(falência familiar) + (uso de drogas) = risco e periculosidade a naturalização jurídica e...

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL NÚCLEO DE ESTUDOS EM POLÍTICAS E TECNOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS DE SUBJETIVAÇÃO CAROLINA DOS REIS (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade A naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória Orientadora: Dra. Neuza Maria de Fátima Guareschi PORTO ALEGRE 2012

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O presente estudo parte do crescente processo de judicialização do cuidado em saúdemental de jovens usuários de drogas e tem por objetivo problematizar a forma como, narelação entre os campos da Saúde Mental e da Justiça, vai se desenvolvendo umabiopolítica voltada para o governo da população de “adolescentes drogaditos”; essabiopolítica, embora aja em nome da garantia de direitos, opera produzindovulnerabilidades. Para essa problematização, fundamentamo-nos nas ferramentas teóricas emetodológicas da Psicologia Social, dentro de uma perspectiva pós-estruturalista,especialmente no que se refere ao pensamento de Michel Foucault, na forma como o autordesenvolveu uma análise dos discursos e da emergência dos saberes na sua articulação commecanismos e tecnologias de poder. A partir disso, discutimos a emergência da“adolescência drogadita” como um problema social que convoca a Psicologia e o Direito aproduzirem uma série de saberes e estratégias de intervenção e manejo sobre essapopulação, o que vai operar tanto na condução das políticas públicas quanto nos modoscomo esses jovens são chamados a reconhecer-se e a relacionar-se consigo. Odesenvolvimento da pesquisa tem como base a análise de Processos Judiciais deadolescentes que tiveram decretada a medida protetiva de internação psiquiátrica paratratamento por drogadição. Ao analisarmos esses documentos, buscamos identificar asrelações que se estabelecem entre os campos de saber e os mecanismos de poder queincidem sobre a manutenção de certas verdades ditas sobre a “adolescência drogadita”, asquais vão servir de suporte para a legitimação e atualização da estratégia de internaçãocompulsória. A análise dos materiais adquiriu três grandes focos, quais sejam: os discursosque circunscrevem os jovens usuários de drogas enquanto sujeitos potencialmenteperigosos e como uma categoria populacional de risco; os discursos em torno das famíliasdesses jovens que se direcionam para uma patologização e desqualificação dessas famílias,permitindo a ação interventiva do Estado; e os discursos que são associados à internaçãopsiquiátrica, vindo a evidenciar que as justificativas para tal se voltam muito mais para abusca de estratégias punitivas do que de cuidado em saúde mental. Por fim, evidenciamosalguns dos efeitos produzidos por esses processos na vida dos jovens.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

    NCLEO DE ESTUDOS EM POLTICAS E TECNOLOGIAS CONTEMPORNEAS DE SUBJETIVAO

    CAROLINA DOS REIS

    (Falncia Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade A naturalizao jurdica e psicolgica de jovens com medida de internao

    compulsria

    Orientadora: Dra. Neuza Maria de Ftima Guareschi

    PORTO ALEGRE 2012

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    CAROLINA DOS REIS

    (Falncia Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade A naturalizao jurdica e psicolgica de jovens com medida de internao

    compulsria

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obteno do ttulo de mestre. Orientadora: Dra. Neuza Maria de Ftima Guareschi

    PORTO ALEGRE 2012

  • 3

    Banca Examinadora

    ____________________________________________

    Professora Dra. Neuza Maria de Ftima Guareschi (Presidente Orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Salo de Carvalho (Co-orientador)

    ____________________________________________

    Professora Dra. Simone Maria Hning Universidade Federal de Alagoas UFAL

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Henrique Caetano Nardi Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS

    ___________________________________________

    Profa. Dra. Lilian Rodrigues Cruz Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e a todos os professores e alunos que fazem deste um espao frtil de produo de conhecimento.

    minha orientadora, Neuza Guareschi, por todos esses anos de amizade e afeto e por desenvolver sua funo de forma prxima, atenta, compartilhada, mas com a liberdade necessria para que eu pudesse distanciar-me, perder-me, deixar-me tomar e, finalmente, reencontrar-me com meu objeto de estudo.

    Ao meu co-orientador, Salo de Carvalho, por ter aceitado o convite de acompanhar essa caminhada nesse ltimo ano e pelas contribuies fundamentais ao desafiador dilogo interdisciplinar desse estudo.

    amiga e professora Simone Hning por ter aceitado o convite de ser interlocutora desse trabalho e por ter se constitudo para mim como um exemplo de pesquisadora e profissional pela competncia e ousadia com que desenvolve esse ofcio.

    Ao professor Henrique Nardi por, mesmo distncia, ter aceitado o convite de compor a banca de qualificao e agora oportunizar a continuidade desse dilogo na banca de defesa desse trabalho.

    Aos colegas do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivao, no somente aqueles que o habitam atualmente, mas todos que por l passaram e auxiliaram a fazer deste um espao de produo coletiva, sempre temperado com amizade e companheirismo e regado a boas taas de vinho e cerveja. Um agradecimento especial a Luti, Marcos, Lilian, Karla, Zuleika, Ori, Mari, Andrea, L Rodrigues, L Fossi, Fernanda, Dani e Ananda.

    quelas que estiveram comigo no comeo dessa insero acadmica, as amigas e colegas de IC Thais Bennemann e Denise Machry.

    Aos colegas, estagirios e conselheiros (Gesto Plural Psi e Gesto Composio) do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul por me propiciarem a possibilidade de compartilhar de um cotidiano de trabalho atravessado pelo exerccio de reflexo sobre as prticas profissionais dos psiclogos nas polticas pblicas.

    Ao Guilherme por ter vivido comigo essa dissertao, auxiliando-me a acessar, compreender e estranhar esse mundo de Direitos, pela leitura dedicada, pelas revises e pelos debates instigantes compartilhados durante todo o percurso de escrita desse trabalho, pelo incentivo cotidiano, por acreditar em mim e pelo amor de todo o dia.

    minha famlia pelo cuidado, carinho e por suportarem minhas ausncias sem deixar que elas passassem despercebidas, atravs das costumeiras frases estudar importante, mas tem que descansar tambm um pouco.

    Aos meus amigos por compreenderem tambm minhas ausncias e apesar delas estarem sempre por perto, pelo apoio e pelos necessrios momentos de descontrao.

    Aos operadores do direito, especialmente aos magistrados que permitiram que tivesse acesso aos materiais de pesquisa, e aos colegas trabalhadores das redes de sade, educao, assistncia social que dedicam sua prtica ao cuidado de crianas e adolescentes.

    Aos jovens usurios de drogas por produzirem linhas de fuga que os fazem muito mais do que aquilo que dito sobre eles nos Processos Judiciais.

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    Algumas palavras que, de certa forma, inspiraram o desenvolvimento deste estudo...

    Levem, levem [o drogadito] pela mo, pelo p, pela orelha. As chances de recuperao no estaro em casa,

    mas em um ambiente profissional, se tiver que ser contra a vontade, vai ser.

    Quando ele estiver recuperado vai agradecer. um gesto de salvao.

    (Mdico Psiquiatra, para o jornal Zero Hora, em 30/06/09)

    No resta dvidas de que a chance de aderir s drogas muito menor para o filho fruto de gravidez planejada. (Ex-governador do Estado do RS, em um artigo intitulado Crack e o Planejamento Familiar, Zero Hora, 25/06/09)

    Especialistas na matria advogam que o crack reproduz no crebro de seus usurios as mesmas percepes do esquizofrnico paranide.

    Assim, a sensao de estar permanentemente espiado produz no dependente qumico reaes, na grande maioria das vezes, incompatveis ao convvio social, colocando a si e

    aos demais em risco de suas prprias vidas. (Mdico Psiquiatra, em artigo intitulado Por que o crack est matando?, Zero Hora, 04/06/09)

    Pesquisas apontam a famlia como um importante fator de proteo, mas tambm de risco na formao da personalidade dos seres humanos. (...)

    Um dia, todas as decepes e amarguras vividas por uma criana podero torn-la um potencial usurio de droga. (...) descobrimos de forma assustadora que ns gestores

    no sabamos como combater de forma eficaz o problema (Prefeito de um municpio do interior do estado do RS, artigo intitulado Crack, uma luta de

    todos, Correio do Povo, 01/12/2010)

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    RESUMO

    O presente estudo parte do crescente processo de judicializao do cuidado em sade mental de jovens usurios de drogas e tem por objetivo problematizar a forma como, na relao entre os campos da Sade Mental e da Justia, vai se desenvolvendo uma biopoltica voltada para o governo da populao de adolescentes drogaditos; essa biopoltica, embora aja em nome da garantia de direitos, opera produzindo vulnerabilidades. Para essa problematizao, fundamentamo-nos nas ferramentas tericas e metodolgicas da Psicologia Social, dentro de uma perspectiva ps-estruturalista, especialmente no que se refere ao pensamento de Michel Foucault, na forma como o autor desenvolveu uma anlise dos discursos e da emergncia dos saberes na sua articulao com mecanismos e tecnologias de poder. A partir disso, discutimos a emergncia da adolescncia drogadita como um problema social que convoca a Psicologia e o Direito a produzirem uma srie de saberes e estratgias de interveno e manejo sobre essa populao, o que vai operar tanto na conduo das polticas pblicas quanto nos modos como esses jovens so chamados a reconhecer-se e a relacionar-se consigo. O desenvolvimento da pesquisa tem como base a anlise de Processos Judiciais de adolescentes que tiveram decretada a medida protetiva de internao psiquitrica para tratamento por drogadio. Ao analisarmos esses documentos, buscamos identificar as relaes que se estabelecem entre os campos de saber e os mecanismos de poder que incidem sobre a manuteno de certas verdades ditas sobre a adolescncia drogadita, as quais vo servir de suporte para a legitimao e atualizao da estratgia de internao compulsria. A anlise dos materiais adquiriu trs grandes focos, quais sejam: os discursos que circunscrevem os jovens usurios de drogas enquanto sujeitos potencialmente perigosos e como uma categoria populacional de risco; os discursos em torno das famlias desses jovens que se direcionam para uma patologizao e desqualificao dessas famlias, permitindo a ao interventiva do Estado; e os discursos que so associados internao psiquitrica, vindo a evidenciar que as justificativas para tal se voltam muito mais para a busca de estratgias punitivas do que de cuidado em sade mental. Por fim, evidenciamos alguns dos efeitos produzidos por esses processos na vida dos jovens.

    Palavras-chave: Internao compulsria, Periculosidade, Falncia familiar, Judicializao da Sade, Jovens usurios de drogas.

