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IMAGENS, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS José Valter Pereira (Valter Filé) UFRRJ-IM [email protected] RESUMO O texto pretende ser um exercício de reflexão sobre as possíveis potencialidades pedagógicas da imagem na naturalização de certos ordenamentos sociais. É aquilo que eu pude fazer com as experiências de anos de trabalho como fotógrafo, das minhas pesquisas e das minhas práticas pedagógicas com o uso da imagem. Uma tentativa de criar alguns pontos a partir dos quais possamos pensar a formação dos professores e as relações raciais. Sem pretender esgotar o assunto, o texto tenta trabalhar: sobre alguns aspectos das origens e as tensões teórico-epistemológicas produzidas a partir da imagem; com algumas considerações sobre esta na contemporaneidade, na cultura digital, e o ato fotográfico; e, finalmente, um pouco de como tenho usado as metáforas do campo da fotografia para pensar, na formação de professores, a produção de conhecimentos e a nossa relação com o mundo, com os outros. PALAVRAS-CHAVE: Imagem, prática pedagógica e relações raciais. Uma escola pública no Vale do Paraíba. Uma pessoa que a visitam procura pelo diretor. Vai à sua sala, ele não está. A pessoa então é informada de que ele está no pátio. No pátio, estão apenas dois homens, um negro e outro branco. A pessoa que busca o diretor encaminha-se diretamente para o homem branco, pois seguramente já se sabe de antemão que ele é o diretor. Engana-se. Mas como foi forjada tal certeza? Como fomos educados para tal identificação, pois que segundo o tal diretor, essa cena se repetia sempre? i IMAGEM 1 De que imagens quero tratar aqui? A pergunta só faz sentido, ser enfrentada, se ofereço os desafios que me levaram a elas as imagens como oportunidades para trabalhar na formação de professores e as relações raciais. Aí, na formação de professores, sugiram as questões “originárias”: como os negros são produzidos hegemônicamente a partir das imagens, tanto imagens produzidas por palavras, quanto a partir das imagens Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02430

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Page 1: IMAGENS, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E RELAÇÕES … IMAGENS, FORMAÇÃO DE... · pedagógicas da imagem na naturalização de certos ordenamentos sociais. É aquilo que eu ... a sua

IMAGENS, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS

José Valter Pereira (Valter Filé)

UFRRJ-IM

[email protected]

RESUMO

O texto pretende ser um exercício de reflexão sobre as possíveis potencialidades

pedagógicas da imagem na naturalização de certos ordenamentos sociais. É aquilo que eu

pude fazer com as experiências de anos de trabalho como fotógrafo, das minhas pesquisas

e das minhas práticas pedagógicas com o uso da imagem. Uma tentativa de criar alguns

pontos a partir dos quais possamos pensar a formação dos professores e as relações raciais.

Sem pretender esgotar o assunto, o texto tenta trabalhar: sobre alguns aspectos das origens

e as tensões teórico-epistemológicas produzidas a partir da imagem; com algumas

considerações sobre esta na contemporaneidade, na cultura digital, e o ato fotográfico; e,

finalmente, um pouco de como tenho usado as metáforas do campo da fotografia para

pensar, na formação de professores, a produção de conhecimentos e a nossa relação com o

mundo, com os outros.

PALAVRAS-CHAVE: Imagem, prática pedagógica e relações raciais.

Uma escola pública no Vale do Paraíba.

Uma pessoa que a visitam procura pelo diretor.

Vai à sua sala, ele não está.

A pessoa então é informada de que ele está no pátio.

No pátio, estão apenas dois homens, um negro e outro branco.

A pessoa que busca o diretor encaminha-se diretamente para o homem branco,

pois seguramente já se sabe de antemão que ele é o diretor. Engana-se.

Mas como foi forjada tal certeza? Como fomos educados para tal identificação, pois

que segundo o tal diretor, essa cena se repetia sempre?i

IMAGEM 1

De que imagens quero tratar aqui? A pergunta só faz sentido, ser enfrentada, se

ofereço os desafios que me levaram a elas – as imagens – como oportunidades para

trabalhar na formação de professores e as relações raciais. Aí, na formação de professores,

sugiram as questões “originárias”: como os negros são produzidos hegemônicamente a

partir das imagens, tanto imagens produzidas por palavras, quanto a partir das imagens

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visuais? O que tais imagens visuais tem oferecido como alimento de imaginários? Esta é

como pretendo mover-me entre a produção de imagens, mais especificamente a fotografia

e aquilo que seu entorno pode oferecer como possibilidade de pensarmos a nossa relação

com formação e com a produção de conhecimentos. Uma tentativa!

