ilari r geografia linguística

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7/23/2019 ILARI R Geografia Linguística http://slidepdf.com/reader/full/ilari-r-geografia-linguistica 1/6 2 O impacto da geografia lingüística e das pesquisas de campo  No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, várias tendências reagem contra o método histórico-compara- tivo e contra a maneira como ele levava a representar a formação das línguas românicas: algumas dessas orientações “novas” resul tam de uma reflexão filosófica ou teórica sobre linguagem, como é o caso do chamado “idealismo lingüístico” ou da escola lingüís tica de Saussure; outras surgem no próprio campo de estudo das lín guas românicas, como resultado de um contacto mais direto com os dialetos neolatinos. Estão neste último caso as orientações que se costuma reunir sob o título genérico de “geografia lingüística” . Como orientações da “geografia lingüística”, serão menciona dos aqui (i) as investigações sobre os dialetos galo-românicos de Jules Gilliéron; (ii) o movimento “Wõrter und Sachen” de Schu- chardt; e (iii) a proliferação, inspirada pelas duas orientações ante- c riores, de atlas lingüísticos para regiões do território românico. 2.1 Gilliéron Entre 1897 e 1901, um professor de dialetologia da École Pra tique de Hautes Etudes dirigiu uma alentada pesquisa de campo que consistiu em aplicar um questionário de 1920 perguntas em 639

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7/23/2019 ILARI R Geografia Linguística

http://slidepdf.com/reader/full/ilari-r-geografia-linguistica 1/6

2O impacto da geografia

lingüística e das pesquisasde campo

 No final do século XIX e nas primeiras décadas do séculoXX, várias tendências reagem contra o método histórico-compara-tivo e contra a maneira como ele levava a representar a formaçãodas línguas românicas: a lgumas dessas orientações “ nov as” resultam de uma reflexão filosófica ou teórica sobre linguagem, comoé o caso do cham ado “ idealismo lingüístico” ou da escola lingüística de Saussure; outras surgem no próprio campo de estudo das lín

guas românicas, como resultado de um contacto mais direto comos dialetos neolatinos. Estão neste último caso as orientações quese costum a reunir sob o título genérico de “ geografia lingüística” .

Com o orientações da “ geografia lingüística” , serão m encionados aqui (i) as investigações sobre os dialetos galo-românicos deJules Gilliéron; (ii) o movime nto “ Wõ rter un d Sa chen” de Schu-chardt; e (iii) a proliferação, inspirada pelas duas orientações ante- c

riores, de atlas lingüísticos para regiões do território românico.

2.1 Gilliéron

Entre 1897 e 1901, um professor de dialetologia da École Pratique de Hautes Etudes dirigiu uma alentada pesquisa de campoque consistiu em aplicar um questionário de 1920 perguntas em 639

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26 LINGÜÍS TICA ROMAN ICA

 pontos do território dos dia letos galo-românicos. A aplicação doquestionário, que compreendia perguntas destinadas a levantar

dados não só sobre fonética, mas também sobre morfologia e sintaxe, foi feita por um auxiliar (Edmond Edmont), ao passo que o próprio Gil liéron se dedicou principalmente à tr iagem e interpretação dos dados e à sua apresentação na forma de atlas. Resultoudessas pesquisas de campo o  A tlas linguis tique de la France   (ALF)(publicado entre 1902 e 1912).

() trabalho de Gilliéron é inovador, e historicamente importante, antes de mais nada, por sua metodologia: ao passo que os

comparatistas utilizavam principalmente fontes escritas (documentos antigos, glossários e dicionários dos dialetos, textos dialetaisetc.), Gilliéron dá prioridade aos dados que resultam de uma pesquisa de campo. Com isso, cria-se, no domínio dos estudos români-cos, uma consciência autenticamente geográfica, graças a uma delimitação relativamente exata das áreas em que vigoram determinadas realidades lingüísticas; além disso, o próprio método prestava-se a provocar o aparecimento de uma quantidade de dados antes

não catalogados.Mas os estudos de Gilliéron foram sobretudo importantes pelas

descobertas a que levaram, que obrigaram de certo modo a abandonar definitivamente a concepção comparatista segundo a qual a dia-letaçào do latim teria resultado sem outras complicações de um tratamento fonético diferenciado que as expressões do latim vulgarteriam recebido em cada região. Gilliéron mostrou que essa perspectiva era infundada, e que além da evolução fonética operou crucial

mente na formação dos dialetos românicos a criatividade dos falantes, particularmente ativa toda vez que se tornava necessário desfazer colisões homonímicas e salvar palavras foneticamente poucoconsistentes, ou toda vez que a etimologia popular alterou a formade uma palavra para relacioná-la a algum paradigma conhecido.

Um bom exemplo de como a criatividade verbal dos falantes »interfere na evolução fonética para desfazer colisões homonímicassão as denominações do galo  nos dialetos do sul da França. Essas

denominações incluem não só os derivados das palavras latinas gal

lus  (= “ galo” ) e  pullus   (por gallus pullus   = “ galo filhote” ), masainda formas semelhantes ao francês vicaire  e  fa is an   (respectivamente: “ vigário” e “ faisã o” ). Segundo Gilliéron, houve ummomento em certos dialetos do sul da França em que, por efeitoda evolução fonética, gallu e cattu   se confundiram numa única palavra gat,  com o inconveniente de tornar homônimas as denominações

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O IMPACTO DA GEOGRAF IA LINGÜÍSTICA E DAS PESQUISAS DE CAMP O 27

 para dois animais domésticos bastante comuns. Para desfazer a homo-nímia, os dialetos em questão recorreram ao nome do vigário, quecompartilha com o galo a tarefa de acordar os paroquianos pela

manhã, e veste um barrete que lembra uma crista; outros dialetosrecorreram ao nome de um outro galináceo, o faisão.