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    ABSTRACT

    The present study addresses the increasing process of judicialization of mental health care of young drug users, and aims at problematizing the way in which a biopolitics directed towards the government of the population of addicted teenagers has been developed in the relationship between the fields of Mental Health and Justice. Such biopolitics, in spite of guaranteeing rights, operates by producing vulnerabilities. For such problematization, we have based our study on the theoretical and methodological tools of Social Psychology, especially with regard to the work of Michel Foucault, in the way that this author developed an analysis of both discourses and the emergence of knowledges in their articulation with power mechanisms and technologies. We discuss the emergence of the so-called population of young drug users as a social problem that calls upon the fields of Psychology and Law to produce a series of knowledges and intervention strategies to manage this population, thus operating both in the implementation of public policies and in the ways those youths are called to recognize and relate with themselves. The development of this research is based on the analysis of lawsuits of adolescents that had been ordered the protective measure of psychiatric hospitalization for treatment for drug addiction. By analyzing these documents, we have attempted to identify the relationships established between the fields of knowledge and the power mechanisms that affect the maintenance of certain truths about the so-called population of young drug users. Such truths support both the legitimation and updating of the strategy of compulsory hospitalization. The analysis of the materials has taken three major focuses: discourses that circumscribe young drug users as both potentially dangerous subjects and a risk population category; discourses about these young drug users families, directed to their pathologization and disqualification, allowing for State intervention; and discourses associated with psychiatric hospitalization, evidencing that justifications for its determination are much more punitive than directed to mental health care. Finally, we point out some of the effects produced by these processes in young peoples lives.

    Keywords: Compulsory hospitalization, Hazard, Family Failures, Health Right, Young drug users.

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    SUMRIO

    Introduo ............................................................................................................................ 10 Sobre tudo aquilo de que no trata esta dissertao... ..................................................... 19

    1. A produo de uma subjetividade adolescente drogadita e dos modos de govern-la .. 24 1.1. A construo da adolescncia drogadita como um novo problema social ........... 24 1.2. A construo de uma teoria do sujeito adolescente usurio de drogas .................. 26 1.3. A restituio do desviante/doente ao lugar da norma ............................................... 30 1.4. A inscrio da vida dos adolescentes nos mecanismos de gesto do Estado ............ 32 1.5. Por um direito sade... ........................................................................................... 37

    2. A fabricao de verdades nos Processos Judiciais: alianas entre a Psicologia e o Direito ............................................................................................................................................. 41

    2.1. Cincias duvidosas em anlise ................................................................................. 41 2.2. Os humanos e no-humanos em ao ....................................................................... 45 2.3. As Caixas-pretas do Judicirio e da Psicologia ........................................................ 48 2.4 Consideraes sobre o Mtodo .................................................................................. 50 2.5. O labirinto de pesquisa ............................................................................................. 53 2.6. As portas de entrada .................................................................................................. 58 2.7. Abrindo os Autos ...................................................................................................... 59

    2.7.1. Petio Inicial .................................................................................................... 59 2.7.2. Comprovantes de pobreza ................................................................................. 64 2.7.3. Atestados de veridicidade .................................................................................. 65 2.7.4. Deciso do Juiz .................................................................................................. 69 2.7.5. Mandado de Busca e Apreenso ou de Conduo Coercitiva para Tratamento 70 2.7.6. Certido do Oficial de Justia ............................................................................ 71

    3. As alianas entre Sade e Justia na produo de modos de governar jovens usurios de drogas .................................................................................................................................. 73

    3.1. Sobre jovens drogaditos ........................................................................................... 74

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    3.1.1. Retrato falado: da dependncia qumica aos desvios de todos os gneros ........ 74 3.1.2. Da vida de algum biografia de ningum ....................................................... 78 3.1.3. Proteo como controle e normatizao: as justificativas para internao ....... 81 3.1.4. O obscurecimento das contradies e a manuteno da legitimidade da rede de proteo ...................................................................................................................... 85

    3.2. O Sacrifcio da Famlia ............................................................................................. 88 3.2.1. A famlia como instrumento de gesto .............................................................. 89 3.2.2. A organizao tutelar em torno das famlias ...................................................... 94 3.2.3. A exposio das falncias familiares ................................................................. 95 3.2.4. A Salvaguarda do Bom Desenvolvimento como Preveno ao Risco ............... 99 3.2.5. A ausncia do pai ............................................................................................. 104 3.2.6. Quem salvar nossos filhos? Entre o poder familiar e o poder estatal ........... 107

    3.3. A Apoteose da Desgraa ......................................................................................... 110

    4. Consideraes Finais: A Escrita como Ferramenta ....................................................... 120

    Referncias Bibliogrficas ................................................................................................. 124

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    Introduo

    Em algum ponto perdido deste universo, cujo claro se estende a inmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante de maior mentira e da suprema arrogncia da histria universal (Nietzsche, 1873).

    Em 1973, Michel Foucault abre o conjunto de conferncias proferido no Brasil intitulado A Verdade e as Formas Jurdicas, partindo das discusses desenvolvidas por Nietzsche no texto Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral, para afirmar que a busca pelo conhecimento no algo natural. Essa busca no se originaria de uma suposta natureza humana; no existiria uma relao de continuidade entre o conhecimento e as coisas a conhecer, e tal relao seria, antes de tudo, uma relao fabricada. Para Nietzsche (1873), a busca por conhecimento parte de uma luta entre trs paixes: o rir, o detestar e o deplorar. O que haveria de comum nessas trs paixes no seria uma aproximao com o objeto do conhecimento, mas uma maneira de conservar o objeto distncia, de diferenciar-se, de colocar-se em ruptura com ele, desvaloriz-lo e eventualmente destru-lo. Nietzsche (1873) coloca-nos em posio de dio, desprezo ou temor diante de coisas ameaadoras e presunosas que escolhemos conhecer.

    A produo do conhecimento, dentro dessa perspectiva, aconteceria em um momento de estabilizao do estado de guerra entre essas trs paixes e apareceria como que atravs de um corte, a centelha entre duas espadas. Na viso do autor, para entender o processo de produo do conhecimento, deveramos nos aproximar no dos filsofos, mas dos polticos, uma vez que o conhecimento consiste em relaes de luta e de poder entre os homens. Nesse sentido, o conhecimento vai ser sempre uma relao estratgica parcial, oblqua e perspectiva. Essa viso contrape-se s anlises weberianas (1967-1968) presentes em Cincia e Poltica: duas vocaes, em que o autor prope a ciso entre cincia e poltica, opondo a tica da condio do cientista e a tica da responsabilidade do poltico como questes dicotmicas.

    Neste estudo, desde o comeo, afirmo seu carter poltico e sua insero em um campo de lutas e de relaes de poder. Assumo a maldade radical que caracteriza as

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    paixes que declaro por meu objeto de estudo. Fao isso no no sentido de sacrament-las, mas de coloc-las em anlise junto com esta produo e, ainda, no intuito de procurar narrar como foi se configurando e modificando o campo de batalhas que deu origem a este estudo.

    Inicio esta pesquisa nomeando meus inimigos. O primeiro deles a Justia Brasileira, representada por uma Themis que espera sentada em frente ao Supremo Tribunal Federal. Convido-a aqui a retirar sua venda, a assumir que sua neutralidade uma postura poltica e, frente a isso, a erguer sua espada e tomar seu lugar na guerra das cincias. O meu segundo adversrio a prpria Psicologia quando, no menos cega e dissimulada, se coloca a servio da Justia, maquiando com status cientfico a negao de suas implicaes polticas. Embora opte por nomear a Psicologia, as crticas destinadas a esse campo de saber so tambm extensivas a outros, como a Psiquiatria, a Pedagogia e o Servio Social, que se aliam ao primeiro na produo de verdades.

    A escolha dos inimigos a enfrentar parte de uma inquietao quanto forma como, at ento entendia, o Poder Judicirio intervinha sobre as Polticas Pblicas, em especial em relao s Polticas de Sade Mental e apatia destas na construo de respostas a esse intervencionismo. Essa preocupao acentuava-se diante do fato de muitas dessas intervenes virem no sentido de legitimar prticas de internao e excluso social, contrrias a todo o processo de lutas por estratgias de cuidado em Sade Mental preconizadas pelo movimento de Reforma Psiquitrica1. Nesse cenrio, chamava minha ateno especialmente o acentuado nmero de internaes judiciais para tratamento de adolescentes contra drogadio.

    Esse foco de pesquisa dialoga com o fato de, durante a graduao acadmica, ter tido a oportunidade de realizar estgio em uma unidade de internao de crianas e adolescentes no Hospital Psiquitrico So Pedro, em um momento em que o nmero de adolescentes internados para tratamento em funo do uso de drogas passou a superar o nmero de internos com quaisquer outros dos interminveis CIDs2 j fabricados. Junto a isso, passaram a ser cada vez mais comuns as internaes via ordem judicial, que burlavam a fila de espera por leitos.

    Para visualizarmos as dificuldades que se apresentam na capacidade de atendimento

    1 Detalhado mais adiante (p. 14).

    2 Classificao Internacional de Doenas.

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    dos servios especializados para tratamento de crianas e adolescentes usurios de drogas: em Porto Alegre, por exemplo, existem somente trs Centros de Ateno Psicossocial3 em modalidade especfica para o atendimento em Sade Mental de Crianas e Adolescentes, os CAPSi. As poucas vagas disponveis nesses servios so ocupadas por crianas com os mais diversos tipos de diagnsticos psiquitricos, no sendo os servios direcionados unicamente para o atendimento drogadio. Alm desses servios, existem alguns poucos espaos de apoio para atendimento em Sade Mental que prestam retaguarda rede bsica de sade, como equipes de matriciamento e ambulatrios, mas, em geral, atendem casos com menor nvel de comprometimento psquico do que aqueles acolhidos nos CAPSi.

    Para ter acesso s poucas vagas que a rede especializada oferece, preciso que os pacientes4 recebam encaminhamentos atravs das unidades bsicas de sade, pois geralmente os CAPSi no recebem pessoas que buscam atendimento espontaneamente. Alm disso, o paciente precisa preencher determinados critrios definidos pelas equipes como perfil para dar incio ao acompanhamento; muitas vezes, essa definio feita de forma arbitrria, sendo excludas de diversos servios, por exemplo, pessoas que apresentem comorbidades, como o uso de drogas e a esquizofrenia. A rede bsica de sade, por sua vez, que deveria dar continncia e servir de referncia para os problemas de sade mais recorrentes na populao, enfrenta um despreparo para atender pacientes usurios de drogas, tendo no encaminhamento para os servios especializados uma resposta frequente para essas situaes, o que agrava o esgotamento vivido por esses servios. Por fim, em funo da grande lista de espera, quando as crianas e adolescentes conseguem ter acesso ao tratamento, a falta de comprometimento e assiduidade do paciente pode acarretar-lhe a perda da vaga e seu desligamento do servio. Essa situao no exclusiva da capital do Estado; em muitos municpios do interior, existem ainda menos recursos do que em Porto Alegre.

