apoiavam na atividade docente; domínio

do método dialético calcado na universalidade

do saber e do conhecimento; o ensinamento

deveria basear-se na ótica cristã, ordem do mun-

do criada por Deus; os professores eram em sua

maioria eclesiásticos, com dois graus de forma-

ção: bacharel e catedráticos.

Portanto, desde suas origens, as universi-

dades contaram com uma estrutura institucio-

nal, como uma federação de escolas, e cada es-

cola ofertava um ciclo completo de disciplinas,

dirigidas por um professor, e com um diretor

de estudos, responsável pela escola. Cada fa-

culdade se dedicava a um ramo do conhecimen-

to, com professores que estudavam a mesma

8 Idem, p. 80.

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matéria, com quatro cursos: Teologia, Direito,

Arte e Medicina.

6 A UNIVERSIDADE E O ENSINO

DO DIREITO EM PORTUGAL

Em face das ligações entre o Brasil e Portu-gal, não poderíamos deixar de mencionar Por-tugal, e pelos laços de colonização entre os doispaíses, sugestivo é o esclarecimento trazido peloprestigioso professor historiador José de LimaLopes a respeito, e que bem orienta o surgimen-to da universidade em Portugal:

“a criação do ‘studium generale’ pelo rei D.

Dinis em 1290 mostra a distância que separava

Portugal das origens do movimento universi-

tário. De fato, a universidade portuguesa difere

de Paris e Bolonha pelo seu caráter não espon-

tâneo, ou seja, pela criação por ordem régia

(...) O ‘studium’ é transferido para Coimbra

em 1308 e retorna a Lisboa em 1338, por ordem

de D. Afonso IV; em 1354 volta a Coimbra e ali

fica até 1377 quando, sob D. Fernando I, volta

a Lisboa. Conforme Saraiva (1995) a universi-

dade portuguesa era ‘vagabunda’, que até o

século XVI não tinha sede fixa, nem instalações

próprias, nem mestres prestigiados e cujos di-

plomas valiam pouco, mesmo dentro das fron-

teiras do Reino”.9

A respeito de Portugal, acrescenta ainda oeminente professor e historiador argentino Levaggi:

“La penetración del Derecho común comenzó

en el siglo XIII y fue progressiva. Contribuyó a

elle la presencia de estudiantes portugueses em

Italia, quienes a sua regresso volcaron su saber

como catedráticos y consejeros (Juan de Dios,

Juan de las Reglas), como a la de juristas italia-

nos em Portugal. La fundación de la Univer-

sidad de Lisboa-Coimbra (hacia 1290) favo-

reció la difusión del Derecho común...”10

Sobre o Direito, segundo dizem os estudio-

sos, a história do Direito brasileiro é mais antiga

do que a própria história do Brasil, pois grande

parte da sua evolução deve-se ao Direito por-

tuguês, já que este teve vigência no Brasil desde

o começo da colonização, com a nítida influên-

cia da civilização da Europa na colônia portu-

guesa da América.

A propósito, traz-se novamente a palavra

do inesquecível mestre das arcadas Waldemar

Martins Ferreira:

“O que, de verdade, sucedeu, quanto às insti-

tuições jurídicas, foi o que Silvio Romero teve

como acertado chamar – a bifurcação brasi-

leira, ou seja, o transplantio do organismo jurí-

dico-político português para esta parte do con-

tinente sul-americano”.11

7 A UNIVERSIDADE E O ENSINO

DO DIREITO NO BRASIL

Os estudos do Direito no Brasil surgem atra-

vés da bifurcação denominada brasileira, que

corresponde à vigência de preceitos da organi-

zação jurídica portuguesa no continente sul-

americano, especificamente no Brasil.

9 O direito na história: lições introdutórias, p. 125.10 Op. cit., p. 83.11 Op. cit., p. 25.

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Com a declaração da Independência do Bra-

sil, segundo nos resgata a história, os brasileiros

acabavam de perder o único centro de cultura

superior do mundo de língua portuguesa: a

Universidade de Coimbra, pois a primeira ge-

ração de legisladores brasileiros ali é que se ha-

viam formado. A propósito afirma Lima Lopes:

“(...) Os brasileiros de primeira geração de le-

gisladores e juristas são fruto desta idéia geral,

pois foram socializados em Coimbra neste am-

biente. Ali aprenderam o direito e aprenderam

o que seria um curso de direito.”12

Em sua excelente monografia comentando

os parâmetros políticos fundamentais nortea-

dores, diz Aurélio Wander Bastos:

“(...) em primeiro lugar, a história da instala-

ção dos cursos jurídicos no Brasil (...) é basica-

mente a história das conciliações que se deram

entre as elites imperiais e determinadas frações

das elites civis; em segundo lugar, a fração der-

rotada das elites civis sempre esteve numa po-

sição optativa entre a sua proposta e as pro-

postas oficiais da elite imperial ou as da sua

fração que tinha acesso direto ao Estado”.13

Dessa forma, em razão de uma efetiva ne-

cessidade, das divagações e desencontros da po-

lítica, pela carta de lei de 11 de agosto de 1827

elaborada pelo Império, foram criados os cursos

jurídicos no Brasil: um em Olinda e outro em

São Paulo, cujos parâmetros eram então nos

mesmos moldes de Coimbra.

Em 1854, pelo Decreto n. 1.386, os cursos

jurídicos passaram a denominar-se Faculdades

de Direito, e neste mesmo ano o curso da cidade

de Olinda transferiu-se para Recife. As faculda-

des de Direito, em uma reforma de 1879, foram

divididas em dois cursos: Ciências Jurídicas e

Ciências Sociais, com currículos acrescidos,

anotando-se que a freqüência aos cursos era livre.

Após a proclamação da República em 1889,

houve uma nova reforma educacional, restau-

rando a presença obrigatória dos alunos aos cur-

sos, e o modelo de Coimbra acabou por receber

as modificações seguindo os padrões europeus

e de acordo com as necessidades brasileiras.

A elite de juristas desta época vem das duas

Faculdades, a exemplo de Augusto Teixeira de

Freitas e Clóvis Bevilácqua. Como dados rele-

vantes da criação intelectual brasileira, em 1856

aparece a Consolidação das Leis Civis de Augusto

Teixeira de Freitas, e em 1916 o Código Civil de

Clóvis Bevilácqua, dois autênticos monumentos

do estudo do Direito em suas épocas.

8 OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Como desafios para o século XXI, ex vi do

crescimento da população estudantil e de um

fluxo mais intenso, adentramos em um processo

de massificação das universidades – fenômeno

que surgiu justamente a partir da Segunda Gran-

de Guerra, e que influenciou sobremaneira a

qualidade dos ensinamentos, obrigando as uni-

versidades a diversificarem seus recursos do-

centes para dar cumprimento a seus objetivos,

diante da ocorrência de novos paradigmas ao

desenvolvimento.

12 Op. cit., p. 229.13 O ensino jurídico no Brasil, p. 8.

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Diante dessa massificação, como era natu-

ral, acresça-se que a premente necessidade de

adequação das universidades, e a evolução das

idéias da Idade Média para a Idade Moderna,

foram aspectos determinantes para uma refor-

ma rápida dos princípios universitários.

Já no século XIX na Alemanha iniciou-se

um movimento estabelecendo formas para a

execução de tarefas de investigação fundamen-

tal e de adestramento profissional reservadas à

classe intelectual, organizadas com uma rígida

relação hierárquica em torno do professor ti-

tular da cátedra.

No entanto, a demanda de técnicos e pro-

fissionais causou profunda transformação nas

universidades: de uma fase de instituição fecha-

da somente para o atendimento das elites, para

uma educação de massa, com significativo

aumento da população universitária, que via na

universidade uma forma de prosperação social

e de democracia na vida universitária.

Bem a propósito nos elucida o professor ar-

gentino Eduardo Martinez Márquez:

“El professional que contemplamos, por el

contrario, deberá reunir positivamente esta tri-

ple condición humana de creatividad: respon-

sabilidad plena, ante toda nueva situción, con

conciencia de tener en la mano su propio des-

tino, y en alguna medida, también el de dos

demás; busqueda activa y razonada de solu-

ción, con la possibilidad fundada de encon-

trarla, y participación solidária en la evolución

social, con personalidad propia que no sucum-

ba a la fácil tentación de masificación”.14

Não há a menor dúvida de que a universi-

dade do século XXI, em seus estudos, tem como

sérios desafios:

a) submeter-se à democratização;

b) satisfazer uma população de estudantes,

como consumidores de serviços;

c) ao mesmo tempo dar conta dos novos

movimentos sociais, em razão da globa-

lização da cultura e do pensamento; e

d) atentar para as dificuldades quanto aos

recursos docentes, sem perder a cons-

tante busca da transmissão da verdade e

do conhecimento científico atualizados,

com certo tempero até de uma previsão

de futuro.

Sobre as perspectivas da universidade, ilus-

tra ainda o professor Eduardo Martínez Már-

quez, já citado:

“Todos sabemos que la universidad, en la socie-

dad contemporánea, debe ser la fuente fecunda

de autênticos recursos humanos (...). Esta incum-

bencia, este compromisso esencial de la universi-

dad de hoy, la obriga a estar siempre en función

prospectiva, a ‘futurizar’ como ahora se dice: por-

que los hombres e mujeres, que hoy salen de sus

claustros, han de ser los professionales e investi-

gadores da la sociedade de mañana. He aqui el

problema máximo de la universidad de todos los

tiempos (...). El profissional del tercer milenio

no acabará nunca su carrera, porque se hallará

naturalmente en educación abierta y permanen-

te, siempre pendiente del último descobrimiento,

y en actitud de constante revisión, bajo el signo

de los tiempos”.15

14 Universidad auténtica, p. 178.15 Idem, p. 176-180.

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9 CONCLUSÃO

Levando-se em conta ser a universidade um

verdadeiro centro produtor e difusor perene na

construção de conhecimentos, na aplicação

constante do saber, e com a responsabilidade

de exercer uma verdadeira revolução na mani-

pulação e no desenvolvimento da alta tecnologia

na incessante busca do bem-estar social, do pro-

gresso social e dos avanços no campo científico,

a conclusão deste tema pode ser resumida em

duas grandes vertentes que por certo estão a

preocupar a comunidade acadêmica dirigente e

as instituições universitárias do país, diante da:

9.1 Nova Realidade

No campo técnico e científico, ante os

efeitos da globalização, importante é destacar

alguns pontos na reforma do pensamento, e da

necessidade da interdisciplinaridade já manifes-

tada no século XX, e agora, no século XXI, sob

nova denominação a da transdisciplinaridade,

o que implica naturalmente uma reforma dos

paradigmas vigentes da universidade.

Convém ficar esclarecido que a interdisci-

plinaridade adotada pela nova inteligência já

tentara resolver o problema do conhecimento com

o auxílio de outros ramos do saber, através de uma

reforma dos programas. E a transdisciplinaridade

por seu turno, ter sua atenção voltada para as

mudanças, por posicionar todo tipo de informação

em seu contexto e principalmente no global, onde

está originalmente inserta.

Para tanto, deve-se dizer que, diante do

mundo globalizado, a reforma da universidade

tem como objetivo a reforma do pensamento, a

redundar numa plena utilização da inteligência

na busca do saber, e a corresponder uma clara

formulação de inovações em atenção aos

paradigmas a prevalecer, ou seja, uma nova

forma de se organizar o conhecimento, pois o

avanço deve ir mais longe para que o pensa-

mento capte as multirrelações, as interações,

as implicações solidárias, o sentir conjuntural,

tudo dentro do panorama social, cujas realida-

des são cada vez mais comuns e por incrível

que pareça, francamente dissidentes.

Torna-se indiscutível concluir pela ingente

e imperiosa necessidade de um pensamento

organizador que atente para a relação recíproca

entre o todo e as partes, como sucedâneo ino-

vador de uma nova forma de pensar.

Cumpre ficar esclarecido que vivemos mais

um momento dos tempos das reformas na

implantação de uma estrutura universitária

mais adequada, mais estimuladora, para sairmos

de uma tradição arraigada nos aspectos formais

do “mesmismo” cômodo, e ao talante exube-

rantemente egocêntrico do “achismo” de muitos,

tudo ao fiel propósito de mudanças de mentali-

dade de parte dos educadores, tendo em vista o

mesmo empirismo de outrora aos dados já con-

solidados e vigentes nos dias atuais, na direção

da conquista segura da eficiência dentro do bi-

nômio indiscutível, em consonância com o

ensino ideal e para o êxito da aprendizagem.

