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Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Centro de Pesquisas René Rachou Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação Saúde/Doença/Incapacidade em Idosos da Comunidade por Gustavo Vaz de Oliveira Moraes Belo Horizonte Dezembro/2012 DISSERTAÇÃO MSC-CPqRR G.V.O. MORAES 2012

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Page 1: Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação … · associados ao saber biomédico: a valorização da biomedicina, a culpabilização dos indivíduos, a naturalização

Ministério da Saúde

Fundação Oswaldo Cruz

Centro de Pesquisas René Rachou

Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde

Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação

Saúde/Doença/Incapacidade em Idosos da Comunidade

por

Gustavo Vaz de Oliveira Moraes

Belo Horizonte

Dezembro/2012

DISSERTAÇÃO MSC-CPqRR G.V.O. MORAES 2012

Page 2: Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação … · associados ao saber biomédico: a valorização da biomedicina, a culpabilização dos indivíduos, a naturalização

Ministério da Saúde

Fundação Oswaldo Cruz

Centro de Pesquisas René Rachou

Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde

Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação

Saúde/Doença/Incapacidade em Idosos da Comunidade

por

Gustavo Vaz de Oliveira Moraes

Dissertação apresentada com vistas à

obtenção do Título de Mestre em Ciências

na área de concentração Saúde Coletiva.

Orientação:

Dra. Josélia Oliveira Araújo Firmo

Dra. Karla Cristina Giacomin

Belo Horizonte

Dezembro/2012

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iii

Catalogação-na-fonte Rede de Bibliotecas da FIOCRUZ Biblioteca do CPqRR Segemar Oliveira Magalhães CRB/6 1975

M827i 2012

Moraes, Gustavo Vaz de Oliveira.

Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação Saúde/Doença/Incapacidade em Idosos da Comunidade / Gustavo Vaz de Oliveira Moraes. – Belo Horizonte, 2012.

xi, 64 f.: il.; 210 x 297mm. Bibliografia: f.: 69 - 75 Dissertação (Mestrado) – Dissertação para

obtenção do título de Mestre em Ciências pelo Programa de Pós - Graduação em Ciências da Saúde do Centro de Pesquisas René Rachou. Área de concentração: Saúde Coletiva.

1. Idoso/psicologia 2. Saúde da Pessoa com

Deficiência 3. Processo Saúde-Doença I. Título. II. Firmo, Josélia Oliveira Araújo (Orientação). III. Giacomin, Karla Cristina (Orientação)

CDD – 22. ed. – 305.26

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iv

Ministério da Saúde

Fundação Oswaldo Cruz

Centro de Pesquisas René Rachou

Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde

Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação

Saúde/Doença/Incapacidade em Idosos da Comunidade

por

Gustavo Vaz de Oliveira Moraes

Foi avaliada pela banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dra. Josélia Oliveira Araujo Firmo (Presidente)

Prof. Dra. Betânia Diniz Gonçalves

Prof. Dra. Virgínia Torres Schall de Matos Pinto

Suplentes: Prof. Dr. Antônio Ignácio de Loyola Filho

Dissertação ou tese defendida e aprovada em: 21 / 12 / 2012

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“(...) Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a

inventar cuidados chocantes, temores que machucam. Façam o que bem entendam,

cometam imprudências, desobedeçam conselhos. Libertemos os velhos de nossa

fatigante bondade (...)” (Paulo Mendes Campos, Cuidado com os velhos,1969)

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Dedicatória

Aos meus avós, aos meus pais e aos meus

filhos, demonstração inequívoca e prazerosa da

continuidade da vida, por me fazerem compreender

que, da mesma forma que todos contemos as

idades que já fomos, todas as idades estão contidas

na velhice, e que uma boa velhice é boa para todos

de todas as idades.

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Agradecimentos

À Cris, minha esposa, pelo amor, carinho, companheirismo e cumplicidade;

Aos meus filhos, Ana Clara e Francisco, principais motivações de querer sempre

fazer melhor;

Aos meus pais, João Carlos e Cida, exemplos de integridade e dedicação, pelo apoio

e afeto e pela viabilização e incentivo à minha formação pessoal e profissional ao

longo da vida que me possibilitaram chegar até aqui;

Aos meus sogros, irmãos e cunhados pela amizade e apoio nos momentos de

necessária ausência durante a elaboração deste estudo;

À minha orientadora, Josélia, pela competência, clareza e firmeza na orientação

deste trabalho, não só em relação ao conteúdo e ao método, mas também à

disciplina e organização;

À minha co-orientadora, Karla Giacomin, amiga e parceira neste e noutros projetos,

pela disponibilidade e generosidade e pelas inestimáveis contribuições nesta

dissertação;

Ao amigo Wagner Jorge pela participação ativa e incansável em todas as etapas da

elaboração desta dissertação, sempre de forma fraterna e generosa;

Aos colegas da Antropologia Médica: Adauto, Jussara, Josiane, Kelly e Ana Carolina

pela convivência e aprendizagem;

Às minhas companheiras da Geros, Marcella e Ruth, pelo estímulo às contínuas

reflexões a cerca do envelhecer;

Ao Centro de Pesquisas René Rachou, pela infraestrutura técnica;

À Biblioteca do CPqRR pelo acesso gratuito à informação científica, essencial à

elaboração desta dissertação, e pela catalogação e normalização da mesma.

Aos idosos de Bambuí que, ao dividirem suas experiências, viabilizaram este estudo.

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SUPORTE FINANCEIRO:

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, FAPEMIG

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Sumário

Resumo ........................................................................................................................x

Abstract .......................................................................................................................xi

1. Introdução ..............................................................................................................14

1.1 O saber biomédico ................................................................................................17

1.2 O conceito de saúde e incapacidade no saber biomédico ...................................19

1.3 A divergência entre o saber dos indivíduos e o saber biomédico ........................21

2. Objetivos ................................................................................................................24

2.1 Objetivo geral ........................................................................................................25

2.2 Objetivos específicos ............................................................................................25

3. Quadro Teórico ......................................................................................................26

4. Percurso Metodológico ..........................................................................................30

4.1 Local do estudo ....................................................................................................31

4.2 População do estudo ............................................................................................32

4.3 Coleta dos dados ..................................................................................................32

4.4 Análise dos dados ................................................................................................34

4.5 Aspectos éticos .....................................................................................................35

5. Resultados e discussão .........................................................................................36

5.1 A valorização da biomedicina ...............................................................................39

5.2 A culpabilização do indivíduo ...............................................................................44

5.3 A naturalização das doenças na velhice ..............................................................48

5.4 Os recursos e ações .............................................................................................53

6. Conclusões ............................................................................................................60

7. Anexos ...................................................................................................................63

7.1 Anexo I – Carta de aprovação N.o 02/2010 – CEP / CPqRR ................................64

7.2 Anexo II – Termo de consentimento livre e esclarecido .......................................65

7.3 Anexo III – Dados demográficos e codificação dos idosos entrevistados ........... 66

8. Referências ............................................................................................................70

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x

Resumo

O saber biomédico fundamenta-se em uma visão biológica e mecanicista do ser

humano e na abordagem curativa das doenças e representa a visão oficial do corpo

humano nas sociedades capitalistas ocidentais baseadas na capacidade de

produção e de consumo. Tal saber tem influenciado não apenas as práticas objetivas

de saúde, mas, também, a subjetividade das pessoas em relação ao seu corpo e à

sua vida. Em um contexto de envelhecimento populacional acelerado e intenso, a

compreensão da influência do saber biomédico na percepção dos processos

saúde/doença/incapacidade por idosos se justifica pela necessidade de

entendimento dos modos de pensar e de agir dos indivíduos face à experiência da

velhice. O presente trabalho tem por objetivo compreender, a partir de uma visão

antropológica, como os elementos do saber biomédico influenciam a percepção da

relação de saúde, doença e incapacidade de idosos residentes na comunidade de

Bambuí, MG. A pesquisa foi realizada na perspectiva da abordagem qualitativa,

constituindo-se em um estudo etnográfico observacional. A amostra foi constituída

por 57 idosos (27 homens e 30 mulheres) com idades entre 62 e 96 anos. Foi

utilizado o modelo dos signos, significados e ações na coleta e análise dos dados,

para permitir a sistematização dos elementos do contexto que participam da

construção de maneiras típicas de pensar e agir diante da incapacidade. Os achados

da pesquisa evidenciam que o conhecimento médico-científico foi apropriado pela

cultura local, transformando-a e determinando os modos de pensar e agir dos idosos

de Bambuí. Foram identificadas quatro categorias analíticas de significados

associados ao saber biomédico: a valorização da biomedicina, a culpabilização dos

indivíduos, a naturalização das doenças na velhice e os recursos e ações utilizados

pelos idosos. Os resultados demonstram que os participantes valorizam muito a

figura do médico sem questionar as suas prescrições, reproduzem a visão biomédica

associando as doenças e limitações à idade e culpabilizam-se pela atual condição de

saúde/doença em que dispõem de poucos recursos. O saber biomédico impregnado

no campo de fala dos idosos identifica as condições de doença e incapacidade como

signos naturais da velhice; e, a partir dessa visão, influencia a reinterpretação do

cotidiano da vida dos indivíduos, limitando recursos e lhes recomendando repouso e

resignação.

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xi

Abstract

The biomedical knowledge is based on a biological and mechanistic view of the

human being and on a curative approach of diseases. It represents the official views

of the human body in Western capitalist societies built upon production capacity and

consumption. This knowledge has influenced not only the practices of objective health,

but also the subjectivity in relation to one’s body and life. In a context of rapid and

intense population aging, understanding of the influence of biomedical knowledge in

perception health / illness / disability processes of the elderly is justified by the need to

acknowledge the ways of thinking and acting according to the experience of old age.

This study aims to understand, from an anthropological vision, how elements of

biomedical knowledge influence the perception of the health, disease and disability in

elderly community residents of Bambuí, MG. The survey was conducted from the

perspective of a qualitative approach, consisting in an ethnographic observational

study. The sample consisted of 57 older adults (27 men and 30 women) aged

between 62 and 96 years. We used the model of signs, meanings and actions in

collecting and analyzing data, once it enables the systematization of context elements

that participate in the construction of typical ways of thinking and acting towards

disability. The research results show that medical and scientific knowledge was

assimilated by local culture, transforming it and determining the ways of thinking and

acting of the Bambuí elderly. We identified four analytical categories of meanings

associated with biomedical knowledge: the valuing of biomedicine, the self-blaming,

the naturalization of diseases in old age and the resources and actions used by the

elderly. The results show that participants greatly value the doctor, not questioning

their prescriptions, reproduce the biomedical vision, associating diseases and

limitations to old age and blame themselves for the current health / disease condition

that has few resources. The impregnated biomedical knowledge in the field of elderly

speech identifies the disease and disability conditions as natural signs of aging, and,

from this view, influences the reinterpretation of everyday life of individuals, limiting

resources and recommending them rest and resignation.

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1 Introdução

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Em todo o mundo, usualmente, o envelhecimento populacional tem sido

compreendido como uma ameaça potencial à sustentabilidade dos sistemas fiscal,

econômico, previdenciário e de saúde pública dos países. Portanto, muitos debates

no âmbito internacional tratam de ações institucionais necessárias para enfrentar o

desafio que isso representa. Além disso, o aumento expressivo da expectativa de

vida acontece em um mundo que também experimenta profundas alterações

tecnológicas, comportamentais e sociais, que repercutem na estrutura e na dinâmica

das famílias, tais como a crescente participação feminina no mercado de trabalho, a

redução do número de filhos e a instabilidade nos casamentos. Em uma população

cada vez mais envelhecida, tudo isso concorre para aumentar a demanda por

assistência à saúde e por cuidados não familiares de longa duração 1,2.

No Brasil, esse processo de transição demográfica, caracterizada pela redução das

taxas de mortalidade e fecundidade e pelo aumento da expectativa de vida, começa a

ser notado a partir de 1940. Em 1950, o país possuía 2,6 milhões de idosos com 60

anos de idade ou mais, representando menos de 5% da população brasileira; em

2010, esse grupo já era de 19,6 milhões, correspondendo a 10,2% da população1.

Assim, o processo brasileiro de envelhecimento populacional também chama a

atenção pela velocidade com que ocorre. Se, nos países desenvolvidos esse

processo se deu de forma bem mais lenta - por exemplo, para a população idosa

crescer de 7 para 14% foram necessários quase 70 anos nos EUA e mais de 100

anos na França - em nosso país estima-se que o mesmo avanço acontecerá em

apenas duas décadas1,3.