    Esse conjunto de fatores a saber, a falta de servios especializados, a dificuldade de construo dos fluxos de encaminhamento na rede pblica, as exigncias impostas para

    3 CAPSi do Grupo Hospitalar Conceio, CAPSi - Casa Harmonia e CAPSi do Hospital de Clnicas de

    Porto Alegre. 4 Opto por utilizar o termo paciente em substituio ao termo usurio, mais largamente utilizado em

    produes cientficas e por profissionais da sade coletiva para referirem-se pessoa que recebe atendimento na rede pblica. A despeito das discusses sobre essas diferentes terminologias, a escolha do termo paciente deu-se para no causar confuses entre a referncia ao usurio como sujeito que faz uso dos servios da rede pblica e a referncia ao usurio como sujeito que faz uso de drogas.

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    a continuidade do tratamento e o despreparo da ateno bsica para dar continncia a essas situaes, somados ainda ao aumento concreto da demanda por atendimento nessa modalidade, que no foi acompanhada pelo crescimento na oferta de servios5 acaba dificultando ou, em alguns casos, impossibilitando a chegada de crianas e adolescentes usurios de drogas aos servios de Sade Mental.

    So esses limites encontrados na poltica de sade que tm levado a populao a buscar a materializao de alguns de seus direitos constitucionais atravs de estratgias do campo jurdico. Hoje h famlias, usurios e at mesmo outros servios da rede pblica que no conseguem vagas para seus pacientes, que buscam no Sistema de Justia uma forma de garantir o acesso aos servios de sade. Outras tantas crianas e adolescentes vo conseguir o tratamento para a drogadio quando chegam ao Judicirio por outras vias, j mais agravadas, como envolvimento em atos infracionais, explorao sexual, explorao do trabalho infantil, abandono ou mendicncia, em que o direito sade somente um dos muitos direitos que j foram violados na vida desses adolescentes. Embora o Judicirio seja efetivamente uma via de acesso a algum tipo de atendimento, muitas decises judiciais provocam confuses no interior dos servios. Isso porque so realizados encaminhamentos equivocados, como no caso de medidas judiciais que indicam que o adolescente, aps a desintoxicao em uma internao psiquitrica, deve ser encaminhado para uma Comunidade Teraputica (CT)6. Embora as CTs no estejam previstas na poltica de sade como parte do conjunto de servios, nos ltimos trs anos, v-se um movimento dos municpios no sentido de buscar firmar convnios com CTs privadas para que sejam disponibilizadas vagas para a rede pblica. Ainda, em algumas cidades, j existem CTs construdas pelas prprias Prefeituras Municipais.

    Outros equvocos encontrados nas decises judiciais so determinaes de que os adolescentes recebam tratamento para drogadio em instituies como o Manicmio

    5 As dificuldades no acesso e na manuteno do tratamento para drogadio de crianas e adolescentes so

    muito mais complexas e no podem ser reduzidas a uma listagem de fatores. Aqueles que optamos por ressaltar aqui servem mais para ilustrar o problema e no tm a pretenso de esgot-lo.

    6 As Comunidades Teraputicas (CTs) so instituies voltadas para o atendimento de usurios de drogas,

    que ficam retirados do contexto familiar e social por um perodo de nove a doze meses. Nesse perodo, os adolescentes desenvolvem atividades, como trabalhos braais em regies de fazendas. Na maioria, as CTs possuem forte cunho religioso, obrigando os adolescentes a essa prtica. Alm disso, comum a ausncia de uma equipe de sade nessas instituies. Conforme identificado pela 4 Inspeo Nacional de Direitos Humanos promovida pelo Sistema Conselhos de Psicologia, disponvel em: http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/noticias/noticia_111128_002.html.

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    Judicirio que, para dizer o mnimo, s atende adultos ou em Centros de Referncia em Assistncia Social que nem sequer fazem parte da Poltica de Sade. J para aqueles servios em que o encaminhamento feito pelo Judicirio possvel, como unidades de internao psiquitrica, o atendimento s medidas judiciais acaba tirando vagas de outros pacientes que igualmente necessitariam de cuidados e que permanecero aguardando nas listas de espera. Muitos dos servios que antes atendiam uma diversidade de pacientes hoje esto destinados, majoritariamente, queles que necessitam de tratamento para drogadio e que chegam ao servio atravs do Sistema de Justia. Supondo-se que as demais formas de adoecimento da populao no desapareceram, esses pacientes podem perder espaos de atendimento, caso no busquem estratgias como o prprio Judicirio para garantir-lhes, tambm, o direito sade.

    Segundo noticiado pelo Conselho Nacional de Justia no dia 11/11/20107, existiam em torno de 112.324 processos em trnsito no Judicirio relacionados garantia do direito sade; j no ms de abril de 2011, ltima atualizao divulgada, esse nmero chegava a 240.980. No se pode negar o impacto que as decises judiciais podem ter em relao conduo das polticas de sade, uma vez que oferecem respaldo a algumas determinaes sobre a forma como a gesto pblica deve ofertar servios populao e acabam, com isso, direcionando parte dos investimentos da pasta da sade para assegurar as demandas endossadas em suas decises.

    Posterior a esse estgio no Hospital Psiquitrico So Pedro, desenvolvi outra experincia curricular junto a mais uma instituio estatal, nesse caso, responsvel pelo acolhimento institucional de crianas com medida de proteo de abrigamento. Por uma srie de boas coincidncias, acabei estagiando junto a um ncleo de casas em que havia uma destinada especialmente para meninos adolescentes com histrico de uso de drogas, e/ou ato infracional, e/ou longa permanncia na rua, e/ou apresentando comportamentos que poderiam de alguma forma (no entendimento da instituio e de alguns de seus tcnicos) expor outras crianas abrigadas a situaes de violncia. Muitos adolescentes j iam para abrigamento com a determinao do prprio Poder Judicirio de que fossem destinados a essa casa especfica.

    Alguns dos adolescentes abrigados nessa casa j eram antigos conhecidos ou, no

    7 Agncia CNJ de Notcias (2011 e 2010).

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    por acaso, se pareciam muito com aqueles que havia encontrado no Hospital Psiquitrico. De qualquer forma, eram adolescentes que tinham ntima relao com o Poder Judicirio, quase como aquela intimidade que outras crianas e adolescentes desenvolvem com instituies como a escola. Os relatos narrados por esses adolescentes em ambos os espaos de estgio sobre o funcionamento do Judicirio denunciavam o que me parecia uma arbitrariedade na forma como as decises sobre o destino de suas vidas eram tomadas naqueles espaos. Houve uma situao em que um adolescente havia fugido do abrigo, sendo pego com drogas pela polcia e encaminhado Fundao de Atendimento Socioeducativo (FASE), instituio responsvel pelo acolhimento de adolescentes que cometeram ato infracional. Na audincia com o Juiz, este questionou o menino sobre qual gostaria que fosse seu destino: o abrigo ou a FASE; ele escolheu o segundo, para onde foi enviado. Pouco tempo depois, o adolescente mudou de ideia e pediu seu retornou para o abrigo.

    O estranhamento... Como pode ser de livre escolha o ingresso em duas instituies que, ao menos teoricamente, possuem atribuies to distintas? O adolescente trazia, nesse episdio, o que soou para mim como uma denncia no s da falta de critrios quanto deciso judicial, mas da semelhana na forma como eram tratados os adolescentes naquela casa e na FASE. Quando interrogado sobre sua escolha, o adolescente disse que, na FASE, ele no precisava fazer tarefas, como lavar a loua e tirar o lixo ao menos fora este o motivo manifesto para sua deciso inicial. Fica evidente que as questes que me moviam a questionar as atitudes do Judicirio no eram arbitrrias e deslocadas dos equvocos presentes nas redes de Sade e Assistncia Social. Talvez, na lgica do juiz, fosse coerente questionar o jovem quanto ao seu local de destino, posto que ambos os espaos seriam similares em seus dispositivos socioeducativos. Passo, ento, a seguir uma srie de pistas de outros atores responsveis por esse aumento das internaes via medida judicial. Ao atentar-se para aquilo que dito sobre a adolescncia8 drogadita, facilmente observa-se que esse assunto tem estado massivamente presente em produes acadmicas, audincias pblicas, debates polticos, publicaes miditicas, campanhas beneficentes, promessas eleitorais, reunies de professores, sermes religiosos, assembleias de

    8 Sobre o uso do termo adolescncia, nos deteremos mais adiante (p. 27).

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    moradores, conversas de famlia, dilogos de taxistas... Como pauta constante no cotidiano da sociedade, o uso de drogas por adolescentes tem sido utilizado, por exemplo, como quadro emblemtico por atores contrrios Reforma Psiquitrica para evidenciar a ineficcia dos servios substitutivos frente s potenciais solues oferecidas, segundo eles, pela internao psiquitrica em hospitais e clnicas especializados. O efeito disso tem sido o significativo aumento da busca por servios de internao como possibilidade de resoluo de um quadro de drogadio.

    No Brasil, a Reforma Psiquitrica buscou reorientar a assistncia em sade mental atravs do fechamento dos hospitais psiquitricos e da criao de servios que garantam o tratamento9, substituindo o enclausuramento e a medicalizao pela insero social e pelo comprometimento da sociedade na construo de estratgias de cuidado e promoo de vida. Esse movimento rompe com o monoplio da Psiquiatria sobre a loucura e com interesses econmicos das grandes empresas farmacuticas e de equipamentos hospitalares. Nesse meio, cria-se um campo de fora entre aqueles que afirmam a importncia da manuteno dos grandes hospitais psiquitricos como nico espao que pode realizar uma internao efetiva e dar conteno a pacientes graves entendidos, dentre estes, os dependentes qumicos e os que propem a abertura de leitos para internao em hospitais gerais, garantindo que essa internao seja pelo tempo mais breve possvel, durante os momentos de crise com maior risco de vida; sanado esse perodo, o paciente voltaria a ser atendido na rede de servios substitutivos.

    Embora a internao psiquitrica seja, dentro das Polticas de Sade Mental, a alternativa mais extrema dentre as modalidades de assistncia psiquitrica, no iderio comum e dentre alguns grupos de profissionais da rea, ela ainda usufrui de um lugar de destaque, adquirindo prestgio como nica possibilidade de eficcia para o tratamento de usurios de drogas. As demais alternativas, oferecidas pelos servios substitutivos, tm sido apontadas, no mximo, como novidades interessantes nas concepes de tratamento e,

    9 Servios como os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), que oferecem atendimento em Sade Mental

    para pacientes com comprometimento psquico moderado e grave. Os CAPS desenvolvem, durante o dia, oficinas teraputicas e atendimentos individuais e em grupo; noite, o paciente retorna para sua moradia. Algumas modalidades de CAPS preveem a possibilidade de internao em perodos de crise por at 72 horas. Outros servios, como os Residenciais Teraputicos, so destinados queles pacientes crnicos que ficaram por longos perodos internados e cuja famlia no tem condies de acolh-los ou no foi localizada. So penses que contam com o apoio de uma equipe de sade, que no detm esse sujeito, mas promove sua reinsero social.