9.2 Novas Necessidades e Tendências

É de se reconhecer, a ocorrência de novas

aberturas nos ensinamentos do direito, ligados

aos campos dos novos direitos referentes: ao

conceito mais atualizado de sujeito/cidadão; di-

reito da criança e do adolescente; direito das mu-

lheres; direito dos idosos; direito dos indígenas;

da discriminação; do bio-direito, novo direito à

vida; direito do consumidor; direito ambiental

in genere; direitos relacionados com a

reprodução animal; o direito relativo às alterações

genéticas; os públicos virtuais na sociedade da

informação; o direito comunitário (da união de

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países – Comunidade Européia, Mercosul); o da

globalização e etc., que se refletem em razão das

novas necessidades e tendências.

Não restam dúvidas também, que diante do

irreversível avanço tecnológico a possibilitar

uma infra-estrutura, e com acentuada veloci-

dade no âmbito das informações, nos depara-

mos com uma autêntica reformulação didático/

pedagógica, compatível com o fluxo destas

necessidades, onde se mescla o tradicional com

a nova ordem motivadora, e que vá de encontro

com as expectativas e os novos padrões exigidos

pelas gerações, e que são alcançados por toda

esta tecnologia, anteriormente sob sonhos, e

hoje sob inequívoca realidade, assim como: o

sistema semi-presencial, a universidade virtual

e o ensino a distância, pois, a tecnologia digital,

a informatização e a difusão dos programas pes-

soais, as comunicações e sua difusão, a veloci-

dade das informações e os recursos propiciados

pela Internet, estão a provocar mudanças ex-

pressivas no processo de educação e na minis-

tração do conhecimento, com sérios reflexos

nas próprias mudanças comportamentais.

Como conseqüência de tudo, temos a união

das telecomunicações com a informática que

fez nascer a telemática, com um universo imen-

so de processos interativos à distância, a exem-

plo do videotexto, do banco de dados, do correio

eletrônico entre outros, pois a informática,

unindo-se ao vídeo, possibilita a videomática,

que compreende o vídeo interativo.

Assim, a informática, com ferramenta de

trabalho adequada, possibilita novas formas de

comunicação através ainda do: teletexto, video-

texto, hipertexto, hipermídia, integradas ao

sistema de multimídia, como um conjunto de

dispositivos que possibilitam a reprodução si-

multânea de textos, desenhos, sons e seqüências

audivisuais.

A universidade que se rotule de moderna

não pode ficar alheia a toda essa messe de mu-

danças, e a essa parafernália tecnológica, inclu-

sive criando e organizando seu próprio labora-

tório de meios e difusão, na utilização efetiva

da sofisticada tecnologia já preexistente e à

disposição.

Em conseqüência, dentro de uma lineari-

dade do crescimento universitário físico e de

novos paradigmas, estão nascendo os programas

de educação à distância, que acabarão tornan-

do-se uma nova realidade educacional, a uni-

versidade virtual extremamente acessível, dan-

do atenção mais eficiente ao fluxo da demanda,

e, sobretudo, mais competitiva e menos onerosa.

Para tanto, as universidades ou centros uni-

versitários a congregar expressiva comunidade

estudantil, e que pleiteiam erigir-se como mo-

dernos núcleos difusores de uma educação

moderna, serão forçosamente compelidos a de-

senvolver tecnologias de meios para propiciar um

aprendizado de todo eficiente, por uma sistema

presencial parcial, e para que haja uma iterativi-

dade mais proveitosa, mais intensa, levando-se

em conta a dificuldade de locomoção do aluno

nos maiores centros urbanos – local de trabalho,

moradia e escola –, e o real aproveitamento que

pode ter no âmbito de seu micro caseiro, hoje

mais ou menos universalizado como sonho

necessário de consumo.

É certo que tudo está a representar a solu-

ção pedagógica para a educação ter melhor qua-

lidade e eficiência, o que implicará seriamente

uma arrojada reestruturação dos planos de es-

tudos e seu desenvolvimento para o exercício

das novas profissões, e com tudo isso estando

enquadrado o próprio aperfeiçoamento do

estudo do Direito.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CALDAS AULETE, J. F. Dicionário contemporâneo dalíngua portuguesa. 3. ed. São Paulo: Melhoramentos.

CASARES, Julio. Diccionário ideológico de la lenguaespañola. 1. ed. Barcelona: Gustavo.

CATENACCI, Imerio Jorge. Introdución al derecho.Buenos Aires: Editorial Astrea, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicio-nário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: NovaFronteira.

LEVAGGI, Abelardo. Manual de historia del derechoargentino. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Depalma,1998, t. 1.

LIMA LOPES, Reinaldo José. O direito na história: liçõesintrodutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000.

MÁRQUEZ, Eduardo Martinez. Universidad auténtica.Buenos Aires: Delpa1ma.

MARTINS FERREIRA, Waldemar. História do direitobrasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951, t. 1.

VERGER, Jacques. Gentes del saber en la Europa de finalesde la edad media. Madrid: Complutense, 1999.

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R E S U M O

MÍDIA E DIREITO

Estela Cristina BonjardimPontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

Mestranda em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP/SP.Formada em Direito pelo Instituto Metodista de Ensino Superior de São Bernardo do Campo.

Formada em Jornalismo pelo IMES.Delegada de Polícia 3a classe lotada junto à Delegacia Seccional de Polícia de São Bernardo do Campo.

Professora Universitária desde 1995 junto à Universidade do Grande ABC – UniABC/São Caetano do Sule junto ao Instituto Municipal de Ensino Superior – IMES/São Caetano do Sul desde 1998.

O presente trabalho pretende mostrar como osmeios de comunicação de massa e a lei podemcoexistir de forma harmoniosa.

A B S T R A C T

This article wants to show how mass media andlaw can live together in peace.

1 SOBRE A LIBERDADE

Ao afirmar que “a razão é a origem de toda

a liberdade”, Santo Tomás de Aquino refere não

só que suas raízes estão no próprio sentimento

humano, como também reconhece o direito de

liberdade como fundamental, como o único di-

reito original que pertence a cada homem pela

simples razão de sua humanidade, donde fa-

cilmente se conclui que qualquer indivíduo sem

liberdade sente-se mutilado.

Esse é o motivo de se buscar a origem da

liberdade no próprio nascimento do homem,

como manifestação do instinto pessoal. “O ato

de desobediência de Adão e Eva rompeu o laço

primordial com a natureza e os transformou

em indivíduos. A desobediência foi o primeiro

ato de liberdade, o início da história humana.”1

A liberdade, porém, não se pode limitar aopensamento, já que está definitivamente vin-culada à liberdade de expressar o pensamento.Só se pode falar em liberdade quando podemoslivremente expressar aquilo que pensamos.

“Sem liberdade não existe moral, porque, não

existindo livre escolha entre o bem e o mal, en-

tre a devoção ao progresso comum e o espírito

de egoísmo, não existe responsabilidade. Sem

liberdade não existe sociedade verdadeira,

porque entre livres e escravos não pode existir

associação, mas somente domínio de uns sobre

os outros. A liberdade é sagrada como o indi-

víduo, cuja vida ela representa.”2

Como vimos, a liberdade guarda amplo con-ceito que, por sua amplitude, confunde-se com

1 Erich Fromm, Meu encontro com Marx e Freud, p. 156.2 Giuseppe Mazzini, Deveres do homem, p. 125. Apud Darcy Arruda Miranda, Comentários à Lei de Imprensa, v. 2.

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vários conceitos igualmente amplos, como ver-

dade, moral, direito e responsabilidade, além de

outros.

1.1 Liberdade de Pensamento

Sob qualquer enfoque, o conceito da livre

manifestação do pensamento representa um

princípio que paira sobre todos os demais em

termos de importância, não porque se relacione

com eles, mas porque os protege, sem que por

eles seja protegido. Assim, quando o governo

de um país declara que respeita os direitos hu-

manos, protege a sua população contra discri-

minação de ordem racial, de cor, de religião,

mas censura os meios de comunicação de massa,

anuncia muito, porém nada respeita, porque

suprime a liberdade de verificar se o que declara

é realmente verdadeiro. Por outro lado, se con-

fere à imprensa liberdade e independência,

naturalmente haverá a fiscalização da existência

e eventual violação das demais liberdades.

Essa importância foi retratada por Rui Barbosa,

ao afirmar que:

“De todas as liberdades, a do pensamento é a

maior e mais alta. Sem ela todas as demais

deixam mutilada a personalidade humana,

asfixiada a sociedade, entregue à corrupção o

governo do Estado”.3

Cercado de tanta grandeza, o princípio da

livre manifestação do pensamento se deixa en-

volver por outros conceitos, como verdade, mo-

ral, política, o que se acentua quando a liberdade

de pensamento se confunde com outros tipos

de liberdade. Quando se fala em sistemas polí-

ticos, por exemplo: quaisquer que sejam, a livre

manifestação do pensamento tem muito que ver

com eles, não podendo ser considerada menos

importante.

Um sistema político em que os detentores

do poder atribuam importância secundária à li-

vre expressão do pensamento não pode, com o

tempo, conviver pacificamente com seu próprio

povo. A liberdade é inata ao homem. Mais do

que um direito, é um sentimento incompatível

com qualquer sistema ou teoria que se repute

infalível e, por isso, não aprecie qualquer outra

alternativa que não sua supressão.

Marx, sentindo-se uma das vítimas da per-

seguição pelo poder, escreveu:

“A natureza de uma imprensa censurada é a mons-

truosidade disforme da falta de liberdade. O

governo ouve apenas a sua própria voz; ele sabe

que está ouvindo a sua própria voz; não obs-

tante, ele se fortalece na auto-ilusão de que está

ouvindo a voz do povo e exige também do povo

que mantenha essa auto-ilusão”.4

Se um indivíduo de pensamento discrepan-

te pode ser considerado inimigo do regime – o

que é a tônica dos sistemas políticos totalitários

– a liberdade de comunicação, nessa hipótese,

representa um perigo e uma preocupação.

Até o século XVIII, emitir opinião e divulgá-la

era praticamente privilégio dos reis e da Igreja

e, não se pode esquecer, a comunicação foi um

dos setores da vida humana mais violentamente

modificados pela revolução tecnológica.

3 Rui Barbosa, Ruínas de um governo, p. 118.4 João Féder, Crimes da comunicação social, p. 24.

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Afinal, é inegável que

“nos últimos 100 anos a humanidade aperfei-

çoou técnicas muito eficientes de expressão. O

pregador, o panfletário, o orador e os mestres

exercem sempre muita influência; mas, em

nossos dias, a página impressa do jornal, a pa-

lavra falada do comentarista de rádio, o filme

cinematográfico e a tela da TV tornaram-se ins-

trumentos de poder quase infinito. Não é difícil

compreender a tentação dos governos ou gru-

pos dentro dos Estados de distorcer ou explorar

tais instrumentos para fins particulares”.5

Nesse sentido, conclui Harold Lasky, em

seu livro A liberdade:

“A história ensina-nos que o caminho para a

tirania passa sempre pela estrada da supressão

da liberdade de pensamento e de expressão”.6

1.2 Liberdade de Comunicação

“Não há liberdade individual sem liberdade co-

letiva, pois não há liberdade concreta histórica

sem comunicação.” 7

A comunicação que se processa através dos

veículos de comunicação social é a mais legítima

forma de expressão do pensamento, já que tais

veículos – a imprensa, o rádio e, mais tarde, a

TV – representam a liberdade coletiva de um

povo, na medida em que são portadores de idéias

e mensagens múltiplas e divergentes, que

traduzem os sentimentos desse povo.

Antes do surgimento da imprensa, o ho-mem viveu períodos de rigorosa regulamenta-ção repressiva da manifestação do pensamen-to, fosse ela escrita ou não. Seu aparecimentofez com que, já no século XVI, os poderes civise religiosos se unissem para conter a propagaçãode idéias, daí surgindo a luta, até hoje nãoterminada, pela liberdade de comunicação.

A Inglaterra foi berço dessa luta, tendo, em1641, o Parlamento imposto a Carlos I que abo-lisse a chamada “Câmara Estrelada”, que exer-cia o controle sobre todas as publicações. Talmedida favoreceu o aparecimento de diversosjornais, embora ainda nenhum diário. Dois anosmais tarde, porém, a censura foi reativada,atendendo a reivindicação da Companhia dosLivreiros, até que em 1695 foi definitivamenteabolida na Inglaterra.

Tais fatos antecederam o primeiro ato dereconhecimento legal da livre manifestação dopensamento, inserido no artigo 12 da Declaraçãode Direitos do Estado da Virgínia, que previa: “Aliberdade de imprensa é um dos escudos maispoderosos da liberdade e que somente osgovernos despóticos podem entravar”. A Declara-ção data de 1776 e a Inglaterra já tinha, desde1712, seu primeiro jornal diário, o Daily Current,circulando livremente.