Assim, esse texto materializa dois movimentos que se encontraram: um, o de

começar a organizar melhor algumas ideias que andam soltas pelas conversas, pelos fazeres

e pelos desejos de estudar um pouco mais a imagem, mais especificamente a fotografia, e

a sua importância na vida das pessoas, nos processos socioeducativos; e, dois, a

necessidade de produzir materiais de apoio para as atividades de ensino. O estudo (e a

prática) da fotografia, principalmente tentando trabalhar algumas das suas metáforas para

lidar com questões epistemológicas importantes para a aprendizagem, e as experiências

com as imagens nas práticas pedagógicas e em pesquisas, então, é o que pretende sustentar

o texto.

Mas, de todas as maneiras, considero que este texto ainda é a articulação de

algumas ideias, de alguns apontamentos que estão agora em busca de leitores, de fazeres,

de interlocução para que continuem seus fluxos. Não está acabado (como, aliás, nada na

vida está). Para usar um conceito da área computacional, este texto é (definitivamente) uma

versão "beta"ii, mas acredito que ele pode servir de aplicativo para muitas situações, para

alguns experimentos, para alguns estudos, ajudando a rodar outras ideias.

Apesar da fotografia ser uma área em que transito com certa facilidade, pois minhas

atividades estão localizadas no entorno da produção de imagensiii, poucas vezes me dei

uma empreitada de pensar a imagem, a fotografia e as suas reverberações na educação. Nos

meus trabalhos, a imagem, a fotografia são tratadas dentro da linguagem audiovisual - o

cinema, o vídeo e a televisão -, levando em consideração, na maioria das vezes, as práticas

culturais influenciadas (e influenciadoras, pois que não é um movimento unilateral) por

tais mídias, por tais linguagens. Assim, neste texto, as escaramuças que faço tentam levar

em consideração algumas dimensões da imagem, prestando atenção (sempre) nas

produções culturais possíveis nos contextos de implicação. Ou seja: sua produção e seu

entorno sociotécnico; a imagem como produção de imaginários, como produção da nossa

subjetividade, como produção dos nossos conceitos e pré-conceitos; usos da fotografia

como reprodução do mesmo, como produção de determinadas maneiras de ver e,

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consequentemente, a produção de invisibilidades. Esta última dimensão pode nos ajudar a

pensar sobre as relações étnicorraciais e o reforço na consolidação de determinadas

"visões" racistas com a repetição e a naturalização de determinadas imagens em

determinados espaços-tempos. Será que é indiferente a cor da pele para imagens produzidas

em diferentes situações na vida cotidiana? A proliferação de imagens de um determinado

padrão de beleza, de um determinado fenotipo não funcionaria como uma "didática" que

nos ajuda a "reconhecer as formas de “ver” que nos fazem rejeitar (ou, no mínimo,

estranhar) outros tipos de imagem?

Não sei se o texto responde a estas e outras questões. Ele pretende, quando muito,

ser um convite para que cada um de nós possamos pensar sobre isso, que cada um de nós

possa pensar sobre as imagens que produzimos e as imagens que consumimos e os nossos

confortos e desconfortos com o que vemos. Para pensarmos na educação, na escolarização

e as imagens que reforçam subalternizações, que forjam naturalizações e dificultam a

abertura para outras possibilidades de nos relacionarmos com o conhecimento e com o

mundo.

A importância da imagem

Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita.

(Genesis, 1)

(E essa, talvez, tenha sido a primeira previdência

para termos acesso à imagem.)

IMAGEM 2

A imagem está na origem da humanidade. Ela tem sido motivo de intensas disputas

e principalmente de interdições. Não por acaso, as religiões do livro - as de origem judaico-

cristã, pelo menos - começam radicalizando: "Não farás para ti imagem esculpida, nem

figura alguma do que em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da

terra. Não te curvarás diante delas, nem as servirás" (do Velho testamento: Êxodo 20, 4-5).

Este é um dos mandatos que está na origem (no ocidente) da nossa relação com a imagem.

E esta relação vai ser conflituosa o tempo todo.