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    no mnimo, como uma opo de resultados duvidosos.

    Uma das presses exercidas sobre a, e pela, sociedade em geral no sentido de que a escolha errnea da forma de tratamento pode colocar em risco o destino de vidas humanas ao comprometer as raras oportunidades de remisso existentes. Isso porque o que se tem construdo em torno do usurio de drogas uma noo de periculosidade que exporia ao perigo sua prpria vida, a de seus familiares e a da sociedade como um todo. A adolescncia drogadita descrita como violenta, agressiva e sem controle sobre seus atos, sendo esses adolescentes, portanto, impossibilitados de acessar outras formas de cuidado em sade mental que no a internao psiquitrica, uma vez que no tm como assumir a responsabilidade sobre a conduo de seu tratamento.

    Em uma pesquisa desenvolvida pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul10 que analisou os discursos presentes na imprensa gacha sobre lcool e outras drogas, identificou-se que, embora sejam narradas na mdia histrias de pacientes com uma sequncia significativa de internaes psiquitricas, todas seguidas de recadas no uso da droga, no questionada a eficcia desse tipo de atendimento, sendo apontado unicamente o fracasso do paciente. Em um dos artigos de Zero Hora analisados,11 o jornal veicula a opinio de um mdico psiquiatra, que afirma que a Reforma Psiquitrica havia sido pensada em um perodo anterior epidemia do crack, mas que precisava ser revista naquele momento, frente necessidade de abertura de mais leitos em hospitais psiquitricos. A Reforma Psiquitrica chegou a ser afirmada como um dos mais importantes entraves garantia de atendimento em sade s pessoas que fazem uso de drogas.

    Ao seguir essas mltiplas pistas, chego a alguns dos demais atores que fazem essa rede operar: os grandes centros de pesquisa, que no disfaram seu desejo de transformar o Hospital Psiquitrico e seus pacientes em objetos de estudo; os hospitais privados, que recebem verbas governamentais para atender casos que no conseguem ser absorvidos pela rede pblica de sade; o aumento do valor pago pelo leito de internao para usurios de drogas como um incentivo aos hospitais, que precisam adaptar-se a essa demanda; as

    10 A referida pesquisa, ainda no publicada na ntegra, analisou as publicaes que faziam referncia a

    lcool e drogas em trs jornais impressos de grande circulao no Rio Grande do Sul, entre os meses de maio e julho de 2009.

    11 Artigo de Csar Augusto Trinta Weber, de 04 de junho de 2009, intitulado: Por que o crack est

    matando?. Jornal Zero Hora. Editoriais, Porto Alegre, p. 22.

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    indstrias farmacuticas, que vendem drogas que auxiliam na abstinncia de outras drogas; a formao mdica envelhecida e enrijecida frente s mudanas nas prticas de sade que apontam para uma sade coletiva, retirando a primazia desse campo de saber sobre a sade; os familiares de usurios de drogas, cansados do convvio dirio com as situaes de violncia que so associadas ao uso; as escolas impotentes em relao sua funo forma(tiza)dora; os ditos cidados de bem, que no teriam nada a ver com isso, no fosse pelo fato de serem importunados por usurios de drogas que vm lhes pedir dinheiro, assaltar, sujar as ruas por onde passam12; o trfico de drogas reconhecido, por alguns, como prtica ilcita que produz novas desigualdades e a proliferao de homicdios no pas e, por outros, como expresso de uma revolta social que denuncia desigualdades e promove a oferta de outro contrato social. No estou me esquecendo do prprio adolescente, mas deixo-o em suspenso simplesmente por no ter clareza do tamanho de seu protagonismo ou sujeio. Fato que, diante de todos esses atores, minha luta com o Judicirio passou a ser intil: o Sistema de Justia, de estrela principal, foi gradativamente tomando lugar em uma rede complexa de agentes que adquirem diferentes destaques, de acordo com a ao que est sendo tecida. Foi preciso criar uma nova estratgia de batalha. Passo a pensar em um movimento de judicializao das polticas pblicas, no mais como uma atitude impositora de um Judicirio que est acima delas, mas como um efeito que produzido e produtor de relaes que perpassam o campo social. Diante disso, ao buscar analisar as interaes dessa rede que operam na multiplicao das internaes de adolescentes usurios de drogas, percebo que esse processo de judicializao extrapola o domnio jurdico e o campo da sade e faz parte de um conjunto de mecanismos de poder pautados por uma lgica normatizadora, os quais assumem, muitas vezes, a funo de manuteno de certa ordem social.

    Passei a compreender que o que est em questo nos Processos Judiciais muito mais do que unicamente a garantia do direito sade so os efeitos que essa judicializao faz disparar ao agir em nome da garantia de direitos. Refiro-me aqui forma como esse fenmeno de judicializao age na organizao das polticas pblicas e, por consequncia, nos modos de governo da populao. Esses modos de governo sustentam-se

    12 Idem ao anterior.

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    em discursos hegemnicos, como o da famlia desestruturada, da ausncia da figura paterna, dos perigos da pobreza, da agressividade adolescente, etc., evidenciando a cumplicidade da Psicologia nesse processo de judicializao, atravs da produo e proliferao desses discursos.

    Nesse sentido, passo a olhar mais atentamente a forma como os campos de saber psi13 tambm entram na lgica de judicializao. Eles judicializam atravs de suas prticas e o fazem na medida em que so chamados a oferecer respostas ao Sistema de Justia e sociedade sobre sujeitos usurios de drogas que no tm um lugar de destino aqui no como uma mera expresso simblica, mas que concretamente esto fora das instituies que construmos, extrapolam o mbito familiar e a competncia escolar, so desqualificados para o mercado formal de trabalho e, muitas vezes, no encontram assento nem mesmo junto s polticas que se destinam ao seu cuidado. Ao oferecer explicaes sobre esses sujeitos, os saberes psi acabam reiterando um olhar que se fixa no desvio e na necessidade de maior interveno do Estado atravs de polticas de educao, assistncia social, justia e, principalmente, sade e segurana pblica. Assumindo esse posicionamento, os campos psi tambm contribuem para a construo de uma racionalidade que sustenta esse processo de judicializao do cuidado sobre os adolescentes usurios de drogas e que legitima a internao psiquitrica como forma de tratamento a ser buscada.

    Sobre tudo aquilo de que no trata esta dissertao...

    Estando declaradas minha implicao e a de meus adversrios com o objeto de estudo desta pesquisa, qual seja, as internaes judiciais de adolescentes para tratamento por uso de drogas, preciso situar novamente os objetivos desse embate, uma vez que, j no projeto, a banca apontava a necessidade de identificar quais dos objetivos indicados eram objetivos principais e quais deles seriam objetivos secundrios. Isso porque, ao longo do trabalho, havia cerca de quinze propostas a serem desenvolvidas.

    13 Ao falar em campos de saber psi, refiro-me no somente Psicologia, mas ao que Hning e Guareschi

    (2005) definiram como o conjunto das prticas discursivas que esto voltadas para o gerenciamento da subjetividade, extrapolando o campo disciplinar da Psicologia e capilarizando-se nas mais diversas prticas sociais.

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    Entretanto, antes de retomar os objetivos, preciso deixar claro do que no trata esta dissertao. Este um momento em que tem se produzido dentro da academia muitas teses e dissertaes sobre o tema, na busca de oferecer respostas a essa problemtica. Este trabalho certamente no se prope a resolver o problema do uso de drogas na adolescncia e tambm no trata de apontar simplesmente a necessidade de aumento na oferta de servios de sade ou a importncia de um maior dilogo entre sade e justia para esclarecer eventuais equvocos sobre o tratamento de usurios de drogas. Por fim, o trabalho no procura simplesmente acusar o Direito, a Psicologia ou os servios da rede pblica de assistncia como responsveis pelas falncias no cuidado aos usurios de drogas, em uma atitude meramente denuncista.

    A Psicologia j produziu muito a respeito de como o Estado e o Judicirio devem intervir sobre as famlias, sobre os adolescentes e sobre a populao em geral para tentar resolver os problemas reconhecidos como decorrentes do uso de drogas. A produo discursiva da Psicologia sobre o tema das drogas tambm tem sido tpico de importantes trabalhos acadmicos nos ltimos anos (Scisleski, 2006; Oliveira, 2009; Petuco, 2011).

    Retomando alguns dos muitos objetivos propostos no projeto, esta poderia ter sido mais uma produo dedicada a evidenciar os discursos cientficos da Psicologia que produzem sentidos sobre os adolescentes usurios de drogas e sustentam as determinaes judiciais14 ou poderia ter buscado identificar, nos Processos Judiciais de internao psiquitrica, as justificativas que partem do campo de saber da Psicologia utilizadas para fundamentar tais discursos. O fato de situar a produo discursiva da Psicologia no mbito do Judicirio j traria interessantes e novos elementos de anlise para agregar valor produo cientfica sobre o tema.

    Poderia tambm ter produzido uma pesquisa que desse visibilidade s relaes de saber e poder que esto implicadas no processo de judicializao ou percorrer as estratgias que atuam na produo de um regime de verdade em torno da racionalidade que entende a internao psiquitrica como alternativa privilegiada de cuidado para os adolescentes usurios de drogas. Poderia ter percorrido o aumento da demanda por internao ou certa necessidade de internar uma determinada parcela da populao. Cada um desses objetivos, individualmente, poderia ter originado uma dissertao. Eles no

    14 Em itlico: objetivos indicados no projeto de dissertao.

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    eram objetivos contraditrios entre si, mas ofereciam de fato o risco de dificultar meu direcionamento para o foco da minha dissertao, que naquele momento era: como a articulao entre as prticas da Sade e da Justia delineiam determinados modos de governo sobre a vida de adolescentes usurios de drogas?

    No entanto, parece-me que, nesse problema de pesquisa, ainda havia algo que precisava ser esclarecido para chegarmos ao que foi se constituindo como o cerne deste estudo. O que fomos15 percebendo ao longo do trabalho, ao entrarmos em contato com os materiais de pesquisa, que essa produo da Psicologia vinculada ao Judicirio na busca de gerar mecanismos de proteo sobre a vida de adolescentes usurios de drogas possui no s o potencial protetivo atravs do qual se justifica sua unio, mas tambm um potencial punitivo e destrutivo sobre a vida desses adolescentes. Nesse sentido, no bastava olhar para a produo de determinados modos de governo quando, na realidade, a questo que se colocava era especificamente analisar esse processo de produo de prticas punitivas que agem em nome da proteo.