Além disso, especificamente no âmbito da saúde, de maneira concomitante à

transição demográfica, observa-se a transição epidemiológica, processo responsável,

em grande parte, pela queda da taxa de mortalidade, com redução significativa das

doenças infectocontagiosas e aumento importante das doenças crônicas. Estas

últimas, de curso insidioso e de longa duração, podem comprometer a capacidade do

indivíduo de executar as atividades da vida diária, repercutindo diretamente sobre a

família, o trabalho, a previdência social, as políticas de saúde e de assistência social,

entre outras. Entretanto, apesar de o envelhecimento ter sido quase sempre ligado à

ideia de debilidade física e de perda da independência, vários estudos têm

demonstrado a redução na proporção de idosos com incapacidade, embora com o

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aumento do contingente idoso da população, o número de pessoas com incapacidade

tenda a aumentar 4,5.

Ademais, a perspectiva de envelhecer, com ou sem incapacidade, acontece em uma

cultura ocidental que assume valores consumistas e individualistas, baseados na

juventude e na auto-suficiência do indivíduo. Eles reforçam a imagem da pessoa

idosa apenas como um sujeito improdutivo, decadente, portador de múltiplas

doenças, grande consumidor de medicamentos e de serviços de saúde e a da velhice

como um processo que, inevitavelmente, levará à incapacidade6 e à dependência de

terceiros – sejam eles o Estado, a comunidade, a família ou um cuidador.

Esse curso inexorável para a incapacidade deve ser discutido a partir de diferentes

correntes de pensamento que podem investir na recuperação e reinserção dos

indivíduos ou desacreditar e impedir o investimento nessa direção. Afinal, sabe-se

que a incapacidade, além de suas consequências nefastas sobre a autonomia e a

independência dos sujeitos, tem sido geradora de discriminação e exclusão das

pessoas que a vivenciam, há vários séculos. Neste sentido, retomando a ideia de

Robert Murphy (1987), Le Breton7 afirma:

“O homem deficiente é um homem com estatuto intermediário,

um homem do meio-termo. Ele nem é doente nem é saudável,

nem morto nem completamente vivo, nem de fora da sociedade,

nem dentro dela.” (p. 75)

Além disso, a representação que o sujeito faz de seu corpo em um dado contexto

social e cultural também reflete a interiorização do julgamento social acerca da sua

maneira de viver e dos seus atributos físicos, e isso determinaria largamente a sua

auto-estima7.

Vale lembrar que, atualmente, o conhecimento biomédico tem assumido um papel

social cada vez mais relevante nesta avaliação, uma vez que ele é a representação

oficial do corpo humano na sociedade ocidental. Ele atua como uma espécie de

“verdade universal do corpo”, um etnocentrismo elementar ao qual cedem, no

entanto, numerosos pesquisadores. É pela visão biomédica que conceitos como

higiene, prevenção, perspectiva médico-simbólica do limpo e do sujo, do próprio e do

nefasto, do sadio e do doente são culturalmente condicionados7.

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17

Porém, ao discutir o assunto Le Breton7 expõe as contradições dessa visão, uma vez

que o contrato tácito que preside o encontro do homem que tem uma deficiência e do

homem “válido” se sustenta pelo fato de fingir que essa alteração orgânica ou

sensorial não criaria nenhuma diferença entre eles.

Assim, em um contexto de envelhecimento populacional acelerado e intenso, o

interesse na compreensão da influência do saber biomédico na percepção dos

processos saúde/doença/incapacidade por idosos está largamente justificado.

1.1 O saber biomédico

A Medicina é uma arte milenar. Porém, em comparação com a medicina hipocrática,

a prática médica atual foi radicalmente modificada pela assimilação de conceitos

cartesianos que se encontram na origem do modelo mecanicista do corpo humano

que prevalece até os nossos dias. Este modelo representa um princípio de

inteligibilidade do mundo proposto por Descartes, segundo o qual o conhecimento

deve ser útil, racional, despido de sentimento e capaz de produzir eficácia social8.

No século XIX, a medicina passa a produzir um discurso científico a respeito da

saúde e da doença, estabelecendo novas relações de causa e efeito para as

moléstias e levando à objetivação da análise e à objetificação do paciente e

consequente perda de sua identidade9.

Desde Descartes e ao longo dos três últimos séculos, com o surgimento da medicina

moderna e o desenvolvimento da industrialização e da economia capitalista, e,

principalmente, desde a segunda metade do último século, observa-se a ampliação

do raio de atuação da medicina e a extrapolação do seu campo de atuação tradicional

em relação às doenças, com grande crescimento da definição dos problemas da vida

em termos médicos10.

Historicamente, a ciência biomédica tem suas raízes no positivismo, com ênfase no

método empírico para se chegar ao conhecimento, na linguagem matemática para

traduzir e transmitir o conhecimento e na crença na neutralidade da ciência. A sua

racionalidade baseia-se em um caráter generalizante, mecanicista e analítico:

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generalizante porque se propõe a produzir modelos de validade universal e leis de

aplicação geral, não se ocupando de casos individuais; mecanicista porque seus

modelos tendem a naturalizar o corpo humano como uma gigantesca máquina,

compreendido por uma causalidade linear e possível de ser traduzida em

mecanismos; e analítica porque a abordagem teórica e universal adotada para a

elucidação das “leis gerais” sobre o funcionamento da “máquina humana” pressupõe

o isolamento de partes e que o funcionamento do todo é dado pela soma das

partes11. Daí se compreende a visão fragmentada do indivíduo e a supervalorização

da especialização, que têm como objetivo produzir um grande conhecimento de uma

parte específica do organismo.

Ainda de acordo com a prática biomédica*, além da determinação biológica, haveria

uma normatização vertical, segundo a qual o médico seria detentor do conhecimento

e o paciente visto de forma fragmentada e sem autonomia, sem voz ativa no processo

decisório de sua própria propedêutica e terapêutica. Desse modo, a prática médica

costuma ser prescritiva e autoritária, com predominância de uma visão restrita e

curativa das doenças, em grande parte decorrente de um passado recente de um

perfil epidemiológico em que prevalecia doenças infectocontagiosas, muitas delas de

elevada mortalidade, mas de baixa morbidade ou passíveis de cura8.

A ampliação da jurisdição médica se deu através da prescrição de normas morais de

conduta e de comportamentos por seus especialistas, estabelecendo diversas

medidas de controle sobre o corpo individual e coletivo e levando à produção de uma

cultura medicalizada. Desse modo, há o desenvolvimento de um poder sobre a vida

– o biopoder – que é exercido sobre os indivíduos e a sociedade14.

De acordo com essa visão, o indivíduo - e o meio que o cerca - é apontado como

responsável pelo seu processo de adoecimento e recebe a seguinte convocação: “o

cidadão de bem não deve reformar seu comportamento em função dos decretos da

ciência?”9 Esse questionamento traduz a força moralizante do conhecimento

científico, no qual a ciência assume uma conotação cujo poder é comparável ao de

um novo “deus” e cuja engrenagem de ordenamento social não parece ser divergente

da religião15.

* O modelo que fundamenta o ensino e a prática biomédica tem um marco importante no início do século XX

com a publicação do Relatório Flexner. Embora haja controvérsias em relação ao relatório, seus princípios afirmam a determinação biológica das doenças, a formação médica centrada nos hospitais e o estímulo à disciplinaridade e à especialização, decorrente da visão reducionista do conhecimento científico

12,13.

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19

Diante da crescente apropriação dos modos de vida do ser humano pela medicina, ao

final da década de 1960, surgiu o termo medicalização para se referir, por exemplo,

às normas ditadas pelo saber biomédico sobre o nascimento, o envelhecimento e a

morte, por meio da produção de conceitos, diagnósticos e intervenções, baseados na

concepção biológica de saúde e doença, a partir da qual haveria a classificação do

que seria normal e patológico16. Uma das principais consequências dessa

medicalização seria a dependência progressiva das pessoas em relação às

prescrições médicas e à supervalorização dos prescritores, ocasionando a perda de

autonomia dos indivíduos para lidar com os aspectos do cotidiano da vida, como o

sofrimento e a morte17.

De fato, esse modelo se fortaleceu no último século com o sucesso no recuo das

epidemias, os avanços tecnológicos e científicos e o aumento da longevidade, mas,

também, por corresponder às expectativas das sociedades modernas capitalistas

ocidentais que valorizam o individualismo, a produtividade, o acúmulo de riquezas e a

capacidade de consumo. Desse modo, as doenças prejudicam a capacidade

produtiva dos indivíduos e, à medida que o conhecimento médico avançou,

tratamentos mais enérgicos, como a antibioticoterapia, foram sendo desenvolvidos

também com o objetivo de recuperar e devolver o doente, o quanto antes, para o

trabalho9.

Nesse contexto da sociedade capitalista ocidental, a referência de normalidade,

estética e funcional, é o jovem14, o que abre espaço para que a velhice deixe de ser

reconhecida como etapa natural da vida e passe a ser classificada como uma

categoria patológica. Além disso, cria expectativas sobre o corpo, os comportamentos

e a saúde16 e determina modos específicos de pensar e agir dos idosos, em um claro

exemplo de como a medicina se torna uma forma cultural de controle social.

1.2 O conceito de saúde e incapacidade no saber biomédico

Em meados do século XX, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lança o conceito

de saúde como estado de bem-estar físico, psicológico e social, o qual se torna

referência9 apesar das críticas em relação ao seu caráter utópico e dificilmente

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20

atingível. Embora, na teoria, ele incorpore outros fatores como determinantes da

saúde, além do campo biológico; na prática, pela dificuldade de se estabelecer

critérios, classificações e instrumentos de medida para o reconhecimento da saúde

dos indivíduos, a saúde permanece sendo identificada apenas pela ausência de

doenças. Além disso, com a evolução da epidemiologia emergem as noções de risco

e de probabilidade de adoecer, associadas a variados fatores como a predisposição

genética, os hábitos de vida e os elementos do meio natural e sociocultural. Por sua

vez, a descoberta médica da presença de fatores de risco ou de sinais e sintomas

reveladores de doenças rotula de “doentes” indivíduos que se mostram de toda

maneira ativos e sujeitos da própria existência.

Para a Medicina, os sintomas, a incapacidade e a morte são os desfechos em saúde

de particular interesse para os pacientes e para aqueles que se preocupam com eles.

São estes os eventos que os médicos tentam prever, interpretar e modificar quando

cuidam de pessoas18. No que tange à incapacidade, sua compreensão é discutível a

partir de diferentes correntes de pensamento, com destaque para dois modelos: o

social e o biomédico. O primeiro reconhece a incapacidade pela diminuição de

oportunidades sociais para os indivíduos portadores de alguma deficiência,

relacionada a contextos socioculturais específicos, resultando na discriminação e

exclusão social de quem apresente essa característica. Enquanto para o modelo

biomédico, que reflete a evolução deste saber nos últimos séculos, inicialmente, a

incapacidade seria consequência de anormalidades bio-fisiológicas provocadas por

doenças, levando à disfunção e à deficiência orgânicas19.

Nos últimos 30 anos, a OMS propôs classificações específicas e conceitos mais

abrangentes da incapacidade, que culminaram na publicação, em 2001, da

Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Ela

define a incapacidade como um processo que designa os comprometimentos, as

limitações de atividade ou a restrição na participação na família, na comunidade, na

profissão, sendo um produto da interação dinâmica entre as condições de saúde

(doenças, lesões, traumas) e os fatores contextuais (ambiente e atributos pessoais)

do indivíduo20, 21.

Porém, apesar de todo o avanço e do esforço da medicina em sistematizar as

práticas de saúde por meio de padronizações e protocolos de diagnóstico e

tratamento baseados na melhor evidência científica, as concepções de saúde e

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21

doença dos diferentes grupos que compõem a sociedade são heterogêneas e

possuem características que variam de acordo com o contexto sociocultural de cada

um. Por exemplo, vários estudos têm demonstrado que as concepções do sujeito

sobre a sua doença são absolutamente distintas daquelas de um profissional de

saúde, especialmente do médico, em relação à mesma moléstia22.