Em 1789 adveio a Declaração francesa, quedispôs, em seu artigo 11, que:

“a liberdade de comunicação dos pensamentos

e das opiniões é um dos direitos mais preciosos

do homem; portanto, todo homem pode falar,

escrever, imprimir livremente, devendo res-

ponder pelo abuso a essa liberdade nos casos

determinados pela lei”.

5 Derrick Sington, Liberdade de comunicação, p. 9.6 João Féder, op. cit., p. 25.7 Décio Pignatari, Informação, linguagem, comunicação, p. 105.

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No mesmo ano, surge a Constituição dos

Estados Unidos, preceituando, na sua Primeira

Emenda: “O Congresso não fará qualquer lei

que restrinja a liberdade de palavra ou de

imprensa”.

Tais acontecimentos, marcantes para o re-

conhecimento da liberdade de comunicação, não

levaram ao desaparecimento dos obstáculos. Na

própria França, Napoleão, quando assumiu o

comando da nação, declarou: “Se soltar o freio

da imprensa não ficarei três meses no poder”.

Ficou anos no poder, durante os quais a imprensa

não foi mais do que mera propaganda ditada pelo

Imperador. Foi a Revolução de 1848 que devolveu

a liberdade à imprensa francesa, mesmo assim,

não impedindo opressões futuras.

Tais opressões, é claro, não se limitaram à

França, mas atingiram a atividade da imprensa

em muitos outros países, onde os governos pro-

curavam se justificar invocando um suposto in-

teresse social maior que o da livre manifestação

do pensamento. Assim se deu com Stalin, Hitler,

Mussolini, Salazar, Franco e com Getúlio Var-

gas, entre outros.

Senão, vejamos. O artigo 125 da Constitui-

ção Russa de 1936 colocou em primeiro plano,

ou seja, acima da liberdade, “os interesses dos

trabalhadores” e o “fortalecimento do regime

socialista”. A Constituição de 1977 passou a

prescrever, no artigo 50:

“de acordo com os interesses do povo e a fim de

fortalecer e desenvolver o regime socialista, são

garantidas aos cidadãos da URSS as liberdades

de expressão, de imprensa, de reunião, de rea-

lização de comícios, desfiles e manifestações de

rua. O exercício das liberdades políticas é ga-

rantido pela concessão aos trabalhadores e às

suas organizações de edifícios públicos, ruas e

praças, pela ampla difusão da informação e pela

possibilidade de utilização da imprensa, rádio

e TV”.

Em 1978, por sua vez, a Constituição da

China dispunha, em seu artigo 45, que:

“Todos os cidadãos têm liberdade de expressão,

de correspondência, de imprensa, de reunião,

de associação, de desfile, de manifestação e de

greve. Têm também direito a recorrer à grande

competição de idéias, à livre expressão do

pensamento, aos grandes debates e a escrever

‘dazibao’ (jornais de parede)”.

Na doutrina fascista, Mussolini dizia, em

1928, que “o jornalismo italiano é livre porque

serve somente uma causa, um regime”. E con-

tinuava:

“Num regime totalitário, que surge de uma

revolução triunfante, a imprensa é um elemento

desse regime e uma força a serviço desse regime”.

No nazismo, o direito individual é conside-

rado apenas um elemento da comunidade,

submetido à ordem estabelecida pelo Führer de

acordo com a concepção de bem comum que

ele próprio, discricionariamente, determina.

Dietrich, Presidente da Federação dos Jornalis-

tas da Alemanha, dirigindo-se ao povo italiano

em uma saudação a Hitler durante uma visita a

Veneza, afirmou: “O nazismo se orgulha de ha-

ver libertado o povo alemão da liberdade de

imprensa”.

A Carta da Espanha de 1945 dizia que todo

cidadão tinha direito a exprimir livremente sua

idéias... desde que não atentassem contra os

princípios fundamentais do Estado. E a Cons-

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tituição portuguesa de 1933 proclamava a mes-

ma liberdade, mas previa “que uma lei repres-

siva podia impedir a perversão da opinião pública

enquanto força social e salvaguardar a integri-

dade moral do cidadão”.

A Constituição brasileira de 1937 foi menos

sutil ao dispor, incisivamente, no artigo 122, XV,

que:

“A lei pode prescrever, com o fim de garantir

a paz, a ordem e a segurança pública, a cen-

sura prévia da imprensa, do teatro, do cinema

e da radiodifusão, facultando à autoridade

competente proibir a circulação, a difusão ou

a representação”.

Fernando Morais assim se pronuncia sobre a

situação da imprensa em Cuba, em uma indicação

de que a lição de Napoleão foi proveitosa:

“Quando perguntei a um influente jornalista

cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele

deu uma gargalhada e respondeu: ‘Claro que

não’. E completou, com naturalidade: ‘Liber-

dade de imprensa é apenas um eufemismo bur-

guês. Só um idiota não é capaz de ver que a

imprensa está sempre a serviço de quem detém

o poder. E aqui em Cuba quem detém o poder é

o proletariado. Estamos todos os jornalista

cubanos, portanto, a serviço do proletariado’”.8

1.3 O Caminho da Liberdade

Terminada a II Guerra Mundial, represen-

tantes de quase todas as nações assinaram, em

dezembro de 1948, em Paris, durante a Assem-

bléia Geral das Nações Unidas, a Declaração

Universal dos Direitos do Homem, que prevê,

em seu artigo 19, com especial clareza:

“Todo homem tem direito a liberdade de ex-

pressão. Este direito inclui o de não ser moles-

tado por causa de suas opiniões, o de investigar

e receber informações e pareceres e o de difun-

di-los sem limitação de fronteiras, por qual-

quer meio de expressão”.

Daí em diante fortaleceu-se, cada vez mais,

a convicção geral de que a nenhuma forma de

governo é legítimo subtrair de seu povo o direito

de ser livremente informado.

Por causa dessa convicção, a Comissão

sobre Liberdade de Imprensa anunciou, em

Chicago:

“A liberdade da palavra e de imprensa está pró-

xima do significado central de toda a liberdade.

Onde os homens não podem comunicar

livremente seus pensamentos uns aos outros,

nenhuma outra liberdade está segura. Onde

existe liberdade de expressão, está sempre

presente o germe de uma sociedade livre e tem-se

à mão um meio para todas as extensões da

liberdade. A expressão livre, portanto, é única

entre as liberdades como protetora e promo-

tora das outras; a prova está em que, quando

um regime se encaminha para a autocracia, a

palavra e a imprensa figuram entre os primei-

ros objetos de restrição ou controle”.9

John Stuart Mill, em seu trabalho clássico

sobre o valor da liberdade, apresenta uma feliz

8 A ilha, p. 73.9 Charles Steinberg (Org.), Meios de comunicação de massa, p. 199.

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exposição sobre o respeito que deve merecer a

opinião individual, por mais solitária que se

apresente:

“Se toda a humanidade, com exceção de uma

só pessoa, tivesse certa opinião, apenas essa

pessoa tivesse opinião contrária, a humanidade

não teria mais razão em silenciá-la do que ela à

humanidade”.10

E João Féder nos explica os motivos:

“Primeiro porque, se silenciamos uma opinião,

podemos estar silenciando a verdade. Segundo,

mesmo uma opinião errada pode conter parte

da verdade que nos permita alcançá-la em sua

totalidade. Terceiro, mesmo se a verdade total

for a opinião geral, essa opinião não poderá

ser sustentada em bases racionais antes de ser

testada e discutida. Quarto, quando uma opinião

de domínio geral não é criticada de tempos em

tempos, perde sua vitalidade e efeito. E é preci-

samente sobre as opiniões predominantes que

a liberdade de comunicação exerce sua função.

Para dizer que a regra imposta é a melhor, para

aplaudir a sabedoria do rei e a bondade da rai-

nha, a liberdade seria dispensável”.11

2 O PAPEL DA MÍDIA NO SÉCULO XX

Ninguém pode duvidar de que a criação da

palavra alterou o destino dos homens. A palavra

impressa deu função visual à pontuação, com

que se preocuparam os compiladores de Sha-

kespeare, no século XIX. A impressão criou

dificuldades, pois tornou mais rígidas as regras

da linguagem, ao mesmo tempo em que trouxe

vantagens assombrosas, pois a memorizava e

difundia, coisas até então impossíveis, já que

não existiam o rádio e a TV. Como dizia Ed-

mund Carpenter, a palavra passou a pertencer

ao mundo objetivo, passou a ser vista.

Com a evolução que experimentou ao longo

de nosso século, a comunicação social estabe-

leceu, com o comportamento humano, vínculo

de incrível intimidade. Tanto é assim que

devemos admitir que

“todos nós dependemos dos produtos da co-

municação de massa para a grande maioria das

informações e diversão que recebemos em

nossa vida. É particularmente evidente que o

que sabemos sobre números e assuntos de inte-

resse público depende enormemente do que nos

dizem os veículos de comunicação. Somos

sempre influenciados pelo jornalismo e inca-

pazes de evitar esse fenômeno. Pouco podemos

ver nós mesmos. Os dias são muito curtos e o

mundo é enorme e muito complexo para

podermos cientificar-nos de tudo o que se passa

nos meandros do governo. O que pensamos

saber, na realidade, não sabemos, no sentido de

que saber representa experiência e observação”.12

Cada vez mais concordamos que, nos dias

presentes, aquilo que não penetrou o sistema

de notícias nem foi por ele divulgado é como se

realmente não tivesse acontecido. Na moderna

“aldeia global”, de fato, só tem valor aquilo que

nós conhecemos, e nós, a cada dia, limitamo-nos

10 Sobre a liberdade, p. 16.11 Op. cit., p. 31.12 William Rivers e Wilbur Schramm, Responsabilidade na comunicação de massa, p. 27.

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a conhecer apenas aquilo que a comunicação

social informa.

O que mais preocupa o mundo de hoje sãoos efeitos causados pela comunicação de massa,pela comunicação que alcança não a um ou auma centena, mas praticamente a todos e sobreeles exerce sua influência.

Afinal, a imprensa a partir da metade doséculo XV, o rádio a partir de 1920 e a TV a partirde 1928 tiveram sempre marcante presençajunto aos mais importantes acontecimentos quea História registra. É impossível negar o méritodos gazeteiros de antigamente (a palavrajornalista foi empregada pela primeira vez ape-nas em 1704, no Journal de Trévoux, na Fran-ça); contudo, também não se pode comparar oalcance que tinham suas idéias com o quepodem ter no presente.

Hoje, não apenas os jornais ultrapassaramas fronteiras nacionais, como ganharam, nessaexpansão, novos companheiros, com o revolu-cionário apogeu alcançado pelo rádio e pela TV.E é por termos alcançado essa posição queRichard Fagen, ao final de seu livro Política ecomunicação, lança a seguinte questão:

“Basicamente, a questão crucial é: quem con-

trolará os novos instrumentos de comunicação

e para que fins eles serão usados?”

Nos sistemas denominados “liberal” e de“responsabilidade social”, nos quais a livre ma-nifestação do pensamento, em maior ou menorescala, por curtos ou longos períodos de tempo,tem conseguido sobreviver, em que pese nãohaver terminado a batalha pela conquista da li-berdade, já se verifica, paralelamente, uma série

de preocupações, que só se pode encontrar nos

países em que as liberdades são concretamenteamparadas. Essas mesmas preocupações, via deregra, têm servido para justificar o cerceamentoda livre manifestação do pensamento.

Dentre as várias questões, surge a seguinte:a publicação de notícias sobre a vida particularfere o direito de privacidade do indivíduo? Ouseja, a livre manifestação do pensamento e aordem legal são inconciliáveis? É o que preten-demos verificar.

2.1 Liberdade de Imprensa e a Lei

Há como se regulamentar a liberdade de im-prensa sem feri-la? Tal indagação tem merecidoanálise aprofundada, particularmente nos Es-tados Unidos, onde os grandes choques entre aliberdade de informação e os direitos dos cida-dãos esbarram sempre na aplicação da PrimeiraEmenda Constitucional, que, como já mencio-nado, sustenta claramente: “O Congresso nãopromulgará nenhuma lei que reduza a liberdadede expressão e de imprensa”.

O raciocínio que se segue ao enunciado é oseguinte: se o Congresso não pode aprovar leique restrinja a liberdade de imprensa e se paraampliá-la a lei é desnecessária, não há como sefalar em lei. O fundamento de tal raciocínioestaria na incompatibilidade entre lei e liberda-de. Não parece, porém, ser a melhor conclusão,pois mesmo a liberdade deve ser juridicamenteregrada, já que não é o único direito do cidadão,sob pena de não se obter uma disciplina social.