    Diante disso, procuramos tornar o problema de pesquisa mais direcionado a essa questo que emergia naquele momento. Portanto, neste trabalho, buscamos evidenciar como, na articulao entre Sade e Justia, se produz uma inverso das estratgias de cuidado e proteo social em mecanismos de desproteo e vulnerabilizao de adolescentes que fazem uso de drogas. Para poder perseguir essa questo de pesquisa, preciso retomar aquelas questes que abandonamos enquanto objetivos e situ-las como ferramentas para a realizao desse debate.

    At o presente momento do percurso de escrita desta dissertao, procuramos promover estranhamentos frente ao processo de judicializao do cuidado em sade mental de adolescentes usurios de drogas. Para tanto, evidenciamos sua emergncia no como algo natural, mas situamos as questes que oportunizaram a construo desse processo de judicializao da forma como ele acontece no atual contexto histrico, poltico, social e

    15 A partir deste ponto, passo a escrita desta dissertao para a primeira pessoal do plural, recorrendo

    primeira pessoa do singular somente em momentos bem especficos. Fao isso porque, apesar de a dissertao ser uma produo de autoria mais individualizada, ela tambm efeito da insero desta pesquisadora por mais de sete anos no Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivao, coordenado pela Professora Neuza Guareschi um espao efetivo de construo de conhecimento compartilhado nesse coletivo de estudantes e pesquisadores. Alm disso, a escrita desta dissertao nunca foi um caminho solitrio, estando sempre acompanhada das reflexes conjuntas com a orientadora e, mais adiante nesse percurso, das contribuies da co-orientao.

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    cultural e os motivos que entendemos como aqueles que tornaram esse tema problemtico na contemporaneidade.

    A seguir, o primeiro captulo destina-se construo do problema de pesquisa, isto , buscamos evidenciar como os adolescentes usurios de drogas vm a ser afirmados como um novo problema social, associado criminalidade e doena, que convoca os campos de saber a produzir respostas a esse problema e o Estado a intervir nele. A partir disso, buscamos evidenciar como, ao oferecer respostas, os campos de saber operam uma naturalizao e individualizao de questes econmicas e sociais relacionadas ao uso de drogas. Alm disso, buscamos destacar que essa naturalizao no fica circunscrita ao indivduo, mas passa a configurar a construo de uma categoria populacional de adolescentes drogaditos potencialmente perigosos e de mecanismos de governo sobre essa populao. Destacamos, ainda, como as intervenes propostas, embora venham agir em nome da proteo desses jovens, vo se configurar muitas vezes como prticas punitivas e vulnerabilizadoras. Nesse sentido, propomo-nos a analisar como essa inverso das prticas protetivas em punitivas vai se constituir no interior dos Processos Judiciais, bem como as formas a partir das quais se sustenta e se atualiza na contemporaneidade.

    Para analisarmos o processo de fabricao de verdade sobre a populao de jovens usurios de drogas, no segundo captulo, trazemos os elementos tericos que oferecem a base para avanarmos no desenvolvimento da anlise dos materiais de pesquisa, situando a importncia de considerarmos os efeitos que tanto humanos quanto no-humanos produzem sobre a questo que nos propomos a investigar. Buscamos, nesse captulo, problematizar o prprio Processo Judicial, evidenciando os modos como a vida dos sujeitos vo se constituir como objeto de clculo no interior do Processo. Ainda, procuramos examinar como o Judicirio se articula com outros campos de saber para a manuteno do estatuto de verdade dos seus vereditos. Em seguida, passamos construo dos procedimentos metodolgicos de pesquisa e a uma anlise detalhada dos documentos que compem os Autos Processuais em anlise e do que esses documentos fazem ver e falar sobre os jovens em questo.

    No terceiro captulo, a partir dos materiais de pesquisa, discutimos a construo da biografia dos jovens nos Processos Judiciais, evidenciando como as cincias psi e demais aliadas se inserem em uma lgica inquisitria regida pela predominncia das hipteses

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    sobre os fatos, isto , vemos a produo de um relato seletivo sobre as vidas dos jovens usurios de drogas e de suas famlias que vem legitimar as hipteses destes enquanto sujeitos perigosos que necessitam ser internados e reinternados. Alm disso, ao final do terceiro captulo, buscamos dar visibilidade aos desfechos dos Processos Judiciais, mostrando o gradativo aumento dos fatores de vulnerabilidade a que os jovens usurios de drogas e suas famlias acabam sendo expostos ao longo do perodo que esto sob a proteo do Complexo Tutelar e o olhar atento do Sistema de Justia.

    No quarto e ltimo captulo, retomamos as discusses ticas acerca das prticas psicolgicas e dos demais campos de saber. Ressaltam-se a implicao poltica das cincias e sua cumplicidade quanto aos efeitos produzidos pelos Processos Judiciais na vida da populao em foco.

    A seguir, apresentamos, ento, as ferramentas tericas que nos oportunizam colocar

    em anlise os campos de saber que sustentam a adolescncia drogadita como uma questo social que convoca e promove a proliferao de uma srie de instituies, procedimentos, tcnicas, estratgias e instrumentos criados para oferecer respostas a essa questo problema. Ainda, cabe considerar a forma como esses campos de saber e tecnologias de poder produzem efeitos nos modos de ser sujeito usurio de drogas, profissional de sade, me, pai, professor, vizinho, juiz, promotor, gestor pblico e das demais posies de sujeito possveis queles a quem se concede autoridade ou que reivindica o conhecimento para solucionar, na mesma medida em que passa tambm a forjar, esse novo problema social.

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    1. A produo de uma subjetividade adolescente drogadita e dos modos de govern-la

    1.1. A construo da adolescncia drogadita como um novo problema social

    H 10 anos atrs, no tinha nenhum caso no Estado. Estimamos que existam hoje de 50 a 60 mil usurios de crack.

    Essa frase, pronunciada pelo ento Secretrio da Sade do Estado do Rio Grande do Sul16, representativa das formas como a relao adolescncia e uso de drogas vem sendo apresentada como um problema novo a ser encarado pelos diversos atores sociais. H 10 anos, praticamente no havia venda de crack no Estado, e a populao gacha era significativamente menor; no entanto, os ainda mais raros servios de sade mental voltados para o atendimento de crianas e adolescentes j se viam superlotados com atendimento de usurios de lol e outros entorpecentes. Logo, a surpreendente novidade aqui no pode estar na existncia de um grande nmero, hoje indiscutivelmente ainda maior, de usurios de drogas no Estado, nem na necessidade de os servios de sade se ocuparem do atendimento dessa populao. Assim, passamos a estranhar a forma como o uso de drogas por adolescentes emerge, neste momento, como um grande problema para a sociedade, convocando a todos a se envolverem e demandando aes de governo por parte do Estado e respostas dos campos de saber na busca de uma soluo.

    Em uma pesquisa desenvolvida por Silva et. al. (2008) que teve como objetivo evidenciar as transformaes naquilo que passa a ser definido como patologia nos modos de ser criana e adolescente, foi realizada uma anlise dos pronturios do Hospital Psiquitrico So Pedro desde sua inaugurao, em 1884, at o ano de 1937. A pesquisa realizou, ainda, uma anlise comparativa com os dias atuais e constatou que, atualmente, o principal sintoma nos registros de internao a drogadio e que a pobreza e o encaminhamento judicirio so caractersticas predominantes dos processos de internao. Esses dois ltimos fatores, a pobreza e a presena de um dispositivo jurdico-policial,

    16 Essa frase comps a fala de Osmar Terra, Secretrio Estadual da Sade durante o Governo Yeda

    Crusius (de 2007 a 2010), em um talk show intitulado Painel RBS Todos Contra o Crack, promovido pela empresa de multimdia no Barra Shopping Sul, em Porto Alegre, no dia 29 de junho de 2009, como uma das aes de lanamento da campanha Crack, nem pensar. Essa ao foi divulgada pelos veculos de comunicao do grupo e est disponvel em: http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/portal-social/19.0.2563380.Crack-um-talk-show-para-mobilizar-oEstado.html.

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    mantm-se constantes ao longo de todos os anos nos casos analisados e ainda se fazem presentes nas internaes atuais, evidenciando que a relao entre saberes jurdicos e psiquitricos em torno da infncia e da juventude possui uma longa tradio. A internao aparece como um mecanismo utilizado para dar conta da ordem pblica e de uma organizao e higienizao da pobreza: temos um histrico de crianas e adolescentes internados no por apresentarem doena mental, mas por distrbios de comportamento.

    No por acaso, ento, que a emergncia desse novo problema venha associada proliferao da imagem da adolescncia drogadita atrelada violncia, afirmadamente provocada pelo descontrole emocional, efeito do uso da substncia ou da necessidade de obter dinheiro ou outros bens que possam ser utilizados para adquirir mais entorpecentes. Alm disso, essa populao de adolescentes, marcada por sua drogadio, passa a ser descrita como em situao de vulnerabilidade social, sendo os adolescentes caracterizados ora como vtimas, ora como protagonistas desse enunciado problema social. Soma-se a isso o fato de que a criminalidade em torno da questo das drogas se tornou um dos temas mais falados da ltima dcada, abordando-se desde medidas preventivas at medidas repressivas, bem como seus custos e benefcios ao promoverem a defesa da sociedade.

    Freitas (2009) ressalta que o aumento da violncia juvenil e o uso de drogas por adolescentes tendem a remeter, muitas vezes, busca de uma causa fundamental. O efeito disso que a fala de especialistas e as produes de determinados campos de saber, ao oferecerem explicaes, operam circularmente na prpria construo do problema que objetivam elucidar. Essa perspectiva de produo do conhecimento est fundamentada na crena de que haveria uma natureza a ser curada e recuperada nesses adolescentes. Na busca de uma possibilidade de recuperar o sujeito considerado desviante, a Psicologia e o Direito acabam contribuindo para a construo de um modo de ser sujeito usurio de drogas marcado por uma suposta identidade drogadita/dependente/viciada/violenta.

    Assim, evidenciamos os modos como os adolescentes usurios de drogas vm sendo investidos enquanto um grande problema social e as estratgias oferecidas para dar conta desse problema. Embora, como afirmamos anteriormente, a violncia ou o uso de drogas na adolescncia no seja algo novo, um problema que emerge, neste momento, como novidade. O inovador no est, portanto, na questo em si, mas nas relaes que se estabelecem com ela. O que procuramos destacar aqui que, ainda que os sentidos

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    atribudos adolescncia drogadita sejam datados historicamente, alguns campos do conhecimento que corroboram a construo desses sentidos procuram apagar essa historicidade, atribuindo um carter essencialista s suas afirmaes como descobertas de uma natureza que est na base de um problema social e individual.