1.3 As divergências entre a visão dos indivíduos e o saber biomédico

Embora a velhice seja uma etapa natural da vida humana, existem muitos modos de

ser velho e de lidar com o envelhecimento, suas limitações biológicas e suas

mudanças sociais. Uchôa23 em um artigo memorável discorre sobre o quanto a visão

de pessoas mais jovens sobre a velhice valoriza as perdas, enquanto a das pessoas

mais velhas foca as capacidades e oportunidades desta etapa da vida.

No âmbito da saúde, durante a consulta médica busca-se dissipar pelo interrogatório

os mal-entendidos nascidos do distanciamento do discurso de quem procura o

cuidado daquele da cultura médica assumido pelo profissional de saúde. Porém, isso

não se faz sem dificuldades, posto que, como afirma Le Breton7, na cultura médica:

“O corpo se dá como uma máquina a qual convém gerir os

recursos e suprimir as disfunções. A significação atribuída pelo

doente à sua dor ou a sua doença é uma fantasia que não deve

de modo algum interferir com o ato médico.” (p. 167)

Além disso, com a evolução do saber biomédico e sua superfragmentação em

especialidades, a consulta médica se tornou um “negócio de especialistas”, no qual o

homem comum pode acabar desamparado e sem cuidado7. Assim, quando existe

uma aproximação nas linguagens e concepções, pode haver uma potencialização no

cuidado, na adesão ao tratamento e até na melhoria da qualidade de vida. Por sua

vez, pode ocorrer um efeito contrário quando se observa uma dissociação entre a

expectativa do sujeito e as normas biomédicas. É ainda mais desafiador reconhecer

que o que for prescrito ao indivíduo será interpretado por ele buscando compreender,

admitir ou refutar o saber biomédico, em um processo dialético que também sofre

influências do meio e do amadurecimento do indivíduo, ao longo do curso da vida.

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22

Esse distanciamento entre o saber biomédico e a demanda da pessoa pode ser

observado ao analisar as diferenças entre a visão biomédica e a visão dos idosos.

Por exemplo, ao investigar as maneiras de pensar e agir de idosos hipertensos, Firmo

et al demonstraram uma clara distinção entre o que as pessoas entendiam por

“problema de pressão” e “pressão alta” e a condição médica conhecida como

hipertensão arterial. Segundo os participantes do estudo, a “pressão alta” era

considerada como um problema, normalmente desencadeada por problemas

familiares e que poderia ser reconhecida por algumas manifestações específicas,

sendo o único momento em que eles consideravam as intervenções como realmente

necessárias24. Certamente, essa não é a concepção médica em relação à

hipertensão arterial e ao modo correto de abordá-la.

Outro exemplo da divergência entre os dois saberes pode ser visto em estudos que

avaliam o chamado “envelhecimento bem sucedido”. Apesar de muitos estudos

demonstrarem a redução na prevalência de incapacidade funcional na população

idosa, em vários países do mundo, em um estudo norte-americano, McLaughlin et

al25 observaram que a porcentagem de idosos que preencheram critérios objetivos de

envelhecimento bem sucedido por ano permaneceu estável, de 1998 a 2004, em

torno de 11% nos Estados Unidos. Em outro estudo que avaliou o envelhecimento

bem sucedido medido pelos pesquisadores e o auto-relatado pelos próprios idosos,

Cernin et al26 observaram que 30% dos participantes foram objetivamente

classificados como bem sucedidos, enquanto que 63% dos idosos se declararam

como bem sucedidos. Vahia et al27 ao avaliar o auto-relato de mulheres idosas

quanto ao envelhecimento bem sucedido demonstraram que, numa escala crescente

de 0 a 10, mais de 80% das mulheres se deram nota igual ou superior a 7, sendo que

para mais de 70% a nota foi igual ou maior do que 8. Esses pesquisadores ponderam

que, enquanto nos estudos epidemiológicos e quantitativos os avaliadores valorizam

atributos físicos e funcionais, os estudos qualitativos demonstram que os fatores

psicológicos e sociais e a capacidade de adaptação às doenças influenciam a

percepção que os idosos têm de sua própria saúde.

Diante do exposto, é fundamental compreender como o saber biomédico é

apreendido pela pessoa idosa, atribuindo significado às suas vivências, e como isso

interfere nas suas práticas de saúde, uma vez que ele influencia a percepção dos

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23

processos de saúde, doença e incapacidade e os modos de pensar e agir do

indivíduo.

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24

2 Objetivos

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25

2.1 Objetivo Geral

O presente trabalho tem por objetivo compreender, a partir de uma visão

antropológica, como os elementos do saber biomédico influenciam a percepção da

relação de saúde, doença e incapacidade de idosos residentes na comunidade.

2.2 Objetivos Específicos

- Identificar os elementos do saber biomédico presentes na fala dos idosos

relacionados aos processos de saúde, doença e incapacidade.

- Compreender como esses elementos participam da construção de significados para

a relação saúde/doença/incapacidade pelos idosos.

- Compreender como os significados atribuídos pelos idosos à relação

saúde/doença/incapacidade influenciam as suas ações de saúde.

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26

3 Quadro Teórico

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27

A presente pesquisa foi desenvolvida na perspectiva da abordagem qualitativa,

constituindo-se em um estudo etnográfico observacional28. Fundamentada nos

pressupostos da etnografia, a pesquisa utilizou o método de coleta de dados baseado

no contato direto intersubjetivo entre o pesquisador e o sujeito pesquisado. Na

perspectiva observacional foi utilizada a propriedade do método qualitativo que,

segundo Turato29, estabelece o ambiente natural do sujeito como o espaço

inequívoco onde ocorre a observação sem controle das variáveis e sem produzir nele

nenhuma modificação.

Uma das grandes contribuições da antropologia para a saúde foi a construção de um

quadro conceitual e metodológico inovador que investiga o envelhecimento a partir da

perspectiva êmica30. Para essa metodologia a interpretação do cientista é construída

na perspectiva dos entrevistados e não como uma discussão na visão do pesquisador

ou da literatura29. Assim, na presente pesquisa, o idoso foi convocado a falar sobre a

vida e sobre si, mais especificamente sobre suas condições de saúde. Isso

possibilitou ao pesquisador o mergulho no ambiente local e cultural desse idoso, lugar

onde ele se organiza e que lhe confere significados particulares sobre a sua própria

experiência.

A cultura é, portanto, um texto interpretável, sendo entendida como o contexto que

confere inteligibilidade a situações e acontecimentos da vida, estruturando o campo

social em um tecido semântico. Dessa forma, os idosos constroem psicossocialmente

a sua experiência, como por exemplo, o processo de envelhecer, de adoecer e ou de

se tornar funcionalmente incapaz na velhice, em uma elaboração cultural de formas

singulares de envelhecer.

Nessa perspectiva a abordagem interpretativa da antropologia, utilizada na presente

pesquisa, muda o foco da doença como uma entidade biológica para a experiência da

doença em um determinado contexto social e cultural. Ressalte-se que em humanos,

os fenômenos nunca são apenas um fenômeno, pois eles estão sempre imbuídos de

significado na junção entre os quadros pessoal e coletivo. Esse significado é

apropriado pelos pesquisadores da antropologia interpretativa como o elemento que

influencia o curso da doença moldando a experiência subjetiva, bem como o

comportamento individual e social em resposta da doença31.

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28

Sob o ponto de vista da Antropologia Médica ou Antropologia da Saúde, a doença

não pode ser definida apenas como um processo patológico, no sentido biomédico do

termo, sendo o processo saúde/doença uma construção sociocultural. Nessa

perspectiva, vários estudiosos, entre eles Eisenberg32 (1977) e Kleinman33 (1980),

elaboraram conceitos e formas de compreender a doença que ainda são usados até

hoje34. A teoria proposta por Eisenberg diferencia a “doença processo” e a “doença

experiência”. Segundo ele, a “doença processo” (disease) se refere às anormalidades

dos processos biológicos e psicológicos, na função e/ou estrutura dos órgãos e

sistemas do corpo, e a “doença experiência” (illness) à experiência subjetiva de mal-

estar32. Kleinman desenvolveu o conceito de “modelos explicativos” (explanatory

models) para descrever o conjunto de crenças e expectativas sobre uma doença,

formuladas por indivíduos em uma determinada cultura. De acordo em essa

perspectiva, o modelo biomédico de compreensão do processo saúde/doença é

apenas uma das maneiras de interpretar esse fenômeno e é também social e

culturalmente construído33.

Illness também pode ocorrer na ausência de doença35. Corroborando esse sentido,

Uchôa36 aborda a questão de que “a experiência da doença não é considerada como

um simples reflexo do processo patológico no sentido biomédico do termo; mas

concebida como uma construção cultural que se expressa em formas específicas de

pensar e agir”. Portanto, os modelos disease/illness são formas de construir a

realidade, de impor significado no caos do mundo fenomenológico da doença37.

Segundo Morin38 (2001), as sociedades só existem e as culturas só se formam,

conservam, desenvolvem e transmitem através das interações entre os indivíduos e

são organizadas e organizadoras através do veículo cognitivo da linguagem.

Dispondo de seu capital cognitivo, a cultura institui as normas que organizam a

sociedade e governam os comportamentos individuais. As interações entre os

indivíduos – portadores/transmissores da cultura – geram novos conhecimentos que

regeneram a sociedade, a qual regenera a cultura. Assim, as normas culturais geram

processos sociais e regeneram globalmente a complexidade social adquirida por essa

mesma cultura, de tal modo que cultura e sociedade estão em relação geradora

mútua38.

Com o desenvolvimento da medicina moderna, o saber biomédico vai-se fortalecendo

e a medicina, progressivamente, amplia o seu campo de atuação, interferindo em

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29

aspectos comuns da vida através da prescrição de comportamentos e de normas de

conduta. Pela colocação de Morin, pode-se compreender como o saber biomédico,

através de sua influência nos indivíduos e na sociedade, é assimilado pela cultura e

passa a constituí-la.

Algumas vezes profissionais de saúde e doentes empregam modelos explicativos

diferentes para a doença, fato que pode explicar o insucesso do tratamento34.

Conhecer essas diferenças pode facilitar a comunicação entre tais grupos, ampliar a

compreensão dos profissionais quanto às várias formas de conceber o processo

saúde/doença, aumentar a aderência das pessoas que utilizam o serviço de saúde às

intervenções e aos tratamentos propostos. Isso é desafiador, mas pode ser propulsor

de avanços na educação em saúde e na promoção da saúde dos indivíduos e da

coletividade.

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30

4 Percurso Metodológico

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31

4.1 Local de estudo

A pesquisa foi conduzida na área urbana da cidade de Bambuí, município do centro-

oeste do estado de Minas Gerais, distante 270 quilômetros de Belo Horizonte e que

possui uma população estimada em 2010 de 22.734 habitantes, incluindo zona rural e

urbana39. O município vem passando por um progressivo fenômeno de urbanização,

conforme ocorrido no Brasil após 1950, podendo verificar uma evolução significativa:

a população urbana que representava 16% em 1950 passou para 73% em 1991 e em

2010 representava 85% da população total do município. A composição etária da

população também foi se alterando ao longo desses últimos cinquenta anos,

observando-se o seu envelhecimento progressivo: em 1960, 3,8% dos habitantes

apresentavam 60 ou mais anos de idade; em 1970 esta proporção passou para 5,1%,

em 1980 para 7,3% e em 1991, para 9,3% e de acordo com o senso do IBGE de

2010 essa população passou a representar 15,9%. O crescimento da população

idosa neste município foi maior (7,1%) do que no país em geral (6,2%) no período

compreendido entre 1991 e 200940,41.

A economia da cidade de Bambuí tem a sua principal fonte de renda proveniente da

exploração produtiva de seus recursos naturais, em atividades agrícolas, pecuária e

de extração mineral. O município é grande produtor de grãos, compondo a sua

produção agrícola o café, arroz, milho, soja e cana-de-açúcar. Bambuí se destaca no

estado de Minas Gerais na exploração de pecuária leiteira. Sua principal produção

mineral é a extração de caolim42.

O Mapa da Pobreza e Desigualdade do município mostra que há uma incidência de

32,47% da população em estado de pobreza, aumentando o segmento da população

que passa a se cadastrar no Programa Bolsa-Família, sem que todos, no entanto,

consigam obter o benefício39, 42.