“Não há dúvida que todas as liberdades estão

sujeitas à lei, sub lege libertas; porque todos

são suscetíveis de equívocos, desvios e excessos,

mercê dos quais podem se converter em privi-

légio de uns para opressão de outros.”13

13 A. Brunialti, La libertá nello Stato Moderno, p. 176. Apud João Féder, Crimes da comunicação social.

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Rui Barbosa, que era um apaixonado da im-

prensa, esperava vê-la consolidada como forma

de expressão do pensamento, livre das retalia-

ções pessoais, das quais não foi apenas teste-

munha, mas também vítima. A idéia era a de

que, a partir do momento em que cada um pas-

sasse a assinar o que escrevesse, responsabili-

zando-se pelo seu escrito, desapareceria o modo

afoito e apaixonado de escrever, típico da fase

dos panfletos ou das publicações anônimas.

Por essa razão, Rui Barbosa concordava não

haver qualquer demérito em se submeter a im-

prensa a uma lei. E dizia:

“A lei e a nossa consciência são os dois únicos

poderes humanos aos quais a nossa dignidade

profissional se inclina”.

O espírito de que a lei sufocaria a existência

da liberdade tem sido invocado apenas quando

a lei exorbita em sua função. Quando justa, a

lei é sempre bem aceita, ou pelo reconheci-

mento de sua necessidade, ou porque estamos

totalmente condicionados a viver cercados de

regras por todos os lados.

“Onde existe o social, aí existe o jurídico. Sendo

a liberdade um conceito social, é ela regulada

pelo Direito, que a abrange completamente e a

condiciona em certa bitola. Apanhando-a in

natura, como um fato, como liberdade natural,

transforma-a em liberdade jurídica. A liber-

dade de imprensa é uma forma de liberdade de

pensamento que consiste no direito de externar

e divulgar idéias, independentemente de cen-

sura prévia. A interferência do Estado na li-

berdade de imprensa não encontra justificativa

senão quando ela ultrapasse os limites de um

legítimo exercício e lese direitos alheios, sendo,

porém, de notar-se que o Estado não pode ja-

mais arrogar-se a decisão do que é falso e ver-

dadeiro, porque, como meio que é, sua missão

deve restringir-se apenas à de garante dos direitos

de cada cidadão.”14

Não podemos esquecer que quase todos ossistemas de comunicação de massa se sujeitama certas formas de controle básico, como modode proteger os indivíduos contra difamações,proteger autores e editores, preservar o Estado

de ações ameaçadoras e subversivas. E os pró-prios profissionais da imprensa concordam com

tais restrições, por ser necessário garantir quenão se difamem inocentes, não se sacrifique a

propriedade literária, não se desobedeça à mo-ralidade comum. “E ainda pode ser que con-

cordássemos com essas restrições porque nostenhamos acostumado a elas”.15

Podemos mesmo dizer que o objetivo pri-mordial da lei é estabelecer o equilíbrio entre a

liberdade e a responsabilidade. A responsa-bilidade dos profissionais da comunicação social

só pode ser efetiva se definida em lei. Negar essanecessidade corresponde a admitir que taisindivíduos sejam perfeitos, infalíveis, dom quenão só esses profissionais não possuem, comoa nenhum homem foi dado.

“A liberdade de imprensa tem três etapas a

destacar: a primeira, a do privilégio, aquela

em que só o governo podia possuir a tipografia

e só ele podia imprimir; a segunda fase, a da

censura prévia, quando o governo censurava

14 Aniz José Leão, Limites da liberdade de imprensa, p. 19.15 William Rivers e Wilbur Schramm, op. cit., p. 80.

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os escritos antes da sua publicação. E, atual-

mente, a terceira fase, atingida como manifes-

tação mais legítima da aspiração democrática

dos povos, a da censura a posteriori, isto é, da

responsabilidade depois da publicação do es-

crito, apurada não pela Polícia, mas pelo

Judiciário. Essa terceira fase significa a adoção

do regime da responsabilidade que todos os

verdadeiros jornalistas desejam, pois que não

querem injuriar, caluniar ou difamar. Não de-

sejam os jornalistas, conscientes de sua missão,

o abuso, o excesso, mas a responsabilidade pelo

que escrevem.”16

O jornalista, como qualquer outro ser hu-

mano, pode, de boa-fé, cometer erros que pro-

voquem prejuízos materiais ou morais a alguém.

Se de má-fé utiliza os meios de comunicação

social, transforma-os em um perigo à sociedade.

Todas as atividades devem ser exercidas tendo

como suporte normas jurídicas impostas pelo

superior interesse coletivo, e os veículos de

comunicação social não podem estar à margem

dessa realidade, por isso também devem se

submeter ao imperativo da lei, sob pena de se

violentar o princípio da livre manifestação do

pensamento que pretendem representar.

A lei há que ser justa, dando tratamento

justo às partes envolvidas em um confronto de

opinião.

Como bem arrematou Marx, em série de

artigos publicada no Rheinische Zeitung:

“Por que somente a liberdade de imprensa

deveria ser perfeita entre todas as imperfeições

das instituições humanas? Por que um sistema

de Estado imperfeito exigiria uma imprensa

perfeita?”.17

2.2 Liberdade de Informaçãonas Constituições

Diz-se que, quando morre a liberdade de

imprensa, nenhuma outra sobrevive. Essa ver-

dade, porém, não dispensa a manutenção da hie-

rarquia das liberdades, porque a violência contra

qualquer uma delas compromete seu conjunto

e desfigura a sociedade democrática.

A liberdade de imprensa sempre se refazapós longos ou curtos períodos de ditaduras,como observamos no Chile e na África do Sulatualmente. No caso da África do Sul, porém,ainda que a liberdade de imprensa sobrevivesse,o ódio racial, que elimina uma das liberdades,seria bastante e suficiente para quebrar a harmo-nia que uma comunidade livre exige.

Esses dois países, como ocorre em vários

outros, possuem textos constitucionais que

amparam a liberdade de imprensa, mas a prática

nega essa liberdade. Isso mostra que não é a lei,

em verdade, que assegura o exercício da liber-

dade de informar, e, menos ainda, o fato de es-

tarem inscritos nas Constituições os princípios

gerais dessa liberdade. A questão, mais profunda,

faz nascer entre os profissionais da comunicação

a seguinte reflexão: responsabilidade sem lei es-pecífica para os meios de comunicação ou umalegislação democrática atualizada?

Independentemente da existência ou não

de lei específica para os meios de comunicação,

todas as Constituições fixam os limites das li-

berdades públicas e individuais, e, muito espe-

cialmente, a de informação.

16 Freitas Nobre, Lei de Imprensa, p. 16.17 João Féder, op. cit., p. 54.

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O melhor termo parece ser liberdade de in-formação e não liberdade de imprensa, porque

o surgimento de novos veículos de comunicação

ampliou o campo da publicidade, através do

rádio, da TV, das agências noticiosas etc. No

exercício de tal liberdade, ninguém exclui a

interferência do Estado por meio do Poder

Judiciário, com o objetivo de defesa do interesse

coletivo, sem ferir os direitos inalienáveis do

cidadão.

Afinal,

“o verdadeiro sentido de função social da

imprensa envolve a defesa da vida privada dos

indivíduos, ou seja, seu direito à privacidade;

o direito das pessoas acusadas em quaisquer

meios de informação de responderem a tais

acusações, bem como garantir a defesa da so-

ciedade, segundo os princípios gerais de moral,

mas, ao mesmo tempo, assegurando ao jorna-

lista o direito de livre acesso às fontes de infor-

mação, e a escala completa de uma verdadeira

liberdade, limitada apenas contra os abusos de

seu exercício”.18

As Constituições são em geral muito claras

a respeito da liberdade de informação, mesmo

quando contam com uma legislação específica

sobre o tema. A Constituição francesa de ou-

tubro de 1958, com as modificações que sofreu

em 1960, 1962, 1963, 1974 e 1976, é um desses

exemplos. Seu preâmbulo consagra:

“O povo francês proclama solenemente sua vin-

culação aos direitos do homem e aos princípios

da soberania nacional, tais como foram defi-

nidos pela Declaração de 1789, confirmada e

complementada pelo preâmbulo da Consti-

tuição de 1946”.

Essa vinculação define o compromisso com

a liberdade de pensamento e de imprensa. No

entanto, a França possui uma legislação de im-

prensa que data de 1881 e tem inspirado nu-

merosos outros países.

As Constituições da França, Inglaterra e Es-

tados Unidos têm sido a fonte de quase todas

as outras. A norte-americana, de setembro de

1787, com 26 Emendas em mais de 200 anos,

dispensa legislação ordinária para os delitos de

imprensa.

2.3 A Importância da Lei Brasileira

Apesar das falhas e distorções de nossa Lei

de Imprensa ela foi, durante os vinte anos de

ditadura, o caminho mais suave para a defesa

dos profissionais da comunicação. Assim se

pronunciou a respeito a jornalista Célia Roma-

no, em reportagem para o jornal O Estado de S.

Paulo, de 08.02.1987:

“a mesma lei utilizada pelos militares para

censurar, serviu também, nestes vinte anos,

para que os advogados de defesa garantissem o

direito da informação”.

A atual Lei de Imprensa, que surgiu junta-

mente com a Lei de Segurança Nacional, em

fevereiro de 1967, foi discutida e votada no Con-

gresso Nacional, mas sua promulgação não lhe

dá característica democrática, tamanhas as pres-

sões do regime ditatorial e do Executivo.

18 Freitas Nobre, Imprensa e liberdade, p. 38.

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A liberdade de imprensa tem características

muito especiais, sui generis, porque, sendo uma

liberdade especial, é usufruída apenas pelos que

a possuem ou controlam.

Quando a nossa legislação de imprensa – a

Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967 – formal-

mente assegurou a livre manifestação do pen-

samento e a procura, o recebimento e a difusão

de informações ou idéias, por qualquer meio,

independentemente de censura, respondendo

cada um pelos abusos que cometesse, sabia-se

que seria difícil a manutenção desses princípios

no sistema ditatorial de então.

Embora resultante de uma proposta de go-

verno militar, porém, a Lei respondeu a uma

tendência que já se verificava em vários países,

que, mesmo não possuidores de uma lei de im-

prensa – como a Inglaterra, a Argentina e os

Estados Unidos –, já deparavam com a dificul-

dade do enquadramento desse tipo de infração

em sua legislação inadequada e desajustada.

A própria universalização do Direito da In-

formação é conseqüência dos princípios adota-

dos pelas nações, por meio da Declaração da

ONU de 1948, que prevê essa liberdade “sem li-

mitações de fronteiras” e “por qualquer meio de

expressão”, conforme seu artigo 19.

O Sindicato dos Jornalistas da França, por

ocasião de um Seminário realizado em fevereiro

de 1973, emitiu a seguinte Carta de Princípios:

“A liberdade de imprensa isoladamente não ga-

rante, em uma sociedade moderna, a informa-

ção aos cidadãos. Hoje se afirma uma neces-

sidade nova, uma exigência contemporânea: o

direito à informação. A multiplicidade das

fontes de informação, a potência e a diversi-

dade dos meios de comunicação, a necessidade

de opções individuais e coletivas implicam para

cada um a possibilidade de informar-se com-

pletamente dos fatos significativos da vida

política, social, econômica e cultural e o direito

de informação para todos”.

Verifica-se, hoje, que mesmo os países que

se dizem desprovidos de uma lei de imprensa

possuem decretos, portarias, legislação frag-

mentada que procuram consolidar as disposi-

ções legais. O ideal é que se preserve a liberdade

de imprensa, da impressão à circulação, da re-

dação à emissão da notícia, da filmagem à

transmissão, do desenho à exibição do cartaz,

consolidando toda a legislação que trata dessas

atividades em uma lei de informação ou de

imprensa que sirva à verdade e à credibilidade

da notícia.

2.4 Perspectivas

O poder dos veículos de informação, segun-

do alguns estudiosos, está formando uma nova

sociedade.

“A transformação que ora ocorre, especialmen-

te nos Estados Unidos, já está criando uma so-

ciedade cada dia mais diversa da predecessora

industrial. A sociedade pós-industrial está criando

uma sociedade tecnetrônica: sociedade molda-

da, social, cultural, psicológica e economica-

mente pelo impacto da tecnologia eletrônica,

em especial na área dos computadores e das

comunicações. O processo industrial já não é

mais a principal determinante da mudança

social, alternando costumes, a estrutura social

e os valores da sociedade”.19

19 Zbigniew Brzezinski, Entre duas eras, p. 24.

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Se nos preocupa a idéia de que os meios de

comunicação vão se tornando um novo fascínio

da sociedade, deve nos preocupar mais ainda a

constatação de que toda essa capacidade gera-

dora de normas, hábitos, atitudes e, por que não,

da maneira de agir de toda a humanidade se

concentra nas mãos de uns poucos.