    1.2. A construo de uma teoria do sujeito adolescente usurio de drogas

    Becker (1991), em seu livro Outsiders, vai analisar a forma como, nas diferentes culturas, vo se nomeando determinados sujeitos como desviantes. A possibilidade de reconhecer adolescentes usurios de drogas como um problema social est, da mesma maneira, relacionada ao fato de esses jovens apresentarem comportamentos que extrapolam as regras sociais, sendo, portanto, considerados desviantes. Becker (1991) questiona se o que a populao em geral busca saber sobre os desviantes o que os leva a transgredir as regras. Ao tentar encontrar respostas a essa pergunta, o que as cincias fazem aceitar a premissa de que haveria algo inerentemente desviante em certos atos e de que existem caractersticas individuais que levam algumas pessoas ao desvio. Ao deixar de questionar a produo dessa noo desviante, as cincias que assim o fazem corroboram a afirmao de determinados comportamentos como sendo naturais e de outros como disfuncionais. Alm disso, operam a individualizao de questes culturais, econmicas e polticas. Ao situarem o problema no sujeito individual e ao procurarem construir conhecimento sobre ele, o que os campos de saber em especial, a Psicologia vo fazer operar na formao de uma teoria do sujeito, nesse caso, na formulao de uma teoria do sujeito adolescente usurio de drogas. Outro efeito produzido ao se tomar esse sujeito como objeto do conhecimento a insero do debate em um campo cientfico e, portanto, supostamente isento de um vis poltico. Becker (1991) vem, justamente, mostrar como a pactuao de determinados conjuntos de regras por grupos sociais uma ao poltica; sendo assim, da mesma forma, o reconhecimento de determinados comportamentos como desviantes e de sujeitos como outsiders tambm o . Alm disso, outros fatores implicados na construo de um ato como desviante, em maior ou menor grau, quem o comete e quem se sente prejudicado por ele. O uso de drogas, dentro dessa perspectiva, adquire maior visibilidade no momento em que

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    passa a ser associado ao ato infracional e quando as classes mdias urbanas comeam a sentir-se afetadas por ele. Nesse sentido, a avaliao da natureza de um ato como normal ou desviante possui atravessamentos polticos e econmicos.

    O dito desenvolvimento normal pode ser visto, de acordo com Becker (1991), como uma srie de compromissos progressivamente crescentes, com normas e instituies convencionais. Para o autor, quando uma pessoa se percebe com impulsos considerados desviantes, ela capaz de control-los ao pensar, por exemplo, nas mltiplas consequncias que isso lhe acarretaria e no quanto j apostou em ser normal. V-se a um esforo de manuteno do normal, que precisa ser constantemente reafirmado e controlado. Essa mais uma evidncia de uma verdade que constantemente fabricada no social. Entretanto, a manuteno da noo do desvio como algo de ordem individual vai ser possvel por outro mecanismo que age concomitante a esse, que o da naturalizao de regras pactuadas no social.

    A prpria concepo de adolescncia um exemplo disso. Na construo desta dissertao, ao refletirmos sobre o uso do termo adolescncia, em detrimento de outro, como jovem, por exemplo, consideramos o fato de as redes de sade, assistncia, social, educao e justia que esto em foco neste trabalho apresentarem uma diferenciao na prpria oferta de servios: existem polticas pblicas e um conjunto de marcos legais destinados a crianas e adolescentes que so diversos daqueles destinados juventude. De acordo com o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), so considerados crianas aqueles sujeitos de at 12 anos; adolescentes, os sujeitos entre 12 e 18 anos; e jovens, aqueles acima dos 18. Nesse sentido, avaliamos inicialmente que o uso indiscriminado desses termos poderia representar um desconhecimento dessas nuances. Entretanto, ao aprofundarmos a discusso, analisamos que a prpria construo desses marcos legais, como o ECA, parte de conhecimentos produzidos pelos diversos campos de saber dentre eles, principalmente as cincias psi sobre as diferenas entre essas fases do desenvolvimento.

    A construo da noo de adolescncia vinculada a uma lgica desenvolvimentista vem afirmar, por exemplo, que determinadas mudanas hormonais experienciadas nessa fase seriam responsveis pelo aparecimento de algumas caractersticas psicolgicas nos adolescentes, como a rebeldia, o desinteresse, a instabilidade afetiva, a agressividade e a

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    impulsividade. Essas caractersticas so tomadas como aquelas que compem uma identidade adolescente. Dentro dessa perspectiva, acredita-se que esse o perodo em que o sujeito opta por uma direo ou outra, o que definir sua identidade para toda a vida. Assim, tem-se a construo de um conjunto de polticas pblicas que levaro em conta a condio peculiar da criana e do adolescente como pessoa em desenvolvimento (ECA, art.6). Nesta pesquisa, partilhamos da perspectiva de Coimbra, Bocco e Nascimento (2005), que negam esse vis desenvolvimentista e afirmam que a adolescncia um 'fenmeno cultural' produzido por prticas sociais em um determinado momento histrico (p.4). Apesar disso, vemos contemporaneamente a utilizao desse conceito de forma indiscriminada, como se essa construo fosse uma fase universal e a-histrica do desenvolvimento humano. Para as autoras:

    Quando se aceita a construo de uma identidade do sujeito na adolescncia, alm da produo de uma identidade adolescente, afirma-se um determinado jeito correto de ser e estar no mundo, uma natureza intrnseca a essa fase do desenvolvimento humano. Ao colarmos uma etiqueta referendada por lei previamente fixada e embasada nos discursos cientfico-racionalistas, pode-se criar um territrio especfico e limitado para o jovem, uma identidade que pretende aprision-lo e localiz-lo dificultando possveis movimentos (Coimbra, Bocco e Nascimento, 2005, p. 6).

    Nesse sentido, vemos configurar-se um determinado modo correto de adolescer, em detrimento de outros modos considerados desviantes. Essa questo fundamental, pois, como veremos mais adiante, ela serve de base para legitimar certas intervenes do Estado na vida dos jovens17 usurios de drogas. Ao problematizarmos os discursos que circundam a nomeada adolescncia drogadita e as prticas que atuam sobre ela, no estamos colocando em questo os modos de ser adolescente, mas as racionalidades que os produzem, sustentam e legitimam. No buscamos, tampouco, propor novos modos de ser jovem, nem agir na vitimizao deste, mas evidenciamos a insero desses discursos psi nos jogos de verdade e nas relaes de poder que constroem esse objeto como natural e verdadeiro e passam a fixar determinadas identidades, concebidas como vindas de uma essncia. Ao colocarmos em questo essas

    17 Por compreendermos a necessidade de problematizar essas noes naturalizadas de adolescncia e por

    percebermos que, nos Processos Judiciais, h um uso muitas vezes indistinto desses termos, evidenciando que essa uma diferenciao mais presente no campo acadmico do que no uso cotidiano dos profissionais, ao longo do desenvolvimento da dissertao, ambas as expresses passaram a ser utilizadas.

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    afirmaes, assumimos o entendimento de que a constituio dos modos de ser sujeito pautada por processos de subjetivao, atravessados cotidianamente por um conjunto de prticas que produzem as formas atravs das quais os sujeitos so chamados a reconhecerem-se e a relacionarem-se consigo (Foucault, 1984).

    Diante dessa perspectiva de produo do conhecimento, entendemos ser importante pontuar que a construo desta pesquisa se fundamenta nas ferramentas tericas e metodolgicas da Psicologia Social, dentro de uma perspectiva ps-estruturalista, colocando em questo o mundo em que vivemos e os modos pelos quais nos tornamos o que somos. A Psicologia Social, dentro desse paradigma ps-estruturalista, ao assumir sua funo poltica, passa a indagar-se sobre os modos de produo da experincia subjetiva, ou seja, o modo pelo qual um determinado conjunto de prticas sociais produz certas formas de ser e estar no mundo (Silva, 2005). Ao admitir a dimenso poltica da cincia, essa Psicologia Social reconhece a estreita relao entre saberes e poderes, relao essa implicada em uma determinada concepo de sociedade, situada historicamente e constituinte de prticas sociais. Com isso, abre-se espao para problematizar-se a produo do conhecimento, no intuito de desestabilizar as verdades atravs das quais nos constitumos enquanto sujeitos.

    Para tanto, lanamo-nos no exerccio de tomar o pensamento de Michel Foucault na forma como o autor coloca em questo no somente os produtos do conhecimento, mas os prprios modos como fomos historicamente levados a construir o pensamento. Ao questionar como se constri a aceitabilidade de um sistema de pensamento, Foucault interroga-se sobre as relaes mltiplas, as estratgias abertas e as tcnicas racionais que articulam o exerccio dos poderes (Foucault, 1984, p.12). Trata-se, portanto, de pr em evidncia as relaes entre os mecanismos de poder e os elementos do conhecimento.

    Nesse sentido, damos visibilidade produo de determinados regimes de verdade que tm sustentado a construo de uma racionalidade que entende como urgente e necessria a internao psiquitrica da adolescncia drogadita e como legtima a interveno do Judicirio junto aos servios de sade mental na garantia dos leitos especializados. Ao falarmos em regimes de verdade, estamos colocando em suspenso a ideia de verdade como algo inscrito em um registro de neutralidade e procuramos situar as condies de possibilidade de produo desse valor de verdade, que, por sua vez, esto

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    sujeitas a jogos de fora e obedecem a um conjunto de regras compartilhadas em um determinado momento histrico e contexto social (Foucault, 1969).

    Assim, ao problematizarmos a emergncia da adolescncia drogadita como um novo problema, no intencionamos mostrar o momento exato em que este se forma, mas como continua sendo constitudo e como se atualiza na contemporaneidade atravs das instituies jurdicas e de sade. Evidenciamos o fato de que a Psicologia e o Direito, como campos de saberes intimados a falar sobre a adolescncia drogadita, entram nos jogos de produo do verdadeiro e do falso que circundam essa populao, produzindo conhecimentos sobre: quem esse sujeito tido como viciado e delinquente, quais so as atitudes que podem ser esperadas dele, qual o curso e o prognstico de sua doena, quais distrbios de comportamento esto associados, quais os perigos a que esto expostas as famlias e a sociedade na proximidade desse sujeito. A isso, segue-se uma srie de estratgias de manifestao desse conhecimento enquanto verdade, como a apresentao de dados estatsticos, dos achados de pesquisas ou mesmo de casos do cotidiano em que os fatos ocorreram tal qual previsto pela cincia. V-se a o exerccio de produo, pela cincia, dessa questo que se quer elucidar. Atrela-se a isso a oferta de respostas, tratamentos e formas de manejo mais ou menos eficazes das quais devem cercar-se aqueles a quem cabe a defesa da sociedade, do Estado e dos cidados. Opera-se a construo dessa adolescncia como uma categoria populacional alvo de polticas pblicas e de interveno do Sistema de Justia.