Quanto às questões relativas à saúde43, Bambuí se destacou como centro de

profilaxia contra a doença de Chagas. O Posto Avançado de Estudos Emanuel Dias,

criado para controle da Doença de Chagas, presta até hoje assistência médica à

população. A rede pública de assistência à saúde do município conta com seis

Unidades Básicas de Saúde que integram a Estratégia de Saúde da Família (ESF),

um Centro de Saúde, uma unidade do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF),

um hospital da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e um

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32

hospital municipal, o Hospital Nossa Senhora do Brasil. Não existem instituições de

longa permanência para idosos44.

4.2 População de estudo

Para reconstruir o universo de representações (maneiras de pensar) e

comportamentos (maneiras de agir) associados à incapacidade funcional foram

selecionados idosos com 60 anos ou mais residentes em Bambuí, cadastrados nas

seis Unidades Básicas de Saúde e assistidos pela Estratégia de Saúde da Família.

Com o objetivo de proporcionar a multivocalidade ao relatório final, a pluralidade da

nossa amostra foi caracterizada pela composição de um grupo de entrevistados, de

ambos os sexos, de diversas idades, variados níveis funcionais e residentes nas

várias regiões da cidade.

Na perspectiva da abordagem qualitativa foi utilizado o critério de saturação para

regular o tamanho da amostra45. Para isso, foram identificados fatores operacionais

de redundância e repetição dos dados, fatores teóricos de consistência e

representatividade de elementos associados à incapacidade e a qualidade das

informações obtidas sobre funcionalidade, contribuindo para a decisão de um

determinado ponto de saturação amostral.

4.3 Coleta de dados

Foram realizadas entrevistas com os idosos em seu domicilio. A técnica de pesquisa

utilizada na coleta de dados foi a entrevista semi-estruturada, permitindo a ampliação

do campo de fala dos idosos pertencentes à amostra. Todas as entrevistas foram

gravadas após consentimento livre e esclarecido dos informantes.

O modelo de Signos, Significados e Ações, desenvolvido por Corin et al46 foi utilizado

na coleta e análise dos dados, em razão de o mesmo permitir:

a) o acesso a lógicas conceituais privilegiadas por uma população específica para

compreender e explicar uma determinada condição;

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33

b) a identificação dos diferentes elementos de um contexto particular que intervêm na

construção de comportamentos concretamente adotados por esta população frente

ao problema24, 47; e

c) a sistematização dos elementos do contexto que participam da construção de

maneiras típicas de pensar e agir dos participantes, no caso específico, como

pensam e agem os idosos entrevistados em relação à sua saúde.

O modelo de Corin et al46 tem origem na corrente interpretativa em antropologia, na

qual emerge uma nova concepção da relação entre indivíduos e cultura47. Segundo

Geertz48 – que se situa na origem dessa corrente –, a cultura constitui um universo de

símbolos e significados que permite os sujeitos de um grupo interpretar suas

experiências e guiar suas ações. Para este autor o conceito de cultura é

essencialmente semiótico, pois na mesma perspectiva de Max Weber, o homem é um

animal amarrado às teias de significado que ele mesmo teceu. Assim Geertz48

assumiu “a cultura como sendo estas teias e sua análise, portanto, não como uma

ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à

procura do significado” (p. 4)

Este modelo parte do comportamento concreto dos indivíduos para reconstruir as

lógicas conceituais subjacentes a seus comportamentos23. Assim, para reconstruir o

universo de representações (maneiras de pensar) e comportamentos (maneiras de

agir) associados à incapacidade pelos idosos residentes em Bambuí as entrevistas

tiveram inicialmente as seguintes perguntas geradoras:

a) Como você acha que está sua saúde?

b) Para você, o que é uma saúde boa? E saúde ruim?

c) Como é o seu dia-a-dia, sua rotina? Como é um dia em sua vida?

A partir das respostas obtidas, outras perguntas foram feitas de maneira aberta

abordando o contexto biopsicossocial, os recursos, o impacto e o significado da

incapacidade. As entrevistas foram gravadas para possibilitar a análise mais

cuidadosa e detalhada dos dados.

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34

4.4 Análise dos dados

Primeiramente, as entrevistas foram transcritas e lidas várias vezes. Após essa

primeira fase da análise, cada entrevista foi fragmentada buscando identificar frases,

palavras, adjetivos, concatenação de idéias, sentido geral do texto49, que tratassem

dos temas: saúde, doença e incapacidade. Para a elaboração das categorias

centrais, os seguintes passos foram seguidos:

Um primeiro nível de análise visou examinar as articulações entre estes temas e

elementos do saber biomédico presentes nas falas.

No segundo nível de análise foram identificados 1) “os sistemas de signos,

significados e ações”, a partir da identificação de signos relacionados a cada um dos

temas citados; 2) as explicações privilegiadas frente a esses signos e 3) as reações e

ações desencadeadas por esses signos. A partir dos sistemas de signos, significados

e ações foi avaliado o impacto específico de diferentes elementos do contexto

pessoal, social e cultural sobre a construção e a evolução das reações e dos

comportamentos47.

Para tanto, foi necessário proceder à:

1º - Releitura do material para organização dos relatos e definição de categorias

analíticas com os principais signos identificados nas falas;

2º - Leitura de bibliografia específica para estabelecer as categorias empíricas,

confrontando-as com as categorias analíticas teoricamente estabelecidas;

3º - Análise final do conteúdo, onde se buscou compreender as ações e falas dos

sujeitos diante da realidade dos indivíduos entrevistados.

Para assegurar o anonimato dos entrevistados eles foram identificados pelo sexo (M

ou H) e pelo número de sequência de realização da entrevista. Para exemplificar:

como a primeira e a segunda entrevista foram realizadas com mulheres, estas foram

identificadas como M1 e M2 respectivamente. Assim como na sequência de

realização das entrevistas a terceira e a sexta foram realizadas com homens, estas

foram identificadas como H3 e H6 respectivamente. Isso foi feito sequencialmente

com todas as entrevistas (anexo III).

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35

4.5 Aspectos éticos

Esta pesquisa é parte de um projeto maior intitulado “Abordagem Antropológica da

Dinâmica da Funcionalidade em Idosos” que foi submetido à análise e aprovado pelo

Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos do Centro de Pesquisa René

Rachou (anexo I). Todos os participantes assinaram um termo de consentimento

(anexo II), em acordo com a Resolução nº196/1996 do Conselho Nacional de Saúde.

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36

5 Resultados e Discussão

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37

Foram entrevistados 57 idosos (27 homens e 30 mulheres) com idades variando entre

62 e 96 anos, residentes em Bambuí, cadastrados nas seis Unidades Básicas de

Saúde e assistidos pela Estratégia de Saúde da Família. Quanto ao estado civil, vinte

e quatro eram casados, um em união estável, sete solteiros, e vinte e cinco viúvos. A

maioria deles teve filhos. No grupo, prevalecem a baixa escolaridade e a origem rural,

com predomínio da religião católica. Os principais motivos de mudança para a cidade

foram a maior proximidade com o serviço de saúde e/ou com a escola para os filhos.

Todos os participantes responderam a questões referentes às suas percepções de

saúde. Na análise das falas, não foi observada diferença entre a concepção de

homens e mulheres sobre o tema estudado.

Os achados da pesquisa demonstram como o conhecimento médico-científico foi

apropriado pela cultura local, transformando-a e determinando os modos de pensar e

agir dos idosos de Bambuí. Segundo Morin, sociedade e cultura estão em relação

geradora mútua38. A cultura institui as regras e as normas que organizam a sociedade

e controlam os comportamentos individuais48. Os indivíduos, portadores e

transmissores da cultura, interagem entre si e produzem novos conhecimentos que,

por sua vez, estão sob o controle de variáveis culturais e históricas. As interações

entre os indivíduos e o conhecimento produzido regeneram a sociedade, a qual

regenera a cultura. Há, portanto, um tronco comum entre conhecimento, sociedade e

cultura38. Da mesma maneira, as idéias culturais impregnam e saturam o saber

biomédico, cujas concepções sobre a saúde e a doença pressionam as mentalidades

sociais50.

Assim, pode-se pensar que o conhecimento biomédico técnico-científico incorporado

à sociedade e à cultura modula comportamentos que não contribuem para recuperar

a capacidade dos indivíduos e ignora os sinais de declínio físico e funcional, na

medida em que classifica tais sinais como “naturais da idade”.

Em Bambuí, no campo de fala dos participantes da pesquisa diversos significados e

maneiras específicas de conceber o saber biomédico e a forma como este saber

define a velhice foram identificados na reprodução da fala de médicos; na referência a

medicamentos e doenças; na relação de causalidade entre patologias e hábitos de

vida com as condições de saúde e de existência; no relato de práticas concretas,

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38

como a utilização dos serviços de saúde e a realização de tratamentos, consultas,

exames complementares, cirurgias, internações e outros procedimentos.

Após várias leituras e de um olhar específico e cuidadoso sobre as entrevistas, foram

identificadas quatro categorias analíticas de significados associados ao saber

biomédico: a valorização da biomedicina, a culpabilização dos indivíduos, a

naturalização das doenças na velhice e os recursos e ações. Esses recortes foram

julgados significativos, pois representam o sentido das ideias dos sujeitos

pesquisados. Em cada categoria de significado foram discriminadas várias

subcategorias analíticas de acordo com os signos percebidos e associados pelos

sujeitos às suas percepções de saúde e doença.

Dentre os significados observados associados ao saber biomédico, depreendeu-se

das falas dos idosos que:

O saber biomédico e suas prescrições são muito valorizados;

A palavra do médico não é questionada;

A especialidade médica, a tecnologia e a complexidade dos exames crescem

em importância diagnóstica e prognóstica;

A condição de vida na velhice decorre da idade, das escolhas e circunstâncias,

mas ninguém questiona quem determina as escolhas/circunstâncias da vida;

O saber biomédico reforça a ideia de que a velhice é uma doença;

Diante da velhice-doença a Medicina não propõe alternativas;

A fé religiosa traz à cena “o grande médico que é Deus” e, abaixo de Deus, o

profissional médico e seus remédios;

O termo incapacidade na forma como é apresentado pelo saber biomédico não

aparece em nenhuma das falas dos entrevistados. Para eles os signos que

remetem a uma condição de incapacidade são “dar trabalho” e o medo de

depender de outrem.

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39

5.1 A Valorização da Biomedicina

Confirmando a literatura51, no campo de fala dos entrevistados, o saber biomédico é

muito valorizado pelos idosos, especialmente na figura do médico, reconhecido como

sua principal autoridade. Um idoso relata a sua confiança neste profissional:

"Tem um médico que é conhecido, então eu tenho aquela confiança de

conversar com ele. Que nem eu falei pra ele: ‘eu quero consultar com o

senhor. Eu quero, eu quero que o senhor, o senhor achar, o senhor me

esclarecer, que eu acho que é bom saber o quê que tá acontecendo.’”

(H7, 84 anos, casado)

Mesmo quando o diagnóstico ou a prescrição são insatisfatórios, a imagem deste

profissional é preservada e sua conduta permanece inquestionável, pois a

argumentação de natureza biológica, ou seja, a doença, é incorporada à subjetividade

da pessoa idosa para justificar a sua condição, como mostra a fala de uma das

entrevistadas:

"Mas os médico é bom, boba, porque a doença mesmo é que não sai.”