E não é apenas no campo religioso que a imagem provocou intensas demandas. O

mundo acadêmico, até hoje considerado o reino da palavra escrita, abriga vastos territórios

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de desconfiança das condições de possibilidades da imagem. Muitos dos habitantes destes

territórios encontram na tradição filosófica Grega, e mais especificamente em Platão, as

origem de suas desconfianças, já que o filósofo foi implacável com as imagens. Segundo

Arlindo Machado (2001), para Platão,

o artista plástico é uma espécie de impostor: ele imita a aparência das coisas,

sem conhecer a verdade delas e sem ter a ciência que as explica (...). A

imagem, conclui Platão, pode se parecer com a coisa representada, mas não

tem sua realidade. É uma imitação de superfície, uma mera ilusão de ótica,

que fascina apenas as crianças e os tolos. ( p. 9).

Como parte destas escaramuças, tempos depois, a igreja católica vai empreender

sua grande missão evangelizadora utilizando-se da arte barroca. Arte fundamentalmente

baseada nas imagens, exatamente por compreender que esta era a melhor forma para lidar

com as gentes incultas, iletradas do "novo mundo". Certamente nas mesmas condições de

crianças e tolos, como supunha Platão, a adequação das imagens.

Infelizmente não pretendo, neste texto, continuar percorrendo as diferentes

condições sócio-historicas de usos e interdições da imagem. Interessa-me, desde aqui, lidar

com a imagem tal como ela tem sido assumida hoje como um componente fundamental da

nossa cultura contemporânea.

A fotografia e nossas mobilizações

IMAGEM 3

Poderíamos abordar a fotografia a partir de diferentes possibilidades, mas, opto por

começar recorrendo a Boris Kossoy(2005) e as sugestões que ele nos faz de pensarmos na

ideia de que "fotografia é memória e com ela se confunde" (p.40). Esta ideia,

aparentemente óbvia e simples, nos leva a pensar naquilo que o autor vai trabalhar a partir

daí e que nos ajuda a prescrutar sobre as "realidades das fotografias. Para Kossoy existiriam

duas realidades e estas estariam implicadas. Nas palavras do autor,

A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades. A primeira é a mais

evidente, visível. É exatamente o que está ali, imóvel à nossa vista, na

aparência do referente, isto é, sua realidade exterior, o testemunho, o

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conteúdo da imagem fotografada (passível de identificação), a segunda

realidade. As demais faces são as que não podemos ver, permanecem

ocultas, invisíveis, não se explicitam, mas que podemos intuir; é o outro

lado do espelho e do documento; não mais a aparência imóvel ou a

existência constatada, mas também, e sobretudo, a vida das situações e dos

homens retratados, desaparecidos, a história do tema e da gênese da imagem

no espaço e no tempo, a realidade interior da imagem: a primeira realidade

(p.9).

Mas quais seriam os movimentos da memória que nos interessam aqui? Vamos

chamar Kossoy mais uma vez:

Quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem

perceber, mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos fatos e

as circunstancias que envolveram o assunto ou a própria representação (o

documento fotográfico) no contexto em que foi produzido: trata-se de um

exercício mental de reconstituição quase que intuitivo. Veremos que a

reconstituição - quer seja ela dirigida à investigação histórica quer à mera

recordação pessoal - sempre implicará um processo de criação de

realidades, posto que elaborada por meio das imagens mentais dos próprios

receptores envolvidos (9).

E essa criação de realidades não se limita ao momento de exame, de fruição da

fotografia. Parece ser que a fotografia é uma das maneiras de reforçar determinadas

“visões” que temos do mundo, de estranharmos determinadas coisas que vemos, de deixar

de enxergar outras.

A fotografia, como qualquer imagem, vale pelo que exibe no seu quadro, como

escolha, e da relação que ela estabelece com os que a veem. A fotografia é a materialização

de uma escolha que elege o que mostrar e o que esconder. Eleição entre tantas outras

possíveis. Escolha por uma determinada forma, não de mostrar o mundo, mas de dizer

como se vê o mundo, que é uma forma de recria-lo.