    1.3. A restituio do desviante/doente ao lugar da norma

    Alm de atuar na produo dos modos de ser sujeito, o prprio uso da droga teve restritas suas possibilidades de significao pelos campos de saber e j hoje largamente entendido pela populao como uma doena mental que tem seu lugar de tratamento junto aos servios de sade. O efeito dessas produes de campos de saber como a Psicologia pode ser observado nas mudanas efetuadas pelo Direito na legislao. O usurio de droga foi distinguido do traficante, sendo-lhes destinadas diferentes designaes legais. O primeiro deve ser encaminhado aos servios de sade e submetido prestao de servios comunitrios, enquanto que, para o segundo, considerado o inimigo a ser combatido, se

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    reserva a priso. Isso se torna possvel pela construo de um conhecimento cientfico que produz essa diferenciao, na qual o Direito se fundamenta para promover mudanas.

    No entanto, ao mesmo tempo em que esses adolescentes so inscritos no lugar de doentes mentais e vtimas do vcio, eles no deixam de estar no discurso de atores da criminalidade e da violncia perpetrada em funo de sua condio patolgica. Freitas (2009) descreve um estudo de Travis Hirschi e Michael Gottfredson, intitulado Uma teoria geral do crime, que afirma que o nico fator presente em todas as explicaes sobre a violncia que poderia se constituir como um explicador final seria o baixo autocontrole sobre o comportamento, com uma orientao para o aqui e agora. Essa justificativa associa-se a produes dos campos de saber sobre adolescentes em situao de vulnerabilidade social, que so descritos como imediatistas e sem perspectivas de futuro, tendo em vista o risco de morte que se faz presente no cotidiano. A prpria condio adolescente investida nas produes do campo psi como impulsiva e inconsequente. Somam-se a isso as afirmaes sobre o descontrole e a fraqueza frente potncia da droga e de seus efeitos durante o uso e em perodos de abstinncia.

    A montagem desse quadro contribui para a emergncia da noo de que, em estando essa populao desprovida de autocontrole, resta como nica forma de tratamento possvel aquela que se d pela via da disciplina e da conteno, mesmo que forada, desse adolescente, afastando-o, ainda que momentaneamente, das ruas, lugar reconhecido como o cenrio dessa trama. Deve o Estado, dessa forma, exercer o controle, que se faz deficitrio, na vida da populao de adolescentes. Encontra-se a, portanto, a funo fundamental do Judicirio, a de intervir em favor da soluo oferecida por diversos especialistas como nica possvel, em nome da garantia do direito sade, pelo bem do adolescente, das famlias e da sociedade.

    A adolescncia drogadita torna-se uma questo por estar fora de uma determinada ordem social e atua disseminando a desordem atravs de algo que vem sendo nomeado pelos especialistas como uma epidemia das drogas. Constitui-se, portanto, como um problema a ser desvendado e solucionado pela cincia. A produo de algo que est fora da ordem , ento, o que permite a ao, tanto dos campos de saber, quanto do Estado, na busca de uma restituio da populao desviante, que ameaa a estabilidade do sistema, ao lugar da norma. A judicializao e a internao psiquitrica operam como estratgias de

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    normalizao desse pblico delinquente, considerado como tal, se no por atos efetivamente cometidos, por sua condio de semelhana com um sujeito potencialmente criminoso e violento. Os saberes vinculam-se a mecanismos especficos de poder que permitem operar tcnicas de normalizao exigidas pela populao, pelas famlias e, muitas vezes, pelos prprios usurios quando estes se tornam sujeitos dessa cadeia discursiva. Esse poder de normalizao, como descrito por Foucault (1974-1975), no se constitui apenas como o encontro entre os saberes psicolgicos e jurdicos, mas atravessa a sociedade moderna. Isto , embora esse poder de normalizao possa apoiar-se nas instituies psi e jurdicas, ele se situa na fronteira entre ambas e est para alm destas, com sua autonomia e suas regras prprias.

    Ao falarmos em um poder de normalizao, referimo-nos aqui a uma noo de norma que se constituiu atravs da produo de saberes por reas das Cincias Humanas sobre os sujeitos, dando-se no mais sobre a doena, mas pela descrio de padres de conduta objetivos e vlidos dentro de uma determinada organizao social (Canguilhem, 1943). Como resduo, surgiram os irredutveis, no-ajustveis, sobre os quais se justifica a necessidade de interveno. Essas estratgias de reinscrio da norma vo focar-se, principalmente, no indivduo reconhecido como perigoso no necessariamente o criminoso ou o doente, mas o potencialmente e eventualmente perigoso (Foucault, 1974-1975). A resposta a essa demanda de interveno v-se no desmembramento de tecnologias de governo sobre essa populao de adolescentes potencialmente perigosos. No contexto da pesquisa, tais tecnologias vo materializar-se tanto nas polticas de justia e segurana pblica quanto nas polticas de sade.

    1.4. A inscrio da vida dos adolescentes nos mecanismos de gesto do Estado

    A acoplagem da imagem da adolescncia drogadita violncia o que favorece a disseminao de sentimentos de insegurana junto populao, consolidando a ideia de uma adolescncia potencialmente perigosa ao pas. nessa proliferao do discurso do medo que se v a emergncia da necessidade de busca de novos dispositivos de regulamentao biopoltica sobre os adolescentes (Sposito, 2007).

    Para Foucault, essa estratgia que coloca em ao a produo de algo que ele

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    denominou como mecanismos de segurana contra determinados grupos populacionais. Esses mecanismos constituem-se como aes de governo orientadas para a proteo da sociedade frente s condutas desviantes daqueles que ousam insurgir-se contra a sua ordem (Foucault, 1977-1978). No se referem apenas a instituies como a polcia, mas a todas as instituies e funes sociais ramificadas em diferentes pontos da sociedade que servem para assegurar o cumprimento dos regulamentos e o funcionamento dos poderes do Estado (Oliveira, 2009). Abre-se a um campo frutfero de criao de aparatos de governo sobre a vida de crianas e adolescentes, destinados a gerir suas condutas. Esses sujeitos tornam-se objeto de problematizao social, crescendo significativamente o nmero de polticas pblicas destinadas a esse recorte da populao.

    Ao falarmos em aes de governo sobre a vida desses adolescentes, estamos delineando a produo daquilo que Foucault (1978-1979) chamou de biopoltica sobre essa populao. A biopoltica uma tecnologia que compe o biopoder. Este se refere a um poder do Estado que tem como foco o investimento na vida. Michel Foucault (1977-1978), em seu curso intitulado Segurana, Territrio, Populao, ao definir o que denomina de biopoder, vai evidenciar de que forma, na passagem do sculo XVIII para o XIX, a vida biolgica e a sade se tornaram alvos fundamentais de um poder sobre a vida atravs de um processo de estatizao do biolgico. Com a necessidade de fortalecimento dos Estados-Nao, o poder de vida e morte do soberano foi substitudo por um poder destinado a produzir foras, a faz-las crescer e a orden-las, mais do que barr-las, dobr-las ou destru-las. Fala-se de um poder que gere a vida, que empreende sua gesto, majorao, multiplicao e o exerccio de controles precisos e regulaes de conjunto.

    O biopoder efetiva-se por duas tecnologias: a disciplinar e a biopoltica. A primeira opera sobre os corpos individuais, a partir dos quais procura reger a multiplicidade dos homens, colocando em ao tcnicas de vigilncia, treinamento, ocupao, punio, etc. J a biopoltica dirige-se multiplicidade dos homens, no enquanto corpo-indivduo, mas como corpo-populao. A populao entendida, nesse contexto, no como um simples conjunto de pessoas, mas como uma massa global afetada por processos que so prprios da vida, como nascimento, taxas de fecundidade, mortalidade e longevidade. A biopoltica opera sobre a populao como um elemento que possui suas regularidades e leis prprias de transformao e deslocamento que so passveis de serem estudadas e descritas pela

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    cincia. Essa noo de populao emerge na segunda metade do sculo XVIII como um problema poltico, cientfico e biolgico que pode constituir-se como objeto de saber e alvo de controle (Foucault, 1975-1976).

    Para compreender esse processo, preciso deixar claro que, quando nos referimos ao Estado dentro da perspectiva descrita por Foucault (1977-1978), entendemos que ele no o centro de irradiao do poder, mas parte de um conjunto de relaes de poder. Nesse sentido, referimo-nos a um processo mais amplo que foi colocando a gesto da conduta dos indivduos e o ato de governar como partes das aes cotidianas dos prprios cidados. Esse processo, Foucault denominou de governamentalidade.

    Por esta palavra governamentalidade, entendo o conjunto constitudo pelas instituies, os procedimentos, anlises e reflexes, os clculos e as tticas que permitem exercer essa forma bem especfica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a populao, por principal forma de saber a economia poltica e por instrumento tcnico essencial os dispositivos de segurana. Em segundo lugar, por governamentalidade entendo a tendncia, a linha de fora que, em todo o Ocidente, no parou de conduzir, e desde h muito, para a preeminncia desse tipo de poder que pode chamar de governo sobre todos os outros soberania e disciplina e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma srie de aparelhos especficos de governo [e por outro lado], o desenvolvimento de toda uma srie de saberes (Foucault, 1977-1978, p.143-144).

    A respeito dessa aproximao entre a proliferao de aparelhos de governo e o desenvolvimento dos saberes, Foucault (1979-1980) descreve, no curso intitulado Do Governo dos Vivos, a ntima relao entre o exerccio do poder e a manifestao da verdade. Essa articulao sustenta-se na noo de que, para poder governar, seria preciso conhecer o que se governa, quem se governa e o meio de governar esses homens e essas coisas. Nesse sentido que, ao longo da histria, o exerccio do poder sempre se fez acompanhar de uma forma de manifestao suplementar da verdade. Em torno do governante, rene-se todo um ritual de manifestao da verdade, composto de um conjunto de procedimentos verbais e no-verbais, como tabelas, fichas, notas, e as figuras de conselheiros e assessores, o que permite agrupar um ncleo de competncias que reafirmem o poder poltico desse governante.

    (...) l onde preciso que exista o poder, l onde se quer mostrar que efetivamente ali que reside o poder, e bem, preciso que exista o verdadeiro; e l onde no existe o verdadeiro, l onde no existe a manifestao do verdadeiro, ento porque ali o poder no est, ou muito fraco ou incapaz de ser poder. A fora do poder no

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    independente de qualquer coisa como a manifestao do verdadeiro entendido para, alm disso, que simplesmente til e necessrio para bem governar (Foucault, 1979-1980, p.39).