(M24, 86 anos, viúva)

Na velhice, diante da alta prevalência de condições crônicas, a dependência da

intervenção médica torna-se ainda mais evidente:

“Uai, hoje eu tava falando com a menina: minha perna melhorou, que eu

não tava aguentando nem fazer assim com ela não, ó. O comprimido

que eu tomei. Eu não posso ficar sem remédio... Aí ele foi e passou pra

mim um remédio pra inflamações e esse inflamatório foi uma beleza! É

esse que eu tomo até hoje. Não fico sem ele, não.” (M22, 77 anos,

solteira)

Em Bambuí, além da prescrição de medicamentos, o saber biomédico também é

moralizante e determina comportamentos e normas de conduta que regulam as ações

do dia-a-dia dos entrevistados, embora:

a) contrariem a vontade dos sujeitos:

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40

"A minha glicose tá meio alta, sabe? Tenho que fazer umas dietas... É,

agora é só deixar de comer um doce, né? Eu gosto de doce, mas a

gente tem é que parar, né?” (H47, 69 anos, casado)

b) ignorem as experiências de vida pregressa, impondo-se de maneira autoritária:

Uma senhora mais velha ao ser perguntada se realiza visitas a outras pessoas relata:

“Visita? Eu não saio de casa, não. À missa eu já não vou mais porque a

gente tem, o médico mesmo fala: ‘não vai, não’. ”(M35, 93 anos, viúva)

c) não escutem o que a pessoa traz como demanda:

“(...) a gente não precisa falar muita coisa que eles já tão dando a

receita (...)” (M55, 86 anos, casada )

De acordo com a prática biomédica vigente, haveria uma normatização vertical, em

que o médico aparece como detentor absoluto do conhecimento científico e o

paciente como ser sem autonomia, examinado e compreendido de forma

fragmentada8. Nessa relação, o comportamento do paciente frente ao médico, é

comentado por Le Breton7:

“O doente se doa então em objeto puro de uma relação

técnica, ele renuncia a toda competência pessoal sobre seus

males, e a toda vontade de questionar sua significação e sua

ressonância em seu tecido relacional.” (p. 148)

Assim, no grupo estudado, essa hierarquia é notada quando se reconhece como valor

a disciplina do “doente” à prescrição, como pode ser comprovada por uma

entrevistada, ao ser perguntada se toma a sua medicação corretamente:

“Tomo tudo direitinho. O médico até falou comigo ‘coisa boa é tratar de

quem quer melhorar.’” (M10, 72 anos, casada)

Além disso, um dos elementos que reforçam o triunfalismo da medicina no século XX

é o desenvolvimento e o domínio da tecnologia pelo saber biomédico, o qual ao

oferecer provas concretas da veracidade de seus argumentos, torna-se um

importante instrumento de convencimento, e reforça a “ilusão compartilhada” implícita

na demanda do paciente e na resposta do médico de que a medicina tudo pode7. A

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41

partir disso, os exames complementares assumem grande importância na percepção

de saúde dos entrevistados, que passam a considerar sua real condição de saúde

como sendo aquela revelada pelos exames, como diz uma idosa:

“As outras coisas eu passei em tudo pra fazer a cirurgia das vistas, né?

Fiz, não teve nada nos meus exames que impedia. Quer dizer que tá

bom, né? Graças a Deus!" (M19, 83 anos, viúva)

E também esta outra entrevistada:

“Não tenho nada. Esses dias eu fui lá em [outra cidade de médio porte],

fiz tudo que é exame, graças a Deus não tenho nada, nem tumor, nem

nada.” (M39, 76 anos, viúva)

Até mesmo a subjetividade e a experiência corporal dos indivíduos ficam submissas

ao veredicto dos exames, pois é o exame quem fala, como relata esta senhora:

“Ah, a minha saúde, eu quando faço um exame me fala que eu não sinto

nada...” (M44, 69 anos, separada)

Tal percepção é ainda reforçada ao constatar que o poder de predição dos exames é

muito valorizado pelo médico:

"O doutor F. olhou os meus exames e falou assim: ‘dona M.!’ Ele me

chama de M., né? ‘A senhora com 83 anos, esses exames tudo que a

senhora fez agora pra fazer cirurgia de vistas, dona M., a senhora tá de

parabéns! Não acusou nada nos exames!’” (M19, 83 anos, viúva)

Entretanto, à medida que o poder preditivo dos exames complementares aumenta de

forma crescente, o profissional médico se torna do mesmo modo refém dele, uma vez

que a qualidade do seu trabalho passa a ser avaliada conforme a utilização e a

prescrição desses recursos50. Essa concepção pode ser observada no relato desta

mulher ao explicar por que prefere consultar em uma cidade vizinha de médio porte a

fazê-lo em Bambuí:

"(...) lá tem mais assim mais recurso, né? Parece, sabe, mais exame,

aqui é mais difícil. Aqui a gente vai num médico aqui, o médico quando

a gente chega lá: ‘o quê que cê tem?’ Pronto e você vai embora. Lá,

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42

não. Eles pedem os exames, olha, tem [um] pra cada coisa.” (M44, 69

anos, separada)

Outros elementos da biomedicina contemporânea bastante considerados pelos

sujeitos são a especialização médica, a tecnologia hospitalar e a valorização dos

grandes centros urbanos, como relata este idoso ao ser perguntado sobre o que

deveria melhorar na assistência médica de Bambuí:

“Eu acho que deveria, que assim, nas especializações médicas deveria

ter mais, por exemplo, aqui nós não temos aqui em Bambuí um...

médico de pele, como que chama? É... [Dermatologista?] Um

dermatologista à altura. A gente, nesse ponto eu acho que falta nas

especializações médicas, deveriam ter mais e o hospital também ser um

hospital mais bem equipado, você entendeu. O hospital nosso ele é um

bom hospital, mas é muito assim, muito precário. Não tem, se você

precisar de uma cirurgia que é feita meio a grosso modo, não temos um

centro moderno, não temos exames modernos como já tem nos grandes

centros e nós temos essas dificuldades pra saúde." (H18, 65 anos,

casado)

Tal opinião é compartilhada por outro senhor:

"Mais especialidade então é melhor. Contratar um médico, aparelho pra

médico e tudo, que aqui tudo favorece pra nós aqui. [Se não for assim]

Daqui um tempo nós vão sair e procurar um outro lugar longe." (H29, 65

anos, casado)

Porém, a forma de tratamento do profissional médico também é avaliada. Uma idosa

afirma:

“É só marcar e ele (o médico) vem, atende a gente direitinho, é muito

educado, trata a gente bem, não maltrata a gente.” (M13, 66 anos,

viúva) (grifo nosso)

Assim, fica subentendido que ela já foi maltratada por algum profissional de saúde ou

presenciou maus tratos no serviço.

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Outra característica do saber biomédico é se apresentar com linguagem e técnicas

complicadas, com a intenção de se tornar o grande detentor do conhecimento sobre

os processos da vida e sobre o sofrimento e o adoecimento17, 52. Disso decorre uma

crescente dependência e submissão ao conhecimento técnico-científico do médico e

culmina com a perda da autonomia dos indivíduos. Isso foi observado em Bambuí,

onde ao médico é conferida tamanha autoridade que ele pode tutelar a pessoa que

consulta, fato confirmado na fala de um idoso:

“(...) foi um dia ele disse: ‘N., eu vou internar você lá no sanatório.’ Mas

por que, doutor? ‘Porque você não tem quem te olhe e lá você vai ter

tudo e eu sou médico de lá e eu te dou uma olhada diária.’” (H3, 75

anos, casado)

É interessante observar que, em uma cultura local de forte influência religiosa como a

de Bambuí, aonde Deus é a referência suprema, o saber biomédico e a intervenção

médica se aproximam da ação divina, o que corrobora a literatura15. A fala de um

idoso ilustra essa questão:

"E receitou pra mim, assim... não tava dormindo muito bem, não.

Consultei... ‘ah, eu vou receitar um remedinho pra você dormir’. (...)

Dormi bem, não senti falta, não acordei, não tive falta de ar e, graças a

Deus, não sinto falta de ar hora nenhuma, graças a Deus. (...) Graças a

Deus! Abaixo de Deus foi o remedinho dele.” (H7, 84 anos, casado)

Assim, na fala dos idosos de Bambuí, podem-se perceber vários elementos da crítica

que Ivan Illich17 fez à medicina moderna, a partir do conceito de iatrogênese - iatros

(médico) e genesis (origem) – relativo aos malefícios provocados pelo processo de

medicalização e que se apresenta em três vertentes: a clínica, a social e a cultural. A

iatrogênese clínica refere-se às doenças que o médico causa como, por exemplo, ao

prescrever drogas que induzem interações medicamentosas danosas ou aos efeitos

maléficos de um exame invasivo no paciente. A iatrogênese social diz respeito ao

processo de dependência crescente da população, no caso presente da população

idosa, em relação a prescrições médicas, medicações, exames laboratoriais,

conhecimento especializado e normas de conduta da medicina, levando à

disseminação da ideia do “papel de doente”, em que o sujeito se torna passivo e

dependente da autoridade médica. Enquanto para Illich, a iatrogênese cultural seria o

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fato de a medicina desacreditar e combater todas as outras formas de lidar com as

doenças que não sejam comprovadas pela ciência, o que provoca uma destruição do

potencial cultural das pessoas e das comunidades para lidar de forma autônoma com

a enfermidade e o sofrimento52,53.

5.2 A Culpabilização do Indivíduo

Em todo o mundo, a compreensão da velhice como fenômeno social tem sofrido

modificações profundas desde o último século.

No Brasil, até meados do século XX, a velhice era tratada como uma questão privada,

envolvendo apenas o indivíduo e sua família. A partir da segunda metade do último

século, algumas políticas públicas passaram a abordar a questão do envelhecimento,

especialmente aquelas voltadas à aposentadoria e aos debates quanto aos modos de

financiá-la. Mais recentemente, com a difusão do conhecimento sobre a influência

dos hábitos de vida na qualidade da saúde, associada a políticas públicas precárias

para os cuidados de longo prazo para os idosos, especialmente os idosos mais

velhos e incapacitados, observa-se um movimento de reprivatização da velhice54.

Para Guita Debert55:

“Transformar os problemas da velhice em responsabilidade

individual é no contexto brasileiro propor a redefinição de

políticas públicas muito precárias, é intensificar nossas

hierarquias sociais, é, em suma, recusar a solidariedade entre

gerações, o que é um fundamento da vida social, da mesma

forma que a universalização da aposentadoria é um dos

fundamentos dos Estados modernos”.

No entanto, em Bambuí, essa transferência da responsabilidade para o nível

individual já acontece e é notada nas entrevistas. Este significado também associado

ao saber biomédico atribui a condição atual de saúde, seja ela boa ou ruim, como

resultado de hábitos de vida e de circunstâncias passadas ligadas ao contexto sócio-

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cultural do indivíduo. O idoso retém, ou mesmo utiliza práticas de cuidado com a

saúde, aprendidas em fases anteriores de sua vida com seu grupo étnico56.

Neste sentido, ao discutir o modo pelo qual as concepções sobre o corpo e a saúde

são reelaboradas nas sociedades ocidentais contemporâneas, Featherstone57 afirma

que elas remetem a uma cultura do consumidor , segundo a qual o indivíduo assume

a responsabilidade pela própria saúde, através da ideia de doenças auto-inflingidas,

resultantes de abusos corporais como a bebida, o fumo, a falta de exercícios. Em

Bambuí, um idoso confirma que para ter boa longevidade:

“(...) o conselho que eu poderia dar é assim ó: primeiro: não beber, não

usar drogas, não fumar e atividade.” (H18, 65 anos, casado)

Contudo, ao atribuir a condição de saúde na velhice aos hábitos decorrentes do

“estilo de vida” adotado ao longo de décadas, tem-se a ideia de que se trata de uma

escolha deliberada do indivíduo, o que, de certo modo, culpabiliza-o pela condição

atual. Assim, a racionalidade médica aborda problemas de ordem socioeconômico-

cultural desviando o foco do problema objetivo para aspectos subjetivos do

indivíduo58.

Esta concepção autopreservacionista do corpo encorajaria os indivíduos a adotarem

estratégias instrumentais para combater a deterioração e a decadência (aplaudida

pela burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde educando o

público para evitar a negligência corporal), além de agregar a noção de que o corpo

seria um veículo do prazer e da auto-expressão57.

Cabe observar que, muitas vezes, a imagem que a pessoa idosa tem de si e da sua

situação é bem diferente daquela descrita pela medicina. Em um estudo qualitativo

com 10 idosos brasileiros, Jardim et al59 observaram que os entrevistados

vivenciavam o processo de envelhecimento de diferentes formas, relataram a velhice

como uma fase de prazer e não foram percebidos sentimentos de rejeição ou de

inferioridade. Tal fato, associado a novas representações da velhice observadas em

clubes da “terceira idade”, universidades abertas à “terceira idade” e nos veículos de

mídia, que mostram pessoas interessadas em descobrir novas identidades,

desenvolver novos projetos de vida, estabelecer novos relacionamentos com outras

pessoas do mesmo ou de outros grupos etários, com o objetivo de buscar novas

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formas de prazer, bem-estar e auto-realização, contrastam com o estereótipo de

decadência e pobreza60 e reforçam a característica de grande heterogeneidade desse

grupo.

Ao contrário de uma velhice focada na aparência e na estética do corpo, no presente

estudo, as práticas defendidas pela sociedade ocidental e pelo saber biomédico

foram identificadas nas falas dos idosos, porém nenhum deles trata o corpo como

expressão ou veículo do prazer ou ainda a velhice como etapa de aprendizagem.