O jornalista tem, nos dias atuais, maior po-

der de influenciar a realidade, o que, possivel-

mente, está criando, na opinião pública, a ima-

gem do jornalista como um novo senhor, todo

poderoso, que personifica o veículo de infor-

mação. E se, de sua parte, o Estado teme uma

demasiada liberdade, de outra, os profissionais

da comunicação empenham-se a fundo pela

conquista de uma liberdade concreta, livre de

ameaças, procurando consolidá-la independen-

temente do consentimento do poder.

Essa luta, já secular e de desfecho aparente-

mente distante, é, no fundo, não uma luta

classista ou de alguns segmentos da sociedade.

Quando a imprensa reclama irrestrita liberdade

de informar está defendendo, antes de tudo, um

direito que pertence ao povo, o de ser livremente

informado para, tudo sabendo, melhor decidir.

A moral, por sua vez, deixa de ser o ponto

prioritário dos estudiosos da comunicação so-

cial. Ao seu lado, já se examina, com crescente

interesse, o choque entre o direito de informar

e o direito de privacidade e a constante preocu-

pação com a difusão da violência através dos

meios de comunicação.

São mais atuais do que nunca as palavras

de Aldous Huxley em Regresso ao admirável

mundo novo, de 1959:

“A comunicação com as massas, em uma pala-

vra não é boa nem má; é simplesmente um po-

der e, como qualquer outro poder, pode ser

bem ou mal-empregado. Utilizados de uma

maneira, a imprensa, o rádio e o cinema são

imprescindíveis para a sobrevivência da demo-

cracia. Utilizados de modo diverso, encon-

tram-se entre as armas mais poderosas do

arsenal dos ditadores”.20

O que dizer então da informática, que pos-

sibilita a divulgação instantânea da sabedoria

reunida no mundo? Os efeitos da revolução

tecnológica que estamos vivendo são muito mais

profundos do que qualquer mudança social que

tenhamos experimentado no passado. Por isso,

muitos afirmarem que a automação, em si,

representa a maior das mudanças da história

da humanidade.

Em artigo publicado em 1978, Karl Hugo

Pruys já questionava:

“No ano 2000 os veículos de comunicação serão

para nós paraíso ou inferno? O aperfeiçoamen-

to dessa máquina de sonhos que é a TV unirá

os povos do mundo num diálogo internacional

ou levará ao total isolamento o ser humano?”21

O paraíso ou o inferno que os veículos re-

servam para o amanhã dependerão do grau de

liberdade de que disponham na difusão das

idéias, reacendendo o velho combate com os

detentores do poder. Para alguns estudiosos,

estes sempre exigirão que os meios de comuni-

cação social sejam submetidos a um controle, a

uma vigilância exercida em nome de certos prin-

20 Regresso ao admirável mundo novo, p. 63.21 João Féder, op. cit., p. 179.

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cípios, de defesa de uma ordem moral, da segu-

rança do Estado, do direito de privacidade e dahonra do indivíduo. Tal controle, defendem, ne-ga ao direito de informação a sua condição dedireito fundamental do homem, direito naturalde que é titular toda pessoa humana, em qual-quer tempo ou país.

Nessa medida, a luta pela livre manifestaçãodo pensamento, acreditam, será tão árdua no fu-turo como foi no passado. A não ser que se con-firme a previsão mais otimista de Alvin Toffler, deque a atual revolução superindustrial alterará tudoo que nos afeta e, ao contrário de criar um modelorepressivo, a tecnologia exigirá do homem quesaiba sobreviver ao exercício da plena liberdade,“num contexto de avanço científico espetacular,

elegante e, todavia, aterrorizante”.22

3 LIMITAÇÕES LEGAIS. RESTRIÇÕES.

CONTROLE JURISDICIONAL

DA LEGALIDADE

3.1 Função Social e Censurana História

Como poderoso instrumento de formação

da opinião pública, a imprensa tem o direito de

informar e o de exercer com liberdade sua

atividade. Por outro lado, tem o dever de fazê-lo

com respeito à verdade e aos direitos dos cida-

dão, desempenhando, na realidade, uma impor-

tante função social. Por esse motivo, a Cons-

tituição Federal, no capítulo dos direitos e ga-

rantias individuais, no inciso IX de seu artigo

5o, dispõe que é livre a expressão da atividade

intelectual, artística, científica e de comunica-

ção, independentemente de censura ou licença.

E é exatamente para preservar essa liberdade

de comunicação que também dispõe, no artigo

220, § 2o, que não se admitirá censura de natu-

reza política, ideológica ou artística.

A censura, pois, por ser incompatível com

a normalidade democrática, e para que a im-

prensa possa exercer com liberdade e segurança

sua função social, é repudiada pela Constituição

Federal. E a censura que se veda é aquela exer-

cida previamente pelos órgãos administrativos

ou mesmo pela lei, regulamentos ou atos

normativos, sob pretexto político, ideológico ou

artístico, como dispõe o último preceito consti-

tucional citado.

A censura inaceitável é aquela que surgiu

historicamente antes mesmo da edição do

primeiro jornal ou primeiro livro. Na Roma

antiga, os circuli (manuscritos de oposição

política ao governo) eram clandestinos, já que

apenas os órgãos oficiais tinham autorização

para serem distribuídos ao povo. A imprensa

foi duramente perseguida pela inquisição

católica. No século XVI, leis chegaram a proibir

a edição de qualquer livro sem a licença real.

Em seu “guia do perfeito censor”, o Papa

Alexandre VI chegou a afirmar, evidenciando

o interesse político de controle à liberdade de

pensamento e opinião, que “a censura é a arte

de descobrir nas obras literárias as intenções

malévolas”, que “o ideal é descobrir essas in-

tenções, mesmo que o escritor não as tenha”,

que “o censor deve estar persuadido de que cada

palavra duma obra contém uma alusão pérfida”,

que “ao encontrar tal alusão, o censor deve

cortar a frase” e que, “se a alusão pérfida não

for descoberta, o censor deve cortar a frase do

mesmo modo, porque as alusões dissimuladas

são as mais perigosas”.

22 Idem, p. 180.

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A censura política e ideológica sempre foi

utilizada pelos detentores do poder, ao longo

da história, como instrumento de controle das

liberdades dos povos. E sempre que prevaleceu,

a liberdade e a democracia foram suprimidas.

Cabe lembrar o que Marx afirmou sobre a

liberdade de imprensa:

“A imprensa livre é o olhar onipotente do povo,

a confiança personalizada do povo nele mesmo,

o vínculo articulado que une o indivíduo ao

Estado e ao mundo, a cultura incorporada que

transforma lutas materiais em lutas intelec-

tuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca

confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o

poder da confissão é o de redimir. A imprensa

livre é o espelho intelectual no qual o povo se

vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão

da sabedoria”.23

Não é à toa que a carta de princípios da InterAmerican Association dispõe que “sem liber-

dade de imprensa não há democracia”. Porém,

igualmente não há democracia sem respeito à

legalidade, principalmente no que se refere aos

princípios constitucionais.

3.2 Ordem Constitucionale Controle da Legalidade

No Brasil, a Constituição Federal assegura

à imprensa liberdade de informação jornalística

no artigo 220, § 1o, garantindo-lhe a necessária

liberdade para o desempenho de sua função

social. Contudo, a liberdade de informação

jornalística não é um direito absoluto, irrestrito

ou sem limites. É um direito que merece ga-

rantia, mas que deve ser limitado para que sejampreservados outros bens, valores e direitos tãorelevantes e necessários à democracia como aprópria liberdade de imprensa. Tanto é assimque a própria Constituição Federal prevê comodireitos e garantias invioláveis a liberdade, a vida,a segurança, a propriedade, a honra.

A liberdade de imprensa não é um direitosuperior a todos os demais e nem pode se imporde forma ilimitada, subjugando outros direitosque também sustentam a democracia.

Portanto, cabe à Constituição Federal, quegarante a liberdade, fixar seus limites em faceda existência e garantia dos demais direitostutelados pela ordem jurídica, buscando-se oequilíbrio, como quer Serrano Neves: “nemimprensa intocável nem restrição odiosa”.24 Ecomo a Carta Magna repudia a censura, qual-quer restrição à liberdade de informação jor-nalística deve ser extraída do próprio textoconstitucional.

Aí entra o Poder Judiciário, a quem a Cons-tituição dá o poder de controlar os abusos daliberdade de informação jornalística, bem comoos abusos da atuação de qualquer outra

instituição ou Poder, pelo exercício da jurisdi-ção. Assim, o controle da legalidade que pode

ser exercido sobre a liberdade de informaçãojornalística, no Brasil, compete, democratica-

mente, ao Poder Judiciário.

3.3 Controle Jurisdicionalda Legalidade

Em um primeiro momento, cabe à própria

imprensa fazer o seu controle, a partir de uma

23 Karl Marx, Liberdade de imprensa, p. 42.24 Direito de imprensa, p. 24.

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postura ética e responsável, inspirada na lega-

lidade e evitando os abusos.

Em 1993, demonstrando consciência da fun-

ção social da imprensa, o jornal Folha de S. Paulo,

em editorial denominado Imprensa questiona-

da, assim se expressou:

“Na atual conjuntura, qualquer denúncia,

mesmo que desacompanhada de provas, assu-

me ares de verdade inquestionável. A imprensa,

por isso mesmo, é obrigada a redobrar os cui-

dados na averiguação dos fatos que, de resto,

jamais podem ser ignorados pelo bom jorna-

lismo. O questionamento que começa a surgir

agora sobre o comportamento dos meios de

comunicação é saudável. Seria imperdoável

que o jornalismo, a partir da discutível quali-

ficação de ‘quarto poder’, se sentisse acima do

bem e do mal. Quando questionada, a impren-

sa se obriga, mais ainda do que em momentos

menos conturbados, a cercar o seu noticiário

de todas as cautelas, para não atingir a honra

de inocentes. Se esse comportamento for rigo-

rosamente seguido por todos os meios de co-

municação, todos eles ganharão e, acima de

tudo, se beneficiará o leitor”.25

A manutenção da ordem democrática deve

ser perseguida pela imprensa como forma de

manter o seu livre desempenho, com a cons-

ciência de que a liberdade de informação jor-

nalística não pode ultrapassar os limites da le-

galidade, ameaçando e lesando direitos. Cabe a

ela, pois, coibir os abusos que ameacem a lega-

lidade e os princípios democráticos, evitando

atitudes lesivas ao patrimônio moral, à imagem

ou a quaisquer outros direitos do cidadão.

A função primordial do Poder Judiciário é

a de compor conflitos de interesses em cada caso

concreto, pela aplicação da lei. Assim, quando

surge conflito de interesses envolvendo, de um

lado, a imprensa e sua liberdade de informação

jornalística e, de outro, o cidadão e seus direitos

civis e constitucionais, cabe ao Poder Judiciário

compor o conflito, impondo, se necessário, li-

mites à atuação da imprensa em prol dos direitos

do cidadão eventualmente lesados ou ameaça-

dos de lesão. E nenhum outro Poder do Estado

pode impor limites à atuação da liberdade de

atuação dos veículos de comunicação, de acordo

com o artigo 5o, XXXV, da CF, quando dispõe

que cabe ao Poder Judiciário o monopólio do

controle jurisdicional.

Desse modo, qualquer restrição ou limita-

ção imposta aos meios de comunicação pelos

Poderes Legislativo ou Executivo, contrariando

as normas constitucionais, constitui inaceitável

censura. Aliás, dispõe o artigo 220 da CF que a

lei não poderá de forma alguma embaraçar a

liberdade de informação jornalística.

Sendo assim, o Executivo, o Legislativo e o

próprio Judiciário não podem editar provimen-

tos, decretos, portarias, quaisquer atos norma-

tivos para impor restrição à atividade da impren-

sa. Apenas o Poder Judiciário pode e deve coibir

abusos praticados pela imprensa, quando

provocado por interessado, no curso de um pro-

cesso legal, observando os limites impostos pela

lei e pelo próprio texto constitucional.

Não se trata, em hipótese alguma, portanto,

do exercício de um poder arbitrário, de atuação

de censura, mas, sim, da atuação de um Poder

chamado a compor um conflito concreto de inte-

resses, dentro da ordem constitucional e demo-

25 Jornal Folha de São Paulo, São Paulo 11 de nov. 1993. Caderno 2, p. 2.

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crática, que assegura à imprensa todas as garantias

de defesa, do duplo grau de jurisdição e de uma

decisão embasada em princípios constitucionais.