    Estabelece-se aqui a noo do governo pela verdade, o governo como superfcie de reflexo da verdade quanto mais o governo governar pela verdade, menos tomar decises que se imporo de cima e mais as pessoas aceitaro ser governadas. Tem-se a verdade como produo de uma aceitabilidade. Por outro lado, se todos soubessem de tudo sobre a sociedade, no haveria necessidade de um governo. Logo, est implicada a a necessidade de constituio de um saber especializado e de uma categoria de indivduos especializada no conhecimento da verdade (Foucault, 1979-1980). Ao apontar-se essa formulao neste estudo, no se trata de empreender esforos na construo de uma sociedade sem relaes de poder; trata-se, ao contrrio, de colocar o no-poder e a no-aceitabilidade como forma de produzir questionamento sobre os modos segundo os quais se aceita o poder e se aceita ser governado. Resta-nos questionar o que serviu de suporte para tornar aceitvel a manuteno de um mecanismo de internao hospitalar como estratgia de punio e higienizao de determinados grupos sociais, como a adolescncia drogadita. Ainda, interrogar sobre como se torna possvel essa inverso na relao protetiva, que se desloca do sujeito para a sociedade, e como essa prtica produz desdobramentos nos modos de ser adolescente e distanciamentos entre aqueles sujeitos de direito e esses sujeitos da delinquncia.

    Ao questionar-se como se torna aceitvel a implementao de certas tecnologias de governo sobre os adolescentes e relacionar essa aceitabilidade produo de um conjunto de verdades em nome das quais se governa, torna-se importante destacar o papel que as Cincias Humanas possuem nesse cenrio, uma vez que atravs delas que se deu a produo de uma srie de classificaes de determinados segmentos populacionais. A Psicologia, dentro das Cincias Humanas, procurando responder sobre a estrutura psicolgica natural do humano, tomou como foco as contradies do homem com a prtica. Foi na direo do que patolgico que se criou uma Psicologia do humano com suas leis e regras gerais. Para lidar com o anormal, o conflituoso, o contraditrio do homem consigo mesmo, surge uma Psicologia do normal, do adaptativo e do organizado. Ao investir-se na delimitao daquilo que se constitui como norma, vai haver residualmente a produo de tudo aquilo que est fora da ordem. Essa racionalidade que funda as Cincias Humanas o que vai contribuir inversamente para a construo do erro e

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    do desvio (Azambuja, 2010) e o que possibilita que as Cincias Humanas assumam para si a capacidade de diagnosticar os nveis de normalidade e desvios da populao e, a partir disso, propor formas de distribuio dos grupos populacionais e de tratamento, preveno e regulao destes.

    A adolescncia drogadita emerge como uma das categorias de investimento das aes do Estado. A construo de uma determinada biopoltica sobre esse grupo populacional, intitulado aqui como a adolescncia drogadita, vai dar-se, portanto, como resultado da vinculao entre as produes de campos cientficos como a Psicologia e o Direito e determinados mecanismos de poder do Estado. O que queremos evidenciar com isso que, ao mesmo tempo em que a existncia desse sujeito delinquente que coloca em ao a produo de mecanismos de interveno, no interior mesmo destes que se d, circularmente, a constituio da adolescncia drogadita. Assim, o que procuramos debater no tanto como se formaram essas instituies, mas por onde passa sua manuteno e como adquirem mais ou menos legitimidade nesse contexto social.

    As formas de interveno que vo operar sobre a populao de adolescentes usurios de drogas no se configuram como uma simples excluso desses adolescentes, mas como formas de inclu-los e destinar-lhes lugares especficos. Trata-se de aproxim-los para melhor entender, categorizar e definir sua presena de forma controlada dentro dos espaos pblicos. O reconhecimento como doente mental e a produo desse lugar de destino da internao psiquitrica operam, por um lado, uma desqualificao jurdica e poltica dos adolescentes e, por outro, abrem espao para que as reas psi reivindiquem o saber sobre esse sujeito e sua doena e o consequente domnio sobre a higiene pblica, necessrio para a proteo do corpo social. A partir disso, as reas psi passam a assumir o ttulo de nicas capazes de detectar os perigos inerentes condio de usurio de drogas.

    A disseminao do medo travestida em alertas, que servem de justificativa e autorizao para a execuo de intervenes cientficas e autoritrias na sociedade sobre essa populao. A internao atua como parte de uma estratgia repressiva e proibicionista frente ao uso da droga, sendo pautada pela lgica da abstinncia, que coloca a droga como um mal em si e desconsidera todos os aspectos extrafarmacolgicos envolvidos no uso, o que inclui questes culturais, polticas e econmicas (Oliveira, 2009). Nesse sentido, Oliveira e Dias (2010) alertam que:

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    As tecnologias polticas avanam a partir daquilo que essencialmente um problema poltico, removendo-o do domnio do discurso poltico e rechaando-o na linguagem neutra da cincia. Isto feito, os problemas se tornam problemas tcnicos para serem debatidos por especialistas (p.29).

    Ao destacarmos essa afirmao, queremos pontuar que tanto a internao psiquitrica quanto a judicializao do cuidado em sade mental fazem parte de um campo poltico e nele assumem determinadas funes. Assim, cabe-nos interrogar a servio do que vm sendo colocadas essas estratgias de interveno.

    1.5. Por um direito sade...

    Qualquer pesquisa conseguiria comprovar que acorrentar pessoas seria uma forma eficaz de mant-las longe das drogas. A comprovao da eficcia por si s, portanto, no seria o bastante para garantir que esta ou aquela prtica de cuidado so adequadas (Petruco, 2010, p.61).

    A interveno do Judicirio junto aos servios do Sistema nico de Sade justifica-se na necessidade de garantir a efetivao dos direitos fundamentais, dentre estes, o direito sade. A criana e o adolescente reconhecidos como sujeitos de direito tm assegurada, atravs do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), lei 8069/90, art. 4, a prioridade de atendimento em sade includo neste o tratamento em sade mental , garantido entre os direitos fundamentais pessoa humana. O mesmo estatuto prev ainda que, diante de um quadro de desequilbrio entre os fatores que constituem a sade da populao infanto-juvenil, tal situao pode caracterizar risco pessoal e/ou social, para o qual o ECA, art.98, prev a utilizao de medidas protetivas. Estas so previstas no intuito de assegurar o bom desenvolvimento fsico e mental dos adolescentes, bem como bom desenvolvimento psicolgico, funcionamento familiar, desempenho escolar, participao social e habilitao para o exerccio profissional. O uso abusivo de drogas por crianas e adolescentes vem sendo compreendido dentro dessa perspectiva como um comportamento que os coloca em situao de risco pessoal e social.

    Frente constatao da ameaa ou violao dos direitos desses adolescentes, a problemtica do atendimento em sade mental dessa populao adquire relevncia jurdica, passando a ser tomada como responsabilidade dos integrantes do sistema de garantias18 a

    18 Composto pelo Conselho Tutelar, Ministrio Pblico, Juizados da Criana e do Adolescente,

    Advocacia e Defensoria Pblica e os Conselhos de Direitos da Criana e do Adolescente.

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    aplicao das medidas pertinentes de proteo a essas crianas e adolescentes (Resende, 2008). Dentre elas, o ECA, art. 101, prev a possibilidade de incluso em programa oficial ou comunitrio de auxlio, orientao e tratamento a alcolatras e toxicmanos e requisio de tratamento mdico, psicolgico ou psiquitrico em regime hospitalar ou ambulatorial.

    nessa premissa legal que se sustentam as intervenes do Judicirio de envio de crianas e adolescentes para a internao psiquitrica como uma medida de proteo para si e para sua famlia. O que questionamos, ao longo do desenvolvimento deste trabalho, a construo dessa necessidade de proteo e a quem se objetiva proteger atravs de uma estratgia como a internao psiquitrica.

    No nos cabe negar a importncia da internao como alternativa teraputica19; no se questiona a internao de forma isolada, mas os usos que se fazem dessa ferramenta de tratamento que esto para alm de situaes de sade. Cabe, sim, evidenciar a forma como a internao acontece, na maioria das vezes, isolada frente inexistncia ou desarticulao de uma rede de apoio. Ainda, cabe apontar a manuteno de uma lgica normatizadora, pautada pelo imperativo da abstinncia, que coloca a recada como um fracasso no tratamento. A internao toma o sujeito como foco de interveno; um cuidado que se d no nvel do corpo biolgico e psquico daquele indivduo e pode proporcionar melhoras nessa esfera, fortalecendo o sujeito que se encontra extremamente deteriorado pela exposio intensa e prolongada ao uso de drogas. Serve para dar condies mnimas de esse indivduo investir em outras formas de cuidado posteriores ao perodo da internao. Se tomarmos esse tratamento como nica resposta possvel e necessria a um problema que multifacetado, corre-se o risco de inibir as demais faces e localizar na associao entre o sujeito e a droga o problema da drogadio. Nesse caso, a internao promoveria uma limpeza nesse sujeito, que, aps ter seu corpo desintoxicado, estaria biologicamente livre dos efeitos que provocam o vcio; estando liberto da substncia, estaria ele pronto

    19 Embora o objetivo principal desta pesquisa no seja debater as melhores formas de tratamento dos

    usurios de drogas, cabe considerar que a Rede de Sade possui alternativas ao modelo da internao psiquitrica que deveriam ser efetivamente implementadas enquanto rede de servios e acessadas pelos usurios antes da busca pela internao (Brasil, 2001), que so as Estratgias de Sade da Famlia (Brasil, 2006), os Centros de Ateno Psicossocial - infantil e lcool e drogas (Brasil, 2003 e Brasil, 2005b), os Consultrios de Rua (Brasil, 2010) e o Programa de Reduo de Danos (Brasil, 2005a e 2007). J no mbito da Rede de Assistncia Social, temos os programas de abordagem de rua (PMPA, 2007), os Centros de Referncia em Assistncia Social, os Centros de Referncia Especializados em Assistncia Social e as diversas modalidades de servios de abrigamento (Brasil, 2009), que tambm podem oferecer suporte para uma complexidade de demandas dos usurios de drogas e suas famlias, auxiliando na diminuio da vulnerabilidade que esto expostos esses sujeitos.

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    para realizar novas escolhas. No entanto, esse sujeito devolvido para as mesmas condies de onde havia sido removido, para as quais oferece o mesmo padro de resposta, e permanece como sendo o nico responsvel por seu fracasso.

    Para que a utilizao de um tratamento que se d sobre o indivduo faa se