Mapa 1: Distribuição das denominações do galo no sudoeste da.França

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28 LINGÜÍSTI CA ROMÂNI CA

Um exemplo célebre de como a etimologia popular interferena evolução fonética segundo Gilliéron é a história da palavra fran

cesa  fu m ie r ,  “ m on turo ” : o latim tinha para “ esterco” a palavra fim u s ,' i,  sobre a qual deve ter sido formada *fimarium,  “ lugar

onde se ju nt a esterco” ; entre tanto para chegar-se à forma francesa,é preciso passar por  fu m arium .  Para Gilliéron esta forma deve ter

sido criada, efetivamente, por influência do verbo  fum are:  o monturo deve ter sido representado em algum momento como um lugarde onde se exalam fumaças, provavelmente a partir do hábito euro

 peu de queimar neles durante o outono as soqueiras dos cereaiscolhidos no verão. A palavra  fu m ier,  em suma, teria ganho suaforma atual ao ser incorporada por uma família de palavras coma qual não tinha de início nenhuma relação.

Mas Gilliéron dá uma demonstração ainda mais impressio

nante de como se podem interpretar os dados do ALF ao comentaro mapa que representa as denominações da abelha.  Nesse mapa,cabe observar antes de mais nada a grande variedade de denomina

ções — mouche à miei, mouchette , avette, essette, aveille  etc. —,o que já é, por si só, um fato digno de nota. Chama a atenção por

outro lado o fato de ter sido adotada pelo dialeto de Paris a denominação típica do provençal (abeille,  do lat. apic(u)la,  não é palavra francesa pois nos dialetos que formam a base do francês stan

dard, o p   intervocál ico passa a J e e m seguida a v; cp. trapalium  

> travail).  Para justificar esse empréstimo provençal, Gilliéron

reconstitui como segue a história dos nomes da abelha nos dialetosdo norte da França:

1 etapa: de ape  a és

1. o latim ape  passa a (’/( si n gu la r) , és  (plural);

2. sobre o plur. és  forma-se um sing, é   (por uma reinterpretaçàoda forma que lembra a “ derivação regressiva” );

3. para reforçar foneticamente o sing, é,  usa-se em seu lugar o plural pelo singular; chega-se assim a uma fase em que abelha  se dizindistintamente és, é  ou éf,  prevalecendo a primeira.

2a etapa: de és  a ep

4. nos dialetos do norte da França alternam, em contextos fonéticos relevantes para o caso, as pronúncias [é] e [wé]; por conseguinte, as frases [v 1d ezes] e [v 1 dez es] torn am -se h om ônim as ,

significando “ vôo de pássaros” ou “ vôo das abelhas” ; para desfazer a colisão, a língua substitui os dois termos em conflito: de

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Ο I MP AC IO Ι)Α CIFOCiRAIIA I INGUIST ICA Ε DAS PESCJUISAS DE CA MPO 2')

um lado, toma-se essaim  (do lat. examen, “ enxam e” ) como coletivo/plural de abelha, o que leva por sua vez a buscar novos termos para “ enxame” ; de outro substitui-se o termo p ara “ pássa

r o " (ézé, wezé)  por moineau, oiselet  etc.;5. a mesma flutuação de pronúncia confunde os nomes da abelhae da vespa: (w)és  (< lat. ape) = wés  (< lat. vispa);  desfaz-semais esta colisão tomando do dialeto da lie de France a forma ep.

3? etapa: de ep   a mouchette

6. foneticamente fraco, ep  reforça-se em é-ep, és-ep  e mouche-ep·,7. as duas últimas formas são reconstruídas nas formas assonantes

essette e mouchette.

4“ etapa: de mouchette   a mouche à miei

8. mouche à miei  substitui mouchette.  em conflito com o diminu-tivo de mouche',

9. mouche à miei opòe-se a mouche guêpe, nome da vespa.

5“ etapa: de mouche à miei  a abeille

10. no dialeto de Paris, toma-se emprestada a forma provençal abeille, criando o par opositivo mouche abeiüe  (assonante com mouche 

à miei) / mouche guêpe;11. permanece abeille,  nome atual da abelha em francês standard.

 Na análise de Gilliéron, o fato de o francês standard   ter ado

tado para designar a abelha um termo provençal aparece como oúltimo episódio de uma longa história na qual a evolução fonética

é apenas um dos aspectos relevantes. O exemplo da palavra abeille mostra que a evolução fonética intervém na história da língua sobre

tudo como um fator de desestabilização, ao provocar o enfraquecimento das form as e ao criar “ colisões ho mo ním icas ” . As soluçõesa essas instabilidades não poderiam ser fonéticas no sentido estrito

das “ leis fonéticas” ; para superá-las, aceitam-se empréstimos de

dialetos vizinhos, e recorre-se a formas compostas, duplicadas ou

assonantes; freqüentemente, essas formas revelam uma análise quecoloca a palavra em contraste com outras palavras de um mesmo

campo nocional.Com isso, Gilliéron não apenas mostra que na história da língua intervém um trabalho de reflexão dos falantes (um trabalho

epilingüístico, se diria provavelmente hoje), mas ainda desloca aanálise do terreno da fonética (para os comparatistas, o caso de

abeille  seria um problema fonético, e uma exceção) para o terreno

da lexicologia.

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30 I INGUI STICA ROMANI CA

Mapa 2: Distribuição das denominações da abelha no território francês

limites dos depa rtam entos atuais

outras denominações