São vários os princípios que norteiam o

controle jurisdicional da atividade da imprensa:

• Princípio da proteção judiciária: prevê o

artigo 5o, XXXV, da CF que não se pode

excluir da apreciação do Poder Judiciário

qualquer lesão ou ameaça a direito. Por

meio dele, portanto, cabe ao Poder Ju-

diciário intervir até mesmo na imprensa

para evitar a prática de qualquer ato que

viole ou lese direitos; basta, pois, uma

ameaça a direito para que o Poder Ju-

diciário possa ser provocado e, acionado,

possa intervir, constitucionalmente, para

afastar tal ameaça, inclusive proibindo

publicações jornalísticas, edições de

livros e quaisquer outras formas de co-

municação escrita ou falada, sem que tal

atividade se revista de “censura”.

• Princípio do direito de ação: consagrado

no artigo 5o, XXXV, da CF, confere a to-

do cidadão o direito público e subjetivo

de invocar a atividade jurisdicional por

ocasião de qualquer lesão ou ameaça a

direito. Assim, qualquer pessoa que

tenha um direito sem lesado ou amea-

çado pela atividade da imprensa poderá

invocar a tutela jurisdicional do Poder

Judiciário, que deverá prestar a tutela

que dite os limites para o exercício da

liberdade de informação jornalística no

caso concreto.

• Princípio do direito de defesa: assegurado

no artigo 5o, LV, CF, é uma verdadeira

garantia constitucional à liberdade de

informação jornalística, na medida em que

confere à empresa jornalística even-

tualmente atingida por restrição imposta

pelo Poder Judiciário a faculdade de re-

correr a juízo para se defender, legal e pro-

cessualmente, da intervenção jurisdicional.

• Princípio do duplo grau de jurisdição:

sempre que um Juiz ou Tribunal toma

uma decisão, há possibilidade do reexa-

me dela pelos órgãos jurisdicionais de

outra instância de julgamento. Assim,

sempre que qualquer órgão judicial im-

põe restrições ou limites à imprensa,

pode o veículo atingido requerer o ree-

xame da decisão pelo órgão de instância

superior.

• Princípio do devido processo legal: previsto

no artigo 5o, LIV, CF, garante aos veículos

de comunicação que, para exercer o

controle jurisdicional da legalidade, o Poder

Judiciário deve agir sempre de acordo com

as normas e princípios processuais vigentes,

não cabendo a ele impor limites ou restrições

de modo discricionário, arbitrário, ou

espontaneamente.

• Princípio da iniciativa da parte: consa-

grado no artigo 2o do CPC, garante que

o Poder Judiciário, para intervir de qual-

quer forma na atividade da imprensa, não

pode agir de ofício, devendo fazê-lo ape-

nas quando provocado pelo interessado,

a saber, alguém que alegue que um di-

reito seu está sendo ameaçado ou lesado

por determinada publicação ou edição

jornalística.

Como se vê, não há qualquer semelhança

entre censura e controle jurisdicional da legali-

dade, já que a primeira é arbitrária e inconsti-

tucional e a segunda apenas atinge a liberdade

de informação jornalística dentro dos limites e

forma estabelecidos na Constituição. A im-

prensa, portanto, é inatingível pela censura, mas

não é imune ao controle jurisdicional, pois não

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pode, impunemente e sem nenhum controle,

ameaçar e lesar direitos, violando, com isso, a

ordem constitucional e democrática.

Assim é que, se um veículo de comunicação

está prestes a publicar matéria jornalística rela-

cionada com determinada pessoa, que se sente

atingida ou ameaçada em sua honra ou imagem –

direitos garantidos pela Constituição Federal –,

se presentes estão o fumus boni iuris, pela exis-

tência de elementos que comprovem a verossi-

milhança do alegado, e o periculum in mora,

pela probabilidade de ocorrência de um dano

de difícil reparação, o Poder Judiciário deve agir,

ainda que de forma precária, concedendo a

medida cautelar pleiteada, com a conseqüente

suspensão da publicação até que, no processo

de conhecimento, depois do pleno exame das

alegações, seja possível decidir sobre sua

procedência ou improcedência.

É importante que a opinião pública saiba que

o controle da legalidade, exercido exclusivamente

pelo Poder Judiciário, é imprescindível para a

manutenção da democracia, tanto quanto o é para

a garantia da liberdade de informação jornalística.

Como afirmava o poeta Bertolt Brecht,

“a justiça é o pão do povo, às vezes bastante, às

vezes pouca; às vezes de bom gosto, às vezes de

gosto ruim; quando o pão é pouco, há fome, e

quando o pão é ruim, há descontentamento”.

“Para que o Poder Judiciário possa servir ao

povo o pão diário da justiça, sem tardança,

com gosto bom, com sabedoria, em abundân-

cia e saudável, há de ser constitucionalmente

forte e independente, há de ser compreendido

e respeitado, há de ser prestigiado e acatado

em suas decisões jurisdicionais, prolatadas de

acordo com o sistema democrático e com os

princípios do Estado de Direito.”26

O que não se pode é confundir o livre exer-cício do direito de crítica e de opinião, que édemocrático e necessário, com a injúria, o des-respeito ao cidadão, a deliberada intenção deofender, como se o direito de informação jor-nalística fosse absoluto e superior a todos osdemais também constitucionalmente assegura-dos. Para isso, o controle jurisdicional da legali-dade é medida extremamente salutar.

4 JORNALISMO RESPONSÁVEL

E ALGUMAS QUESTÕES ÉTICAS

4.1 A Primeira EmendaNorte-Americana e o JornalResponsável

A Primeira Emenda assegura a liberdade deexpressão, ou de informação, sem indicar qual-quer restrição ao seu pleno exercício, aparen-temente protegendo tanto o discurso irrespon-sável quanto o responsável, o que leva a crerque não pode ser o único alicerce do jornalismoresponsável, mesmo porque não é a lei quedetermina o que é certo ou errado, mas apenasproclama o que já é reconhecido como tal.

É possível se ter uma imprensa ao mesmotempo livre e responsável, desde que compreendaseu próprio papel e o desempenhe bem. A imprensaindependente, que é garantia da democracia, nãodispensa que se empreendam esforços sérios nosentido de definir suas responsabilidades.

E as raízes da responsabilidade estão no fatode serem os jornalistas seres individuais e sociaiscujas ações inevitavelmente afetam os demais.

26 José Henrique Rodrigues Torres, A censura à imprensa e o controle jurisdicional da legalidade, RT 705, p. 32.

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“O próprio fato de que temos a capacidade ou

o poder de influenciar ou sermos influenciados

pelos outros, de modo profundo, para o bem

ou para o mal, exige que nos comportemos de

modo reciprocamente responsável, para que a

própria sociedade subsista.”27

Existe um velho ditado, entre os comuni-

cadores norte-americanos, que afirma que uma

imprensa verdadeiramente livre é aquela que é

livre para deixar de lado o seu dever de ser res-

ponsável. Para o conhecido jornalista Vermont

Royster, “a responsabilidade deve estar na cons-

ciência de cada um de nós”,28 o que mostra que

as questões de responsabilidade se reduzem a

questões de consciência, que são irrelevantes

para o ideal de uma imprensa livre, daí por que

dizer que não há conexão necessária entre a

liberdade e a responsabilidade da imprensa.

Uma imprensa livre não se pode afastar do

bem-estar da comunidade, como reconheceu a

Associação Americana de Editores de Jornais no

início desse século, ao promulgar os seus “Câ-

nones do Jornalismo”:

“a liberdade de imprensa quer dizer liberdade

de todas as obrigações, exceto a de se manter

fiel ao interesse público”.

A Primeira Emenda, portanto, é o compro-

misso do Estado para com a liberdade de expressão,

cabendo a ele, Estado, criar incentivos para o

jornalismo responsável, a partir da definição do

que seja “interesse público”, resultando daí o

fortalecimento do direito à informação.

Não se pode esquecer do consenso que exis-te em torno das instituições ou pessoas cujopoder afeta a vida de outras, no sentido de quetêm obrigações de utilizar esse poder de maneiraa atender aos interesses dos que são por elasatingidos, daí a necessidade da responsabilidadena atividade jornalística.

4.2 O Direito de Saber

Outra questão ética bastante discutida se refere

à exigência dos jornalistas de acesso total à

informação, sob a alegação de que o público tem

o direito de saber. Os que são contrários a esse

amplo acesso defendem que o “direito de saber”,

muitas vezes, mascara o verdadeiro interesse dos

jornalistas, que é o de vender informações para

obter lucro e, além disso, que o público não precisa

ter acesso a certas informações.

Não se pode ignorar que os veículos decomunicação realmente “vendem” informaçõesatrás de audiência e lucro comercial. Por outro

lado, os que pensam em restringir a distribuiçãode informações podem estar defendendo seus

próprios interesses, facilitando o processo de-cisório para os líderes, entre os quais costumam

se incluir. O ideal é que, em quaisquer circuns-tâncias, o “direito de saber” do povo seja mais

amplo do que limitado, encarado não como umprivilégio, mas como uma necessidade para o

exercício da democracia.

“A distribuição da informação pela mídia é,

em um sentido bastante real, uma realocação

do poder. Caso seja feita de um modo amplo,

ela reduz o poder de uma minoria ao colocar a

informação nas mãos de todos aqueles que

27 Louis W. Hodges, Definindo a responsabilidade da imprensa, in Deni Elliot (org.), Jornalismo versus privacidade, p. 19.28 Theodore L. Glasser, A responsabilidade da imprensa e os valores da primeira emenda, p. 86.

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estão interessados em transformar o monopó-

lio do poder em algo difícil de manter. Os

monopólios do poder são um anátema em uma

sociedade participativa.”29

4.3 A Questão da Honestidadee do Uso de Métodos Ilícitosna Obtenção da Informação

Edwin Newman é um jornalista da RedeNBC News e, em artigo intitulado A responsabi-lidade do jornalista, colocou a seguinte questão:

“Qual o nosso grau de honestidade? Não muito

baixo, eu acho. Mas é necessário compreender

que a determinação do que seja uma notícia

nem sempre envolve considerações de hones-

tidade (...) Obviamente, não se deve permitir

que sejamos usados ou manipulados, embora

isso também possa às vezes acontecer. Porém,

os problemas são mais complexos”.30

Não se pode esquecer que a notícia é um ne-gócio dos mais competitivos. As empresasjornalísticas existem para gerar lucros, ou fazerparte de uma estrutura em que outros setoresgeram lucro, como é o caso das redes de televisão.Essa competição certamente provoca abusos, podelevar à divulgação apressada de informações que,mais tarde, acabam sendo desmentidas,resultando, invariavelmente, em sensacionalismo.

O autor ilustra a situação com o seguinteexemplo: em 1979, um alarma nuclear emThree Mile Island levou às manchetes de umpoderoso jornal americano a seguinte chamada:

“Nuvem nuclear se espalha”. No segundo dia,

a manchete era “Vazamento escapa ao contro-

le”. No terceiro, era: “Corrida contra o desas-

tre nuclear”. E no quarto: “Situação melhora”,

o que indica a prática de “um jornalismo barato,

que explora o medo. Para a maioria das pessoas

este tipo de coisa é fácil de reconhecer”.31

Outro tema que merece atenção em di-

versos códigos de ética jornalística é a obtenção

de informações por meio de métodos conside-

rados “ilícitos”, preocupação presente em cerca

de 30% dos códigos. O julgamento do que seja

um método ilícito de obtenção de informação

comporta uma certa dose de subjetividade.

Eventualmente, jornalistas têm se apresentado

omitindo sua atividade profissional, para pode-

rem investigar aspectos relevantes de determi-

nado assunto. Nessa medida, obtêm gravações

e fotografias clandestinas e omitem dados sobre

sua própria identidade para a revelação de fatos

que, de outra forma, talvez não chegassem ao

conhecimento do público.

“Há dúvidas sobre tal comportamento, mas

também há perguntas. A realidade transparece

fulgurante pela informação das fontes oficiais?

O jornalismo deveria limitar-se às declarações

das fontes? É necessário desconfiar das palavras

das fontes? Seria pertinente ouvir várias e, de

todas, desconfiar, ou fazer um mosaico de

versões às quais seriam anexados documentos

e imagens? (...) E, neste caso, quem forneceria

os dados e documentos? Um funcionário de

algum organismo que manteria sigilo, confor-

me prevê a maioria dos códigos?”32

29 John C. Merril, Três teorias sobre a responsabilidade da imprensa e as vantagens do individualismo pluralístico, p. 71.30 Edwin Newman, A responsabilidade do jornalista, in Robert Schmuhl (org.), As responsabilidades do jornalismo,

p. 33.31 Idem, p. 34.32 Francisco José Karam, Jornalismo, ética e liberdade, p. 102.