Questões de ordem estética não foram abordadas pelos idosos entrevistados.

Para eles o corpo é compreendido como ferramenta de trabalho e de sobrevivência,

conforme se observa no campo de fala de uma idosa, ao narrar a evolução das

doenças e da incapacidade ao longo de sua vida, apresentando-se como primeira

pessoa no lugar de protagonista de seu estado de adoecimento:

"Muitos anos que eu ando assim, doente. Primeiro eu fiquei, fiquei de

cama um ano. E... com diabetes. Depois tive internada em Belo

Horizonte. Fiquei, fiquei lá e vim embora. Aí eu fui pelejando. Fiz muito

regime e sarei do diabetes, mas atacou as vistas. Eu quase não

enxergo. Depois veio, eu passei a andar, assim, escorando, escorando.

Aí eu pegava, eu não dava conta nem de levantar. Eu peguei a escorar,

escorar, aí peguei a andar escorada na manguara, com pouco prazer,

mas tive isso ne mim. Tava trabalhando, tava panhando café. Aí me

inchou os braços, as mão de repente. ... Aí eu fiquei pelejando. Depois

eu enrolei as mãos de repente e foi rápido, não demorou nada. Quando

eu vi já tava tudo enrolada. Aí eu pelejei, pelejei, não teve jeito, não.

Tomava remédio, tomei o remédio, o remédio me acabou comigo,

acabou com a minha boca tudo...” (M8, 83 anos, viúva)

Esse relato calcado na vida, no trabalho braçal e na impotência diante da situação

diverge frontalmente do formato previsível e controlado da vida proposto pelo modelo

biomédico que parece ignorar que o “estilo de vida” do sujeito, muitas vezes, é o

único modo possível de sobrevivência dentro de determinado contexto social61.

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Outro senhor encontra na vida laboral a justificativa para sua condição de saúde na

velhice, mas assume a culpa e responsabiliza a própria ignorância pelo

comportamento de risco:

"Eu fiquei nas condições que eu tô aqui agora por ignorância minha

mesmo. No tempo que eu era novo, tinha saúde, graças a Deus, o peso

que era pra dois eu queria pegar sozinho e muitas das vezes eu

peguei." (H7, 84 anos, casado)

Semelhante culpabilização está presente no registro da fala de um profissional

médico, o qual apontou como causalidade das doenças de um senhor os excessos

cometidos no passado:

“Às vezes que eu fui consultar em Belo Horizonte o médico falou: ‘ah,

essas coisas assim é que quando você era novo você obrigou muito a

trabalhar, sabe?’ Aí a gente fica mais coisa assim, né?” (H20, 69 anos,

solteiro)

Ademais, aspectos psicológicos e da personalidade também são associados à

responsabilização do indivíduo pela qualidade da saúde na velhice, como afirma um

idoso sobre o seu segredo para se chegar bem aos 68 anos:

"O meu maior segredo é não guardar, não guardar rancor. É o principal.

Sou nervoso demais. Eu brigo fácil, fácil, mas depois também eu vou lá

e peço desculpas. (risos)" (H56, 68 anos, casado)

Enquanto outro homem enaltece o saber biomédico ao incluir a prática de ir ao

médico e tomar remédios como medida necessária para melhorar a saúde:

"(...) eu acredito que ir no médico, tomar um remédio, para ver se

controla, eu acredito que é isso. Eu acredito que eu tinha que parar um

bocado de trabalhar, tomar mais remédio para ver se Deus ajuda, se

conserva." (H3, 75 anos, casado)

Porém, a ideia de velhice como encargo individual foi, a tal ponto culturalmente

assimilada, que outra senhora chega a anistiar Deus de qualquer responsabilidade

sobre o processo dela de velhice com doenças, quando afirma no seu relato:

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"O médico fala que eu constipei os ossos. Ah, gente... não é Deus que

faz isso, não. Deus não faz nada ruim pra gente... Ah, eu acho que eu

mesma sou culpada... Ah, porque eu trabalhava direto. Eu trabalhei 11

anos sem falhar um dia.” (M8, 83 anos, viúva)

Ao explicar sobre a assistência à saúde, ela demonstra descrença e insiste na sua

culpa:

“Ah, uniu o SUS com os outros tudo, né, mas eu agora quase não tô

consultando, não. Eu acho que não tá adiantando mais não, agora não

adianta remédio mais. Adianta assim, se eu tivesse cuidado mais tempo,

né? Se eu tivesse cuidado mais tempo, antes de ficar do jeito que eu tô,

tinha mais. Depois, ele [o marido] morreu. Eu trabalhando, trabalhando.

Aí que dobrou mais, que tinha que trabalhar, né? Mas é onde eu falo

que eu culpo eu mesma, né, que Deus não é não.” (M8, 83 anos, viúva)

Portanto, os signos, significados e ações presentes nas falas dos entrevistados

apontam a necessidade de ampliar os determinantes da condição de vida na velhice

para além da noção de escolhas pessoais. Cabe considerar outros fatores

intrínsecos, situacionais, de história de vida e macro-estruturais, como afirma Neri62

para quem a noção de que a boa longevidade seja uma questão de responsabilidade

individual exime as instituições sociais de seus deveres para com os idosos. Para

essa autora uma velhice saudável depende dos investimentos em saúde e em

educação ao longo de toda a vida, cabendo ao Governo, à Escola, e às profissões

estabelecer as bases para um desenvolvimento bem-sucedido para todos os

cidadãos.

5.3 A Naturalização das Doenças na Velhice

Em Bambuí, nas falas dos idosos não se concebe a velhice sem doenças e sem a

perda da saúde, como demonstra um idoso de forma contundente:

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"Só o que não tá bom é a velhice. Porque a velhice é doentia. Há um

ditado que fala assim: senectus esculopus: a velhice é doentia. E é.”

(H15, 79 anos, casado)

Esse senhor refere-se ao breviário latino “ipsa senectus morbus” que quer dizer “a

marca da velhice é a doença”, sentido que foi registrado por Sêneca como “senectus

insanabilis morbus est” e cuja tradução seria “a velhice é uma doença incurável” ou

como imortalizado por Terêncio “senectus ipsa morbus est” traduzido como “a velhice

é ela mesma uma doença”.

A sociedade ocidental repercute essa visão milenar da velhice que estabelece uma

imagem negativa da pessoa idosa e representa a experiência do envelhecimento

como inexorável tragédia pessoal, irreversível e irremediável. Nessa perspectiva

dialética a experiência corporal do idoso se transforma em uma experiência social e é

reforçada pela ciência biológica que define a velhice como uma degeneração

orgânica irreversível e irremediável, fadada ao declínio das funções e das reservas

fisiológicas e à morte63. Um senhor aponta a velhice como responsável pelo declínio

de sua saúde:

"Minha saúde tá cada vez pior... porque a veieza justamente atrapalha,

né?” (H9, 74 anos, casado)

Em outro estudo qualitativo, realizado na cidade de Campinas, Garcia et al também

observaram que os idosos daquela cidade têm a concepção de velhice como perda

ou incapacidade e que as enfermidades são consideradas distúrbios próprios da

idade e não passíveis de tratamento64.

É importante observar que o saber biomédico produz o argumento científico da

senilidade – conceito que nomeia o envelhecimento patológico, ou seja envelhecer

com doenças – o qual ecoa entre os entrevistados na forma da aceitação de sintomas

e doenças, bem como da maior vulnerabilidade orgânica65. Pode-se dizer que o

mesmo conceito é reproduzido pelo profissional médico, internalizado pelo idoso e

pela cultura local, e se revela na compreensão de todos esses atores que

correlacionam a velhice e as doenças como consequências naturais e inerentes à

idade avançada, conforme observado na narrativa deste senhor:

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"É coluna. Eu tenho artrose, bico de papagaio e desgaste. Tem três

coisas, só pela idade, né? Tá doendo por causa já é mais minha idade.”

(H47, 69 anos, casado)

Ressalte-se que o signo “bico de papagaio” advém da assimilação pelos idosos da

interpretação das imagens radiológicas sugestivas de alterações degenerativas da

coluna que se assemelham à forma de bico de papagaio e são atribuídas a desgastes

e à artrose. Portanto, ao falar de “bico de papagaio” o sujeito demonstra ter

assimilado o saber biomédico e nele justifica sua dor e sua impotência.

Assim, os códigos da cultura que configuram o saber biomédico são reproduzidos e

se sustentam na relação com o saber popular, como pode ser percebido na narrativa

de um idoso ao reproduzir a fala do seu médico:

"(...) [o médico] só falou comigo assim: ‘o senhor não preocupa muito

não, caça um jeito de ficar mais despreocupado, repouso, isso maior

que você sente agora é idade. Essa idade da gente aparece uma

coisinha aqui, aparece outra por lá, o senhor não tem que preocupar,

não.’" (H7, 84 anos, casado)

Em Bambuí, foi realizado um estudo66 no qual foi percebido que o olhar do outro

sobre a velhice era carregado desse negativismo que o profissional expressa. Tal

olhar corrobora com o processo de naturalização e homogeneização da velhice e

simultaneamente mantém e reforça os estereótipos transmitidos pela cultura. Porém,

a recomendação médica de inatividade e repouso tende a agravar as doenças,

acelerar o processo de envelhecimento e marcar esse momento da vida por

sentimentos de inferioridade e desgosto67, retroalimentando este ciclo vicioso fundado

em crenças e comportamentos que adoecem a velhice.

A associação entre doença e velhice é tão forte que, se uma pessoa tiver boa saúde

e boa capacidade funcional, ela pode não ser considerada velha, ainda que esteja em

idade avançada, conforme narra essa senhora, viúva pela segunda vez, ao ser

perguntada sobre como reconheceria uma pessoa velha:

“Eu acho que não tem idade pra falar aquela pessoa tá velha, não. Ela

tendo saúde, ela não pensa que tá velha, não. Por exemplo, se ela

sentir bem, se ela come bem, se ela dorme bem, se ela anda, se ela

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conversa com todo mundo, ela tá disposta pra tudo... Agora assim, eu

acho que a pessoa tendo essa disposição, não (tem) velhice, não. Não

tem velhice, que eu casei com o meu segundo marido, ele já tava com

sessenta e muitos anos também. Nós viveu 18 anos. Ele morreu com 88

anos. Ele nunca foi assim, de ficar cabisbaixo e morreu. Adoeceu e num

instantinho morreu. [Morreu sem ficar velho?] Morreu sem ficar velho..."

(M5, 77 anos, viúva)

Com os avanços tecnológicos e científicos e com o sucesso no controle de epidemias

e na cura de doenças infecciosas no último século, a visão curativa da medicina se

fortaleceu, assim como a falsa crença na sua infalibilidade9. Tal crença, associada à

ideia de que a idade avançada seja ela própria a causadora das doenças dos velhos,

atribui à velhice a incurabilidade dos problemas crônicos de saúde e não reconhece

nem deixa transparecer a impotência da medicina em lidar com eles, como se pode

perceber no relato desta senhora ao reproduzir o que um médico lhe disse:

“O médico falou que isso, o doutor A., meu médico lá de Belo Horizonte,

ele falou que eu constipei os ossos. Agora não tem jeito, não. Não tem

jeito de curar osso, o médico não cura. Não tem jeito. É igual lenha.

Lenha secou, complica, né?" (M8, 83 anos, viúva)

Essa impotência do médico em lidar com deficiências crônicas que requerem

cuidados permanentes e o fato de esse profissional ser treinado para interceder em

casos agudos talvez explique a orientação recebida por um dos entrevistados:

“Vou ao médico diário sô, meu Doutor é o X, né? X que é médico meu,

aí dá aquela perrengada ele arranja aquele remédio e fala: ‘Cê leva

esse e vai tomando, acaba uma receita e pega outra e, na hora que

piorar mais, cê volta.” (H23, 82 anos, casado) (grifo nosso)

Portanto, o saber biomédico não propõe alternativas à velhice-doença, o que é

tacitamente aceito por parte dos idosos, sem quaisquer resistências ou

questionamentos. Essa questão é ilustrada pela fala de um homem:

"É meio sem recurso, porque a coluna não sara; cuidando a tempo,

conserva; conforme a vez que dá, melhora; mas sarar não sara, não...