As imagens disponibilizam possibilidades de pensarmos sobre a percepção que

temos delas e das nossas ações. Nessa direção vai o trabalho de Henri Bergson, sobretudo

em seu livro Matéria e Memória (1990). Bergson defende que o ato de ver é uma solicitação

à ação. Perceber é agir virtualmente sobre algo. O olhar manipula nosso esquema sensório-

motor de ação e reação a partir dos estímulos que recebemos. Opera uma decomposição do

percebido em função da sua utilidade para nós. Numa imagem o que nos assegura nosso

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deslocamento em seu interior é o deslocamento do nosso próprio campo visual (Bentes,

2006).

Mais uma vez Kossoy nos sugere que o mundo tornou-se de certa forma "familiar"

após o advento da fotografia (Kossoy, 2001:26). Podemos usar a afirmação do autor para

pensarmos o que entendemos por "familiaridade". Seria como um sentimento de

intimidade, de conhecimento, de pertencimento, de costume, de hábito? Alguma coisa que

nos leva a pensar naquilo que sempre vejo porque está sempre perto, mas, justamente por

isso, tenho mais dificuldades de enxergar? Se for assim, o familiar também poderia ser

aquilo que não nos causa mais estranheza, que já naturalizamos? Familaridade seria vermos

o que sempre vimos nos livros didáticos, famílias brancas – papai lendo o jornal, Mamãe

com os dois filhos brincando e uma negra no fogão? Em que medida esse tipo de imagem

ratifica em nós a organização do mundo? Em compensação, vermos um negro ao volante

de um carro importado geralmente nos causa um certo incômodo. Será que está imagem

nos incomoda por aquilo que ela significa de des-organização do mundo?

Talvez devêssemos nos perguntar: O que naturalizamos e quais imagens ajudam

nestas naturalizações? Podemos pensar na propaganda, em muitos livros didáticos, nas

imagens das mídias hegemônicas que nos dão a ver, que cumprem com uma pedagogia da

naturalização de que certos corpos pertencem a certos lugares; Nos ajudam a educar a nossa

visão e a naturalizamos determinadas composições imagéticas apenas com determinados

personagens, de determinada raça, de determinada classe social. E assim vamos nos

familiarizando, naturalizando, eliminando outras possibilidades de ver o mundo. Assim,

também, talvez nos afastamos daquilo que (supostamente) não me diz respeito por ser algo

longínquo, por estar fora do nosso “quadro”.

Talvez fosse importante, então, fazermos um exercício de desnaturalização das

imagens que consumimos. Poderíamos começar fazendo uma espécie de inventário

imagético daquilo que temos visto de forma tranquila, como “natural“ e como estes

modelos ajudam a forjar os elementos simbólicos daquilo que produzimos. Talvez

devêssemos nos perguntar: que tipos de imagens vemos? que tipos de imagens

produzimos? Que tipo de fotos nos detém, nos param (nos param cobrando olharmos com

calma, para pensar sobre elas)? Se é verdade que o nosso olhar e a nossa capacidade de ver

(e a nossa cegueira) é o resultado de construções da/na cultura a partir das imagens que nos

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são "familiares", com que o nosso olhar está familiarizado? Será que esta familiarização

não é o resultado de uma didática de produção de uma determinada maneira de ver? Será

que vemos o que podemos ver ou só vemos o que sabemos ver, o que queremos ver?

Produzir imagens, produzir-se pelas imagens

IMAGEM 4

Infelizmente ainda não vai ser aqui que vou dedicar-me ao aprofundamento de

algumas questões sobre o ato fotográfico, mas, em todo caso, vale levantarmos algumas

questões. Questões do tipo: de que é feito o ato fotográfico? O que se passa na solidão do

fotógrafo, no momento da suspensão da sua respiração, quando este se prepara para flagrar

o instante que poderá perdurar? Como as tecnologias atravessam e alteram esse instante?

O que selecionar, quando o mundo se apresenta tão vasto, mesmo quando nosso objetivo é

perpetuar o olhar perdido e distante de uma criança? O quanto a nossa “familiarização” do

mundo, organizado como está, pode atuar para a desnaturalização dos movimentos das

cidades, para a des-invisibilização de certos personagens e para inserir outras imagens na

equilibrada e bem composta cena burguesa, branca, masculina e cristã?

A fotografia mais do que mobilizar modelos geométricos e óticos, põe em marcha

os meios visuais que passam a vigorar, também, como modelos cognitivos e perceptivos

de uma época. Depende, não apenas de um aparato mecânico e um modelo (referente), mas

daquilo que preexiste ao ato de fotografar, ou seja, aquilo da cultura, da subjetividade do

fotógrafo que vai incidir sobre as suas decisões sobre o que mostrar e o que esconder.