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São muitas as questões que surgem nesse

ponto. Pela sua dimensão pública, o jornalismo

exige que, na informação, esteja presente a

pluralidade de versões e a maior transparência

possível da realidade, e que a informação vá além

de poucas declarações ou documentos parciais.

“Muitas vezes, a insistência do profissional,

considerada por fontes como invasão, pode ser

tida como indispensável no sentido de proteger

a cidadania e garantir que o público diverso

não seja logrado somente pelas declarações

oficiais ou submetidas ao interesse particu-

larizado de empresas, governo, organismos

públicos e privados ou interesse pessoal no caso

de assunto de menor abrangência, mas com

relevância social.”33

De acordo com o enfoque, portanto, o jor-

nalista pode ser considerado um invasor da

privacidade alheia, um “chato insistente”, que

interfere em assuntos particulares, ou um pro-

fissional extraordinário, merecedor de prêmios.

Em muitos casos, é certo, se olharmos bem no

centro da produção de seu trabalho, encontra-

remos o emprego de métodos pouco claros para

a obtenção dessas informações, que vão, hipo-

teticamente, desde a gravação de conversas

telefônicas de ministros e chefes de Estado, à

fotografia de articulações clandestinas entre crime

e governo, entre máfia e Igreja.

“Isto, submetido à ética individual, acaba

tornando-se um pêndulo que balançará não de

acordo com o tempo, mas de acordo com quem

tiver mais força para puxá-lo para seu lado.”34

O ideal é que haja políticas públicas para ainformação, com acesso, discussão e controlessociais sobre ela, caminhos que contribuemeficazmente para a concretização da liberdadee da responsabilidade da atividade jornalística.

“A produção de saber restrita a uma área ou a

concentração crescente de poder devem ter seus

limites ultrapassados pelo trabalho jornalístico

de mostrar, em escala global e imediata, o mo-

vimento de todos estes setores em que se movem

e desdobram cotidianamente a realidade, as

pessoas, os fatos, as versões (...) e sua produção

e resultado, com conseqüências nos próprios

saber e poder.”35

4.4 Outras Questões Éticas:o Poder e a Privacidade,o Dever de Denúncia,a Violência e a Qualidade

Em 1920, dizia Rui Barbosa, em Confe-rência pronunciada na Bahia:

“O poder não é um antro: é um tablado. A auto-

ridade não é uma capa, mas um farol. A po-

lítica não é uma maçonaria, e sim uma liça.

Queiram ou não queiram, os que se consagram

à vida pública até à sua vida particular deram

paredes de vidro.(...) Para a Nação não há se-

gredos; na sua administração não se toleram

escaninhos; no procedimento dos seus servi-

dores não cabe mistério”.

Qualquer sociedade democrática exige har-

monia entre conceitos bastante antagônicos e

33 Idem, p. 103.34 Idem.35 Idem, p. 107.

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igualmente importantes: de um lado, a liberdade

de imprensa e o direito à informação e, de outro,

o direito à vida privada e o dever de respeitar a

intimidade do ser humano. A dificuldade em se

equilibrar os pratos nasce da relação unilateral que

tradicionalmente se estabelece no tratamento

desses dois direitos humanos fundamentais,

quando, na verdade, o que reclamam é justamente

a adoção de mecanismos de harmonização.

Se qualquer ação humana tivesse de ser sub-

metida à mais ampla publicidade, não se poderia

falar em liberdade. De fato, um dos grandes de-

safios do nosso tempo é a preservação do âmbito

ideal de privacidade. Nenhuma pessoa é verda-

deiramente livre se não merecer a tutela da in-

violabilidade de sua privacidade.

Como trataremos adiante, até mesmo pre-

sumíveis criminosos – porque não passam de

presumíveis enquanto não houver condenação

definitiva – têm direito à privacidade, que deve

protegê-los das investidas dos meios de comu-

nicação em divulgar fatos de sua vida íntima e

de seus familiares. E quando se fala em direito

à privacidade, invariavelmente surge a questão

das ações praticadas por pessoas públicas, que

têm transcendência pública, como é o caso, por

exemplo, dos governantes.

“O leitor tem o direito de conhecer o tipo de

filosofia ou ideologia defendida por um po-

lítico, sua competência ou incompetência, sua

honestidade ou desonestidade, sua visão do

mundo, seu passado. Analogamente, os as-

pectos da vida privada que, de modo claro e

direto, possam afetar o interesse público, não

devem ser omitidos em nome do direito à

privacidade.(...) Se assim não fosse, tudo o que

teríamos para ler na imprensa seriam amon-

toados de declarações emitidas pelas próprias

fontes interessadas.”36

Não se deve invocar o direito à privacidade

para protestar contra a divulgação de informa-

ções verdadeiras que registram atitudes incom-

patíveis com a dignidade da função pública, já

que se espera decoro das pessoas no exercício

do poder. O que divide o direito à informação

do direito à privacidade é o bem comum, o

interesse público.

“O relacionamento entre governantes e a mídia

não pode ficar condicionado aos esquemas de um

show. As figuras públicas precisam superar a

tentação do espetáculo. E os meios de comuni-

cação social, independentemente do virtuosismo

dos atores, não podem ser pautados pelo brilho

da passarela política. Por isso, é cada vez mais

importante debater e aprofundar os contornos

éticos que envolvem o mundo da informação.”37

4.4.1 Dever de Denúncia

“A imprensa tem relevante papel de denúncia, de

contraponto. Essa função, no entanto, nada tem

a ver com a curiosidade agressiva, com o afã de

escândalo ou com atitudes de retaliação.”38

O dever de denúncia, que é inerente à

atividade jornalística e extremamente salutar ao

exercício da democracia, não se pode confundir

com sensacionalismo, que transforma fatos em

instrumentos de espetáculo.

36 Carlos Alberto Di Franco, Jornalismo, ética e qualidade, p. 77.37 Idem, p. 78.38 Idem, p. 29.

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Alguns setores da mídia exploram a miséria

humana, convertendo-a em bandeira de marke-ting. Era o que ocorria, certamente, no extinto (?)

Aqui Agora, do SBT, que, em um dos inúmeros

exemplos que poderíamos citar, ao mostrar

imagens do suicídio de uma jovem, precedidas de

inúmeras chamadas, afrontou as balizas do Código

de Ética da Associação Brasileira das Emissoras de

Rádio e Televisão (ABERT). Não estamos livres,

porém, desse lamentável tipo de jornalismo,

ultimamente bastante exercitado por vários

programas da TV brasileira, na acirrada disputa

por pontos de audiência.

A pretexto de mostrar “a vida como ela é”,

arma-se um desfile de horrores, daquilo que a

natureza humana é capaz de produzir de mais

sórdido. E o espectador, verdadeiro refém dessa

leviandade eletrônica, mergulha na mais absoluta

alienação e perplexidade, acompanhando a

disputa que travam as diversas emissoras de TV,

que se superam, a cada novo dia, especializando-se

na arte de explorar as tragédias humanas.

“À imprensa de qualidade”, conclui Carlos

Alberto Di Franco, “cabe o dever da denúncia.

Ao jornalismo de espetáculo, dominado pela

obsessão mercadológica, restará o julgamento

da opinião pública”.39

4.4.2 Mídia e Violência

No início da década de 1990, a Escola de

Comunicação e Artes da Universidade de São

Paulo realizou, em conjunto com a Revista Veja,

uma ampla pesquisa sobre a televisão brasileira,

que visava contabilizar todas as cenas e diálogos

que, dentro da programação de uma semana das

principais redes, se referissem a sexo e violência.

Naquela semana, concluiu-se, foram dis-

parados 1.940 tiros na TV brasileira, houve 886

explosões, 651 brigas, 1.145 cenas de nudez,

188 referências ou imitações a trejeitos

homossexuais e 72 termos chulos.

Nos Estados Unidos, país reconhecidamen-

te democrático, existe lei federal proibindo por-

nografia e programas obscenos, o Communi-

cations Act. As próprias emissoras também têm

seus códigos internos, que são rigorosamente

observados. Tudo a refletir o nível de respon-

sabilidade social da mídia eletrônica daquele

país. Por aqui, no entanto, qualquer tentativa

de normatização logo soa como voz dos setores

conservadores, que pretenderiam cercear a

liberdade de expressão.

Para o jornalista José Castello,

“torpedeados os valores, é todo um universo

que desmorona. Tornamo-nos, todos, homens

sem pudor. Não são apenas os marginais

organizados em falanges para o que der e vier

que se deixam dirigir por essa razão cínica”.40

Na verdade, o sistemático bombardeio de

sexo e violência que invade nossas casas a cada

dia e banaliza esses conceitos gera uma ver-

dadeira moral da delinqüência.

4.4.3 A Qualidade

Como o direito à informação é, inegavel-

mente, um requisito da democracia. A opinião

pública sabe que necessita de um jornalismo

investigativo, isento, ancorado na liberdade de

expressão e no direito à informação, como for-

39 Carlos Alberto Di Franco, op. cit., p. 31.40 Idem, p. 40.

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ma de banir a cultura do acobertamento, de-

nunciar e pôr fim a tudo o que não sirva à demo-

cracia. Dessa forma, dependemos da liberdadee do nível técnico e ético da imprensa, depen-demos de uma postura responsável e que busque,acima de tudo, a qualidade.

Como lembrou Cláudio Abramo,

“a ética do jornalista é a ética do cidadão. O

que o jornalista não deve fazer que o cidadão

comum não deva fazer? O cidadão não pode

trair a palavra dada, não pode abusar da con-

fiança do outro, não pode mentir”.

A imprensa não é feita por super-homens.

É feita por seres humanos, falíveis como todos

nós. Apenas esperamos que seja conduzida por

homens de bem.

5 LIMITES DO DIREITO

DE INFORMAÇÃO

Como vimos, o direito de informação, ape-

sar de amplo, constitucional e fundamental àdemocracia, tem os seus limites. E nem semprea demarcação desses limites é fácil, já que seconfrontam o direito da coletividade à infor-mação e aquela esfera do indivíduo que o pú-blico, e conseqüentemente a imprensa devemrespeitar.

Dadas a freqüência e a intensidade dos con-flitos de interesse, nos dias de hoje acentua-se

a tendência de definição de uma área de inti-

midade ou reserva que não deve ser liberada ao

público sem o consentimento do interessado.

Assim é que o direito de informação deve

ser o mais amplo possível, enquanto não colidir

com interesses considerados igualmente

fundamentais. Afinal, o interesse da coletividade

em ser informada impõe a si mesmo um limite,

quando a divulgação de fatos venha a destruir a

pessoa humana em sua dignidade.

“O direito à informação existe em função do

desenvolvimento da personalidade e não para

a sua destruição.”41

Em 1960, o Prof. Willian Prosser, da Fa-

culdade de Direito da Universidade da Califór-

nia, escreveu trabalho intitulado Privacy, divul-

gado na California Law Review, no qual distin-

guiu em quatro categorias diversas os ataques à

intimidade da vida privada de forma a reclamar

quatro tipos de reação:

1) proteção do indivíduo contra a intrusão

no seu retiro ou solidão ou em assuntos

privados;

2) proibição de divulgar ao público fatos

privados, especialmente os que podem

causar algum embaraço ao interessado;

3) reconhecimento da ilegalidade de publi-

cações que exponham as pessoas sob uma

falsa imagem, mesmo não difamatória;

4) proteção contra as apropriações, por ter-

ceiros, de certos elementos da personali-

dade individual com ânimo de lucro, tendo

como caso freqüente a apropriação do

nome ou da imagem ou de ambos a uma

só vez sem consentimento do interessado

e para anunciar algum produto.

Uma decisão do começo deste século, pro-

ferida pelo Tribunal da Geórgia, concluiu que

o direito à intimidade é limitado pelo direito de

41 René Ariel Dotti, Proteção da vida privada e liberdade de informação, p. 177.

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expressão do pensamento, com destaque para

a imprensa. Consta de parte da decisão essa

atualíssima lição:

“Os que têm garantido o direito de expressão,

oral, escrita, e de imprensa, não devem abusar

de tal direito. Nem aquele que detém o direito à

intimidade deve abusar dele. A lei não permitirá

o abuso nem de um nem de outro. A liberdade

de expressão e de imprensa tem sido um instru-

mento útil para manter o indivíduo dentro dos

limites de sua conduta legal, decente e adequada.