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Agora é convencer como que tá, repouso, ficar quietinho e usar os

remedinhos. É isso aí.” (H7, 84 anos, casado)

A compreensão da velhice como um tempo que exige resignação e desistência diante

de perdas inexoráveis atribuídas à idade corrobora a percepção dos idosos

entrevistados e aquela contida nas falas dos médicos que eles registram. Porém isso

reforça a expectativa de perda gradual da capacidade vital e consequentemente gera

na pessoa idosa o medo da dependência, da incapacidade, dos enfrentamentos

decorrentes de doenças, em especial das crônico-degenerativas, e da própria

morte56. Nas falas transparece o medo de que as coisas piorem, a ponto de depender

de terceiros, presente na fala de um dos entrevistados, ao ser perguntado se tem

medo de que algo possa lhe acontecer no futuro:

“É só ficar inválido.” (H30, 76 anos, solteiro)

Indagado sobre o porquê do medo, ele esclarece:

“Ah, porque sofre, né? Sofre. E o sofrimento nunca é bom, né?” (H30,

76 anos, solteiro)

Quando perguntado sobre o que acha ser mais difícil - ficar sem fazer uma coisa ou

precisar de alguém – ele pondera:

“Ah, isso, todos os dois é ruim. A gente não dar conta de fazer e

precisar dos outros.” (H30, 76 anos, solteiro)

Assim, o medo dessa restrição da independência funcional chega a ser maior até do

que o medo de morrer, como explicitado na fala dessa entrevistada:

"Não, eu falo assim: a morte de repente, é muito melhor do que ficar na

cama penando, não é? (...) Ah, eu penso que é ruim, ficar dependendo,

depende dos outros demais, né? Não pode fazer nada. Não é fácil, não!”

(M14, 88 anos, viúva)

A mesma opinião é compartilhada por um senhor idoso:

“Eu não tenho medo da morte não, se falar assim: vai morrer amanhã,

não tem problema. Eu tenho medo é de, por exemplo, eu sou assim, um

pouco agitado, se eu cair numa cama e não puder andar, um trem

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assim, aí eu tenho medo, de ficar dando trabalho pros outros, ficar pela

mão dos outros. Aí é preferível que a gente morresse. (risos)" (H18, 65

anos, casado)

Uma viúva em seu relato teme a incapacidade e as mutilações que podem advir das

doenças:

“Agora o que eu tô com medo é esses trem for me entravando e eu

parar de caminhar e ir para uma cama. É isso aí o que eu mais tô com

medo. É disso. Igual muita gente. Estas doenças acaba cortando a

perna, braço. Isso daí a gente tem medo. Ah que não é fácil. Cê vê, a

gente nasce perfeito e morre aleijado?!” (M24, 86 anos, viúva)

É impressionante constatar como o determinismo biológico da medicina, que associa

a velhice a doenças, o seu caráter mecanicista, que compara o corpo a uma máquina,

e o seu caráter generalizante, com a pretensão de determinar leis gerais, que trata a

velhice como um fato homogêneo e olha para os idosos como se todos fossem

iguais68, são incorporados pela cultura e internalizados pelos participantes da

pesquisa. Através de suas falas, eles demonstram que também os médicos e outros

profissionais de saúde trazem esse conceito incorporado e reforçam-no junto aos

idosos. Vale lembrar que, além da formação técnico-científica que esses profissionais

recebem, eles também são integrantes da mesma sociedade e

portadores/transmissores da mesma cultura que a população idosa representada no

estudo. Tudo isso contribui para a sedimentação do estereótipo de que a velhice é

naturalmente doentia e, por ser o envelhecimento um processo inexorável,

progressivo e irreversível, não há muito que se fazer a não ser esperar (“fazer

repouso”, “ficar quietinho”). Com isso, o sentimento de impotência e o temor diante da

possibilidade de uma dependência futura se tornam inevitáveis e negar a velhice

transforma-se em um meio possível de continuar a ser socialmente aceito.

5.4 Os Recursos e Ações

O quarto tema que trata dos recursos e ações resulta da interação entre as três

categorias anteriores: a valorização da biomedicina - a medicalização da vida; a

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culpabilização do indivíduo pela sua condição de saúde na velhice e a naturalização

das doenças e limitações justificadas pela idade; que repercutem no pensamento e

nas atitudes dos idosos e da sociedade.

Uma das maneiras de agir é a aceitação daquilo que é preconizado pelo saber

biomédico para lidar com doenças crônicas e incuráveis, como relata esta senhora

que reconhece o benefício da consulta a especialista e do uso contínuo de

medicamentos para tratar diferentes problemas de saúde:

"Eu tenho Chagas, eu tenho é... essa tremura, Parkinson... Eu trato com

um neurologista de (uma cidade próxima). Ele falou pra mim: ‘ó dona M.,

não tem cura, mas tem melhora, melhora. Se a senhora tomar os

remedinhos direito e todos os remédios que eu tô receitando a senhora

vai melhorando.’ Na verdade, eu tô melhorando, alivia demais.” (M51, 70

anos, viúva)

Por sua vez, é interessante observar que em relação às práticas de saúde e ao

controle de doenças, o saber biomédico pode divergir dos modos de pensar e agir

dos entrevistados, como é o caso de uma idosa que rejeita a medicação, pela crença

na capacidade de reação do organismo:

“Eu acho que, eu não gosto também, por exemplo, se eu tenho alguma

dorzinha de cabeça, eu não tomo comprimido, não... Porque pelo o que

eu sei, que o próprio organismo ele já reage, né? (...) Reage sozinho, já

não precisa. É caso de tolerar um pouquinho.” (M38, 69 anos, solteira)

Essa divergência pode ser compreendida a partir da complexidade de interações que

envolvem o conhecimento humano. Outra entrevistada, ao falar sobre a vizinha jovem

que fazia caminhada e faleceu, mostra que, por vezes, a experiência pessoal fala

mais alto e desafia os decretos da medicina:

“Eu não ando mais, eu andava, fazia caminhada, depois que a D.

morreu eu falei assim: eu velha, tô aguentando os trancos e os

barrancos tudo, passa apertado e tô passando e menina novinha

morreu, eu não vou ficar fazendo caminhada, não! [Por quê? Ela morreu

como?] De aneurisma fulminante. Morreu na hora. Aí eu larguei de fazer

caminhada.” (M5, 77 anos, viúva)

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Por sua vez, um senhor encontrou uma estratégia para ignorar este prognóstico fatal

que admite como natural a presença de enfermidades e de limitações na idade

avançada: ele se considera “diferente” porque prefere não consultar o médico por

qualquer motivo para não se deparar com os problemas inevitáveis da velhice:

“Eu fico assim, eu sou uma pessoa diferente, eu não fico procurando. É

igual você pegar um carro, um carro velho. Se você for com ele pro

mecânico todo dia, você acha defeito pra ele todo dia, você entendeu. Aí

você vai convivendo com um barulhinho, você vai lá, um barulhinho...

Você vai convivendo. Porque se você começar levar ele pro mecânico

num primeiro barulhinho, aquilo lá às vezes tá tudo bão, você pensa

assim: tem um barulhinho aí. Tira esse barulhinho e aparece um outro

barulhinho.” (H18, 65 anos, casado)

Essa atitude de resistência reconhece o pensamento cartesiano e mecanicista

fundante do saber biomédico que compreende a velhice como uma equação

matemática, na qual o “corpo velho = máquina defeituosa”, ou seja, o sintoma

representa o defeito que o idoso nomeia como “barulhinho”. Porém, ao incorporar a

visão mecanicista da biomedicina, admite-se a visão do corpo velho como uma

máquina desgastada no qual, portanto, defeitos/doenças são mais do que naturais e

esperados, e, para os quais, a “oficina” da ciência biomédica não oferece “conserto”,

reforçando a compreensão de que “a velhice é doentia” por si.

Desse modo, apesar de todo avanço científico e tecnológico, a biomedicina não

apresenta respostas satisfatórias para muitos problemas, o que abre espaço para o

retorno a práticas populares. Apesar da abrangência do saber biomédico,

culturalmente, esse saber não é o único modo de conceber as questões de saúde.

Além do conhecimento técnico científico valorizado socialmente, a cultura também

incorpora o saber popular e informal acumulado ao longo de gerações, que é

influenciado por laços de família, amizade ou vizinhança ou pelo pertencimento a

grupos religiosos ou profissionais. Todos estes saberes estão sobrepostos e

interligados na assistência à saúde69. Embora o saber popular não tenha aparecido

nas correlações entre velhice e saúde dos entrevistados, ele surge quando se fala

nas práticas concretas de saúde, fazendo parte do dia a dia das pessoas. Por

exemplo, esta participante admite:

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56

"(...) então eu fui olhar um negócio do Lúpus, e tava falando as plantas

que pode usar pra combater, que ela é incurável, né, mas as plantas

ajudam a controlar, inclusive a cavalinha. Eu gosto.” (M38, 69 anos,

solteira)

Assim, é altamente questionável que os profissionais de saúde ignorem esta opção

ao avaliarem o resultado das intervenções prescritas.

Porém, com quais recursos a pessoa idosa conta para lidar quando o corpo velho

dói? Cabe reconhecer que o capítulo referente à dor e ao corpo envelhecido

mereceria muitas considerações que ultrapassam o escopo do presente trabalho,

mas o trecho a seguir extraído da fala de um homem idoso ilustra essa situação, na

qual ele ri de sua tragédia, enquanto admite uma vez mais que ninguém tem culpa da

sua dor:

“A gente fica quietinho assim com as dores toda, mas ninguém tem

culpa, né? (risos) Ninguém tem culpa.” (H43, 62 anos, união estável)

Assim, o recurso que ele mesmo defende é pelejar e aprender a conviver com a dor e

as doenças:

“Então a gente tem que aprender a viver com as doenças. Então, pelo

longo, pelo longo tempo que eu venho sobrevivendo com essa doença,

venho pelejando...” (H43, 62 anos, união estável)

Ao descrever o local da dor, ele afirma:

“Eu sinto muita dor na coluna cervical, isso embaixo da coluna. A única

parte minha que eu não sinto dor ainda é nas mãos. Nos ombros, perna,

lombo, eu não dou conta nem de levar a mão na cabeça. Aí eu vou

suportando, aí vou levando uma vida razoável...” (H43, 62 anos, união

estável).

Se este senhor já assimilou a nomenclatura anatômica ao se referir ao pescoço como

coluna cervical, quando admite que também dói no “lombo”, ele utiliza em si o nome

conhecido no meio rural de Minas Gerais para o dorso de animais.

Diante da falta de perspectiva de melhora pela medicina, resta-lhe a resignação para

suportar a situação e ir “levando uma vida razoável”, sem ousar questionar o que seja

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57

uma vida razoável. Talvez ele admita sua condição como razoável a partir da vivência

de toda a vida, na qual sobreviver às condições de vida já representasse a prova

máxima da sua resistência. Além disso, diante de uma dor que não pode ser vencida,

o jeito é apelar para a razão para aprender a conviver com ela e seguir “pelejando”.

O saber biomédico, na perspectiva da visão curativa, ao não ser capaz de apresentar

possibilidades de cura para os problemas crônicos de saúde e as suas mazelas,

atribui à velhice a natureza da incurabilidade e não reconhece outros tipos de

abordagem. Com isso, o que se observa é que, nas falas e prescrições dos

profissionais médicos reproduzidas nas falas dos idosos, ao invés da incorporação do

cuidado e da noção de finitude, prevalece um discurso e a prática fatalista de

profissionais que se limitam a recomendar repouso (com o intuito de “poupar a

máquina”), paciência e resignação diante de uma vida dolorosa e “razoável”,

demonstrando sua omissão e impotência em frases do tipo “isso é coisa da idade” ou

“na hora que piorar mais, cê volta” ou ainda proibindo os velhos de saírem de casa

até para ir à missa, por exemplo. Ou seja, insiste em um modelo de assistência que

não atende plenamente a pessoa idosa.

Assim, para compreender os comportamentos assumidos pelos idosos diante da

condição de saúde atual e da explicação dada pelo saber biomédico – ou a falta dela

- pelo menos duas visões podem nos auxiliar: a de Morin38 e a de Foucault70.