Nenhum ato de fotografar pode ser considerado como um ato banal, sem referentes, isolado

em si mesmo. Este ato revela a reação do fotografo ao que se apresenta a ele: um

tempoespaço a ser traduzido, a ser registrado, a ser narrado. Como reagimos a estes

momentos? De que são feitas as nossas escolhas? Que cenas construímos e a que modelos

de sociedade, de sociabilidade elas se prestam a reforçar? Até que ponto a produção das

nossas imagens não estão reforçando a proliferação de imagens que trabalham pela

reprodução do mesmo?

Muitas são as possibilidades de pensarmos sobre as nossas escolhas - e sobre a

nossa relação com a fotografia -, pois para um profissional, suas escolhas serão mais

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apuradas pelos ditames de uma técnica, de uma arte, embora ele também não consiga

escapar da atuação da sua subjetividade.

Porém, a despeito das diferentes possibilidades de pensarmos o ato fotográfico,

interessa-me, também, pensar sobre a proliferação da fotografia a partir do aparecimento

das mídias digitais, e o retorno desta profusão de imagens como proliferação, muitas vezes,

como o mesmo. Ou seja, a era digital propiciando uma banalização da fotografia já que

muitos aparatos produzem imagens e tais imagens são oferecidas ao público quase que

instantaneamente nos blogs, flogs, redes sociais, mensagens de celulares, etc. Tal profusão,

velocidade e fluxos estão reconfigurando os modos de ver, de produzir, de produzir-se.

No lugar das imagens que pretendiam fazer um testemunho, dar conta de um

acontecimento que nos atraía pela novidade, as imagens produzidas cotidianamente na

cultura digital, principalmente pelos mais jovens, parece que se contentam em ser imagens-

rastros, imagens-ruídos, ou seja, imagens que parecem duvidar da sua capacidade de

referencialidade, da sua possibilidade de alguma suposta verdade, de relação com um

referente. Imagens em trânsito – imagens processos de múltiplas intervenções. São, muitas

delas, testemunhos de perenidade já que parecem ser feitas como anúncio de sua superação,

já que elas são apenas parte do fluxo continuo de mensagens, na maioria das vezes, de

exacerbação narcísica de ostentação e glamurização do vazio.

Parece ser que esta é uma época em que a fotografia usada nas mídias digitais,

experimenta o elogio do efêmero, da velocidade, da urgência, da superação de uma imagem

por outra ou de um metafórico descolamento de retina. Parece ser que o que está em jogo

não é mais ver uma imagem ou uma coleção delas. O que parece estar em jogo é uma

movimentação constante em que a imagem é apenas um detalhe daquilo que se coloca

como elemento de mediação das relações, das auto produções. O ato fotográfico parece um

ato de consumo da consumição das imagens, mixadas e remixadas incessantemente.

Exercícios do olhar, modos do ver – in-conclusão

IMAGEM 5

Nas minhas práticas pedagógicas a primeira questão que coloco em jogo parte

daquilo que afirma Heins von Foerster em seu artigo Visão e conhecimento: disfunções de

segunda ordem (1996). Segundo o autor não vemos com os olhos, mas através deles.

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Significa dizer que a nossa visão está contaminada pelo que acreditamos. Pelos nossos

valores, pelos nossos preconceitos, enfim, pela nossa subjetividade. Assim, a experiência

da escravidão na sociedade brasileira e as referencias eurocêntricas que nos plasmam e nos

educam nas relações sociais, nas escolas, nos meios de comunicação, nas imagens – visuais

ou não - nos fazem acreditar que vemos o que é o mundo. Um homem parado numa esquina

numa noite escura pode meter medo na maioria das pessoas que pretendem passar pelo

local. Mas se este mesmo homem é negro, na maioria das vezes, o medo aumenta muito.

O que foi definitivo para a nossa visão está antes do que vemos. A visão foi formada antes

do encontro com o visto. Nossa visão foi contaminada com a nossa experiência numa

sociedade em que o negro é sempre identificado como ameaça.

Assim, como trabalhar a partir da fotografia para que elas nos revelem mais do que

elas dão a ver? Como lidar com a visão de modo que as metáforas da fotografia nos ajudem

a pensar sobre a criação dos outros, sobre a nossa relação com o mundo, sobre o que é

nossa criação aquilo que pensamos ser do mundo, dos outros?