E o direito à intimidade pode ser utilizado con-

venientemente dentro de seus limites para

manter os que falam, escrevem e editam dentro

dos limites legítimos das garantias cons-

titucionais de tais direitos. Pode-se usar de um

deles para moderar o outro; mas nenhum dos

dois pode ser legalmente usado para destruir o

outro”.42

As limitações reciprocamente impostas, é

bom frisar, não resultam da hierarquia das liber-

dades em conflito, já que não há superposição,

mas das circunstâncias de que se reveste cada

situação concreta. Em algumas delas, deve

prevalecer o direito à intimidade; em outras, deve

ser prioritário o direito à informação. O direito à

vida íntima das pessoas, que não é ilimitado, deve

conciliar-se com o exercício da liberdade de

informação, quer decorra do interesse público

ou dos interesses de particulares.

5.1 Limitações nos Diplomas Legais

Os textos que declaram a existência autô-

noma do direito à vida privada fazem sempre

referência às limitações, embora não as tra-

gam de modo detalhado nas situações concre-

tas. Assim ocorre na Declaração Universal dos

Direitos do Homem, que, em seu artigo 12,

reconhece este direito contra as ingerências

arbitrárias, admitindo, implicitamente, suas

limitações.

Já o artigo 8o da Convenção de Salvaguarda

dos Direitos do Homem e das Liberdades Fun-

damentais dispõe:

“1 – Toda pessoa tem direito ao respeito de sua

vida privada e familiar, de seu domicílio e de

sua correspondência. 2 – Não pode haver inge-

rência da autoridade pública no exercício desse

direito senão quando esta interferência esteja

prevista em lei, e constitua uma medida que,

numa sociedade democrática, seja necessária

para a segurança nacional, a segurança pública,

o bem-estar econômico do país, a defesa da

ordem e a prevenção de infrações penais, a

proteção da saúde ou da moral, ou a proteção

dos direitos e as liberdades dos demais”.

A Declaração Americana dos Direitos e De-

veres do Homem (Bogotá, 1948, art. 4o), so-

mente faz referência à proteção legal contra os

“ataques abusivos” à vida privada e familiar (e

também à honra e reputação). O mesmo se diga

do Pacto das Nações Unidas sobre Direitos

Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966).

Em 1967, O Congresso de Juristas dos Paí-

ses Nórdicos, realizado em Estocolmo, fixou

diversas hipóteses de limitação do direito à

intimidade da vida privada. Considerou-se,

então, como limites necessários para o equilíbrio

entre os interesses individuais e coletivos de

pessoas, grupos ou do Estado:

42 Idem, p. 180.

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1) o “interesse público” (assim entendido

como segurança nacional, segurança pú-

blica, da defesa, da ordem, da prevenção

do crime, da proteção da saúde ou da

moral);

2) o “interesse privado” (defesa de interes-

ses de outras pessoas ou grupos de

pessoas naturais).

A Constituição de Portugal, de 1976, em

seu artigo 33 dispõe que a lei estabelecerá ga-

rantias efetivas contra a utilização abusiva, ou

contrária à dignidade humana, de informações

relativas às pessoas e famílias. É em torno dessa

legislação complementar que convergem as

grandes preocupações dos juristas.

A importância de limitar as esferas de reação

das liberdades está ligada à necessidade de que

coexistam, para poderem ser exercidas simul-

taneamente. Porém, como lembra o mestre

René Ariel Dotti,

“toda a problemática de limitação às liberda-

des públicas poderá conduzir a um regime de

insegurança na medida em que o predomínio

absoluto e permanente de uns direitos sobre os

outros, além de atentar contra um pressuposto

natural de equilíbrio, fomenta necessariamente

áreas de antagonismo, que vão desaguar nas

tentativas – geralmente violentas – de alteração

do ordenamento injusto”.43

O freqüente conflito entre o direito à vida

privada e a liberdade de informação baseia-se na

concepção de segurança. A segurança atua para

limitar não somente a intimidade das pessoas,

mas também para restringir o direito à informa-

ção, na busca por uma “ordem sossegada”, que

é a paz.

É tarefa das mais árduas legislar sobre o

assunto, pelas graves complexidades que envol-

vem o problema e também pela diversidade

enorme quanto às situações concretas que pode

apresentar. Some-se a isso, como ensina René

Ariel Dotti,

“a difusão cada vez maior dos instrumentos,

dos meios e dos métodos da técnica com os

progressos que lhe são inerentes, de modo a

formar tantas hipóteses de conflito quantas

aparecem e se movimentam nas figuras de um

caleidoscópio”.44

Por esses motivos, não se têm apresentado

fórmulas legislativas que, a um só tempo, con-

templem todas as situações de conflito, pro-

pondo as soluções adequadas.

Uma evidência dessa realidade é a solução

dada pelo Código Civil português, de 1966, ao

conferir tutela autônoma e direta da intimidade,

em seu artigo 80:

“1 – Todos devem guardar reserva quanto à

intimidade da vida privada de outrem. 2 – A

extensão da reserva é definida conforme a

natureza dos casos e a condição das pessoas”.

A disposição citada vem inserida no capítulo

que trata dos direitos da personalidade reconhe-

cidos no sistema de Portugal e mostra que não

se podem obter fórmulas legais que esgotem o

tema. O direito à informação e o respeito à vida

privada não podem ser conduzidos em plano

43 Idem, p. 184.44 Idem, p. 188.

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absoluto, sob pena de se ter o sacrifício de um

deles em favor do outro. Daí a necessidade de

serem limitados em seu exercício na busca por

uma fronteira de equilíbrio.

Atualmente, embora não completamente

resolvidos os problemas que representam a má

aplicação da lei e a existência de lacunas, existe

um princípio maior, que norteia a função judi-

cante. É nesse sentido que a Lei de Introdução ao

Código Civil brasileiro dispõe que, “na aplicação

da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se

dirige e às exigências do bem comum” (art. 5o).

O preceito permite que os pronunciamen-

tos da Justiça alcancem a maior variedade de

situações concretas, por meio de uma atuação

que garanta o direito à liberdade não apenas às

partes envolvidas no conflito, mas também ao

Juiz, que não deverá restringir-se ao quadro es-

45 Recordações da casa dos mortos, p. 13.

tabelecido pela lei, como se a enxergasse através

de uma fresta.

O aplicador do Direito não pode ser redu-

zido à condição de personagem de Fedor Dos-

toieviski em Recordações da casa dos mortos:

“a nossa prisão ficava na extremidade da fortaleza,

à beira da muralha. Quando através das frinchas

da paliçada procurávamos entrever o mundo,

distinguíamos apenas um estreito retalho de céu

e uma alta plataforma de terra, invadida pelas

ervas daninhas, que as sentinelas percorriam noite

e dia. E dizíamos imediatamente para conosco

que, por mais anos que passassem, veríamos

sempre, olhando através das frinchas da paliçada,

a mesma muralha, a mesma sentinela e o mesmo

retalho de céu – não o céu da fortaleza, mas sim

outro, um céu mais longínquo, um céu livre”.45

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PAPEL DO ENSINO JURÍDICONO FUTURO DA ADVOCACIA

Luiz Flávio Borges D’UrsoAdvogado Criminalista

Mestre e Doutor em Direito pela USP

Presidente da OAB-SP

Para divisar o futuro da Advocacia no Brasil,

é fundamental fazer o diagnóstico de seus

problemas atuais, entre eles, inegavelmente, o

ensino jurídico. O país convive, há mais de três

décadas, com a crise do ensino superior, e a área

do Direito tem sido uma das mais castigadas

pelo rebaixamento do nível educacional. Ao

encontro da intenção do regime militar de minar

pólos centrais da resistência democrática, entre

os quais se inseria a Ordem dos Advogados do

Brasil, vanguarda da mobilização social, os

cursos de Direito, alguns de curta duração, com

escopos esterilizados, espalharam-se por todo

o território, oferecidos por escolas movidas a

interesses mercantilistas.

O resultado desse quadro revela-se na estatís-

tica que se apresenta hoje ao País: são quase 800

cursos de Direito em funcionamento, contra 69,

em 1960. Uma realidade que causa perplexidade

se comparada aos dados dos Estados Unidos,

onde o número de faculdades de Direito está

estacionado em 180 instituições de ensino su-

perior. A proliferação de faculdade no Brasil lan-

ça no mercado milhares de bacharéis, dos quais

só o Estado de São Paulo recebe 15 mil por ano,

que correspondem a apenas a 20% do total,

porque os demais não passam no exame de

Ordem, que busca aferir se o bacharel reúne

condições profissionais mínimas para atuar, uma

vez que terá em suas mãos os bens maiores da

criatura humana: a honra, a vida e a liberdade.

Ao lado da saturação do mercado de trabalho, os

advogados passaram a conviver com o descum-

primento constitucional do múnus da advocacia

e com leis que restringem suas atividades profis-

sionais, como ocorre nos juizados de pequenas

causas. Não por acaso, o papel do advogado na

sociedade política tem decrescido.

É nessa moldura que a seccional paulista da

Ordem dos Advogados do Brasil está interferindo

oportunamente. A meta é requalificar o ensino

jurídico, resgatando o ideário dos cursos de ciên-

cias jurídicas e sociais, criados em Olinda e em

São Paulo, em 11 de agosto de 1827. O esforço

pela recomposição dos níveis de qualidade do

ensino do Direito começa pelo combate a escolas

e cursos defasados e improvisados, destituídos de

visão do futuro, estruturados e com quadros do-

centes precários. Lembre-se, a propósito, de que

a OAB tem amparo legal para atuar nesse sentido,

em função de decreto (n. 3.860, de 09.07.2001)

que confere poder ao Conselho Federal da enti-

dade para se manifestar a respeito da criação de

instituições de ensino superior da área. A OAB

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tem poder opinativo sobre a abertura de novas

faculdades de Direito; mas a Ordem de São Paulo

quer mais, deseja ter poder de veto, porque consi-

deramos inadmissível que o Ministério da Edu-

cação autorize o funcionamento de cursos para

atuar de forma improvisada em auditórios da Câ-

mara Municipal ou em salas de cinema e utilizem

o artifício de locar bibliotecas e corpo docente de

fachada, pois aquele que administrará as aulas será

um professor sem a devida qualificação.

Outra grande questão voltada ao ensino ju-

rídico, com implicações no futuro da Advoca-

cia, reside no fato de que hoje prepara-se o pro-

fissional para litigar, quando o futuro do Direito

está na composição. A mediação, a conciliação

e a arbitragem abrem novos campos de trabalho

para a Advocacia. Trazem um novo conceito à

prática do Direito, com ênfase no diálogo e no

entendimento entre as partes; todavia, há que

se tornar obrigatória a presença do advogado, uma

vez que essas formas de solução de conflitos

constituem mecanismos jurídicos, e o leigo não

conhece o Direito. Pela conciliação, também se-

rá possível contornar a morosidade da Justiça,

matéria que não foi contemplada pela Reforma

do Judiciário, que, embora trate de matérias re-

levantes e oportunas, não emprestará celeridade

à Justiça. Um exemplo dessa morosidade está

no “tempo morto do processo”, cuja dimensão

pode ser retratada por 550 mil processos em

grau de recurso, aguardando distribuição na

Justiça paulista, o que demora de quatro a cinco

anos de espera.

Uma recente proposta de contribuição à

melhoria do ensino jurídico foi encaminhada pela

seccional paulista à Frente Parlamentar dos

Advogados na Câmara dos Deputados e aoConselho Federal da OAB, visando a antecipar ainscrição do estagiário na Ordem, queatualmente acontece nos dois últimos anos.Nossa proposta é que ele ingresse nos quadrosda OAB a partir do 2° ano do curso de Direito.Com a carteira da Ordem, o estagiário ampliaseu mercado de trabalho, porque adquire aprerrogativa de retirar processos nos tribunais,assinar petições junto com um advogado eparticipar de audiências, atividades essenciais àformação plena do futuro profissional. Com aantecipação do estágio, o bacharel chegará aomercado de trabalho com uma bagagem de co-nhecimentos práticos maior, que, somada aoconhecimento conceitual e teórico dos bancosescolares, tende a torná-lo um advogado maiscapacitado para postular em nome do cliente.

A somatória dessas propostas no plano edu-cacional visa a valorizar a profissão do advogado,que passa necessariamente pela qualidade de en-sino jurídico, fundamental para aquele que chegaa um mercado de trabalho cada dia mais concor-rido, tendo de responder à ânsia e às necessidades

dos jurisdicionados, que ainda esperam pela

democratização, melhoria e agilização da Justiça.