Segundo Morin, por menor que seja o conhecimento, ele comporta elementos

biológicos, cognitivos, culturais, sociais e históricos que interagem de forma variável e

complexa, estabelecendo relações simultaneamente complementares, concorrentes e

antagônicas. Essa complexidade permite compreender a possibilidade de autonomia

relativa do indivíduo em relação às normas sociais e culturais38. Enquanto Foucault

oferece como explicação o que denominou “formas de resistência subjetiva” em que,

nas relações de poder, são criadas novas possibilidades de subjetividade e de

ações70 que permitem que o indivíduo estabeleça uma determinada relação consigo

mesmo e com os outros71.

Por fim, a fé religiosa aparece como estratégia de enfrentamento para os problemas

insolúveis que confrontam o limite do saber médico. A religiosidade explica a vida,

atribuindo significados aos fatos72 e dando-lhe contornos de sentido que confortam os

sujeitos. A religiosidade presente no campo de fala dos idosos entrevistados sugere

que suas crenças e tradições religiosas ajudam a explicar e a enfrentar o sofrimento

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experimentado por eles, como demonstra essa viúva ao ser questionada sobre o que

poderia fazer para melhorar a saúde:

“Ah, isso aí é só Deus! (Só Deus?) Só Deus, mais nada! Sem Deus não

é mais nada!” (M4, 81 anos, viúva)

A religiosidade é um quadro de referência pessoal importante para a maioria dos

idosos da presente pesquisa, considerando que os comportamentos religiosos são

bastante frequentes na idade avançada73. Isso se revela na sua maneira de pensar a

vida e experimentar o cotidiano, sendo evidenciado na cultura pelos signos que

sustentam coletivamente o seu discurso religioso. Especialmente nesta comunidade

com forte influência católica, a religiosidade guarda um tom de fatalismo diante da

situação que não admite alternativas49, revelado na passividade e em ações de

conformismo que também tendem a naturalizar o processo de envelhecimento com a

incapacidade. A síntese dessa compreensão estaria na anistia ao divino, uma vez

que Deus “não tem culpa” da condição em que vivenciam a velhice.

Para Geertz48 o discurso cultural denota um padrão de significados construídos e

transmitido historicamente onde se desenvolve e perpetua o conhecimento e as

maneiras de atuar na vida. Assim, os idosos bambuienses têm no saber

proporcionado pelo enfrentamento religioso o conforto e a esperança para lidar com o

contexto sociocultural em que envelhecem:

[Se pudesse dar um conselho] "... Uai, Deus ajudando pode ir até no

100, né? (...) Deus querendo, né? (...) [Referindo-se a se precisa fazer

alguma coisa pra estar bom] Uai... aí é os mistérios de Deus que ajuda,

né? (...) [Ref. por que não quer dar trabalho] Ah, não... Deus me

ajudando... Deus me ajudando e dando força tá bom! Deus e Nossa

Senhora da Aparecida ajudando tá bom." (H26, 85 anos, viúvo)

A representação do saber biomédico e o saber religioso encontram-se como dois

poderosos códigos da cultura local que reafirmam o poder que têm sobre a vida. E ir

na direção desse saber é a garantia da salvação, se não na vida real e no tempo

presente, na fé em uma vida eterna que livra quem crê de forma definitiva do

sofrimento e das penas de hoje, como afirma esta senhora:

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“(...) ir no médico, rezar bastante também. (risos). Nosso médico melhor

é aquele lá (aponta para o céu ).” (M1, 89 anos, Viúva)

Ao reconhecer Deus como médico melhor do que os homens, talvez ela queira

relembrar ao ser humano médico sua condição de falibilidade e de imperfeição, que o

saber biomédico tanto se esforça por minimizar.

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6 Conclusões

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61

O presente estudo demonstrou que, em muitos de seus aspectos, o saber biomédico é

apreendido pelos idosos de Bambuí, impregna o campo de fala deles, influencia a

percepção da relação saúde, doença e incapacidade e possibilita a reinterpretação do

cotidiano da vida a partir de suas condições de saúde/doença.

Nesse sentido, verifica-se que as várias práticas e normas do saber biomédico foram

assimiladas, sendo que, apesar de toda a sua racionalidade, sua influência direciona-se

não apenas às práticas objetivas de saúde, mas igualmente à subjetividade das pessoas

em relação ao corpo e à vida. Porém a dimensão funcional da saúde e a incapacidade

não estão presentes nas falas dos entrevistados nem nas dos profissionais médicos que

eles registraram. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, a ausência do signo

incapacidade como veiculado pelo saber biomédico é extremamente relevante e o seu

significado precisa ser mais bem elucidado. De acordo com as falas dos idosos

bambuienses, o saber biomédico expresso não nomeia, não trata, não cuida e não

compensa as incapacidades que as pessoas idosas apresentam.

O saber biomédico reproduzido no campo de fala dos idosos reconhece as doenças e a

incapacidade como signos da velhice. Ao fazê-lo, ele exclui a dimensão funcional do

conceito de saúde e se mostra iatrogênico, pois impede que a pessoa seja cuidada na

sua plenitude durante o processo de envelhecimento. Portanto o saber da biomedicina

medicaliza, mas não cuida, prescreve, mas não conforta, culpabiliza, mas não ajuda.

Todas essas atitudes demonstram o quanto a morte, a incapacidade e a velhice são

reveladoras contumazes da impotência do saber biomédico diante dessa velha “máquina

defeituosa” que, apesar de todo o poder tecnológico e das descobertas genéticas,

moleculares e até atômicas, se mantém fiel à condição humana de finitude e de

imperfeição.

Diante do saber biomédico percebido, restam ao idoso de Bambuí a passividade e o

conformismo de ir “levando uma vida razoável”, além do temor da incapacidade e da

dependência. Na sua ação cotidiana, esses idosos, mesmo sem o aval médico, procuram

práticas alternativas como o uso de plantas medicinais. Outros preferem não consultar

para não descobrir mais “defeitos na máquina”. Ainda assim, sempre resta a crença na fé

religiosa de que Deus os livre desse destino que eles, por ignorância ou culpa,

construíram para si, uma vez que Deus não lhes deseja o pior e não tem culpa pela

condição de hoje, de ontem ou de amanhã.

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62

Enquanto isso não acontece, a pessoa idosa reproduz a naturalização das doenças e a

sua própria culpabilização, pois não aprende – nem lhe são prescritas - outras maneiras

de cuidar de si, restando-lhe apenas seguir os conselhos de aguardar, aquietar-se,

pelejar, sem procurar falhas nesta “máquina velha”, e mesmo com “dor no lombo”, “na

coluna cervical”, e com “bico de papagaio”, ir “levando uma vida razoável”; ou ainda, “na

hora que piorar mais” pode voltar ao médico e apanhar outra receita, “sem precisar falar

muita coisa”.

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7 Anexos

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7.1 Anexo I - Carta de Aprovação N.º 02/2010 - CEP / CPqRR

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65

7.2 Anexo II - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Você está sendo convidado para participar da pesquisa: ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DA

DINÂMICA DA FUNCIONALIDADE EM IDOSOS. Você foi selecionado para participar da pesquisa e o

critério que usado foi sua capacidade de responder às perguntas. Sua participação não é obrigatória. A

qualquer momento você pode desistir de participar e retirar seu consentimento. Sua recusa não trará

nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador, com a Equipe do Programa de Saúde da Família e

nem com o Centro de Pesquisa René Rachou.

Os objetivos deste estudo são investigar a sua auto-avaliação de saúde, o que significa

incapacidade para você; e, para você, o que pode auxiliar o idoso a enfrentar essa dificuldade.

Sua participação nesta pesquisa consistirá em: responder às perguntas que sob seu

consentimento serão gravadas. Após as gravações, as fitas e/ou os arquivos ficarão em armário próprio

em Belo Horizonte ou em um computador pessoal com acesso restrito. Ao final do estudo, as fitas serão

destruídas.

Essa pesquisa não implicará em riscos relacionados à sua participação. As informações obtidas

através dessa pesquisa serão confidenciais e asseguramos o sigilo sobre sua participação. Os dados não

serão divulgados de forma a possibilitar sua identificação (você será reconhecido não pelo nome e sim

pelo número da visita, exemplo: caso você seja a terceira pessoa a ser entrevistada, antes das gravações

será dito “Entrevista da participante 3” cadastrado no PSF X). Você receberá uma cópia deste termo

onde consta o telefone e o endereço do pesquisador principal e do CEP – CPqRR, podendo tirar suas

dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a qualquer momento.

_____________________________________

Nome e assinatura do pesquisador

Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação na pesquisa e concordo em

participar. _________________________________________ Sujeito da

pesquisa Sujeito da pesquisa

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66

7.3 Anexo III - Dados Demográficos e Codificação dos Idosos

Entrevistados

7.3a Tabela 1 – Dados demográficos e codificação entrevistados 1 a 15

Dados Demográficos e Códigos dos Entrevistados do

Programa Saúde da Família - Cidade de Bambuí

Nº Código Gênero PSF Idade Estado Civil

1 M1 Feminino 1 89 anos Viúva

2 M2 Feminino 1 63 anos Casada

3 H3 Masculino 1 75 anos Casado

4 M4 Feminino 1 81 anos Viúva

5 M5 Feminino 1 77 anos Viúva

6 H6 Masculino 1 62 anos Casado

7 H7 Masculino 3 84 anos Casado

8 M8 Feminino 3 83 anos Viúva

9 H9 Masculino 2 74 anos Casado

10 M10 Feminino 2 72 anos Casada

11 H11 Masculino 3 69 anos Casado

12 H12 Masculino 3 70 anos Solteiro

13 M13 Feminino 3 66 anos Viúva

14 M14 Feminino 3 88 anos Viúva

15 H15 Masculino 2 79 anos Casado

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67

7.3b Tabela 2 – Dados demográficos e codificação entrevistados 16 a 30

Dados Demográficos e Códigos dos Entrevistados do

Programa Saúde da Família - Cidade de Bambuí

Nº Código Gênero PSF Idade Estado Civil

16 M16 Feminino 2 96 anos Viúva

17 M17 Feminino 2 61 anos Casada

18 H18 Masculino 2 65 anos Casado

19 M19 Feminino 4 83 anos Viúva

20 H20 Masculino 4 69 anos Solteiro

21 H21 Masculino 4 87 anos Viúvo

22 M22 Feminino 4 77 anos Solteira

23 H23 Masculino 5 82 anos Casado

24 M24 Feminino 1 86 anos Viúva

25 H25 Masculino 5 74 anos Casado

26 H26 Masculino 1 85 anos Viúvo

27 M27 Feminino 5 80 anos Solteira

28 M28 Feminino 1 76 anos Viúva

29 H29 Masculino 5 65 anos Casado

30 H30 Masculino 5 76 anos Solteiro

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68

7.3c Tabela 3 – Dados demográficos e codificação entrevistados 31 a 45

Dados Demográficos e Códigos dos Entrevistados do

Programa Saúde da Família - Cidade de Bambuí

Nº Código Gênero PSF Idade Estado Civil

31 M31 Feminino 1 77 anos Viúva

32 M32 Feminino 5 73 anos Casada

33 M33 Feminino 6 74 anos Viúva

34 M34 Feminino 6 81 anos Viúva

35 M35 Feminino 5 93 anos Viúva

36 H36 Masculino 1 61 anos Casado

37 M37 Feminino 5 68 anos Casada

38 M38 Feminino 6 69 anos Solteira

39 M39 Feminino 6 76 anos Viúva

40 H40 Masculino 5 71 anos Casado

41 H41 Masculino 4 79 anos Viúvo

42 M42 Feminino 3 82 anos Casada

43 H43 Masculino 3 62 anos União Estável

44 M44 Feminino 6 69 anos Separada

45 H45 Masculino 4 90 anos Viúvo

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69

7.3d Tabela 4 – Dados demográficos e codificação entrevistados 46 a 57

Dados Demográficos e Códigos dos Entrevistados do

Programa Saúde da Família - Cidade de Bambuí

Nº Código Gênero PSF Idade Estado Civil

46 H46 Masculino 3 90 anos Viúvo

47 H47 Masculino 4 69 anos Casado

48 M48 Feminino 4 77 anos Viúva

49 H49 Masculino 2 77 anos Casado

50 H50 Masculino 2 96 anos Casado

51 M51 Feminino 4 70 anos Viúva

52 H52 Masculino 6 88 anos Viúvo

53 M53 Feminino 4 82 anos Viúva

54 M55 Feminino 2 86 anos Casada

55 H56 Masculino 6 68 anos Casado

56 H57 Masculino 6 62 anos Casado

57 M58 Feminino 4 88 anos Viúva

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70

8 Referências

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