Algumas procedimentos da fotografia tem nos ajudado. A composição fotográfica

e aquilo que está fora do quadro. Por exemplo, o ponto de vista – o lugar onde o fotógrafo

se coloca (e coloca a câmera) para dar a ver – nos oferece a possibilidade de pensarmos

como nos acercamos daquilo que queremos conhecer, inclusive nas nossas pesquisas.

Muitas das vezes, nas observações de campo – numa pesquisa – oferecemos o que

anotamos, o que capturamos pelas nossas “lentes sem considerarmos a influencia do lugar

onde nos colocamos no resultado do que conseguimos como a verdade capturada. Será que

se alterarmos o nosso ponto de vista também não ofereceremos outras possibilidades de

dar a ver de outras formas? Será que muitos de nós não temos nos colocado numa mesma

posição, num ponto de vista naturalizado, daquele que vê sempre de um lugar privilegiado,

que não pode se abaixar para mudar de ângulo, que não pode experimentar outras posições

que nos ofereçam outras formas de ver?

O mesmo exercício de ver e criar fotografias num paralelo com a produção de

conhecimentos na pesquisa, na aprendizagem se repete a partir dos seguintes elementos da

linguagem da fotografia: o enquadramento – os recortes, aquilo que estamos sempre

sugerindo aos nossos orientandos quando estes pretendem pesquisar coisas simples como

“o cinema”, as escolas da Baixada Fluminense, etc; Os planos – os closes, os planos gerais

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– que nos dão informações sobre a nossa relação de proximidade, de distanciamento, ou

ainda, a tensão entre a grandiloquência dos planos mais abertos e as informações

pormenorizadas de um plano próximo. O que deixamos de ver em detalhes quando

queremos colocar mais elementos e o que perdemos com o fechamento do quadro. Enfim,

tenho experimentado trabalhar a fotografia na formação de professores tentado a

desnaturalização da produção de imagens, a desnaturalização do mundo que para muitos

supostamente se apresenta sem mediações aos nossos olhos, como “a realidade”. Tentando

trabalhar as nossas aproximações, as nossas posições diante do mundo. Dos lugares que

escolhemos para dar a ver alguma experiência, a dificuldade de nos movimentarmos em

torno do que nos aproximamos para uma melhor apreensão, como possibilidade de uma

narração mais assumidamente autoral, como criação. Trabalhando sobre a possibilidade de

que cada sujeito da educação passe a “ver” os elementos que governam a sua visão, antes

mesmo que ela atravesse os olhos. Que possam dar a ver – nas imagens produzidas pelas

narrativas verbais e pela fotografia - outras possibilidades desconsideração do mundo como

criação e das relações raciais.

Bibliografia:

BENTES, Ivana. Midia-arte ou as estéticas da comunicação e seus modelos teóricos. IN:

Limiares da imagem - tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro:

Mauad X, 2006;

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990;

FOERSTER, Heinz von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In:

SCHNITMAN, Dora Fried (Org). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto

Alegre: Artes Médicas, 1996

KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. IN:

SAMAIN, Etiene. O fotográfico. São Paulo: EditoraHucitec/Editora Senac, 2005;

____Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001;

MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro:

Rios ambiciosos, 2001;

Imagens

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Imagem 1

imagem 2

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imagem 5

i História contada por Gilberto Augusto da Silva, o mestre Gil. Jongueiro e diretor da escolar em questão, na

cidade de Piquete, SP.

ii A versão beta é a versão de um produto (geralmente software) que ainda se encontra em fase de

desenvolvimento e testes. No entanto, esses produtos muitas vezes são popularizados bem antes de sair a

versão final. Na prática, sempre que um programa é lançado em versão Beta, significa que o próprio

desenvolvedor (quem fez o programa) admite que o programa ainda não está pronto e pode ter problemas,

porém já está em um nível decente para a utilização, mesmo que sem nenhuma garantia. Extraído de

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Vers%C3%A3o_beta> em 16/2/2014.

iii Pois além de professor sou fotógrafo profissional e coordenei (por muitos anos) projetos de uso da

linguagem audiovisual em ações de cidadania (TV Maxambomba, em Nova Iguaçu e TV Pinel, no Instituto

Municipal Philippe Pinel, ambos no Estado do Rio de Janeiro)

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